Britto Miller - O Inverno Dos Escritores Mortos
Britto Miller - O Inverno Dos Escritores Mortos
Britto Miller - O Inverno Dos Escritores Mortos
O INVERNO
DOS
ESCRITORES
MORTOS
Série detetive Borzagli
Volume 1
3ª edição
Nova Lima
Miller Aloisio de Britto
2018
Prólogo
O inverno chegara marcando seu território com um vento gélido, que
vagueava pela tarde sem sol assobiando uma canção melancólica pelas ruas
vazias do bairro de classe alta.
A mulher, que mantinha a casa fechada para o frio, para os vizinhos
enxeridos, fechada até para os amigos do filho menor, tinha cometido o erro
de abrir suas portas justamente para aquela pessoa. Ingênua, bastou ouvir as
palavras Orquestra Sinfônica e a menção à filha, que se apressou em convidar
a visita para entrar. Não pediu qualquer identificação, apenas se preocupou
em fazer chá quente e saboroso, com os biscoitos maravilhosos que fazia
apenas em ocasiões especiais. A receita era um legado de família.
Acreditava que a oportunidade que a filha tanto esperava tinha
finalmente batido à porta. Como fora tola. Quando voltou à sala foi
surpreendida pelas costas, sentiu uma picada no pescoço e braços firmes a lhe
segurar, enquanto a bandeja ia ao chão com grande estardalhaço, espalhando
o líquido escuro no tapete branco e imaculado.
Agora, encontrava-se sentada no confortável sofá da sala, os braços
caídos em inércia ao lado do corpo, as pernas paralisadas como todo o resto.
A visita estava bem à sua frente, alegre, divertindo-se como criança com um
brinquedo ganho.
Quando a agulha da primeira seringa penetrou fundo em sua pele,
esbarrando no osso, ela quis gritar, mas os lábios não se moveram. A dor foi
poderosa e uma lágrima solitária pontuou a verdade de sua agonia. Então
vieram as segunda, terceira e quarta, a dor somando-se, sobrepondo-se
excruciante, a mente implorando pelo alívio da inconsciência, enquanto o
corpo apenas aceitava resignado, sem conseguir reagir.
Ela só queria entender, mas tudo acontecera rápido demais e, quando se
dera conta, estava vivenciando na própria pele uma cena que ela mesma
imaginara, que desenhara tantas vezes em sua mente, aperfeiçoando os
detalhes e aparando as arestas, até que ficasse a ponto de poder se orgulhar,
mas agora era vítima de sua própria criação.
Sentia as forças esmaecerem perante a dor e a perda de sangue.
Urrava, enjaulada dentro de si mesma. Moveu os olhos para baixo com
dificuldade, os globos beirando o extremo de seu campo de visão, até
perceber o despontar de um número sem fim de seringas. Foi a última coisa
que viu. Dois êmbolos lhe perfuraram os olhos indo de encontro ao cérebro,
depois disso... o alívio da inexistência.
Capítulo 1
Capítulo 2
***
E-mail 03. Creio que você se acha boa demais para responder aos seus
fãs. Você deve ser uma puta qualquer que dormiu com o editor para
conseguir publicar esta porcaria.
E-mail 04. Que merda de livro, você matou a personagem pela qual eu
estava apaixonado. Como pôde? Sua vadia! Como pôde? Sua puta imunda.
***
20 anos atrás
O garoto subia a rua apressado. Aos dez anos de idade, nada era mais
importante do que o futebol contra os garotos do bairro vizinho. A semana na
escola tinha sido recheada de provocações e chacotas antecipadas. Perder o
jogo estava fora de cogitação.
Ele chegou até a porta branca recém pintada. O cheiro de tinta fresca
ainda latente. Estendeu a mão e tocou a campainha. Um dingue-dongue
clássico ressoou dentro da casa. Ninguém atendeu. Tocou mais uma vez e
esperou. O resultado foi o mesmo.
Onde estaria o amigo? Os garotos do bairro vizinho eram muito bons
e sem o Caneta, o mais habilidoso do time, a possibilidade de derrota era
grande. Será que aquele preguiçoso estava dormindo, como costumava fazer
depois do almoço?
As janelas estavam abertas, então deveria haver alguém em casa. Ele
pesou a mão na maçaneta e a porta se abriu, revelando uma sala bonita e
aconchegante, cada parede forrada com estantes repletas de livros.
O garoto colocou a cabeça no vão da porta e chamou mais uma vez. O
silêncio foi sua única resposta.
Ele já tinha estado naquela sala incontáveis vezes. Se, apenas daquela
vez, entrasse sem ser convidado, tinha certeza de que seria perdoado, afinal
era por uma causa muito importante.
Pisou no tapete onde os amigos costumavam se reunir para jogar
banco imobiliário. Caminhou até a cozinha onde a mãe de Caneta os
observava fazendo os deveres de casa. Enquanto cozinhava, dona Branca
dava dicas sobre as tarefas mais difíceis.
A casa estava vazia, os pais do amigo ainda estavam no trabalho e
isso indicava que Caneta só podia estar dormindo. A mochila jogada no
corredor indicava que ele já tinha chegado da escola.
Restava-lhe punir o amigo pelo atraso. Estava decidido. Iria subir pé
por pé e acordar Caneta com o maior susto de sua vida.
Quando pisou nos degraus da escada que levava ao segundo andar, o
rangido das tábuas foi tão alto que o assustou. O imóvel era como toda boa
casa antiga deveria ser. Quase uma entidade viva, cujas juntas idosas de
madeiras comidas por cupins e tubulações velhas e mal encaixadas
reclamavam com murmúrios constantes e rabugentos, clamando por uma
reforma.
Já no piso de cima ele encontrou o corredor vazio, sabia que o quarto
do amigo era o último cômodo do lado direito, depois da janela.
Prosseguiu silencioso, excitado com a possibilidade do trote, e, ao
mesmo tempo, temeroso pela casa onde o silêncio gélido era soprado pelos
cômodos vazios.
Prestes a estender sua mão para a porta entreaberta, ele sentiu algo
tocar-lhe o ombro. O susto o deixou sem cor. O grito de terror ficou sufocado
na garganta. Quase urinou nas calças. O alívio veio segundos depois, quando
criou coragem para virar a cabeça e descobriu que o fantasma que lhe
assediava era nada mais que a cortina, que, soprada pelo vento repentino,
decidiu acariciar-lhe gentilmente o pescoço, fazendo-o rememorar os filmes
de terror que assistia escondido na madrugada.
Decidiu que o melhor era acordar logo o amigo para poder voltar ao
calor do dia. Longe de lugares onde sua imaginação infantil pudesse decidir
lhe pregar mais alguma peça.
Quando finalmente abriu a porta do quarto, o verdadeiro horror atingiu-
lhe em cheio, com uma cena que jamais seria apagada de sua mente.
***
***
A próxima pessoa a passar por aquela porta não o fez de forma menos
intempestiva.
-Fred! – A presença da detetive Elis foi precedida por seus gritos, que
ecoaram pelo corredor.
-Mas que merda, o que será dessa vez?
-Temos outra vítima – disse ela assim que passou pela porta.
-Outra... – ele teve dificuldades em compreender.
-Mais um escritor. Segundo informaram, é o mesmo padrão.
Até o momento os detetives encaravam o assassinato de Natália
Brummer como um ato isolado, fruto, provavelmente, de um fã de mente
doentia. Um segundo crime mudava tudo. Estariam diante de um serial?
Fred se levantou quase derrubando a cadeira. A velocidade com que se
pôs de pé o fez ficar zonzo.
-Tudo bem com você? – perguntou-lhe a parceira, que o viu se apoiar
na parede mais próxima.
-Tudo bem.
“Exceto pelo fato de que não só não encontramos esse desgraçado,
como o deixamos matar de novo.”
-Qual o nome da vítima? – perguntou Fred quando já entravam no
carro.
-Átila Fernandes.
Fred ficou remoendo aquele nome. Ele o conhecia, mas não conseguia
associar o homem a sua obra.
-Acho que já li alguma coisa dele, mas não consigo me lembrar –
pontuou enquanto Elis engatava a primeira e arrancava para fora do
estacionamento da delegacia.
-Eu dei uma olhada no Google, parece que ele publicou alguns livros
em editoras pequenas, nada muito badalado, mas conseguiu alcançar um
público maior quando o livro “Antes do meio-dia” foi aceito e publicado por
uma editora de maior visibilidade.
-Sim, sim, claro. É um romance policial. Na história o assassino vai
cortando partes da vítima, os policiais tinham até o meio-dia para encontrá-lo
a tempo de a cabeça ainda estar no lugar.
-Uma segunda vítima muda tudo – disse Elis, os olhos pregados na
pista. A troca constante de faixas e as ultrapassagens refletiam a ansiedade da
policial.
-Sim.
O pensamento que cruzou a mente de Fred o deixou enojado de si
mesmo.
“Uma nova vítima representa outra chance de encontrarmos pistas.”
Seria uma nova morte um mal necessário?
***
Era uma casa de classe média, encimada em um bairro de classe média,
com todos aqueles abutres classe média sobrevoando as fitas amarelas,
guiados pelo cheiro de sangue. E por falar em abutres, lá estavam as equipes
de TV, como poderiam ter chegado tão rápido? O circo estava armado e
faltavam os palhaços, mas Fred tinha certeza de que um nariz vermelho não
seria o suficiente para agradar aquelas pessoas. Se ele tivesse que bancar o
circense, que fosse o maligno Pennywise de It, A Coisa, assim poderia
colocar todos aqueles desgraçados para correr, para que pudesse trabalhar em
paz.
-Detetives, mais um escritor morto em menos de duas semanas.
Estamos falando de um serial killer? Um matador de escritores? – gritou uma
das repórteres que já se lançava em direção ao carro de Fred e Elis. Os
holofotes dos operadores de luz cegavam os recém-chegados.
Os detetives ignoraram os repórteres e seguiram através do cerco.
-Policial – disse Elis com o distintivo em mãos para um dos homens
que mantinha a multidão afastada – precisamos de um perímetro maior.
-Detetives! Detetives! – Os repórteres eram como mosquitos que eles
não conseguiam afastar e seguiam zumbindo em seus ouvidos.
Fred sentiu-se feliz por entrar na casa e deixar aquele tumulto para trás,
mas o cheiro que veio de encontro a eles logo o fez mudar de ideia. Ele foi
acometido por uma nova vertigem. Apoiou-se na parede para se reequilibrar,
sem permitir que Elis percebesse, tudo o que não precisava agora era de sua
parceira lhe fazendo discursos inúteis sobre sua saúde.
O odor pungente ficava mais forte a cada passo. Na sala, dois policiais
conversavam e faziam anotações.
-Detetives – disse um deles – o corpo está na cozinha.
Fred e Elis seguiram para lá. Passaram por um corredor que
desembocava no cômodo frio de azulejos quadriculados em branco e preto.
A imagem grotesca os atingiu em cheio, assim como o forte odor que
pairava no ar viciado de janelas fechadas. Os olhos ardiam e era preciso lutar
bravamente para manter o almoço quieto dentro do estômago.
O homem, ou o que restava dele, estava amarrado à cadeira. Sobre a
mesa, dentro de panelas, havia orelhas, dedos, nariz, pênis, todas as
extremidades possíveis foram cortadas e agrupadas de maneira organizada
dentro dos vasilhames.
Elis levou a mão à boca, sacou um lenço e cobriu o nariz. Ela saiu
rapidamente da cozinha, antes de misturar sua bile e suco digestivo ao sangue
da vítima que lavara o chão transformando-o em uma bandeira rubro-negra.
Fred queria fazer o mesmo, mas parou para ler os escritos na parede, a marca
do assassino, o elo maior entre os crimes.
“Cortarei um pedaço a cada vinte minutos, mas como gostei de você,
deixarei que escolha por onde devo começar. Orelha? Nariz? O fura-bolo ou
o mata-piolho?”
“O assassino gargalhou enquanto o medo florescia em sua vítima,
alimentando sua loucura.”
Capítulo 6
20 anos atrás
Luís e Bárbara caminhavam de mãos dadas pelo parque. Aos dez anos,
a maioria dos meninos precisava antagonizar as garotas se não quisesse ser
motivo de chacota entre os colegas, mas para Luís nada era mais importante
do que a companhia de Bárbara. Antes mesmo de descobrir os significados de
amor ou paixão, ele sabia que não haveria outra garota em sua vida que não
fosse ela.
A infância e suas verdades eternas, que duram por horas, dias, ou por
toda uma vida.
Algumas vezes por semana, depois da aula, os dois se sentavam sob a
sombra de uma árvore no parque perto de casa. Faziam os deveres juntos
enquanto falavam mal dos professores e de suas provas terrivelmente difíceis.
Comentavam os filmes de terror que assistiam escondidos de madrugada e de
como aquilo os assustava, mas, mesmo assim, não conseguiam deixar de vê-
los.
Embora à noite o parque tivesse sua cota de frequentadores suspeitos,
durante o dia era um lugar tranquilo, por isso, quando as crianças ouviram os
gritos e toda a comoção que acontecia em algum lugar ali por perto, logo se
colocaram de pé para ir investigar.
Alguns metros à frente, sob a cúpula do antigo coreto, cujas rachaduras
no chão de concreto eram como grandes cicatrizes. No mesmo lugar onde a
bandinha de metais do bairro costumava se apresentar para os pais
orgulhosos. Uma menina acuada, caída ao chão, se defendia com dificuldade
das agressões de um grupo de seis outras garotas.
Luís e Bárbara ficaram horrorizados ao se aproximarem e perceberem
que a menina tinha o rosto coberto de vermelhões e marcas de unhas. Seu
uniforme escolar estava rasgado em vários lugares, e, em muitos deles, os
arranhões estavam vermelhos de sangue.
-E então, queridinha da professora, vai fazer pouco de nós agora? –
falava uma das meninas. Claramente a líder à frente daquela covardia.
-Parem, por favor – pedia a outra, completamente sem reação, as mãos
tentando defender o rosto dos chutes e tapas. Os cabelos ruivos empapados de
suor e presos à testa.
