NA CAPITANIA DE SV W L PDF
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NA CAPITANIA DE
SÃO V ICENTE
Mesa Diretora
Biênio 2003/2004
Suplentes de Secretário
Conselho Editorial
Senador José Sarney Joaquim Campelo Marques
Presidente Vice-Presidente
Conselheiros
Carlos Henrique Cardim Carlyle Coutinho Madruga
João Almino Raimundo Pontes Cunha Neto
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Edições do Senado Federal – Vol. 24
NA CAPITANIA DE
SÃO VICENTE
Washington Luís
Brasília – 2004
EDIÇÕES DO
SENADO FEDERAL
Vol. 24
O Conselho Editorial do Senado Federal, criado pela Mesa Diretora em
31 de janeiro de 1997, buscará editar, sempre, obras de valor histórico
e cultural e de importância relevante para a compreensão da história política,
econômica e social do Brasil e reflexão sobre os destinos do país.
CDD 981.023
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Sumário
APRESENTAÇÃO
Por Senador Aloizio Mercadante
pág. 11
INTRODUÇÃO
Introdução que explica o livro
pág. 37
CAPÍTULO I
D. João III
pág. 45
CAPÍTULO II
A expedição de Martim Afonso de Sousa
pág. 57
CAPÍTULO III
Capitanias Hereditárias
pág. 75
CAPÍTULO IV
A criação das Vilas de S. Vicente e de Piratininga
pág. 93
CAPÍTULO V
Governo-Geral no Brasil. Tomé de Sousa, primeiro
Governador-Geral. Seus meios e seus resultados
pág. 103
CAPÍTULO VI
A criação das vilas de Santos, Itanhaém e Santo André
pág. 107
CAPÍTULO VII
Os jesuítas
pág. 119
CAPÍTULO VIII
A fundação de São Paulo
pág. 133
CAPÍTULO IX
Os índios
pág. 143
CAPÍTULO X
Os colonos
pág. 155
§ 2º – Lopo Dias
pág. 177
§ 4º – Pedro Afonso
pág. 182
§ 5º – Brás Gonçalves
pág. 182
§ 6º – Pedro Dias
pág. 183
§ 7º – Salvador Pires
pág. 184
§ 8º – Pero Leme
pág. 185
§ 9º – Afonso Sardinha
pág. 186
§ 11º – Buenos
pág. 203
CAPÍTULO XI
O cruzamento e a escravidão
pág. 209
CAPÍTULO XII
As entradas ao sertão
pág. 219
CAPÍTULO XIII
Jerônimo Leitão
pág. 235
CAPÍTULO XIV
Jorge Correia
pág. 245
CAPÍTULO XV
João Pereira de Sousa
pág. 253
CAPÍTULO XVI
Domingos Rodrigues
pág. 267
CAPÍTULO XVII
D. Francisco de Sousa
pág. 271
CAPÍTULO XVIII
André de Leão
pág. 289
CAPÍTULO XIX
Nicolau Barreto
pág. 303
CAPÍTULO XX
Fim do primeiro governo de D. Francisco de Sousa –
Algumas Bandeiras – Volta de D. Francisco de Sousa após a
divisão do Governo-Geral do Brasil em dois, cabendo-lhe a
repartição do sul (Espírito Santo, Rio de Janeiro e S.Vicente)
com a administração das minas a descobrir
pág. 323
CAPÍTULO XXI
A conquista do Sul. O Guairá. A retirada dos padres jesuítas
para abaixo do Iguaçu e para os Tapes. Mbororé, no Uruguai.
Direção para o oeste, Itatines, Taquari,
Paraguai e depois para o norte
pág. 339
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Apresentação
*
CÉLIO DEBES
letras históricas, é mister que se lhe acompanhem os passos, após sua forma-
tura na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em 1891.
Feito bacharel em Direito, regressou a seu Estado, onde foi
nomeado promotor público, em Barra Mansa. Decorrido cerca de um
ano, acede ao convite de seu contemporâneo na Academia, Joaquim
Celidônio Gomes dos Reis, e com ele passa a advogar em Batatais.
Nesta cidade, sobressai-se nas atividades forenses, montando escritório
próprio. Instigado por Celidônio, milita na política local. Elege-se vereador,
sendo logo ungido por seus pares presidente da Câmara. Passa pelo mesmo
critério, a exercer a Intendência Municipal. O Intendente, na verdade,
era o executor das deliberações dos camarista, embora integrante da edili-
dade. No exercício dessas funções, proporcionou ao município avanços ex-
traordinários e progresso assinalável. A atividade legislativa de Washington
e sua defesa da autonomia municipal, deram destaque à Câmara e a tor-
naram conhecida e respeitada no cenário estadual.
Do campo político, lançou-se ao jornalismo, fundando e redi-
gindo A Lei, na companhia de Celidônio e Altino Arantes.
A eficaz ação profissional e a eficiente gestão administrativa gran-
jearam-lhe as simpatias necessárias para que viesse a integrar chapa, de
oposição ao governo estadual, para a Câmara Federal. O insucesso, a des-
peito da significativa votação, foi o desfecho dessa campanha, empreendida em
parceria com Francisco Glicério, rompido, então, com o situacionismo.
A eleição feriu-se no derradeiro dia de 1899. No ano seguinte,
Washington casa-se com Da. Sofia de Oliveira Barros, filha do segundo
Barão de Piracicaba. Em 1901, transfere-se, com a esposa, para a Ca-
pital, onde procura exercer a advocacia, em companhia de seu concunhado
Álvaro de Sousa Queirós. É nesse mister que encontra tempo para vas-
culhar os arquivos do município de São Paulo e do Estado.
Na “Introdução que explica o Livro”, com que abre Na Ca-
pitania de S. Vicente – originariamente intitulada “Explicação que
pode servir de Prefácio”6– registra que
18 Idem, 9:563-569.
19 Idem, idem, p. 485-533.
26 Washington Luís
20 Idem, 17:408-431.
21 Virgílio Correia Filho, Washington Luís e o Instituto Histórico Brasileiro, in
Washington Luís Visto por seus Contemporâneos no Primeiro Centenário de seu Nascimento,
p. 125.
28 Washington Luís
35 1ª edição, p. 168.
36 Idem, p. 178.
34 Washington Luís
37 Idem, p. 177.
38 Idem, p. 179.
39 Idem, p. 72.
Na Capitania de São Vicente 35
40
Almeida – cito sempre o autor, o livro e as devidas páginas em que
me apoiei.” Não era dos que, egoisticamente, sonegam as fontes...
Ainda ao mesmo investigador, no ano de seu falecimento, dá o
rol de sua produção histórica e confidencia seus projetos nessa área. Soli-
cita-lhe algumas informações de seu interesse e, para justificar o pedido,
faz a exposição.
“Escrevi há tempos um ensaio sobre a Capitania de S.
Paulo e, recentemente, outro sobre a Capitania de S. Vicente;
estou escrevendo atualmente alguma coisa sobre a Província
de S. Paulo, no tempo do Império, e pretendo, se tiver tempo
e saúde, escrever sobre o Estado Federado de S. Paulo, na
República.”41
Quanto ao São Paulo republicano, ressalva.
“De passagem lhe digo que nada escreverei sobre as
interventorias de S. Paulo, no tempo da Ditadura, porque
tendo sido parte, ou, vítima, sinto que não teria a necessária
serenidade para delas tratar com imparcialidade.”
Era a consciência do historiador criterioso, a extravasar nas
palavras do homem honrado que sempre foi.
Remanescem, em seu arquivo, páginas inúmeras sobre este seu
plano. Sob o título São Paulo, Província Imperial, há dois volumes,
segundo a indicação do autor. Precede-os nota manuscrita.
“Neste trabalho apenas o primeiro capítulo, embora in-
completo e imperfeito, pode ser publicado. O capítulo sobre o
caminho do mar precisa ser refundido. Os outros são esboços,
que esperam desenvolvimento. Sobre a viação férrea basta re-
sumir o que escreveu A. Pinto, que é completo. W. Luís.”
Impertinente seria a análise crítica dessas palavras. É o juízo
do autor, rigoroso sempre, quando se é humilde. E ficou demonstrado
42 1ª edição, p. XI.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
WASHINGTON LUÍS
Por essa publicação foi fácil conhecer muitos dos homens da go-
vernança, e, como eles, interpretando as Ordenações do Reino, elegiam os
oficiais da Câmara, isto é, os vereadores, os juízes, os procuradores do
conselho, e como estes nas suas sessões, ordinariamente semanais, exerciam
suas funções.
Sem recursos de gente armada nem de dinheiro, rodeados de
tribos selvagens, e algumas inimigas desde os primeiros contactos europeus,
longe da metrópole, extremamente centralizadora, num tempo em que o
único meio de transporte era o marítimo, cujas escassas viagens, conforme
os ventos e tempestades, consumiam meses para levar um pedido urgente
de providências e trazer um despacho rápido, esses oficiais das Câmaras
eram obrigados a demorar as suas resoluções ou a tomar iniciativas para
existência da colônia. Dessas iniciativas ficaram vestígios nas representa-
ções, nas queixas, nas reclamações às autoridades nomeadas pelo donatá-
rio e pelo Governo português. Em alguns desses vestígios nas vereanças
dessas Câmaras, se encontram em linguagem rude os diversos atos prati-
cados no exercício de suas atribuições, as providências tomadas contra
ataques de índios, ou, quando em guerras ofensivas, os nomes dos cabos
paulistas que as dirigiam e os das tribos inimigas, vencidas ou extermi-
nadas.
Mais tarde a publicação dos Inventários e Testamentos
lançou um jorro de luz sobre a vida social e econômica, com a qual se vê
a pobreza dos primeiros habitantes de São Paulo.
Dos inventários processados perante juízes, alguns dos quais
faziam parte da Câmara, muitos têm apensos ou transcritos os inventá-
rios feitos no sertão e, às vezes, autos de ações judiciais, processados no
foro local.
Os testamentos, quase todos, foram escritos ou por padres, ou
por escrivães públicos, ou por um ou outro letrado, porque em regra os
testadores eram analfabetos, principalmente as mulheres que expressa-
mente declaravam, que, por serem mulheres, não sabiam escrever.
Começam todos por longas disposições espirituais, quase uni-
formes ou tabelioas, implorando os santos da devoção dos testadores, ou
de seu anjo da guarda, de todos os santos da corte celeste, da Virgem
40 Washington Luís
algumas das quais tiradas de autos que já não existiam ao tempo da pu-
blicação feita por Alves de Sousa.
Não pretendem elas resolver questões, mas concorrer para as
respectivas soluções.
Revendo, e de novo estudando-as, e agora em face de fartas e no-
vas publicações e de novos e alheios estudos, mais se me fixou o meu modo
de pensar sobre alguns pontos, não obstante ser por vezes contrário às bri-
lhantes e sedutoras deduções que outros conscienciosamente têm feito.
Na matéria intelectual é pela divergência que se caminha para
a verdade.
Quase tudo que aqui vai escrito é, entretanto, conhecido, ou
melhor, é sabido, conforme o temperamento de cada um, de todos que têm
estudado os primeiros tempos coloniais. Mas muitas pessoas, que se inte-
ressam pelo nosso passado, sem procurar as fontes autênticas, repetem
ainda coisas lidas, em antigos cronistas, dignos aliás de respeito pela sua
boa-fé, mas que não são verdadeiras. Julguei, pois, útil, e até necessário, in-
dicar, para cada retificação, a fonte da verdade, ou que, pelo menos, me
pareceu a verdade, criticando tanto quanto possível as deduções, por mais
engenhosas que elas se apresentassem.
A citação das fontes, com indicação das páginas e com os no-
mes dos lugares ou autores, obrigará e facilitará a procura e o exame
para aceitação ou refutação encaminhando-nos para a verdade, que é o
que todos procuramos.
Por essa razão faço as reflexões, que em seguida se lerão, e que
pouco valor têm, eu o sei de sobra, mas que despertarão em alguns o nobre
desejo de estudá-las e em outros o de criticá-las, certamente com procedência.
Ainda nesta última hipótese, serão elas úteis, porque a crítica
justa servirá para fundada emenda, sempre com proveito para São Paulo, e
a desarrazoada por si mesma se destrói.
Todos os comentários citados, na sua maior parte, são, pois,
referentes a fatos constantes nas Atas e no Registro Geral da Câmara
da vila de São Paulo, e também nos Inventários e Testamentos,
do Arquivo Público Estadual, todos publicados em mais de 50 volumes,
44 Washington Luís
que podem ser facilmente verificados. Por essa razão, para os fatos gerais e
repetidos não posso citar sempre os volumes e as páginas em que eles se
encontram, porque estão em muitos; mas para os particulares ou novos,
que se opõem às versões até agora aceitas, é feita a citação do volume e da
página donde foram extraídos, logo em seguida à exposição.
O que vai aqui escrito parecerá sem valor, e insuficiente é, visto
como muitos aspectos da colônia não são examinados. Mas como o meu
propósito foi trazer para o estudo da História a contribuição fornecida pe-
los documentos locais relativos principalmente à constituição territorial do
Brasil, a ela me limitei, tomando o auxílio, entretanto, do estudo de auto-
res conceituados, desde que afilado por esses mesmos documentos locais.
Quando não pude fazer esse afilamento, cito sempre o autor
em que me baseei. Assim não há propriamente deficiência do estudo, mas
principalmente falta nos arquivos investigados.
Apesar das honestas e exaustivas investigações sobre as “entra-
das ao sertão”, até agora feitas, ainda não se escreveu sobre elas a pa-
lavra definitiva.
Eu poderia ter feito um estudo proveitoso para a História da
Capitania de S. Vicente e da Capitania de S. Paulo, até a Inde-
pendência, útil, portanto, para a História do Brasil.
Não foi possível. Faço, porém, publicar estes comentários e es-
tas informações pela mesma razão, agora em 1956, e com o mesmo intuito,
com os quais fiz publicar as Atas das Câmaras, em 1914, e os
Inventários e Testamentos, em 1920. Este meu trabalho não é ainda
obra de historiador. O que se vai ler é auxílio para o trabalho do futuro
historiador. É, pois, estudo incompleto.
É aqui apenas fornecido material para construção do edifício
final, na parte relativa à Capitania de S. Vicente.
Nas próprias construções de arquitetura, não se enfadam os
mestres em examinar os tijolos e a madeira, ainda tosca, para adotar
uns e desprezar outros.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Capítulo I
D. JOÃO III
América, nem nenhuma tradição ficou nesse sentido, que fosse citada
2
pelos seus benévolos apologistas.
Hans Staden se refere a uma casa feita pelos irmãos Bragas e em
seguida narra que os mamelucos e os moradores de S. Vicente determi-
naram edificar outra ao pé d’água e bem defronte de Bertioga e aí colocar
canhões e gente para impedir o ataque dos selvagens. Não a tinham acaba-
do e o contrataram para lá ficar, porque souberam que ele entendia de arti-
lharia (Hans Staden, Edição do Centenário (1900), pág. 40).
Nos fins de 1552 ou princípios de 1553, no tempo em que
Tomé de Sousa foi a S. Vicente, parece que na ilha de Santo Amaro, de-
fronte do canal da Bertioga, se fez a tal casa forte, onde Hans Staden ficou
com um escravo carijó, tendo sido então colocados aí uns canhões. Nessa
ocasião Hans Staden recebeu de Tomé de Sousa a nomeação de artilhei-
ro, segundo se vê na Edição do Centenário (1900 – pág. 41) ou de arcabu-
zeiro conforme a versão de Alencar Araripe (R. I. H. G. B. vol. 55, lª
parte, pág. 286).
Tomé de Sousa, na sua carta de 1º de Junho de 1553 a D. João
III, conta que, quando esteve em S. Vicente, fez na Bertioga, para defesa
contra índios, a custa do trabalho dos moradores, sem nada custar à co-
roa, qualquer coisa que pareceu bem a todos, mas não diz o que foi
(História da Colonização Portuguesa no Brasil, vol. 3º, pág. 365).
Como quer que seja, a obra feita foi tão insignificante e tão
mal segura, que os tamoios aí vieram, aprisionaram o improvisado arti-
lheiro e o carregaram para as suas choças em Ubatuba (Edição do Cente-
nário, pág. 44).
Pode-se, pois, dizer, sem exageração, que o rei jamais, pelo
menos para a capitania de S. Vicente, o rei jamais mandou uma guarni-
ção para as casas fortes levantadas pelos moradores. Nada fizeram os
donatários, que aliás nada ou pouco possuíam. Nenhum donatário de S.
Vicente veio a sua capitania ver o que ela valia ou o que ela precisava
para poder prosperar. Todos limitaram-se somente a nomear loco-te-
nentes, que os substituíssem. Esses loco-tenentes, pobríssimos habitan-
tes de uma capitania sem recurso algum, tolhidos pelos alvarás régios,
Livro 3º, Tít. 75, § 1º “o rei é a lei animada sobre a terra e pode fazer a
lei e revogá-la quando vir que convém fazer-se assim”.
Cumpre-nos lembrar, diz também Ribas (Direito Civil, vol. 1º,
pág. 108) que outrora todo o poder político, ou o poder absoluto, residia
no monarca, que se considerava como lei animada na terra.
“Qualquer que fosse a forma de seus atos, eles tinham em geral
a necessária eficácia para alterar o direito, tanto quanto depende do poder
humano, uma vez que fosse essa a soberana vontade”. “O monarca ficava
sempre superior à lei, salvo se espontaneamente quisesse submeter-se-lhe.
Porque nenhuma lei, por o Rei feita, o obriga, senão quando ele fundado
em razão e igualdade, quiser a ela submeter seu real poder (Ord. L. 2. Tít.
35, § 21) “porque o Rei é lei animada sobre a terra, e pode fazer a lei e re-
vogá-la, quando vir que convém fazer-se assim”. (Ord. 1 3º, Tít. 75 § 1º).
Era a regra do tempo, em toda a parte do mundo.
É justo reconhecer, porém, que, nessa época, a da chamada
colonização americana, as nações mais ricas e mais poderosas não fize-
ram mais nem melhor que o Portugal desse tempo.
D. João III fez e desfez como melhor entendeu ou como me-
lhor pôde, sobre a organização do Brasil, para não perder o achamento
de Cabral, e para achar minas.
Foi nas condições e circunstâncias, aqui resumidamente des-
critas, que intentou a ocupação da costa americana.
A princípio, por mais cômodo e menos dispendioso, como já se
disse, dividiu o Brasil em capitanias hereditárias, e delas fez doações a alguns
de seus vassalos, para que nelas estabelecessem a posse efetiva do rei de
Portugal. Mais tarde instituiu um Governo-Geral nos seus domínios.
Vamos ver quais foram os resultados dos dois sistemas.
Mandou, porém, preliminarmente explorar toda a costa do
Brasil, por uma esquadra, cujo comando foi confiado a Martin Afonso de
Sousa. Antes em 1526, já a tinha feito percorrer por Cristóvão Jaques.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Capítulo II
A EXPEDIÇÃO DE MARTIM AFONSO DE SOUSA
2 Frei Luís de Sousa fala em 7 navios; mas parece que relatando a expedição,
muitos anos depois, inclui nela navios francesses apresados. Eugênio de Castro
(vol. 1º, págs. 31 e 32) informa que foram 5: a nau Capitânea de 150 toneladas, nau
S. Miguel de 125 toneladas, galeão São Vicente de 125 toneladas e duas caravelas
Rosa e Princeza.
3 Jordão de Freitas, no seu trabalho na História da Colonização Portuguesa no Brasil, alude,
em referências, a um Regimento dado a Martim Afonso de Sousa. Ainda não foi
publicado tal regimento.
Na Capitania de São Vicente 59
5 Emprazar, quanto à jurisdição, significava citar alguém para que, em dia e lugar,
comparecesse perante juiz de maior alçada a dar a razão das queixas, crimes ou
capítulos de que fosse acusado. (Viterbo, Elucidário, verbo Emprazar).
Na Capitania de São Vicente 63
esse “emprazamento” dos fidalgos lhe era retirado, no fim da carta régia,
numa espécie de adendo, em que expressamente se declarava
“no que toca a emprazamento dos fidalgos que em cima hei decla-
rado, por alguns justos respeitos, hei por bem que o dito Martim Afonso
os não empraze e quando fizerem tais casos por onde mereçam pena algu-
ma crime, ele os prenderá e m’os enviará presos com os autos de suas
culpas para se nisso fazer o que for de justiça.”
Ordenava ao capitão-mor da armada “que meta nas terras pa-
drões e em seu nome tome delas (posse), que não é um poder mas uma
ordem.
Autorizava mais se o
“dito Martim Afonso “em pessoa” for a algumas partes ele deixa-
rá nas ditas terras, que assim descobrir, por capitão-mor e governador em
seu nome a pessoa que lhe parecer que o melhor fará ao qual deixará por
seu assinado os poderes de que ha de usar, que serão todos aqueles ou
aquela parte destes nesta minha carta declarados.”
