Pensar Ver

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Maria Continentino Freire

“Pensar ver: Derrida e a desconstrução do ‘modelo


ótico’ a partir das artes do visível”
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011750/CA

Tese de Doutorado

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia


da PUC-Rio como requesito parcial para obtenção do título de
Doutor em Filosofia.

Orientador: Prof. Paulo Cesar Duque Estrada

Rio de Janeiro
Setembro de 2014
Maria Continentino Freire

“Pensar ver: Derrida e a desconstrução do ‘modelo


ótico’ a partir das artes do visível”
Tese apresentada como requisito parcial para a obtenção do
grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia
do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Ciências
Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora
abaixo assinada.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011750/CA

Prof. Paulo Cesar Duque Estrada


Orientador
Departamento de Filosofia – PUC-Rio

Prof. Luiz Camillo Dolabella Portella Osorio de Almeida


Departamento de Filosofia – PUC-Rio

Prof. Roberto Charles Feitosa de Oliveira


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO

Prof. James Bastos Areas


Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ

Fernando Antonio Soares Fragoso


Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ

Profa. Denise Berruezo Portinari


Coordenadora Setorial do Centro de Teologia
e Ciências Humanas – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 10 de setembro de 2014


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial
do trabalho sem autorização da universidade, da autora e do
orientador.

Maria Continentino Freire

Graduou-se em Comunicação Social pela Universidade Federal do


Rio de Janeiro em 2003. Em 2005, concluiu a pós-graduação lato-
sensu em Arte e Filosofia na PUC-Rio, onde também fez o mestrado
em filosofia, defendendo dissertação em torno do pensamento de
Jacques Derrida, em 2010. Trabalha com cinema desde 1997 como
assistente de direção e montadora. Dirigiu o curta-metragem
“Temporal”, vencedor de três prêmios em festivais de cinema
nacionais no ano de 2003.
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Ficha Catalográfica

Freire, Maria Continentino

“Pensar ver: Derrida e a desconstrução do ‘modelo ótico’ a


partir das artes do visível” / Maria Continentino Freire ; orientador:
Paulo Cesar Duque Estrada. – 2014.
194 f.; 30 cm

Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de


Janeiro, Departamento de Filosofia, 2014.
Inclui bibliografia

1. Filosofia – Teses. 2. Derrida. 3. Artes visuais. 4. Estética.


5. Desconstrução. 6. Cinema. 7. Desenho. I. Duque Estrada,
Paulo Cesar. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Departamento de Filosofia. III. Título.

CDD: 100
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Para os meus fantasmas, que assombrando inspiram:


Claudia e Laura, que não vejo mais
e Arthur, que não vejo ainda.
Agradecimentos

À Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, ao CNPq e à CAPES pelas


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bolsas concedidas que tornaram esta tese possível.

Ao Paulo Cesar Duque-Estrada, eterna gratidão por ter me apresentado ao


pensamento de Derrida, pela orientação e por anos de cursos sempre estimulantes.

À Fernanda Bernardo por ter encorajado o percurso desta tese na relação entre
arte e desconstrução, pelo cuidado e dedicação da orientação, pela riqueza dos
seminários e pelo acolhimento em Portugal.

Aos professores e funcionários do departamento de filosofia da PUC-Rio.

À Cecilia Gusmão Wellisch pelo suporte sem medida.

À Ana Maria Continentino, além de tudo, pelo diálogo constante.

A Ernani Freire e Angela Giacobbe pelo acolhimento e apoio deste percurso.

A Felipe Continentino e Silvia Naidin pelo encorajamento.


A Yara e Sylvio Continentino pelo entusiasmo e curiosidade.

Ao Quim pelo sono ao pé da escrita e pelas refrescantes caminhadas noturnas.

Ao Rafael Hadock-Lobo pela generosidade das trocas e por me ensinar sempre.

À Carla Rodrigues por poder contar nos momentos mais urgentes.

Ao Eduardo Vidal por descomplicar e complexificar.

Ao Michael Naas pela generosidade do envio de textos importantes para este


trabalho.

Aos amigos do percurso acadêmico cujo companheirismo tornou esse trajeto mais
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rico e mais alegre: Ana Fay, Denise Dardeau, Gabriela Dunhofer, Jorge Sayão,
Leinimar Pires, Marianna Poyares, Marlon Miguel, Paola Gheti, Paula Padilha,
Rodrigo Brum, Rômulo Martins e Thiago Faria.

Às novas e velhas amizades de Portugal que ajudaram de formas diferentes em


terras estrangeiras: Alzira Arouca, Brisa Paim, Carlos Abraços, Carlos Freixo,
Catarina Carvalho, Claudia Renault, Filipa Costa, Janaína Rocha, João Paulo
Santos, João Rocha, Mariah Teixeira, Pedro Loureiro, Rafael Todeschini, Sandra
Farias, Sara Lamares, Sebastião Miguel, Sofia Coutinho, Tatiana Salem, Thais
Continentino, Vanda Pignataro e Zita Martins.

Aos amigos da vida pelo amor de sempre, mesmo no meu afastamento: Catalina
Baeza, Claudia Solano, Juliana Saba e Thiago Barros.

À Luisa Duarte, amiga querida, por lembrar constantemente que além de escrever
é preciso dançar.

À família Continentino pelo interesse e acompanhamento deste percurso.


Resumo

Freire, Maria Continentino; Duque Estrada, Paulo Cesar (Orientador).


“Pensar ver: Derrida e a desconstrução do ‘modelo ótico’ a partir das
artes do visível”. Rio de Janeiro, 2014. 194p. Tese de Doutorado –
Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.

Esta tese se propõe a refletir a postura de Jacques Derrida diante das obras
de arte ditas visuais. Partindo de uma invisibilidade na fonte de todo visível,
Derrida problematiza a estrutura hierárquica do pensamento estético, abrindo uma
outra abordagem artística não sobre, mas em torno das obras. O famoso tema de
um abalo desconstrutivo no pensamento metafísico da presença desdobra-se, neste
trabalho, na in-visibilidade do traço do desenho e na espectralidade da imagem
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cinematográfica.

Palavras-chave

Derrida; artes visuais; estética; desconstrução; cinema; desenho.


Résumé

Freire, Maria Continentino; Duque Estrada, Paulo Cesar (Directeur de


thèse). "Penser à ne pas voir: Derrida et la déconstruction du 'modèle
optique' à partir des arts du visible". Rio de Janeiro, 2014. 194p. Thèse
de Doctorat – Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro.

Cette thèse vise à penser le point de vue de Jacques Derrida vis-à-vis les
oeuvres d’art visuels. En partant d’une invisibilité à la source du visible, Derrida
met en question la structure hiérarchique de la pensée esthétique en ouvrant une
autre approche, non pas sur les images, mais autour d’elles. Le célèbre thème du
choc déconstrutif dans la pensée métaphysique de la présence est traité, ici, dans
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l’in-visibilité du trait du dessin et dans la spectralité de l’image


cinematographique.

Mots-clés

Derrida; arts visuels; esthétique; déconstruction; cinéma; dessin.


Sumário

Introdução 11

1. (Re)pensar o pensamento: a desconstrução da 19


metafísica como uma experiência do im-possível
1.1. A experiência desconstrutiva 19
1.2. A dimensão inventiva da desconstrução 29
1.3. Invenção da identidade 42
1.4. Explosão da linguagem: a escrita 52
1.5. O tempo fora dos eixos: anacronia desconstrutiva 70
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2. (Re)pensar as artes: em torno das obras 79


2.1. A desconstrução em obra 79
2.2. A invisibilidade do traço 97
2.3. Os debaixos das artes 133

3. Espectrografia: arriscar um pensamento 139


desconstrutivo do cinema

4. Adeus: despedida e saudação 172

5. Referências bibliográficas 177

6. Anexos 187
“Tudo quanto faço, sobretudo quando escrevo, parece-se com um jogo de
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cabra-cega: aquele que escreve, sempre à mão, mesmo quando se serve de


máquinas, estende a mão como um cego para lograr tocar aquele ou aquela
a quem poderia agradecer pelo dom de uma língua, pelas próprias palavras
nas quais se diz pronto a dar graças, a pedir graça também”.
Jacques Derrida

“Escrevo sem ver. Vim. Queria beijar-vos a mão (...) Eis a primeira vez que
escrevo nas trevas (...) sem saber se formo caracteres. Por todo lado em que
não houver nada, lede que vos amo”.
Denis Diderot

“É preciso falar do fantasma, até mesmo ao fantasma e com ele, uma vez que
nenhuma ética, nenhuma política, revolucionária ou não, parece possível,
pensável e justa, sem reconhecer em seu princípio o respeito por esses outros
que não estão mais ou por esses outros que ainda não estão aí,
presentemente vivos, quer já estejam mortos, quer ainda não tenham
nascido”.

Jacques Derrida
11

Introdução

Esta tese inicia-se por instalar uma dúvida, uma suspeita, no seu próprio
valor de tese. A expressão que a intitula – pensar ver – concede uma dupla leitura:
por um lado, ela pode dar a entender – fazendo soar a falta de uma articulação
entre os dois verbos – que o trabalho desenvolvido aqui é aquele de “pensar o
ver”, de um pensamento do visível. Essa primeira leitura, talvez, mais adequada à
proposição de uma tese, pode nos fazer acreditar que o nosso objetivo é
estabelecer ou aprofundar uma relação de saber, de conhecimento, entre o pensar
e o ver. No entanto, deslocando essa leitura, o foco da nossa atenção direciona-se
à dimensão mais corriqueira desta expressão da língua portuguesa que,
extraordinariamente, suspende a certeza do olhar e faz aparecer no verbo pensar o
seu efeito de crença: quem pensa ver, acredita que vê, acha que vê, vacila na
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indecidibilidade, entre o visível e o invisível. E é nesta suspensão da certeza,


nesta dúvida e nesta instabilidade do pensar, tanto quanto do ver, que
pretendemos nos arriscar, tateantes, não numa tese mas numa hipótese, na
hipótese do pensar ver.
Tradução proposta por Fernanda Bernardo para o título de um texto de
Jacques Derrida – Penser à ne pas voir1 –, acreditamos, junto com ela, que esta
expressão da língua portuguesa, apesar de corresponder menos literalmente ao
título original do texto em francês, dá conta do que se quer seguir aqui como uma
desconstrução do modelo ótico no pensamento do filósofo franco-argelino. Essa
expressão, abandonada na aparente desarticulação entre as ações dos seus dois
verbos postos lado a lado, articula uma outra relação do pensamento com a visão.
Uma relação que Derrida gosta de chamar de relação sem relação, tecida num
nada a ver entre um e outro e que, de forma surpreendente, põe para trabalhar um
movimento tipicamente desconstrutivo de deslocamento da ordem do sentido
metafísico. É como se esses dois verbos, uma vez articulados entre si, nos
pusessem a (re)pensar seus sentidos “originais”. É como se, depois do pensar ver,

1
Texto recentemente publicado na França no livro de mesmo título, que inclui uma série de textos
em torno das artes do visível. DERRIDA, J. Penser à ne pas voir. Écrits sur les arts du visible
1979-2004. Paris: Éditions de la différence, 2013.
12

nem o pensar nem o ver pudessem deixar de ser questionados na sua pretensão de
plenitude.
Deste modo, a expressão pensar ver já aponta para o que chamamos aqui
de uma desconstrução do modelo ótico, consistindo na denúncia derridiana de um
privilégio do visual ou de uma autoridade do olhar que, junto com uma imposição
do logos e um valor de presença, para Derrida, dominam a história da filosofia,
fundamentalmente, conferindo-lhe uma dogmaticidade e uma pretensão de
hegemonia sobre outros discursos. Como Derrida confessa:

Aprendi com a filosofia que ela é um campo hegemônico, estruturalmente


hegemônico, que considera todas as regiões discursivas como dependentes dela.
E por meio de uma desconstrução desse gesto hegemônico podemos começar a
ver, em cada campo (...) a possibilidade de emancipação da hegemonia e da
autoridade do discurso filosófico.2

Se a denúncia de um logocentrismo e de uma metafísica da presença na


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filosofia são temas recorrentes e dos quais não se pode escapar quando tratamos
da desconstrução, contudo, a abordagem dessa autoridade do olhar só aparece
tematizada de forma explícita na obra de Derrida mais tardiamente e, na maior
parte das vezes, naquelas obras que giram em torno das artes ditas “visuais”,
como o desenho e o cinema. A partir da leitura dessas obras, em que Derrida trata
de uma certa experiência da invisibilidade ou da cegueira, principalmente em
3
Mémoires d’aveugle e em algumas entrevistas e palestras publicadas
recentemente no livro Pensar em não ver4, acreditamos ser possível associar o seu
interesse pelo abalo de uma autoridade do visual às suas problematizações mais
antigas em relação ao que é estrutural na filosofia e a partir das quais o
pensamento de Derrida ficou conhecido como o pensamento da desconstrução.
Derrida assume:

2
DERRIDA, J. “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida.” In: Pensar em não ver.
Escritos sobre as artes do visível (1979-2004). Tradução: Marcelo Jacques de Moraes.
Florianópolis: Editora UFSC, 2012. p. 20.
3
Id., Mémoires d’aveugle: l’autoportrait et autres ruines. Éditions de la Réunion des Musées
Nationaux, Paris: 1990.
4
Id., Pensar em não ver. Escritos sobre as artes do visível (1979-2004). Florianópolis: Editora
UFSC, 2012.
13

É em meio a essa situação que eu me debatia no momento em que acreditei (...)


que o que dominava o logos ocidental, a filosofia, os discursos ocidentais, a
cultura ocidental, especialmente sua forma filosófica, era precisamente a visão, a
referência ao menos metafórica ao visual. (...) poderíamos dar mil exemplos: a
filosofia é estruturada por uma metafórica sem metáfora da visão, em razão
justamente desse valor de presença. O eidos, a determinação do ser, em Platão,
como eidos, os senhores sabem disso, quer dizer precisamente o contorno de uma
forma visível. Não é da visibilidade sensível que se trata, mas de uma (...)
visibilidade inteligível. (...). O que chamamos de intuição, intueri, significa ver, o
intuicionismo é uma teoria do ver imediato. O valor de fenômeno (phainesthai) é
o que brilha, o que se vê, trata-se ainda de um privilégio do visível. O valor de
evidência, o valor de clareza, até mesmo o valor de verdade, a aletheia ou o
desvelamento é a não dissimulação, o que se mostra e que estava escondido, é o
desocultado, o desmascarado. (...) E mesmo a palavra “teoria”, theorein, é
“olhar”. A teoria da contemplação, o privilégio do teorético é um privilégio da
visão; portanto esse privilégio da ótica foi dominante, (...) acredito que ele
dominou de fato toda a história da metafísica5.

Portanto, o modelo ótico do qual pretendemos percorrer aqui a


desconstrução, refere-se a uma associação imediata, na ocidentalidade filosófica,
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entre ver e saber, garantindo à filosofia a autoridade do seu discurso, já que ela
fia-se na plenitude da visibilidade como certeza e testemunha do acesso à verdade
do que quer que seja.
Quanto à abordagem filosófica das artes, por exemplo, esta autoridade
manifesta-se na crença na possibilidade de acesso pleno – pela visão, no caso das
artes ditas “visuais” – à obra. Acreditando poder desvelar sua verdade teorizando
sobre ela, a filosofia faz falar aquilo que a obra não diz, porque não é pretensão da
arte dizer ou fazer sentido. É desse modo que a filosofia pretende conferir voz ao
mutismo da obra, conferir logos ao que não pertence à ordem do discurso.
Tratando do tema que nos importa aqui, isto é, do modelo ótico, podemos
pensar que, para Derrida, a filosofia teria a pretensão de se opor à arte na medida
em que enxerga na sua própria origem uma visão plena, de pura inteligibilidade,
de presença do sentido, enquanto, por outro lado, reconhece na origem da arte um
desvio, um afastamento da verdade, como uma invisibilidade. Assim, para a
tradição filosófica, toda arte partiria de uma cegueira, de um desconhecimento ou
um afastamento do sentido, enquanto, ao contrário, a filosofia partiria da luz, da
pura visibilidade, da certeza. Percebemos, então, de que modo haveria uma
oposição sustentada pela metafísica entre uma visibilidade inteligível, como coisa
do pensamento e, uma visibilidade sensível, como coisa das artes. Deste modo,
5
DERRIDA, J. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 81 - 83.
14

chamar metafisicamente as artes, como o desenho, a pintura e o cinema, de artes


“visuais”, seria afirmar uma oposição entre sensível e inteligível que sustenta
também uma oposição entre arte e filosofia, já que a visibilidade em questão em
qualquer arte só poderia se tratar da queda da visibilidade inteligível. Se não
houvesse essa oposição metafísica entre sensível e inteligível não poderia haver
uma autoridade da filosofia sobre a arte. Como os editores do livro Pensar em não
ver argumentam:

O visível é para Derrida o lugar da oposição fundamental entre o sensível e o


inteligível, a noite e o dia, a luz e a sombra. Ele tem por base todos os valores do
aparecer ontológico e fenomenológico – o fenômeno (phainesthai), a teoria
(theorein), a evidência, a clareza ou a verdade, o “des-velamento” – que instituem
uma forte hierarquia filosófica dos sentidos. Consequentemente, o visível será
desde então denunciado por Derrida a cada vez que esse privilégio do óptico for
posto como a questão que domina toda a história da metafísica ocidental.6
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Denunciando, assim, a crença metafísica em uma visibilidade inteligível,


como presença do sentido na origem do pensamento, opondo-se a uma
visibilidade sensível, como queda e desvio da arte, Derrida desconstrói essa
oposição hierárquica, admitindo, ao contrário, que é a experiência da arte, ou seja,
a experiência de uma invisibilidade na origem, que nos contaria a (não) verdade
do pensamento. Em outras palavras, a desconstrução assume-se como
desconstrução da filosofia na medida em que admite no pensamento a mesma
origem invisível comum à arte, abalando, desse modo, a oposição metafísica entre
(visibilidade) sensível e (visibilidade) inteligível e, portanto, entre arte e
pensamento.
Acreditamos que são as artes nomeadas pela metafísica de “visuais” que
representam, para Derrida, uma maior resistência à crença da filosofia na
plenitude da visão. Com efeito, se metafisicamente nos acostumamos a chamar as
artes que trataremos aqui, como o desenho ou o cinema, de artes “visuais”,
acreditamos que, para a desconstrução, poderíamos chamá-las, antes, de artes do
in-visível, na medida em que o que elas nos mostram é uma invisibilidade como
interdição a si, como impossibilidade de sua apropriação ou de sua doação ao
conhecimento ou à teorização. E, portanto, o que elas nos proporcionam é uma
experiência da in-visibilidade. Por isso, se no título da tese chamamos essas artes
6
MICHAUD, G.; MASÓ, J; BASSAS, J. Pensar em não ver. p. 9.
15

como sendo “do visível” é para podermos, ao mesmo tempo, nos remeter ao termo
metafísico “visual” a que estamos acostumados – crentes na plenitude da visão –,
mas também, desconstruir esta ilusão de pura visibilidade, conjugando este termo
com o valor da invisibilidade, dando-lhe, assim, o caráter aporético desconstrutivo
do in-visível. Pois, como entenderemos, a invisibilidade de que Derrida fala não é
simplesmente oposta à visibilidade, mas sua condição de im-possibilidade, que
não acaba com a experiência do visível, mas a contamina por uma certa cegueira.
Portanto, esperamos que sempre que falarmos em artes “do visível”, nos
lembremos do invisível na sua origem sem origem, remetendo à sua
impossibilidade de redução à verdade.
Muitas vezes, Derrida escapa desta nomeação metafísica de referência ao
visual chamando-as, a estas artes, de “espaciais”, já que este termo também lhe é
estratégico uma vez que o movimento desconstrutivo que o filósofo faz com o seu
texto pode ser chamado de espaçamento. Nas palavras de Derrida:
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Se de fato eu digo “espacial” mais facilmente do que “visual”, eu daria a seguinte


razão: é porque não estou certo de que o espaço seja essencialmente entregue ao
olhar. Obviamente quando digo “artes espaciais”, isso me permite, de um modo
econômico e estratégico, ligar essas artes a um conjunto geral de ideias sobre o
espaçamento, na pintura, na fala, e assim por diante; e também porque o espaço
não é necessariamente aquilo que é visto (...). Assim, as artes visuais são também
artes de cego.7

Acreditamos que é esta experiência de invisibilidade proporcionada pelas


artes que Derrida sublinha como o espaçamento do pensamento em seus textos,
fazendo resistência ao logocentrismo filosófico e problematizando a fronteira
entre arte e pensamento. Como ele assume: “a ideia é indicar de uma maneira
polêmica que o pensamento está ocorrendo na experiência da obra, ou seja, que o
pensamento está incorporado nela – há uma provocação para pensar da parte da
obra, e essa provocação para pensar é irredutível”8.
Assim, entendemos que, para a desconstrução, o pensamento “não se
reduz nem ao saber, nem ao conhecimento, nem à consciência, nem à razão” 9,
mas ele é concebido como o que, do invisível, chama o pensar. Esta dimensão do

7
DERRIDA, J. “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida.” In: Pensar em não ver.
p. 46.
8
Ibid., p. 47.
9
Id., “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 74.
16

pensar está nos rastros do que Heidegger propôs em Was heißt Denken?,
traduzido em francês como Qu’appelle-t-on penser? Segundo Derrida, Heidegger
inflexiona a sintaxe desta pergunta de seu título, fazendo-a dizer

‘O que o pensamento chama?’ (...) ‘O que o pensamento convida?’. Trata-se


portanto de convidar, de prometer. O pensamento é também pensável em um
movimento pelo qual ele chama a vir, ele chama, ele nos chama, mesmo que não
saibamos de onde vem o chamado, o que significa o chamado; ele chama (...)
Questão de hospitalidade: o pensamento chama, ele é hospitaleiro em relação a
quem vem, justamente.10

É entendendo tanto as obras do pensamento como as obras de arte como


resposta a esse chamado desconhecido que pretendemos apresentar uma relação
sem hierarquia entre o pensamento desconstrutivo e as obras de arte, deslocando,
assim, o logocentrismo que comanda as estéticas tradicionais, pois estas não
assumem que possa haver um pensamento (não logocêntrico) da obra. Como
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Derrida explica:

É na medida em que o pensamento excede a filosofia que ele me interessa. Disso


se presume que haja artes práticas do espaço que excedem a filosofia, que
resistem ao logocentrismo filosófico (...). Neste ponto é necessário dizer que há
pensamento, alguma coisa que produz sentido, sem pertencer à ordem do sentido,
que excede o discurso filosófico e questiona a filosofia, que potencialmente
contém um questionamento da filosofia, que vai além da filosofia11.