-Você achou que podia mudar de escola e fugir de nós? Achou mesmo?
Uma das garotas, a maior delas, acertou um chute na barriga da menina,
que arfou ofegante enquanto a visão escurecia em borrões negros.
-O que acham de deixarmos ela nua? Imagina essa franguinha voltando
pra casa pelada – Todas riram, mas não era uma piada e sim uma ideia que
agradou a todas.
-Já chega! – gritou Luís, muito antes de perceber que as palavras já
tinham saído de sua boca – Vocês estão malucas?
-Deixem-na em paz! – reforçou Bárbara.
-Ou o quê? – perguntou a líder com petulância no olhar.
Bárbara imediatamente pegou uma pedra no chão e começou a fazer
mira. Luís tomou posse de um pedaço de pau.
-Eu não bato em meninas, mas vocês estão realmente merecendo. Suas
covardes!
-Acho que já chega. Essa daí já aprendeu parte da lição. Qualquer dia
desses, nós voltamos para terminar a aula. Beijos, queridinha da professora.
As meninas deixaram o parque entre gracejos e gargalhadas de
escárnio.
-Você está bem? – perguntou Bárbara, ajoelhada diante da ruiva.
A menina se encolheu toda, como se o menor toque pudesse
desintegrar-lhe.
-Está tudo bem agora, elas já foram – Luís tentou tranquilizá-la, sem
muito efeito.
-Qual o seu nome? – Bárbara fitava a garota de cima a baixo, medindo
seus machucados, ainda sem conseguir acreditar em tamanha crueldade,
praticada por meninas que deveriam ter a sua idade.
Após longos segundos, ela respondeu.
-Fernanda.
-Nós vamos te levar pra casa, Nanda. Posso te chamar assim? –
perguntou Luís, com um sorriso no rosto.
-Pode, mas, por favor, não me levem pra casa.
***
Caminhar pelas ruas no frio matinal fazia bem a Fred. Ele odiava o
calor e o fato de morar em país tropical. O sol recém-nascido, de raios
tímidos, tinha dificuldade em expulsar a neblina que se debruçava sobre a
cidade.
O detetive não conseguia se lembrar de um inverno tão frio quanto
aquele. O maldito aquecimento global vinha tirando dele um dos poucos
prazeres que ainda lhe restavam. O Brasil parecia seguir, ano após ano,
cabulando o inverno, até que a fria estação finalmente decidiu revidar,
premiando as noites com temperaturas que não passavam dos dez graus e, nas
manhãs, os ventos gélidos que sopravam pelas ruas pareciam claramente
dizer: “não me desafie”.
Elis seguia ao lado do detetive, não estavam dispostos a ficar sentados
esperando que Rogério chegasse com seu teatro de envelopes pardos. O
prédio do departamento forense era apenas a um quarteirão de distância, e
eles decidiram caminhar.
-Venha, vamos tomar um café para espantar esse maldito frio dos ossos
– disse Elis apontando para uma lanchonete.
-Não diga isso alto, ele pode se ofender e ceder a vez para aquele calor
maldito novamente.
-Achei que os velhos detestassem o frio – provocou ela.
Ele a olhou de esguelha, não se deu ao trabalho de responder.
Sentados na lanchonete, ela viu Fred abrir seu cantil e despejar uma boa
dose de bebida dentro do café.
-O que foi? – perguntou, sentindo-se sob a mira do olhar feminino.
-Nada, só que me preocupo com você.
-Eu sei que você se preocupa – ele estendeu a mão e tocou a dela por
cima da mesa – eu amo você por isso, Elis, mas estou bem.
“Amo você muito mais do que imagina.”
Eles seguiram para o arranha-céu que ficava do outro lado da rua. Após
mostrarem suas identificações na portaria, seguiram para o elevador e, de lá,
após sobreviverem à Garota de Ipanema, para a sala de Rogério.
-Bom dia – disseram os detetives ao entrar.
Elis não esperou ser convidada para sentar e colocar os pés sobre a
mesa.
-Bom dia – respondeu o gordo baixinho e simpático – não me lembro
de já ter colocado os pés sobre a sua mesa, detetive Elis.
-Pois eu me lembro de você ter tentado, mas não ter alcançado. Ou será
que foi a cadeira que quase tombou para trás?
Ele gargalhou, mexendo exageradamente os ombros.
-Você tem razão. Além de linda é muito sagaz. Diga-me, Elis, quando
vai me dar a chance de fazê-la descobrir o que é um homem de verdade?
-Se no meio de um dos seus envelopes houver o nome que procuramos,
talvez eu deixe você me pagar um cafezinho ali na esquina.
-Seria o melhor café da minha vida.
-Vocês já terminaram? – perguntou Fred.
-Parece que o grandão ficou com ciúmes.
-É exatamente isso, estou morrendo de ciúmes – ironizou Fred.
Rogério se permitiu um sorrisinho cínico.
-Pois bem, meu pessoal ainda está trabalhando e o pouco que temos é
tão inconclusivo quanto no outro caso. Encontramos mais uma vez o brometo
de pancurônio na corrente sanguínea da vítima. Podemos dizer que ela estava
consciente durante a tortura. O óbito provavelmente ocorreu entre dez da
noite e três da manhã, é difícil de determinar exatamente, pois a causa da
morte foi hemorragia. A vítima perdeu muito sangue das diversas
amputações.
-Foi usado algum tipo de instrumento cirúrgico? – perguntou Fred.
-Acreditamos que não. O assassino usou apenas os aparatos de cozinha
que tinha à disposição.
-E quanto ao resto da casa?
-Não encontramos nada.
-Com todo aquele sangue pelo chão, como ele pode não ter deixado
nenhuma pegada? Por acaso estamos falando de um fantasma? – quis saber
Elis.
-Minha opinião pessoal sobre isso, detetives, é que essa pessoa é algum
tipo de camaleão, um mestre em se adaptar e descobrir maneiras de ser
convidado a entrar. Não há como explicar que nos dois casos ele não tenha
deixado vestígio algum, exceto pelo fato de que houve tempo de sobra para
apagar as pistas, e isso não é algo fácil de fazer. Ou ele comprou um box com
todas as temporadas de todos os CSI e se empolgou, ou o cara é uma pessoa
de inteligência muito acima da média, capaz não só de ludibriar cada uma das
vítimas, mas também de pensar nos mínimos detalhes que poderiam ser
deixados para trás.
-Você tem razão – falou Fred – no primeiro crime o assassino sabia que
a vítima estaria sozinha. Sabia que o marido tinha o costume de fazer viagens
curtas com os filhos, para que Natália tivesse tranquilidade para escrever.
-Não gosto da forma que você diz – pontuou Elis - você está assumindo
que se trata de um assassino, um homem, mas vejo aquela porta se abrindo
com mais facilidade para uma mulher.
-Não excluo a possibilidade de estarmos falando de uma mulher, foi só
força de expressão – justificou-se o detetive.
-Sim, claro, a língua portuguesa e seus costumes machistas.
-Você levantou um ponto importante, abrir a porta para um homem
estranho não seria algo comum, mas e se estivéssemos falando de um
amante? – especulou Fred.
-Depois de todas as conversas que tivemos com o senhor Brummer, não
consigo acreditar que Natália o estivesse traindo – afirmou Elis – eles eram
felizes juntos.
-Está dizendo que em casamentos felizes não há traição? – perguntou
Fred.
-Não por parte das mulheres.
-Acho que você precisa de uma fonte de informações melhor do que
aqueles programas sensacionalistas de fofoca que passam à tarde.
-Só estou sendo realista.
Fred deu de ombros.
-Tudo bem, então, e quanto a Átila Fernandes? – perguntou o detetive.
-Ele era solteiro, uma mulher poderia tê-lo seduzido e o convencido a
levá-la para casa.
-Sim. Segundo os vizinhos, ele abusava da fama para cada dia levar
uma mulher diferente para casa, ele foi descrito como um mulherengo. Mas,
de toda forma, não há testemunhas que possam dizer qualquer coisa a
respeito da noite em que ele morreu. Estivemos nos bares que ele costumava
frequentar e não conseguimos nada. O prédio tampouco tinha câmeras. A
pessoa por trás dos crimes tem analisado minuciosamente cada detalhe da
vida das vítimas. Ele, ou ela...
-Obrigada – Elis sorriu.
-... sabia sobre a ausência de câmeras no prédio de Átila, e que, ao
entrar pela garagem, não precisaria passar pelo porteiro. Sabia também que os
vizinhos de Natália Brummer eram pessoas reclusas, que pouco observavam
a vida da escritora, e que ela estaria sozinha naqueles dias – concluiu Fred.
-O que chama atenção é que tais observações não podem ser feitas de
maneira leviana, em poucos dias. Quem planejou fazer isso não teve tempo
de iniciar outra análise tão complexa no curto intervalo de tempo entre os
crimes – observou Elis.
-Você tem razão. Estamos falando de um plano de longa data. Nascido
de uma observação meticulosa.
-Senhor – disse um jovem de óculos que entrou na sala de forma
abrupta – acho que encontramos algo.
-Detetives, este é o Flávio da informática, o garoto é um gênio. Não se
deixem enganar pelas espinhas. O que você encontrou, rapaz?
-Vocês se importam de me acompanhar até a informática?
A sala era uma confusão de baias. Cada uma delas ocupada por um
jovem escondido atrás de um par de óculos, como se aquele fosse um pré-
requisito para o cargo e a cara de virgem garantisse um bônus no salário.
-Vocês conhecem o site meuidolo.com? – perguntou Flávio, sentado
diante de sua máquina.
-Já ouvi falar – respondeu Elis.
-Trata-se de uma ideia simples e muito rentável, as celebridades
recebem uma fortuna para falar diretamente com os fãs, que pagam uma
quantia mensal para ter acesso aos ídolos. Estou falando de chats, conversas
privadas, palestras e videoconferências.
-Vá direto ao ponto, garoto – pediu Fred.
-Eu descobri a senha de Átila Fernandes no bloco de notas de seu
celular, com ela, consegui logar em sua conta e verificar as conversas. O que
encontrei foi um fã bastante irritado, com um perfil onde as informações
pessoais estão completamente bloqueadas, exceto pelo nickname, onde um
nome que já vimos antes se repete. O mesmo que atormentava Natália
Brummer, Baltazar.
***
Capítulo 8
“... já são três mortos ao longo de pouco mais de vinte dias – dizia o
âncora de cabelos grisalhos – e a polícia segue sem apresentar suspeitos.”
Sua parceira tomou a palavra, enquanto o jogo treinado das câmeras
focou no rosto sério da bela jornalista.
“A mente doentia por trás destes crimes, que escolhe como vítimas
apenas escritores de livros policiais, segue aterrorizando e alcançando
notoriedade, o que aumenta a pressão sobre o departamento de polícia...”
***
Capítulo 10
-Acho que já chega disso – falou Fred, puxando Elis para fora da sala –
vamos embora, isso é perda de tempo.
-Espere, Fred, ainda não acabou.
-Você não consegue enxergar o jogo de cartas marcadas? Isso aí não
vai dar em nada.
-Se nós desistirmos, aquele cara vai sair por cima.
-O problema é que ele tinha razão, o maldito Romero tinha razão, esta
era uma batalha perdida desde o princípio, e por pior que seja admitir, o tal
Ézio também tem razão. Nós não temos nada, estamos nos agarrando ao
vento, é isso o que estamos fazendo.
Fred caminhou a esmo pelo corredor, os sapatos se arrastando pelo
chão acarpetado. Os rostos emoldurados nos quadros nas paredes, de juízes e
advogados que atuavam no prédio, pareciam zombar dele. A vontade do
detetive era de esmurrar cada um deles, arrancando os sorrisos aquarelados
daqueles rostos imortalizados em sua burguesia indiferente.
-Fred... – Elis não sabia o que dizer.
-Eu estou bem, vamos sair daqui. Tem uma coisa sobre a qual quero
falar com você.
Eles se sentaram em um restaurante do outro lado da rua, Elis pediu
uma limonada suíça, enquanto Fred apenas a observava beber.
Às três horas da tarde, o sol era apenas um fantasma grande e gordo,
que mal cumpria seu papel de iluminar, quanto mais de produzir calor. A
tarde fria tinha transformado a rua do bairro de classe alta em um desfile de
elegantes trajes de inverno. As botas caras dos mais variados tipos casavam
com sobretudos, casacos e cachecóis de alta costura.
-Eu vou sair de casa – anunciou Fred, sem preâmbulos. Seu olhar
perscrutador analisando a reação da parceira.
-Fred... se isso tem a ver conosco, eu...
-Não posso dizer que não tenha, como também não posso creditar esta
decisão apenas a seus belos olhos castanhos – ele tentou sorrir.
-Fred, ainda há tempo para você e Sandra. Ainda há formas de vocês
dois colocarem as coisas no lugar.
-Talvez haja, talvez não. Tudo o que sei é que preciso de mais tempo
para me concentrar neste caso. Preciso me entregar de corpo e alma a essa
investigação e não posso fazer isso morando naquela casa e sendo
assombrado por fantasmas do passado e do presente – ele precisou renovar o
fôlego antes de dizer o que ainda precisava - assim como não posso voltar pra
lá todas as noites, depois de passar o dia inteiro ao seu lado, fantasiando
sobre como seria...
-Fred, não, por favor.
Elis respirou fundo, sua mão deslizou sobre a mesa e encontrou os
dedos calejados do detetive.
-Nós precisamos de tempo, este não é o momento para pensarmos
nisso. Precisamos vencer este desgraçado. Precisamos pegá-lo, e isso vem
antes de tudo.
-Eu acho que você tem razão.
-Como sempre – sorriu ela.
-É. Como sempre.
Capítulo 11
20 anos atrás
-Vocês podem ter ganhado no futebol, mas agora vão tomar uma surra
que jamais vão esquecer – disse o garoto do bairro vizinho. Atrás dele, mais
cinco crianças. Todas vestidas com o uniforme do time, cobertos do barro
que tinha se acumulado no campinho devido às chuvas constantes.