Aí não é Martim Afonso nomeado governador, apenas autori-
zado a deixar por capitão-mor e governador uma pessoa competente,
nas terras que ele Martim Afonso descobrisse, os quais teriam todos ou
parte dos poderes declarados na Carta Régia, e que já foram aqui anali-
sados. Por onde se vê que ele não poderia dar mais do que o que tinha
recebido.
Nessa primeira carta régia, e que é a dos grandes poderes ou-
torgados a Martim Afonso de Sousa por D. João III, encontram-se ex-
pressos os poderes concedidos ao comandante da esquadra exploradora
e ao capitão-mor “das terras que descobrisse nas terras do brasil“, sendo
de notar que alguns desses poderes foram restringidos e outros até
suprimidos no fim do documento que se analisa.
Todas as mais palavras aí escritas:
“porque para isso lhe dou especial e todo o cumprido poder como
para todo ser firme e valioso requererem e se para mais firmeza de cada
uma das cousas sobreditas (sic) e serem mais firme e se cumprirem com
efeito e necessário de feito ou de direito nesta minha carta de poder irem
declaradas alguma clausula ou clausulas mais especial e exuberantes eu
64 Washington Luís
6 Carta que se acha transcrita na História Genealógica da Casa Real, por D. Antônio
Caetano de Sousa.
66 Washington Luís
8 O episódio da ida de Tibiriçá desde o planalto até S. Vicente com 500 sagitários,
tendo à frente João Ramalho, não encontra fundamento nos documentos que
consultei; antes é contrariado por já haver nessa época moradores em S. Vicente.
Já Aires do Casal havia feito essa observação, na sua Corografia Brasileira.
Na Capitania de São Vicente 69
9 Vide Sumária Descrição dos Serviços de Martim Afonso, que se conserva na Biblioteca de
Coimbra, publicada por Eugênio de Castro.
70 Washington Luís
Capítulo III
CAPITANIAS HEREDITÁRIAS
***
sertão e terra firme não poderia criar senão tendo seis léguas de termo
para cada uma delas, e depois destas criadas não poderia fazer outras
sem licença do rei” (Notar a data deste poder).
4º – arrecadar para si todas as rendas das alcaidarias-mores
que fossem criadas.
5º – possuir exclusivamente todas as moendas de águas mari-
nhas de sal, e só a ele cabendo dar licença para fazer tais moendas, con-
certando os foros e tributos, que lhe pertenceriam.
6º – concessão de vinte léguas ao longo da costa, livres e isentas
de quaisquer direitos ou tributos, porém separadas em quatro ou cinco
partes onde as escolhesse.
7º – permissão para mandar para Lisboa, dos escravos que
resgatasse, 48 peças anuais, livres de direitos.
Regulava ainda a ordem de sucessão na capitania, as armas
que deveria ter o donatário e estabelecia o nome Sousa que deveria usar
o donatário; e mais que a capitania não podia ser despedaçada, ou sepa-
rada, conservando-se sempre íntegra, estabelecendo que nela não poderia
entrar em tempo algum corregedor, nem alçada, nem outras justiças,
ainda que as ordenações fossem contrárias e ficando suspensa a lei men-
tal, e tudo isso para todo o sempre.
As outras cláusulas são pouco mais que desenvolvimentos lon-
guíssimos das concessões já feitas no Foral, nelas estabelecendo penas.
As repetições “para todo o sempre”, “derrogação das ordenações”,
“suspensão da lei mental”, pouco valor tinham, corria tudo o mais, pois que
poderiam ser revogadas a qualquer tempo, visto como ao rei absoluto, que fazia a
lei, cabia revogá-la quando assim julgasse que convinha assim fazer.
Apesar das informações colhidas por Martim Afonso de Sousa
a geografia da costa do Brasil ficara ainda tão mal conhecida, que D.
João III, querendo dar as maiores porções aos irmãos Sousa, como ele
anunciara, deu-lhes bem menor superfície de terras no Brasil, do que
aos outros donatários.
É fácil de verificar.
As capitanias doadas constavam de 50 léguas de frente nas
costas do mar e com os fundos até onde chegassem as chamadas con-
quistas de Portugal no Brasil.
80 Washington Luís
Nada diz ele sobre S. Vicente nem mesmo se refere ao nome dessa
capitania2 que já lhe pertencia ao tempo da apresentação do memorial.
3 Jordão de Freitas diz que foi esse contrato feito em 1534. Martim Afonso só
recebeu o Foral a 6 de outubro de 1534 e a carta de doação em 20 de janeiro de
1535. (H. C. Port. no Brasil, Vol. 3º), mas cita Frei Gaspar da Madre de Deus,
como fonte de informação.
Na Capitania de São Vicente 89
4 Eis na íntegra a Provisão de D. Ana Pimentel: “D. Ana Pimentel, mulher de Martim
Afonso de Sousa, capitão-mor e Governador da povoaçam da Capitania de S. Vicente, Costa do
Brasil, que ora por seu especial mandado, e provisam governo a dita capitania etc. Aos que este
meu Alvara virem e o conhecimento pertencer, faço saber, que eu hei por bem, e me apraz, que todos
os moradores da dita capitania de S. Vicente possam hir, e mandar resgatar ao campo, e a todas
as outras cousas, e porem mando que no tempo que os Indios do dito campo andam em sua
santidade, nenhuma pessoa de qualquer qualidade que seja, possa hir, nem mandar ao dito campo,
por ser informada, que he grande perigo para a dita terra hirem laa em tal tempo, e tirando este
tempo, todo o outro mandaram, e hiram, com tanto que sempre tomem licença do Capitão, ou de
quem o tal cargo tiver; e nenhum Capitam, nem Ouvidor lhe não poderaa tolher, não sendo no
tempo que se diz em cima, assim mando a todas as justiças, que guardem este, e o façam guardar,
porque assim o hei por bem. Feito em Lisboa a 11 de Fevereiro de 1544.” (Transcrita das
Memórias para a História da Capitania de S. Vicente, por Fr. Gaspar da Madre de Deus,
nº 116, na Ed. de 1797, citando o Arquivo de São Vicente).
90 Washington Luís
A defesa do Rio de Janeiro foi feita pelo rei por intermédio do Gover-
nador-Geral Mem de Sá.
Martim Afonso de Sousa “veio e viu que não havia o que
vencer”. Militar, Capitão-mor de esquadra, fidalgo ambicioso, entendeu
que não podia ficar a conquistar indígenas boçais ou a povoar terras que
não tinham ouro, prata e pedras preciosas.
Partiu para as Índias Orientais e nunca mais se preocupou
com a Capitania de S. Vicente.
Lá, na Ásia, serviu como capitão do mar de 1534 a 1539, vol-
tou à Europa e foi promovido a Governador da Índia de 1545 a 1546, e
depois na Europa de novo se conservou na corte de Portugal, tendo
falecido em 1570.
Pode-se pois, afirmar, sem exageração que o seu único ato re-
lativo à capitania de S. Vicente foi o de ter passado procuração à sua
mulher, D. Ana Pimentel, para administração de seus bens, e isto mesmo
antes de receber a capitania, ato bem precário na verdade com o qual ela
se limitou, quase que exclusivamente, a fazer nomeações de capi-
tães-loco-tenentes, sem nenhuma intervenção ativa ou proveitosa na co-
lônia americana.
O estado a que chegaram essas capitanias hereditárias foi deplo-
rável; miserável era também o estado dos indígenas, bem como o dos
poucos portugueses que habitavam a costa do Brasil.
Dando conta ao rei de sua inspeção nas capitanias, em 1550,
pouco depois da sua chegada, Pero Borges, primeiro ouvidor do Brasil,
escreveu que “os capitães-mores-loco-tenentes faziam juízes a homens
que não sabiam ler nem escrever, e davam sentenças sem ordem nem
justiça, cuja execução causava a maior desordem”. Não havia nas capita-
nias homens para “serem juízes nem vereadores, e neste ofício metiam
5
degradados por culpa de muitas infâmias, e desorelhados e faziam mui-
tas coisas fora do vosso serviço e de razão” (Carta de 7 de fevereiro de
1550, Hist. da Col. Port. no Brasil, V. 3º, pág. 268). Esse tópico é suficiente
para mostrar o que eram, em 1550 a justiça e a administração locais.
Não é necessário transcrever os demais que dão a mesma impressão.
Capítulo IV
A CRIAÇÃO DAS VILAS DE
SÃO VICENTE E DE PIRATININGA
estava muita gente chamada tupi, em companhia dos cristãos, mas co-
medora de carne humana” (R. I. H. G. B., vol. 15 pág. 9).
Tornando do atual rio da Prata, em 1530 – dois anos antes de
Martim Afonso – Sebastião Caboto ancorou defronte da ilha de S.
Vicente, e aí permaneceu mais de mês. Num de seus navios estava o
cosmógrafo Alonso de Santa Cruz, que escreveu:
“Dentro do Porto de S. Vicente há duas ilhas grandes, habitadas por
índios e, na mais oriental, na parte ocidental, estivemos mais de mês. Na
ilha ocidental tem os portugueses um povoado chamado “S. Vicente” de dez
ou doze casas, uma feita de pedra com seus telhados, e uma torre para defesa
contra os índios em tempo de necessidade. Estão providos de coisas da terra,
de galinhas de Espanha e de porcos, com muita abundância de hortaliça.
Tem essas ilhas uma ilhota entre ambas de que se servem para criar porcos.
Há grandes pescarias de bons pescados. Estão essas ilhas orientadas N. O.
S. E. com dez léguas de comprimento e quatro de largura” (Islário de
Alonso de Santa Cruz, Ed. de F. E. von Wieser, pág. 56).
A Informação do Brasil em 1584 (R.I.H.G.B. Vol. 6º, pág. 417),
também afirma que Martim Afonso já aí achou moradores.
Hans Staden, segundo se depreende da narração de sua Via-
gem e Cativeiro entre os Indígenas, 2 chegou a S. Vicente pelos anos de 1551.
Diz ele que cerca de dois anos antes da sua chegada, talvez por 1549, os
irmãos Braga haviam construído na Bertioga uma Casa Forte, para defesa
contra os índios tupinambás que, nesse lugar, sempre os vinham atacar.
Construir e defender uma Casa Forte, embora rudimentar, contra ata-
que de índios cruéis e carniceiros, não é brinquedo de criança, mas obra
de gente grande. Assim os irmãos Braga, que eram cinco, já deviam ser
homens feitos a esse tempo. Hans Staden não lhes dá as idades, mas
menciona-lhes os nomes: João, Diogo, Domingos, Francisco e André,
todos filhos de um português – Diogo Braga – com uma índia da terra,
por conseguinte, mestiços, mamelucos como ele os chama, mas já cris-
tãos e tão bem versados na língua dos portugueses como dos selvagens
(Hans Staden, Edição do Centenário, pág. 39).
derá, que poderão fazer todas las Vilas, que quiseram das povoações,
que estiverem ao longo da costa da dita terra, e dos rios que se navega-
rem, para que por dentro da terra firme pelo sertão as não poderão fazer
com menos espaço de seis léguas de uma a outra para que possam ficar
ao menos três léguas de terras de termo a cada uma das ditas Vilas, e ao
tempo que assim fizerem as ditas vilas, ou cada uma delas, lhe limitarão e
assinarão logo termo para elas, e depois não poderão da terra, que assim
tiverem dada por termo fazer outra vila, sem minha licença (Documen-
tos Históricos da Biblioteca Nacional, vol. 13, pág. 140).
Esta carta de doação está também publicada na R.I.H.G.B. vol.
9, pág. 459, na História da Capitania de S. Vicente, por Pedro Taques e no
Registro-Geral da Câmara da Vila de São Paulo. Vol. 1º, pág. 397 e
seguintes).
Só depois dessa doação, só depois da delegação desse poder
pelo rei absoluto, poderia Martim Afonso instituir vilas nas suas terras, e
assim mesmo com restrições expressas, porque só as poderia fazer nas
povoações da costa oceânica ou nas margens dos rios navegáveis, não
podendo criar no sertão a menos de seis léguas umas das outras, e, uma
vez fundadas, só com licença régia poderiam ser estabelecidas outras
nos termos (territórios) das já existentes.
Essa carta de doação habilita a distinguir perfeitamente o que
era vila e o que era povoação. As vilas deveriam ter termo, com seis lé-
guas de distância uma da outra, teriam jurisdição, liberdades e insígnias,
segundo os foros e costumes dos reinos de Portugal.
As povoações eram quaisquer lugares habitados, sem nenhu-
ma jurisdição administrativa ou judiciária.
Foi sempre esse o conceito jurídico de vila, em todos os tem-
pos. “Vila, povoação de menor graduação que cidade superior a aldeia,
tem juiz, câmaras, pelourinho” (Pereira e Sousa, Dicionário Jurídico, verbo
vila), era já uma parte da administração e da justiça local, emanada do
poder real (do rei absoluto) e só a este cabia criar ou autorizar a criar.
A palavra povoação não significava vila; nem povoar significava
fazer vila. Os próprios primeiros habitantes da colônia se diziam con-
quistadores e povoadores, o que se verifica nos livros da Câmara de São
Paulo, e daí não se pode concluir que eles fossem criadores de vilas.
Na Capitania de São Vicente 99
***
tuada; o rio Piratininga jamais foi identificado, e com esse nome talvez
não tivesse existido rio algum.
Piratininga (nenhuma etimologia satisfatória para essa palavra),
era uma região situada no planalto. A Câmara da Vila de S. Paulo, que às
vezes se denominava “S. Paulo do Campo”, “S. Paulo de Piratininga”,
“S. Paulo do Campo de Piratininga”, concedeu datas de terras em “Pira-
tininga, termo desta vila” no “caminho de Piratininga”, “indo para Pira-
tininga”, “no caminho que desta vila vai para Piratininga” etc. (Atas da
Câmara de S. Paulo, vol. 3.º, pág. 168, Registro Geral, vol. 1.º, págs. 10,
72, 88, 98, 100, 108, 129, 283).
“Índios de Piratininga”, qualificam as sesmarias de terras con-
cedidas aos índios de Pinheiros e aos de S. Miguel de Ururaí, por Jerônimo
Leitão em 12 de outubro de 1580 (Reg. Geral, vol. 1º, pág. 354), o que
não deixa a menor dúvida que Piratininga estendia-se desde Carapicuíba,
incluindo Pinheiros, até Ururaí. Piratininga era, pois, uma vasta região
do campo vagamente indicada no planalto.
É por isso que, em Piratininga, sem que se fizesse menção da
qualidade de vila, como era de uso nesses documentos, foi concedida à
sesmaria de Pero de Góis, sendo a respectiva posse dada alguns dias de-
pois na ilha de S. Vicente. Martim Afonso teria nessa ocasião chegado
até a morada, a povoação de João Ramalho, pela vereda de índios que,
então, ligava o planalto ao litoral. Aí nessa zona, nos campos de Pirati-
ninga, vizinhos da sesmaria de Ururaí, por Jaguaporecuba, não se sabe
bem onde, já afeiçoado aos costumes da terra, João Ramalho vivia mari-
talmente com filhas de morubixabas, tendo numerosa descendência e
dispondo de grande influência sobre Tibiriçá e outros.
Martim Afonso, quando de S. Vicente subiu ao Planalto, reco-
nheceu talvez que a povoação de João Ramalho constituiria um posto
avançado de importância no caminho, que por ela passava, trilhado pelos
índios, e que ia até o Paraguai, onde se imaginavam situadas as fabulosas
minas que ele procurava, pelo sertão adentro, desde o Rio de Janeiro e
de Cananéia. Por esse caminho transitaria mais tarde Ulrico Schmidt.
Foi a pretensa vila a que se referiu a complacência de Pero
Lopes, foi o lugar que Martim Afonso primeiro povoou segundo se es-
creveu mais tarde.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Capítulo V
O GOVERNO-GERAL NO BRASIL. TOMÉ DE
SOUSA, PRIMEIRO GOVERNADOR-GERAL.
SEUS MEIOS E SEUS RESULTADOS
ainda absorvido com a Índia e com a África, fazer grande e completa tal
obra. Mas, segundo textualmente a Tomé de Sousa na Carta de nomea-
ção a 7 de janeiro de 1549, D. João III faz saber:
...porquanto é serviço de Deus e meu conservar e enobrecer as capi-
tanias e povoações que tenho nas minhas terras do Brasil ordenei ora de
mandar fazer uma fortaleza e povoação grande e forte na Bahia de To-
dos os Santos por ser para isso o mais conveniente lugar que ha nas ditas
Terras do Brasil, para dali se dar favor e ajuda às outras povoações e se
ministrar justiça e prover nas cousas que cumprem ao meu serviço e nos
negócios de minha fazenda e bem das partes... “e a Tomé de Sousa hei
por bem e me praz de fazer mercê dos cargos de capitão da povoação e
terras da dita Bahia de Todos os Santos e governador geral da dita capi-
tania e das outras capitanias e terras da costa do dito Brasil. 1
Tomé de Sousa foi, pois, nomeado Capitão da povoação da
Bahia e governador geral da dita capitania e das outras capitanias e, em
uma armada, composta de cinco naus, duas caravelas e um bergantim,
partiu de Lisboa a 1º de fevereiro de 1549, e sem incidentes e com ven-
tos prósperos, aportou à Bahia em 29 de março de 1549.
Nessa esquadra, além da marinhagem, da guarnição militar,
vieram oficiais-mecânicos tais como pedreiros, carpinteiros, pintores, te-
lheiros, fazedores de cal, serventes etc., os operários, enfim, necessários
para edificação de uma povoação. Vieram também cirurgião, boticário, e
mais um Provedor da Fazenda Real – o Fisco – Antônio Cardoso de
Barros, antigo donatário do Ceará, e seus escrivães, o ouvidor Pero Bor-
ges com seus escrivães – a Justiça – e um capitão do mar, Pero de Góis,
antigo donatário da Paraíba do Sul. Tudo garantido com pequena força
militar de terra e de mar. Vieram também seis jesuítas, os Padres Manuel
da Nóbrega, Aspicuelta Navarro, Leonardo Nunes, Antônio Pires e os
irmãos Diogo Jacome e Vicente Pires – a catequese. Vieram mais tam-
bém 600 degradados, condenados por crimes, que não fossem de moe-
da falsa, traição, sodomia e heresia.
Como nada havia no Brasil, bruto e selvagem, a esquadra
trouxe o indispensável para fundação, construção, defesa, cuidado e civi-
1 Vide Memórias Históricas da Bahia, por Acioly e Braz do Amaral, vol. 1º, pág. 261.
Na Capitania de São Vicente 105
Capítulo VI
A CRIAÇÃO DAS VILAS DE SANTOS,
ITANHAÉM E SANTO ANDRÉ
Vicente não tinha tão bom porto; e a de Santos, que está a uma légua
da de S.Vicente, tem o melhor porto que se pode ver, e todas as naus do
mundo poderão estar nele com os proizes dentro em terra. Esta ilha me
parece pequena para duas vilas, parecia-me bem ser uma só e toda a ilha
ser termo dela. Verdade é que a vila de São Vicente diz que foi a primei-
ra que se fez nesta costa, e diz verdade, e tem uma igreja muito honrada
e honradas casas de pedra e cal e com um colégio dos irmãos de jesus.
Santos precedeu-a em porto e em sítio que são duas grandes qualidades e
nela está já a alfandega de V. A. Ordenará V. A. nisto o que lhe pa-
recer bem que eu houve medo de desfazer uma vila a Martim Afonso,
ainda que lhe acrescentei tres, s. (isto é) a Bertioga, que me V. A. man-
dou fazer, que está a cinco leguas de S. Vicente na boca (dum) rio por
onde os indios lhe faziam muito mal; eu a tinha já mandado fazer de
maneira que tinha escrito a V. A., sem custar nada senão o trabalho
dos moradores; mas agora que a vi com os olhos e as cartas de V. A. a
ordenei e acrescentei doutra maneira que pareceu a todos bem, segundo
V. A. verá por este debuxo; e ordenei outra vila no começo do campo
desta vila de S. Vicente de moradores que estavam espalhados por ele e
os fiz cercar e ajuntar para se poderem aproveitar todas as povoações des-
te campo e se chama vila de Santo-André porque onde a situei estava
uma ermida deste apostolo e fiz capitão dela a João Ramalho, natural do
termo de Coimbra, que Martim Afonso já achou nesta terra quando cá
veio. Tem tantos filhos e netos bisnetos e descendentes dele e não ouso de
dizer a V. A., não tem cãs na cabeça nem no rosto e anda nove leguas a
pé antes de jantar e ordenei outra vila na borda deste campo ao longo do
mar que se chama da Conceição, de outros moradores, que estavam der-
ramados por o dito campo e os ajuntei e fiz cercar e viver em ordem e
alem destas duas povoações serem mais necessárias para o bem comum
desta capitania folguei o fazer”...