Assim, se a desconstrução ousa falar da obra de arte, não o faz, contudo,


na pretensão de teorizá-la, mas antes deixando-se contaminar pelo não verbal:

Sendo bastante categórico, eu diria que a ideia de que a desconstrução deveria se


confinar à análise do texto discursivo – sei que essa ideia é bastante difundida – é,
na verdade, ou bem um grande equívoco ou uma estratégia política desenhada
para limitar a desconstrução a assuntos de linguagem. A desconstrução começa
com a desconstrução do logocentrismo, e assim, querer confiná-la ao fenômeno
linguístico é a mais suspeita das operações.12

10
DERRIDA, J. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 75.
11
Id., “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida.” In: Pensar em não ver. p. 46 e 47.
12
Ibid., p. 30.
17

Se apostando neste alerta derridiano nos concentramos, no primeiro


capítulo desta tese, em torno da desconstrução da linguagem foi sempre tendo em
vista a abertura que esta operação promove para um outro pensamento do estético
e de tantos outros temas que a filosofia sempre subordinou à autoridade do logos.
Portanto, decidimos passar pelo movimento de perturbação que a desconstrução
promove no pensamento metafísico, pois acreditamos que é esta perturbação de
temas caros à filosofia que nos permitirá, nos capítulos seguintes, desdobrar a
desconstrução mais explicitamente como abalo de um privilégio do visual e,
portanto, de um modelo ótico enquanto dogmaticidade do discurso filosófico.
Assim, o primeiro capítulo concentra-se na experiência desconstrutiva de
(re)pensar o pensamento, focando-se no deslocamento de temas caros à tradição
filosófica e que, ao mesmo tempo, nos ajudarão a pensar a posição derridiana
diante da obra de arte. Dividimos este capítulo em cinco seções, num primeiro
momento, tentamos introduzir de forma mais geral a posição desconstrutiva diante
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do pensamento filosófico ressaltando sua dimensão im-possível. A seguir,


desdobramos o caráter im-possível da desconstrução na sua dimensão inventiva
como forma de responder à alteridade vinda de uma origem in-visível, inspiradora
tanto das artes como da filosofia. Num terceiro momento, estendendo ainda o
tema da invenção, percorremos a desconstrução do conceito tradicional de
identidade que nos permitirá discutir a impossibilidade de apropriação da obra de
arte assumida por Derrida. Num quarto momento, acompanhamos a liberação da
escrita de sua redução fonética, promovida pela tradição do pensamento
metafísico, liberando uma noção de escrita alargada que nos permitirá pensar as
obras de arte a partir de uma ideia de rastro e de différance. A partir desta ideia de
escrita, as obras liberam-se da crença metafísica na presença de um sentido em
sua origem que amarra o pensamento estético tradicional a uma clausura
logocêntrica. E, finalmente, num quinto e último momento, pensamos uma
anacronia desconstrutiva como a temporalidade do rastro que desconstrói a ideia
de presença e de presente e, consequentemente, de qualquer pretensão metafísica
de estabilidade.
No segundo capítulo, concentramo-nos na experiência desconstrutiva de
(re)pensar as artes. Este capítulo funciona como uma espécie de espelho do
primeiro, na medida em que desdobra o pensamento desconstrutivo sob um outro
ponto de vista, um ponto de vista diante da obra de arte, assumindo ainda mais
18

uma experiência de in-visibilidade. Dividimos este capítulo em três seções. Num


primeiro momento, pretendemos mostrar como, pensando diante das obras, a
desconstrução põe-se em obra, expondo-se a si mesma como pensamento. Essa
exposição de si como desconstrução, lega-nos um pensamento das artes que não
pode mais ser chamado de estético porque desconstrói, denuncia o sentido
metafísico das estéticas tradicionais e, deste modo, desloca o pensamento das
artes de uma pretensão restituitiva. Num segundo momento, nos dedicamos à
experiência do desenho como Derrida nos dá-la a pensar, expondo a in-
visibilidade do traço tanto do desenho quanto da escrita e deslocando a
propriedade do olho da visão para o choro. Num terceiro momento, dedicamo-nos
ao que, encontrando-se “debaixo” das artes, as estéticas tradicionais costumam
ignorar. Para a desconstrução, ao contrário, este “debaixo”, como suporte ou
subjétil das obras, é inseparável de sua superfície e é o que lhe confere o “valor”
de obra de arte.
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No terceiro e último capítulo, arriscamos um pensamento desconstrutivo


do cinema como a arte de fazer os fantasmas retornarem. A experiência da in-
visibilidade do traço desenvolvida no capítulo anterior é retomada aqui, pelo
ponto de vista cinematográfico, como uma espectrografia ou uma escrita dos
espectros, fazendo do assistir um filme uma experiência de ser observado pelo
cinema e seus fantasmas.
19

1
(Re)pensar o pensamento: a desconstrução da metafísica
como uma experiência do im-possível

1.1.
A experiência desconstrutiva

Trata-se, portanto, de introduzir o pensamento da desconstrução. De tentar


mostrar de que forma ele se relaciona com a tradição filosófica, marcando-se, por
um lado, como pensamento filosófico, ao mesmo tempo em que abala a própria
noção de filosofia. Trata-se, portanto, neste primeiro capítulo, de sublinhar os
traços da desconstrução, a fim de rastrear neles uma outra experiência do
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pensamento aberta por Jacques Derrida. Um pensamento que incumbe-se de


(re)pensar o pensamento, isto é, de (re)ler os textos da tradição, novamente,
insistentemente, sempre de uma outra maneira. Não por acreditá-los fracos na
intenção de superá-los, mas, ao contrário, por entendê-los outros a cada leitura,
inesgotáveis e, de certa forma, impossíveis.
Impossíveis no mesmo sentido em que seria impossível dizer o que é a
desconstrução. Uma impossibilidade que a própria desconstrução reconhece no
pensamento e toma para si como motor do seu pensar. Uma impossibilidade que,
veremos, faz tremer temas caros à filosofia – como a ideia de próprio e
propriedade, de identidade, de unidade, de totalidade, de origem, de presença, de
essência e etc. Temas que, abalados pela desconstrução, abalam também e num
mesmo sentido, a possibilidade de dizer diretamente, objetivamente, o que a
desconstrução é, uma vez que é o registro ontológico que está em questão. Como
Derrida explica:

Para ser bem esquemático, eu diria que a dificuldade de definir e portanto


também de traduzir a palavra ‘desconstrução’ se prende ao fato de que todos os
predicados, todos os conceitos definidores, todas as significações lexicais e
mesmo as articulações sintáticas que parecem em um momento se prestar a essa
definição e a essa tradução são também desconstruídas ou desconstrutíveis,
diretamente ou não, etc. E isso vale para a palavra, a própria unidade da palavra
20

desconstrução, como de toda palavra. Gramatologia coloca em questão a unidade


“palavra” e todos os privilégios que lhe são, em geral, reconhecidos, sobretudo
sob sua forma nominal. É, portanto, apenas um discurso, ou antes uma escrita que
pode suplementar esta incapacidade da palavra ser suficiente a um “pensamento”.
Toda frase do tipo “a desconstrução é X” ou “a desconstrução não é X” falta a
priori pertinência, digamos que ela é, ao menos, falsa. Sabes que um dos
problemas principais daquilo que se chama nos textos “desconstrução”, é
precisamente a delimitação onto-lógica e antes de tudo esse indicativo presente
da terceira pessoa: S é P.13

A insuficiência de que fala Derrida sobre a unidade da palavra dar conta de


uma ideia, diz respeito justamente a tal impossibilidade que o filósofo, como
dizíamos acima, reconhece ao pensamento. Para Derrida, nenhum conceito,
nenhuma palavra, podem se fechar sobre si mesmos totalizando e unificando um
pensamento, por isso a desconstrução não trabalha com conceitos e, sim, com o
que ele chama de quase-conceitos ou indecidíveis14. Este “quase” que antecede o
conceito, assume, entre outras coisas, a insuficiência de uma palavra dar conta de
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uma ideia, mostrando sua dependência de uma rede de significações, sua


necessidade de ser suplementada por todo um discurso, ou, para usarmos termos
derridianos, por toda uma escrita, para produzir efeitos.
Contudo, esta impossibilidade que não nos permite dizer diretamente o que
a desconstrução é, não deve ser entendida como uma intimidação ao pensar, ao
contrário, ela aponta para uma exigência radical, mais do que isso, uma exigência
hiperbólica15 que Derrida traz para o cerne do pensamento. Esta exigência hiper-
radical diz respeito ao reconhecimento da necessidade de se pensar para além da
clausura do sentido. Isto é, ela aponta para a impossibilidade de fechamento do
pensamento em supostas conclusões, em sentidos que se querem totalitários,
únicos, soberanos, que possam dar conta de algum discurso, de algum tema, de
uma vez por todas. Por isso, a desconstrução inscreve-se como pensamento,

13
DERRIDA, J. "Lettre à un ami japonais" In: Psyché: inventions de l’autre. II. Paris: Galilée,
1987-2003. p.13.
14
Sobre os indecidíveis citamos Derrida em Posições: “unidades de simulacro, “falsas”
propriedade verbais, nominais ou semânticas, que não se deixam mais compreender na oposição
filosófica (binária) e que, entretanto, habitam-na, opõem-lhe resistência, desorganizam-na mas sem
nunca constituírem um terceiro termo, sem nunca dar lugar a uma solução na forma da dialética
especulativa...”. In: DERRIDA, J. Posições. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2001. p. 49.
15
Em O monolinguismo do Outro, Derrida confessa o gosto pelo que ele chama de uma espécie de
hiperbolite generalisada que ele diagnostica como uma doença contraída na escola na Argélia
francesa. Cf. DERRIDA, J. O monolinguismo do Outro ou a prótese de origem. Tradução:
Fernanda Bernardo. Porto: Campo das letras, 2001. p. 66.
21

apresentando uma outra relação com o sentido, onde este não é nem a sua origem
nem o seu fim.
Isto não quer dizer, de maneira nenhuma que, ao pensar, Derrida não se
interesse pelo sentido ou pretenda abrir mão dele, mas, muito pelo contrário, ele
exige-se pensá-lo de maneira ainda mais radical e esta hiper-radicalidade é uma
marca da desconstrução, pois Derrida vai mostrar a necessidade de se pensar
“para-além” do sentido, algo assim como o sentido do sentido, ou a condição de
im-possibilidade do sentido. E eis aí o caminho sem caminho da desconstrução,
sua aporia, já que exigindo-se buscar uma espécie de “fundamento” do sentido,
Derrida reconhece também e, paradoxalmente, que este “fundamento” permanece
um segredo, que ao mesmo tempo em que sustenta, abala tudo o que se ergue a
partir dele. Dessa forma, o “fundamento” do sentido, seria, ao mesmo tempo, o
que resiste ao sentido, possibilitando-o apenas na condição de sua
impossibilidade, já que o possível só se estabelece em função de um impossível,
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do qual ele deriva e passa a existir, mas apenas como memória desse impossível.
Pois, para a desconstrução,

Um possível que fosse apenas possível (não impossível), um possível segura e


certamente possível, acessível de antemão, seria um mau possível, um possível
sem porvir, um possível já posto de lado, se se pode dizê-lo, confiante da vida.
Isso seria um programa ou uma causalidade, um desenvolvimento, um
desdobramento sem acontecimento. A possibilitação desse possível impossível
deve continuar sendo, de uma só vez, tão indecidível e, portanto, tão decisiva
quanto o porvir mesmo.16

A ligação inextrincável ou indecidível entre possível e impossível lembra


ao possível a sua origem desviada, interrompida, ferida da presença de um sentido
como seu fundamento dogmático. Isto é, lembra a ausência de um fundamento
que possa justificar um possível sem impossível. Este duplo eixo im-possível da
desconstrução marca o seu caráter aporético ou quase-transcendental, na medida
em que não nos permite pensar um possível que já não seja contaminado por um
impossível, ou melhor, na medida em que não nos permite pensar um possível que
não tenha origem num impossível.

16
DERRIDA, J. Papel máquina. Tradução: Evando Nascimento. São Paulo: Estação liberdade,
2004. p. 258 - 259.
22

E é porque a desconstrução é um pensamento do im-possível, que ela pode


ser chamada também de um pensamento do acontecimento, já que, para Derrida,
só o impossível acontece. Isto é, um acontecimento digno do nome, tem que
interromper a ordem do possível abrindo a chance do porvir e do acolhimento do
outro. A ligação do impossível com o acontecimento é, como veremos ainda neste
capítulo, justamente, a irrupção do que chega sem pre-visão, isto é, que parte de
uma experiência de invisibilidade, de cegueira e desajusta todo presente. Por isso,
a desconstrução não se satisfaz com a ideia da presença de um sentido como sua
origem ou como seu fim, isto é, como a possibilidade de uma “última palavra”.
Pois o que a desconstrução denuncia é que o sentido, assim pensado, estabelece-se
como o fim do pensamento, como o fechamento do seu porvir e, por isso, como
sua clausura. Portanto, reconhecer a condição de im-possibilidade do que quer que
seja, ao invés de impedir o pensamento, é aquilo que abre sua chance.
O segredo sem segredo – sem segredo porque sem essência, sem nada pra
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ser desvelado – que seria, portanto, a origem do sentido para a desconstrução, está
relacionado com o fato de Derrida enxergar na origem de tudo, sempre uma
relação de alteridade absoluta17, isto é, uma relação com o outro como outro, na
sua separação, na sua distância, na sua interrupção, no seu segredo, na sua
invisibilidade. E se o sentido do sentido diz desta ruptura, desta diferença na sua
origem, percebemos porque Derrida afirma que ele não pode ser uno, homogêneo,
idêntico, coincidir consigo mesmo, mas apenas apontar infinitamente para um
outro.
Desconstruindo, assim, o paradigma do sentido como o lugar próprio do
pensamento ou do pensamento como o lugar da propriedade, Derrida desloca o
terreno do pensar para um lugar diferente, ou melhor, para um não-lugar do
pensamento. Como Fernanda Bernardo nos explica, se a fenomenologia de
Husserl, e se as correntes filosóficas que variam dela - como a ontologia
heideggeriana e a hermenêutica - são filosofias que pretendem ser radicas, isto é,

17
Como nota a professora Fernanda Bernardo em seminário da Universidade de Coimbra, a
palavra “absoluto”, na língua portuguesa, carrega em si mesma dois sentidos diferentes, o sentido
que vem da sua genealogia latina ab-solus, apenas com um “l”, que quer dizer separado; e o
sentido que, pela mesma genealogia, vem de ab-sollus, com dois “l’s”, que quer dizer plenitude,
completude, totalidade. No caso da alteridade como abordada pela desconstrução, quer-se, sempre,
salientar o valor de distância, de separação, de segredo. De qualquer forma, este sentido já
desconstruiria qualquer valor de totalidade ou plenitude da palavra. O jogo aporético na mesma
palavra pode ficar mais claro a partir do entendimento da desconstrução como um pensamento
“quase-transcendental”.
23

que pretendem ir até a raiz do pensamento, até o limite do pensar, até a sua
condição de possibilidade, segundo Bernardo, Derrida mostrará a necessidade de
se pensar “para-além” deste limite do filosófico. Seguindo a explicação de
Bernardo, para Derrida, estas correntes filosóficas ainda pensariam dentro de um
horizonte mundano, ainda delimitariam um lugar próprio para o pensamento,
ainda estariam presas a um horizonte do possível, a um limite do teorizável. A
desconstrução – também uma certa interpretação da fenomenologia de Husserl –
apresentar-se-ia como um pensamento hiper-radical, já que pretende ir “para-
além” do limite do filosófico, “para-além” da sua condição de possibilidade,
“para-além” do horizonte do mundo, para um não-lugar do pensamento, “antes”
da raiz, “antes” do fundamento e que, mais uma vez, diria respeito à sua condição
de im-possibilidade.18
Ao propor pensar pensando o limite do filosófico, isto é, problematizando
os lugares e os limites do pensamento, Derrida marca (aquilo que Rodolphe
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19
Gasché nomeou) a singularidade quase-transcendental da desconstrução,
problematizando também o pertencimento deste pensamento estritamente à
filosofia. Muitas vezes, Derrida assume-se como um pensador mais do que como
um filósofo especificamente. Entretanto, não se pode entender com isso,
simplesmente, que a desconstrução não seja um pensamento filosófico. O
importante é perceber como ela relaciona-se com a tradição da filosofia, abalando
suas delimitações, seus pertencimentos. Ao apontar “para-além” do limite onto-
lógico, a desconstrução posiciona-se, também, como a desconstrução de uma
lógica dualista hierarquizante pela qual o pensamento da metafísica da presença
opera. A crença na presença de um sentido originário que guiaria o pensamento
em termos de certeza e de poder seria, para Derrida, uma ilusão metafísica para a
qual seria preciso atentar em nome de um respeito à alteridade. Contudo, ao
perceber a necessidade de ir “para-além” do horizonte do possível, Derrida não
sugere uma saída da metafísica ou seu ultrapassamento. Este gesto seria esperado
justamente pela crença em um outro lugar próprio para o pensar que seria então,

18
Seminário de Fernanda Bernardo sobre Memórias de cego de Jacques Derrida, na Universidade
de Coimbra no 2o semestre de 2012.
19
Como nos indica Geoffrey Bennington em Jacques Derrida, o termo quase-transcendental,
cunhado por Rodolphe Gasché referindo-se ao pensamento da desconstrução, passa a ser
regularmente utilizado por Derrida a partir de Glas. BENNINGNTON, G.; DERRIDA, J. Jacques
Derrida, p.186. Cf. GASCHÉ, Rodolphe. The tain of the mirror. Derrida and the philosophy of
reflection. Cambridge and London: Harvard University Press, 1986.
24

desta vez, puro e pleno. Mas esse gesto está muito longe do gesto derridiano, pois,
ao invés de abalar, ele reproduziria a própria lógica metafísica, na tentativa de
estabelecer um outro lugar de propriedade para o pensamento. A primazia que a
desconstrução reconhece à alteridade, como seu gesto ético, diz que se o outro
está na origem, não pode haver pureza ou propriedade. Portanto, o intuito de
Derrida não é sair da metafísica em direção a um lugar mais propício ao
pensamento, mas de dentro da metafísica, poder marcar e denunciar suas
clausuras a fim de liberar o pensamento de um ideal logocêntrico. Como Derrida
explica:

Tento me manter no limite do discurso filosófico. Digo ‘limite’ e não ‘morte’,


porque não creio, de forma alguma, naquilo que se chama, hoje, facilmente, de
‘morte da filosofia’ (...) Limite, pois, a partir do qual a filosofia se tornou
possível, se definiu como episteme, funcionando no interior de um sistema de
constrições fundamentais, de oposições conceituais fora das quais ela se torna
impraticável. Em minhas leituras, tento, pois, por meio de um gesto
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necessariamente duplo (...) marcado em certos lugares decisivos, por uma rasura
que permite ler aquilo que ela oblitera, inscrevendo violentamente no texto aquilo
que buscava comandá-lo de fora, eu tento, pois, respeitar o mais rigorosamente
possível o jogo interior e regrado desses filosofemas ou epistememas, ao fazê-los
deslizar, sem os maltratar, até o ponto de sua não-pertinência, de seu
esgotamento, de sua clausura.20

Por isso, o “para-além” derridiano não pode ser visto como um “para-
além” transcendental, que se pretenda plenamente separado de uma imanência,
mas apenas como um “para-além” quase-transcendental, isto é, um “para-além”,
que de dentro da metafísica, aponta para o seu fora, mas um fora que está
encetado em seu dentro e que, ao mesmo tempo, sustenta e faz tremer suas
estruturas. Assim, este “para-além” quase-transcendental – que em francês se
insinua na expressão pas au-delá21 e, por isso, dá-se a ler de forma ainda mais
aporética como, ao mesmo tempo, um passo além e um não há além –, não
funciona na lógica de um ou dentro ou fora, mas na “lógica” aporética, de
contaminação de um conceito pelo seu oposto, que inscrever-se-ia num e dentro e

20
DERRIDA, J. Posições. p. 12 e13.
21
Sobre a indecibilidade do termo “pas” em Derrida citamos Charles Ramond: “termo indecidível,
fonte por consequência de enunciados eles mesmos indecidíveis (…). ‘Trata-se de um certo termo
‘pas’, que significa tanto o movimento do andar, quanto um advérbio de negação’” In: RAMOND,
C. Le vocabulaire de Derrida. p. 53. Citamos ainda John Caputo em Às margens: a propósito de
Derrida: “…le pas au-delà, o passo que estamos sempre dando, mas nunca realizando.” p. 35.
25

fora da filosofia. Um pensamento do entre 22 , porque no limite da filosofia,


indecidível entre o seu dentro e o seu fora. À medida em que Derrida não vê uma
separação absoluta entre um termo e seu oposto, à medida em que ele mostra ser
impossível a pureza de um conceito, já que toda transcendência precisa de uma
imanência, começa-se a questionar a pretensão fenomenológica de trazer as coisas
à luz, de voltar às coisas mesmas e de pensá-las “enquanto tais”.
Portanto, percebemos que a desconstrução não se posiciona contra o
pensamento metafísico como se ele devesse ter se desenvolvido de outra forma,
mas coloca-se como o abalo da base de suas estruturas autocêntricas que refletem
a crença na possibilidade de um conceito próprio, homogêneo, auto-idêntico, que
exista independente de uma relação de alteridade. Em outras palavras, a
desconstrução problematiza a possibilidade da relação a si23, da propriedade de
todo conceito. A estrutura autocêntrica da metafísica não reconhece a alteridade
pressuposta em toda relação e segue tentando abafar esta alteridade, esta diferença
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ou, aquilo que Rafael Haddock-Lobo chama, a partir de Francis Bacon, da


umidade24 inerente a todo conceito. Como nos explica Arthur Bradley:

Para Derrida, então, o processo de leitura não é uma questão de ativamente


desconstruir o logocentrismo tanto quanto o de mostrar que a metafísica da
presença está já em processo do que poderíamos chamar de auto-desconstrução
desde quando ela possui um 'auto'. (...) o que chamamos desconstrução é o nome
para uma instabilidade estrutural ou de fundamento, na qual, apesar de parecer o
oposto, toda metafísica se ergue.25

22
Citamos Mónica Cragnolini sobre o pensamento de Derrida como um pensamento do entre, um
pensamento “que nos coloca nesse lugar (não-lugar) indiscernível, inidentificável do ‘entre’.
Diante da metafísica opositiva, caracterizada pelo binarismo, o pensamento da desconstrução se
colocou no ‘entre’ das oposições: nem verdade nem falsidade, nem presença nem ausência, se não
‘entre’. O ‘entre’ está apontando para um âmbito de oscilação do pensamento, e Derrida previne
para a comodidade metodológica de convertê-lo num novo lugar do pensamento ou num recurso
que assente bases para o pensamento.” CRAGNOLINI, Mónica B. Temblores del pensar:
Nietzsche, Blanchot, Derrida. Pensamiento de los confines, Buenos Aires, n.12, p.11-19, 2003.
Disponível em:http://www.jaquesderrida.com.ar/comentarios/temblores.htm última consulta em 12
de janeiro de 2014. Tradução minha.
23
Veremos esta problematização da relação a si desdobrar-se sob o ponto de vista das artes, no
tópico 2.2 desta tese, no tema do autorretrato impossível que Derrida desenvolve a partir do
desenho em Mémoires d’aveugle.
24
Cf. HADDOCK-LOBO, Rafael. Para um pensamento úmido. Editora PUC-Rio e NAU Editora,
Rio de Janeiro, 2011.
25
BRADLEY, A. Derrida's of grammatology. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2008. p.
43. Tradução minha.
26

Em outras palavras, a postura da desconstrução em relação à metafísica


não é de enxergar nela um erro que devesse ser reparado, como se pudéssemos
deixar sua história para trás e inaugurar uma nova época em que, a partir de então,
pudéssemos pensar autenticamente. Mas diferentemente, a desconstrução pretende
mostrar como ela já está em processo nas estruturas metafísicas como uma auto-
desconstrução, ou melhor, como uma desconstrução do “auto”. Pois, segundo
Derrida, essa estrutura do auto e do próprio, aponta sempre para uma alteridade,
para a impossibilidade de uma identidade pura, colocando-se, ela mesma, em
xeque. Assim como o possível está condicionado ao impossível, entenderemos
também que o visível está condicionado ao invisível, pois toda construção só se
ergue porque parte de um tremor, de uma perturbação, de um desvio originário
que é, ao mesmo tempo, sua desconstrução e sua condição de possibilidade. Nesse
sentido, a desconstrução é uma espécie de reconhecimento de um abalo em toda
presunção autonômica. Reconhecer este tremor seria admitir que tudo o que se
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ergue, ergue-se sempre a partir de sua própria ruína, e que toda suposta autonomia
é sempre uma heteronomia26, já que nada se constitui a partir de si mesmo e que
tudo tem origem sempre numa alteridade.
A hiper-radicalidade da desconstrução, diz, mais uma vez, da
impossibilidade de tratar o que quer que seja “enquanto tal”. E é justamente como
contraponto a uma certeza metafísica, bem como à sua pretensão de lidar com o
“enquanto tal” ou o “como tal” do que quer que seja que apresentamos um certo
impoder ou uma certa impossibilidade que a desconstrução derridiana traz para o
cerne do pensamento. Assim, a condição de im-possibilidade de qualquer conceito
diz respeito a uma hiper-lucidez desconstrutiva que enxerga uma invisibilidade na
origem de toda visibilidade, isto é, uma falta ou um excesso, talvez, uma abertura,
que condena o pensamento a se construir sem orientação segura, tateante,
aventuroso, correndo riscos e assumindo suas fragilidades. Reconhecer esta
condição de todo pensamento nos faz entender em que sentido a leitura
desconstrutiva não pode ser tomada como um método aplicado de fora no intuito

26
Como veremos no trecho sobre a invenção da identidade, neste capítulo, estamos todos
submetidos à lei do outro, isto é, à relação ao outro como uma lei. Sendo esta heteronomia o que
constitui a ética desconstrutiva: “...o que chega ou que funda em mim, aquilo a que estou exposto,
para além de qualquer controle. Heteronomia portanto, o outro é minha lei.” DERRIDA, J.
ROUDINESCO, E. De que amanhã... diálogo. Tradução: André Telles. Rio de Janeiro: Zahar,
2004. p. 69.
27

de destruir ou desmerecer os argumentos de qualquer texto. Nas palavras de


Derrida:

A desconstrução não é nem mesmo um ato ou uma operação. Não apenas porque
haveria nela alguma coisa de ‘passiva’ ou de ‘paciente’ (...). Não apenas porque
ela não retorna a um sujeito (individual ou coletivo) que teria a iniciativa e a
aplicaria a um objeto, um texto, um tema, etc. A desconstrução acontece. É um
acontecimento que não espera deliberação, consciência ou organização do sujeito,
nem mesmo da modernidade. Isso se desconstrói. O isso não é aqui alguma coisa
impessoal que se oporia a alguma subjetividade egológica. Está em
desconstrução (o Litrré dizia “se desconstruir... perder sua desconstrução”). E o
“se” do “se desconstruir” que não é a reflexividade de um eu ou de uma
consciência carrega todo o enigma.27

Portanto, a desconstrução acontece. Como vimos, ela não depende da ação


de um sujeito, bem ou mal intencionado, que a ponha em prática. O pensamento
de Derrida pretende denunciar, assumir e sublinhar os efeitos da desconstrução
que já estão em curso nos textos metafísicos, abrindo-os, assim, para outras
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leituras e para mais pensamentos. Nas palavras de Derrida:

Para mim, a desconstrução não se limita ao discurso sobre o tema da


desconstrução; para mim, há desconstrução em operação [il y a de la
déconstruction à l’oeuvre]. Ela está em operação em Platão, ela está em operação
no estado maior americano e soviético, ela está em operação na crise econômica.
Assim, a desconstrução não precisa da desconstrução, ela não precisa de uma
teoria nem de uma palavra28.