-E então, Luís? Você é muito bom em falar merda dentro do campo,
mas e agora que está com a patinha machucada e não pode correr? Vai fazer
o quê? – perguntou o garoto que claramente liderava os demais. Ele era
grande e forte, estava bem acima do peso e tinha uma expressão cruel.
Luís seguia apoiado nos ombros de Caneta, sua perna estava latejando
após uma pancada durante o jogo. Ele sussurrou para o amigo:
-Vai embora, pode deixar esses idiotas comigo. Sou eu que eles
querem.
Caneta sorriu.
-Você acha mesmo que eu vou te deixar aqui sozinho com esses
imbecis?
-Que foi que você disse aí, loirinho? – gritou o líder do time vizinho –
Parece que a Xuxa tem algo a dizer, e vai ser a última coisa que vai falar com
todos os dentes na boca.
O beco entre o açougue de seu Alcides e a casa de dona Marta era
estreito, e estava cheio de poças imundas, onde sacos de lixo rasgados pelos
cães vadios do bairro vomitavam seus restos podres pelo chão. Os garotos
não estavam cercados, mas com a perna dolorida, Luís não iria muito longe.
-Deixe que eu resolvo isso – falou Caneta, desvencilhando-se do amigo.
-Não! Espere! – pediu Luís, antevendo um massacre.
“No que você está pensando? Negociar com eles? Figurinhas e
chocolates em troca de não levarmos uma surra? Talvez ele tivesse algum
dinheiro no bolso, ele sempre tinha.” – pensou Luís ao ver a expressão
confiante no rosto do amigo, que se lançava ao perigo de peito aberto.
-Você é bom em ameaçar – começou Caneta, apontando para o líder
dos inimigos – mas aposto que nunca fez alguém sangrar de verdade.
Enquanto o gordo pensava em uma resposta que pudesse arrancar
gargalhadas de seus seguidores, Caneta voou sobre ele.
A aproximação foi tão rápida, que antes do garoto entender o que
estava acontecendo, seu nariz quebrado já derramava sangue em jorros. O
soco tinha sido tão veloz e certeiro que o deixou aturdido, sem saber se se
defendia dos próximos ataques ou tentava estancar o sangue que vazava pelas
narinas dilaceradas.
Os demais garotos deram um passo para trás ao ver o líquido vermelho
e pegajoso. Sua valentia repelida pela selvageria de Caneta, que socava e
socava sem parar, todos os golpes no nariz, que agora era apenas uma massa
disforme. Seu punho direito encharcado de sangue e barro. Ele já não tinha
mais a conta de quantos socos tinha dado.
O gordo caiu sentado e Caneta se pôs sobre ele, ainda socando, com
força e violência desmedidas.
Luís olhava para o amigo enquanto calafrios percorriam todo o seu
corpo. Aquele olhar... aquele olhar... ele já o tinha visto antes.
-Ei, cara, acho que já chega – falou um dos garotos, ele tinha os olhos
vítreos, amedrontados, as pernas trêmulas.
-É, cara, desculpa, por favor, deixa a gente levar ele embora – implorou
o outro.
Os outros três já tinham fugido, desaparecendo na curva do beco.
-Desculpar vocês? – Caneta se levantou e encarou os dois. As mãos
pingando sangue e barro – O que eu quero saber é quem será o próximo.
Ele bateu o pé no chão e os dois correram imediatamente. Voltou-se
então para o gordo.
Luís percebeu que o amigo continuaria a espancar o garoto e gritou
desesperado.
-Pedro! Já chega! Ele já teve o que merecia. Vamos embora!
Quando Pedro se virou para ele, com o rosto respingado de sangue e
munido daquele mesmo olhar insano, Luís sentiu as pernas bambearem sob
seu peso. Precisou apoiar-se na parede.
Pedro caminhou de volta para o amigo permitindo que o gordo se
arrastasse para fora do beco, tateando às cegas. Quando apoiou o peso de
Luís novamente sobre seus ombros, ele era nada mais que o velho Caneta,
com a mesma expressão serena que sempre teve.
***
***
Bernardo morava sozinho há quatro anos. Seus pais eram pessoas
tranquilas e fáceis de lidar, mas o rapaz precisava de espaço. Suas tralhas
eletrônicas viviam espalhadas pela casa e, embora a mãe não fizesse objeção
alguma, ele sentia que era um estorvo maior do que os velhos mereciam
naquela altura de suas vidas. Além do mais, embora seus pais fossem
completamente liberais, ficava cada vez mais estranho levar mulheres para
casa que não representavam nada além de sexo e, no dia seguinte, vê-las
sentadas à mesa do café da manhã, conversando alegremente com seus pais.
Sim, aquele fato fora determinante. Precisava mesmo se mudar.
Em seu novo apartamento, um lugar agradável no centro da cidade,
perto de seu trabalho e de tudo mais o que ele precisava para sobreviver. E
“tudo mais” queria dizer fast food aberto 24 horas, Bernardo era realmente
feliz. Mesmo após quatro anos morando ali, ainda não tinha se acostumado
com a liberdade que tinha.
Sentado de frente para seu PC, ele mal pôde ouvir o telefone tocar na
sala. Estava nu, o membro duro aninhando em uma das mãos, enquanto a
outra fazia o mouse dançar pela tela, fazendo imagens seguirem-se às outras.
Bernardo masturbava-se com volúpia e o ring-ring insistente do
telefone era apenas um estorvo que sua mente tentava ignorar.
Quando o toque cessou, ele já estava quase lá, atingindo o máximo do
clímax, prestes a gozar, mas foi então que seu celular começou a vibrar sobre
a mesa, roubando sua atenção.
-Mas que merda! – exclamou ele. A foto no visor era de Luís olhando
para ele de forma acusadora.
Ele apertou a tecla virtual vermelha, desligando a ligação. Sua
concentração retornou para a tela do computador.
Das caixas de som do PC não saía nenhum áudio. Os gemidos
exaltados tão comuns aos filmes pornôs não pairavam pela sala. Na tela, ao
invés de corpos nus envolvendo-se em cenas tórridas de sexo, o que ele via
eram pessoas mortas.
***
***
Fred dirigia para casa completamente absorto em pensamentos. Estava
prestes a despedaçar um coração já calejado por tantas batalhas perdidas.
Seu pé mal pressionava o acelerador. Dirigia muito abaixo do limite de
velocidade, como se, inconscientemente, desejasse atrasar aquele momento.
Ao redor de seu antigo Civic prateado, o sufocante e cinzento centro da
cidade tornava-se bairros verdes e arejados, enquanto o sol brincava de se
esconder entre os telhados das casas, despedindo-se.
Quando ele estacionou na rua, sem usar a garagem de casa, o
pensamento: “para facilitar a fuga” foi inevitável, e ele poderia até mesmo ter
rido, se a tragédia que sua vida se tornou assim lhe permitisse.
A passagem rápida em um bar, para algumas bebidas engolidas às
pressas, não tinha sido o suficiente para blindá-lo com a coragem necessária,
então ele seguiu para a porta de casa com apenas meia vontade, meia certeza
e meia confiança de que poderia encontrar as palavras certas, se é que estas
existiam em algum lugar.
Dali a alguns dias, quando fosse se lembrar da cena que protagonizara
ao entrar em casa, tudo se resumiria a alguns flashes.
Suas primeiras palavras foram doces, o básico e bom clichê, aceito
internacionalmente como protocolo para situações como aquela: “a culpa é
minha, o problema é comigo”.
Já dirigindo em direção ao seu antigo apartamento de solteiro, o filme,
que era apenas um trailer, um rápido teaser, seguia se desenrolando diante de
seus olhos.
Sandra debruçada sobre seu ombro. O cheiro de seu cabelo, o mesmo
de sempre, desde os tempos de namoro, boas lembranças. As lágrimas da
esposa ensopando seu sobretudo. As promessas meio cheias, meio vazias,
preenchendo o silêncio, sobrepostas aos soluços. Toda uma vida
redesenhando-se em novos contornos. Precisou se esforçar muito para que a
tristeza daquele momento não o conduzisse para longe de suas convicções.
Sinais vermelhos e verdes. A lua subindo no céu. As estrelas surgindo
como que por mágica. O mundo fora do Civic era apenas indiferença, um
bonito pano de fundo para as lembranças. A lapela do sobretudo ainda
molhada pelas lágrimas de Sandra o alertava: foi real.
Era, enfim, hora de seguir em frente, concentrar-se. Fazer o seu
trabalho.
Ele dirigiu para o apartamento dos tempos de solteiro, um pequeno
quarto e sala, que insistiu em manter mesmo quando os pais de Sandra
presentearam o casal com a ampla casa em que viviam. O prédio ficava em
um bairro tranquilo e próximo a uma livraria que Fred vez ou outra
frequentara. Aquela seria sua primeira parada. A segunda seria num bar,
precisava fazer um bom estoque para sua antiga geladeira. Imaginou se a
companheira dos velhos tempos ainda funcionava.
***
Quando o sinete soou pela última vez naquela noite, quase no horário
de fechar, Bernardo e Luís se viraram para fitar a pessoa que passou pela
porta. O homem usava um sobretudo amassado. A barba estava por fazer. Os
olhos vermelhos indicavam que ele esteve chorando, ou fumando um
baseado.
Bernardo virou-se de costas para o recém-chegado, de frente para Luís,
juntou o dedão e o indicador, levou-os à boca, puxou o ar e soltou.
-Para com isso cara, respeita os meus clientes – pediu o livreiro,
tentando conter o sorriso mediante a mímica muito bem-feita pelo amigo,
representando uma profunda tragada num baseado.
-Boa noite – disse o homem, que, apesar do semblante derrotado,
emitiu um sorriso bonito e sincero, iluminando seu rosto sem que ele mesmo
percebesse.
-Boa noite – respondeu Luís, largando o jornal sobre a mesa – em que
posso ajudá-lo?
-Eu gostaria de ver seus romances policias. Eles ficam reunidos?
-Sim, é por ali – o livreiro indicou uma ampla prateleira no fundo da
loja e depois voltou até Bernardo.
-Cadê a gatinha da Bianca? – perguntou Bernardo com esperança no
olhar.
-Eu dei uns dias folga pra ela. Aquela menina está precisando pensar
um pouco na vida.
-Lui, se eu estivesse no seu lugar...
-Eu sei, eu sei, você já tinha traçado a Bianca, mesmo ela sendo menor
de idade, mesmo os pais dela tendo toda a confiança do mundo em você,
mesmo você sendo quinze anos mais velho que a menina. Eu já sei disso
tudo, mas, pra sorte da garota, eu não sou você.
-Luís, aos dezesseis uma garota já sabe o que quer.
-Não, ela não sabe. Essa é a época das paixões platônicas, movidas
pelos hormônios que estão em ebulição. Nada além disso.
-Luís, eu preciso de te dizer uma coisa, cara.
O livreiro já esperava uma piada que colocasse em xeque sua
masculinidade. Não estava preparado para o que iria ouvir. Tampouco para a
seriedade com a qual Bernardo pronunciou aquelas palavras.
-Você não pode ficar esperando a Bárbara para sempre.
-Como é que é, negão? Você está ficando louco?
-E você acha que eu sou cego? Não sabe que os negros enxergam
melhor do que os brancos? É verdade, nós tivemos que evoluir para conseguir
enxergar melhor dentro dos porões dos navios negreiros.
-Puta que pariu, Bernardo, essa foi a pior até hoje.
-Não fuja do assunto. Você ama nossa Barbie desde sei lá quando,
mas já tá na hora de você entender que já era. Ela e o Pedro se amam. Além
do mais, eles são os seus melhores amigos, depois de mim, é claro.
-Para de falar besteira, Bernardo.
-Você sabe que eu estou certo. Estou sempre certo. Vou te ensinar uma
coisa, preste muita atenção.
Bernardo se levantou e se colocou ao lado do amigo, sua mão mirava
algum horizonte distante. Ele esperou que Luís, a contragosto, dirigisse seu
olhar para o mesmo lugar imaginário.
-Você precisa ver o mundo como um vasto oceano – Bernardo
pincelava o ar com as mãos – com milhões de cardumes, contendo bilhões de
peixes, que passam todos os dias se oferecendo pra você fisgá-los, como em
“Vinte Mil Léguas Submarinas”. Você só tem que usar essa sua varinha aí –
apontou para as pernas de Luís – e pescar um peixinho, depois outro e outro,
até ganhar prática. Acho sinceramente que devia começar com a Bianca, e
vamos ser bem sinceros, ela é muito gostosa, e você pode nunca mais ter a
chance de pescar um pirarucu deste tamanho novamente com uma vara tão
pequena.
Luís suspirou, tentando não cair na gargalhada. O amigo se superava a
cada dia. Não conhecia absolutamente ninguém como ele.
-Bernardo, nem sei por onde começar minha análise sobre seus
absurdos, mas acho que um bom ponto seria te dizer que se o mundo é um
oceano, ele não teria um pirarucu, pois este é um peixe de água doce.
-Chato e entediante como sempre – protestou Bernardo.
-Em segundo lugar, usar o bom nome de Júlio Verne para suas besteiras
é uma blasfêmia imperdoável.
-Estamos em uma livraria, então...
-Cala a boca, Bernardo. Por favor. E por falar em calar a boca, eu te
liguei ontem e você não me atendeu.
-Eu estava ocupado. Tinha uma garota lá em casa.
-Não sei porquê, mas quando você diz, tinha uma garota lá em casa,
tudo o que escuto é: masturbação com pornô gay de baixa qualidade.
Bernardo apontou o dedo do meio para o amigo, que voltou sua atenção
para o jornal que estava sobre a mesa. Após alguns minutos lendo a
reportagem em destaque, ele falou:
-Acho que a polícia jamais vai pegar esse cara. Ele é esperto demais,
não deixa nada para trás – Bernardo batia no jornal enquanto falava. A
cobertura sobre o caso do assassino de escritores ainda não desbotara, e
ganhava vida nova a cada pormenor que era descoberto ou inventado pela
mídia.
-Em algum momento, ele acaba dando um mole e sendo pego.
Ninguém consegue ser perfeito sempre – pontuou Luís.