Nesta carta-relatório, algo minuciosa, Tomé de Sousa mencio-
nou as duas vilas já existentes em 1553 na Capitania de S. Vicente, “San-
tos” e “S. Vicente”, insinuou a extinção desta última e comunicou o
acrescentamento, que fez, de mais três outras – Bertioga, Conceição e
Santo André –; mas nenhuma referência fez à vila, que dizem fundada
por Martim Afonso de Sousa, em 1532, a 9 léguas pelo sertão. Ao con-
trário notou que os moradores estavam espalhados pelo campo e que
Na Capitania de São Vicente 109
Está aí expresso que povoação não era vila, pois que para for-
mar uma vila fez ele ajuntar todas as povoações do campo.
A informação enviada a D. João III é categórica e circunstan-
ciada, designando o lugar em que ele fundou a vila, dando a razão do
nome e indicando o motivo da criação.
Por outro lado, Manuel da Nóbrega, em 1554, diz em carta
dirigida a D. João III:
“Está principiada uma casa na povoação de S. Vicente onde se
recolheram alguns orphãos da terra e filhos do Gentio; e do mar dez
léguas, pouco mais ou menos duas léguas de uma povoação de João Ra-
malho, que se chama Piratinin onde Martin Afonso de Sousa primeiro
povoou, ajuntamos todos os que Nosso Senhor quer trazer à sua Egreja,
e aqueles que sua palavra e Evangelho engendram pela pregação, e estes
de todo deixam seus costumes e se vão extremando dos outros e muita es-
perança temos de serem verdadeiros filhos da Egreja e vai-se formando
formosa povoação e os filhos destes são os que se doutrinam no colégio de
S. Vicente”. 3
6 No tempo de Varnhagen ainda existia qualquer coisa a esse respeito e disso dá ele
conta em uma carta ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, lida na sessão
de 14 de novembro de 1840 (V. 2º da Rev. desse Instituto, pág. 529 a 531) na qual
se encontra o seguinte período: No Arquivo da Câmara (de S. Paulo) acham-se
livros bem antigos e cuja letra já pertence à Paleografia. Entre esses deve-se
contar o caderno que contém as vereanças da extinta Villa de Santo André nos
anos de 1555 a 1558”, “este livro de Santo André é rubricado em todas as suas
folhas por Antônio Cubas. Começa contendo, em fragmento, o fim do foral da
vila dado por Martim Afonso em Lisboa em 5 de abril de 1558”, por seu
representante “seguem as vereanças de 1562 a 1563”.
Há aí evidentemente um erro tipográfico ou de cópia, quanto ao último algarismo
da data quando é citada a de 5 de abril de 1558, fácil de produzir-se visto a
rudimentar e fantasiosa grafia dos escrivães quinhentistas e a semelhança dos
algarismos 3 e 8 em fragmentos finais de escritos estragadíssimos. É o próprio
Varnhagen quem afirma ter visto atas de “1555” a “1558”, e assim o foral dessa
vila não poderia ser expedido em 1558, pois que a Câmara já funcionava pelo
menos desde 1555, antes de 1558. Taques, que examinou esse livro ainda mais
conservado, leu 1553.
Na Capitania de São Vicente 115
7
res. Transcreve-se em seguida esse requerimento-protesto conservando
a sua áspera redação e a sua não menos áspera ortografia:
“Vosa merse não quer despachar nossa pauta e nos querer tomar
nossa jurdyção que nos lleixou ho sor tomé de Sousa, gdor., a quall foy
metydo de pose por ãoto. dollyveyra. capptão e Brás cuhas pr veador desta
capytanya cõ todas llyberdades cõforme ao regym.to e foralt (q’ue está
trelladado no lyvro da canuztra desta vylla) de sua alteza” “e vossa, ner-
se ho não querer despachar protestamos pr todas as perdas e danos e de-
nefyca.ções desta vylla e bës dórfãos q por falta de justiça se perderem por
vosa mer não prover cõ hos ofysios como aquy temos era costume... (Atas
da Câmara de Santo André, págs. 57, 58)”.
Em linguagem tosca, mas com dizer sólido e firme, a Câmara
de Santo André reclamou a jurisdição que Tomé de Sousa deixou, quer dizer
a sua criação, da qual fora metida de posse por Antônio de Oliveira e
Brás Cubas, isto é, a sua aclamação pelos representantes do donatário e
do rei. Reclamou ela os seus direitos e o Capitão-mor e ouvidor, Jorge
Ferreira, apressou-se em reconhecê-los, alimpando a pauta, apurando a
eleição feita pelos homens bons, pois que a 5 de fevereiro de 1557 (Atas
de Santo André, Fls. 58) foi, em Santo André, aberta tal pauta saindo
por Oficiais Simão Jorge, juiz, João Ramalho, vereador e Francisco
Pires, procurador do conselho.
E a Câmara de Santo André, criada por Tomé de Sousa, em
1553, aclamada em 8 de abril desse ano por provisão de Antônio
d’Oliveira, Capitão-mor em nome do donatário, e com a presença de
Brás Cubas, provedor da fazenda real, funcionou no lugar, em que a si-
tuou o primeiro Governador Geral do Brasil, até 1560.
Tomé de Sousa, que, nos seus relatórios ao rei, não usava de
eufemismos e inequivocamente dava os verdadeiros nomes às coisas que
Capítulo VII
OS JESUÍTAS
A
1540.
COMPANHIA de Jesus estabelecida em Roma por
poucos, mas ardorosos membros, foi aprovada pelo Papa Paulo III em
Tudo isso foi mais tarde; e mais tarde serão estudados esses episódios,
na segunda parte deste ensaio, fazendo concorrência aos colonos.
Na luta em prol dos preceitos católicos e dos sentimentos
cristãos, civilizadores, a que se dedicaram nos primeiros tempos, de-
monstraram todos os padres e irmãos um valor que chegou à temerida-
de, uma abnegação ardorosa que foi ao sacrifício. A obediência aos seus
superiores foi completa, e tão completa que chegava à submissão, foi
tão completa que não tinham vontade própria, só executando a vontade
de cima, na qual reconheciam o saber e a bondade, sem refletir e sem
discutir, mesmo quando aparentemente essa vontade superior fosse
contrária aos princípios que já lhes tinham sido pregados.
O seu viver foi puro.
A castidade foi tão observada que jamais ficou provada a sua
quebra, não obstante as lutas sem tréguas sustentadas com os colonos e
as facilidades de um meio selvagem e corrompido, em que dominavam
o desconhecimento crasso e o desprezo impune das normas da moral.
Catequizaram índios boçais, bravios e doutrinaram europeus aventurei-
ros e audazes, que já se haviam habituado aos costumes soltos dos ser-
tões índios e cruéis. Esses princípios, esses deveres foram observados de
tal forma que transformaram a muitos dos primeiros jesuítas em após-
tolos, fazendo de alguns verdadeiros mártires e a outros aproximan-
do-os de santos.
Alguns dos jesuítas e irmãos, que primeiro vieram ao Brasil,
foram simples de espírito, cândidos de coração, com fé ardente e fervo-
rosa.
No Brasil a idéia dominante era salvar almas, desprezando e
arriscando a própria vida.
Dois entre eles se destacaram altíssimos, como montanhas
resplandecentes em planícies férteis; foram Manuel da Nóbrega e José
de Anchieta. Se bem que iguais no fervor de sua fé, no devotamento em
espalhar os ensinamentos de Cristo, foram eles bem diferentes entre si.
Sem dotes físicos que impusessem, pois que Manuel da Nóbrega era
gago e Anchieta era quebrado das costas, ambos pela só presença se
faziam respeitar por todos.
126 Washington Luís
1 Serafim Leite. História da Companhia de Jesus no Brasil, vol. 1º, pág. 29. Nota.
Na Capitania de São Vicente 129
mais de feras bravias que de gente racional, ser gente servil que se quer
por medo” (Manuel da Nóbrega, Cartas, vol. 1º, pág. 174).
Sem abandonar a catequese nas selvas, os primeiros jesuítas
edificaram igrejas que, atraíam as mulheres, e passaram a criar escolas
onde ensinavam os meninos, considerando que, por meio delas e com
estes, chegariam a civilização dos outros, de todos.
Mas eles, os jesuítas, nos primeiros tempos, foram em pequeno
número e eram muito pobres; as suas escolas foram estreitas e as suas
igrejas mesquinhas, nas quais não poderia haver a pompa do culto cató-
lico que a todos impressiona, principalmente aos primitivos.
Mas os padres da Companhia não se limitaram só ao ensino, à
doutrina; eles também sangravam e davam remédios aos doentes, socor-
riam os que morriam no sertão, que era todo o Brasil daquele tempo,
porque a catequese cristã abrangia todas as manifestações da vida humana.
Também a sua ação não se circunscreveu aos silvícolas, quis
abranger, e abrangeu, também os colonos, os imigrantes, quer fossem
governantes, quer fossem governados. Sobre estes, além da doutrinação,
na ausência de vigários, nesses tempos em que todos os poderes se con-
fundiam, dispunham também de meios religiosos sobre atos da vida civil,
que só tinham validade e vigor, quando consagrados pela Igreja. Fora da
Igreja, no começo do século 16, em Portugal, não havia vida civil na ter-
ra nem salvação no céu. Eles batizavam, celebravam esse sacramento, que
fixava para o neófito o ingresso no cristianismo, mas que era também
um registro, que provava a entrada na vida civil, o nascimento, a maiori-
dade, e com esta a plena posse dos direitos individuais. Nos primeiros
tempos casavam, e sempre induziam severamente para o matrimônio,
celebrando um sacramento, mas que era ao mesmo tempo o registro
que provava a legalidade da família, a legitimidade dos filhos, instituindo
o regime dos bens, o pátrio poder; administravam a extrema unção, outro
sacramento, que, como o enterramento, era uma espécie de certidão de
óbito que provava a morte, dando origem à transmissão dos bens, das
heranças, da distribuição dos legados.
Eles dispunham da confissão, com a qual dirigiam as consciên-
cias, orientando todos os atos da vida, estabelecendo a penitência, que
abria às almas boas as portas para a felicidade eterna, e às más ou culpa-
Na Capitania de São Vicente 131
Capítulo VIII
A FUNDAÇÃO DE SÃO PAULO
e 10 de largura, feita de barro e coberta de palha, que serviu ao mesmo tempo de es-
cola, dormitório e refeitório, enfermaria e cozinha e despensa”, “separada da convi-
vência dos portugueses”.2
Procuraram os jesuítas reunir no planalto o gentio acolhedor,
fazer uma casa religiosa e construir uma igreja, distante, entretanto, da
povoação de João Ramalho. Por mais tosca e rudimentar que fosse a
casa, algum tempo demandaria a construção delas. Da mesma forma
por mais acolhedor que tivesse sido o gentio, volúvel e inconstante,
sempre seria necessário tempo para o reunir e induzi-lo a permanecer
em determinado lugar. É o próprio Padre Manuel da Nóbrega que ex-
põe o seu árduo trabalho, realizado no ano anterior de 1553, como se lê
na sua carta de 31 de agosto de 1553 (Serafim Leite, Páginas de História,
pág. 92) a fim de que com os demais padres e irmãos pudesse o Padre
Manuel de Paiva celebrar missa aí, onde já se achava Tibiriçá e sua gente,
no dia 25 de janeiro de 1554, dia consagrado à conversão de S. Paulo e
por isso a pequenina casa tomou o nome desse apóstolo.
Manuel da Nóbrega era o superior dos jesuítas em S. Vicente,
no Brasil; e, na ocasião dessa missa, José de Anchieta tinha 19 anos, 9
meses e 18 dias de idade3 e não era ainda sacerdote, sendo apenas irmão
da Companhia, tendo-se ordenado posteriormente na Bahia em 1566
(Charles Sainte Foy – Vida de José de Anchieta, págs. 1, 26, 52). Pela regra
da Companhia, cujo voto de obediência era rigoroso, só o superior, só
Manuel da Nóbrega, escolheria o lugar para a fundação da Igreja de S.
Paulo, e, pelas leis da Igreja, só um sacerdote poderia celebrar missa.
A missa de 25 de janeiro não poderia, pois, ser dita por
Anchieta, embora a ela estivesse presente, nem a igreja poderia ter sido
por ele fundada.
E, porque tal dia se escolheu para isso, “é Piratininga, como
acima se disse, se começou de ”propósito” a conversão do Brasil” (Inf.
do Brasil R.I.H.G.B., vol. 6º, pág. 430).
Santo André ficara situada à borda do campo, o que vale dizer
à borda da mata, isto é, onde acabava a mata, que cobre a encosta da
das ao sertão, com as leis e a autoridade portuguesa, para uma obra co-
letiva, da qual resultaria a formação do Brasil atual. Marcaria, portanto,
os centenários da casa de São Paulo.
Mas a missa intencionalmente celebrada pelo Padre Manuel
de Paiva a 25 de janeiro de 1554, entretanto, marca a reunião de todos
os elementos que iniciaram a formação territorial e a cristianização do
interior do Brasil7 como procurarei demonstrar.
Ainda hoje, é com missas votivas que católicos solenizam os
seus grandes acontecimentos; e, ainda hoje, até empresas industriais e
comerciais, dirigidas por católicos, pedem bênçãos para seus empreendi-
mentos em dias diferentes daqueles em que começaram os seus trabalhos.
A própria Igreja Católica comemora os seus maiores dias –
paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo – em dias que se mudam
anualmente, a que se chamam solenidades móveis.
O que se comemora é o fato e não o dia.
No evoluir de uma civilização não há separações nítidas que
marquem os seus faustos, como os valos e cercas indicam as divisas de
fazendas.
Os grandes acontecimentos da história não surgem, não se rea-
lizam num só dia. Assim, 7 de Setembro de 1822 consagra a nossa Inde-
pendência Política, como 14 de Julho de 1789 simboliza a Revolução
Francesa; mas a Independência e a Revolução não começaram e não se
terminaram nesses dias.
O que se deve comemorar em São Paulo, cuja capital conta
hoje mais de dois milhões de habitantes, e cujo território, depois de des-
membrado de vastíssimos territórios, hoje estados, possui ainda mais de
9 milhões de habitantes, concorrendo fortemente para a grandeza de
um país de mais de 8 milhões de quilômetros quadrados e com mais de
50 milhões de habitantes. Por conseqüência o que em São Paulo se deve
comemorar é a obra realizada no passado, é o seu progresso no presente
e a sua esperança no futuro. O dia exato em que todas as forças primitivas
7 Os padres do Brasil estavam sujeitos ao poder absoluto dos reis, que os subsidiavam,
poder exercido pelos governadores e donatários, que davam e negavam autorização
para entrada ao sertão, como se pode ver nas cartas jesuíticas.
142 Washington Luís
Capítulo IX
OS ÍNDIOS
não era provável tal espírito de vingança, pois que demonstraria a cons-
ciência de um mal feito, ou a fazer, em quem só agia por baixo instinto.
A vingança não os guiava; era por gosto e pela facilidade de
achar alimento, não tendo ainda chegado à domesticação de animais, e
comiam para não serem comidos.
Tal hábito, e inveterado, os colocava abaixo de alguns irracio-
nais, que não se alimentam da carne de seus semelhantes, pois que lobo
não come lobo, ainda que atormentados pela mais cruciante das fomes.
Narra Hans Staden que os tamoios, entre os quais viveu, par-
tiam em guerra na época em que o abati amadurecia, época em que se
preparava a bebida fermentada com que se embriagavam, para celebrar
os banquetes selvagens, em que o homem vencido era a principal e ape-
tecida iguaria. A esses encontros, a esses embates, os europeus que os
viram, chamaram guerras. Não eram, porém, guerras, ou melhor eram
guerras alimentares, verdadeiras caçadas de gente, feitas com o intuito
de se nutrirem. Ainda usavam a moqueação, que, por muito tempo, con-
servava pedaços humanos para as delícias de sua voracidade.
E eram as mulheres velhas as mais gulosas desse hediondo
acepipe, cabendo-lhes esfolar, destripar, cortar e repartir a vítima por
toda a tribo. Manuel da Nóbrega escreveu que eles engordavam, ceva-
vam o inimigo vencido para depois devorá-lo.
“Contava um padre da nossa Companhia grande língua brasí-
lica, narra Simão de Vasconcelos nas suas Crônicas, que penetrando uma
vez ao sertão, em certa aldeia, achou uma índia velhíssima, no último da
vida; catequizou-a naquele extremo, ensinou-lhe as coisas da fé e fez
cumpridamente seu ofício”. Depois perguntou-lhe o que então desejava.
“Respondeu a velha já catequizada: nada mais desejo, tudo já me aborre-
ce; só uma coisa me poderá abrir agora o fastio; se eu tivera a mãozinha
de um rapaz tapuia de pouca idade, tenrinha, e lhe chupara aqueles os-
sinhos, então me parece tomara algum talento; porém, eu (coitada de
mim) não tenho quem me vá frechar a um destes” (Simão de Vasconce-
los, Crônicas da Companhia de Jesus do Estado do Brasil. 2ª ed., Livro 1º, pág.
33, nº 49).
Nas guerras, que se faziam, eram corajosos tendo a vida em
pouco valor; mas eram também pérfidos empregando ciladas, para mais
facilmente se apoderarem do inimigo e depois o comerem.
Na Capitania de São Vicente 149
§ 3º, Cap. 17, na R. I. H. G. B., vol. 52, 2ª parte pág. 293). Mas, Anchieta
na carta aqui citada, informa que “isso foi lição dos franceses, costumei-
ros em semelhantes mortes, porque índio do Brasil tal fez, nem tal mor-
te deu” (Anchieta, Cartas vol. 3º, Pág. 449).
“Elas (as índias) mesmo se ofereciam nuas, a ninguém saben-
do se recusar, acometendo e importunando os homens, atirando-se com
eles nas redes” (Anais da Biblioteca Nacional, Carta de Anchieta, vol.
19, pág. 53).
Também ao inimigo vencido, que iam devorar, davam a filha
do Principal, ou qualquer outra que mais o contentasse, (Nóbrega, Cartas,
vol. 1º, pág. 90) para as noites que precediam a morte violenta. E, se
deste ajuntamento monstruoso, por acaso nascessem filhos, eles tam-
bém os devoravam e dessa comida participavam todos, avós, tios e as
próprias mães (Hist. da Prov. de Santa Cruz, por Gandavo – R. I. H. G. B.,
vol. 21., Cap. 12., pág. 383. Luís Ramires, R.I.H.G.B., vol. 15, pág. 17.
Hans Staden, Ed. do Centenário, págs. 147-8).
Não formavam nações, no sentido mais rudimentar da pala-
vra, nem entre eles existia a idéia remota de governo. Nenhuma autori-
dade reconheciam. Conservavam-se em bandos, como os caitetus bravios,
para defesa de seu agrupamento. Para todos os atos da vida, os mais
fortes, que sempre os há em todos os grupos, e o instinto do bando, que
sempre existe nos animais que vivem reunidos, arrastavam os outros.
Não havia, nesses agrupamentos, propriamente chefes, o que quer dizer
que não se podia contar com uma resolução solidária, a que muitos ou
alguns assentissem, e em seguida se guiasse para um fim qualquer.
Esses, os mais fortes, foram chamados morubixabas ou caciques pelos
conquistadores, que os encontraram ou trataram nos primeiros tempos.
Obedeciam só aos seus instintos ferozes.
Entre esses índios não havia rei ou chefe ou coisa equivalente;
a autoridade de uns sobre os outros, se alguma tivesse havido, fora
momentânea ou ocasional; “não são sujeitos a nenhum rei ou capitão só tem em
alguma conta os que alguma façanha fizeram, digna de homem valente, e por isso co-
mumente recalcitram porque não há quem os obrigue a obedecer, os filhos dão obe-
diência aos pais quando lhes parece, finalmente cada um é rei em sua casa, e vive
como quer”... (Cartas de José de Anchieta do quadrimestre do maio a
setembro de 1554 – Cartas Jesuíticas, vol. III, pág. 45).
Na Capitania de São Vicente 151
“que eles são tão brutos”, que trabalhou por tirar em sua língua as ora-
ções e algumas palavras, e não as encontrou” (Cartas do Brasil, vol. 1º,
pág. 73). “Era um papel em branco”, mas que consumiria séculos para
nele se escrever e mal”, (Cartas do Brasil, vol. 1º, pág. 94).
Não há dúvida que os índios já se comunicavam entre si por
meio da fala, já tinham uma linguagem; mas esta era pobríssima, e não
poderia deixar de ser, porque os seus conhecimentos eram menos que
rudimentares. Davam nomes a alguns animais, a alguns acidentes do ter-
reno; os rios eram conhecidos pelos animais neles encontrados; nomea-
vam alguns vegetais e designavam os atos costumeiros da vida material e
pouco mais.
“Nas raças primitivas, a linguagem repousa menos na articulação
do que na entonação e na modulação variada das próprias sílabas. Os
alfabetos primitivos contêm pequeno número de letras em que as con-
soantes são minoria (Dr. A. Marie, L’audiction Morbide, págs. 14 e 15).