Entender a dimensão de acontecimento da desconstrução permite-nos


pensar esta outra experiência do pensamento que, como dissemos no início desta
seção, Derrida nos oferece. Esta outra experiência do pensamento desloca a
experiência da sua concepção tradicional, sublinhando, ao contrário, o seu caráter
passivo. Para Derrida, o pensamento é da ordem do pathos, da paixão, do que se
sofre e se recebe de uma alteridade absoluta. Dessa forma, como já dissemos, para
o filósofo franco-argelino, pensar é responder à injunção do que nos apela, do que
nos toca, do que nos chega inesperadamente, sem que possamos ver e nos
demanda uma resposta. Para Derrida, a ação do pensar é uma ação ferida de

27
DERRIDA, J. "Lettre à un ami japonais". In : Psyché: inventions de l’autre II. p. 12 e 13.
Tradução minha.
28
Id., “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida.” In: Pensar em não ver. p. 60.
28

paixão, ou melhor, é uma ação que brota de uma passividade inexpugnável e que
não pode ser esquecida na ideia de experiência, pois ela interrompe a própria
experiência como pura vontade e ação de um sujeito soberano.
O chamado, o apelo, a injunção, do pensamento devem ser entendidos
como acontecimento, ou seja, como aquilo que é da ordem do desconhecido, do
inantecipável, do que vem sem que vejamos vir e nos convoca a responder. Pois,
para ser acontecimento, é preciso que sua irrupção não seja pre-visível ou
amortecida pelos olhos. Não se pode dizer o que é esse chamado e é por isso que o
pensamento se faz necessário, pois é porque há desconhecimento que é preciso
pensar: “o chamado é heterogêneo ao conhecimento. Para que esse chamado
exista, a ordem do conhecimento precisa ser fendida. Se podemos identificar,
objetificar, reconhecer o lugar, a partir desse momento não há chamado.” 29 É
nesse sentido que propomos o tema de uma certa cegueira na obra de Derrida
como aquilo que é da ordem do não conhecido, da não presença e chama,
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portanto, uma desconstrução do modelo ótico. Percebemos, assim que a


experiência do pensamento desconstrutivo não é aquela que “nos relaciona com a
apresentação do presente (...) totalmente dominada por uma metafísica do
presente ou da presença”30, mas

É justamente não a relação presente com o que está presente, mas a viagem ou a
travessia, o que quer dizer experimentar rumo a, através da ou desde a vinda do
outro na sua heterogeneidade mais imprevisível; trata-se da viagem não
programável, da viagem cuja cartografia não é desenhável, de uma viagem sem
design, de uma viagem sem desígnio, sem meta e sem horizonte. A experiência a
meu ver seria exatamente isso. Se a experiência fosse apenas a relação com, ou o
encontro do que é previsível e antecipável sobre o fundo de um horizonte
presente, não haveria experiência nesse segundo sentido; haveria experiência no
primeiro sentido, mas esta última não é uma experiência do acontecimento (...). A
viagem da qual sabemos de onde ela parte e para onde nos leva não é uma
viagem, está previamente encerrada. Já chegamos e nada mais acontece. Não há
experiência no sentido mais perigoso (...) do termo viagem. Uma viagem que não
fosse ameaçadora, uma viagem que não fosse uma viagem em vista do
impossível, em vista do que não está em vista, seria ainda uma viagem? Ou
apenas turismo?31

29
DERRIDA, J. “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida.” In: Pensar em não ver.
p.52.
30
Id., “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p.79.
31
Ibid., p.80.
29

A partir da ideia desta viagem sem designío, sem pre-visão, nos


lançaremos, nas quatro seções seguintes deste capítulo, na leitura desconstrutiva
de temas centrais da filosofia que acreditamos nos permitir discutir a postura
derridiana diante das obras de arte.

1.2.
A dimensão inventiva da desconstrução

O pensamento da desconstrução pode ser ressaltado em diversos aspectos


a partir do deslocamento que ele promove no pensamento metafísico. Conhecido
também como um pensamento do impossível, um pensamento da alteridade, um
pensamento do indecidível, gostaríamos, nesse momento, de sublinhá-lo como um
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pensamento da invenção, porque acreditamos que o modo como Derrida repensa


esta palavra, faz surgir, a partir dela, o tema da invisibilidade que esta tese
pretende marcar no pensamento.
Defendemos que a invenção, tal como abordada por Derrida, nos permite
aproximar a experiência do pensamento da experiência artística, uma vez que,
para a desconstrução, a invenção funciona como o motor de ambas. Isto é,
levando-se em conta a ideia desconstrutiva de invenção ou a própria
desconstrução como invenção, podemos imaginar um fundo comum às duas
experiências em suas relações com aquilo que as inspiram e as locomovem. Dizer
que tanto a arte como o pensamento partem da invenção no sentido derridiano –
isto é, uma invenção pensada na sua dimensão impossível – seria já desconstruir
uma certa oposição entre ficcionalidade artística e verdade filosófica que
caracteriza a relação entre discurso como logos e obra de arte na maioria das
abordagens filosóficas tradicionais das artes. E, nesse sentido, a invenção seria a
dimensão do pensar que assume uma invisibilidade na sua origem, afrouxando ou
problematizando o elo entre pensamento e saber, típico do modelo ótico.
Quando falamos de uma ideia desconstrutiva de invenção, não queremos
com isso fazer soar que a desconstrução oponha a um conceito tradicional de
invenção, um outro conceito diferente, mas queremos ressaltar como a
30

desconstrução lembra ao próprio conceito de invenção sua dimensão de alteridade


ou de impossibilidade. Isto é, como veremos, a desconstrução não pensa uma
outra invenção, mas uma invenção do outro ou uma invenção do impossível. E,
como tivemos a chance de ver rapidamente na primeira parte deste capítulo,
sublinhar a alteridade ou a impossibilidade de qualquer experiência é deslocá-la
da sua dimensão logocêntrica abrindo-a para novas leituras e relações. Assim, se
um dos nossos objetivos nesta tese é pensar a relação entre arte e pensamento
desconstrutivo e, como dissemos acima, se a invenção tal como pensada pela
desconstrução nos permite aproximar essas duas experiências, é porque,
lembrando sua dimensão impossível, a desconstrução nos permite enxergar uma
mesma espécie de relação com o outro tanto na experiência do pensamento como
na experiência artística. Uma relação na impossibilidade de apropriação da
alteridade que faz com que tanto o trabalho do pensamento, como o da arte,
produza como obra – e como Fernanda Bernardo salienta32 – apenas o resto, a
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memória, o luto, desta experiência impossível da relação com o que inspira.


Para Derrida, reinventar ou desconstruir a invenção seria não se contentar
com a sua dimensão possível, pois, desse ponto de vista, ela resumir-se-ia à
exposição de um programa, à ordenação de um conjunto de possibilidades já
existentes, quando para ser, realmente, uma invenção, ela deveria justamente
surpreender, romper com as regras, com o programado, com o esperado. Como
Derrida assume: “Uma invenção pressupõe sempre alguma ilegalidade, a quebra
de um contrato implícito, ela insere uma desordem na pacífica ordenância das
coisas, ela perturba as propriedades, (...) ela frustra as expectativas.”33
Associando essa dimensão de surpresa da invenção com o tema da nossa
tese, isto é, com o pensar ver como desconstrução do modelo ótico, é importante
notar que o que vem como outro na invenção é da ordem do que não se pode ver
vir. Se para a vinda do outro não há horizonte de expectativa e, assim, não se pode
enxergar a sua vinda, pre-vê-la, é porque ele não vem do horizonte, à nossa frente,
na direção dos nossos olhos que poderiam amenizar a surpresa da sua chegada. O
outro nos surpreende porque não o podemos ver vir, ele vem de onde os olhos não
alcançam e não podem antecipar ou anular a surpresa. Sem que possamos vê-lo
chegar, o outro, como que nos cai sobre a cabeça e, portanto, somos cegos para

32
Em seminário na Universidade de Coimbra no Segundo semestre de 2012.
33
DERRIDA, J. “Invention de l’autre”. In: Psyché, inventions de l’autre. I. p. 11. Tradução minha.
31

ele. E se nem sempre, totalmente cegos, se por acaso, o outro como outro aparece
diante de nós, não sendo nem da ordem da presença nem da ausência, aparece
apenas na indecidibilidade de um espectro34 e, nessa condição, podemos apenas
pensar vê-lo, aluciná-lo, mas nunca ter certeza da sua vinda.
Como trataremos mais adiante, apesar da impossibilidade de pre-ver a
vinda do outro, Derrida fala de uma certa preparação para deixá-lo vir que é
importante para entendermos o trabalho tanto do pensador quanto do artista na
relação com o que os inspira na invenção de suas obras. Mas, de qualquer forma,
apresentamos aqui a desconstrução como um pensamento da invenção como a
única forma de se preparar para responder ao que vem, ao que acontece e apela a
pensar ou a pôr em obra ali onde não se vê vir, onde se é tomado de surpresa pela
vinda do outro que não se esperava, que visita sem ser convidado previamente.
Retornando à reinvenção da invenção, se ficássemos apenas com esse seu
lado irruptivo seria difícil entender porque Derrida afirma que ela é sempre
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invenção do possível ou do mesmo. Pois, se por um lado, ela rompe com o


instituído, trazendo o novo pela primeira vez, por outro lado, ela é aquilo que
precisa do reconhecimento do outro para ser legitimada como invenção, por isso,
paradoxalmente, a invenção é aquilo que rompe com o estabelecido, mas também,
não só aquilo que institui, como o que inventa a instituição. Se ela rompe com as
regras, ela é, por outro lado, a invenção das próprias regras e das próprias leis, a
possibilidade de toda convenção. A seguir, Derrida fala a respeito de um discurso
que pretenda ser inventivo:

...apresentando-se como uma invenção, o discurso de que estou falando terá que
ter sua invenção avaliada, reconhecida e legitimada por outro, por um outro que
não é alguém da família: o outro como membro de uma comunidade social e de
uma instituição. Pois uma invenção não pode nunca ser privada uma vez que seu
estatuto de invenção, digamos, sua patente ou seu brevet, sua identificação
manifesta, aberta, pública, tem que ser significada e conferida. Traduzamos:
falando de invenção, este velho assunto (...) que tratar-se-ia hoje de reinventar,
ele mesmo deveria receber um brevet de invenção. Isso supõe contrato, promessa,
compromisso, instituição, direito, legalidade, legitimação.35

34
Trataremos a dimensão espectral da alteridade sob o ponto de vista do cinema no terceiro
capítulo desta tese.
35
DERRIDA, J. “Invention de l’autre”. In: Psyché: inventions de l’autre. I. p. 15. Tradução
minha.
32

Portanto, segundo este paradoxo, se por um lado, uma invenção precisa


inovar, romper com as regras, trazer algo novo pela primeira vez, por outro lado,
contudo, para ser reconhecida como invenção, ela precisa da contra-assinatura de
um público que lhe confira o seu estatuto de invenção. Sem esta instituição, sem o
reconhecimento de um determinado grupo, a invenção não ganha o seu valor de
invenção. Depois deste momento singular que foi sua primeira vez, seu
acontecimento irruptivo, uma invenção deixa de ser inaugural e transforma-se no
mesmo, torna-se, daí por diante, um mecanismo disponível para um público na
possibilidade de sua repetição. Aporeticamente, ela associa-se a uma última vez,
gerando assim a singularidade única do que é inventado:

...para que a invenção seja uma invenção, quer dizer, única, mesmo que essa
unicidade deva dar lugar à repetição, é necessário que essa primeira vez seja
também uma última vez, a arqueologia e a escatologia se acenam na ironia do
instante único.36
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Portanto, a invenção marca, ao mesmo tempo, a novidade da primeira vez


e a repetição da convenção. Não há invenção sem um evento inaugural e, contudo,
este evento deve, então, ser reconhecido, instituído, convencionado para ser
repetível e estar disponível a todos no futuro.
Querendo sublinhar esta aporia, para que não nos esqueçamos da
indecidibilidade da invenção, Derrida afirma que haveria, atualmente, como que
um desejo de reinventar a invenção, que poderia ser constatado numa “análise
estatística da doxa ocidental”, no “vocabulário, título de livros, retórica da
publicidade, crítica literária, oratória política e até mesmo em palavras de ordem
da arte, da moral e da religião. (...) não tanto criar, imaginar, produzir, instituir,
mas antes inventar”37. Esse desejo de reinventar a invenção é constatado a partir
do que se mostra como uma exaustão, um desgaste, um cansaço, do seu conceito
clássico, já que este último como que apaga sua aporia no prevalecimento do seu
valor de possibilidade. Estabelecendo-se como invenção do que é patenteável, isto
é, do que, como possível, se inventa e recebe uma patente, a invenção é
“submetida a poderosos movimentos de prescrição e antecipação autoritárias de

36
DERRIDA, J. “Invention de l’autre”. In: Psyché: inventions de l’autre. I. p.16. Tradução minha.
37
Ibid., p. 34. Tradução minha.
33

tipos mais variados” 38 , reduzindo sua força perturbadora e inantecipável,


transformando-se, assim, numa programática da invenção. Este desejo de
reinventar a invenção, decorrente, então, de uma espécie de tédio do mesmo, pode
ser entendido como seu renascimento ou até como sua própria desconstrução. Já
que a desconstrução, como o filósofo ressalta, não é o que ingenuamente muitas
vezes se creditou a ela como um valor negativo ou destruidor mas, ao contrário,
diz Derrida, a chance de uma reinvenção, de um arejamento e novo fôlego para o
que quer que seja. Assim, a desconstrução aparece aqui como o próprio fôlego
reinventivo da invenção no reconhecimento da necessidade de repensar ou
reinventar este conceito para além da sua clausura conceitual do possível e do
mesmo. Nas palavras de Derrida:

A desconstrução é inventiva ou não é nada. Ela não se contenta com


procedimentos metódicos, ela abre uma passagem, ela marcha e marca; sua
escrita não é apenas performativa, ela produz regras – outras convenções – para
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novas performatividades e nunca se instala na segurança teórica de uma oposição


simples entre performativo e constativo39. Sua marcha engaja uma afirmação, esta
se liga ao vir do evento, do advento e da invenção. Mas ela só pode fazer isso
desconstruindo uma estrutura conceitual e institucional da invenção que teria
arrazoado qualquer coisa da invenção, da força de invenção: como se fosse
necessário para além de um certo estatuto tradicional da invenção reinventar o
futuro.40

Reinventar o futuro, assim como reinventar a invenção, seria reconhecer


nele a diferença em relação ao que é programável ou calculável, isto é, repensá-lo
como da ordem do porvir, daquilo que não se pode pre-ver ou antecipar. No
documentário americano41 sobre Derrida, o filósofo traça uma diferença entre o
futuro e o porvir baseando-se nestes valores de antecipação. Para Derrida, o porvir
é da ordem do absolutamente outro, do que não se pode programar e, por isso, só
nos chega como surpresa, desestabilizando a ordem e o esperado. Enquanto o
futuro, ao contrário, é da ordem do que se pode programar e projetar, calcular e
pre-ver. Nesse sentido, a invenção do outro seria da ordem de um acontecimento

38
DERRIDA, J. “Invention de l’autre”. In: Psyché: inventions de l’autre. I. p. 39. Tradução
minha.
39
Entraremos na questão da oposição entre performativo e constativo mais adiante nesta seção,
quando Derrida pensa a desconstrução desta oposição a partir do poema Fábula, de Francis Ponge.
40
DERRIDA, J. “Invention de l’autre”. In: Psyché, inventions de l’autre. I. p. 35. Tradução minha.
41
Derrida: the movie. Dirigido por Kirby Dick e Amy Kofman. França e EUA, 2002.
34

ou de um evento, através do qual o porvir nos chega como promessa do que está
por vir.
Se, então, a aporia da invenção parece ter sido reduzida, na tradição, pela
convenção, sua desconstrução, contudo, parece nos lembrar o seu lado irruptivo e,
assim, a indecidibilidade ou a impossibilidade da invenção. Percebemos na
citação acima uma associação entre uma rede de palavras que têm em comum a
raiz latina do venire, isto é, do vem que é de extrema importância para o
pensamento desconstrutivo. O vem como o chamamento do outro e pelo outro que
engaja toda relação e que liga, neste texto derridiano, as palavras evento, advento,
invenção, convenção e porvir, lembra a im-possibilidade da experiência do
pensamento em sua dimensão inventiva:

A experiência do pensamento é uma experiência sem carta ou mapa geográfico,


uma experiência exposta ao acontecimento [ou ao evento] (...), isto é, à vinda do
outro, do radicalmente outro, do outro não apropriável. Quando se está em
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relação com o outro, quer se trate de um quem ou de um quê, quando se está em


relação com outro cuja própria prova consiste em fazer a experiência do fato de
que o outro não é apropriável, há aí experiência: não posso assimilar o outro a
mim, não posso fazer do outro parte de mim mesmo, não posso capturar, tomar
apreender, não há antecipação. O outro é inantecipável.42

Portanto o porvir é pensado como a vinda inantecipável do outro e como a


assunção de que toda experiência exige invenção na medida em que parte sempre
de uma relação com o que não se vê. Assim, como invenção do impossível, tanto
as obras filosóficas como as obras de arte partem de uma cegueira43 e só podem
chegar como porvir, como promessa de chegar. Pois, quando esta promessa deixa
de ser promessa, ou seja, no momento em que as obras se traçam, no exato
momento em que o outro põe-se em obra, nesse mesmo instante em que o
inventado tem lugar, ele já pertence à ordem do mesmo, da instituição e do
constativo, pois o outro como outro é justamente aquilo que não pode ter lugar,
que não se deixa instituir, que não se deixa inventar, pois, se fosse inventado,
deixaria de ser outro. E é por isso que a invenção do outro, que Derrida nos quer
lembrar aqui, é da ordem do impossível. Mas, ao mesmo tempo, do impossível
como a única invenção possível, já que se não fosse assim, a invenção deixaria de

42
DERRIDA, J. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 80.
43
Encontramos esta ideia da origem cega do pensamento e da arte na cena de Dibutade e a origem
do desenho que tratamos na seção 2.2 desta tese.
35

ser invenção para tornar-se apenas a execução de um programa ou um cálculo.


Nas palavras de Derrida:

Assim a invenção só estará conforme a seu conceito, ao traço dominante de seu


conceito e de sua palavra na medida em que, paradoxalmente, a invenção não
inventa nada, quando nela o outro não vem e quando nada vem ao outro e do
outro. Pois o outro não é o possível. É necessário, então, dizer que a única
invenção possível seria a invenção do impossível. Mas uma invenção do
impossível é impossível, o outro diria. De fato, mas é a única invenção possível:
uma invenção deve se anunciar como invenção daquilo que não parecia possível,
de outro modo ela apenas torna explícito um programa de possibilidades na
economia do mesmo.44

Por isso, se o que nos interessa pensar nesta tese é a relação do


pensamento com as obras de arte, podemos dizer que tanto o artista quanto o
pensador desejam inventar o impossível, mas que esta invenção do impossível só
existe mesmo como desejo de invenção, como sonho dos inventores. Sempre que
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falarmos aqui do ofício ou da experiência do artista e do pensador em seus


trabalhos, estaremos partindo do seminário de Fernanda Bernardo na
Universidade de Coimbra, realizado no segundo semestre de 2012 sobre
Memórias de cego, de Derrida. Fernanda Bernardo, baseada em Derrida, nos dá a
pensar tanto a atividade do artista como a do pensador como uma espécie de duelo
com a alteridade que, ao mesmo tempo em que chama, não se deixa apropriar.
Acreditamos que esta ideia defendida por Bernardo, encontra-se, na dimensão da
ideia de invenção, tal como pensada pela desconstrução, como a relação do fazer
obra a partir do que vem do outro, do que não se vê e não se conhece. Assim,
começamos a entender que para a desconstrução, se as obras acontecem a partir de
um trabalho inventivo, no entanto, e como Bernardo ressalta, como obras, elas são
apenas o resto da experiência impossível do desejo de apropriação do que veio
inspirar e engajar o artista ou o pensador no seu trabalho. Mas, se para Derrida,
estas obras – sejam elas textos filosóficos ou trabalhos artísticos – constituem um
desafio para os seus leitores ou espectadores, isso dá-se justamente porque toda
obra guarda em si a marca desta impossibilidade de reduzir o outro ao mesmo ou
de inventar o outro. Ou seja, as obras, como o que resta da experiência artística ou
do pensamento, constituem um desafio para qualquer espectador porque elas

44
DERRIDA, J. “Invention de l’autre”. In: Psyché: inventions de l’autre. I. p.59. Tradução minha.
36

guardam em si, como seu segredo, a impossibilidade de apropriação da alteridade


que as inspirou. Se por um lado, as obras são instituições reconhecidas – como
arte ou como filosofia – por outro lado, elas mantêm o segredo irrevelável da sua
invenção e, por isso, não se dão como desvelamento a quem quer que seja. Esta
sua impossibilidade de doação ou de desvelamento é que pode lhes conferir o
fascínio que exercem sobre nós. Pois, para que se queira ler um texto, por
exemplo, é preciso que ele não possa ser lido ou apropriado plenamente e é isto o
que ocorre com qualquer leitura. O “vem” que apela, que convoca a invenção
continua a ecoar na obra, nos chamando a decifrá-la e, ao mesmo tempo, barrando
a nossa leitura.
Verificamos, então, que a reinvenção da invenção afirma a desconstrução
como pensamento inventivo na marca impossível dessas experiências tanto de pôr
em obra como de interpretá-las, já que segundo Derrida,
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A desconstrução mais rigorosa não foi jamais apresentada (...) como alguma coisa
possível. E eu diria que a desconstrução não perde nada se confessando
impossível. (...) O perigo para uma tarefa da desconstrução seria antes a
possibilidade de se tornar um conjunto disponível de procedimentos regrados, de
práticas metódicas, de caminhos acessíveis. O interesse da desconstrução, de sua
força e de seu desejo, se ela tem um, é uma certa experiência do impossível: quer
dizer, (...) do outro – a experiência do outro como invenção do impossível, em
outros termos, como a única invenção possível.45

Reconhecendo que o conceito de invenção possível se estabeleceu em dois


sentidos principais, a saber, o sentido de descoberta ou desvelamento por um lado
e, por outro, o sentido de produção ou instituição, Derrida afirma que esses dois
sentidos podem ser distribuídos reciprocamente nos dois polos opostos da teoria
do speech act: o polo do constativo e o polo do performativo. É a oposição entre
estes dois sentidos que se desconstrói na reinvenção derridiana da invenção e este
é um dos motivos para o filósofo trazer à cena o poema Fable de Francis Ponge,
pois, segundo ele, este poema parece ser exemplar na imbricação entre constativo
e performativo de forma a desconstruir esta oposição. Fable revelaria uma
contaminação de um polo pelo outro, tornando-os, desse modo, indecidíveis. Essa
indecidibilidade entre constativo e performativo desconstruiria não apenas essa

45
DERRIDA, J. “invention de l’autre”. In: Psyché: inventions de l’autre. I. p.26 e 27.
37

oposição como toda uma série de oposições relacionada a esta, como aquela entre
ficcionalidade e realidade ou literatura e filosofia. Leiamos Fable:

FABLE
Par le mot par commence donc ce texte
Dont la première ligne dit la vérité,
Mais ce tain sous l’une et l’autre
Peut-il être toléré?
Cher lecteur déjà tu juges
Là de nos difficultés...

(Après sept ans de malheurs


Elle brisa son miroir).46

Traduzindo:

FÁBULA

Pela palavra pela começa então este texto


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Cuja primeira linha diz a verdade,


Mas este aço sob uma e outra
Pode ele ser tolerado?
Caro leitor você já julga por aí
As nossas dificuldades...