-Não sei não. Eu fico pensando no que é que acontece dentro da cabeça
de uma pessoa capaz movê-la a tirar uma vida. Eu tento me colocar no lugar e
não consigo, ainda mais assim – apontou novamente para o jornal - de
maneira tão doentia. Matar escritores da forma que eles matam seus
personagens.
O homem se virou para eles. Observava a conversa com interesse mal
disfarçado.
-Posso ajudá-lo em algo mais, amigo? – perguntou Luís.
-Sim. Como você costuma agrupar seus romances policiais? Confesso
que fiquei meio perdido.
Luís se aproximou sorrindo cordialmente.
-Nós os ordenamos pelo sobrenome do autor. Começando bem ali –
apontou – da esquerda para a direita.
-Ah, sim. Ótimo. Você se importaria de me ajudar a encontrar todos os
romances policiais brasileiros.
Luís concordou, mas já pensava que aquele homem iria olhar, olhar,
olhar mais um pouco e sair sem levar livro algum. Vez ou outra aparecia um
idiota fazendo uso dessa prática irritante, e depois ia embora sem devolver os
livros ao lugar.
-Eu costumava comprar aqui antigamente. Sempre fui muito bem
atendido por um casal. Você comprou a loja deles?
-São os meus pais. Eles voltaram para o interior e eu fiquei a cargo da
livraria.
-Entendo.
Luís ajudou o homem a montar uma pilha com quase vinte livros.
-Depois da notoriedade enorme desse caso do assassino dos escritores,
tenho que dizer que qualquer um que entre aqui para comprar todos esses
romances policiais brasileiros é no mínimo suspeito.
-Ou é alguém que está tentando resolver o caso – interferiu Bernardo.
-Vocês dois produziram um raciocínio interessante – falou o homem –
mas neste caso, quem acertou foi você – apontou para Bernardo – eu sou o
detetive Frederico Borzagli, um dos responsáveis pelo caso.
Fred sacou o distintivo e o mostrou aos rapazes.
-Eu gostaria que vocês ficassem com o meu cartão, para o caso de mais
alguém suspeito aparecer, com interesse anormal em romances brasileiros. E,
a propósito, vou comprar todos estes.
Bernardo e Luís se entreolharam. A surpresa combinada dos dois era
tão cômica que Fred precisou se segurar para não rir.
***
Capítulo 13
Quando Elis entrou na sala de Fred, o sol ainda não tinha nascido. Com
o pouco movimento da madrugada, a delegacia estava mergulhada em ares
soturnos e em quietude plena. A interrupção abrupta da noite de sono estava
estampada na face da moça em forma de olheiras arroxeadas e olhos
apertados.
-Eu trouxe o café que você pediu – anunciou ela.
-E onde está?
-Eu precisei beber para me manter acordada, já que você resolveu me
tirar da cama às três da manhã – ela tentou sorrir, depois tirou a mão de trás
das costas revelando o copo de plástico.
-O mais forte que encontrou? – perguntou ele.
-Como você pediu, Fred. Sobre o que você disse ao telefone – começou
ela – faz sentido, mas...
-Eu sei. É simples demais, mas não podemos ignorar. Veja bem:
Fred virou a tela do notebook para a parceira exibindo uma lista com os
principais nomes de romancistas brasileiros que escreviam literatura policial,
organizados pelo sobrenome do autor.
Simone Abalos
Tony Bellotto
Natália Brummer*
Naomi Campos
Átila Fernandes*
Estela Gomes
Jânio Gonzaga
Cléo Junqueira*
Fernanda Leal
Tito Machado
Camila Marques
Raphael Montes
Daniele Morais
Baby Novaes
Nuno Rebello
Tatiana Teixeira
Raul Zuckler
-OK, temos muitos nomes aí, sem contar os que podem ter passado
despercebidos em sua busca – observou Elis.
-Estou há três horas seguidas na frente desta tela, pesquisando como um
louco, mas é possível que você tenha razão. De qualquer forma, vamos em
frente. Agora, levando em consideração a zona de ação do assassino, vou
excluir os autores que moram em outras cidades. Com isso temos:
Natália Brummer*
Átila Fernandes*
Cléo Junqueira*
Tito Machado
Daniele Morais
Baby Novaes
Tatiana Teixeira
Raul Zuckler
Capítulo 14
Enquanto Elis dirigia de volta para a delegacia, Fred seguia com o
pensamento distante, o olhar mirando o horizonte, entrecortado por prédios,
postes, fios, gente, vida e movimento, mas sem nada fitar, sem nada eleger
como ponto de foco.
-Um real por seu pensamento?
Ele ficou em silêncio.
-Então, um dólar por seu pensamento?
Ele se manteve distante.
-Estou quase me convencendo de que não sou boa o suficiente para
você se abrir comigo.
-Não é isso, é que são tantas coisas que não sei por onde começar.
O carro parou em um sinal vermelho. Em meio às muitas pessoas que
atravessavam a rua, Fred dirigiu seu olhar para a moça que auxiliava um
deficiente visual na travessia.
-Acho que posso começar por aquele desgraçado do Romero. Como eu
gostaria de ter acertado um soco naqueles dentes perfeitos, arrancando pelo
menos uns três.
Elis se permitiu um sorriso.
-Você sabe que isso só nos causaria problemas.
-Mas eu estaria me sentindo bem melhor – ele também sorriu, mas
somente até se lembrar de Sandra.
-Ainda não acredito que saí de casa.
-Você deve estar se sentindo péssimo.
-Estou. Todas as vezes que me lembro das lágrimas rolando soltas pela
face de Sandra, do pedido para que eu ficasse...
Elis se manteve em silêncio.
-Você sabe como é ter a plena certeza de que algo irá durar para
sempre, e então, sem avisos, aquilo é arrancado de você? Como se o chão
simplesmente desaparecesse debaixo dos seus pés. E você percebe que sua
vida e tudo o que planejou não existe mais, ou já não faz sentido.
-Eu não posso nem imaginar – respondeu Elis, guinando o carro para
uma curva à esquerda.
O telefone de Fred vibrou no bolso, número desconhecido.
-Detetive Borzagli falando.
-Detetive, aqui é o Luís, da livraria.
-Olá, Luís, em que posso ajudá-lo?
-Eu acho que... talvez – o rapaz soava reticente – quero dizer, eu
acredito que... possivelmente...
-Fale logo, Luís.
-Eu conheço alguém que... posso considerar suspeito dos assassinatos
dos escritores.
-Você quer vir até a delegacia e falar sobre isso?
-Acho que sim.
-Ok. Estarei esperando por você.
A linha caiu abruptamente, sem despedidas. Fred ficou encarando o
telefone.
-Quem era? Algo importante?
-Era um rapaz que conheci. O dono da livraria que fica perto do meu
apartamento. Nós brincamos sobre ele identificar pessoas suspeitas através
dos livros que elas compram e, menos de vinte e quatro horas depois, ele já
tem alguém em mente.
-Então acho que o Maciel devia despedir nós dois e contratar esse
rapaz.
Fred sorriu, mas pelo tom de voz do outro lado da linha, ele só podia
supor que aquilo estava muito longe de ser apenas uma brincadeira.
***
Quando Fred viu o rapaz passar pela porta de sua sala, notou que ele
caminhava encolhido, o olhar era assustadiço, apenas um fantasma em
comparação com o jovem vibrante que conhecera anteriormente.
-Luís, boa tarde. Esta é minha parceira, a detetive Elisabete.
-Olá – disse Elis estendendo a mão para receber um aperto que poderia
ter sido mais firme, vindo de alguém que era o retrato de uma geração
saudável, germinada dentro das academias.
-Olá – respondeu o rapaz.
-Sente-se, fique à vontade – falou Fred – aceita um copo d’água?
-Não, estou bem, obrigado – embora não parecesse.
-Você disse que tinha algo para mim.
-Sim, é só que... é meio difícil e complicado.
-Vou deixar que você me explique.
Luís olhou ao redor, claramente tentando encontrar o fio daquele
embolado novelo.
-Leve o tempo que precisar – Fred não sabia o que pensar de toda
aquela hesitação.
-Detetive, a pessoa da qual suspeito é um dos meus melhores amigos.
Eu o conheço desde a infância.
-E o que o faz suspeitar deste amigo?
-Pois bem, acho que é melhor começar pelo princípio.
-Essa é uma excelente ideia – sorriu Fred, enquanto Elis se mantinha
em silêncio, observando atenta.
-Eu tenho um grupo de amigos de longa data, todos são apaixonados
por literatura. Todas as terças nós nos reunimos para debater os livros que
lemos, é uma tradição que mantemos viva há muitos anos. Claro que durante
essas reuniões tem sido comum falarmos sobre os crimes que você está
investigando, tendo em vista que as vítimas são escritores e que por toda a
cidade não se fala em outra coisa.
O rapaz parou para respirar.
-Sobre aquela água, a proposta ainda está de pé?
-Claro que sim – respondeu Fred, e serviu Luís com água da jarra que
estava sobre um gabinete no canto da sala.
-Obrigado.
O rapaz reservou para si mais alguns segundos para organizar os
pensamentos. A garganta molhada não aparentava ter facilitado a emissão das
palavras.
-Enquanto falávamos sobre os crimes, um dos meus amigos, o Pedro,
afirmou com todas as letras que nunca tinha lido os livros dos autores mortos,
mas no outro dia, quando fomos até a casa dele...
-Fomos?
-Sim, a casa dele é o ponto de encontro, de onde nosso grupo segue
para a academia.
-Sim, prossiga.
-A sala da casa do Pedro tem diversas estantes repletas de livros. Os
pais dele, que se mudaram para o litoral deixando a casa para o filho, são
colecionadores aficionados, e nós temos o costume de passar o tempo
correndo os olhos pelos exemplares raros que eles possuem, enquanto o
Pedro toma café ou termina de se arrumar.
Fred anuiu. Estava cada vez mais interessado.
-Nós encontramos os livros dos três autores mortos, escondidos atrás de
outras obras. Os trechos utilizados pelo assassino estavam grifados em
vermelho, nos três livros.
-O do terceiro livro também? – perguntou Elis, que falava pela primeira
vez – Esses dados não foram a público ainda – exclamou ela.
-Fique calma, Elis. Eu andei pesquisando na internet. Alguém andou
vazando algumas fotos. Provavelmente um pobre diabo que queria ganhar
uns tostões a mais – contemporizou Fred.
-Ainda assim...
-Vamos deixar o rapaz terminar – propôs Fred.
Munido de toda a coragem dos covardes, Luís continuou.
-Bem, nós obviamente ficamos nervosos com aquilo, mas no fim
pensamos que poderia ser apenas uma brincadeira. Um dos nossos amigos, o
Bernardo, você o conheceu na livraria ontem, ele tem o costume de fazer
piadas idiotas. Essa estaria longe de ser a primeira vez.
-Então, se você acha que é apenas uma piada, por que veio até nós?
Creio que a possibilidade de alguém que você conhece desde a infância ser
um assassino é bem pequena – as palavras de Fred serviam apenas para
instigar uma justificava.
-Eu vim por dois motivos. O primeiro é que, segundo foi noticiado, o
assassino vem utilizando uma droga que é vendida apenas para hospitais, e o
Pedro é um médico cirurgião.
Fred e Elis se entreolharam.
-E o que mais? – perguntou Elis, ligeiramente ansiosa.
Luís respirou fundo mais uma vez, tragando o ar como se fosse um
artigo raro e caríssimo.
-Como eu disse, conheço o Pedro desde a infância, e às vezes, naquela
época, era como que existissem dois dele. Um que era sempre amável, meu
melhor amigo, com quem eu podia sempre contar. O outro era alguém que
me assustava muito, mais do que qualquer filme de terror que eu tinha
costume de assistir escondido dos meus pais.
Ele pediu um novo copo de água, mas o efeito foi praticamente nulo. A
garganta seguia ressecada. O estômago dava voltas como uma montanha
russa desgovernada.
-Houve alguns acontecimentos que naquela época eu não conseguia
entender, mas agora, juntando tudo isso, eu...
O rapaz olhava de um lado para outro, como se buscasse algo em que
se agarrar, para não ser tragado e afogado em meio às suas incertezas.
-Narre estes fatos para nós. Deixe que eu e a detetive Elis tiremos esse
peso de suas costas, lhe dizendo se há mesmo algo com que você deva se
preocupar – falou Fred de maneira calma, tentando instigar o rapaz a seguir
em frente.
-Certa vez, depois de uma partida de futebol contra os garotos da rua de
cima. Nós tínhamos nove, talvez dez anos. Eu e o Pedro fomos cercados por
garotos do outro time. Eram seis contra dois e eu tinha me machucado na
partida, mal conseguia colocar o pé no chão – Luís emitiu um sorriso triste,
como se não conseguisse se decidir se aquela era ou não uma boa lembrança
– então o Pedro, que até segundos atrás era apenas o garoto mais gentil do
mundo, investiu contra o líder deles, um garoto muito maior do que nós,
gordo e forte. Quando eu dei por mim, ele já tinha quebrado o nariz do
menino. Foram três, quatro, cinco, dez socos. As demais crianças fugiram
assustadas enquanto eu via o Pedro se colocar sobre o garoto caído e
indefeso, desferindo golpes que provocavam baques surdos e violentos.
Lembro-me de que aqueles poucos segundos pareceram uma eternidade. Não
sei dizer quanto tempo levei para conseguir gritar, pedindo para que ele
parasse antes de matar o garoto. Quando ele se virou para mim... eu...
-Luís, tudo bem – disse Fred.
-Ele era... ele era... outra pessoa. Seu rosto estava respingado de sangue
e eu podia ver que ele tinha gostado daquilo. Não foi apenas para nos
defender. Ele tinha gostado de cada segundo, de cada soco, mas o pior de
tudo foi a maneira como ele olhou para mim. Aquele olhar era tão... insano.
Tão desprovido de humanidade que eu temi ser o próximo. Enquanto ele
caminhava até mim, em questão de segundos, como num passe de mágicas, lá
estava o meu amigo de novo. Ajeitando o meu peso sobre seus ombros para
me carregar até em casa.