Os indígenas do Brasil estavam nesse estado primitivo. Os
sons, que eles emitiam, eram na maior parte guturais para as vogais ou
nasalados para as consoantes.
Ainda muito tempo depois da catequese o Padre Antônio
Vieira ajuntava o seu ouvido à boca do índio e não conseguia encontrar
a representação do som emitido, mesmo aproximada, na língua portu-
guesa. Daí a dificuldade dos nossos filólogos para dar a verdadeira eti-
mologia das palavras tupis que lêem ou ouvem, chegando a significações
contraditórias, confusas, e às vezes ridículas – principalmente quando
essas palavras foram escritas em língua francesa (Léry), alemã (Hans
Staden), inglesa (Knivet), espanhola (Montoya), portuguesa (Anchieta),
flamenga, etc., afeiçoadas à pronúncia de cada uma, e depois lidas por
estrangeiros.
Pode-se mesmo afirmar que, a leste da América do Sul, só
existiu propriamente uma língua (tupi-guarani) depois que, no Brasil
Anchieta, e, no Paraguai, Montoya domesticaram o linguajar bruto do
indígena fazendo gramáticas e vocabulários, tornando-as comuns aos
conquistadores e conquistados, permitindo que os europeus compreen-
dessem os indígenas e se fizessem por eles compreendidos. Essa domes-
ticação da língua se fez com sons diferentes dos primitivos.
Na Capitania de São Vicente 153
do-se todos os cativos”. Acrescentava ainda a lei que “por ser costume
dos gentios terem sempre guerra uns com os outros, e comerem os pri-
sioneiros, autorizava a compra destes. Providenciava mais o aldeamento
dos índios, nomeando o governador capitães para as aldeias, de 500 ca-
sais, havendo nelas um religioso da Companhia de Jesus, ou não haven-
do este ou não querendo aceitar, haveria um clérigo de qualquer outra
ordem. E em cada aldeia deveria haver um vigário português que sou-
besse a língua indígena para os deveres da religião, como o capitão o se-
ria para os deveres da justiça, considerando os índios donos de suas pro-
1
priedades, etc.”.
Variava, porém, a condição dos aborígines, conforme a in-
fluência, na Metrópole, dos jesuítas ou dos colonos sob os Governos
dos reis, que não queriam perder o seu império.
Essas leis não eram observadas; ao contrário eram defrauda-
das; e, tendo-se estabelecido “a administração dos índios”, pouca dife-
rença houve entre índios administrados e escravizados, como se pode
ver nos inventários da época, nos quais os escravizados eram avaliados e
os administrados não o eram, mas todos eram legados aos herdeiros,
salvando-se a responsabilidade individual, com as palavras “de acordo
com as leis de el-rei nosso senhor”, e assim viviam todos os índios em
condição servil.
Os jesuítas também tinham fazendas, que tocavam com índios
administrados; mas a Companhia de Jesus tinha vida longa, atravessava
séculos, não fazia inventários e não se pode saber como os índios eram
transmitidos. Nelas, sem dúvida, eram tratados mais cristãmente.
Capítulo X
OS COLONOS
(Algumas notas sobre alguns dos primeiros povoadores e
conquistadores de São Vicente)
§ 1º
JOÃO RAMALHO E ANTÔNIO RODRIGUES
João Ramalho é uma curiosa figura, uma das mais curiosas fi-
guras da costa do Brasil, e, sem dúvida alguma, a mais curiosa no porto
de S. Vicente e nas suas cercanias.
Foi um dos primeiros, e talvez o primeiro português que aí se
fixou.
Sobre ele muito se tem escrito em monografias e ensaios, de
origem religiosa ou profana, em todas as épocas, alguns enchendo volu-
mes.
Todos os que se interessam pela Capitania de S. Vicente, têm
se ocupado desse homem que Martim Afonso de Sousa já achou “quan-
do cá veio”. Muita conjetura, muitas deduções, algumas engenhosas ou-
tras grosseiras, têm sido feitas sobre esse indivíduo, cuja singularidade
chama a atenção.
Encontrando esse nome e o de Antônio Rodrigues, figurando
na sesmaria concedida a Pero de Goes por Martim Afonso de Sousa, a
12 de outubro de 1532, onde eles se declararam estantes no Brasil de 15
a 20 anos, alguns escritores foram levados a supor que só esses dois eu-
ropeus por aí viviam, quando entretanto, havia outros, senão muitos
pelo menos uns poucos, nas terras que iam constituir a Capitania de S.
Vicente. Desses outros pouca coisa se sabe.
O Padre Leonardo Nunes, o primeiro catequista que se fixou
em S. Vicente, fala mais de uma vez, em 1550 e 1551, de pessoas que es-
tavam na capitania havia mais de 30 e 40 anos, portanto, desde 1510 e
de 1520. É assim que, em carta de 24 de agosto de 1550, refere que em
S. Vicente havia muitas pessoas que de 30 a 40 anos não se tinham con-
fessado e estavam em pecado mortal (Cartas Jesuíticas, vol. 2º, pág. 61).
Ainda em carta de 20 de junho de 1551 informava que em S. Vicente
muitas pessoas havia, que de 20 a 30 anos a esta parte nunca deixaram
de comer carne na quaresma e nos mais dias proibidos, tendo pecado e
estando sãos” (Cartas Jesuíticas, vol. 2º, pág. 66). A isso já me referi na pá-
gina 50.
Na Capitania de São Vicente 159
***
que ele era um despeitado porque, dispondo de 5000 homens, estava su-
jeito ao Rei de Portugal senhor apenas de 3000 homens ou coisa equiva-
lente, atribuindo-lhe intuitos de rebelião num tempo em que João Ra-
malho já era o alcaide-mor do campo, por nomeação de Tomé de Sousa,
o que indica o prestígio de que gozava e a sua submissão a D. João III.
Em relação ao Brasil a pequeníssima narração de Ulrico
Schmidl só tem valor para mostrar que João Ramalho habitava o planal-
to, no caminho para S. Vicente, porto de embarque para a Europa, o
que também é conhecido por documentos de maior valia. É pueril a
narração de Ulrico Schmidl nessa parte.
Não tem fundamento a hostilidade profunda que se atribuiu a
João Ramalho aos Padres da Companhia de Jesus, por ter sido mudada a
sede da vila de Santo André, para junto da Igreja onde foi celebrada a
missa no dia da conversão de S. Paulo, em 25 de janeiro de 1554, como
já se disse.
João Ramalho depois de tal mudança continuou alcaide-mor do
campo, onde estavam situados os dois lugares; sendo de notar que se ele
fora eleito por diversas vezes vereador em Santo André, continuou a ser
eleito vereador em S. Paulo, servindo sempre na governança da terra.
Ele mereceu antes, e continuou a merecer sempre, a preferên-
cia das altas autoridades coloniais, dos governadores gerais, de Martim
Afonso de Sousa por seus loco-tenentes, dos homens bons e do povo
da terra em que habitava.
Foi, quando esteve na Capitania de S. Vicente, em princípios
de 1553, que Tomé de Sousa, Governador Geral do Brasil, acrescentou
a Martim Afonso a vila de Santo André, e o nomeou alcaide-mor do
campo (Carta da Bahia de 1º de junho de 1553, já citada).
O segundo Governador Geral, D. Duarte da Costa, em um
regimento datado de 11 de fevereiro de 1556, dirigido a Brás Cubas, en-
tão capitão-mor-loco-tenente em S. Vicente, proibiu a todos o trânsito
pelo campo para o Paraguai e expressamente declara avisareis a João Ra-
malho, alcaide e guarda-mor do campo que não deixe passar nenhuma pessoa para
ele, sem mostrar vossa licença nem os próprios moradores de Santo André (vol. das
Atas de Santo André, vereança de 11 de fevereiro de 1556, pág. 37).
166 Washington Luís
zela, terra do Pe. Mestre Simão, e da parte de Nosso Senhor lhe requei-
ro; porque si este homem estiver em estado de graça, fará Nosso Senhor
por ele muito nesta terra. Pois estando em pecado mortal, por sua causa e
sustentou até agora. E, pois, isto é cousa de tanta importância, mande
V. Rma. logo a saber a esta informação de tudo isto o que tenho dito”.
(Páginas de História do Brasil, Serafim Leite, pág. 93).
Esta carta, só há pouco tempo publicada, revela de modo a
não deixar dúvida, que João Ramalho não embaraçava a catequese jesuí-
tica, e que, ao contrário, deixava o seu filho mais velho acompanhar e
guiar, no sertão, o Pe. Manuel da Nóbrega, para mais autorizar o minis-
tério religioso.
Vivia maritalmente com índias da terra, filhas dos maiorais;
mas desejava casar-se com a mãe de seus filhos, cumprindo assim um sa-
cramento, o do matrimônio, cuja realização deveria ser precedida da confissão
outro preceito da igreja, o que quer dizer que iria obedecer as regras da
religião católica. Não se tinha casado, o que muito desejava, porque pri-
meiro viveu entre selvagens, sem cura de alma, e ainda, porque não sabia
se a mulher, que deixara em Portugal, era viva, receando sem dúvida a
bigamia, condenada pelas leis civis e canônicas. Esse casamento era tão
necessário que o Pe. Manuel da Nóbrega, com a maior instância possí-
vel, requeria em nome de Nosso Senhor, e suplicava quase, mandasse
indagar de tudo em Vouzela. E considerando “uma causa de suma im-
portância”, reiterava o pedido anteriormente feito.
Isto se passava em 1553, antes da revolta dos índios, em 1562. É
possível que tal conversão fosse obtida pelo esforço persuasivo do Pe. Ma-
nuel da Nóbrega; mas mostra ao mesmo tempo disposições do Alcai-
de-Mor do Campo, para voltar ao abrigo católico como ovelha tresma-
lhada. Além de salvar a alma, de colocar o régulo em estado de graça, no
entender do Pe. Manuel da Nóbrega, esse matrimônio seria um grande
exemplo para os demais colonos, santificando e legitimando-lhes o lar e
sendo um grande passo para a conversão do demais gentio, com o qual
era João Ramalho por seus filhos aparentado.
Essa mulher, cujo nome indígena era Bartira, recebera o de
Isabel no batismo, outro sacramento católico, que não se realizaria sem
anuência de João Ramalho.
Na Capitania de São Vicente 173
nar, que hoje ainda dura nas coisas do maior relevo e importância, no
Brasil e em Portugal, nenhuma providência se tomou.
***
3 Notemos ainda que, por este documento, se vê, numa sesmaria passada por
Gonçalo Monteiro, que este se declara vigário e capitão-loco-tenente de Martim
Afonso de Sousa, governador da capitania de S. Vicente; o que indica que a
palavra vigário poderia ter sido empregada na sua acepção rigorosamente
etimológica, como mostrando aquele que substitui, que faz as vezes de outro.
Martim Afonso de Sousa não era um prelado, mas o donatário da capitania; o seu
vigário não era, pois, por este motivo, um padre, mas um capitão. Entretanto, um
Gonçalo Monteiro foi vigário de S. Vicente por 1560, conforme se verifica no
processo por heresia iniciado pelo Padre Luís da Grã contra João de Boulés (Anais
da Biblioteca Nacional, v. 25, pág. 217). Fica assim retificado esse fato como
também o da atribuição de João Ramalho de ter fundado quer a povoação, quer a
vila de Santo André da Borda do Campo, referidos no v. 9, da R.I.H.G. de S.
Paulo, pág. 563.
Na Capitania de São Vicente 177
Lopo Dias casou-se com Beatriz Dias (Inv. e Tes., vol. 2.º, pág.
113) filha de Tibiriçá, ou neta por João Ramalho. Os linhagistas não es-
tão de acordo sobre se a mulher de Lopo Dias era índia ou meio sangue
indígena.
De seu casamento houve, pelo menos, dois filhos: Suzana
Dias e Belchior Carneiro.
Suzana Dias casou-se com Manuel Fernandes Ramos, natural
4
de Moura, em Portugal.
Netos ou bisnetos de índios, esses Fernandes são conhecidos,
entre os cronistas paulistas, como os Fernandes Povoadores.
O outro filho de Lopo Dias e de Isabel Dias, chamou-se
Belchior Carneiro, também neto ou bisneto de índia, fez diversas entra-
das ao sertão e nele morreu, como cabo de bandeira em 1607, entre os
Bilreiros (Inv. e Test., vol. 2º, págs. 111 e seguintes), a mandado de Diogo
de Quadros, em busca de índios para trabalho em minas de ferro em S.
Paulo.
Foi Belchior Carneiro, que sabia ler e escrever, e escrevia bem
o seu nome, casado com Hilária Luís Grou, outra mestiça, filha de
Domingos Luís Grou, do qual adiante se fala.
Em 1608, “por não se achar presente Lopo Dias e por ser
muito velho em idade (Inv. e Test., vol. 2.º, págs. 124 e 130) o juiz de ór-
fãos faz curador dos filhos todos menores de Belchior Carneiro, a
André Fernandes, deles primo-irmão.
O próprio Lopo Dias vem a juízo e confirma a sua velhice em
requerimento em que diz:
“pesa-me senhores juízes escusar ser curador de meus netos, filhos
5
de Belchior Carneiro porque não ... de o poder ser, assim por minha
idade, como por me ter entregue ... padres do Carmo para irmão seu as-
sim podem fazer curador quem lhes parecer e aqui me assigno – 1 de ja-
neiro de 1609. Lopo Dias. (Inv. e Test., vol. 2º, pág. 132).
§ 3º
DOMINGOS LUÍS GROU
Quadros e era cunhado de Mateus Luís Grou; e outra filha – Maria Luís
Grou – casou-se com Simão Álvares, outro mestiço índio, um dos co-
mandantes de terço das tropas de Antônio Raposo Tavares o destruidor
das reduções do Guairá.
Domingos Luís Grou desapareceu na entrada, a que se refere
a Câmara, feita com Antônio de Macedo, devorado pelos índios.
Encontra-se a confirmação de sua morte em 4 de Junho de
1594, conforme deduzo do seguinte extrato por mim feito em 1902,
dum livro de notas da vila de S. Paulo, do tabelião Belchior da Costa,
que me foi confiado pelo Dr. Luís Gonzaga da Silva Leme – livro muito
estragado – e a quem logo o restituí.
“1594 – Junho – 4. Maria Afonso, viúva de Marcos “Fernan-
des dá em dote a sua filha Francisca Alvares, para “que se case com
Antonio de Zouro, um pedaço de chão, terça “parte da data da câmara
pegado a outro que ela comprou de “Domingos Luís Grou, já defunto,
e pegado com a data de “Gaspar Collaço Villela no arrabalde da villa de
S. Paulo”, e “também vende parte desses chãos a seu sobrinho Alonso
Feres “Calhamares casado com sua sobrinha...
§ 4º
PEDRO AFONSO
casas que tinha em 1582, vendidas por Paulo de Veres, cujos documen-
tos também lhe levaram os ingleses.
Pero Leme foi povoador mas não foi conquistador. Morreu
em São Paulo em 1600. No testamento feito em S. Vicente, o escrivão,
que o aprovou, declara que ele era fidalgo da casa real de el-rei, nosso
senhor.
§ 9º
AFONSO SARDINHA
150 réis, arrematada por Bento Frias (Inventários e Testamentos, volume 1º,
pág. 8).
Em 20 de abril de 1592, foi nomeado pelo capitão-mor Jorge
Correia para capitão da gente da vila de S. Paulo e seus termos (Registro
Geral, vol. 1º, pág. 51).
A Câmara de S. Paulo, composta dos juízes João de Prado e
Pedro Álvares, dos vereadores Fernão Dias e Antônio Preto, a 2 de
maio desse ano (Atas, vol. 1º, págs. 439 e 440), fez objeções e criou difi-
culdades para registrar essa nomeação, sob o fundamento de que “a vila
nunca tivera outro capitão senão o capitão da terra”. O procurador do
conselho, Alonso Peres achou procedente essas razões, mas alegou, en-
tretanto, que a terra estava ameaçada e que os inimigos estavam a jorna-
da e meia da vila.
Todos ficaram concordes a respeito resolvendo, porém, espe-
rar o capitão-mor, Jorge Correia, para tratar sobre o assunto, não impe-
dindo, entretanto, que Afonso Sardinha exercesse as suas funções sem,
porém, mandar registrar a provisão (Atas, vol. 1º, págs. 439 e 440). A
vila de S. Paulo estava com efeito ameaçada de sério ataque por parte
dos índios inimigos.
A 23 de agosto de 1592 (Atas, vol. 1º, pág. 445) os oficiais da
Câmara se reuniram para tratar da necessidade de uma entrada ao sertão
da capitania “para ver o estado dos nossos inimigos”, com os quais esta-
vam em guerra, havia dois ou três anos (Atas, vol. 1º, pág. 442), já tendo
protestado perante o capitão-mor. Leram, então, e também aos morado-
res da vila que todos foram convocados, o capítulo de uma carta do ca-
pitão Jorge Correia que dizia que “se parecesse bom se fizesse o salto”,
e logo foi deliberado que se fizesse a guerra com o maior “ímpeto de
gente e com toda a brevidade” e que Jorge Correia mandasse a gente de
Itanhaém e de S. Vicente.
Houve, porém, sério rebate dos índios contrários, sendo grave
a situação e “estando os nossos atemorizados”, Jorge Correia mandou
Afonso Sardinha ao sertão, em seu nome, ver o estado em que estavam
os índios contrários ou dar-lhes guerra com a maior segurança podendo
levar todos os índios da capitania (30 set. 1592, Reg. Geral, vol. 1º, pág.
59). Queria contemporizar.
Na Capitania de São Vicente 189
6 Vida do Padre Belchior de Pontes, pelo Padre Manuel da Fonseca, Pág. 233.
Na Capitania de São Vicente 191
7 Pero da Silva foi casado com uma sua neta, Tereza, filha de Afonso Sardinha, o
moço, e irmã de Pero Sardinha conforme se vê no testamento deste, publicado no
vol. 3º, dos “Inventários e Testamentos”, págs. 395, 396 e 397.
8 A casa, que hoje comemora o Bandeirante desconhecido, não foi edificada por
Afonso Sardinha; teria sido bem mais tarde, e talvez pelos jesuítas, na sesmaria
desse povoado da Capitania de S. Vicente, que dela ficaram possuidores.
Na Capitania de São Vicente 195
em Pinheiros se avaliava por 16$000 e uma casa na vila com seu quintal
por 10$000 (vide inventários do tempo) e o capitão-mor-loco-tenente e
ouvidor do donatário ganhava 50 mil réis anuais, e pagos pelas rendas
da capitania, a quantia de oitenta mil cruzados é quantia fabulosa (Vide
livro nº 54 da Câmara de S. Paulo, numeração antiga de 1602. O trasla-
do no vol. 1º do Registro Geral, pág. 39 está incompleto). Mas ainda
em 1607 o capitão-mor ganhava 50$000 (Registro Geral, vol. 1º, pág.
143).
Capistrano de Abreu também já achava exagerada tal quanti-
dade de ouro, dizendo que deveria haver muito ogó no monte (Capítulos
de História Colonial, pág. 193, edição da Casa Capistrano, por Capistrano
de Abreu – 1928).
E torna-se mais acentuado o exagero dessa quantidade de
ouro, se se levar em conta que, na vila de S. Paulo, paupérrima e atrasa-
12
díssima, e, nesse tempo, com pouquíssimos e ignorantes habitantes
um bastardo, cujo pai em 1592 declara em testamento ter “por ele já feito
o que devia dando-lhe 500 cruzados”, pudesse ter guardado, doze anos
depois, 80.000 cruzados em ouro em pó e os tivesse enterrado sem que
ninguém o soubesse. É de notar ainda que Afonso Sardinha, por mais
hábil sertanista que fosse, e entendedor de minas, não poderia ter conhe-
cimentos especializados para exploração, como o declarava D. Francisco
de Sousa.
As grandes minas gerais só foram descobertas no século 18. Os
processos de mineração eram então grosseiros, rudimentares, e consistiam
na bateia que exigia numeroso pessoal e imenso tempo, dando o ouro de
lavagem, que não poderia ser feito às escondidas dos moradores da vila.13
12 A Câmara informa em 1591 que 140 eram os moradores da vila (Atas, vol. 1º, pág.
410).
13 John Mawe, que fez Viagens no interior do Brasil, no começo do século 19, descreve
no capítulo V como se fazia a exploração de ouro no Jaraguá. Declara que não
havia mina mas lavagem de ouro, feita a céu aberto, exigindo muito tempo a muito
pessoal.
E isso em tempo em que o Jaraguá pertencia ao Capitão General Franca e Horta,
dois séculos depois da descoberta aí feita. Não era possível em 1602 haver minas
com exploração clandestina que permitissem a Afonso Sardinha obter 80.000
cruzados em ouro em pó e os esconder em botelhas.