(DEPOIS de sete anos de infelicidade


ela quebrou seu espelho).47

Segundo a interpretação de Derrida, o poema de Ponge inventa-se a si


mesmo, constatando o evento de sua própria invenção e nada além ou fora dele
próprio, pois o constato de sua invenção é a própria invenção de si, sua
performatividade: “pela palavra pela começa então esse texto”. A constatação de
sua verdade dá-se performativamente, na própria descrição de si. Assim, há aqui
uma suspensão da oposição entre constativo e performativo, já que o poema

Inventa pelo único ato de enunciação que ao mesmo tempo faz e descreve, opera
e constata. O “e” não associa dois gestos diferentes. A constatação é o próprio
performativo já que ele não constata nada que lhe seja anterior ou estrangeiro. Ele
performa constatando, efetuando a constatação – e nada além. Uma relação a si
muito singular, reflexão que produz o si da auto-reflexão produzindo o

46
PONGE, F. citado por DERRIDA, J. “invention de l’autre”. In: Psyché: Inventions de l’autre. I.
p. 19.
47
Tradução Minha.
38

acontecimento pelo próprio gesto que o narra. Uma circulação infinitamente


rápida, tal é a ironia, tal é o tempo desse texto.48

A desconstrução dessa oposição, na verdade, como a desconstrução de


qualquer oposição, nunca é pontual, ela desloca toda a lógica opositiva da
metafísica. E, aqui, a partir de Fábula, podemos perceber, por exemplo, a
suspensão da oposição entre verdade e ficcionalidade, filosofia e literatura. Pois se
o poema de Ponge declara dizer a sua verdade, isto é, a verdade da fábula – que
não podemos saber se é apenas a deste poema ou da fábula em geral, da fábula
como gênero literário, já que o poema tem o nome do próprio gênero –, ele faz
isso fabulando, performando, inventando-se na encenação de sua própria
constatação. Como Derrida argumenta: “ele se apresenta ironicamente como uma
alegoria ‘cuja primeira linha diz a verdade’: verdade da alegoria e alegoria da
verdade, verdade como alegoria.” 49 A partir desse caso de Fábula, Derrida se
pergunta se o efeito desconstrutivo não dependeria da força de um ato literário: “o
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que há aí de literatura e de filosofia nessa fabulosa cena da desconstrução?”50. Isso


recairia numa questão de classificação e de gêneros problematizada pela
desconstrução, pois, diz Derrida, mesmo que se classificasse Fábula como
literatura, não se poderia estar certo que ela seja inteiramente literária: “não é nada
seguro que ela seja de parte à parte literária (e por exemplo não filosófica: já que
ela fala da verdade e pretende dizê-la expressamente)...”51. E, a partir de uma
declaração de Paul de Man em Allegories of reading, que sugere que “uma
desconstrução da metafísica é impossível ‘na medida precisa em que ela é
literária’” 52 , Derrida, sustentando a ironia de Paul de Man, defende que a
desconstrução não perde nada assumindo-se como impossível e de alguma forma,
possuindo um efeito literário, já que é justamente na contaminação e na
problematização dessas fronteiras que a desconstrução acontece como
pensamento. E essa contaminação nos interessa aqui para pensar como a relação
entre desconstrução e obras de arte – que trabalharemos no segundo capítulo desta

48
DERRIDA, J. “invention de l’autre”. In: Psyché: inventions de l’autre. I. p. 24.
49
Ibid., p. 19.
50
Ibid., p. 26.
51
Ibid.
52
Ibid.
39

tese – se desenvolve deslocando a hierarquia dos discursos estéticos tradicionais,


que pretendem constatar a verdade das obras.
Voltando à Fábula de Ponge, sendo ela perfeitamente regular na sua
gramática e respeitando todas as regras de sua língua, sua frase inicial, “par le mot
par...”, contudo, provoca uma desconstrução de tal ordem a desvelar a própria
performatividade desconstrutiva, já que a experiência da desconstrução não
avança destruindo as regras e convenções tradicionais como se elas não fossem
importantes. Aliás, reinventar a invenção admitindo que ela é sempre invenção do
possível e não pretender opor-lhe um outro conceito de invenção, é já respeitar e
mostrar a importância das regras e convenções, assumindo que o pensamento só
se faz na aporia do im-possível, isto é, lembrando a relação com a alteridade
absoluta a partir da qual tudo vem e, ao mesmo tempo, admitindo a necessidade
das convenções para o reconhecimento do que quer que venha. Assim, a
desconstrução conjuga ao mesmo tempo a ruptura e a conservação das regras,
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avançando sempre nesta indecisão. Assim como Fábula, a desconstrução age

...dobrando essas regras no respeito dessas próprias regras a fim de deixar o outro
vir ou se anunciar na abertura dessa deiscência. Isso é talvez o que se chama a
desconstrução. A performance de “Fábula” respeita as regras mas segundo um
gesto estranho, que outros julgariam perverso, já que ele cumpre fiel e
lucidamente as condições mesmas de sua própria poética. Este gesto consiste em
desafiar e em exibir a estrutura precária dessas regras, respeitando-as pela marca
de respeito que ele inventa.53

Por isso, assim como Fábula, a desconstrução avança como pensamento


dentro da filosofia enquanto desloca-a, provocando os seus lugares estabelecidos
para abri-la ao acolhimento do outro. Mas, como já dissemos antes, se a
desconstrução problematiza a metafísica, ela não pretende sair dela,
desrespeitando o que se estabeleceu aí como pensamento. Muito pelo contrário, é
neste solo que ela se faz como desestabilização do próprio solo ou do próprio
lugar estabelecido. Inventa-se sempre num solo prévio de possibilidades, de
acordo com alguma regra, estatuto ou convenção, mas ao mesmo tempo, é preciso
reconhecer que essa invenção que se estabelece como possível, inventando o
próprio possível, faz-se sempre a partir de uma relação com o desconhecido, com
o desregrado, com o que não se pode ver.
53
DERRIDA, J. “invention de l’autre”. In: Psyché: inventions de l’autre. I. p. 59.
40

Portanto, se pretendemos salientar aqui a desconstrução como um


pensamento da invenção é na medida em que ela traz a dimensão impossível da
relação com o absolutamente outro como origem de todo pôr em obra. Esta
impossibilidade é justamente aquilo que condena a “construção” de toda obra a
partir do que não se vê. Assim, essa invenção pode ser pensada como uma
passagem sem passagem do impossível ao possível, do invisível ao visível, do
outro ao mesmo, como a impossibilidade do impossível, do invisível e do outro se
apresentarem “como tal”, pois, se o que se inventa é sempre da ordem do mesmo,
do visível ou do possível é, no entanto, apenas no rastro de uma experiência do
impossível ou do invisível que isso se faz. É nessa medida que as obras de artes
do visível acontecem apenas como resto ou cinza de uma experiência do invisível.
Desse modo, não há aqui uma oposição entre invenção do outro e invenção do
mesmo. Mas a invenção, sendo sempre do mesmo, do possível ou do visível só se
dá no rastro da sua impossibilidade ou de sua invisibilidade, como o seu resto ou
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sua cinza. Leiamos esta passagem de Derrida:

A invenção do outro não se opõe aquela do mesmo. Sua diferença acena em


direção uma outra sobrevinda, em direção a essa outra invenção com que
sonhamos, aquela do totalmente outro, aquela que deixa vir uma alteridade ainda
inantecipável e para a qual nenhum horizonte de expectativa parece ainda pronto,
disposto, disponível. É preciso contudo se preparar para ela. Pois para deixar vir o
totalmente outro, a passividade, um certo tipo de passividade resignada pela qual
tudo retorna ao mesmo, não é adequada. Deixar o outro vir não é a inércia pronta
para o que quer que seja. Sem dúvida, a vinda do outro, se ela deve permanecer
incalculável e, de uma certa forma aleatória (...), se subtrai a toda programação.
Mas este aspecto aleatório do outro precisa permanecer heterogêneo à
aleatoriedade integrável num cálculo, como à esta forma de indecidível com a
qual as teorias dos sistemas formais têm que lidar. Além de todo estatuto possível
esta invenção do totalmente outro, eu a chamo invenção porque prepara-se para
ela, dá-se este passo [pas] destinado a deixar vir, invenir o outro. A invenção do
outro, a vinda do outro, isso não se constrói certamente como um genitivo
subjetivo, e também não como um genitivo objetivo, mesmo se a invenção vem
do outro. Pois este outro, desde então, não é nem sujeito nem objeto, nem um eu,
nem uma consciência nem um inconsciente. Se preparar para esta vinda do outro,
é aquilo que podemos chamar a desconstrução. Ela desconstrói precisamente este
duplo genitivo e retorna ela mesma, como invenção desconstrutiva ao passo [pas]
do outro. Inventar, isto seria então “saber” dizer “vem” e responder ao “vem” do
outro. Isto alguma vez acontece? Deste acontecimento não estamos nunca
seguros.54

54
DERRIDA, J. “Invention de l’autre”. In: Psyché: inventions de l’autre. I. p. 53 e 54.
41

Podemos entender que a desconstrução acontece, então, apenas como a


preparação para a vinda do outro, porque ela nunca acredita efetivamente na sua
chegada. O que quer que se apresente como outro está já, para a desconstrução, na
ordem do mesmo. Porque o outro é o que nunca se apresenta, mas apenas anuncia
a sua vinda e nos chama para inventá-lo, nos desafiando a um duelo às cegas com
o que, aporeticamente, nos diz “vem”, sem se dar à relação.
Portanto, como nos interessa aqui, seria preciso pensar o trabalho do artista
e do pensador nessa dimensão inventiva ou desconstrutiva na experiência de suas
obras. Como vimos, para a desconstrução, a invenção se faz sempre a partir da
relação com o absolutamente outro, com o que não se pode ver, com aquilo que se
tem apenas uma relação de desejo e de sonho de apropriação, e que, por isso, é
uma relação na separação e na interdição. Desse modo, pensar a “atividade” do
inventor como uma relação com o absolutamente outro seria desconstruir o seu
trabalho como pura atividade, já que a invenção não acontece a partir da sua
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vontade, de um desejo que ele simplesmente pudesse decidir e botar em prática,


mesmo que fosse pelos meios de uma pesquisa ou de um método inventivo.
Como ela vem sempre do outro, a invenção desconstrói, portanto, a ideia de um
sujeito artista ou pensador soberano que domina e controla os seus processos. Por
melhor que eles possam ser tecnicamente, por mais que conheçam seu ofício, a
invenção faz-se sempre a partir do desconhecido. Contudo, como percebemos
num trecho de Derrida já citado nesta seção, há que se preparar para a vinda do
outro. E o que isso quer dizer no caso do artista e do pensador? Talvez, que apesar
de vir do outro, a invenção não vem dada como se fosse apenas o caso de ter a
sorte de esbarrar com ela por acaso. A preparação da obra não seria, assim, nem
da ordem de uma pura passividade nem da ordem de uma pura atividade, mas de
uma contaminação entre as duas, uma passividade ativa ou uma atividade passiva
exigida na relação com o outro que não se sabe quando vem, mas que, no entanto,
chama o artista e o pensador a responderem inventivamente. Esta contaminação
entre passividade e atividade diz, por um lado, que a obra, como o que vem do
outro, é sempre sofrida, é sempre da ordem do que surpreende e arrebata o artista
e o pensador e, por outro lado, contudo, para que ela venha, é preciso engajar-se
nesse arrebatamento, engajar-se no chamamento da alteridade, no seu pedido para
ser inventada e, de certa forma, entrar na ordem da possibilidade.
42

1.3.
Invenção da Identidade

Nomeamos este sub-capítulo de invenção da identidade por conta de um


sentido aporético dessa expressão que gostaríamos de marcar na visão
desconstrutiva deste conceito. Pois, se como dissemos anteriormente, a invenção é
a relação com a alteridade, com o que não se conhece, com o que não se vê, há um
paradoxo desconstrutivo em dizer que a identidade – aquilo que deveria
referenciar-se apenas a si – seja inventada, isto é, que ela parta do outro.
O abalo desta ideia metafísica de identidade nos importa aqui na medida
em que poderemos pensar a partir dela o que julgamos ser a fonte de uma pulsão
inventiva fundamental para os trabalhos do pensador e do artista. E, ressaltando
ainda mais um caráter passivo da experiência desconstrutiva – como já
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começamos a fazer na seção anterior – entenderemos como, a partir da relação


com a língua, o “sujeito” artista ou pensador está suspenso ou assujeitado no pôr
em obra de suas obras. E, por isso mesmo, essas obras, por sua vez, também não
podem ser apropriadas, compreendidas, teorizadas como unidades idênticas a si,
tomadas “enquanto tais”, já que suas identidades nunca se dão presentemente
como uma unidade estável e disponível para apropriação. Para a desconstrução,
não se trata, no entanto, de acabar com a ideia de identidade, mas de admitir que
toda “identidade nunca é dada, recebida ou alcançada, não, apenas existe o
processo interminável, indefinidamente fantasmático, de identificação.” 55 Assim
como o “sujeito” “não é a origem absoluta, a vontade pura, a identidade a si ou a
presença a si de uma consciência, mas esta não-coincidência consigo” ou ainda
uma “experiência finita da não-identidade a si”56.
Este processo interminável de identificação sem identidade a si dá-se, para
Derrida, a partir de uma relação com a língua que, como entenderemos ao longo
desta seção, é sempre do outro: “O de não significa tanto a propriedade quanto a
proveniência: a língua é do outro, vem do outro, (é) a vinda do outro”57. O outro

55
DERRIDA, J. O monolinguismo do outro. p. 43.
56
Id., “Il faut bien manger ou le calcul de sujet”. In: Points de suspension. Entretiens. p. 280.
57
Id., O monolinguismo do outro. p. 101.
43

não a possui, porque ninguém possui a língua, nós precisamos inventar uma
relação com ela, inventando-nos a nós mesmos nesta invenção.
Se pensamos a identidade a partir da língua, como algo que não possuímos
desde a origem, mas como uma alteridade de que precisamos nos apropriar ao
longo de toda a nossa vida, já começamos a entendê-la como um processo infinito
e não como uma essência que naturalmente nos caracterize e nos diferencie de
outras essências. Discutiremos mais adiante, ainda neste capítulo, como a
diferença pensada a partir de essências, para Derrida, ainda seria uma diferença
pensada em termos de presença e de identidade, ainda seria uma diferença entre
coisas diferentes, porém, tidas como idênticas a si mesmas. A problematização da
identidade em Derrida é justamente o reconhecimento da impossibilidade dessa
identidade a si, da impossibilidade de coincidência consigo, da propriedade, do
“enquanto tal”, da unidade ou da pureza do que quer que seja. Aliás, o abalo da
identidade não deixa de ser um abalo ontológico, um abalo da possibilidade de
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dizer o que “é”. Deslocando a questão ontológica, Derrida vai pensar a diferença
de forma mais radical, de forma hiperbólica, partindo da impossibilidade de uma
identidade una, de uma origem plena, como aquilo que chamará de différance58 e
de que falaremos ainda neste capítulo quando nos lançarmos na noção de escrita
derridiana.
Mas, como dizíamos acima, se a nossa possibilidade de identificação, se a
formação do nosso “eu” vem da relação com a língua que já está aqui antes de
nós, isto é, se o “eu”, se a nossa propriedade, só se forma a partir daquilo que vem
do outro, percebemos porque, para a desconstrução, não pode haver propriedade
que já não seja imprópria, ou seja, contaminada pelo que não é ela. Esta aporia da
identidade impossível é apresentada, em relação à língua, na louca lei do
monolinguismo do outro que diz que cada um de nós fala apenas uma única língua
e, contudo, ninguém possui a língua que fala: “eis o duplo gume de uma lâmina
afiada que gostaria de te confiar, quase sem palavras, eu sofro e fruo com isso que
te digo na nossa língua dita comum: ‘sim, eu não tenho senão uma língua, ora ela
não é minha’”59. Esta lei aporética, por um lado, pretende afirmar uma autonomia
na imposição de uma monolíngua como marca singular, porém, o fato dela vir
sempre do outro acaba por sublinhar uma heteronomia a qual estamos todos

58
Desenvolvemos o quase-conceito différance na seção 1.4.
59
DERRIDA, J. O monolinguismo do outro. p. 15.
44

submetidos, a partir da necessidade de inventarmos nossa propriedade naquilo que


não tem origem em nós. Citamos Derrida :

O monolinguismo do outro seria em primeiro lugar esta soberania, esta lei vinda
de algures, sem dúvida, mas seria também e em primeiro lugar a própria língua da
Lei. E a Lei como Língua. A sua experiência seria aparentemente autónoma,
porque tenho de a falar, a esta língua, e de a apropriar para a ouvir como se eu
próprio ma desse; mas ela permanece necessariamente, assim o quer no fundo a
essência de toda lei, heterônoma. A loucura da lei aloja para todo o sempre a sua
possibilidade no foro dessa auto-heteronomia.60

Portanto, a lei como língua diz que estamos sempre submetidos àquilo que
vem do outro, isto é, àquilo que não vemos vir, que não conhecemos
absolutamente. Por isso, toda pretensão de autonomia acaba no reconhecimento de
que estamos todos submetidos a uma relação com o in-visível que condiciona toda
identidade a uma apropriação impossível do que vem do outro. A língua, para
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Derrida, é a lei heterônoma do processo interminável de identificação, o elemento


no qual precisamos marcar nossa relação com o outro como promessa de
identidade. Então, se a língua dita materna de Derrida é o francês, contudo, o
modo como Derrida se apropria do francês é o seu idioma único, a sua
monolíngua, a única que ele pode falar e que só ele pode falar, pois é o elemento
no qual ele se marca, imprimindo na língua dita comum, no francês, a sua
singularidade, o seu estilo, o idioma derridiano:

Sou monolíngue. O meu monolinguismo demora-se e eu chamo-lhe a minha


morada, e sinto-o como tal, nele me demoro e nele habito. Ele habita-me. O
monolinguismo no qual respiro é mesmo para mim o elemento. Não um elemento
natural, não a transparência do éter, mas um meio absoluto. Inultrapassável,
incontestável: não posso recusá-lo senão atestando a sua omnipresença em mim.
Ele ter-me-á sempre precedido: sou eu. Este monolinguismo, para mim, sou eu. O
que não quer dizer, de modo algum, não creias tal, que eu seja uma figura
alegórica deste animal ou desta verdade, o monolinguismo. Mas fora dele eu não
seria eu-mesmo. Ele constitui-me, dita-me mesmo a ipseidade de tudo, prescreve-
me, também, uma solidão monacal, como se quaisquer votos me tivessem ligado
a ele antes mesmo de ter aprendido a falar. Este solipsismo inexaurível, sou eu
antes de mim. Para sempre.61

60
DERRIDA, J. O monolinguismo do outro. p. 56.
61
Ibid., p. 13 - 14.
45

Por outro lado, ninguém possui esta língua que, embora carregue a marca
de cada singularidade, é maior do que a apropriação idiomática que cada falante
faz dela, daí o reconhecimento derridiano de sua aporia: “Ora jamais esta língua, a
única que assim estou votado a falar, enquanto falar me for possível, e em vida e
na morte, jamais esta língua única, estás a ver, virá a ser minha. Nunca na verdade
o foi.”62 É porque ninguém possui a língua que fala que precisa traçar uma relação
inventiva com ela, isto é, cultivá-la como o acolhimento da vinda do outro. Este
trabalho de acolhimento ou de hospitalidade entre língua e falante, Derrida o
chama de experiência de ex-apropriação63 da língua, porque esta experiência é, ao
mesmo tempo e aporeticamente, apropriação e expropriação: se por um lado, para
falar, o falante apropria-se à sua maneira da língua que é anterior a ele, que já
existia antes da sua chegada, por outro lado, contudo, a língua, entrando no
falante, como a chegada do outro, expropria-o de si. Mas essa expropriação de si é
a própria formação da sua interioridade. Isto é, a única formação possível do
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próprio dá-se a partir do impróprio, da língua do outro, da chegada do outro. Este


processo de formação da nossa interioridade, da nossa “propriedade” é nomeada
por Derrida de alienação sem alienação 64 , porque não havia nada já formado
primeiramente que depois o outro viesse alienar. Não se pode pensar numa
identidade já formada, presente a si mesma que, num segundo momento, entrasse
em contato com outras identidades em si. É preciso entender que, para a
desconstrução, o efeito de identidade só se dá a partir da contaminação, a
identidade só se forma a partir do abalo dessa própria identidade. Toda construção
só se ergue a partir de sua desconstrução. Não há identidade que se forme fora
deste processo de sua perturbação. Apenas nessa condição um processo de
identificação é possível.
Assim, a experiência de ex-apropriação, como apropriação e expropriação
ao mesmo tempo, marca na experiência da língua tanto uma atividade como uma
passividade. Se por um lado é o falante que apropria-se da língua, marcando nela
a sua singularidade, ele não faz isso numa pura atividade como se fosse senhor da
62
DERRIDA, J. O monolinguismo do outro. p. 14.
63
A respeito da ex-apropriação citamos Duque-Estrada: “Neste sentido, aquilo que vem a formar
uma identidade é, ao mesmo tempo, aquilo que já a desloca, que já a abala, já afrouxa os laços de
sua própria coesão, e, deste modo, não se pode pensar aqui nem em identidade […], nem em não-
identidade, mas sim em um processo contínuo de “ex-apropriação”, “alienação sem alienação”, de
uma ‘propriedade (‘auto’) que jamais se perde e jamais se reapropria’…”. DUQUE-ESTRADA,
P.C. “Derrida e a escritura” In: Às margens: a propósito de Derrida. p. 14.
64
DERRIDA, J. O monolinguismo do outro. p. 40.
46

língua, já que é a língua, como a vinda da alteridade, que impõe ao sujeito um


apelo ao qual ele deve responder acolhendo-a inventivamente. Como Fernanda
Bernardo nos chama atenção, Derrida segue aqui os rastros da tese heideggeriana
de que é a língua que fala, apelando-nos a responder. Nós só falamos, isto é, nós
só fazemos uma experiência da língua, na medida em que escutamos o seu apelo e
correspondemos a ele. Bernardo defende que é esta concepção heideggeriana de
experiência que, até certo ponto, definirá a experiência desconstrutiva. Escutemos
Heidegger:

Fazer uma experiência com algo, seja com uma coisa, com um ser humano, com
um deus, significa que esse algo nos atropela, nos vem ao encontro, chega até
nós, nos avassala e transforma. “Fazer” não diz aqui de maneira alguma que nós
mesmos produzimos e operacionalizamos a experiência. Fazer tem aqui o sentido
de atravessar, sofrer, receber o que nos vem ao encontro, harmonizando-nos e
sintonizando-nos com ele. É esse algo que se faz, que se envia, que se articula.65
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A grande diferença entre Derrida e Heidegger aqui neste ponto e que, na


verdade, vai marcar não só o afastamento desses dois filósofos em relação a
concepção de experiência como também vai diferenciar a própria experiência do
pensamento de cada um, é que, para a desconstrução, não há possibilidade de
harmonia ou sintonia com o que nos atravessa, justamente porque, se o que vem
ao nosso encontro e nos atropela é da ordem do absolutamente outro, sua
alteridade ou sua diferença nunca é reduzida ou apropriada na experiência. Ao
contrário, para Derrida, é exatamente essa impossibilidade de aniquilar a diferença
que faz com que a experiência seja sempre o que nos chega inadvertidamente, sem
que se possa controlar, e que se sofre como uma espécie de trauma. Portanto,
Bernardo ressalta que se o pensamento de Heidegger é tão caro a Derrida e se este
o tem como um filósofo atento à diferença, contudo, Derrida se demarca
absolutamente disto que ele indica como uma tendência final do pensamento de
Heidegger de apagamento da diferença, de reunião e consenso, no que o filósofo
alemão chama de Versammlung66.