Luís suspirou. Sua pausa tomada pelos detetives como o fim da
narrativa.
-Luís, nós, com certeza....
-Eu ainda não terminei – disse ele – me deixem ir até o final, por favor,
agora que comecei não posso parar. Não posso deixar isso pela metade.
-Tudo bem – falou Fred, servindo mais uma rodada de água, mas dessa
vez o rapaz pareceu nem ter notado o copo cheio. Seu olhar vagueava ao
longe, desfocado. Perdido em algum lugar de vinte anos atrás.
-Naquele mesmo dia, antes da partida, o Pedro estava atrasado para o
jogo, então eu fui até sua casa para chamá-lo. Seus pais não tinham chegado
do trabalho. No outro dia eu descobri que eles tinham uma reunião e que só
chegaram à noite. O Pedro tinha o costume de cochilar depois do almoço,
quando chegava da escola, e eu pensei que ele tinha se esquecido do jogo.
Como já era um costume de nossa longa amizade, eu entrei sem bater e
resolvi acordá-lo com um susto, uma punição por quase deixar o resto do
time na mão.
Luís parou de falar abruptamente. O silêncio que preenchia a sala era
carregado de tensão.
Até mesmo os detetives, acostumados às mais bizarras histórias, tinham
se permitido submergir na atmosfera vívida daquela tensa narrativa.
-Eu subi as escadas pé por pé, tentando não fazer barulho. Queria muito
assustá-lo. Segui pelo corredor até a última porta, a do quarto do meu amigo.
Lembro de ter levado um susto quando a cortina esvoaçou com o vento e
roçou no meu pescoço. Isso me fez desistir do castigo que eu tinha preparado
para o Pedro. Depois daquele susto eu só queria acordá-lo rápido e sair de
volta para a luz do sol. Então eu estendi a mão para a maçaneta da porta e a
abri lentamente. O que surgiu diante dos meus olhos foi uma das coisas mais
terríveis que vi em toda minha vida e até hoje me provoca pesadelos.
-O Pedro estava de costas para mim, ajoelhado ao lado da cama, mexia
em algo que eu não conseguia ver dali. Eu chamei seu nome, mas ele estava
tão compenetrado que não me ouviu. Ele tinha algo nas mãos, um objeto que
brilhava refletindo a luz que entrava pela janela e impedindo que eu pudesse
ver o que era. E tinha alguma coisa no chão. A princípio me pareceu que era
tinta. Tinta vermelha. Meu primeiro pensamento era que ele estava fazendo
algum trabalho de escola do qual eu tinha me esquecido. Chamei seu nome
novamente e nada...
-Dei mais alguns passos para frente, ao redor da cama, e foi então que
eu vi...
Sem que o detetive percebesse, sua respiração tinha se tornado
ofegante. Elis compartilhava da mesma ansiedade. O corpo inclinado para
frente.
-O que eu pensava ser tinta, era sangue. Muito sangue. A coisa na qual
o Pedro mexia estava tão dilacerada, tão profundamente violada, que eu levei
muito tempo para compreender o que era. Em meu emudecido terror, pude
finalmente compreender que aquilo, cortado de fora a fora e com os órgãos
expostos, com as tripas mergulhadas em um pequeno lago de sangue, era o
pastor alemão da vizinha.
-Fiquei congelado. Não consegui me mover um só centímetro. Não
conseguia respirar. Não conseguia sequer piscar. E foi então que minha
presença foi notada. Quando ele se virou para mim, finalmente percebi que o
objeto em sua mão era uma grande faca de cozinha. Naquele momento eu tive
a clara certeza de que ele iria me matar. Tentei fechar os olhos e me encolher,
mas nem isso eu era capaz de fazer e fui obrigado, pela primeira vez, a fitar
aquele olhar sinistro. Insano, esta é a palavra certa. Aquilo era insanidade
pura, completa e absoluta. Lembro com clareza do sangue descendo pela
faca. A pele, antes alva, molhada de vermelho até bem perto dos cotovelos,
como se ele tivesse mergulhado os braços dentro das entranhas do animal,
que tinha os olhos pétreos fitando o vazio.
-E então, o que houve? – perguntou Elis.
-Eu caí para trás. Tentei me arrastar no sentido contrário enquanto o
Pedro se levantava. Ele vinha em minha direção com a faca na mão,
gotejando sangue. Acho que ele dizia que estava tudo bem, mas eu não era
capaz de registrar suas palavras, tudo o que eu pensava era que ia morrer bem
ali. Eu já podia sentir a frieza do metal entre as minhas costelas.
-“Não se assuste, Luís.” - foi a primeira frase que consegui
compreender.
-“Eu só queria ver como ele era por dentro.” – disse ele, como se
fosse a coisa mais normal do mundo.
-Depois de gaguejar como um louco, eu consegui perguntar se ele
tinha matado o cão. Ele respondeu que não. Disse que tinha encontrado ele
agonizando e que o carregou para dentro de casa para lhe dar um remédio,
mas que o cachorro morrera em seus braços, então ele disse que... ele sorriu
como a criança que era e... disse que ficou curioso, que queria saber como o
animal era por dentro, e que por isso tinha feito aquilo. Meu Deus do céu, nós
tínhamos dez anos. Que tipo de criança dessa idade é capaz de fazer algo
assim? Mas de certa forma, aquela explicação bastou para mim. Eu estava tão
assustado, tão decidido de que ia morrer, que qualquer coisa que ele dissesse
contrária a isso era o suficiente para me acalmar, e eu simplesmente aceitei.
-“Quando voltarmos do jogo vou limpar essa bagunça e enterrar o
Pop, antes que meus pais cheguem. Você me ajuda?”
-Ele perguntou aquilo com a mesma entonação que costumava me
perguntar se eu gostava mais do Rivaldo ou do Romário. Quando saímos de
sua casa, tudo aquilo ficou para trás. Eu queria simplesmente me forçar a
acreditar que nada daquilo tinha acontecido.
-Você voltou até a casa dele? – perguntou Fred.
-Como eu me machuquei na partida, acabei não voltando. No outro
dia ele nem tocou no assunto, e foi como se nada tivesse acontecido. O meu
amigo era apenas o meu amigo novamente. Uma das pessoas mais doces que
já conheci em toda minha vida. Elogiado pelos professores com suas notas
altíssimas. Convidado número um de todos os pais do bairro para as festas de
seus filhos. Com o passar dos dias eu quase me convenci de que aquilo tinha
sido apenas um pesadelo, emulado pelos filmes que eu via na madrugada.
-Mas você sabia que era verdade, que tinha mesmo acontecido –
constatou Fred.
-Sim.
Os detetives guardaram um silêncio cuja longevidade deixou o rapaz
inquieto, fazendo-o beber um novo copo d’água de um único gole. Uma gota
para um deserto.
Fred e Elis se entreolhavam. Não tinham dúvidas de que o rapaz
estava dizendo a verdade e que o tal Pedro poderia mesmo ser a pessoa que
eles procuravam.
-Luís, eu preciso te fazer uma pergunta – falou Elis, quando o estalo de
uma ideia se fez presente em sua mente.
-Sim.
-Você disse que os livros que encontrou na casa do seu amigo tinham
as passagens escolhidas pelo assassino grifadas em vermelho. Você acha que
este vermelho poderia ser sangue?
Os olhos do rapaz de arregalaram. Seus lábios perderam o que restava
da cor. Ele obviamente não tinha pensado naquilo. De tão chocado que ficou,
não foi capaz de responder.
Capítulo 15
***
Capítulo 16
-Você não foi pra casa, foi? – perguntou Elis assim que pisou na sala de
Fred, nas primeiras horas da manhã.
-Não.
-Fred, você precisa descansar, – disse ela, trazendo o café da manhã
para o parceiro - acredito que você também não comeu nada.
-Não – lacônico novamente.
-Eu trouxe café extra forte, sanduíches e uns donuts, você precisa de
algum açúcar no sangue.
-Donuts? Sério? Estamos em algum seriado americano? Porque se for,
eu quero receber o mesmo cachê do Kiefer Sutherland – respondeu Fred, com
um sorriso cansado.
-Pelo menos me diga que conseguiu cochilar aí nessa cadeira.
-Acho que sim, um pouco.
-Alguma notícia do Rogério?
-Ainda não – o detetive aprumou o corpo e estendeu a mão para a
bebida fumegante. Em seguida se lançou sobre o sanduíche de pão francês.
Alface e tomate dividiam espaço com o patê de presunto.
-Isso está muito bom – elogiou entre uma grande mordida e outra.
-Qual seu pressentimento sobre tudo isso? – quis saber Elis, ciente de
que o parceiro tinha bons instintos.
Fred limpou a boca num guardanapo e se recostou novamente na
cadeira.
-Eu não sei. Aquela coisa com os livros não parece combinar com o
perfil de um assassino tão metódico.
-Talvez ele simplesmente não esperasse que o amigo os encontrasse, ou
que teria coragem para denunciá-lo.
-Não sei. Tudo isso me parece descuidado demais para alguém que é
capaz de entrar e sair de uma cena de crime sem deixar vestígios.
-Fred, você sabe mais do que ninguém que existem dois momentos
mais propícios para um assassino serial se permitir errar. Um, quando ele é
pressionado por sua compulsão e começa agir fora de seus padrões normais,
ou dois, quando se sente imbatível, tão acima dos demais na cadeia evolutiva
que acredita que jamais será pego e, assim, começa a relaxar.
-Eu sei disso, Elis, mas não consigo deixar de pensar que este erro não
combina com o homem por trás destes crimes.
-Então você acha que os exames vão dar negativo – rebateu Elis.
-Mais uma vez, eu não sei.
-O hospital já enviou os horários e a escala de trabalho do cirurgião?
-Sim.
-E então? – a pergunta de Elis soou ansiosa.
-Ele não estava no hospital em nenhuma das datas, de nenhum dos
ataques.
-Três datas e em nenhuma delas ele estava trabalhando?
-Exato – respondeu Fred.
-Mas, isso...
-Isso ainda não prova nada.
-Fred, eu preciso te lembrar que o rapaz é um médico, e não de uma
especialidade qualquer, ele é um cirurgião com acesso aos medicamentos
utilizados pelo assassino, claro que ele ainda pode ter um álibi, mas e se não
tiver, e se os exames derem positivo?
-Então o Maciel finalmente vai ter o rosto que ele tanto esperava para
exibir frente às câmeras. E eu poderei descansar.
Quando o telefone da sala de Fred tocou, ele se lançou sobre o aparelho
como um predador atacando sua presa. A voz de Rogério do outro lado da
linha era exatamente o que ele esperava.
-Estou preparando o material para enviar, mas achei que você gostaria
de saber em primeira mão.
-Diga logo! É o sangue das vítimas?
A resposta fez o detetive arregalar os olhos.
***
Já de posse dos relatórios do departamento forense, os detetives
seguiram para o interrogatório, mas não poderiam começar até a chegada do
advogado do cirurgião.
O homem engravatado chegou à sala de interrogatórios ao mesmo
tempo em que Fred e Elis.
-Detetives, bom dia – falou Henrique, dentro de seu terno elegante, a
maleta firmemente segura nas mãos.
-Bom dia. – respondeu Fred - Vamos prosseguir imediatamente com o
interrogatório.
-Senhores, eu gostaria de pedir o adiamento deste interrogatório – o
semblante do advogado era de puro pesar.
-Isso não vai acontecer – afirmou o detetive. Elis cruzou os braços em
desagrado.
-Acontece que houve uma fatalidade. A namorada do meu cliente
morreu na noite passada, atropelada por um motorista bêbado.
Os detetives se entreolharam. Não esperavam por aquela. Fred tinha
visto a garota na noite anterior. Tão jovem e tão bela. Após discutir com o
livreiro, ela pegou um táxi e deixou o rapaz falando sozinho.
-Você tem meia hora – afirmou Fred.
-Mas detetive...
-Eu disse meia hora, e nem um minuto a mais.
***
Quando Pedro viu seu advogado surgir no vão da porta, ficou
imediatamente de pé, pelo semblante do homem, era fácil prever que ele
portava más notícias.
-Bom dia, Henrique. O que tem para mim? Descobriu alguma forma de
me tirar dessa? Os resultados das tais análises, como foram?
-Eu ainda não sei, os detetives são espertos, vão usar isso na hora certa,
mas antes de falar sobre o caso, eu preciso... eu preciso...
-Henrique, que foi que houve?
-Acho melhor você se sentar – falou o advogado, sem conseguir encarar
seu cliente.
-Henrique! O que houve?
-É a Bárbara.
-O que tem ela?
-Houve um acidente de carro.
Pedro se sentou lentamente. Uma sensação terrível se apoderando dele.
-Ela está bem? Pra qual hospital foi levada?
-Eu sinto muito, Pedro, eu realmente sinto muito, mas...
-Não me diga que... – a voz do rapaz desapareceu na garganta. Sentia-
se sufocar. Um vazio enorme o devorava por dentro. As paredes já apertadas
da sala pareciam ir ao seu encontro, ameaçando esmagá-lo.
-Não, não. Eu a vi ontem, ela estava bem.
-Ela se foi. Eu sinto muito, mas ela não resistiu – o advogado tinha
lágrimas nos olhos – eu lhe ofereci uma carona, mas ela não aceitou. Disse
que queria caminhar, que queria pensar sobre tudo isso. Talvez, se eu tivesse
insistido um pouco mais, ela pudesse ter chegado em casa em segurança.
A primeira lágrima desceu acompanhada apenas do silêncio, traçando
morosamente no rosto do rapaz uma linha trêmula rumo ao queixo. As
demais irromperam desenfreadas, furiosas, em meio a um número sem fim de
soluços.
-Pegaram o desgraçado que fez isso?
-Infelizmente, não. Ele escapou. As testemunhas afirmaram que ela foi
atropelada por um Audi prata, mas ninguém conseguiu anotar a placa. O
motorista fugiu sem prestar auxílio. Pela maneira enlouquecida com que
dirigia, provavelmente estava embriagado.
-Então é isso? Ela morreu por nada? O culpado não será encontrado?