200 Washington Luís
14
D. Francisco de Sousa, no regimento já referido, dado em
1601 a Diogo Gls. Lasso, menciona, como motivo da proibição da ida
às minas, descobertas e por descobrir, a “falta de mineiros” para o res-
pectivo benefício, mineiros que mandara vir e os estava esperando, a fim
de que as achassem intactas e vissem que se falou verdade a S. M. (Reg.
Geral, vol. 1º, pág. 124).
Intactas deviam, ainda em 1601, ficar as minas, era a ordem
do Governador Geral, e se os Sardinhas foram autorizados a lá ir e a
descobrir outras, não podiam explorá-las.
As chamadas minas do Jaraguá, Bituruna, foram também des-
cobertas por Clemente Álvares (Atas, vol. 2º, pág. 172) que as manifes-
tou em 1606, procurando-as, segundo disse, desde 14 anos, época mais
ou menos em que também as descobriram os Sardinhas, nada produziam
ainda, dois anos depois do testamento de Afonso Sardinha, o moço, no
sertão. E nada tinham produzido, porque o próprio Clemente Álvares
pede que se registre o seu descobrimento em Jaraguá para “não perder o
seu direito, vindo oficiais e ensaiadores que o entendam, por ele não o
entender senão por notícia e bom engenho”. No tempo em que as ma-
nifestou, em 1606, as minas de Jaraguá ainda esperavam os mineiros e
ensaiadores.
Não tinha ainda havido exploração, estavam ainda intactas,
conforme determinara D. Francisco de Sousa. Se houvesse produção o
Fisco, curioso e ávido, não teria deixado de arrecadar os quintos para re-
ceber as porcentagens. As penas para quem guardasse ouro em pó eram
severíssimas, e importavam em confisco desse metal, em multas pecu-
niárias, açoites nas ruas públicas, degredo para Angola, devendo todos
reduzir o ouro a barras, depois de quintado (Reg. Geral, vol. 1º, págs. 93
e 94).
De 19 de julho de 1601, data em que o Governador-Geral do
Brasil em atividade febril em S. Vicente para descobrimento de ouro, de-
clarava intactas as minas de S. Paulo (Regto. dado a Diogo Gonçalves
Lasso, no Registro Geral, vol. 1º, págs. 123 a 126) até setembro de 1602,
época provável da partida da bandeira de Nicolau Barreto para o sertão,
§ 11
BUENOS
mes não são indicados nas “Atas da Câmara de S. Paulo”, nem no Regis-
tro Geral, nem nos “Inventários e Testamentos”, anônimos, que desaparece-
ram nas bandeiras que anonimamente partiram para o sertão e lá foram
aniquiladas.
Muitos dos que, em Portugal, mereceram ser degredados para
as costas do Brasil, nestas costas em que nos primeiros tempos não ha-
via leis ou autoridades, viveriam apenas cometendo o crime da época,
que era a escravização da raça vermelha e da raça negra, crime que prati-
caram todos, nos séculos 15 e 16, e mesmo depois.
Não é possível nomeá-los todos e, só menciono alguns que se
acham indicados, em documentos e nos genealogistas, até o fim do se-
gundo governo de D. Francisco de Sousa; por isso, encerro provisoria-
mente esta lista com um tópico de Antônio Knivet na descrição, sem
dúvida verdadeira em alguns pontos, mas indubitavelmente fantasiosa
em muitas de suas partes. Escreve ele referindo-se a Martim de Sá, seu
cabo numa entrada, “Que poder tem o capitão para dar morte a este homem?
Não viemos a estes sertões em serviço do rei, se não em proveito próprio, e o capitão,
não é mais que um bastardo do governador” (Salvador Correia de Sá)
(R.I.H.G.B., vol. 41, pág. 237 da primeira parte).
O sertão onde eles estavam, segundo se depreende, era nas
proximidades do vale do rio Paraíba, ainda na capitania de Martim
Afonso. E o Padre Manuel da Fonseca diz claramente o que era um bas-
tardo nos primeiros tempos coloniais.
Entretanto Salvador Correia teve um filho chamado Martim Cor-
reia de Sá, que não era bastardo e este foi o pai do famoso Salvador Correia
de Sá e Benevides, por sua mãe espanhola D. Maria de Mendonça e Benevi-
des (Camilo Castelo Branco, Serões de S. Miguel de Seide, vol. 2º, pág. 97).
Muitos foram os que se aliaram às índias com as quais deixa-
ram numerosa e abundante descendência. Desses, que os inventários
dizem apenas “se ter notícia por serem mortos no sertão”, não recolheram os
genealogistas os nomes nem as gerações.
Muitos dos seus inventários desapareceram, talvez a maior
parte, outros não tiveram inventários porque só possuíam os seus cor-
Na Capitania de São Vicente 207
pos e as suas vidas. Destes pode-se ainda com trabalho insano fazer a
genealogia, catando-os nas Atas da Câmara, no Registro Geral, nas refe-
rências dos inventários existentes. No momento só se pode erguer o
monumento do “Bandeirante Desconhecido”, como após a primeira
guerra mundial se levantou o monumento do “Soldado Desconhecido”
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Capítulo XI
O CRUZAMENTO E A ESCRAVIDÃO
***
Não há, nas nações, raças puras. É o clima que principalmen-
te faz o homem e a sua raça. E o clima é produzido pela latitude e pela
altitude sobre o nível do mar, modificadas pelos seus rios, montanhas e
ventos. É preciso reparar em que latitude e em que altitude vivem os ho-
mens que criaram a civilização. Repare-se a diversidade dos climas em
que ele vive. A mais de sete mil metros de altitude o homem não pode
viver, debaixo do equador o homem vive dificilmente. A luta pela vida
cria necessidades e obriga o homem a trabalhar para satisfazê-las. Sob os
climas frios o homem é obrigado a cobrir-se, a fazer sua cãs, a armaze-
nar víveres e para isso se esforça. Depois dessa necessidade, vem o con-
forto e em seguida a arte que adorna o vestuário, que embeleza a casa, a
gastronomia que torna saborosos os víveres armazenados. Esses ho-
mens, pela expansão natural da descendência, para poderem viver, es-
tendem a sua civilização aos outros povos que a aceitam a princípio pela
escravidão e depois pelo hábito. Nos trópicos, na selvageria, a natureza
aquece os homens e eles andam nus, e só têm casas rudimentares para
212 Washington Luís
se acobertar das chuvas, as florestas dão os frutos e a caça para a sua ali-
mentação, como também o fazem os rios dando os peixes. E se lhes fal-
tam esses gêneros de nutrição são eles antropófagos. É a lei do menor
esforço. É a vã discussão sobre superioridade de raças.
O clima faz o homem e o homem faz a raça, criando o meio,
o ambiente, as condições mesológicas, enfim em que ele se reproduz.
Os Estados Unidos se estendem de leste a oeste sempre sob
quase a mesma latitude, semelhante a da Inglaterra, e lá se exterminou,
se escravizou o aborígine e se conquistaram territórios. O Brasil se es-
tende de norte a sul e com zona tórrida. A sua altitude no planalto deu
o clima temperado de que gozam os trópicos e permitiu desde cedo o
seu maior desenvolvimento. Essa situação geográfica explica suficiente-
mente a diferença do progresso entre os dois países. O nosso progresso
tem que ser mais lento mas tem que vir, o que nos deve animar e não
abater. Uns se civilizam outros são civilizados.
Como em outros países nas costas do Brasil, houve o exter-
mínio de tribos, a escravidão de outras; mas aqui houve também o cru-
zamento pela religião, pelas leis portuguesas, houve progresso embora
lento e foram essas as causa, e primordiais, para a formação do Brasil.
Também em outros países houve o cruzamento.
Os celtas, os gauleses, os francos e mesmo os árabes, que só
foram vencidos em Poitiers e que deixaram descendência cruzaram para
fazer a França. Os celtas, os anglos, os saxões, os normandos, cruzaram
para fazer a Inglaterra. Os iberos, os lusitanos, os bérberes, os árabes
cruzaram para fazer Espanha e Portugal. Os ligúrios, os lombardos, os
gregos, os asiáticos cruzaram para fazer a Itália. Nos países do norte os
vândalos, os celtas, os germanos, os eslavos, cruzaram para formar a
Alemanha. Nos Estados Unidos, país de imigração, há todas as raças.
Não posso fazer a enumeração completa das raças que nos di-
versos países cruzaram, porque me falta competência para isso e seriam
necessários estudos que absorveriam uma existência.
Sem outras mulheres que as índias, com grande espaço diante
de si, sem outro instrumento de trabalho que o índio vencido, essas le-
vas de gente vindas não se sabe como, ou mandadas pela vontade abso-
Na Capitania de São Vicente 213
1 Negros eram chamados os índios da terra, como se vê nos inventários em que são
avaliados os tamoios e os outros. Negros de Guiné eram chamados os africanos.
No inventário de Henrique da Cunha, vol. 1.º, págs. 223 e 224, em 1624, se
descreve uma negra de Guiné, casada com um índio, com um filho de peito e
avaliados dois mulatos, seus filhos.
216 Washington Luís
Capítulo XII
AS ENTRADAS AO SERTÃO
fender as costas do Brasil, nem tampouco gente para nelas fazer o po-
voamento.
Companhia de Jesus, Realeza de Portugal, Administração Por-
tuguesa não passariam de quase sombras impotentes que, isoladas, não
poderiam formar e civilizar um Brasil.
O governo geral, em nome de D. João III, os donatários com
as doações feitas pelo rei de Portugal, trouxeram as leis portuguesas, “as
Ordenações do Reino”, os usos e costumes de Portugal na administra-
ção e na justiça, impuseram a língua portuguesa. Os jesuítas se dedica-
ram à catequese cristã do gentio e os colonos – degredados ou espontâ-
neos – fizeram a mestiçagem com a aborígine e arrotearam a terra com
o indígena vencido.
Na América Portuguesa foram esses cinco elementos – rei,
administração portuguesa, jesuítas, colonos e índios – que juntos nesses
primeiros tempos do século XVI constituíram o Brasil territorial, moral
e econômico. E esse povoamento e civilização foram feitos, não obstan-
te a animosidade entre eles quase inconscientemente, por assim dizer, à
revelia do Governo de Portugal.
Como em todo o Brasil, mas principalmente na Capitania de
S. Vicente em que se constituiu o Estado de S. Paulo, houve, em conse-
qüência, uma obra coletiva, embora nela nem sempre os seus elementos
primordiais andassem de acordo, e, ao contrário, se hostilizassem, e por
vezes se oprimissem violentamente, visto que os fins imediatos por eles
visados eram bem diferentes, como adiante se verá.
O trabalho dos jesuítas foi incontestavelmente imenso na ci-
vilização brasileira; mas dela não foi o único elemento. Houve também
1
outros e valiosos sem os quais ele não se realizaria
Os jesuítas se devotaram ardentemente à catequese do gentio,
cuja cristianização iniciaram. Se o seu propósito exclusivo triunfasse, S.
Paulo seria uma cidade de tupis.
Os colonos imigrantes queriam trabalhadores para as lavou-
ras, que abriam, e só os encontravam nos índios, cuja cativação haviam
1 Houve também outras ordens religiosas e o clero secular que concorreram para a
civilização.
Na Capitania de São Vicente 221
***
nham as bandeiras, não recebiam paga dos chefes nem soldo das muni-
cipalidades ou do rei.
Ao vesperar das expedições os bandeirantes faziam compras
de armas e mais apetrechos para “a entrada em que ora vai o “cabo X”
assim declaravam nos seus escritos (títulos de dívida) juntos aos inventá-
rios, a créditos pagos na volta em mercadorias, como caixas de marme-
lada, carne de porco salgada ou em peças do gentio escravizado. Os
mais abastados concorriam com os seus escravos, com os seus bens,
contando todos com os despojos opimos, os índios, que iriam trabalhar
nas suas lavouras. Lembravam-se também, então da vida futura, faziam
os seus testamentos em que regulavam o viver de suas famílias, com
longas e minuciosas disposições, principalmente espirituais. Em muitos
dos testamentos há expressas referências à próxima entrada para desco-
brimento de minas de ouro e pedras preciosas, referências ostensivas
com que pretendiam se resguardar das penas criminais, quando estavam
proibidas as guerras e era punida a escravização dos índios. Essa escravi-
zação, em certo tempo, foi o fim principal das expedições.
Tais testamentos quando feitos em povoado eram deixados
em poder das mulheres, que mantinham o lar e guardavam os filhos in-
fantes, porque os maiores de 14 anos, em geral, numa iniciação que enri-
java e endurecia, acompanhavam os pais.
Áspera e perigosa era a vida no sertão. Árida era a vida de fa-
mília. Assim se formaram as matronas paulistas e os homens fortes de
S. Paulo.
Os inventários, os feitos no sertão, eram depois processados
na vila de S. Paulo, provida de juízes e escrivães e mais ofícios judiciais, e
na volta, os iniciados no sertão eram apensados aos inventários legais.
Quando na mata intérmina, ou no descampado sem fim,
acontecia morrer o bandeirante, de “flechada de índio” ou de “moléstia
que Deus lhe dava”, o que era comum, o cabo da bandeira, que se arro-
gava todos os poderes, civis e judiciários, determinava o arrolamento
dos poucos bens encontrados, quase sempre armas, nomeava escrivão,
avaliadores, fazia leilão desses bens para serem arrematados pelos com-
panheiros, a prazo, dando fiadores ao pagamento em povoado, sendo
tudo reduzido a escrito, assinado pelos interessados, ou a seu rogo, datado
232 Washington Luís
seis ou sete línguas indígenas, entendidas nas margens dos grandes lagos
e no S. Lourenço, conhecia a região, os habitantes, os seus hábitos e cos-
tumes, mais ou menos nômades. Os índios respeitavam-no, como uma
espécie de Pajé, o grande homem preto, assim designando-o por causa
da batina negra, que ele usava.
O governador de Quebec, Mr. de Frontenac, suspeitava que
desses lagos, pelos rios que aí desaguavam ao sul, se poderia talvez chegar
ao Oceano Pacífico. Foi então organizada uma expedição, cuja parte mili-
tar foi confiada a Jolliet e a parte religiosa e diplomática pertenceu ao Pa-
dre Marquette, se é que se podem dar tais qualificativos a tratos com ín-
dios selvagens e bravios. Tal expedição chegou às alturas do Arkansas,
onde teve notícia da penetração de De Sotto que, vindo do sul em 1541,
já havia aí arribado em nome de Castela. Voltou a bandeira canadense,
mas sabendo que o Mississipi ia desaguar no Golfo do México.
Os fatos se repetiram na América do Norte como já se havi-
am desenrolado na América do Sul. Frontenac foi uma espécie de D.
Francisco de Sousa, governador do Brasil; Jolliet teria sido um Nicolau
Barreto e Marquette o Nóbrega do Canadá.
No Brasil as entradas ao sertão partidas de S. Paulo se fizeram
aproveitando talvez as indicações fornecidas pelos náufragos, semeados
pelas armadas anteriores, soçobradas nas costas do novo mundo, os
quais, já familiarizados com o gentio da terra, teriam dado sem dúvida
os primeiros e incertos roteiros para a procura das riquezas, que a ávida
imaginação dos europeus criava ou exagerava desmesuradamente.
Essas bandeiras, na faina insaciável do escravo e do ouro, mas
trilhando, descobrindo, cruzando, revelando novos territórios em todas
as direções, partiram durante largos anos.
De algumas delas, quase todas já estudadas, se darão em se-
guida algumas notícias sobre os seus cabos, sobre a sua composição, so-
bre os lugares por elas atingidos, com as suas datas, tanto quanto permi-
tirem os arquivos locais.
A primeira entrada, esta oficial, partida da Capitania de S. Vi-
cente, segundo os documentos municipais, falhos e truncados, foi a co-
mandada por Jerônimo Leitão. E digo primeira, porque é sobre ela que
se encontra documentação oficial nos arquivos locais.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Capítulo XIII
JERÔNIMO LEITÃO
abriu a pauta das eleições locais desse ano. De 1573 a 1578, Jerônimo
Leitão continua como capitão-mor de S. Vicente, provendo diversos
cargos da vila de S. Paulo (Atas, vol. 1º, págs. 58, 74, 75, 119, 120, 121).
Nos anos de 1579 e 1580 não se encontra nenhum registro de
provimentos de cargos em S. Paulo, feitos por Jerônimo Leitão.
Também não os há feitos por Antônio de Proença, nem ne-
nhuma referência ao exercício deste como capitão-mor.
A 11 de março de 1581 aparecem os traslados de provisões ex-
pedidas por Jerônimo Leitão, notando-se que em uma delas nomeia justa-
mente Antônio de Proença meirinho do campo da vila de S. Paulo (Atas,
vol. 1º, pág 177 e 205). Está bem claro que Antônio de Proença era nesse
ano de 1581 um subordinado do capitão-mor de S. Vicente, Jerônimo
Leitão, e não tendo sido nesse ano por conseqüência capitão-mor de S.
Vicente. Tampouco o foi nos anos de 1584, (Atas, vol. 1º pág. 232) por-
que nesse ano foi eleito juiz ordinário da vila de S. Paulo, cargo incompa-
tível com o exercício de capitão-mor-loco-tenente do donatário.
Nenhuma referência há, no período indicado por Azevedo
Marques, nas atas e nos demais papéis da Câmara de S. Paulo, ao exercício
deste cargo por Antônio de Proença, ao passo que, nos anos de 1582 e de
1584, período atribuído por Azevedo Marques a Antônio de Proença, se
encontram registros de nomeações feitas e atos praticados por Jerônimo
Leitão, como capitão-mor-loco-tenente, como também os há nos anos sub-
seqüentes até 1592 em que foi substituído por Jorge Correia (Atas, vol. 1º,
pág. 194, 200, 239, 251, 275, 446) nomeado por Lopo de Sousa, por provi-
são passada em Lisboa em 1590, mas que só foi registrada em S. Paulo a 18
de abril de 1592 (Reg. Geral, vol. 1º, pág. 39).
Frei Gaspar da Madre de Deus não inclui Antônio de Proen-
ça na Relação que organizou dos capitães-loco-tenentes, que governa-
ram a capitania de S. Vicente até 1592.
É possível que Antônio de Proença, em 1580, tivesse prati-
cado qualquer ato de capitão-mor, substituindo inteiramente Jerônimo
Leitão em alguns de seus impedimentos. Disso, porém, não encontrei
nos arquivos, que consultei, nenhum documento que o comprove.
Jerônimo Leitão, pode-se concluir, administrou a capitania de
S. Vicente, como capitão-mor-loco-tenente desde janeiro de 1573 a
Na Capitania de São Vicente 237
1592, perto de 20 anos, como disse a Câmara. Possuiu ele a inteira con-
fiança do donatário Lopo de Sousa que ainda em 20 de março de 1588,
passou-lhe procuração e ao sobrinho Baltasar Borges, em caso de sua
ausência, para tratar de negócios na capitania, como receber rendas etc.,
entretanto, já aí sendo ele seu loco-tenente (Registro Geral, vol. 1º, págs.
25 a 28).
Administrou a capitania prudentemente, a pleno contento dos
povos da vila de S. Paulo, assim o declaram a Câmara, os homens bons e
moradores de S. Paulo (Atas, vol. 1º, pág. 446). Tinha ele os mesmos
sentimentos que os moradores da capitania, e a estes servia conforme
os seus interesses e necessidades.
Estava Jerônimo Leitão bem radicado na terra, era irmão de
Domingos Leitão, este casado com Cecília de Góis, filha de Luís de
Góis. Segundo Frei Gaspar, casou em S. Vicente e teve vários filhos, dos
quais existia ainda geração em 1792, mas seus descendentes ignoravam
que dele provinham (Frei Gaspar – Memórias para a História da Capitania
de S. Vicente, pág. 159, da 3ª ed., edição Taunay). Era tio de Baltasar
Borges, conforme ainda informa Frei Gaspar, e se encontra cientificado
na procuração que passou Lopo de Sousa (Reg. Geral, vol. 1º, págs. 25 a
28).
A sua ação, para a conquista da terra, no combate aos índios
inimigos dos portugueses e na expulsão dos franceses, não se limitou
ao território, que ia ser capitania de S. Paulo, foi muito além, ainda que
dentro das terras doadas a Martim Afonso. Diz a “Informação do Bra-
sil”, de 1584, R.I.H.G.B., vol. 6º, pág. 415:
“Na era de 1574 veio o Dr. Antônio Salema com alçada em
todo o Brasil”. Ainda no seu tempo, estavam em pé os tamoios de Cabo
Frio, grande colheita dos franceses, donde vinham, fazer saltos dentro
do mesmo Rio, pelo qual se determinou de lhes dar guerra e assim com
o favor da Capitania de S. Vicente da qual veio o Capitão Jerônimo Lei-
tão, com a maior parte dos portugueses e dos índios cristãos e gentios e
com esta ajuda cometeu a empresa e acabou de destruir toda a nação
dos tamoios que estava ainda com muita “soberba e fortes com muitas
armas dos franceses, espadas, adagas, montantes, arcabuzes, etc”...