65
HEIDEGGER, Martin. “A essência da linguagem”. In: A caminho da linguagem. Tradução:
Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, Bragança Paulista: Editora universitária São
Francisco, 2003. p. 121.
66
BERNARDO, Fernanda. Seminário na Universidade de Coimbra. Primeiro semestre de 2013.
47

É no reconhecimento do caráter passivo da experiência da língua que


caminha, junto à desconstrução da identidade, também a desconstrução de um
sujeito soberano. Pois, se tradicionalmente o sujeito é pensado em termos de
poder, se o sujeito é aquele que domina a fala, pensar, ao contrário, que a sua
monolíngua, o único meio no qual ele se marca, não lhe pertence, mas, antes,
atropela-o, fazendo-o sofrer a língua como uma paixão, não podemos mais pensá-
lo como senhor de si, mas apenas como alguém sujeito à injunção da alteridade:

Porque, contrariamente ao que somos a maior parte das vezes tentados a crer, o
senhor não é nada. E não tem nada de próprio. Porque não possui como próprio,
naturalmente, o que no entanto chama a sua língua; porque, independentemente
do que queira ou faça, não pode entretecer com ela relações de propriedade ou de
identidade naturais, nacionais, congenitais, ontológicas; porque não pode
acreditar e dizer esta apropriação senão no decurso de um processo não natural de
construções político-fantasmáticas; porque a língua não é o seu bem natural, ele
pode justamente por isso historicamente, através de uma violação de uma
usurpação cultural, ou seja, sempre de essência colonial, fingir apropriá-la para a
impor como “a sua”. Tal é a sua crença, que ele quer obrigar a partilhar pela força
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ou pela manha, e na qual ele quer obrigar a crer, como um milagre, pela retórica,
pela escola ou pelo exército.67

Assim, essa estrutura de alienação originária da língua, o fato dela não nos
pertencer, nos interdita uma relação de propriedade e pertencimento com ela ou
com o que quer que seja, já que todas as nossas relações partem dessa relação de
interdição com a língua, fazendo de nós seres estruturalmente alienados na
origem:

Tal como a ‘falta’, esta ‘alienação’ originária parece constitutiva. Mas ela não é
nem uma falta nem uma alienação, não tem falta de nada que a preceda ou a siga,
não aliena nenhuma ipseidade, nenhuma propriedade, nenhum si que tenha
alguma vez podido representar a sua véspera. (...). Esta estrutura de alienação
sem alienação, esta alienação inalienável não é apenas a origem da nossa
responsabilidade, ela estrutura o próprio e a propriedade da língua. 68

Portanto, a propriedade da língua é estruturada por esta alienação ou esta


impossibilidade de propriedade que condena toda identidade a um processo
fantasmático de identificação sem estabilização possível. É pelo fato de não
possuirmos uma origem conhecida, visível, identificável, que precisamos

67
DERRIDA, J. O monolinguismo do outro. p. 38.
68
Ibid., p. 39 - 40.
48

inventar, instituir, fazer aparecer identidades. Assim, podemos pensar esta


estrutura de alienação sem alienação na nossa origem como o motor que põe em
movimento toda a nossa capacidade inventiva. É porque não possuímos nada
originariamente que queremos a todo custo crer que possuímos, que somos
senhores de nós mesmos. Assim, queremos impor, como se fossem naturais, as
nossas construções. Mas a desconstrução como pensamento defende, como seu
gesto ético, a necessidade de lembrar como toda identidade é sempre uma
construção e, por isso, tão frágil quanto uma ficção, fundada a partir da nossa falta
de fundamento. De qualquer forma, Derrida afirma que “a interdição [da língua]
não é negativa, não provoca simplesmente a perda”69, pois é ela que nos põe em
movimento, que ativa em nós uma pulsão inventiva, que nos faz querer criar a
nossa própria voz, as nossas identificações com o mundo. E, ao mesmo tempo,
esta interdição ativa também uma pulsão como que colonialista de querer impor
ao outro a nossa própria língua na tentativa de afirmar uma autoridade, uma
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propriedade, uma identidade. Porque, no fundo, não possuímos nada disso, apenas
cultivamos uma relação infinita e aporética de ex-apropriação com o que nos
relacionamos. Derrida explica:

Nunca há apropriação ou reapropriação absolutas. Uma vez que não existe


propriedade natural da língua, esta não dá lugar senão à raiva apropriadora, ao
ciúme sem apropriação. A língua fala este ciúme, a língua não é senão ciúme à
solta. Desforra-se no coração da lei. Da lei que ela própria é, aliás, a língua, e
doida. Doida por si mesma. Doida varrida70.

Então, se há, por um lado uma passividade irredutível nessa experiência da


língua, por outro, contudo, também precisamos identificar nela uma atividade,
mesmo que essa atividade parta sempre de uma passividade anterior. É justamente
porque a identidade nunca é dada, não vem pronta como essência no nosso
nascimento que somos obrigados a trabalhá-la, colocá-la em obra ao longo da
vida. Assim, podemos dizer que é esta “falta” ou esta alienação sem alienação que
está, por exemplo, na origem sem origem não só das artes e do pensamento como
também das conquistas imperialistas, da tentativa de impor sua monolíngua ao
outro como uma lei universal. Nas palavras de Fernanda Bernardo:

69
DERRIDA, J. O monolinguismo do outro. p. 47.
70
Ibid., p. 38.
49

Perturbante – como não confessá-lo? – não deixa de ser perceber que a criação e
a dissidência pela arte têm a mesma fonte de imposição soberana, imperialista ou
colonialista, da língua – brotam ambas desta despossessão originária da língua e
da paixão ciosa, que ela desencadeia, pela sua impossível apropriação – pela sua
in-finita ex-apropriação.71

O ciúme advindo da impossibilidade de apropriarmos a língua marca todo


trabalho, toda invenção como cinza ou resto do desejo impossível de apropriação
total da língua que nunca se dá. É por isso que nenhum artista ou pensador pode
satisfazer-se com uma determinada obra. Porque toda obra tem origem nessa
relação originária com a língua. Ela vem do outro, como inspiração, num
chamado invisível, desconhecido, como a assombração de um espectro que não se
vê presentemente. Por isso, nenhuma obra é plena. O artista nunca se satisfaz na
sua tentativa de apropriação desse chamado que lhe assombra. Ele precisa
continuar em movimento, nunca parar de trabalhar, numa eterna tentativa de
inventar um corpo para esses espectros que o interpelam.
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Quando dizemos que toda obra tem origem nessa relação de interdição
com a língua, não nos referimos apenas às obras discursivas, às obras que lidam
diretamente com a palavra, mas também às obras do visível ou espaciais. Ou seja,
as obras que aparentemente não se fazem no discurso, as obras ditas mudas não
estão nunca completamente fora de uma experiência da língua. Pois, para Derrida,
não há sentimento, não há experiência fora da língua:

Percebes assim a origem dos meus sofrimentos, uma vez que esta língua os
atravessa de parte a parte, e o lugar das minhas paixões, dos meus desejos, das
minhas preces, a vocação das minhas esperanças. Mas não tenho razão, não, não
tenho razão em falar de travessia e de lugar. Porque é à beira do francês,
unicamente, nem nele nem fora dele, na linha inencontrável da sua costa que,
desde sempre, para sempre, eu me pergunto se se pode amar, fruir, suplicar,
rebentar de dor ou muito simplesmente rebentar noutra língua ou sem mesmo
nada dizer a ninguém, sem falar sequer.72

É porque não podemos sair da experiência da língua que, para Derrida, a


desconstrução acontece com a metafísica, nela, sem pretender ultrapassá-la. Pois
não temos uma outra língua não-metafísica para onde pudéssemos saltar e realizar

71
BERNARDO, F. Eco-grafias. Dar à língua: contra-assinatura, re-invenção e sobrevivência.
Ovídio-Derrida. In: Revista filosófica de Coimbra N. 39 (2011). p. 257.
72
DERRIDA, J. O monolinguismo do outro. p. 14.
50

uma experiência de rompimento. As nossas línguas são metafísicas e, por isso, a


desconstrução acontece na língua, desafiando e resistindo às clausuras impostas
por ela. Obviamente, as artes do visível impõem uma resistência diferente à
discursividade logocêntrica do pensamento do que as artes que lidam diretamente
com as palavras. Esta resistência aparece nas artes do visível, justamente, naquilo
que nelas é invisível, ou seja, naquilo que nelas não se dá à visibilidade como
discursividade, como conhecimento e razão. É exatamente nesse ponto de
invisibilidade que elas funcionam como desconstrução, chamando um pensamento
desconstrutivo, um pensamento que, mesmo feito nas palavras, não se entrega ao
logocentrismo. Esta seria a contaminação da desconstrução pela invisibilidade das
artes do visível, mostrando um ponto cego comum tanto à experiência do
pensamento desconstrutivo quanto à experiência da arte do visível, naquilo que
nelas resiste ao logocêntrico:
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O que faço com as palavras é fazê-las explodir para que o não verbal apareça no
verbal. Quer dizer que faço as palavras funcionarem de uma tal maneira que em
certo momento elas não pertencem mais ao discurso, ao que regula o discurso
(...). E se eu amo as palavras é também por causa da habilidade que elas têm de
escaparem à sua forma própria (...). Ou seja, interesso-me também pelas palavras,
paradoxalmente, na medida em que elas são não discursivas, porque é assim que
elas podem ser usadas para explodir o discurso (...). Nem sempre, mas na maioria
dos meus textos há um ponto no qual as palavras funcionam de uma maneira não
discursiva. De repente elas interrompem a ordem e as regras, mas não graças a
mim. Presto atenção ao poder que têm as palavras bem como, às vezes, às
possibilidades sintáticas de romper o uso normal do discurso, o léxico e a
sintaxe.73

Quando dizemos, então, que toda obra de arte, mesmo da arte dita do
visível, parte de uma relação com a língua, dizemos que ela parte da invenção
originada por uma relação de interdição da língua, pelo ciúme decorrido do fato
da língua não pertencer e não formar um sujeito soberano. É nesse sentido que
podemos dizer que toda invenção nasce sempre a partir dessa estrutura originária
de alienação e, por isso, como desejo de identificação. Então, mesmo que a obra
não seja literária, discursiva, isto é, que ela não se faça diretamente na palavra, ela
não está, por isso, fora dessa situação de endividamento à língua e, assim, de
alguma forma, relaciona-se com a língua, seja porque parte de quem está sempre

73
DERRIDA, J. “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida”. Pensar em não ver. p.
39 - 40.
51

assujeitado a ela, seja porque será sempre interpretada dentro de uma experiência
da língua.
Com efeito, é nesse sentido que dizemos aqui de uma origem comum entre
obras de arte e obras do pensamento, como a filosofia, por exemplo. Pois, se tanto
uma como a outra nascem da relação de um “sujeito” interrompido com aquilo
que, sem que seja visto ou esperado, lhe chega como inspiração, tanto o
pensamento como a arte só aparecem como obras. Isto é, como resto de uma
experiência impossível com o invisível ou o desconhecido. E é justamente na
medida em que a desconstrução admite a filosofia como obra, isto é, como
trabalho da invenção ou como resto de uma experiência impossível, que a
abordagem desconstrutiva da arte não pode ser hierarquizada, não pode pretender
desvelar o que, na arte, seria invisível. Pois, ao contrário, como explosão do
discurso filosófico, a desconstrução pretende salientar, mostrando “em si mesma”
aquilo que na obra se marca como impossibilidade ou invisibilidade, aquilo que
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retira do discurso filosófico a sua autoridade e a sua pretensão de superioridade. A


desconstrução assume nesse ponto um reconhecimento – no sentido de
agradecimento74 - à invisibilidade como a condição da visão, do sentido e, assim,
da invenção. Na confissão de Derrida:

Tudo quanto faço, sobretudo quando escrevo, parece-se com um jogo de cabra-
cega: aquele que escreve, sempre à mão, mesmo quando se serve de máquinas,
estende a mão como um cego para lograr tocar aquele ou aquela a quem poderia
agradecer pelo dom de uma língua, pelas próprias palavras nas quais se diz pronto
a dar graças, a pedir graça também.75

É nesse sentido que, no segundo capítulo desta tese, trataremos da


abordagem desconstrutiva das artes como uma desconstrução das estéticas
tradicionais, pois a desconstrução reconhece nas filosofias das artes uma
autoridade logocêntrica que vem do fato delas não se enxergarem como obras.
Isto é, delas não atentarem para a sua origem invisível – tanto quanto a das artes –
e acreditarem, ao contrário, que nascem da visibilidade plena do inteligível, da
presença de um sentido completo, fechado e idêntico a si mesmo.

74
Este tema do reconhecimento como agradecimento aparece na seção 2.2 desta tese na leitura de
Mémoires d’aveugle. Como veremos, a possibilidade do traço ou da obra aparece como um dar
graças ao dom recebido.
75
DERRIDA, J. O monolinguismo do outro. p. 97.
52

Como podemos perceber, a discussão d’O monolinguismo do outro como


impossibilidade de uma identidade a si, nos importa aqui no ponto em que
entendemos que, para Derrida, se tanto o pensamento como as artes só nos
chegam como obras, isto é, como restos de uma experiência interdita com a
língua, que se marca na obra como impossibilidade de sua identidade, como
impossibilidade de se dar ao conhecimento e à visibilidade plena, não podemos
entendê-las no sentido heideggeriano do pôr em obra da verdade, na medida que o
que elas põem em obra é a sua própria invisibilidade como assunção da sua
origem sem origem. E é por isso que não se pode pretender abordá-las
teoricamente com pretensão de desvelamento ou de esclarecimento, pois, assim
como qualquer “sujeito”, sua identidade não é um conjunto fechado, homogêneo,
acabado, coincidente consigo, mas antes, uma referencialidade infinita que só
pode se reunir artificialmente como efeito de identificação temporária.
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1.4.
Explosão da linguagem: a escrita76

É sabido que todo o pensamento de Derrida dissemina-se a partir de uma


ideia de escrita, no sentido de arqui-escrita. Neste ponto do capítulo, nos
concentraremos em torno deste quase-conceito e tentaremos mostrar de que
maneira ele impõe-se ao pensamento, a partir da desconstrução do que Derrida diz
ter se estabelecido, pela e na tradição filosófica ocidental, como um
fonologocentrismo. Isto é, como uma centralidade e um privilégio concedido ao
logos e à phoné – ou ao logos como phoné – em detrimento da escrita, desde
Sócrates e Platão e, com diferentes desdobramentos, até a linguística de Saussure.
Antes de percorrermos a desconstrução deste fonologocentrismo no
pensamento de Derrida, gostaríamos de abrir um pequeno parêntese apenas para

76
Optamos por traduzir o termo derridiano “écriture” por “escrita” para não fazer uma diferença
entre o quase-conceito derridiano e a noção de escrita corrente, a partir da qual o quase-conceito
derridiano é nomeado. No entanto, no caso das citações, preservamos a opção de cada autor ou
tradutor.
53

associar o motivo do modelo ótico a este fonologocentrismo no pensamento


ocidental.
Se o logocentrismo denunciado por Derrida como a clausura e a
dogmaticidade do pensamento da metafísica da presença é tratado em De la
grammatologie 77 , sobretudo, como um fonologocentrismo, isto é, como um
privilégio da voz no pensamento da tradição, afirmamos que o modelo ótico ao
qual nos referimos no título desta tese, bem como na sua introdução, é, da mesma
forma, a denúncia deste logocentrismo. Pois, o reconhecimento de um privilégio
do visual no pensamento – como uma ligação entre o ver, o saber e o poder – não
impede em nada a concomitância de um privilégio da voz, já que esses dois
privilégios são, no fundo, o apagamento dos sentidos no inteligível, ou seja, são a
confirmação de um privilégio do inteligível sobre o sensível e, por isso, um
privilégio do sentido sobre os sentidos. Pois se a voz aqui diz de uma voz interior
ou uma voz mais próxima de um sentido, a visibilidade refere-se a uma
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visibilidade inteligível. Portanto, tanto o fonologocentrismo quanto o modelo


ótico apontam para a estrutura binária hierarquizante da metafísica da presença
que confere à filosofia a dogmaticidade de seu discurso. O privilégio da voz como
o privilégio do visual denunciam, no fundo, um privilégio do próprio privilégio,
ou seja, denunciam a estrutura do pensamento metafísico que contrapõe dois
termos hierarquicamente, privilegiando sempre um deles em contrapartida do
outro que fica rebaixado nesta relação, como é o caso de toda a série de oposições
do pensamento ocidental como fala/escrita, inteligível/sensível,
presença/ausência, conteúdo/forma, masculino/feminino, dentro/fora,
claridade/escuridão e assim por diante.
Voltando então ao percurso derridiano da desconstrução do
fonologocentrismo, como Duque-Estrada assinala, para a tradição do pensamento,

A voz (phoné, a palavra viva) se encontra como substância significante primeira


que, em função de sua máxima proximidade ao sentido ou significado, expressa-o
imediatamente, no momento mesmo em que o pronuncia. É esta unidade de voz e
sentido, phoné e logos, que constitui a essência da linguagem. A escritura, por
sua vez, elemento estranho, não orgânico à unidade entre voz e sentido e,
portanto, não orgânico à própria linguagem, não é mais do que uma
representação exterior. Mais precisamente, a escritura é uma representação

77
DERRIDA, J. De la grammatologie. Paris: Minuit, 1967.
54

fonética instituída, quer dizer, um acontecimento que vem se acrescentar de um


modo contingente, arbitrário, à unidade entre voz e sentido.78

Percebemos, nesta concepção fonologocêntrica do pensamento, muitos dos


pressupostos que, como veremos nesta seção, servirão à tradição para privilegiar a
fala e condenar a escrita como a queda do pensamento no exterior, no espaço, na
visibilidade sensível, no inanimado. Derrida denuncia como, desde Platão e até os
dias de hoje, a escrita é vista como um mero meio de representação da fala, ou
seja, como um artifício secundário e exterior para fixá-la e levá-la para longe do
seu “querer-dizer” original, afastando-a da intenção e da autoridade de quem a
proferiu.
Deste modo, a escrita constitui um perigo para o pensamento já que este
não pode assistir-se a si próprio no momento da sua enunciação. Levado para
longe pelos caracteres exteriores da escrita, o logos torna-se para Platão um órfão
ou um filho bastardo, sem a presença de um pai falante que lhe dê assistência e
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lhe garanta sua correta interpretação. Derrida explica:

Não que o lógos seja o pai. Mas a origem do lógos é seu pai. Dir-se-ia, por
anacronia, que o “sujeito falante” é o pai de sua fala. (...) O lógos é um filho,
então, e um filho que se destruiria sem a presença, sem a assistência presente de
seu pai. De seu pai que responde por ele e dele. Sem seu pai ele é apenas,
precisamente, uma escritura. É ao menos o que diz aquele que diz, é a tese do pai.
A especificidade da escritura se relacionaria, pois, com a ausência do pai. Uma tal
ausência pode se modalizar ainda de formas diversas, distinta ou confusamente,
sucessiva ou simultaneamente: ter perdido seu pai de forma natural ou violenta,
por uma violência qualquer ou por parricídio; em seguida, solicitar a assistência,
possível ou impossível, da presença paterna. Solicitá-la diretamente ou
pretendendo prescindir dela etc. Sabemos como Sócrates insiste sobre a miséria,
deplorável ou arrogante, do lógos entregue à escritura: “...ele tem sempre
necessidade da assistência de seu pai (...): sozinho, com efeito, não é capaz nem
de se defender nem de dar assistência a si mesmo”79

Percebemos, então, que não é que a escrita não tenha logos, mas seu logos
é fraco, é um logos sem a voz do pai para sustentá-lo e, assim, é um discurso sem
força, perdido e errante. E é desse modo que a ligação entre logos e voz é
essencial em Platão, pois é essa união fonologocêntrica que parece resguardar a

78
DUQUE-ESTRADA, P. C. “Derrida e a escritura”. In: Às margens: a propósito de Derrida. p.
16.
79
DERRIDA, J. A farmácia de Platão. p. 22 e 23.
55

força, a pureza e a naturalidade do pensamento. Assim, o logos, quando


acompanhado pela presença do sujeito falante, define o sentido do pensamento
como razão, como consciência, ou melhor, define o pensamento nos limites do
sentido e da verdade. E, por esse viés do pensamento centrado na ligação do logos
e da phoné, a escrita fica sempre marcada pela ausência da voz-viva, do ânimo, da
naturalidade e legitimidade do falante. Consequentemente, além da unidade
phoné-logos como traço fundamental da metafísica da presença, Derrida denuncia
também a ideia de um falocentrismo inerente a esta unidade, já que a voz-viva é
sempre a voz da razão, do pai, da autoridade, da lei e da regra. Assim, para Platão,
ao discurso escrito falta sempre essa voz legitimadora do pensamento e, mais do
que isso, ele acusa a escrita de matar seu próprio pai, de querer prescindir de sua
autoridade, substituindo seu lugar e, portanto, repetindo um falso saber, separado
e desamparado de seu referente, de sua verdadeira origem.
Em La pharmacie de Platon 80 , Derrida mostra como o filósofo grego
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insiste no perigo da escrita em muitas de suas obras. Um desses perigos


salientados por Platão, é a capacidade da escrita de levar o discurso para longe no
espaço e no tempo. Fazendo isso, o discurso escrito alcança um número muito
maior de pessoas do que aquele alcançado pelo discurso oral. Este último,
proferido apenas na intimidade, para um número pequeno de escolhidos que
tenham a capacidade de interpretá-lo de modo conveniente, não configura um
perigo.
No Fedro, finalmente, a escrita é condenada como um phármakon através
da narração de um mito egípcio em que Theuth, o inventor da escrita – assim
como dos números e dos jogos –, vai apresentá-la ao rei, Thamous, como um
remédio (phármakon) para a memória (mnéme) e o saber (episteme), esperando
sua aprovação. Contudo, o rei, que não sabe escrever – já que não precisa, pois
representa a autoridade, o poder da fala e da decisão sobre a utilidade das
invenções, ao julgá-las boas ou más –, recusa a escrita ao dizer e, assim,
estabelecer, ditar, que esta é um veneno (phármakon): que ela não seria boa nem
para a memória nem para o saber, mas apenas para a recordação (hypomnemata) e
para o esquecimento (léthe), constituindo, antes, um perigo para os homens que,
uma vez confiando na escrita, não estariam exercitando a memória viva (mnéme),

80
DERRIDA, J. “La pharmacie de Platon”. In: La dissémination. Paris: Editions de Seuil, 1972.
56

aquela produzida no interior da alma de forma espontânea. E, portanto, passariam


a depender do auxílio de um suplemento exterior ao pensamento e que,
certamente, levaria o homem ao erro e ao esquecimento. Nas palavras de Derrida:

As marcas (túpoi) da escritura não se inscrevem dessa vez, como na hipótese do


Teeteto (191 sq.), em cavidades na cera da alma, respondendo assim aos
movimentos espontâneos, autóctenes da vida psíquica. Sabendo que pode confiar
ou abandonar seus pensamentos ao fora, em consignação, às marcas físicas,
espaciais e superficiais que se dispõem, por inteiro, sobre uma plaqueta, aquele
que dispuser da tékhne da escritura repousará sobre ela. Ele saberá que pode
ausentar-se sem que os túpoi cessem de estar lá, que pode esquecê-los sem que
eles abandonem seu serviço. Eles o representarão, mesmo que ele os esqueça,
eles levarão sua fala, mesmo que ele não esteja mais lá para animá-los. Mesmo
que esteja morto, e só um phármakon pode deter um tal poder sobre a morte, sem
dúvida, mas também em conluio com ela. O phármakon e a escritura são, pois,
sempre uma questão de vida e de morte.81

Vemos como os caracteres da escrita aparecem aqui em oposição à


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vivacidade da fala, estabelecendo-se como inanimados e sem vida. É justamente


esse aspecto de morte da escrita que faz Platão compará-la à pintura, definindo-a,
a ela também, como zoografia, ou, em outras palavras, como mímesis, imitação:
“a zoografia é justamente um desenho ou um retrato que pinta o vivo, mas essa
pintura do vivo está morta”82. Eis aí o encontro da escrita com as artes em sua
queda na exterioridade e na visibilidade sensível. Pois, os que escrevem, assim
como os poetas e os pintores, diz Derrida, são aqueles “que se contentam em fazer
zoografias”83. Assim, a visibilidade sensível da escrita é tida por Platão como uma
cegueira, como uma má tékhné incapaz

De engendrar de pro-duzir, de fazer aparecer: o claro, o seguro, o estável (...). Ou


seja, a alétheia do eidos, a verdade do ente em sua figura, em sua “ideia”, em sua
visibilidade não sensível, em sua invisibilidade inteligível. A verdade do que é: a
escritura ao pé da letra não tem, aí, nada a ver. Antes, aí, tem a (se) cegar. E
aquele que acreditasse ter por meio de um grafema pro-duzido a verdade, daria
prova da maior tolice.84

81
DERRIDA, J. A farmácia de Platão. Tradução: Rogério Costa. São Paulo: Iluminuras, 2005. p.
51 - 52.
82
Id., “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 81.
83
Ibid., p. 81.
84
Id., A farmácia de Platão. p. 85.
57