O advogado se manteve recluso num silencioso pesar.
Inúmeros eram os arrependimentos que passaram pela mente de Pedro.
As traições, mentiras e segredos escondidos, pesando agora como uma
âncora, que o arrastava para o fundo de um poço escuro e desolado.
Ele ficou de pé e se pôs a dar voltas pela sala. Agachou em um canto
fitando o vazio. Levantou-se novamente e voltou a caminhar. Parou
novamente, bateu a testa contra a parede e, após vários socos contra o
concreto, viu o sangue fluir entre seus dedos. Somente naquele momento,
vendo o líquido escarlate escorrer, ele parou.
-Pedro, eu preciso que você seja forte – pediu Henrique, ligeiramente
abalado pela reação de seu cliente, cujos olhos vítreos e frios beiravam a
insanidade – me desculpe não permitir que você tenha o luto adequado para
com a mulher que você amava, mas precisamos falar sobre o caso. Eu preciso
que você se sente nessa cadeira e se mantenha concentrado, pois, em alguns
minutos, os detetives entrarão por aquela porta e irão pressioná-lo com tudo o
que tiverem.
O cirurgião se virou para o advogado.
-Você acha que pode fazer isso? Acha que pode se concentrar?
Pedro anuiu e voltou para a cadeira, os olhos ainda lacrimejavam
quando ele aceitou o lenço do advogado para deter o sangramento dos dedos
arrastados contra a parede.
-Pedro, você me disse que nas datas dos crimes não estava trabalhando.
Disse que estava em casa. Eu preciso de testemunhas que confirmem isso.
-Não há nenhuma – a resposta foi fria.
-Precisa haver.
-Não há! Eu já disse que não há! Por que a minha palavra não basta
para você? – gritou o rapaz, que se levantou e bateu as mãos espalmadas
sobre a mesa.
-Pedro, eu sou o seu advogado. Sou a única pessoa que pode ajudá-lo,
mas preciso saber a verdade antes que os policiais passem por aquela porta.
Você matou aquelas pessoas?
***
Vinte minutos depois
Os detetives encontraram advogado e cliente sentados lado a lado. Fred
e Elis notaram que o cirurgião parecia outra pessoa. Completamente
desolado, ele apenas fitava o vazio, indiferente à chegada dos dois.
-Antes de tudo, nós gostaríamos de expressar nosso pesar pela sua
perda – disse Fred. Elis inclinou levemente a cabeça em concordância. O
cirurgião não respondeu – mas devemos dizer que isso não nos impedirá de
fazermos nosso trabalho.
-Digam logo o que têm a dizer, detetives – pediu Henrique, enquanto
Fred e Elis tomavam seus assentos.
Fred começou indo direto ao ponto, perguntando ao cirurgião onde ele
estava nas datas e hora dos crimes.
O rapaz afirmou sem melindres que estava em casa, sozinho. Sem
ninguém que pudesse testemunhar a seu favor.
-E quanto aos livros encontrados na estante de sua casa, o que pode nos
dizer sobre eles, doutor?
-Eu nunca os vi – respondeu Pedro.
-Fred, eu acredito que, nesse caso, podemos seguir para uma pergunta
mais aguda – disse Elis – diga-me, doutor Pedro, por que você matou Natália
Brummer?
-Eu não matei ninguém – a resposta veio em tom moderado.
-Por que você matou Átila Fernandes e Cléo Junqueira?
-Eu já disse que não matei ninguém! – ele elevou seu tom de voz.
-Pedro, acalme-se, eles estão apenas tentando te tirar do sério. Se
tivessem alguma prova conclusiva, já a teriam esfregado em nossas caras.
Elis sorriu para o advogado. Se havia uma espécie de pessoa que ela
odiava, eram advogados que defendiam assassinos.
Ela jogou sobre a mesa os resultados das análises sanguíneas.
-Você sabe o que é isso, Doutor Pedro? – ela falou o nome do médico
pontuando cada sílaba – São as provas que precisamos para colocá-lo na
cadeia pelo resto de sua vidinha medíocre!
-O sangue encontrado nos livros pertence a cada uma das vítimas –
completou Fred.
-Isso não prova absolutamente nada – respondeu Henrique tentando
disfarçar o quanto ficara abalado – eles podem ter sido colocados na estante
do meu cliente, com o propósito de incriminá-lo.
-Você tem certeza? Se isso é verdade, talvez você possa explicar o
resultado dessa outra análise – falou Elis, colocando novos papéis sobre a
mesa.
O advogado pegou avidamente os relatórios. Após ler as conclusões,
não pôde conter sua decepção com Pedro, que momentos atrás tinha jurado
sua inocência.
-Como vocês podem ver, as digitais encontradas nos três livros
pertencem a você, doutor Pedro, que disse mais de uma vez que jamais tinha
visto aqueles livros. Acho são provas suficientes para que qualquer júri o
coloque atrás das grades – falou Elis.
-E isto aqui – Fred lançou uma nova folha sobre a mesa – é a sua
confissão. Basta assinar e terminamos com isso.
-Vão à merda! – gritou Pedro, levantando-se abruptamente – Vão se
foder vocês dois, seus desgraçados do caralho!
-Se você prefere o jeito mais difícil, tudo bem – os detetives se
levantaram e deixaram a sala.
Capítulo 17
***
-Você não quer mesmo que isso acabe, não é? – perguntou Elis,
enquanto dirigia pelas ruas molhadas. O vai e vem do limpador de para-brisa
fazia um barulho irritante, que competia com o tamborilar da chuva.
-Não se trata disso Elis, eu só quero ter certeza de que essas pessoas
estão bem. Você ligou para os policiais que estão vigiando a casa do Tito
Machado?
-Sim, está tudo calmo por lá.
-Ótimo.
Em quarenta minutos eles estacionavam em frente à casa de Tatiane
Teixeira. O imóvel ficava em um bairro de classe alta. Casas de dois andares,
com cercados e jardins bem cuidados, e com arbustos cortados em formações
geométricas, lembravam bairros de cidades interioranas dos Estados Unidos.
Os detetives atravessaram a rua e foram até a porta da escritora. As
luzes estavam acesas, mas nenhum movimento podia ser visto através das
janelas fechadas com cortinas.
Fred estendeu o dedo para a campainha emoldurada na parede revestida
de madeira branca.
Após o terceiro toque, ninguém atendeu.
O detetive se voltou para a parceira, ansioso.
-Relaxa, Fred, meu Deus, que coisa. Ela deve estar no banho.
O detetive afundou o dedo na campainha de forma ininterrupta.
-Acho que isso tiraria qualquer um do banho – disse ele antes de sacar a
arma e começar a contornar a casa – você fica aqui e espera.
-Fred, por favor, não vá invadir a casa da mulher – pediu Elis.
O detetive não lhe deu ouvidos e seguiu pela lateral do imóvel. A
escuridão do beco não lhe permitiu ver a mangueira que se enlaçou em seus
pés, quase o derrubando, e lhe arrancando um palavrão que foi engolido pelo
barulho da chuva.
Fred desviou de um cortador de grama e chegou até o fim da linha.
Uma grade alta, que preservava o quintal da casa da entrada de curiosos
como ele.
-Merda.
O detetive já se preparava para voltar quando viu um vulto seguir para
os fundos da casa e lançar-se sobre o muro, transpondo-o em uma escalada
hábil.
Fred imediatamente escalou a grade e saltou para o outro lado.
Nos fundos da casa, ele contornou a piscina e a churrasqueira, e
procurou apoio no muro quase liso. Com algum esforço, conseguiu se sentar
no topo da amurada, mas tudo o que viu dali foi uma rua escura, sem
movimento algum. Teriam seus olhos lhe pregado uma peça, enganados pela
escuridão da noite? – ele se perguntou – Não! Eu sei o que vi! – respondeu
pra si mesmo.
O policial desceu do muro e sacou novamente a arma. A porta dos
fundos estava aberta e batia ao sabor do vento.
“Mau sinal”.
Ele caminhou em direção a casa. A Glock apontada, em riste, pronta
para ser usada. Seu dedo deslizando pelo metal molhado de chuva.
Com uma das mãos ele empurrou a porta e entrou. Estava em uma
cozinha, limpa e organizada. A brancura da cerâmica era entrecortada por
móveis de madeira, mesa, armários e bancadas avermelhadas.
A visão do detetive pairou por alguns segundos sobre o faqueiro que
ficava na parede. Pelo espaço deixado, como em uma boca banguela, faltava
uma faca, uma das grandes.
O detetive seguiu com atenção redobrada. O silêncio na casa era
absoluto.
Ele caminhou rumo à sala, a arma segura firmemente em suas mãos.
O que viu primeiro foi a beirada de um círculo, pintado no chão em
vermelho. Antes de dar o próximo passo, ele já sabia que não iria gostar do
que estava prestes a ver.
Dentro do círculo de sangue fora desenhado um pentagrama, e sobre
ele estava o corpo nu da escritora Tatiane Teixeira. Os braços e pernas
abertos, cada um alcançando uma das pontas da estrela macabra. O peito
estava coberto por múltiplas lacerações. A arma do crime estava ao lado do
corpo. Uma grande faca de desossa, cujo metal já não se via sob o sangue
espesso e pegajoso.
Fred caminhou até a porta. Usando a chave que ainda estava
dependurada na fechadura, presa em um chaveiro do Flamengo, ele permitiu
a entrada de Elis.
Não foi necessário mais do que um olhar, para que a parceira entrasse
em alarde.
-Deus! Não... – Elis não conseguiu completar a frase.
Fred abriu caminho para que ela contemplasse a cena bizarra.
-Que merda, Fred! Que merda! Eu não consigo acreditar. Ele pode ter
feito isso nos últimos dias? Antes de ter sido preso?
-Não. Aconteceu agora. Pouco antes de chegarmos.
-Você tem certeza? – perguntou Elis enquanto rodeava o corpo que era
a estrela principal daquela cena, que claramente representava um crime
ritualístico.
-Tenho. Veja o sangue. Está fresco. Além do mais, acho que vi o
assassino fugir pulando o muro para a rua de trás.
-Mas que droga – mas ele não ouviu a última frase dita pela parceira,
sentiu-se zonzo, o estômago embrulhando, teria ido ao chão se não tivesse
escorado no sofá.
-Fred. O que você tem?
-Já passou. Eu estou bem – disse aprumando novamente o corpo.
-Essa não é a primeira vez, você precisa de um médico.
-Quando tudo isso terminar, talvez eu procure um.
-Talvez? – quando Elis pegou o telefone para discar para a central, eles
ouviram um barulho. Vinha de algum lugar no corredor à esquerda.
Fred retomou sua arma e pegou a dianteira, investindo pelo corredor.
Quando passavam por um armário que ficava debaixo da escada,
ouviram novamente o barulho que vinha dali.
Elis ultrapassou o parceiro e estendeu a mão para a maçaneta. Fred
apontou a arma para a porta, pronto para disparar.
A detetive fez uma contagem rápida e silenciosa, usando os dedos. No
três Elis puxou a porta de uma só vez.
-Polícia! – gritou Fred com a arma em riste, mas o homem que estava
caído ali dentro, envolvido pela escuridão, mal conseguia erguer a cabeça.
-Graças a Deus – disse por fim o velho de olhos vermelhos e rosto
cansado, voltando a cabeça com grande dificuldade para o detetive.
-Quem é você? - perguntou Fred.
-Minha filha – o velho tossiu e precisou sugar o ar em grandes golfadas
para terminar a frase – ela está bem?
Fred e Elis se entreolharam.
O detetive ajudou o homem a ficar de pé. Suas pernas pareciam de
borracha, e Elis precisou ajudar. Guiaram-no para o fim do corredor, onde
poderiam encontrar um lugar para conversarem, a fim de preparar o pai para a
imagem brutal da filha morta.
Entraram em um quarto que tinha uma cama grande e confortável. Os
detetives o deitaram ali.
-Minha filha...
-Você pode nos contar o que aconteceu? O que você viu? – perguntou
Fred, esperançoso de encontrar no depoimento do homem alguma pista
concreta.
-Eu estava... coff coff... no quintal..., então, alguma coisa me acertou no
pescoço – ele instintivamente levou a mão ao local – quando acordei estava
num lugar escuro. Eu ouvi barulhos, pareciam móveis sendo arrastados,
depois algum aparelho elétrico, como um aspirador de pó, acho que nesse
momento eu apaguei de novo. Acordei novamente sem saber quanto tempo
tinha se passado, tentei desesperado ficar de pé, mas não tinha forças, então
comecei a chutar a porta.
-Qual o seu nome? – perguntou o detetive.
-Norberto.
-Senhor Norberto, eu sinto lhe informar que sua casa foi invadida –
Fred tinha dificuldade em encontrar as palavras, não havia maneira de
amenizar aquela situação – e o invasor tirou a vida de sua filha.
-Não, não...
-Eu sinto muito.
-Não! Não! Não! – A negação veemente sobrepunha-se ao choro.
-Senhor Norberto, nós realmente sentimos muito – Elis também se
pronunciou.
-Eu quero vê-la. Quero ver minha filha.
-Fred, vá ligar para central, me deixe conversar com ele – pediu Elis –
senhor Norberto, você precisa se acalmar...
O detetive voltou pelo corredor, telefone junto ao ouvido. Lembrou-se
de que faltava algo. Ele olhou para todas as paredes em busca do texto em
letras de sangue, mas não o encontrou. Teriam eles espantado o assassino
antes que ele tivesse tempo para terminar?
Voltou-se então para a vítima, que com olhos mortos olhava para
cima. Fred acompanhou o olhar de Tatiana e, no gesso do teto, ele encontrou
o que faltava.
-Desgraçado...
-Quem é desgraçado, Fred? – era a voz de Maciel do outro lado da
linha.
-Me diga que ainda não fez a besteira de falar diante das câmeras.
-Você está em casa? Ligue a TV, eles ainda devem estar reprisando
nosso final triunfal.
-Triunfal o caralho! Acabei de encontrar outra vítima. Pegamos o cara
errado.