Há confirmação desse feito. Referindo-se à guerra que, em
1579, Antônio Salema fez para exterminação dos tamoios de Cabo Frio,
238 Washington Luís
1 Antônio de Mariz é nome que aparece nas Atas da Câmara Municipal de S. Paulo,
mas sem o dom, como almotacé em 1563 e Juiz em 1564. Ao que parece, José de
Alencar tomou esse nome de quem se distinguiu em campanha em Cabo Frio, e
dele fez um fidalgo português, um dos heróis do seu romance, O Guarani,
estabelecido junto ao Paquequer, um dos afluentes do baixo Paraíba. É essa a
opinião de Capistrano de Abreu nos Gravetos da História Pátria, e transcrita na
longa nota (b) à pág. 443 e seguintes. Do livro Câmara Municipal por Cortines
Laxe.
Na Capitania de São Vicente 239
Mas até onde chegou nada se pode adiantar diante do silêncio dos do-
cumentos locais consultados.
Era o prenúncio da campanha do Guairá.
Na segunda entrada a direção foi para o norte, para o oeste. A
Câmara de S. Paulo para se defender das ameaças dos índios do sertão e
para vingar o destroço da entrada de Antônio de Macedo e de Domin-
gos Luís Grou, já havia mandado fazer o forte e tranqueiras em Emboa-
çava para as bandas de Carapicuíba. E nas Atas da Câmara se declara
que Macedo e Grou atravessaram os rios Jaguari, Piratingui, Mogi, tendo
atingido o rio Parnaíba, o que significa que a guerra ofensiva contra esse
gentio tomou a direção do noroeste, a mesma, mais ou menos, que 150
anos depois seguiria Bartolomeu Bueno, o 2º Anhangüera, o descobri-
dor de Goiás. Não se conhecem também os incidentes dessas entradas
capitaneadas por Jerônimo Leitão; mas os seus resultados não foram de-
cisivos para a segurança da colônia estabelecida no planalto.
A entrada de Antônio de Macedo e de Domingos Grou foi a
última numerosa feita, sobre o pretexto de resgate. O seu destroço,
mostrando o perigo que corriam os colonos, motivou as guerras decla-
radamente ofensivas e aflitivamente desejadas.
Essas guerras fizeram recuar as tribos revoltadas, mas não as
venceram totalmente, não estabeleceram a segurança e a paz no planalto
de Piratininga.
Em 1592 Jerônimo Leitão foi substituído no seu cargo, por
Jorge Correia.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Capítulo XIV
JORGE CORREIA
***
Capítulo XV
JOÃO PEREIRA DE SOUSA
1 O Dr. Vieira Fazenda, num artigo sob o título O Palacete Abrantes (R. I. H. G. B.
tomo 89 correspondente ao volume 143, ano 1921, Pág. 451) depois de lembrar
que a Praia de Botafogo, no Rio de Janeiro, segundo Gabriel Soares de Sousa,
chamou-se Enseada de Francisco Velho, acrescenta: “A atual denominação
proveio de ter nessa enseada grande sesmaria João Pereira de Sousa Botafogo.
Foi casado com D. Maria da Luz Escossia de Drummond, natural da Ilha da
Madeira, na qual os seus ascendentes se refugiaram para evitar perseguições
religiosas. Desse casal proveio D. Maria de Sousa Brito. Casou com Heliodoro
Ebanos, que da Capitania de S. Vicente acompanhou Estácio de Sá do qual era
primo-irmão”.
Não tendo tido ainda ocasião de estudar tal sesmaria, apesar das numerosas
pesquisas feitas, não posso afirmar ou negar que esse João Pereira de Sousa
Botafogo seja o mesmo capitão-mor de S. Vicente em 1595.
Esses sobrenomes “Pereira“, “Sousa”, eram muito comuns em 1595 e hoje, ainda
o são.
É possível também que designem pessoas diferentes, o que parece mais provável.
Só um estudo sobre melhores documentos pode decidir o caso.
Há, porém, no Rio de Janeiro descendentes de João Pereira de Sousa Botafogo,
que foram consultados e nada puderam adiantar a respeito.
Na Capitania de São Vicente 255
2 Pedro Vaz de Barros exerceu esse cargo em 1603 (Atas, vol. 2º, pág. 138).
Na Capitania de São Vicente 259
não vem nos governar nem aumentar a terra que o senhor Martim
Afonso ganhou e que Sua Majestade lhe deu com tão avantajadas
mercês e favores. (Reg. Geral, vol. 7º, pág. 111).
Quando o donatário Lopo de Sousa, escrevendo à Câmara de
S. Paulo, a 1º de dezembro de 1605, diz que, por carta dessa mesma
Câmara, ficou entendendo e se maravilhou das maldades e atrevimento
de João Pereira de Sousa apresentando-se na capitania com uma provi-
são falsa, já João Pereira de Sousa não pertencia ao número dos vivos,
porque é o próprio donatário que escreve, dizendo “para prova do que
afirmo basta a morte que ele teve de sua maldade e traição”.
A Câmara de S. Paulo, como já se notou, acusando o recebi-
mento de uma carta de Lopo de Sousa, a 13 de janeiro de 1606, nesta
época também já conhecedora dessa morte, começa a sua resposta es-
crevendo “Com o Capitão João Pereira de Sousa, que Deus levou rece-
bemos uma de vossa mercê”....
Para mais confirmar a sua trapalhice ou fraqueza é suficiente
ler com atenção a sua carta de 1º de dezembro de 1605 em que há des-
culpas, alegando “que quanto a minha verdade não bastara”, “que não
sou eu o senhor que disponha um homem sem culpas nem pelos maio-
res interesses do mundo”. Do mesmo modo até na nomeação de capi-
tão dos dois Barros, em que admite que “se um não queira servir, que
seja o outro”. Um donatário, com grandes poderes, não se determina
por essa indecisa forma e muito menos escreve, ou faz escrever e assina
por esse modo titubeante, ordens para prepostos ao governo de sua co-
lônia americana, no tempo em que a comum rudeza da linguagem tra-
duzia a rijeza dos caracteres.
A única coisa que consta nos arquivos municipais e estaduais,
contra João Pereira de Sousa, é a sua prisão, em 1597, “por culpa de sua de-
vassa”, quando comandava uma bandeira nos sertões da Parnaíba. Se essas
são as traições, irregularidades e audácia de João Pereira de Sousa, e de ou-
tras não falam os documentos, nenhuma procedência tem a acusação.
Mas examinando atentamente o trecho da carta de Lopo de
Sousa, vê-se que não é aí levantada contra João Pereira de Sousa a acusa-
ção de falsificador de provisões, que ele não foi.
260 Washington Luís
***
3 O Barão do Rio Branco, citando Del Techo na História do Paraguai, nas Efemérides
Brasileiras, dá também a João de Prado, a chefia dessa bandeira. No tempo em que
foram feitas as Efemérides Brasileiras, valiosíssima contribuição para a nossa História,
não tinham sido ainda publicados pelo Arquivo do Estado de S. Paulo os Inventários
e Testamentos, de modo que o Barão do Rio Branco não poderia retificar o equívoco
de Techo, não tendo tido conhecimento desses inventários. Aliás o equívoco tem
pouca importância para o estudo do devassamento e conquista do sertão.
Na Capitania de São Vicente 263
Capítulo XVI
DOMINGOS RODRIGUES
Capítulo XVII
D. FRANCISCO DE SOUSA
tão formoso, que podem navegar navios de alto bordo. Terá 80 vizinhos
com seu vigário”. “A terceira é a vila de Nossa Senhora de Itanhaém,
que é a derradeira da costa, que terá 50 vizinhos. A quarta é a vila de Pi-
ratininga que está doze léguas pelo sertão dentro, terá 120 vizinhos ou
mais.”
Para S. Paulo de Piratininga, a quarta e última vila da Capita-
nia de S. Vicente, a viagem foi feita em três dias. Embarcados em Santos
fizeram duas léguas por mar e uma por terra; no dia seguinte subiram a
serra, por caminho íngreme, em que, as vezes iam pegando com as
mãos. Ao terceiro dia navegaram por um rio de água doce, em canoas,
até peaçaba e deste ponto fizeram quatro léguas a cavalo até o Mosteiro
dos Jesuítas. O rio era o Jerubatuba ou Pinheiros e peaçaba era em
Emboaçava.
“Piratininga, informa Fernão Cardim, é vila de invocação da
conversão de S. Paulo, está do mar pelo sertão dentro, doze léguas; é
terra muito sadia, há nela grandes frios e geadas e boas calmas, é cheia
de velhos mais que centenários porque quatro juntos e vivos se acharam
quinhentos anos. Vestem-se de burel e pelotes pardos e azuis, de perti-
nas compridas, como antigamente se vestiam. Vão aos domingos à igreja
com roupões ou berneos de cacheira sem capa”.
“A vila, continua o Padre Cardim, está situada em bom sítio
ao longo de um rio caudal; terá cento e vinte vizinhos com muita escra-
varia da terra, não tem cura nem outros sacerdotes senão os da Compa-
nhia, aos quais tem grande amor e respeito e por nenhum modo querem
aceitar cura; os padres os casam, batizam, dizem missas cantadas, fazem
as procissões e ministram todos os Sacramentos e tudo por sua caridade;
não tem outra igreja na vila senão a nossa.”
“Dá-se trigo e cevada nos campos; um homem semeou uma
quarta de cevada e colheu 60 alqueires”.
João de Laet informa, porém, que o trigo era de má qualida-
de, não tinha bela cor, e só se usava para hóstias e para mimos, segundo
Gabriel Soares.
“Os padres têm uma casa bem acomodada, com um corredor e
oito cubículos de taipa, guarnecidos de certo barro branco” (R. I. H. G. B.,
1ª parte, vol. 65, págs. 58 e seguintes). Até aqui Fernão Cardim.
Na Capitania de São Vicente 279
zembro alimpou a pauta e achou que tinham saído para vereadores Jor-
ge Moreira e Tristão de Oliveira, para juízes João Maciel e Pero Leme e
para procurador do conselho Francisco Maldonado, mandando passar
cartas de confirmação para que servissem os seus cargos.
Devolvida a pauta à Câmara, esta juntou-se em vereação man-
dou chamar o ouvidor Diogo Arias de Aguirre, a fim de tomar parecer
sobre o voto que João Maciel havia dado em si mesmo para juiz. Posto
em prática este caso, assentaram todos que João Maciel devia ficar de
fora. Como os seguintes mais votados estavam empates, lançaram-se
sortes, nas quais saiu Gaspar Cubas. Ficou a Câmara completa para re-
ger a vila de S. Paulo e seus termos1.
O processo eleitoral, então observado, era o estabelecido na
Ord. Livro 1º, título 67 e seus parágrafos. Aí se determinava que a elei-
ção fosse trienal, sendo, porém o mandato anual. Elegiam-se tantos
quantos fossem necessários para servirem os cargos durante os três gru-
pos e postos em pelouro. Esses três pelouros eram metidos em um saco
e este em cofre com três fechadoras, cujas chaves ficavam em poder dos
vereadores do triênio anterior. No tempo próprio, à vista do povo, cha-
mado a conselho um menino, menor de sete anos, tirava um dos pelou-
ros e os nomes que nele constassem “seriam os oficiais desse ano e não
outros”.
A vila tinham também tabeliãs, juízes de órfãos, nomeados
pelo donatário.
Ao saber da próxima vinda de D. Francisco de Sousa à vila de
S. Paulo, a Câmara tomou para sua hospedagem as providências que es-
tavam a seu alcance. A Câmara tinha então minguadas, pequeníssimas
rendas. Não encontrei, nesse período estudado, o orçamento da sua re-
ceita e despesa. Pelo que se deduz eram todas eventuais. Compu-
nham-se em regra das multas impostas aos oficiais do conselho faltosos,
das coimas por infração de suas posturas, pelo aforamento das datas dos
chãos municipais, pelas fintas lançadas ao povo para feitura das obras
necessárias, como igrejas, cadeias, casas do conselho, etc. os caminhos e
dos certos navios com os 300 frecheiros que ele enviara do Espírito
Santo.
A comitiva encheu a pequena vila, o que não era difícil, e
transformou profundamente os costumes de seus habitantes.
A 16 de maio de 1599, ou pouco antes, já o Governador-geral
se achava na vila e S. Paulo (Atas, vol. 2º pág. 58).
Desde a Bahia já vinha ele diretamente intervindo na adminis-
tração da Capitania de S. Vicente, exercendo e absorvendo os poderes
do donatário, intervindo até na administração local determinando a fei-
tura e conservação do caminho do mar, o que a Câmara de S. Paulo pro-
videnciava com a lentidão de seus parcos recursos (Atas, vol. 2º, pg. 28,
38 e 39.
Capitães-Mores e ouvidores nomeava ele quantos julgava ne-
cessários e para as diversas enventualidades.
Em S. Paulo, D. Francisco de Sousa desenvolveu uma ativida-
de imensa, febril, do que restam muitos vestígios nas atas da Câmara.
Criou vilas – S. Filipe e Monserrate que não subsistiram _
prometeu à vila de S. Paulo que com o favor divino havia de ser cidade
antes de muito pouco tempo, com grandes mercês e privilégios aos mo-
radores, que ele havia de procurar com Sua Majestade (Reg. Geral, vol.1º,
pág. 125).
Armou cavaleiros e fez fidalgos a Pedro de Morais, a Sebas-
tião de Freitas, a Antônio Raposo, o velho, que registraram as suas pro-
visões nos livros da Câmara (Reg. Geral, vol. 1º, págs. 75, 105 e 117).
Outros teriam recebido iguais foros, que não registraram, o que não é
provável, ou que registraram e não foram encontrados por terem desa-
parecidos os respectivos livros de registro, o que é mais provável.
Vindo a morrer Diogo Gonçalves Lasso, D. Francisco de
Sousa nomeou a 31 de maio de 1601 o neto, do mesmo nome, ainda
menor, para o cargo de capitão da vila de S. Paulo e distrito das minas.
E, enquanto não chegasse ele à maioridade, serviria em seu lugar Diogo
Arias de Aguirre com todos prós e percalços que lhe pertencessem, e os
200$000 de ordenado seriam percebidos pela viúva, avó do nomeado,
Guiomar Lopes (Reg. Geral, vol.1º, págs. 133 e 134). Assim ele recom-
284 Washington Luís
Sousa não viu a fortuna coroar a empresa a que ele se dedicara inteira-
mente.
Fez partir para o sertão a companhia de André de Leão; esti-
mulou e ajudou com o seu prestígio de Governador-geral do Brasil a
formação e a partida da bandeira de Nicolau Barreto, ambas em busca
das minas que ele supunha no alto São Francisco, como se verá quando
se tratar dessas duas expedições. Nada conseguiu. Antes mesmo que a
bandeira de Nicolau Barreto voltasse a povoado, já tinha sido ele substi-
tuído no Governo-geral do Brasil por Diogo Botelho, que foi reacioná-
rio ao seu antecessor.
Apesar de substituído no Governo-geral do Brasil, ainda se
conservou em S. Paulo durante algum tempo, pelo menos até o ano de
1603, como se vê “no termo de ajuntamento que se fez para tratar da
volta dos soldados que vieram de Vila Rica do Espírito Santo (no Guai-
rá) “ajuntamento que se fez em presença de D. Francisco de Sousa”
(Atas, vol. 2º, págs. 138 e 139).
Nesse mesmo ano, em 9 de agosto, a Câmara da vila de S.
Paulo havia providenciado a aposentadoria do mesmo D. Francisco de
Sousa, e mais gente que com ele vinha, e disso sendo encarregada a ci-
gana Francisca Rodrigues (Atas, vol 2º, págs. 132 e 133). Quis ele sem
dúvida esperar o resultado da expedição de Nicolau Barreto, para se
apresentar em Madri com as provas da existência das grandes minas,
que com tanta obstinação buscava.
Partiu afinal para a Espanha.
Na Espanha reinava, então, Filipe III que, no Governo do
Brasil, substituíra D. Francisco por Diogo Botelho.
Lá D. Francisco de Sousa desenvolveu as suas habilidades
convencendo o Governo Espanhol da existência das famosas minas,
conseguindo que o Governo do Brasil fosse dividido em dois, dele reti-
rando as capitanias de Espírito Santo, Rio de Janeiro e S. Vicente, que
passaram a constituir a repartição do sul e dela foi encarregado o pró-
prio D. Francisco para a conquista e administração das minas descober-
tas e de todas as mais que ao adiante se acharem nas três capitanias
(Carta de 2 de janeiro de 1608).
288 Washington Luís
Capítulo XVIII
ANDRÉ DE LEÃO
Leão” com mais companhia foi buscar, logo ordenareis de me avisardes com reca-
do e cartas que trouxerem”... “mando ao Capitão Roque Barreto e ao Provedor
Pedro Cubas vos dêem... embarcação no porto de Santos por conta da fazenda de
sua majestade e todo o mais aviamento necessário que se lhes pedir e requerer
para o efeito de se mandar este aviso e entretanto”... “sucedendo que “André de
Leão”, ou pessoa que em seu lugar servir, vos peça algum favor para bem das di-
tas minas a que o mando, por lhe ser necessário, por causa do gentio inimigo que
lá se achar, logo procurareis de o socorrer com a gente desta capitania... como
também pedireis ajuda e ... ao dito Capitão Roque Barreto (e) vilas de Santos e
S. Vicente...”
Esse “regimento” está muito estragado pelas traças, mas
conserva frases suficientes para se concluir que D. Francisco de Sou-
sa mandou André de Leão e mais companhia descobrir e buscar de-
terminadas minas, as minas de prata. Estava ele tão seguro de as
achar que determinava ao seu Capitão Gonçalves Lasso e às autorida-
des locais todas as providências necessárias, mesmo por conta de Sua
Majestade, para que a notícia do descobrimento lhe fosse levada
onde ele estivesse.
No tempo em que, vindo da Bahia, D. Francisco de Sousa, es-
teve pela primeira vez em S. Paulo, aí vivia Guilherme Glymmer, fla-
mengo, que tomou parte em uma expedição ao sertão e que dela fez
uma descrição, que encontrou abrigo na obra de P. Maregrave – história
Botânica do Brasil – nos termos seguintes:
“Julgo a propósito inserir aqui o roteiro que recebi de Wilhelm
Glymmer, nosso compatriota. Conta ele que, na época em que vivia na Capitania de
S. Vicente, chegara àquelas paragens, vindo da Capitania da Bahia, Francisco de
Sousa; pois recebera de um brasileiro um certo metal, extraído, segundo dizia, dos
montes Sabaroason, de cor azul-escura ou celeste, salpicado de uns grânulos cor de
ouro. Tendo sido examinado pelos entendidos em mineração, reconheceu-se que esse
metal continha, em um quintal, trinta marcos de prata pura. Fascinado por essa
amostra, o governador, julgando conveniente explorar mais cuidadosamente esses
montes e as minas que eles encerravam, resolveu mandar para lá setenta ou oitenta
homens, entre portugueses e brasileiros. Fez parte dessa expedição o nosso Glimmer,
que dela faz a seguinte descrição:
Na Capitania de São Vicente 291
notasse cultura, não encontramos homem algum, apenas aqui e ali aldeias em ruí-
nas, nada que servisse para alimentação, além de hervas e algumas frutas silves-
tres; todavia, observávamos às vezes fumaça, que se erguia no ar, pois por aquelas
solidões vagueavam com suas mulheres e filhos alguns selvagens, que não tinham
domicílio certo e não curavam de semear a terra. Junto a este último rio, encon-
tramos, finalmente, numa aldeia de indígenas, víveres em abundância, que vi-
nham muito a propósito, visto que já estavam consumidos os que conosco tínhamos
trazido, e já a fome nos obrigava a comer frutos silvestres e hervas do campo.
“Tendo-nos demorado aqui quase um mês, abastecidos de vitualhas, proseguimos
a nossa viagem em rumo de noroeste e, decorrido um mês, sem encontrar rio al-
gum, chegamos a uma estrada larga e trilhada e a dois rios de grandeza diversa,
que, correndo do sul, entre as serras Sabaraasu, rompem para o Norte; e é mi-
nha opinião que esses dois Rios são as fontes ou cabeceiras do rio S. Francisco.
Da aldeia sobredita até estes rios não vimos pessoa alguma, mas soubemos que
além das montanhas vivia uma tribu de selvagens assás numerosa. Estes, infor-
mados (não sei como) da presença de europeus naqueles sítios, despacharam um
dos seus para nos espreitar. Caindo este em nosso poder, demo-nos pressa em ar-
ripiar carreira, de medo desses bárbaros e por nos escassearem os viveres, ficando
por explorar o metal por cuja causa haviamos sido mandados; e, quasi mortos de
fome, voltamos aquela aldeia de selvagens.