E, em relação à morte, não é apenas porque a escrita priva de vida a fala


que ela está ligada à morte para Platão, mas também porque, como já dissemos,
ela não só mata o referente, o pai de sua fala, como também – através do que só a
magia de um phármakon pode fazer – “ressuscita” o morto fazendo-o dizer,
talvez, o que ele não pretendia. Ou melhor, repetindo, copiando sua fala, longe de
sua presença. Mesmo que já esteja morto, o falante pode, através da escrita, como
que por encanto, continuar falando, não exatamente, em sua presença autêntica,
mas como uma espécie de fantasma, que volta para assombrar a certeza de sua
ausência.
Veremos que Derrida está longe de negar a relação entre escrita e morte, já
que a escrita, para ele, carrega em si o luto da desconstrução da origem, pois se a
metafísica, de Platão a Saussure, porta o peso da presença, a desconstrução, de
formas que ainda descobriremos, carrega o luto da ilusão desta presença.
A escrita não é, portanto, pensada por Derrida em oposição aos traços
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definidos por Platão. Muito pelo contrário, esses traços da escrita são assumidos
por Derrida como uma “realidade” da qual não se escapa. E, portanto, a postura de
acolhimento desses traços mostra uma lucidez desconstrutiva ao denunciar um
certo moralismo da metafísica da presença na luta para estabelecer o pensamento
em termos de pureza. Então, sim, para Derrida, a escrita está ligada à morte,
talvez de forma ainda mais radical do que para Platão. Como Mónica Cragnolini
argumenta:

Diversos são os modos em que se podem entrelaçar os termos “morte” e


“escritura” na obra de Jacques Derrida. Por um lado, existe a escritura diante da
morte, a escritura do luto: as páginas escritas em homenagem ao morto. Por outro
lado, a escritura da vida (e, sobretudo, a escritura da própria vida, a autobiografia)
revela-se como uma escritura da morte: adiantamos nossa própria morte ao relatar
nossa vida em nosso próprio nome. E, finalmente, devemos dizer que a escritura
– qualquer escritura – tem relação com a morte – de seu autor, dos presentes ou
ausentes na mesma, da presença do signo.85

85
CRAGNOLINI, M. “adieu, adieu, remember me: Derrida, a escritura e a morte”. In: DUQUE-
ESTRADA, P. C. (Org). Espectros de Derrida. p.41.
58

Ou seja, a própria estrutura da escrita derridiana é uma estrutura sem


estrutura que testemunha o luto daquilo mesmo que ela pretende guardar. Isto é, o
seu rastro, só salva o que pretende, na medida em que o perde86.
Assim, podemos perceber como esta aporia da escrita desconstrutiva se
não nega Platão, de qualquer forma, desloca a sua lógica opositiva, pois não
temos aqui uma contraposição entre vida e morte e, sim, a indecidibilidade do que
Derrida chama de a vida a morte: “Duas expressões que se unem sem união, sem
conjunção, já que não são dois termos de uma polaridade, senão a indecidibilidade
mesma do acontecer.”87 O traço da escrita é pois a memória do que se perdeu, a
sobrevivência do que não é nem vivo nem morto, nem presente nem ausente, mas
espectral88.
Voltemos à tentativa de purificação do pensamento em Platão. É
importante salientar a oposição que o filósofo grego nos dá a pensar entre a
interioridade pressuposta na mnéme e a exterioridade da hypomnesis, além do
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perigo de contaminação da primeira, da memória viva, interior, pela segunda, pelo


seu fora, pela sua representação, ou seja, os signos externos, auxiliares da
memória artificial, da recordação. Derrida defende que é este medo de
contaminação de um dentro pelo seu fora, de um termo pelo seu oposto que faz
Platão condenar tão veementemente a escrita como phármakon, aquilo que é, ao
mesmo tempo, veneno e remédio e que, por isso, escapando à lógica opositiva da
metafísica, desafia a suposta propriedade, a suposta essência pura do que quer que
seja. Como Derrida explica, o medo aqui é que a memória viva – aquela que
produz-se a si mesma na interioridade da alma – deixe de se produzir ao passar a
confiar num suplemente externo. Nas palavras de Derrida:

O limite (entre o dentro e o fora, o vivo e o não-vivo) não separa simplesmente a


fala e a escritura, mas a memória como desvelamento (re-)produzindo a presença
e a rememoração como repetição do monumento: a verdade e seu signo, o ente e
o tipo. O “fora” não começa na junção do que chamamos atualmente o psíquico e
o físico, mas no ponto em que a mnéme, em vez de estar presente a si em sua
vida, como movimento da verdade, se deixa suplantar pelo arquivo, se deixa
excluir por um signo de re-memoração ou de com-memoração. O espaço da

86
A indecidibilidade da escrita como o perdersalvar num único verbo a que Derrida se refere em
“Salvar os fenômenos. Para Salvatore Puglia”. In: Pensar em não ver p. 216.
87
CRAGNOLINI, M. “adieu, adieu, remember me: Derrida, a escritura e a morte”. In: DUQUE-
ESTRADA, P.C. (org). Espectros de Derrida. p.42.
88
No terceiro capítulo desta tese ampliamos essa discussão do espectral como o que suspende a
oposição entre vida e morte.
59

escritura, o espaço como escritura, abre-se no movimento violento dessa


suplência, na diferença entre mnéme e hypomnesis. O fora já está no trabalho da
memória. O mal insinua-se na relação a si da memória, na organização geral da
atividade mnésica. A memória é por essência finita. (...) Uma memória sem
limites não seria, aliás, uma memória, mas a infinitude de uma presença a si. A
memória tem sempre, pois, necessidade de signos para lembrar-se do não-
presente com o qual ela tem, necessariamente, relação. (...) A memória deixa-se
assim contaminar por seu primeiro fora, por seu primeiro suplente: a hypomnesis.
Mas aquilo com que sonha Platão é uma memória sem signo. Ou seja, sem
suplemento, mnéme sem hypomnesis, sem phármakon.89

Chegamos, então, num ponto para o qual Derrida insiste em chamar


atenção e que ocorre tanto em Platão como em Saussure em relação à escrita. Se
esses dois censores da escrita afirmam que ela é exterior ao pensamento e à
língua, porque será que eles se debruçam tanto sobre ela na tentativa de evitar que
ela se infiltre na fala, manchando, assim, o pensamento? O que podemos perceber
pela citação acima é que não há, realmente, uma separação absoluta entre o fora e
o dentro, entre a recordação e a memória viva. E que esta última só se estabelece
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através de um jogo com o seu fora, com o seu oposto, com o que não é ela. Se não
fosse essa condição de relacionar-se com o seu fora, a memória não seria mais
memória, e sim, pura presença a si. Dessa forma, a memória já nos diz do
esquecimento, dessa possibilidade. Ou melhor, da impossibilidade de uma
presença a si, pois ela é justamente o que aponta para fora, para a necessidade da
relação com o fora. Isto é, o receio aqui é que a repetição da escrita, que a sua
capacidade de trazer de volta, possa acabar apagando e confundindo a origem e o
sentido do pensamento. Este é o perigo do phármakon do qual Platão tenta livrar a
fala, no desejo de estabelecer e manter a pureza metafísica do pensamento. Ou
seja, a possibilidade de uma presença a si sem relação com uma alteridade, de
uma memória e uma fala sem phármakon, sem escrita. Mas já que a escrita
retorna o tempo inteiro como que para assombrar o filósofo grego,
impossibilitando seu sonho de um pensamento livre de phármakon, o que Derrida
sugere ser a farmácia de Platão, sua atividade farmacêutica, é, justamente, a
tentativa de criar um antídoto para o phármakon da escrita, estabelecendo a
episteme e a dialética como uma espécie de contra-veneno capaz de salvar dos
malefícios da escrita e da sofística.

89
DERRIDA, J. A farmácia de Platão. p. 56.
60

Ao contrário, a leitura derridiana de Platão pretende sublinhar a escrita


como phármakon pois, para Derrida, esta palavra grega é um indecidível que
acaba por embaralhar a lógica do pensamento que o filósofo grego fundou e que
determinou todo o pensamento ocidental. Pelo que vimos até aqui, podemos
perceber que esta lógica do pensamento, em Platão, seria a de uma bi-polaridade
que gostaria de poder separar lugares opostos bem definidos para a fala e para a
escrita em seu esquema. Um esquema em que a fala seria hierarquicamente
superior, pois, para Platão,

A voz é mais próxima da vida daquele que fala; ela é mais presente, mais
presente para quem fala e para quem escuta; há aí um duplo privilégio da
proximidade ou da presença imediata, mas também da interioridade, da
proximidade da vida. Em nome desses valores (presença, proximidade, vida etc.),
prefere-se a voz, a palavra viva à escrita.90

Este esquema de operação do pensamento organizado por oposições


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hierárquicas e iniciado por Platão é a inauguração daquilo que Derrida chama de


metafísica da presença, pois este pensamento fundado no privilégio do logos
como phoné baseia-se no que Derrida diz ser uma ilusão metafísica crente na
presença de um significado transcendental91 que existiria antes e independente de
todo discurso e que, por isso, de fora do pensamento, garantiria sua verdade. Esta
presença seria, por exemplo, aquela que se faz sentir mais perto da fala do que da
escrita, garantindo sua superioridade, uma vez que a fala liga-se primeira e
naturalmente à suposta presença da consciência como presença a si do sujeito
soberano na produção espontânea do pensamento. Ou seja, a própria presença
pressuposta na unidade phoné-logos. Contudo, a leitura derridiana de Platão, ao
afirmar a escrita como phármakon em sua potência indecidível, isto é, como
veneno e remédio ao mesmo tempo, acaba por desconstruir esta lógica opositiva
do pensamento preso a amarras logocêntricas e mostra a necessidade de abri-lo
para além da lógica da metafísica da presença.

90
DERRIDA. J. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 76 e 77.
91
Derrida chama de significado transcendental aquilo que diria respeito à crença da metafísica na
presença de um sentido que pudesse existir em si mesmo, independente da referência de uma
linguagem ou de uma estrutura de significação. Nas palavras de Derrida: “… daquilo que propus
chamar de ‘significado transcendental’, o qual, em si mesmo, em sua essência, não remeteria a
nenhum significante, excederia à cadeia dos signos, e não mais funcionaria, ele próprio, em um
certo momento, como significante”. DERRIDA, J. Posições. p. 25.
61

Ora, o que Derrida vem denunciar e defender, baseando-se na escrita como


um phármakon, é que assim como nunca houve uma memória que já não fosse
contaminada pelo seu fora, nunca houve também uma fala pura que já não fosse
sempre contaminada pela escrita. Pensar a escrita como phármakon, como
indecidível, permite a Derrida pensá-la como arqui-escrita, pois a arqui-escrita
derridiana dá conta, justamente, da ambiguidade do phármakon, já que, prestando-
se ao jogo do indecidível, ela escapa da bi-polaridade entre fala e escrita, pois, ao
invés de opor-se à fala, como gostaria Platão – no sonho de uma idealidade
metafísica –, ela seria o próprio abalo dessa oposição. Assim, a arqui-escrita não
é, como poder-se-ia supor, a escrita antes da fala, mas a escrita na fala92. A arqui-
escrita diz que não há fala, que não há palavra, que não há pensamento, que já não
sejam feridos pela interrupção, pela distância, pela ausência, pela secundariedade,
ou seja, pelo que parecia ser apenas característica da escrita. Isto é, todas os traços
pejorativos que Platão usou para caracterizar apenas a escrita e opô-la à fala viva,
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Derrida reconhece-os como traços comuns a toda linguagem, a toda palavra, seja
ela falada, pensada ou escrita. É por isso que reconhecer em toda palavra a marca
dos traços perigosos que Platão reservava apenas à escrita é desconstruir toda a
estrutura do pensamento ocidental sustentada pela metafísica da presença, que
acredita e aposta na propriedade, na essência, na identidade una de cada coisa, na
possibilidade de apresentar-se “enquanto tal”. Para Derrida, nunca pôde haver
algo como a pureza do pensamento. A origem do pensamento é já sempre ferida
pelo desvio da escrita. Como Fernanda Bernardo explica:

O é já (déjà) traduz a fala como escrita traçando no que nela compromete numa
aquiescência, que responde reenviando ao que antecipadamente nos terá já, desde
sempre, comprometido na subscrição de um apelo prévio. (...) Derrida designa
este é já por re-marca, cuja estrutura faz de todo começo um re-começo daí a
Gramatologia se dizer um pensamento da repetição originária. É a decapitação
(...) do incipt, a rasura do valor de archê, que aqui está em questão. O começo é,
já sempre, dado devido “A cette avance que ... fait la langue” (...); o ponto de

92
Citamos Fernanda Bernardo: “Com efeito, o que é a escrita, em sentido derridiano, o que é a
arqui-escrita senão a escrita, isto é, o apagamento, o silêncio, a ausência, a elipse, a rasura, o
branco, o desvio, o gesto, o acento ou o sotaque, o canto, o tom, o timbre, … na própria fala?”.
BERNARDO, F. Eco-grafias – Dar à língua: Contra-assinatura, Re-invenção e sobre-vivência –
Ovídio – Derrida. Revista filosófica de Coimbra N. 39, 2011. p. 251 e 252.
62

partida é, já sempre, uma resposta ao apelo prévio, ao “Vem” do outro, que se


recebe como a própria necessidade numa cena de aliança endividadora.93

Esta é a aporia da arqui-escrita: dizer que a escrita está na origem é dizer


que não há origem simples, é dizer que toda origem só nos chega pelo desvio da
palavra, que a coisa mesma está sempre interrompida pelo luto da palavra. O valor
de arquia marcado na arqui-escrita diz que o que é primeiro é sempre o desvio, a
alteridade, a diferença.
Portanto, podemos perceber como a arqui-escrita derridiana não se
estabelece invertendo o platonismo. Derrida não pretende estabelecer para a
escrita um lugar privilegiado em relação à fala. Esta simples inversão não o
permitiria escapar da lógica opositiva da metafísica.
E é desse modo que a escrita derridiana apresenta uma outra postura diante
do pensamento, pois o fato dela não poder ser considerada uma oposição à fala,
força-nos a pensar “para-além” das bi-polaridades opositivas, força-nos a admitir
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um pensamento que, assumindo sua origem sem origem, sua origem desviada,
secundária, invisível, differante94, constrói-se sem a presença de um logos como
seu sentido ou direção. Mostra-nos a necessidade de pensar de uma outra maneira
que não guiada pela “lógica do logos” mas pela “lógica”, ou melhor, pelo jogo do
rastro e da différance.
Nesse sentido, acreditamos que a desconstrução do conceito de linguagem,
em De la grammatologie, vem anunciar o pensamento da desconstrução de uma
forma geral. Pois, para Derrida, este conceito, tradicionalmente, se estabelece a
partir da suposta superioridade da fala em relação à escrita, ou seja, de um
fonologocentrismo. Em outras palavras, Derrida denuncia no conceito de
linguagem uma redução fonética da escrita, tida como mera representação gráfica
da palavra falada. Mas, ao pôr em cena um transbordamento da linguagem,
mostrando como ela é excedida por uma ideia de escrita, o texto derridiano
desnuda, ao mesmo tempo, um transbordamento das estruturas conceituais como
um todo, apresentando-se, portanto, como uma desconstrução do próprio conceito,
do conceito de conceito. Seguindo as palavras de Derrida em Gramatologia:

93
BERNARDO, Fernanda. “O dom do texto, a leitura como escrita. (O programa gramatológico
de Jacques Derrida)”. In: Revista filosófica de Coimbra. N.1 (1992). p.155.
94
Cf. adiante o conceito de différrance.
63

Deixando de designar uma forma particular, derivada, auxiliar de linguagem em


geral (...), deixando de designar a película exterior, o duplo inconsistente de um
significante maior, o significante do significante - o conceito de escritura
começava a ultrapassar a extensão da linguagem.(...) Não que a palavra 'escritura'
deixe de significar o significante do significante, mas parece, sob uma luz
estranha, que o 'significante do significante' não mais define a reduplicação
acidental e a secundariedade decaída. 'Significante do significante' descreve, ao
contrário, o movimento da linguagem: na sua origem, certamente, mas já se
pressente que uma origem, cuja estrutura se soletra como 'significante do
significante', arrebata-se e apaga-se a si mesma na sua própria produção. O
significado funciona aí desde sempre como um significante. A secundariedade,
que se acreditava poder reservar à escritura, afeta todo significado em geral (...).
Não há significado que escape, mais cedo ou mais tarde, ao jogo das remessas
significantes, que constitui a linguagem. (...) Isto equivale, com todo o rigor, a
destruir o conceito de 'signo' e toda a sua lógica.95

A constatação de que o tema da linguagem é o mais discutido do século


XX, de que ele nunca, "tanto como hoje, invadira como tal o horizonte mundial
das mais diversas pesquisas e dos discursos mais heterogêneos em intenção,
método e ideologia" 96 , deixa ver um excesso de sentido para o conceito de
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linguagem que não se conteria mais nos limites de seu conceito tradicional,
evidenciando-se aí uma crise deste conceito. Como o filósofo explica:

Tudo o que o desejo quisera subtrair ao jogo da linguagem é retomado neste, mas
apenas porque, simultaneamente, a linguagem mesma acha-se ameaçada em sua
vida, desamparada, sem amarras por não ter mais limites, devolvida à sua própria
finidade no momento exato em que seus limites parecem apagar-se, no momento
exato em que o significado infinito que parecia excedê-la deixa de tranquilizá-la a
respeito de si mesma, de contê-la e de cercá-la.97

É nesse sentido que a ideia de escrita, para Derrida, escapa da clausura da


linguagem. Pois, para ele, a escrita não é apenas aquela que mimeticamente
representa a fala, ela ganha um valor que excede em muito o de sua concepção
fonética, até porque é vista “para-além” do seu valor antropológico: a arqui-escrita
não é aquela apenas produzida pelos homens, mas qualquer marca inscrita
produzida tanto pela natureza, pelos animais como pelas máquinas e que, assim,
apela uma leitura. Por isso, o pensamento de Derrida é chamado também de
pensamento da escrita, pois, ao negar sua inferioridade em relação à fala, ele

95
DERRIDA, J. Gramatologia. Tradução de Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São
Paulo: Perspectiva, 1999. p. 8.
96
Ibid., p. 7.
97
Ibid.
64

amplia o conceito de escrita, liberando-o de sua redução fonética e fazendo


explodir o sentido metafísico da linguagem.
Depois de uma leitura derridiana é surpreendente perceber como a redução
fonética da escrita dura tanto tempo marcando profundamente o pensamento
ocidental até a contemporaneidade. Gramatologia mostra como mesmo em
Saussure ainda podemos ver um reflexo claro do platonismo, justamente, na sua
tentativa de manter a fala a salvo dos perigos da escrita. Derrida aponta, muitas
vezes, como o linguista suíço – que trouxe muitos avanços para pensarmos o
signo como rastro – continua a endereçar à escrita o mesmo tipo de crítica
platônica na tentativa de poder expulsá-la do estudo da língua, com o desejo de
dar importância apenas à fala e sua suposta ligação natural com o sentido em seu
Curso de linguística geral98. Mas o que Derrida não deixa passar em branco é
que, tanto Platão quanto Saussure, por mais que o desejassem, não conseguem
prescindir da escrita em suas obras. No momento mesmo em que precisam tratar
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da diferença, a escrita torna-se indispensável aos dois, que recorrem,


frequentemente, a seus exemplos.
Para Derrida, apesar de Saussure enxergar uma ligação inextrincável entre
significante e significado como o reto e verso de uma folha, sua visão sobre o
signo linguístico ainda continua a ser essencialmente logocêntrica. Assim como
na sua concepção tradicional, em Saussure, o signo é sempre signo de alguma
coisa. Isto é, ele representa, substitui o lugar do referente que não está presente.
Desse modo, o signo continua a representar a coisa mesma em sua ausência.
Mesmo que não se possa mais, depois de Saussure, separar a face
significante da face do significado, o signo mantém a estrutura mimética do
modelo e sua representação. Ou seja, o signo é ainda aquilo que aponta para uma
presença que, no momento, não pôde estar presente, mas que se mantém como
presença em algum outro tempo ou lugar. Desse modo, continuamos, com o signo
saussuriano, na perspectiva da presença de um sentido pleno.
Ora, o que Derrida vem deslocar na linguística saussuriana é a
possibilidade de pensar o signo como rastro, mas ele faz isso a partir das
inovações que o próprio Saussure traz para a teoria do signo. Pois as teses
saussurianas do caráter diferencial e arbitrário do signo linguístico já são, segundo

98
SAUSSURE, Ferdinand. Curso de linguística geral. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo
Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Editora cultrix. 1995.
65

Derrida, aberturas para um pensamento da escrita. O caráter arbitrário do signo


em Saussure diz que todo signo é instituído, convencionado e, por isso, não
mantém com o sentido nenhuma ligação natural. Tese que, para Derrida,
problematiza a manutenção que ainda há em Saussure do privilégio do signo
fônico sobre o escrito. Quanto à tese saussuriana do caráter diferencial do signo,
citamos Arthur Bradley: “os signos linguísticos não são constituídos por nenhuma
substância, fônica ou conceitual, intrínseca – um som ou uma ideia particular que
habite o próprio signo – mas por suas diferenças em relação a outros signos do
sistema” 99 . Dessa forma, todo signo só adquire sentido confrontado a outros
signos e, portanto, cada signo traz “em si” os rastros de todos os outros signos do
sistema que não ele. Só se pode pensar na identidade de qualquer signo quando
este se encontra numa cadeia referencial onde um signo está sempre em relação
com outros. Por exemplo, a única evidência que nos faz reconhecer a “identidade”
do signo “cadeira” é que ele se diferencia, tanto fônica quanto conceitualmente,
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dos signos “mesa”, “chão”, “lápis”, “papel”, e assim por diante, infinitamente.
Assim, o rastro, ao invés de acalmar-se na identidade, é aquilo, justamente,
que impossibilita que o sentido se feche nela, é aquilo que condiciona toda
identidade a uma relação ao outro100, não a um suposto conteúdo próprio de cada
termo de um dado sistema, mas a suas diferenças em relação aos outros termos do
sistema. Nas palavras de Derrida: “Esse encadeamento faz com que cada
“elemento” – fonema ou grafema – constitua-se a partir do rastro, que existe nele,
dos outros elementos da cadeia ou do sistema.”101 O rastro é justamente o que
nunca é, o que só se constitui numa relação de diferencialidade. Este movimento
de um eterno apontar para o outro, é o que fere a estrutura de significação
logocêntrica, pois não se pode, a partir de então, pensar num sentido próprio,
idêntico, auto-centrado, presente a si mesmo e que não dependa de seu fora. É
preciso pensar, então, pela “lógica” do rastro, que todo sentido está condicionado
e só produz efeitos numa cadeia de referencialidade, isto é, que o sentido só se
constitui na escrita. Pois, para Derrida,

99
BRADLEY, A. Derrida’s of grammatology. p. 69. Tradução minha.
100
Como já tratamos na seção 1.3 deste capítulo a propósito da identidade como um processo
interminável de identificação sem identidade a si.
101
DERRIDA, J. Posições. p. 32.
66

Esse encadeamento, esse tecido, é o texto que não se produz a não ser na
transformação de um outro texto. Nada, nem nos elementos nem no sistema, está,
jamais, em qualquer lugar, simplesmente presente ou simplesmente ausente. Não
existe, em toda parte, a não ser diferenças e rastros de rastros.102

E ainda, em Gramatologia:

O rastro é verdadeiramente a origem do sentido em geral. O que vem a afirmar


mais uma vez, que não há origem absoluta do sentido em geral. O rastro é a
diferência103 que abre o aparecer e a significação. (...) origem de toda repetição,
origem da idealidade, ele não é mais ideal que real, não mais inteligível que
sensível, não mais uma significação transparente que uma energia opaca e
nenhum conceito metafísico pode descrevê-lo.104

Pensar o rastro como origem é assumir que o referente, que a coisa mesma,
que o sentido, sempre foram rastros, simplesmente porque não tiveram origem
neles mesmos, porque começaram sempre antes deles próprios. Em outras
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palavras, o próprio referente, o próprio sentido ou a coisa mesma não passam de


escrita, de rastro. É importante perceber aqui como o quase-conceito de rastro,
elemento da arqui-escrita, foge de um conceito clássico de rastro, que fá-lo-ia
derivar de uma presença anterior. Não sendo rastro de uma presença, ele é rastro
de rastro. É por isso, que em Gramatologia, num primeiro momento, Derrida
refere-se ao rastro como um arqui-rastro, para ressaltar que a origem é já rastro.
Contudo, dizer que há um arqui-rastro, assim como uma arqui-escrita, é dizer que
não há origem. Nas palavras de Derrida:

O rastro não é somente a desaparição da origem, ele quer dizer aqui – no discurso
que proferimos e segundo o percurso que seguimos – que a origem não
desapareceu sequer, que ela jamais foi retroconstituída a não ser por uma não-
origem, o rastro, que se torna, assim, a origem da origem.105

102
DERRIDA, J. Posições. p. 32.
103
Os tradutores brasileiros de gramatologia optaram por traduzir o termo différance por
diferência, mas por não acreditarmos que esta tradução faça jus a todos os sentidos da palavra
cunhada por Derrida, optamos por manter, fora das citações, o termo derridiano não traduzido.
104
DERRIDA, J. Gramatologia. p. 79 e 80.
105
Ibid., p. 75.
67

É dessa forma que o pensamento da escrita não parte da identidade, mas da


diferença, ou melhor, da origem sem origem de uma diferencialidade que Derrida
chama de différance. Na explicação de Duque-Estrada:

Já não se pode pensar aqui em um sistema de diferenças entre coisas diferentes


que, antes de serem confrontadas, já existiam em si mesmas, como coisas
presentes a si mesmas. O que é primeiro não são as coisas em si (significantes ou
significados em si), mas sim uma diferencialidade, um sistema de diferenças (...)
Toda presença mostrar-se-á, sempre, como um efeito do diferenciamento ou,
mais precisamente, da différance.106

Desse modo, a différance, como jogo do rastro, precisa ser entendida como
condição de im-possibilidade de toda “identidade”. Como mostra a citação acima,
a différance não é uma diferença, já constituída, entre duas coisas diferentes, entre
duas identidades, auto-centradas, auto-idênticas, com essências próprias, que
divirjam entre si. A différance diz que só há efeito de identidade, processo de
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identificação e de significação, a partir dessa diferencialidade anterior, de um


movimento do rastro que, numa cadeia de remetimentos, retém em si o rastro de
todos os outros rastros que não são ele para produzir efeito. Por isso, pensar na
diferença entre coisas em si é ainda pensar que essas coisas possuem uma
identidade una, é ainda pensar na lógica da presença. Contudo, a différance, ao
mesmo tempo como condição e interrupção de toda identidade, condena a
significação a um jogo sem fim, não nos deixando mais imaginar uma identidade
que seja presente a si mesma, independente de qualquer alteridade. Portanto, ela
desloca a diferença da questão da identidade e da presença.
Quanto à inscrição da letra a substituindo a letra e da palavra francesa
“original” différence, Derrida diz não ter criado exatamente uma “palavra” nova,
já que esta substituição vem apontar, justamente, uma certa insuficiência de toda
palavra. Como o filósofo explica, “a différance, (...) não é um conceito, não é uma
simples palavra, ou seja, aquilo que representamos como sendo a unidade calma e
presente, auto-referente, de um conceito ou de uma fonia” 107 . O efeito dessa
substituição na palavra francesa, só pode ser sentido na escrita, pois o seu som

106
DUQUE-ESTRADA. P.C. “Derrida e a escritura”. In: Às margens: a propósito de
Derrida. p. 19.
107
Derrida, J. “A diferença”. In: Margens da filosofia. Tradução: Joaquim Torres Costa e António
M. Magalhães. São Paulo: Papirus, 1991. p. 42.
68

escrito com e ou com a é pronunciado da mesma forma e não se deixa diferenciar.