-O quê? Como? Isso é impossível... – a voz do comissário se perdeu do
outro lado da linha. A ligação caiu.
O detetive ficou imaginando o quanto o superintendente tinha se
vangloriado frente às câmeras e microfones das inúmeras redes de TV, rádio
e internet. Ele calculou que depois daquilo a carreira de Maciel estava
acabada, e talvez sobrasse para ele, Elis e para todo o departamento.
Fitando o teto, ele leu:
“ele arrancou a faca com tanta força do coração pulsante que o sangue,
que jorrou para o ar, molhou os livros na parede da livraria a metros de
distância”
Capítulo 19
-Será que dá pra você parar de ficar andando de um lado para o outro,
Fred? Já está me deixando nervosa – pediu Elis.
Sentada de frente para o seu PC, com a cabeça apoiada nos dedos, a
detetive observava as imagens trazidas pelo parceiro. Ao seu lado, Rogério e
Flávio espichavam os pescoços a fim de também conseguirem enxergar a
tela.
-Em nenhum momento ele se aproxima dos computadores – observou
Elis.
-Ele pode ter acessado pelo celular, dá na mesma se ele estiver usando
a rede wifi da lan house – explicou Flávio, especialista no assunto – pelo
tempo em que ele ficou com o aparelho em mãos, é provável.
-Muito bem, o que fazemos então? – perguntou Elis – Isso aqui não
prova absolutamente nada. Ele vai alegar que frequenta o lugar e não
podemos prendê-lo por isso.
-Desgraçado, desgraçado – Fred seguia murmurando para si mesmo,
enquanto continuava com sua caminhada enlouquecida pela sala de Elis, que
era muito mais limpa e organizada que a sua.
-Fred! Que porra! Dá pra você ficar quieto e dizer o que nós vamos
fazer? Aliás, você pode começar explicando como conseguiu convencer o
Romero a nos dar essas imagens. Acredito que tem a ver com essa marca
roxa no seu queixo.
-Isso não importa – respondeu, com uma expressão sombria e
desencorajadora.
Ele finalmente parou e se virou para a parceira.
-Se continuarmos agindo dentro da lei, nunca vamos descobrir porra
nenhuma. Eu tenho um plano para conseguir provas, mas vamos precisar de
você, Flávio.
-Sou todo ouvidos – disse o jovem, empolgado em ajudar.
-Você conseguiria recuperar o histórico do navegador de internet de
um computador? – quis saber o detetive.
-Dependendo da habilidade do usuário, não. Mas se ele tiver
simplesmente excluído o histórico pelos meios comuns, então, sim, posso ser
capaz de conseguir.
-Ótimo. Eu vou convidar o rapaz para dar uma passada aqui, enquanto
isso, você e a Elis vão invadir a casa dele e descobrir tudo o que puderem por
lá. Enquanto ela estiver procurando provas materiais, quero que você
verifique o PC.
-Você está mesmo falando sério? – manifestou-se Rogério.
-Sim, e espero que você não se oponha – contrapôs Fred.
-Bem, se o Flávio topar, não vou tentar impedi-lo, mas pense bem, as
chances de vocês encontrarem alguma coisa são pequenas, e se o rapaz
descobrir, será questão de tempo até um advogado furioso entrar por aquela
porta com uma papelada em mãos, processando o departamento de polícia –
disse Rogério, evocando alguma prudência.
-Nós precisamos nos arriscar – Fred estava decidido – este caso já foi
longe demais. Além do mais, esse rapaz pode muito bem ter armado para
incriminar o amigo. Foi ele quem achou os livros. Como poderia saber que
eles estavam lá?
-Ele falou que os encontrou porque a coleção que os escondia estava
fora de ordem – justificou Elis.
-Sim, mas agora, pensando melhor, isso não me parece suficiente –
argumentou Fred. - Nós estivemos naquela casa, Elis. Eu olhei prateleira por
prateleira e não havia um livro sequer fora de lugar. Tudo estava organizado e
alinhado com perfeição. Não consigo imaginar nosso cirurgião deixando seus
livros à revelia. O que foi usado para nos ludibriar foram aquelas histórias
macabras da infância de Pedro, histórias das quais não podemos comprovar a
veracidade. Além do mais, há outro ponto muito importante.
-E qual é? – faltava pouco para Elis ser convencida.
-A namorada do médico. Nosso amigo era apaixonado por ela.
-E como você pode saber disso?
-Eles discutiram na noite em que a moça foi atropelada. Ela o acusou
de ter denunciado o amigo apenas para separá-los. Eles discutiram feio, bem
na minha frente. Houve tapa e cuspe.
A detetive ergueu as sobrancelhas. Flávio e Rogério também
pareciam convencidos.
-E então, garoto, você está dentro? – Fred se voltou para Flávio.
-É claro que estou dentro – disse ele, ajeitando os óculos com o dedo
indicador.
-Ótimo!
-Fred, você tem certeza disso? – perguntou Elis.
-É como eu falei. Não temos mais tempo para jogar pelas regras. Já
fomos feitos de idiotas vezes demais. Já são quatro pessoas mortas, Elis. Já
experimentou ligar a TV? Somos motivo de chacota nacional.
Elis respirou fundo.
-Acho que você tem razão. Vamos fazer isso – disse enquanto olhava
a imagem do livreiro congelada no monitor. No alto da tela, o horário era
exatamente o mesmo da mensagem enviada para a vítima.
***
***
Capítulo 20
***
-Desde quando eu preciso que você me leve pra casa? – falou Fred.
-Você bebeu – disse Elis – não podia deixá-lo dirigir.
Fred riu. Começou com uma risadinha sem graça, depois ganhou forma
até se tornar uma gargalhada ressoante. Até mesmo Elis se permitiu um
sorriso, mas no final, era apenas um brado triste de uma garganta
enrouquecida. O riso dos derrotados.
-Estamos ferrados, Elis – disse ele quando se recompôs.
-É, eu sei. Achamos o desgraçado, mas não temos prova alguma.
-Por que você está parando aqui? Ainda faltam dois quarteirões –
perguntou o detetive.
-Porque, pensando bem, eu também quero encher a cara. – respondeu
ela antes de sair do carro e caminhar em direção a um bar.
***
Bernardo estava sentado de frente para o seu PC. Na tela havia uma
dentre as muitas reportagens sobre o assassino de escritores. O rapaz mal
podia acreditar que havia tantos blogs dedicados ao assunto. Afinal, ele não
era o único com um interesse mórbido sobre o caso.
Naquele último, ele encontrou uma teoria interessante de que os crimes
vinham acontecendo pela ordem do sobrenome dos autores.
-Será? Uma coisa assim tão simples não poderia ter passado
despercebida pela polícia – comentou consigo mesmo.
Depois de admitir que já tinha gasto o tempo de toda uma vida
pesquisando sobre aquele caso, decidiu que trabalhar um pouco poderia
afastar seu pensamento daquele assunto. Poderia também afastar seu
pensamento de Pedro, que estava preso como suspeito daqueles crimes
horríveis, algo que ele simplesmente não podia acreditar. Mas acima de tudo,
desejava esquecer a grande perda que abalara e transformara sua vida.
Era estranho pensar que nunca mais veria Bárbara. Que chegaria nos
lugares que costumavam frequentar juntos e a amiga não estaria lá. Lembrou-
se de como era divertido vê-la defender um livro qualquer da Nora Roberts,
como o próximo a ser escolhido para a leitura do grupo. Lembrou-se da
forma apaixonada e com lágrimas nos olhos com a qual ela falava de
Rosamunde Pilcher ou Nicholas Sparks, mas ele simplesmente já não queria
se lembrar. Doía demais, mas isso não o impediu de ligar seu aparelho de
som e colocar um cd da Legião Urbana. Quando a voz de Renato Russo lhe
chegou aos ouvidos, ele precisou lutar para conter o choro.
É tão estranho
Os bons morrem jovens
Assim parece ser
Quando me lembro de você
Que acabou indo embora
Cedo demais
O rapaz caminhou até o armário onde ficavam os aparelhos que
aguardavam conserto. Há muito tempo ele não mexia ali. A vida tinha se
tornado corrida demais.
Eu continuo aqui
Com meu trabalho e meus amigos
E me lembro de você
Em dias assim
Dia de chuva
Dia de sol
E o que sinto não sei dizer
Ele pegou o notebook e o segurou nas mãos de forma reverente.
Aquela era uma memória vívida da amiga. Quanto dela poderia haver ali
dentro? Quanto dela ainda poderia viver ali dentro?
Ele colocou o computador sobre a mesa, sentou-se, suspirou e o abriu.
É tão estranho
Os bons morrem antes
Me lembro de você
E de tanta gente que se foi
Cedo demais!
E cedo demais
Eu aprendi a ter
Tudo o que sempre quis
Só não aprendi a perder
E eu que tive um começo feliz
Do resto não sei dizer
Cedo demais!
“-Ela ainda não podia acreditar em como sua vida tinha se transformado
em tão pouco tempo. Tinha acordado de manhã em plena felicidade, agora
voltava para casa derrotada, entristecida, tão imersa em seus problemas que
sequer viu quando o Audi prateado avançou em sua direção. O carro, que
avançou o sinal vermelho em alta velocidade, não dava sinais de que iria frear
e, quando acertou a moça...”
-Um Audi Prateado... não... não pode ser... meu Deus... não, por favor,
não.
Bernardo ficou rodando pelo quarto. As mãos na cabeça.
-Tem que ser uma coincidência!
“Qual a probabilidade? Quantos carros como esse existem rodando por
aí? Quantos atropelamentos por dia acontecem em uma grande cidade como
essa? Tem que ser uma coincidência” – ele tentava desesperadamente se
convencer, até que um pensamento tomou forma em sua mente.
-Se alguém já leu esse texto, essa pessoa pode ser...
Ele abriu o navegador de internet torcendo para que o provedor de e-
mail de Bárbara fizesse parte dos seus “favoritos” e que ela tivesse
programado o aplicativo para salvar suas senhas e entrar automaticamente.
Por sorte, foi exatamente o que aconteceu.
O rapaz clicou e esperou o site carregar. Tão ansioso que mal podia se
conter.
Quando a tela exibiu a caixa de entrada, com dezenas de e-mails não
lidos, Bernardo os ignorou e clicou em “enviados”.
Ele fez uma busca e encontrou apenas um e-mail com o arquivo do
conto anexado. O arquivo de texto nomeado como “policial” tinha sido
enviado para apenas um endereço de e-mail. Essa pessoa era a única a saber
sobre o Audi prateado.
Ao verificar o destinatário, ele ficou chocado. Deu vários passos para
trás. As mãos levadas à boca emudecida.
Apenas uma pessoa tinha lido aquele conto. Apenas uma pessoa...
A tela de seu PC ainda exibia a lista feita pelo blog, evocando a ordem
dos crimes pelo sobrenome das vítimas. O sobrenome de Bárbara, Karan, se
encaixou perfeitamente na lista.
-Não pode ser... – ainda se agarrava ao pensamento de que tudo era
apenas uma infeliz coincidência, mas chegou à conclusão de que não podia se
omitir.
Ele procurou em suas coisas o cartão que o detetive tinha lhe dado.
Depois de revirar todo o quarto, ele o encontrou e discou apressado. Após
vários toques, ouviu um irritante:
“Deixe o seu recado após o sinal”.
-Merda!
Ele não podia simplesmente ficar parado ali.
Pegou um casaco, as chaves do carro e saiu de casa batendo a porta.
***
***
Capítulo 21
***
20 anos atrás
***
Quando a tarde encontrou seu fim, Fernanda já tinha sido apresentada a
todo o grupo. Luís e Bárbara estavam a caminho de se encontrarem com
Bernardo e Pedro, e aquela foi a primeira das centenas de vezes em que
estiveram todos juntos. A garota jamais se sentira tão amada e acolhida.
Pedro era muito bonito com seus cabelos loiros e os olhos claros. Era
meio calado, mas, nas poucas vezes que falava, demonstrava ser muito
inteligente. Já Bernardo não conseguia ficar de boca fechada, fazia piada de
tudo e de todos. Com facilidade, ele levava o grupo às gargalhadas. Fernanda
não se lembrava de outro momento em sua vida no qual tivesse rido e se
divertido tanto, a ponto de perder a conta das horas.
Depois de insistir que estava bem, e de pedir com lágrimas nos olhos
que aquela história não fosse compartilhada com pais ou professores, ela se
levantou da calçada em frente à casa de Luís e disse que tinha que ir embora.
A noite já seguia avançada e ela sabia o que acontecia quando chegava tarde
em casa.
Os novos amigos decidiram acompanhá-la por alguns quarteirões,
para ter certeza de que Fernanda já não correria mais perigo.
Quando se despediu estava verdadeiramente emocionada, e as
palavras lhe faltaram. Ela só conseguiu acenar, enquanto caminhava com
passos ligeiros, preocupada.
Quando avistou sua casa, um sobrado antigo e que precisava de
pintura e reforma, imediatamente soube que teria problemas. A velha Brasília
de seu padrasto já estava estacionada ali.
Assim que colocou os pés na varanda, ouviu a discussão acalorada.
-Cadê aquela puta da sua filha? – a voz estava carregada, arrastada. O
típico embolar característico do dialeto dos alcoólatras.
-Ela deve ter ficado na escola para fazer algum trabalho – a voz de sua
mãe soou baixa e apaziguadora.
-Escuta bem, Joana, essa sua filha vai se transformar em uma puta!
Uma vadia! Igualzinha a mãe! – soluços de bêbado entrecortavam as
palavras.
Não houve resposta, fazendo a menina se lembrar das palavras que a
mãe dizia sempre:
“Quando seu padrasto estiver bêbado, não devemos discutir, apenas
concordar”.
Fernanda estendeu a mão para a porta, juntando toda a coragem que
lhe restava, e entrou em casa.
-Que porra de comida horrível é essa, caralho? – o grito a assustou,
vinha da cozinha.
-Me desculpe – ela ouviu a voz trêmula da mãe.
-Desculpas? Desculpas? É sempre a mesma coisa, sua puta relaxada!