“Daí, recuperadas as forças e aparelhados os víveres, pelo mesmo cami-
nho por onde viéramos regressamos àquele rio, onde havíamos deixado as canoas, e,
revigorados, saltamos nela e subimos o rio até as suas fontes; e assim gastos nove
meses nesta expedição, voltámos primeiro a Mogomimin, depois, à cidade de S.
Paulo.”
Por sugestão de Capistrano de Abreu, Orville Derby fez um
estudo sobre o roteiro descrito por Guilherme Glymmer, inserido na
obra de Margraff, a fim de identificá-lo no terreno.
As sugestões de Capistrano de Abreu foram felizes, como
em regra as suas soluções, pois que Orville Derby era o homem capaz
de fazer bom trabalho, não só pelo seu saber e competência, como
pela sua experiência e prática que havia adquirido em estudar e explo-
rar as terras e rios percorridos pela expedição de que Glymnier fez
parte.
Na Capitania de São Vicente 293
2 Estes trechos em rumo de Norte a Sul, que não vêm representados na maioria das
cartas, são figurados ao excelente mapa que acompanha o trabalho do falecido dr.
Augusto de Abreu Lacerda sobre a bacia do rio das Mortes, no Boletim nº 3 da
Comissão Geográfica e Geológica do Estado de Minas Gerais.
Na Capitania de São Vicente 299
pelo Arquivo do Estado de S. Paulo (Vol. 4º, pág. 406), onde figura
“quitação que deu André de Leão ao dito defunto de seis mil réis, da
qual quantia perdeu o conhecimento que havia”.
Num estudo, que fez sobre o Hospital Velho da Santa Casa
do Rio de Janeiro (R.I.H.G.B. vol. 89, pág. 204) o Sr. Vieira Fazenda re-
fere-se a um documento de doação de chãos aos religiosos capuchos,
em 28 de Fevereiro de 1592, no qual assinam Salvador Correia de Sá,
Governador do Rio de Janeiro, o administrador eclesiástico, e em tercei-
ro lugar, logo em seguida, André de Leão, e depois mais dezesseis pes-
soas.
Se, é o mesmo da entrada de 1601, André de Leão estava no
Rio de Janeiro, antes dessa entrada.
Também na “Relação das Sesmarias da Capitania do Rio de
Janeiro”, extraída dos livros de Sesmarias e Registro do Cartório do Ta-
belião Antônio Teixeira de Carvalho – de 1565 a 1796 – feita por Mon-
senhor José Pizarro de Sousa Azevedo e Araujo, consta a sesmaria con-
cedida a “André de Leão”, de 300 braços na lagoa, em 19 de Janeiro de
1593 (R.I.H.G.B., vol. 63, 1ª parte, pág. 108), também antes da entrada.
A não ser o caso de homonomia, freqüente nos tempos colo-
niais, André de Leão teria vivido no Rio de Janeiro.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Capítulo XIX
NICOLAU BARRETO
quadra, que começará a partir pelo caminho para o dito rio da Paraíba e
fica... para o rio Anhembi (Idem, v. 1º, pág. 90).
A 1º de Abril de 1610, mais uma vez esse capitão-mor con-
cedeu a Domingos Agostin em Boigi-Mirim uma légua de terra do ou-
tro lado do Anhembi partindo com Gaspar Vaz (Idem, vol. 1º, págs.
91 e 92).
A 15 de Março de 1611, Amador Bueno, morador em S. Paulo,
em petição ao Capitão-Mor Gaspar Conquero, declarando que está in-
formado que junto a Maria Álvares, dona viúva, mulher que foi de Ma-
nuel Eianes, perto de S. Miguel, aldeia dos índios, estão terras devolutas
para a banda de Mogi, as pede etc. (Idem, vol. 1º, pág. 145).
Por Aguiar Barriga é concedida em Mogi-Mirim, a Manuel da
Siqueira e a Francisco Bicudo, moradores em S. Paulo, filhos e netos de
povoadores e conquistadores, uma légua de terras, nas cabeceiras do Pa-
dre João Alvres e outros, que com elas partem, rio acima em Taquaquece-
tiba no termo da vila de Santa-Ana da outra banda do Anhembi (Idem,
vol. 1º, págs. 252 e 253).
A 4 de Janeiro de 1641 é concedida a João Portes de El Rey e
outros, filhos e netos de povoadores e conquistadores desta capitania,
na vila de Santa Anna das Cruzes de Mogi-Mirim duas Léguas de terras de
matos daninhos pelo rio arriba à mão esquerda do rio Anhembique
(Idem vol. 1º, pág. 418).
Nessas sete sesmarias – das quais as duas primeiras trazem a
data de 1609, época muito próxima à da partida da bandeira de Nicolau
Barreto – nessas sesmarias o nome e escrito de diversas maneiras; mas
as indicações locais, que o acompanham como a Serra Tapeti, que fica
na vizinhança de Mogi das Cruzes, o rio Anhembi, a barra do rio Guaiaó, a
aldeia de S. Miguel, Tacuaquecetuba (acidentes geográficos e povoações
intermediárias entre S. Paulo e Mogi das Cruzes), Boacica, o rio Paraíba,
as confrontações coincidentes com Gaspar Vaz e com o Padre João
Alvres, levam a identificar, sem dúvida alguma, Boigi, Mogi, Mogi-Mi-
rim com Sant-Anna das Cruzes de Mogi-Mirim e afirmar que Mogi-Mi-
rim, antiga povoação que se fez na sesmaria de Brás Cubas, fundada por
Brás Cardoso, criada vila em 1611, elevada a cidade em 1855, é a atual
Mogi das Cruzes.
308 Washington Luís
1 Na cópia inserida na nota do Pe. Paulo Pastells, encontra-se, após o milênio 1602,
uma interrogação, entre parênteses, o que parece por em dúvida o ano da entrada
de Nicolau Barreto. Não sei se a dúvida aparece no escrito de Pe. Pastells ou de
Pe. Mancilla. Que a entrada de Nicolau Barreto foi realizada em 1602, não pode
sofrer dúvidas à vista dos documentos aqui citados. Essa dúvida, porém, pode
aparecer e certamente refere-se a aprisionamento de índios que iam sendo levados
em 1602, para as missões jesuíticas do Guairá, porque estas só começaram em
1607, com os Padres Maceta e Cataldino e foram organizadas pelo Pe. Antônio
Roiz de Montoya depois de 1610, isto é, anos depois da bandeira de Nicolau
Barreto. A província jesuítica do Guairá recebeu organização formal em 1607,
mas lá já havia começado a catequese, como se infere dessa nota. Mas antes
mesmo das missões do Padre Roiz de Montoya, já os jesuítas mandavam buscar
índios no sertão de S. Vicente para os cristianizar nas suas reduções.
Na Capitania de São Vicente 311
2 Anais do Museu Paulista, vol. 1º, pág. 244, Documentos espanhóis do Arquivo de
Sevilha, mandados copiar por Afonso D’Escragnolle Taunay, quando Diretor do
Museu Paulista, e nos Anais deste Museu publicados por sua diligência e iniciativa.
Na Capitania de São Vicente 313
3 Corumbataí. Repare-se que Teodoro Sampaio no seu livro já citado, à pág. 90, ensina
que a Serra de Corumbataí estava próxima ao rio das Velhas.
316 Washington Luís
4 Teodoro Sampaio no seu livro O Tupi na Geografia Nacional – Glossário, pág. 206,
escreve Guaimihy, por guaymi-y, o rio das Velhas, Minas Gerais. Em documentos de
1600 e 1603 o grande afluente da direita do rio S. Francisco é chamado Guibihy.
O b em tupi é sempre, ou quase sempre, nasalado (mb) e, como todas as
articulações primitivas dessa língua, não era bem pronunciado; e muitos ora
ouviam mais o m e outros mais o b, desaparecendo, às vezes, daí o escrever
Guabihy e Guaimihi. O mesmo fenômeno se observa na palavra Mogi, que ora se
encontra, escritos com M Mogi e ora com B Boigi. E na toponomia, em S. Paulo,
ainda se encontra a forma mb, como na forma tão conhecida da povoação Mboy,
próxima à cidade de S. Paulo que se pronuncia comumente Embu.
Couto de Magalhães, no seu livro O Selvagem (pág. 13), já chamando a atenção dos
estudiosos da língua tupi para o M e B que freqüentemente se substituíam nessa
língua, aconselhava que esses estudiosos deveriam sempre ler as palavras em voz
alta para julgar o sentido das palavras pelo som que ouvissem e não pela letra que
vissem. Em suma, a língua tupi não estava ainda fixada quanto à sua pronúncia, o
que fazia variar a sua escrita.
318 Washington Luís
19 – Matias Gomes “ “ “ “
23 – Baltasar de Godoy “ “ “ “
25 – Duarte Machado “ “ “ “
26 – Geraldo Correia “ “ “ “
27 – Paschoal Leite “ “ “ “
31 – Manuel Affonso “ “ “ “
32 – Rafael de Proença “ “ “ “
34 – Domingos Dias “ “ “ “
35 – Manuel de Chaves “ “ “ “
36 – Pero Nunes “ “ “ “
37 – Aleixo Leme “ “ “ “
38 – Bento Fernandes “ “ “ “
39 – .......... Leme “ “ “ “
40 – Mateus Neto “ “ “ “
41 – Antônio Bicudo “ “ “ “
43 – André de Escudeiro “ “ “ “
44 – Francisco de Siqueira “ “ “ “
45 – Pero Martins “ “ “ “
46 – Domingos Fernandes “ “ “ “
Na Capitania de São Vicente 321
47 – Lourenço da Costa “ “ “ “
48 – Nicolau Machado “ “ “ “
49 – Antônio Pedro “ “ “ “
50 – Francisco Ribeiro “ “ “ “
51 – Lourenço Nunes “ “ “ “
52 – Manuel Rodrigues “ “ “ “
53 – Salvador Pires “ “ “ “
54 – Simão Leite “ “ “ “
55 – Diogo Peneda “ “ “ “
56 – João Dias “ “ “ “
58 – Estêvão Ribeiro “ “ “ “
59 – João Gago “ “ “ “
62 – Manuel Preto “ “ “ “
63 – Francisco Alvarenga “ “ “ “
66 – Antônio Ferreira “ “ “ “
67 – Manuel Machado “ “ “ “
70 – Miguel Gonçalves “ “ “ “
72 – Simão Jorge “ “ “ “
322 Washington Luís
* * Azevedo Marques na sua Cronologia, 1604 diz que nesse ano de 1604, Afonso
Sardinha, o moço, fez testamento no sertão escrito pelo Padre João Alvres.
O Padre João Alvres realmente esteve no sertão no ano de 1604, na bandeira de
Nicolau Barreto.
Se Affonso Sardinha fez testamento em 1604, escrito pelo Pe. João Alvres no ser-
tão, só poderia ser no sertão, onde se achava o Pe. João Alvres, com a tropa de
Nicolau Barreto.
Afonso Sardinha, pois, fez parte da bandeira de Nicolau Barreto.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Capítulo XX
FIM DO PRIMEIRO GOVERNO DE D. FRANCISCO DE SOUSA –
ALGUMAS BANDEIRAS – VOLTA DE D. FRANCISCO DE SOUSA
APÓS A DIVISÃO DO GOVERNO-GERAL DO BRASIL EM DOIS,
CABENDO-LHE A REPARTIÇÃO DO SUL (ESPÍRITO SANTO,
RIO DE JANEIRO E SÃO VICENTE) COM A ADMINISTRAÇÃO
DAS MINAS A DESCOBRIR
A
de Espanha.
FILIPE II, em 1594, sucedera Filipe III, no trono
haver contrários no caminho” (Atas, vol. 2.º, págs. 126 e 127). Câmara e capi-
tão-mor estavam alarmados e procuravam justificações.
Os boatos deveriam fervilhar na pequena povoação, fazendo
a guerra de nervos com ameaças de devassas tremendas, penas severíssi-
mas, confiscos, etc.
Começou a derrubada, as autoridades locais, menos as eleti-
vas, que entretanto já eram outras, foram mudadas pelo donatário e pelo
Governador-Geral.
Foi no momento o triunfo da catequese religiosa sobre a co-
lonização leiga com a escravização do indígena.
A Câmara assustou-se e resolveu dirigir-se diretamente ao
Governador-Geral, Diogo Botelho, e o fez em carta escrita a 19 de ju-
lho de 1603, na qual, dizendo a verdade, procurou ser hábil (Atas, vol.
2.º, pág. 130).
Nessa longuíssima carta, com ingenuidade manhosa, entende-
ram os oficiais da Câmara de avisar, como se Diogo Botelho ignorasse o
regime das capitanias, que o Governador-Geral havia feito o provimen-
to dos cargos de capitão-mor e ouvidor, sem dúvida por não estar infor-
mado que tal nomeação, pelo foral e carta de doação de Sua Majestade a
Martim Afonso e aos seus sucessores, pertencia ao donatário da capita-
nia de S. Vicente, então Lopo de Sousa a quem a Câmara não queria dar
motivo de queixas.
Informavam mais que os moradores da capitania, muito
pobres, eram idos ao sertão a mandado do capitão-mor Roque Barreto,
a requerimento das Câmaras, com parecer do Governador-Geral passa-
do D. Francisco de Sousa; que essa entrada de Nicolau Barreto, muito
perigosa e de pouco proveito, fora feita à custa dos moradores pela muita
necessidade em que todos estavam para cultivo das terras e para prove-
rem a própria subsistência. Insinuavam que se ao sertão fosse a delibera-
ção das severas medidas punitivas, cuja notícia já então corria, nenhum
dos que lá estavam, voltaria à vila e de lá mesmo todos tomariam cami-
nho do Pequeri (naturalmente pelo caminho trilhado pelos 700 índios
referidos na carta do Pe. J. Mansilla), que era província do Rio da Prata,
do que resultaria o abandono das mulheres e filhos, ficando a terra sem
moradores, as minas sem benefício e a colônia ao desamparo.
326 Washington Luís
bem Francisca Rodrigues, cigana, a qual foi dado juramento dos Santos
Evangelhos” (Atas, vol. 2.º, págs. 132 e 133).
Ainda se confirma a sua permanência em S. Paulo num termo
lavrado antes de setembro de 1603 (a requerimento do capitão Pedro Vaz
de Barros, na casa da Câmara, em que tomaram parte o vereador Fran-
cisco Viegas, o Juiz João da Costa e diante de D. Francisco de Sousa)
onde se lê que se praticou sobre a volta de quatro companheiros que
vieram de Vila Rica do Espírito Santo, no Paraguai, e que para lá queriam
voltar, mas temiam algum desastre por terem fugido alguns índios que
consigo haviam trazido. Nessa reunião foi resolvido que, a bem do pro-
veito, que se esperava da reabertura do caminho por terra entre S. Paulo
e Vila Rica, para o comércio entre as duas vilas, ambas habitadas por
cristãos e pertencentes ao mesmo rei, se desse a esses companheiros
toda a ajuda de gente e de fazenda, pelo menos 15 a 20 homens, que fi-
cassem conhecendo os sítios e inimigos (Atas, vol. 2.º, pág. 138). Tudo
isso na presença de Luís de Almada Montarroio.
Esses companheiros eram espanhóis e chamavam-se: João
Benitez de la Cruz, Pero Caminha, Pero Gonçales e Sebastião de Peralta,
despachados pelo seu capitão-mor, D. Antonio de Anhasque, e tinham
vindo por terra pela antiga vereda entre S. Paulo e o Paraguai e se acha-
vam em S. Paulo, pelo menos, desde 22 de novembro de 1603 (Atas, vol.
2.º, pág. 136).
Luís de Almada Montarroio, nesse ano de 1603, a 3 de no-
vembro, fez registrar a renúncia do cargo de capitão-mor e ouvidor que
exercia (Atas, vol. 2.º, pág. 137).
D. Francisco de Sousa só deixou a capitania de S. Vicente,
“quando uma ordem régia transmitida por Diogo Botelho a 19 de março
de 1605 assim o determinou; e, então, se decidiu a transpor o oceano le-
vando consigo mineiros, impedindo que comunicassem a quem quer
que fosse o resultado de suas pesquisas, de indústria e prudência”, se-
guindo para Madri diretamente onde se achegou ao Duque de Lerma
para realizar os planos que arquitetara, segundo Capistrano de Abreu
(Prolegômenos ao Livro da História do Brasil por Frei Vicente do Salva-
dor, pág. 257).
“Muito se receava no Brasil, pelo muito dinheiro que havia gastado
da fazenda de Sua Majestade, que (“a D. Francisco”) lhe tomassem no
328 Washington Luís
reino estrita conta; como, porém, nada tomou para entesourar, antes do
seu próprio gasto, como o outro grão capitão, não tratou el-rey senão de
lhe fazer mercês. E porque ele não pedia mais que o marquesado das Minas
de S. Vicente, o tornou a mandar a elas, com o governo do Espírito
Santo, Rio de Janeiro e mais capitanias do Sul” – (História do Brasil,
Frei Vicente do Salvador, pág. 418).
Deixou S. Vicente, mas voltaria com maiores poderes ainda,
como adiante se verá.
Diogo Botelho mandou para a capitania um mineiro-mor,
Juan Munhoz de Puertos com um ajudante Francisco Vilalva, que se
apresentaram à Câmara de S. Paulo a 22 de agosto de 1603, para faze-
rem as diligências, ensaios, e fundições do ouro, prata e mais metais,
conforme escrituras que traziam, porque no conselho real houve certas
contradições ao ouro que o Sr. Dom Francisco mandou por Diogo de
Quadros e outras pessoas (Atas, vol. 2.º, pág. 134).
No volume 2.º das Atas da Câmara de S. Paulo, págs. 173 e
174, está o traslado da provisão da nomeação de Antônio Pedroso de
Barros e de Pedro Vaz de Barros, lavrada em Lisboa a 21 de novem-
bro de 1605, e assinada por Lopo de Sousa, donatário da Capitania
de S. Vicente, como já foi analisado.
Na capitania de S. Vicente esmoreceu durante algum tempo a
iniciativa das entradas ao sertão.
Ninguém melhor que a Câmara da vila de S. Paulo poderia
dar notícia do estado da capitania como se vê na carta de 13 de janeiro
de 1606, mandada a Lopo de Sousa, o donatário, à qual pertencem os
seguintes trechos curiosos:
“Já vossa mercê será sabedor como Roque Barreto sendo capitão
mandou ao sertão 800 homens brancos a descer gentio e gastou dois
anos na viagem com muitos gastos e mortes, e por ser contra uma lei de
el-rei que os padres da companhia trouxeram, o Governador-Geral Di-
ogo Botelho mandou provisão para tomar o terço para ele, e depois veio
ordem para o quinto; sobre isto houve aqui muito trabalho e grandes
devassas e ficaram muitos homens encravados, que talvez haja nesta
vila hoje mais de 65 homiciados, não tendo ela mais de 190 morado-
res; se lá for informado de que a gente desta terra é indômita, creia vos-
sa mercê o que deve aos seus, que não há quem sofra tantos desaforos”.
Na Capitania de São Vicente 329
1 Dela também fizeram parte, Antônio Raposo, o velho, Matias Gomes, Mateus
Luís Grou, Manuel Ribeiro Boto, João Moreira, Pascoal Delgado, Manuel
Rodrigues, Luís Ianes Grou, Estêvão Raposo, o moço, Manoel Requeixo,
Domingos Barbosa, Miguel Gonçalves e seu irmão Jerônimo Gonçalves;
Lourenço Cabrera, Manuel Pires, Mateus Neto, Domingos Fernandes.
332 Washington Luís
Capítulo XXI
§ 1º GUAIRÁ
3 A Vida Social del Coloniaje – Esquema de la Historia do Alto Perú, hoy Bolivia, pág. 12.
350 Washington Luís
inequívocas feitas pelo Padre Pablo Pastells, na sua obra Historia da Com-
panhia de Jesus en la Província del Paraguay. Pablo Pastells, lealmente indica
esses documentos, com suas datas, mas deles faz resumos curtíssimos,
principalmente, dos que se referem aos feitos de D. Luís Céspedes y
Xeria. A Coleção de Angelis, publicada pela Biblioteca Nacional e co-
mentada pelo Sr. Jaime Cortesão, traz muitos desses documentos.
Segundo a publicação agora autêntica, na íntegra, desses do-
cumentos, nos Anais do Museu Paulista, é fácil acompanhar a difícil via-
gem e os diversos feitos de D. Luís Céspedes Y Xeria.