Derrida recorre nesse exemplo a um evento da diferença que só acontece na
escrita, na representação gráfica da palavra. Ele diz que tanto Platão como
Saussure também precisaram recorrer à escrita para exemplificar eventos desse
tipo, mas a diferença aqui é que os dois censores da escrita, mesmo recorrendo a
ela – assombrados por sua insistência em reaparecer – não assumiram sua
necessidade, não perceberam que sua recorrência como exceção, era prova de que
ela excedia o fonetismo a que tentavam reduzi-la. Mas, de forma oposta aos dois
censores da escrita, Derrida usa esse evento para elogiá-la, para chamar atenção,
ao contrário, para um evento da linguagem que não se deixa perceber através da
fala.
Se, por um lado a inserção da letra a faz com que esta palavra remeta a
uma ação do diferir, dando-nos a pensar na sua dimensão ativa, por outro lado,
contudo, a terminação em ance, na língua francesa, remete-nos a uma passividade
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e, desse modo, différance, diria respeito a uma voz média, nem passiva nem ativa,
para a qual a experiência desconstrutiva não deixa de chamar atenção108.
A insistência na palavra différance, grafada de outra forma, procura
também atentar-nos para dois sentidos diferentes do diferir, que estão contidos no
differre latino, mas que o diapherein grego não dá conta: o sentido de adiamento,
de apontar para mais tarde, de desviar no tempo e o sentido de não ser igual, de
ser discernível espacialmente 109 . Assim, percebemos que esses dois sentidos,
apontam para uma ideia espaço-temporal a qual a escrita condena o pensamento.
A escrita joga o pensamento para fora, para a distância do espaço e do tempo. E
Derrida mostra como a différance é o que amarra essas duas vertentes, do espaço
e do tempo, de forma inextrincável, indecidível, no que ele chama de
temporização e espaçamento, ou seja, o devir-tempo do espaço e o devir-espaço
do tempo. Nas palavras de Derrida:

A différance é o que faz com que o movimento da significação não seja possível
a não ser que cada elemento dito ‘presente’, que aparece sobre a cena da
presença, se relacione com outra coisa que não ele mesmo, guardando em si a
marca do elemento passado e deixando-se já moldar pela marca da sua relação
com o elemento futuro, relacionando-se o rastro menos com aquilo a que se
chama presente do que àquilo a que se chama passado, e constituindo aquilo a

108
Cf. DERRIDA, J. “A diferença”. In: Margens da filosofia. p. 40.
109
Ibid., p. 38 - 39.
69

que chamamos presente por intermédio dessa relação mesma com o que não é ele
próprio: absolutamente não ele próprio, ou seja, nem mesmo um passado ou um
futuro como um presente modificados. É necessário que um intervalo o separe do
que não é ele para que ele seja ele mesmo, mas este intervalo que o constitui em
presente deve, ao mesmo lance, dividir o presente em si mesmo, cindindo assim,
como o presente, tudo o que a partir dele se pode pensar, ou seja, todo o ente, na
nossa língua metafísica, particularmente a substância e o sujeito. Esse intervalo
constituindo-se, dividindo-se, dinamicamente, é aquilo a que podemos chamar
espaçamento, devir-espaço do tempo ou devir-tempo do espaço (temporização).
E é a esta constituição do presente, como síntese ‘originária’ e irredutivelmente
não-simples, e portanto, stricto senso, não-originária, de marcas, de rastros, de
retenções e pretensões (para reproduzir aqui analogicamente e provisoriamente
uma linguagem fenomenológica e transcendental que se revelará em seguida
inadequada) que eu proponho que se chame arqui-escrita, arqui-rastro ou
différance. Esta (é) (simultaneamente) espaçamento (e) temporização.110

Conjuga-se, então, na différance, um intervalo espaço-temporal que, im-


possibilitando todo presente e toda presença, leva-nos a pensar “para-além” deles,
num passado absoluto e num eterno porvir como uma disjunção do tempo ou
como uma anacronia que marcará a temporalidade desconstrutiva e que trataremos
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na próxima seção deste capítulo.


Mas, por enquanto, já podemos entender porque se, inicialmente, Derrida
fala de um arqui-rastro e de uma arqui-escrita para marcar este valor de arquia,
logo depois, rasurando este valor transcendental, ele passa a falar apenas em rastro
e em escrita, uma vez que a ideia de origem é desconstruída por eles.
Portanto, percebemos que o pensamento metafísico, fono-falo-logo-
cêntrico, é um pensamento que se guia pela lógica da identidade e tenta afastar de
si toda diferença através da autoridade de uma presença que pode estabelecer o
que é e o que não é verdade. Como Derrida escreve n’A farmácia de Platão:

O que é o pai? (...). O pai é. (...). A escritura, o filho perdido, não responde a essa
questão, ela (se) escreve: (que) o pai não está, ou seja, não está presente. Quando
ela não é mais uma fala despossuída do pai, ela suspende a questão o que é, que é
sempre, tautologicamente, a questão “o que é o pai?” e a resposta “o pai é o que
é”. Então, produz-se uma linha de frente que não se deixa mais pensar na
oposição corrente do pai e do filho, da fala e da escritura.111

Assim, o pensamento metafísico estabelece-se como um pensamento da


ordem, do pai, do falo, do logos, da presença e, acrescentamos, da visibilidade

110
DERRIDA, J. “A diferença”. In: Margens da filosofia. p. 45.
111
Id., A farmácia de Platão p. 98.
70

inteligível, ou seja, daquilo que “é”. Enquanto, por outro lado, a desconstrução
como pensamento da escrita (não precisamos mais falar aqui em arqui-escrita),
assume a impossibilidade da presença e, assim, a impossibilidade de resposta à
questão “o que é?”. Escrevendo a ausência da autoridade de um logos, ela assume
a escrita na “própria” fala, isto é, desconstrói a ilusão da ideia de presença,
impossibilitando e interrompendo o pensamento do que “é”. É nesse sentido que
não se pode dizer o que “é” a desconstrução, pois a desconstrução, assim como a
escrita, não “é” alguma coisa. Ela desloca a questão ontológica inscrevendo o
pensamento no risco e na errância. Sem a autoridade de um “querer-dizer”, ao
contrário de um pensamento do que “é”, a desconstrução acontece como um
pensamento espectral, perturbando a pretensão de toda “última palavra”. O jogo
indecidível do rastro inscreve o pensamento na ordem do in-visível, condena-o a
uma promessa sem horizonte de expectativa, sem pré-visão e sem palavra final.
Marcando de ficcionalidade tudo que ouse dizer o que “é”, a desconstrução
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dissemina-se como o abalo do logos e suas verdades.

1.5
O tempo fora dos eixos: anacronia desconstrutiva

Antes, uma abissalidade infinita que aponta, por um lado, para trás, para
um passado absoluto, para uma anterioridade cada vez mais antiga, sem ponto de
origem, sem nascente. Por outro lado, para frente, o engajamento na promessa de
um eterno porvir daquilo que não pode nunca se presentificar. Guardemos a ideia
dessas duas direções como uma duplicação da origem que inscreverá o sentido
sem sentido - ou a desconstrução do sentido (na) – (da) impossibilidade da
presença como temporalidade anacrônica da desconstrução.
A leitura derridiana do Timeu de Platão, ao pensar khôra como que no
“lugar” da arkhê, complica a ideia de uma origem simples, ou melhor, de um
ponto dado de onde tudo brote. Esta palavra grega, khôra, que desde o Timeu é
fonte de inúmeras interpretações, para Derrida, é um exemplo singular de
intraduzibilidade, porque diz, de uma forma geral, de uma im-possibilidade da
71

linguagem, aí onde a tradução diria mesmo o pensamento. Ao propor uma


intraduzibilidade como uma im-potência do pensamento, mas como uma im-
potência que justamente dá a pensar, como uma injunção do pensamento, Derrida
mantém a palavra grega sem tradução não apenas para salientar o embaraço de
Timeu em definir khôra, mas também porque, dessa forma, ela lembraria “algo”
que ainda não foi pensado suficientemente e que incomodaria toda a lógica do
pensamento metafísico. Radicalizando, levando ao extremo, esta incapacidade de
nomear o ser khôra, Derrida toma este caso como exemplo singular daquilo que
acontece com toda nomeação, a saber, um desvio, uma não correspondência entre
ser e nome, uma distância, uma ruptura, entre a linguagem e aquilo a que ela se
refere, a coisa mesma. Ainda que não explicitamente, o diálogo platônico, aos
olhos de Derrida, já coloca em cena, a partir da problemática de khôra, esta
disjunção de todo discurso, que a escrita derridiana pretende nos lembrar o tempo
todo.
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Como um apelo à leitura desconstrutiva, a problemática de khôra abre


espaço para fazer tremer a oposição entre sensível e inteligível não apenas
defendida por Platão mas também sobre a qual, como denuncia Derrida, a maior
parte das leituras do Timeu, e especificamente as interpretações da palavra khôra,
parecem se apoiar sem atentarem para o fato de que esta palavra coloca em
questão aquilo mesmo que os platonistas usam para defini-la simplesmente, sem
perceberem a importância que o embaraço declarado por Timeu neste trecho do
diálogo platônico poderia representar. Estando fora do paradigma eterno, ela não
pertence nem ao sensível nem ao inteligível, mas sim a um triton genos que
desafia a “lógica de não-contradição dos filósofos”112. Ou, em outras palavras, a
um terceiro gênero que abala a lógica opositiva hierarquizante do logos,
problematizando não só a oposição entre sensível e inteligível, como toda a lógica
das oposições binárias. Não sendo nem da ordem do sensível nem do inteligível,
ela seria como que a condição de possibilidade dos dois e, ao mesmo tempo, a
impossibilidade de promover a pura oposição entre os dois, já que contamina um
pelo outro, heterogenizando-os.
Sem conseguir definir especificamente em uma palavra o que seria a
khôra, este terceiro gênero aparece no diálogo sob várias designações que os

112
DERRIDA, J. Khôra. Tradução Nicia Adan Bonatti. Campinas: Papirus Editora, 1995. p.9.
72

plantonistas distinguem sem muita dúvida como seu sentido próprio – “lugar”,
“receptáculo”, “suporte” – e como seu sentido figurado, metafórico – “mãe”,
“ama” e etc. O que Derrida problematiza nesta distinção, e que para ele, simplifica
Platão, é o fato dela promover justamente a separação daquilo que khôra
complica. Derrida aponta que os platonistas não se dão conta de que ao separarem
um sentido próprio de um figurado para definir khôra, eles baseiam-se na
oposição entre sensível e inteligível que ela abala. Desta forma, a
intraduzibilidade da palavra khôra não quer dizer que não haja em outra língua
uma palavra adequada para substituir a palavra grega, mas diz, de forma geral, de
uma inadequação de toda palavra, de todo discurso àquilo que ele se refere. Pois,
mesmo dentro de uma “mesma” língua há já uma tradução operando quando
aponta-se, por exemplo, no próprio texto de Platão, do grego para o grego, vários
nomes para designar khôra. Esta impossibilidade de lhe dar apenas um nome,
marcada exemplarmente neste caso, para Derrida, representa, um “problema” da
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linguagem. Um problema que, como vimos, a escrita derridiana vem assumir


como a “realidade” mais íntima do discurso e do pensamento e que mostra-se,
entre outras coisas, como uma insuficiência da palavra, da unidade da palavra, em
seu desejo ideal de apontar para a presença de um sentido independente que lhe
corresponda. Por isso, khôra mostraria a necessidade de repensar toda a questão
da linguagem não só no diálogo platônico como também na ocidentalidade de
uma forma geral. Como Derrida explica,

Esse problema da retórica – particularmente da possibilidade de nomear – não é


aqui, como se vê, um problema secundário. Sua importância também não se
limita a alguma dimensão pedagógica (aqueles que falam de metáfora a respeito
da khôra frequentemente especificam: metáfora didática), ilustrativa ou
instrumental.113

O problema da retórica aqui não é um problema do qual se possa escapar.


Mostrando uma impossibilidade de nomeação, de uma inadequação entre ser e
nome, khôra não diz respeito apenas, como poder-se-ia supor, a um problema
clássico da linguagem e da sua dita incapacidade de alcançar a coisa mesma, um
sentido que existiria exterior a ela, como tradicionalmente denuncia-se o problema
da representação, apenas como se o nome khôra não pudesse dar conta do ser para

113
DERRIDA, J. Khôra. p. 15.
73

além desse nome que ele representaria. Mais do que isto, este desvio vem
inscrever o problema da representação, da inadequação entre ser e nome, como
um problema do próprio sentido do ser, isto é, como um problema do pensamento
e da experiência do pensamento em sua relação com o sentido como presença. Se
a tradição do pensamento ocidental sempre baseou-se na crença da presença de
um sentido como guia e ao qual a linguagem reportar-se-ia, a desconstrução vem
inscrever nos textos da tradição os rastros de uma outra experiência do
pensamento que enxerga no “lugar” do ser e do eidos, isto é, no “lugar” da
origem, já uma escrita, uma representação, uma secundariedade e, por isso, uma
impossibilidade da origem ou, na origem, o rastro.
Khôra vem mostrar o que só “nos chega, e como o nome”114, o que só se
anuncia e só pode ser pensado já como nome, como desvio, como separação,
numa palavra, como escrita. Forçando-nos a pensar diferentemente da lógica
metafísica, khôra escapa, portanto, das bi-polaridades opositivas e aponta “para-
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além” do gênero, “para-além” do sentido e “para-além” do ser, “não porque seria


inalteravelmente ela mesma para além de seu nome, mas porque, levando para
além da polaridade do sentido (metafórico ou próprio), ela não pertenceria mais
ao horizonte do sentido, nem do sentido como sentido do ser.”115 É porque, como
Derrida defende, não há ser para além do nome, porque não há presença de um
referente para além do signo, é porque não há significado transcendental, que
khôra não se estanca em uma palavra determinada, dando-nos a ver, de forma
exemplar, o jogo do rastro. Portanto, podemos perceber, como já há, no texto
platônico, como que um abismo aberto por khôra que apela a desconstrução da
própria lógica fundada por ele. Isto que seria preciso (re)pensar, khôra, que só nos
chega como o nome, obriga-nos a dar esse passo-além, quase-transcendental,
típico do pensamento da desconstrução:

Se Timeu o nomeia receptáculo (dekhomenon) ou lugar (khôra), esses nomes não


designam uma essência, o ser estável de um eidos, dado que khôra não é nem da
ordem do eidos, nem da ordem dos mimemas, das imagens do eidos que nela vêm

114
DERRIDA, J. Khôra. p. 9.
115
Ibid., p. 16.
74

se imprimir – que assim não é, não pertence aos dois gêneros de ser conhecidos
ou reconhecidos. Ela não é e esse não-ser só pode se anunciar...116

Apontando, então, “para-além” da essência, khôra anuncia este triton


genos que, ao mesmo tempo, abre e rasga não só os supostos gêneros, sensível e
inteligível, como todos os demais gêneros. Desse ponto de vista, khôra teria essa
dimensão matricial, que “origina” os gêneros e que, como Fernanda Bernardo
salienta, anterior ao mundo, abriria o “próprio” espaçamento do espaço, daria
lugar ao lugar, sem contudo, ela mesma se dar, se presentificar.117 Do ponto de
vista da escrita derridiana, podemos dizer que khôra dá conta do desvio da escrita,
do desvio entre o nome e aquilo que ela nomeia – a suposta coisa mesma –,
“inaugurando” a própria abertura do espaço pressuposto pela escrita. Se a escrita é
aquilo que joga no espaço, que abre o espaço do mundo para que se inscreva,
Khôra apresentando-se apenas como nome, sem referir-se a um ser, a um eidos
para além deste nome, seria “pura” escrita, a “própria” abertura do espaço de
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inscrição, isto é, a abertura do “próprio” espaço permitindo que qualquer coisa


inscreva-se ou venha a “ser”. Venha a “ser” como escrita. Contudo, sem nunca
apresentar-se ela própria, ela recebe o que quer que venha ao mundo e essa
recepção é um movimento de regressão, de retraimento para um passado cada vez
mais antigo, absoluto, sempre anterior a uma origem.
Assim, se por um lado, podemos perceber em khôra esse movimento para
trás, para um passado imemorial, para um passado que nunca foi presente,
implica-se aí também a ideia de um eterno porvir, como o que Derrida chama o
messiânico, uma messianicidade sem messianismo 118 , já que a vinda do outro
marca-se apenas como promessa de chegada, sem presentificação possível. Essas
duas direções, khôra, por um lado, e messiânico, por outro 119 , marcam a

116
DERRIDA, J. Khôra. p. 20.
117
BERNARDO, Fernanda. Seminário na Universidade de Coimbra. 1o semestre de 2013.
118
A propósito da diferença entre a messianicidade e o messianismo, citamos o site derridex: “o
messianismo tem um conteúdo, enquanto a messianicidade é uma estrutura formal, sem conteúdo.
Ela é portadora de uma promessa infinita mas insustentável, uma promessa que nos guia mas cujo
resultado é inantecipável.” Cf. http://www.idixa.net/Pixa/pagixa-0508301426.html . Tradução
minha.
119
Sobre Khôra e Messiânico como os dois nomes da origem Cf. O texto de Derrida “Fé e saber,
as duas fontes da ‘religião’ nos limites da simples razão”, no livro A religião. Citamos Derrida:
“…demos dois nomes à duplicidade destas origens. Porque aqui a origem é a própria duplicidade,
uma coisa e a outra. Nomeemos estas duas fontes, estes dois poços ou estas duas pistas ainda
visíveis no deserto. Atribuamo-lhes dois nomes ainda ‘históricos’, aí onde um certo conceito de
história se torna, ele próprio, inapropriado. Para o fazer, refiramo-nos – … – por um lado ao
75

temporalidade do rastro, da escrita desconstrutiva e de seu reconhecimento de


endividamento a uma alteridade ab-soluta. Pois, essa duplicação da origem liga-
se, por um lado, em khôra, à assunção da nossa condição de herdeiros, o
endividamento a tudo o que veio antes por não sermos capazes de rastrear ou de
termos presenciado uma origem primeira e, por outro lado, no messiânico, marca-
se um eterno porvir como promessa de sobrevivência do mundo.
Esse passado absoluto, imemorial, fere toda presença e todo presente por
um endividamento que desloca sua pretensão de “ser em si mesmo”, inscrevendo
toda presença, todo ser, como desejo e promessa de um porvir, de um “vir-a-ser”.
Nas palavras de Derrida, essa promessa não é “uma promessa entre outras, uma
promessa no mundo, mas um mundo de promessa, uma promessa como o mundo,
a existência sempre porvir do nosso mundo como promessa.”120 É porque tudo o
que se inscreve é imediatamente ferido pelo retiramento de sua origem para um
tempo/espaço anterior à origem do mundo que nada pode nunca, realmente, ser,
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mas apenas ser prometido.


Como, então, pensar o tempo “para-além” da clausura da metafísica da
presença e do sentido? Pois, como Derrida indaga-se:

Não foi do ‘direito inaudito’ do presente que toda a história da filosofia retirou a
sua autoridade? Não foi nele que sempre se produziu o sentido, a razão o ‘bom’
senso? (...) Como se poderia ter pensado o ser e o tempo de outro modo senão a
partir do presente, na forma do presente, ou seja, de um certo agora em geral que
nenhuma experiência, por definição, poderá jamais abandonar? A experiência do
pensamento e o pensamento da experiência não se relacionam senão com a
presença.121

Em primeiro lugar, seria preciso lembrar mais uma vez e sempre que for
necessário, que não se trata, para Derrida, de conceber um outro conceito de
tempo não metafísico, já que para ele o conceito de tempo é estruturalmente
metafísico, pois sempre foi pensado a partir da presença. Como já dissemos o
“para-além” derridiano é um para-além quase-transcendental. Por isso, pensar
“para-além” dos textos da tradição não significa pensar fora deles,
independentemente deles, mas reconhecer que todo texto é marcado, ferido em si

‘messiânico’, e por outro lado à khôra…”. In: A religão. VATTIMO, G. e DERRIDA, J.