Não dá pra comer essa porcaria que você chama de comida! Vou ter que sair
e arrumar uma coisa decente pra comer! Talvez eu também ache uma boceta
para foder, uma coisa novinha e cheirosa, não essa porcaria velha que tenho
em casa!
Fernanda ouviu uma cadeira sendo derrubada no chão com grande
estardalhaço.
“Violento, ele está violento” – pensou com o medo a se instalar cada
vez mais fundo em seu peito.
Ouviu os passos arrastados indo em direção à sala. Ela tentou se
mover, mas o medo já tinha lhe dominado por completo.
-Eu já cheguei – conseguiu dizer, quando o padrasto a avistou.
-Fernanda, sua vadia! Onde você estava todo esse tempo? Veja só
como estão as suas roupas, e essa cara toda suja, aposto que estava andando
com garotos e dando essa boceta no meio do mato! – o homem cambaleou
em sua direção – Eu devia te dar uma surra por ficar bancando a puta por aí,
ao invés de vir pra casa!
-Baltazar! Não! – gritou Joana – Na minha filha você não toca!
A mulher, que era sempre submissa aos caprichos do homem que a
sustentava, em troca de ser tratada como lixo, pareceu crescer, e mesmo
diminuta em tamanho, comparada ao homenzarrão, grande e forte, colocou-se
entre o alcoólatra, que exalava um fedor azedo de bebida, cigarros e suor, e
sua filha, que era toda medo e terror.
-Como é que é? – Baltazar se virou para Joana, com cara de indignado
– Você acha que pode dizer o que eu posso ou não fazer dentro dessa casa?
O soco foi tão forte e repentino que Joana não pôde se manter de pé. O
sangue escorreu de seu supercílio direito, onde um dos anéis da pesada mão
de Baltazar a acertou em cheio, provocando um novo hematoma no rosto,
onde as antigas cicatrizes já se acumulavam em demasia.
-Mamãe... – Fernanda começou a chorar.
-Vá para o seu quarto, minha filha – pediu a mãe, com a voz baixa e
surpreendentemente calma.
-Quarto? Antes essa garota vai aprender uma lição! Vai aprender a não
me desobedecer!
-Você não vai tocar na minha filha. Fernanda, já para o quarto, agora!
A menina deu alguns passos trêmulos em direção ao corredor, mas a
silhueta do gigante cresceu sobre ela. A mão erguida para o ar. Ela já podia
sentir a dor da pancada. Mais uma para a coleção do dia, mas sua mãe se
atracou com Baltazar, agarrando-o pela cintura e tentando detê-lo.
Fernanda ficou parada na esquina do corredor, observando, aterrorizada
e impotente, a violência dos golpes que a mãe recebia, e tudo o que conseguia
fazer era apenas chorar, trêmula. Mesmo após ter caído no chão e não mais
tendo forças para se defender, Joana continuava apanhando com chutes de
força desmedida, crueldade e violência que ultrapassam o extremo.
“Por quê? Por quê? Por que, ó Senhor, permite que soframos tanto?” –
Ela orava desesperada, com medo de que a mãe não se levantasse nunca
mais. Com medo de que ela estivesse morta.
Quando Baltazar se cansou da mulher mais velha, que não mais se
mexia, voltou-se para Fernanda.
-Agora você vai ver! – prometeu ele. Seus olhos insanos fitavam a
menina que lhe desafiara chegando tarde em casa, quebrando suas regras. As
leis sagradas de sua casa. Ele era o único que trabalhava ali, era ele quem
trazia o sustento para aquelas putas e como elas o recompensavam? Com uma
merda de comida ruim e desrespeitando sua palavra. Mas depois daquela
noite tudo seria diferente, ele tinha certeza.
Joana sentia uma terrível dor no estomago, algo tinha se rompido
dentro de si e ela mal conseguia se mexer. Tentou gritar, mas lhe faltou o ar,
e tudo o que conseguiu fazer com as costelas quebradas foi observar
enquanto Baltazar se arrastava aos tropeços em direção à sua filha. O álcool,
as decepções e amarguras da vida estavam no auge de seu poder sobre ele,
trazendo à tona o mal que é inerente aos seres humanos, mas que em alguns é
como uma porta para os piores demônios do inferno. Demônio este tão
diferente do homem que era quando se conheceram, antes de perder o
emprego e o status, e de se entregar à bebida. Antes de passar a viver de bicos
humilhantes para colocar comida em casa. Ele finalmente tinha se tornado um
demônio. O inferno estava aberto e daquele buraco tudo poderia sair. E a dor
de saber que não seria capaz de proteger a filha era maior do que todas as
outras dores.
“Deus, não, por favor, não”.
-Tranque-se no quarto, filha – mas as palavras mal saíram de sua boca
trêmula. A visão escureceu e ela desmaiou.
Fernanda correu até o quarto e trancou a porta. Ela podia ouvir os
passos arrastados pelo soalho de madeira, bem como os muitos xingamentos.
Olhou para a janela, pensou em pular e fugir, mas se lembrou de que Baltazar
tinha colocado grades em todas as janelas da casa, alegando que o bairro
vinha ficando perigoso.
Ela pensou na última crise do padrasto, quando chegara em casa pela
última vez afogado em álcool e espancou Joana apenas porque ela tinha se
esquecido de tirar as pilhas do controle remoto antes de guardá-lo.
“Você nunca deve guardar um aparelho com as pilhas dentro”. Aquela
estranha fixação a amedrontava.
“O demônio mora nas pequenas coisas” - todas as vezes que ouvia o
padrasto falar das malditas pilhas, lembrava-se dessa citação.
O primeiro baque na porta a fez gritar de susto.
-Você precisa ser punida!
Outra pancada na madeira, fazendo cair um pedaço da massa corrida da
parede.
-Você precisa ser punida!
No terceiro baque, um pequeno estilhaço de madeira voou pelo quarto,
mas a porta, bravamente, ainda se manteve no lugar.
-Você precisa ser punida! Sua puta!
Com um chute derradeiro, a porta foi escancarada revelando a presença
de Baltazar, que cravou seus olhos insanos na menina que jazia encolhida em
um canto do quarto. Tremendo da cabeça aos pés, ela segurava a mochila da
escola junto ao corpo, como um escudo que de nada valeu mediante a força
descomunal do enorme homem adulto.
Quando ele arrancou a mochila da menina, seus materiais voaram pelo
quarto numa chuva de papéis, cadernos e lápis de cor.
Baltazar pegou Fernanda pelos cabelos e a jogou sobre a cama. Ele
juntou com raiva vários dos papéis que estavam pelo chão e os esfregou no
rosto da garota com brutalidade.
-Essa é a porcaria que você vem escrevendo? É disso que você fica se
gabando? Acha que isso vai te levar a algum lugar? Ou você pretende que eu
te sustente pelo resto da sua vida inútil?
A menina se encolheu tentando proteger o rosto. O hálito ardido de
Baltazar fazia seus olhos arderem.
-Você se acha muito esperta.
Ele abriu um dos papéis e depois de muito esforço conseguiu ler
algumas palavras.
“...ela beijou o garoto, a língua dele tinha sabor de...”
-Que porra é essa? Você anda escrevendo putaria?
Baltazar a estapeou no rosto valendo-se de sua força descomunal e
Fernanda viu o mundo girar.
-Você já deve mesmo estar dando essa boceta por aí, mas eu vou te
mostrar como se faz de verdade... ah, se vou...
Ele começou a desabotoar a calça.
-Vamos ver se você geme como a puta arrombada da sua mãe! Vamos
ver.
-Não! Não! – quando a garota entendeu o que estava prestes a
acontecer, lutou para se levantar e correr, mas outro tapa na face a devolveu à
cama, o rosto inchado parecia ter o dobrado de tamanho.
Quando abriu novamente os olhos, ele estava sobre ela. O cheiro de
podridão e sujeira a deixava nauseada. Quando Baltazar forçou sua língua
áspera e nojenta contra a boca de Fernanda, e depois a fez passear por seu
rosto, ela ficou à beira de vomitar, o estômago dava voltas, sentiu o que havia
ali abrir caminho garganta acima.
A menina lutou para manter as roupas no lugar, mas as mãos eram
fortes demais, implacáveis, em segundos estava nua da cintura para baixo.
Ela lutou bravamente, mexia-se tentando evitar o inevitável, mas, por
fim, foi vencida, rasgada, dilacerada.
Baltazar urrava enquanto ia de fora para dentro da criança, que chorava
e implorava para que ele parasse, o que servia apenas para que ele se tornasse
mais e mais violento. Quando terminou, liberando o líquido quente dentro da
menina, ele bateu a mão com força na barriga de Fernanda várias vezes,
enquanto gritava:
-Agora eu estarei para sempre dentro de você, te vigiando! Para
sempre! Bem aqui! – seguia batendo com violência na barriga da menina –
Para sempre! Você nunca vai se livrar de mim! Nunca!– ele se levantou e
esboçou um sorriso. Depois passou pela porta e saiu cambaleando pelo
corredor. O barulho de cadeiras sendo atiradas e vidros se quebrando ecoou
pela casa, como se o espancamento da esposa e o estupro da enteada não
fossem o suficiente para satisfazê-lo.
Fernanda, que já não tinha mais forças, enrolou-se no lençol ensopado
de sangue. O sangue de sua própria inocência maculada, e ficou encolhida
por muito tempo, sem ousar se mexer, com medo de descobrir que tinha sido
partida em duas. Quando a dor excruciante se tornou torpor, e o cansaço
finalmente a dominou, ela dormiu e sonhou com demônios, criaturas com
asas de morcego e dentes enormes, que a perseguiam sem descanso, mas
quando foi alcançada e se preparou para morrer, ficou surpresa ao ver que as
criaturas não lhe atacaram. Elas se aproximaram e a rodearam, sussurrando
em seus ouvidos o que ela deveria fazer.
***
Quando Fernanda abriu novamente os olhos ainda era noite, e havia
uma urgência crescendo dentro de si. Ela ficou de pé, sentindo cada músculo
de seu corpo queimar em dor, mas havia um latejar em sua cabeça que
ribombava ainda mais alto, e que a guiou pela casa.
Na sala, ela viu o padrasto dormindo em uma cadeira, a cabeça apoiada
sobre a mesa. Uma baba espessa escorria pela boca aberta e fedorenta.
Ela olhou para o lado e viu a mãe caída ao chão. Joana não se mexia.
Fernanda ficou preocupada, mas haveria tempo para cuidar dela depois.
Naquele momento, havia algo mais urgente, inadiável.
Ela foi até a cozinha e escolheu a maior faca que encontrou. Quando
seus dedos se fecharam em torno do cabo da arma, sentiu suas forças serem
revigoradas. Não havia mais dor. Caminhou até a sala com leveza. Sentia-se
flutuar.
Aproximou-se de Baltazar e mirou a faca em seu pescoço. Sem pensar,
sem hesitar, ela desceu o enorme cutelo com força e precisão. O metal afiado
enterrou-se até a metade do pescoço delgado do padrasto, que no último e
derradeiro momento abriu os olhos e a encarou.
A menina podia jurar que da boca morta, com a língua exposta e caída
para o lado, ecoaram as palavras:
“Eu estarei sempre dentro de você!”
Capítulo 22
Epílogo
***
Fred estava arrumando as coisas para liberar seu escritório quando
esbarrou na pasta do último caso.
Ele pegou as muitas fotos e as espalhou pela mesa. Selecionou entre
elas as que estampavam em cores mais vívidas a loucura da cruel e
perturbada assassina.
As fotografias do texto escrito na parede da livraria e do corpo tombado
ao redor de uma poça de sangue o fizeram reviver aquela noite.
No pouco que podia enxergar em meio a penumbra do canto escuro,
entre as prateleiras abarrotadas de livros, ele viu a moça levantar a arma e
apontar para a própria cabeça. Ele poderia detê-la, poderia se lançar sobre ela
e tentar impedi-la, mas não o fez. Teriam sido seus reflexos afetados pelo
álcool que o traíram? Ou tinha sido aquela uma decisão consciente de apenas
observar? Fred se questionava enquanto relia pela centésima vez a mensagem
gravada na parede com o sangue da própria assassina.
“Após certificar-se de ter deixado sua marca no mundo, ela finalmente
calou as vozes em sua cabeça. O disparo certeiro emudeceu Fernanda, a
assassina, calou Baltazar, o estuprador que destruíra sua infância, e com ele,
todos os seus demais demônios, dessa vez, para sempre.”
Ela tinha tudo preparado, não fugira para aquele canto apenas para se
refugiar na escuridão, o texto de seu réquiem, pintado com seu próprio
sangue, estava ali, à sua espera, seu gran finale.
***
Fale com o autor em suas redes sociais e conte como foi sua experiência com
o livro. Você conseguiu descobrir o assassino antes do final da trama?
@millerbrittoescritor
Agradecimentos:
A todos os amigos da Leitura do BH Shopping, que foram excelentes leitores
beta, torturados pelos capítulos liberados semana a semana:
Ana Flávia, Augusto, Perla, Wesley, Jennifer, Mariana, Marli, Jader, Júlia,
Fernanda, Ronara, Luana, Fabiana, Josilene, Dani e Rodolfo.
A pessoa mais criativa que conheço, Rosana Fraga, por lembrar-me que
muitas vezes menos é mais.
A querida amiga, Maria Palomino, pela carinhosa e valiosa ajuda com a
terceira edição.
Ao estimados amigos de longa data:
O brilhante escritor Eduardo Sabino, pela camaradagem de sempre, traduzida
em conselhos valiosos sobre a escrita.
E Paulo Furtado, pela assessoria nos campos jurídicos onde meu
conhecimento não alcançava, e também por seus comentários entusiastas.
Aos familiares:
Meus irmãos, Anderson, por sua adorável revolta ao não descobrir o
assassino antes do fim. Silvia, por todo seu apoio na reta final, e meu querido
pai, José, pelo investimento que possibilitou a transformação deste livro em
realidade.
A capa é um trabalho de:
Borja Designer, Criação e Pós Produção
www.elo7.com.br/borjadesign/loja
Instagram: @borjadesigncriacao
@luizborja
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