Segundo narra esse Governador do Paraguai, após 15 dias de
sua nomeação foi a Cádiz e daí saiu para Lisboa, a fim de seguir para a
América e tomar posse do seu governo; mas nessa cidade teve que se
demorar um ano pois que aí, por causa da guerra com os holandeses,
havia ordem de não sair navio algum, antes que partissem as naus das
Índias, que eram comboiadas por forças militares marítimas. Afinal par-
tiu de conserva com essas naus até certa altura e afastando-se seguiu
para Salvador, na Capitania da Bahia de Todos os Santos. Aí assistiu ao
ataque feito pelos holandeses. Foi muito bem recebido pelo Governador
Geral, Diogo Luís de Oliveira, que lhe proporcionou transporte maríti-
mo até o Rio de Janeiro. Da Bahia escreveu ao rei de Espanha a 30 de
julho de 1627 (Documentação Espanhola – Anais do Museu Paulista, v. 1º,
pág. 168). No Rio de Janeiro casou-se com D. Victoria de Sá, filha de
Gonçalo de Sá, este irmão de Martim de Sá, Governador do Rio de
Janeiro, e, 15 dias depois, partiu por mar para Santos, por não ter en-
contrado monção para o Rio da Prata. Deixando sua mulher no Rio de
Janeiro, foi ela mais tarde a ele se reunir, pelo mesmo caminho fluvial do
Anhembi, sendo conduzida desde S. Paulo, por André Fernandes, um
dos fundadores de Santana do Parnaíba.
D. Victoria foi também acompanhada por seu primo Salvador
de Sá y Benevides, que consigo levou 30 soldados portugueses, em
setembro de 1629 (Anais do Museu vol. 2º, pág 265).
Em S. Vicente, a 22 de junho de 1628, alegando possuir as licen-
ças necessárias do Governo de Espanha para passar por terra ao Paraguai,
D. Luís requereu ao ouvidor da capitania, então Amador Bueno, que com
grandes penas, fossem publicados editais para que nenhuma pessoa, de
qualquer qualidade que fosse, o acompanhasse nessa sua viagem, a não ser
354 Washington Luís
Informa mais que eram maus vassalos, não somente em sua pá-
tria, mas nas províncias vizinhas, a que iam andando 200 e 300 léguas para
cativar os índios das reduções. Eles mesmos se fazem capitães, alferes e sar-
gentos, levantam bandeiras, tocam caixas e atacam as reduções, carregando
os índios, as imagens das igrejas, sem consentimento de seus governadores,
ou melhor “governadores que tudo sabem e nada remedeiam”.
O que está acima é pequeno resumo das informações manda-
das ao rei (Idem vol. 1º, pág. 183 e seguintes).
Informa também que viajou por terra, umas 40 léguas (natu-
ralmente desde Santos) até onde se embarcou no Tietê, (naquele tempo
conhecido por Anhembi ) com infinitos trabalhos e perigos por não ha-
ver outro caminho, depois de ter estado aí um mês a fazer fabricar canoas
de árvores imensas.
Desceu o rio Tietê em 32 dias, e desse Tietê debuxou, com yerbas
dei paiz, um grosseiro mapa, rudimentar mas interessante, mapa que foi
enviado à Espanha, e que o Museu Paulista fez copiar em Sevilha, e se
acha publicado na Coletânea de Mapas de Cartografia Paulista Antiga.
Em seguida desceu o rio Paraná em 8 dias e visitou as redu-
ções de Santo Inácio e Loreto, situadas no rio Paranapanema (Idem,
págs. 183 e 184) e encontrou-as prósperas e florescentes.
Grandes foram os desconfortos, os incômodos, os sofrimen-
tos, os perigos que D. Luís Céspedes teve nesta viagem fluvial, e aos
quais ele apenas se refere.
Para, de longe, se avaliar basta ler a descrição, que fez Theoto-
nio José Zuarte de idêntica que realizou, em 1769, por ordem de D. Luís
Antônio de Sousa Mourão, cento e cinqüenta anos depois, época, em
que as canoas deveriam ser melhores, os remadores e pilotos mais des-
tros e os recursos maiores.
A não ser o receio dos piratas ingleses, holandeses e france-
ses, que infestavam os mares sem piedade, ou ordem do Governo espa-
nhol para conhecer verdadeiramente a situação da Vila de S. Paulo e as
entradas, que faziam os seus moradores, não se compreende que um
governador fizesse tal viagem (Vide Anais do Museu Paulista, vol. 1º,
pág. 43 e seguintes).
356 Washington Luís
cos, com tal constância e veemência, com acusações tão fortes que leva-
ram o Governador a processo judicial na audiência de Charcas.
Foi o que mais ou menos sucedeu em S. Paulo, no tempo do
Capitão-Mor Jorge Correia, que quis impedir as guerras ofensivas contra
os índios, e que mandou entregar as aldeias indígenas aos jesuítas.
As causas foram as mesmas e forçosamente ocasionariam
choques entre tais orientações, evitadas em S. Paulo pela habilidade de
D. Francisco de Sousa, que se transportou, como Governador-Geral
para a Capitania de S. Vicente, e nela soube conjugar, durante algum
tempo, todos esses interesses, que se contrariavam, amortecendo-os
com o descobrimento de minas de metais preciosos.
Só a leitura do processo judicial feito em Charcas, a vista das
acusações, defesa e suas respectivas provas, pode permitir julgamento
seguro sobre o conflito entre os jesuítas e D. Luís Céspedes, num tempo
de escravização de índios e de catequese religiosa.
Os jesuítas acusaram o governador de cumplicidade com os
bandeirantes nas invasões do Guairá, baseando-se nas suspeitas que nas-
ciam do casamento de D. Luís com D. Vitória de Sá, da família dos Sá
do Rio de Janeiro, da ida com Manuel Preto, do comboio organizado
por André Fernandes e que transportou D. Vitória para a companhia de
seu marido no Governo do Paraguai, na venda dos índios aprisionados
nas reduções para os engenhos dos Sá no Rio de Janeiro, na intromissão
e nenhuma assistência dada por Céspedes y Xeria contra as invasões.
Esta última circunstância já era o próprio conflito.
Cabe, entretanto, dizer que esse governador do Paraguai,
proibiu por bandos lidos nas ruas das povoações espanholas, a venda de
armas de fogo aos índios e aos religiosos jesuítas (Anais do Museu Pau-
lista, vol. 2º, pág. 41).
O Governo Espanhol em Madri, mandou sindicar as acusa-
ções feitas pelos jesuítas a D. Luís Céspedes, por Hernandarias Saavedra,
que, por muito velho e enfermo, fez as diligências por terceira pessoa.
Todas as acusações foram confirmadas (Anais do Museu Paulista, vol.
2º, págs. 267 a 269 da documentação espanhola).
Como quer que seja pode-se concluir que D. Luís Céspedes y
Xeria, Governador do Paraguai, não foi um indivíduo ponderado e não
358 Washington Luís
***
***
4 Já sobre ele fiz um estudo que o Instituto Histórico de S. Paulo acolheu na sua
Revista, estudo confirmado na obra de Pastells.
Em 1926 viajei o rio Amazonas e lá parei em Gurupá, onde Tavares, destroçado
em 1651, chegou com restos de uma bandeira, depois de ter percorrido a
Sul-América, do Sul ao Norte. Nesse ano de 1926, em Curupa, havia um vilarejo
em ruínas, com poucos habitantes e muita maleita; e aí, depois de assumir a
Presidência da República, mandei restaurar o antigo forte, o que foi executado
pelo Ministério da Guerra.
Em 1936, em Beja, no Além-Tejo de Portugal, onde Tavares nasceu em 1598,
procurei os registros de nascimento, que, depois da República, foram recolhidos
às repartições civis; mas não tinham ainda sido catalogados. Deixei pedidos
instantes para que fossem eles procurados.
Na Capitania de São Vicente 375
5 Da qual faziam parte Luís Anes Grou, Pero Domingues, Antônio Dias Grou,
André Botelho, Antônio de Oliveira, Antônio da Silva, Jácome Nunes, capitão
Baltasar Gonçalves Malio, Diogo Gomes, Ascenço Luís Grou, Antônio do Prado,
Manuel de Oliveira, Miguel Garcia Carrasco, Antônio Fernandes, João de Prado,
Manuel de Soveral, Domingos do Prado, João de Oliveira, Bernardo Fernandes,
João Lopes, Rui Comes Martins, Jerônimo Luís, Isaque Dias Grou, Sebastião
Fernandes, o velho (Inv. e Test. , vol. 7º, pág. 431).
376 Washington Luís
vras lancinantes com que para a catástrofe pediam nas cartas remédio
aos seus superiores, ao papa, ao rei, a Deus. Foram até S. Paulo, a S. Vi-
cente, ao Rio de Janeiro, onde foram amparados pelo padre Antônio de
Mattos; foram até Salvador, na Bahia. Em todas as partes só encontra-
ram ouvidos moucos, donde concluíram que todos eram cúmplices da
6
cativação ou tinham receio de se envolver em tal questão .
6 Vide essas cartas na Documentação espanhola, publicada nos Anais do Museu Paulista,
vol. 2º, pág. 247 e seguintes; vide também a lista dos bandeirantes que tomaram
parte nestes assaltos (Idem págs. 245 e 246), que vai em seguida.
Relación de los portugueses que en companhia de Antonio Raposo Tavares deshicieron tres re-
ducciones de indios canos que doctrinaban en el Paraguay los religiosos de la Compania de Jesus.
(17 de septiembre de 1629. Archivo General de Indias – Estante 74 – Cajón 3 –
Legajo 26
Jhs.
Memoria de los Nombres de algunos portugueses de la Compania de Antonio
Raposo Tavares, que deshizieron tres Reducciones de yndios carios que estauan
doctrinando los Padres de la Companïa de Jesus del Paraguay como se refiere en
la Relacion que va con esta.
Antonio Raposo Tavares, y su hermano Pascual y su suegro
Manuel Piris, y dos hijos suyos.
Saluador piris, y dos, o tres hijos suyos.
Antonio Pedroso.
Manuel Morato.
Simeon aluares con 4 hijos suyos.
Fedrique de Melo su yerno.
Manuel de Melo Cotiño.
Pedro de Morais.
Baltasar Morais con sus dos yernos.
Diogo Rodriguez Salamanca y
Francisco Lemos.
Pedro Cotiño.
Simon Jorge, y sus dos hijos.
Onofre Jorge, y su hijo I.
Antonio Bicudo el viejo.
Antonio Bicudo de Mendoca.
Antonio Bicudo otro.
Domingo Bicudo.
Sebastian Bicudo.
Francisco Prouença con dos hijos.
Matheos Nieto com dos hijos.
Gaspar da Costa.
378 Washington Luís
Asenso Ribero.
Manuel Macedo.
Andres Furtado.
Fulano Pechoto.
Saluador de Lima.
Consalo Piris.
Antonio Lopez.
Antonio Sylua Ração.
– N. Sylua Sirgero.
El hijo de Amador Bueno oydor de San Pablo llamado Ameno Bueno y su yerno.
Francisco Roldao, y sus hermanos.
Hieronimo, y Francisco Bueno.
Castilla de Mota, y su hermano.
Simon de Mota.
Sebastian Fretes.
Antonio Luys gro, y su hijo, y su herno.
Juan Rodrigues beserano.
Gyraldo Correa, y su dos hijos, y su herno.
Esteuan Sanchez.
Bernardo de Sosa, y au cuñado.
Asenso de Quadros.
Antonio Raposo el viejo com sus hijos.
Juan
Esteuan, y
Antonio
Pedro Madera con su hijo.
Gaspar Vas, y su cuñado.
Manuel Aluares Pimentel.
son sesenta y nuebe, de los demas no sabemos aun los nombres.
Castilla de Mota, y su hermano.
Simon de Mota.
Sebastian Fretes.
Antonio Luys gro, y su hijo, y su herno.
Juan Rodrigues beserano.
Gyraldo Correa, y sus dos hijos, y su herno.
Esteuan Sanchez.
Bernardo de Sosa, y au cuñado.
Asenso de Quadros.
Antonio Raposo el viejo coa sus hijos.
Juan
Esteuan, y
Antonio
Na Capitania de São Vicente 379
rosa devassa para prisão dos delinqüentes e restituição dos índios cativa-
dos. Voltaram os padres Simão Mazzetti e Justo Mansilla e já estavam de
novo em S. Paulo, a 30 de julho de 1630. Aí, o povo reuniu-se e impediu
que eles entrassem no Mosteiro da Companhia de Jesus. Eles se acolhe-
ram à casa de Manoel Fernandes Sardinha, que tal asilo ofereceu, e só
daí saíram em virtude de petição feita pelo padre Francisco Ferreira, Re-
itor do Colégio de S. Paulo.
A presença dos dois padres causou grande alvoroço.
O alvoroço e as violências foram ocasionadas por correr na
terra que eles traziam uma provisão para processar os moradores de S.
Paulo (Atas, vol. IV, págs. 62 e 63).
Nas aldeias, na vila e seu termo, os índios fremiam e propaga-
ra-se que todo o gentio se ia levantar; os moradores todos se colocaram
em armas e a Câmara ordenou que os capitães de ordenanças passassem
a residir na vila com suas companhias.
O ouvidor Francisco da Costa Barros nada fez; pelo menos a
respeito nada consta nos arquivos locais, e os padres Mazzetti e Mansilla,
vendo que se preparava nova invasão ao Guairá, trataram de se retirar.
Nesse ínterim uma bandeira avulsa, desgarrada atacou ao ama-
nhecer a redução de S. Paulo a 22 de junho de 1630 (Corpus Christi). Rece-
ando os padres a mesma sorte para Encarnación, que ficava a poucas jorna-
das, fizeram dela retirar os neófitos para S. Francisco Xavier. Desses regur-
gitava S. Francisco Xavier com os que aí já estavam e com os que fugi-
ram de Encarnación, a qual por sua vez já contava os restos não aprisio-
nados de S. Miguel, Jesus Maria, e Santo Antônio. Em 1631 os padres tive-
ram aviso que os paulistas de novo se aproximavam. Tentaram defen-
der-se fazendo uma paliçada à roda da redução. Mas à “uma hora da tar-
de com muito estrondo e bárbara algazarra os bandeirantes invadiram o
pátio da redução”. Enquanto aprisionavam os indígenas, um deles, “em
hábito de beato, com uma ropa talar de lienzo acolchada de algodon,
davam ao rio Paraná. Essa denominação – Rio Grande – era dada a di-
versos rios. O próprio Tamanduateí foi assim chamado.
Efetivamente Fernão Dias Pais, de 2 a 19 de abril de 1638 es-
8
teve acampado no sertão do Rio Grande, com uma bandeira , (Invent. e
Test., Vol. 11, págs. 239 e 253).
Em 12 de maio de 1637, Francisco Bueno, irmão de Jerônimo
Bueno, tinha também o seu arraial no sertão, com uma bandeira de que
era cabo (Invent. e Test., vol. 11, pág. 200). Por morte de Estêvão Gonçal-
ves, se fez o seu inventário, sem se declarar o nome do sertão, e foram
vendidos em leilão os bens apresentados por seu pai Baltasar Gonçalves
9
Malio. É possível que fosse o sertão do rio Taquari .
Já as bandeiras dirigindo-se para oeste tinham chegado ao rio
Paraná, tinham-no atravessado segundo as narrativas jesuíticas, e a Santa
Cruz de la Sierra, que hoje é boliviana, preparando o caminho para o
norte do continente.
Os padres da Companhia pediram socorro ao Governador de
Buenos Aires, D. Mendo de la Cueva y Benavides, e este em 2 de janeiro
de 1638 fez correr bando para acudir as reduções ameaçadas pelos por-
tugueses de S. Paulo.
Esse socorro, que se compôs de 11 espanhóis, sob o mando
do mestre de campo Gabriel Insaulrade, em março de 1638, só pôde
atestar que chegaram aos campos da redução destruída, onde souberam
que mais três tinham sido também destruídas e outras três tinham sido
obrigadas a mudar-se para sítios mais seguros (Brabo).
8 Dela faziam parte entre outros Antônio da Silveira, Romão Freire, João Nunes da
Silva, Valentim de Barros, Luís Dias Leme, Pero Dias Leme, Sebastião Gil, o moço,
Pascoal Leite Pais, Pero Agulha de Figueiredo, Salvador Simões, João de Santa Ma-
ria, Pascoal Leite Fernandes, Cristóvão de Aguiar Girão, Gaspar da Costa, Maurício
de Castilho, o moço, Manuel de Castilho, Sebastião Antônio, o moço, Antônio
Gonçalves Perdomo, Paulo da Costa, João Favacho, Fructuoso da Costa, Domin-
gos Leme da Silva, André Fernandes, Mateus Leme, Lu... Marinho, Domingos Bar-
bosa, João de Oliveira, Pascoal Ribeiro.
9 Dessa bandeira, além das pessoas acima indicadas, faziam parte Manuel da Cunha,
escrivão do arraial, Gregório Ferreira, Cristovão Mendes, Francisco de Siqueira,
Pero Vidal, João Pais Malio, o moço, Bernardo da Mota, João Fernandes, Cama-
cho Antônio de Siqueira, Antônio de Botelho, Domingos Carda, Francisco da
Cunha, Henrique da Cunha, todos arrematantes ou fiadores.
390 Washington Luís
14 Faziam parte dessa bandeira os soldados, Pero Lemos que era o escrivão do arraial,
Paschoal Neto, Silvestre Ferreira. Estêvão Fernandes, Gaspar Maciel Aranha,
Alberto de Oliveira, Rafael de Oliveira, o moço, João Maciel Bassão, Gaspar Vaz
Madeira, Domingos Borges Cerqueira, Antônio Roiz, Mateus Neto, João Machado,
João Nunes, Pascoal Leite, Baltasar Glz. Vidal, João Roiz, Benjamim Paulo Pereira,
Antônio Pedroso de Freitas, cujos nomes constam como arrematantes e fiadores
dos bens do morto.
15 Nessa bandeira tomaram parte também João de Godoy, que foi escrivão do in-
ventário, Antônio de Faria Albernaz e José Ortiz de Camargo, Miguel Nunes, Je-
rônimo Rodrigues, Baltasar Gonçalves Vidal, Duarte Borges Coluntreiro, Luís
Feyho, Francisco de Chaves, Fernando de Godoy, João Massiel Bassão, como ar-
rematantes e respectivos fiadores da fazenda do morto, ida a leilão.
Na Capitania de São Vicente 393
16 Padre Lozano, Conquista do Rio da Prata, vol. 1º, pág. 17, publicação feita por
Andrés Lamas.
394 Washington Luís
Dois outros padres foram para Stª Thereza com duzentos ín-
dios, ambos os grupos com armas de fogo. Voltaram todos.
Abandonando, segundo as informações, o caminho de terra,
que trilhavam as expedições anteriores, os paulistas vinham agora pelo
rio Uruguai, fora dos lugares onde havia espias.
A 8 de janeiro de 1641, o Pe. Cláudio Ruyer fez convocação ape-
nas de 2.000 índios dos povos, ficando a maior parte das forças de pronti-
dão, com ordem de se juntar todas ao primeiro aviso e com eles seguiu
para Acaraguá com a intenção de aí fazer frente ao inimigo. Daí mandou os
padres Cristobal Altamirano, Diogo de Salazar, Antônio de Alarcone e o ir-
mão Pero Sadone, com bom número de índios, fazer, rio acima, um reco-
nhecimento sobre o intento, número e posição dos paulistas, não perdendo,
porém, ocasião, se a encontrassem boa, de atacá-los.
§ 3º
TAPES E MBORORÉ
18 Desse terço faziam parte Sebastião Gonçalves, João Correia, Domingos Cordeiro,
Valentim Cordeiro Malio, Francisco Mattoso, Gaspar Correia, Antônio Borges,
Fernando Dias Borges, Antônio Rodrigues, Domingos Pires, Francisco Barreto,
Mathias Cardoso, Pedro Cabral de Melo, João Leite, João de Pinha, João Dias Pe-
res, Antônio da Cunha, Mateus Alves Grou, Francisco de Siqueira, Antônio de
Carvalhaes, Antônio de Aguiar, Antônio Fernandes Sarzedas, Jorge Dias, Domin-
gos Pires Valadares, Sebastião Pedroso Bayão, Manuel de Moraes, Pero da Silva,
Francisco...................., Pero Lourenço, Amador Lourenço, Simão Borges, João Pi-
res Monteiro, Gonçalo Guedes, Pero Nunes Dias, Baltasar Gonçalves, Domingos
Furtado, Bartolomeu Alves, Miguel Lopes, Antônio Pedroso de Barros, Clemente
Álvares (Vide Inventários e Testamentos, vol. 11, pág. 497). A qualificação dada a Je-
rônimo Pedroso encontra-se na narrativa jesuítica.
398 Washington Luís
20 A destruição das reduções jesuíticas pode ser lida com minudências em Insignes
Missioneros e em Roiz Montoya em Índias por Jarque, em Hist. Prov. Paraguarice por
Del Techo, Hist. du Paraguay por Charleroix, em Inventário de las Missiones por Xavier
Brabo e em outros. Há, nessas narrativas confusas, contradições e até fábulas e
muitas exagerações.
O Barão do Rio Branco ocupou-se magistralmente do assunto, quando represen-
tante do Brasil na Questão das Missões. Desses escritos me servi para este trabalho.
406 Washington Luís
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