Tradução: Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógi d’água, 1997. p. 29.
120
DERRIDA, J. “Avances “. In: MARGEL, S. Le tombeau du dieu artisan. Paris: Les Éditions de
Minuit, 1995. p. 16. Tradução minha.
121
Id., “Ousia e gramme”. In: Margens da filosofia. p. 72.
76

mesmo, por um “para-além” como um excesso ou um abismo dentro dele que não
pode ser apropriado, que como o invisível, sempre escapa da teorização. Como
essa abissalidade ou esse rasgão que, por exemplo, khôra abre no texto platônico.
Em outras palavras, este “para-além” desconstrutivo marca a abertura de qualquer
texto para o seu porvir, para outras leituras. Se a desconstrução enxerga a
necessidade de se pensar o tempo “para-além” de sua concepção metafísica, trata-
se, portanto, de rastrear isto que não pôde ser apropriado nos textos da tradição e
que permanece como seu segredo, inscrevendo a impossibilidade de ultrapassá-
los, de deixá-los para trás em busca de um fora da metafísica. Se por um lado, a
desconstrução identifica nos textos as suas clausuras, mostrando a necessidade de
repensá-los, apontando para fora deles, por outro lado e, ao mesmo tempo, ela
mostra como isto que resta ou que excede (n)os textos, torna-os inultrapassáveis,
mostra a necessidade de lê-los sempre novamente. Como uma impossibilidade de
apropriação, este abismo do texto é a sua condição de im-possibilidade, de seu
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porvir e de sua sobrevivência. É aquilo que Mallarmé chama de “branco


textual”122 e que Derrida anuncia em gramatologia com a célebre frase “Il n’y a
pas de hors-texte”123, pois para ele, o fora do texto está já aporeticamente dentro
do texto e o “para-além” da metafísica “encontra-se” na “própria” metafísica,
naquilo que a im-possibilita, dando-lhe continuidade. Por isso, quando Derrida
mostra a necessidade de pensar o tempo “para-além” da sua concepção metafísica,
elaborada à luz da presença, trata-se de rastrear nos textos da tradição o acidente
do presente. Ou melhor, não se trata de conceber um novo conceito de tempo não-
metafísico mas, ao contrário, de enxergar como os próprios textos da metafísica
entregam como seu acidente, como seu abismo, uma ruptura da presença inscrita
em seu “próprio” corpo. Ruptura esta que é a irrupção do acontecimento como
desconstrução.
Interrompendo, portanto, a apresentação em si do que quer que seja, sendo
o próprio desvio do ser, ou melhor, sendo justamente o que impossibilita a
propriedade de todo ser, khôra fala de uma anacronia apenas a partir da qual
poder-se-ia pensar uma temporalidade desconstrutiva: “Não tendo essência, como
a khôra se manteria para além de seu nome? A khôra é anacrônica, ela ‘é’ a

122
Cf. DERRIDA, J. «La double séance». In: La dissémination. Paris: Éditions du Seuil, 1972.
p.215-347.
123
DERRIDA, J. De la grammatologie p. 227. Tradução em Gramatologia: “não há fora-de-
texto”. p. 194.
77

anacronia no ser, ou melhor, a anacronia do ser. Ela anacroniza o ser.” 124 É,


portanto, a partir desta anacronia que desestabiliza toda presença, que seria
preciso (re)pensar tudo. Se a metafísica sempre pensou à luz da presença e do
presente, de um certo “aqui e agora”, a desconstrução como anacronia do ser vem
impossibilitar a presentificação espaço-temporal, marcando um ritmo que só pode
se inscrever na incerteza da vinda do outro como outro, na sua separação, na sua
distância, na sua imprevisibilidade. O tempo como pensado pela desconstrução
seria o tempo como anacronia, como a impossibilidade de todo “é”, de toda
presença. E esse desajuste do presente seria também o desvio da questão da
essência e do sentido. Pois, se na origem está o outro, o outro na origem do
tempo, faz dele um tempo disjunto, um tempo sem presente, fora do tempo ou
“out of joint”, como nos diz Hamlet, citado por Derrida em Spectres de Marx125.
Um tempo fora dos eixos ou fora de si, que dessincroniza tudo, mostrando uma
espécie de atraso originário126 que impede qualquer presentificação num “aqui e
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agora”. Como explica Derrida, este tempo seria o de “...um agora sem conjuntura.
Um agora disjunto ou desajustado, ‘out of joint’, um agora disjunto que arrisca
sempre não manter nada junto na conjunção assegurada de algum contexto cujas
bordas seriam ainda determináveis.”127
Se a condicionalidade à alteridade abala a pretensão de qualquer
identidade pura, também não podemos mais pensar, pelo movimento do rastro, na
ideia de um tempo ou de um espaço puros, independentes um do outro. Como que
por um jogo da différance, já podemos perceber, também, implicado na ideia de
khôra, um imbricamento espaço-temporal. O espaço não “é” simplesmente
espaço, mas espaçamento, isto é, o vir-a-ser espaço do tempo, assim como o
tempo não “é”’ simplesmente tempo, mas temporalização ou, vir-a-ser tempo do
espaço 128 . Pois, se na leitura de Platão, khôra está relacionada ao espaço, ao
lugar, Derrida vê inscrito aí também o rastro do tempo (o messiânico), já que é no

124
DERRIDA, J. Khôra. p. 18.
125
Id., Spectres de Marx. L’État de la dette, le travail du deuil et la nouvelle internationale. Paris,
Galillé, 1993.
126
Citamos Derrida: “É portanto o atraso que é originário”. “Pela palavra atraso, é preciso
entender outra coisa diferente de uma relação entre dois “presentes”. In: DERRIDA, J. A escritura
e a diferença. Tradução: Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 1995. p.
188.
127
DERRIDA, J. Espectros de Marx. O estado da dívida, o trabalho do luto e a nova
internacional. Tradução: Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. p.21.
128
Cf. citação sobre a “différance”: o vir-a-ser espaço do tempo e vir-a-ser tempo do espaço, na
seção 1.4 desta tese.
78

retraimento de khôra, na retirada do espaço, que o tempo, como o outro do


espaço, vem. E vem, justamente, sempre na sua falta,129 vem já sempre apenas
como promessa de chegar. Se o tempo, realmente, chegasse, pudesse se
presentificar, então, estaríamos na ordem do ser. Mas, pelo fato dele só nos chegar
já sempre de partida e, portanto, como promessa, pelo fato dele não poder
permanecer, de nunca desacelerar-se na possibilidade de um “é”, que estamos já
sempre no registro, por um lado, de sua lembrança e, ao mesmo tempo, no de sua
promessa.
Assim, a temporalidade que inscreve-se aqui é, ao mesmo tempo, a de
duas direções inextrincáveis: por um lado, a do retraimento da origem, de sua fuga
para um passado sempre mais antigo, que Derrida nomeia com o exemplo de
khôra e, por outro lado, a direção de um tempo messiânico, de uma promessa que
renova-se a todo tempo como fé num eterno porvir. Essas duas direções como
temporalização da desconstrução, deslocam o tempo da clausura da presença, pois
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o passado que se lembra aqui é um passado que nunca foi presente, um passado
diferente de um presente que tenha virado passado, um passado que nunca foi
vivido, que foi já sempre passado e que nenhuma memória viva pode recordar.
Assim como, também, desloca a ideia de um futuro, de alguma forma antecipável
ou programável e que um dia se presentificará. O porvir da desconstrução é sem
horizonte de espera, é da ordem do que não se pode ver vir, do totalmente outro,
que será sempre desconhecido. Por isso, o discurso ou a escrita dessa
temporalidade de dupla origem, implica que haja invenção, pois assume tratar do
que nunca esteve ou do que nunca estará simplesmente presente.
Desdobraremos essa temporalidade anacrônica da desconstrução sob o
ponto de vista do cinema ressaltado em seu caráter espectral no terceiro capítulo
desta tese.

129
Sobre a ideia do tempo vir sempre como aquilo que nos falta, indicamos a leitura do texto de
Derrida “Penser ce qui vient”, no livro Derrida pour les temps à venir. E citamos: “O tempo vem a
nos faltar. É assim, sempre, que ele vem, o tempo. É assim que ele nos vem. O tempo nos falta.
Ele nos é dado como aquilo que vai nos faltar...”. In: MAJOR, R. (Org.). Derrida pour les temps à
venir. Paris: Stock, 2007. p. 24. Tradução minha.
79

2
(Re)pensar as artes: em torno das obras

2.1.
A desconstrução em obra

Talvez esse capítulo já tenha tido seu início precipitado em algum lugar do
anterior, e, por isso, já possamos supor, como ele deve se concentrar na relação de
Derrida com as ditas “obras de arte do visível” ou em como o pensamento im-
possível da desconstrução pensa a experiência artística. De antemão, já podemos
imaginar que o pensamento da desconstrução, também na abordagem da arte,
abala e repensa suas abordagens filosóficas tradicionais. Assim, este segundo
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capítulo funciona como uma espécie de reflexo do primeiro (ou o primeiro como
um reflexo deste, a ordem é indecidível 130 ), na medida em que, a partir da
experiência artística, ele continua a escrever o “próprio” pensamento da
desconstrução sob uma nova ótica, mesmo que afirmando ainda mais a ótica do
in-visível.
Se o primeiro capítulo, entre outras coisas, pretendeu evidenciar o
pensamento como rastro, isto é, reconhecer que ele é tão traçado e desviado
quanto a arte, já podemos entrever como Derrida desconstrói uma subordinação
da arte ao pensamento promovida por todas as grandes filosofias da arte ou
estéticas tradicionais. De uma forma mais geral, o que parece primeiramente se
abalar nesta insubordinação desconstrutiva é a clássica oposição entre mythos e
logos que, sustentada pela ilusão da presença metafísica de um sentido garantidor
do pensamento131, reservaria para a filosofia o lugar da verdade e para as artes o
limite da ficção.
Acreditamos que é justamente por acolher uma parasitagem ou uma
contaminação do pensamento pela arte que a desconstrução afirma-se como

130
Depois da torsão promovida pela escrita na fala, não se pode mais encontrar a origem do jogo de
reflexos. Citamos gramatologia: “Promiscuidade perigosa, nefasta cumplicidade entre o reflexo e o
refletido que se deixa seduzir de modo narcisista. Neste jogo de representação, o ponto de origem
torna-se inalcançável.” Gramatologia. p. 44.
131
Cf. a desconstrução do fonologocentrismo no primeiro capítulo desta tese.
80

desconstrução. Isto é, a desconstrução das filosofias tradicionais ocorre na medida


em que a origem da filosofia vai se revelando como a mesma origem da arte,
confundindo e im-possibilitando, portanto, as fronteiras e os limites entre as duas.
Assim, a desconstrução, como o que acontece ao pensamento, dar-se-ia a ver, de
forma exemplar, nos textos em que Derrida aborda as obras de arte. É o que
lemos, por exemplo, na afirmação de Serge Trottein sobre o livro La vérité en
peinture: “nenhum outro livro de Derrida demonstra melhor ou coloca mais
concretamente em obra a desconstrução”132. É também o que Paulo Cesar Duque-
Estrada sugere:

De todos os seus textos, aqueles mais diretamente voltados para uma reflexão a
respeito, ou a propósito, de uma obra de arte são os que talvez melhor espelhem a
radicalidade do chamado pensamento desconstrutivo. Como se os termos e temas
que são caros ao seu pensamento – singularidade, alteridade, heterogeneidade,
diferença, apropriação, desenraizamento, abandono, espectralidade, para citarmos
alguns poucos – se encontrassem, todos evocados em cada uma de suas páginas, e
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mobilizassem, de uma ponta à outra, a leitura dos textos em que Derrida se dedica
a uma reflexão sobre, ou a propósito de, uma obra de arte.133

Portanto, e sublinhando um trecho da afirmação de Trottein: quando a


desconstrução pensa as artes o que se coloca em obra é a “própria” desconstrução,
e a “própria” desconstrução como pensamento. Este espelhamento em abismo
entre pensamento do pensamento e pensamento das obras134, põe o pensamento
em obra, isto é, promove uma inversão entre os lugares “próprios” do
pensamento como verdade; e da obra como ficção. Pois é justamente aí que a
desconstrução, como o abalo do próprio lugar, tem lugar, ou melhor, acontece. A
perturbação promovida por este pensamento nos lugares estabelecidos pelas
tradicionais filosofias da arte é semelhante a da frase de Cézanne lembrada por
Derrida: “Eu lhes devo a verdade em pintura e eu a lhes direi”135. É importante
ressaltar como esta frase, de certa forma, “enquadra” a relação entre arte e

132
TROTTEIN, Serge. “Pour une esthétique des parerga: lire Derrida avec Kant”. In: JDEY,
Adnen (org). Derrida et la question de l’art. Déconstruction de l’esthétique. p. 241. Tradução
minha.
133
DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar. “Derrida: o pensamento da desconstrução diante da obra de
arte”. In: HADDOCK-LOBO, Rafael (org). Os filósofos e a arte. Pg.333.
134
O que nos propomos a pensar respectivamente no primeiro capítulo, experiência do pensamento
e, no segundo, experiência das obras, mostrando como, no fundo, estas duas experiências dizem da
mesma experiência im-possível da desconstrução como pensamento.
135
CÉZANNE apud DERRIDA. La vérité en peinture. Paris: Champs Flammarion, 1978. p. 6.
Tradução e grifo meus.
81

verdade no modo como Derrida parece nos dá-la a pensar: uma verdade em
pintura que, diferentemente do pensamento de Heidegger, não seria um pôr em
obra da verdade, como se houvesse uma verdade que pudesse ser desvelada pela
obra. A verdade em pintura, diz de um mise en abyme136 da verdade, diz de uma
verdade posta entre aspas, suspensa da sua anterioridade e superioridade, porque
estaria no “próprio” lugar da obra, isto é, no lugar impróprio, no lugar do desvio,
da representação, do secundário, do inautêntico, do que apenas resta. Nas palavras
de Derrida: “Se a locução ‘a verdade em pintura’ tem força de ‘verdade’ e se abre,
de seu jogo, ao abismo, é talvez porque em pintura, vai a verdade e, na verdade,
vai (esse idioma) (d)o abismo”.137 Seria preciso, então, pensar este movimento em
abismo da verdade em pintura tal qual o movimento da escrita derridiana que,
como sugerido no primeiro capítulo, desloca o pensamento da questão do sentido.
Movimento tipicamente desconstrutivo que, nesta tese, sempre vale ressaltar, é
abordado pelo tema do pensar ver como uma suspensão dos valores metafísicos,
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tanto do pensar da ordem do saber, quanto do visível como pleno poder de um


sujeito.
Desta forma, se a tradição da filosofia pretende dizer a verdade sobre a
arte, estabelecendo-se como hierarquicamente superior nesta relação, para
Derrida, ao contrário, nesta relação, é a experiência da arte que daria a ver uma
(não) verdade do pensamento: sua fragilidade e falta de fundamentos, sua origem
vulnerável que irrompe de um segredo que é também “origem” de toda obra, a
saber, o ponto cego que põe em marcha a invenção. Assim, a verdade desloca-se
para o outro lado da invenção, como o que resulta dela e não como o seu motor ou
modelo. Se é que a verdade, posta em obra, só depois do trabalho de invenção,
ainda pode ser chamada de verdade. Esta parece ser a inversão138 desconstrutiva
que faz com que se acredite que Derrida não faça estética mas, ao contrário,
desloque o pensamento da arte para um não-lugar que a “lógica” indecidível do

136
Como Derrida nota em Khôra, o termo mise en abyme “…remete a um movimento de cratera
sem fundo, de sorvedouro abissal, de um abismo dentro de outro que regularia o discurso sobre
khôra”. DERRIDA, J. Khôra. p.32.
137
DERRIDA, J. “Passe-partout”. In: La vérité en peinture. p. 12. Tradução minha.
138
É importante lembrar que esta inversão desconstrutiva não pretende apenas inverter o polo
opositivo da metafísica, garantindo, agora, para as artes, o lugar privilegiado, antes ocupado pela
verdade. Na desconstrução, o movimento de inversão não pode ser pensado sem o deslocamento
que ele promove na lógica da hierarquia binária. O importante é pensar para-além dessa lógica e
não apenas inverter o par opositivo. Para essa questão Cf. O texto de Paulo Cesar Duque-Estrada,
“Derrida e a escritura” no livro Às Margens: a propósito de Derrida. p. 9-28.
82

parergon viria sulcar. Logo no Passe-Partout139 de La vérité en peinture, Derrida


antecipa que o primeiro texto desse livro estaria

Ocupado em dobrar a grande questão filosófica da tradição (“o que é a arte?”, “o


belo?”, “a representação?”, “a origem da obra de arte?” etc.) à atópica insistente
do parergon: nem obra (ergon), nem fora da obra, nem dentro nem fora, nem em
cima nem embaixo, ele desconcerta toda oposição mas não permanece
indeterminado e dá lugar à obra.140

Assim, Parergon, o primeiro texto de La vérité en peinture, parece afirmar


um dos objetivos desta tese, na medida em que aponta como a relação de Derrida
com a experiência artística abre uma outra postura diante das obras de arte
mostrando a necessidade de uma abordagem para-além da clausura em que as
estéticas e as filosofias da arte tradicionais estariam encerradas. Segundo Derrida,
as abordagens que, tradicionalmente, se iniciam pela questão “o que é?” – a
grande questão filosófica – sempre promoverão a redução da arte ao pensamento,
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pois, sustentando-se no fio condutor do sentido, registram sua submissão ao


discurso como logos. Derrida explica:

Quando um filósofo repete essa questão [o que é a arte?] sem transformá-la, sem
destruí-la em sua forma, na forma de questão, na sua estrutura onto-interrogativa,
ele já submeteu todo o espaço às artes discursivas, à voz e ao logos. Pode-se
verificá-lo: a teleologia e a hierarquia estão prescritas no envolvimento da
questão.141

Aqui está o grande problema das estéticas ou das filosofias da arte para
Derrida, afinal elas guiam-se sempre a partir da pressuposição da presença de um
logos a que não apenas o pensamento, mas também a arte, estaria submetida. E, se
a filosofia, de uma forma geral, na sua relação com a arte, tem a pretensão de
teorizá-la, de apreendê-la, de falar sobre ela, e assim o fazendo, submetê-la à
ordem da verdade que, de alguma forma, possa ser revelada ou mesmo desvelada,
a desconstrução, ao contrário, enxerga uma impossibilidade que interrompe esta
relação apropriadora da arte.

139
Passe-partout é o título do que poder-se-ia chamar de “prefácio” do livro La vérité en peinture.
Cf. DERRIDA, J. La vérité en peinture. p. 5.
140
Id., “Passe-partout”. In: La vérité en peinture. p. 14. Tradução minha.
141
Id., “Parergon”. In: La vérité en peinture. p. 27. Tradução minha.
83

Aliás, para Derrida, falar da arte, ao invés de falar das obras em suas
singularidades, falar da arte como se houvesse um conceito reunidor que servisse
para todas as obras, já seria um sintoma do pensamento preso à lógica e ao fio
condutor metafísico do sentido, pois seria partir da ilusão de que há, para-além da
existência das obras, em algum outro espaço e tempo, uma ideia de arte que
legitimaria ou não as obras como “obras de arte”. Nas palavras de Derrida:

Uma oposição conceitual estaria aí já sempre em obra e servindo


tradicionalmente para compreender a arte: por exemplo aquela do sentido, como
conteúdo interno, e da forma. Sob a diversidade aparente de formas históricas da
arte, dos conceitos de arte ou das palavras que parecem traduzir “arte” em grego,
latim, alemão e etc. (...) procurar-se-ia um sentido uno e nu. Ele informaria de
dentro, como um conteúdo se distinguindo das formas que ele informa. Para
pensar a arte em geral, acredita-se assim numa série de oposições (sentido/forma,
interior/exterior, conteúdo/continente, significado/significante,
representado/representante, etc.) que estrutura precisamente a interpretação
tradicional das obras de arte. Faz-se da arte em geral um objeto no qual pretende-
se distinguir um sentido interior, invariável, e uma multiplicidade de variações
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externas através das quais, e de tantos véus, tentar-se-ia ver, ou restaurar, o


sentido verdadeiro, pleno, originário: uno e nu.142

Percebemos aí a oposição dentro/fora apontando para a estrutura


metafísica do pensamento que, segundo Derrida, comanda as estéticas tradicionais
e circunscreve o círculo filosófico do qual este filósofo pretende escapar, pois é
em contraste à figura do círculo que o enquadramento indecidível do parergon se
impõe a Derrida na abertura de uma outra abordagem, pelas bordas, não sobre,
mas em torno das obras. Segundo Carla Rodrigues,

O parergon será então aquilo que embaralha o intrínseco/extrínseco à obra, é a


borda, o limiar instável entre dentro/fora, e não será apenas a moldura de um
quadro como no exemplo do parerga de Kant, mas a indicação de como o
discurso da tradição filosófica se organiza também sobre o par dentro/fora,
interior/exterior.143

Por esse viés, pensar a arte e não as obras, já seria, portanto, pensar sob os
valores metafísicos, pela via da compreensão do que Derrida chama os círculos

142
DERRIDA, J. “Parergon”. In: La vérité en peinture. p. 26. Tradução minha.
143
RODRIGUES, C. A literatura entre Derrida e Lacan: dentro/fora das relações de poder. In:
VISO, cadernos de estética aplicada n.13, p. 7-8. Disponível em:
<http://www.revistaviso.com.br/pdf/Viso_13_CarlaRodrigues.pdf>
84

filosóficos144 da Enciclopédia ou das Lições sobre estética de Hegel, ou ainda, da


Origem da obra de arte de Heidegger, por exemplo. Estes filósofos, entre tantos
outros, embora de formas diferentes, enxergariam as obras como meras
representações, a partir das quais poder-se-ia iniciar uma análise com o objetivo
de alcançar seu verdadeiro sentido que, no entanto, não repousaria nem sobre a
obra nem sobre o artista, mas, sobre uma terceira instância que, no fundo, seria
primeira: a arte. Nas palavras de Derrida: “...‘arte’ se deixa entender segundo as
três vias da palavra, do conceito, e da coisa, de fato, do significante, do
significado e do referente, e ainda, de alguma oposição entre presença e
representação.” 145 Percebemos, assim, que falar de um sentido da arte, para
Derrida, seria promover sua submissão ao logos, porque “ao lhe dar o nome
filosófico arte, nós a teríamos domesticado na economia onto-enciclopédica e na
história da verdade”146.
Podemos entender de que forma também as questões do belo ou do
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desinteresse do espectador em relação à obra, tão discutidas pelo pensamento


estético, inserem-se nessa discussão, pois acreditamos que é a crença da tradição
na presença de um sentido na origem do pensamento ou da arte, mais uma vez,
que está por trás desses discursos. A questão do belo, para Derrida, diria respeito à
crença na possibilidade de acesso pleno à obra, à crença de realmente poder
experienciá-la enquanto tal, como uma unidade constituída em si mesma,
enquanto obra de arte e, assim, formar um juízo sobre ela. Mas, se ao contrário,
partimos da aperspectiva derridiana de uma impossibilidade da origem tanto da
arte quanto do pensamento, deslocamos o pensamento estético do belo, pois a
beleza, para Derrida, diria do que na obra é impossível ou invisível, como marca
do que escapa ao artista na experiência com a alteridade que o inspirou. Para
Derrida,

Falamos de beleza diante de alguma coisa que é, ao mesmo tempo, desejável e


inacessível, alguma coisa que me fala, que me chama, mas ao mesmo tempo me
diz que é inacessível. Então posso dizer que ela é bela, que ela existe além, que
ela tem um efeito de transcendência, é inacessível. Assim, não posso consumi-la
– ela não é consumível; é uma obra de arte. Esta é a definição de uma obra de

144
Derrida mostra como a figura do círculo se impõe no início tanto das Lições sobre estética de
Hegel como, de forma diferente, mas também, na Origem da obra de arte de Heidegger. Para essa
questão Cf. DERRIDA, J. “Parergon”. In: La vérité en peinture p. 27 - 28.
145
DERRIDA, J. “Parergon”. In: La vérité en peinture. p. 25.
146
Ibid., p. 41.
85

arte, que ela não é consumível. A beleza é alguma coisa que acorda/desperta o
meu desejo ao dizer “você não me consumirá”.147

Quer dizer, a beleza é o que escapa, o que não se deixa representar na obra
e que, por isso, como o invisível, fascina o espectador, deixa-o boquiaberto e faz
com que não se possa falar sobre, mas apenas girar em torno dela. Assim, para
Derrida, não se pode dizer que a beleza pertença à obra como uma qualidade
intrínseca, como o seu dentro, mas apenas como aquilo que de dentro aponta para
o fora, indicando sua incompletude, sua in-visibilidade, sua inacessibilidade e sua
necessidade de suplementação. É nesse sentido que dizemos que a “lógica” do
parergon promove uma desconstrução das estéticas tradicionais abrindo uma
outra experiência do pensamento diante das obras. Voltamos a citar Rodrigues:
“Trata-se então de resguardar à arte um lugar totalmente outro, um lugar em que o
irrepresentável permaneça irrepresentável. Não se tratará portanto de decifrar o
‘segredo da arte’...”148.
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A lógica do parergon, de abordar pelas bordas, seria já mostrar a própria


desconstrução em obra no seu “enquadramento” do círculo filosófico 149 ,
problematizando-o e deslocando-o ao mesmo tempo. Porque o enquadramento
desconstrutivo da metafísica abalaria a oposição entre o dentro e o fora das
bordas. Este “quadro” desconstrutivo funcionaria como uma multiplicação ou um
mise en abyme de quadros, ao passo que enquadraria o círculo em que a
metafísica circunscreve a arte, não pretendendo apenas dar a ver o que enquadra,
mas mostrar também como qualquer enquadramento ou circunscrição não impede
a seus centros serem invadidos ou contaminados pelo seu suposto fora,
manchando, assim, qualquer pretensão de pureza pretendida por seus limites.
Dizer que os filósofos da tradição estética fecham a arte no círculo
filosófico não seria, insistimos nisso, desmerecer seus pensamentos da arte, mas
apenas reconhecer o cerco metafísico no qual eles se inscrevem. Derrida não
pretende colocar todos os filósofos da tradição numa mesma posição
relativamente à arte. Ele reconhece uma diferença enorme entre, por exemplo,

147
DERRIDA, J. “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida”. In: Pensar em não
ver. p. 44.
148
RODRIGUES, C. A literatura entre Derrida e Lacan: dentro/fora das relações de poder. In:
VISO, cadernos de estética aplicada n.13. p.8.
149
A ideia de que Parergon, texto de Derrida, enquadra o círculo filosófico e sua metafísica é
trabalhada por Serge Trottein no livro Derrida et la question de l’art. pp. 237-259.
86

Hegel e Heidegger. Para falar brevemente, se Hegel, por um lado, traça uma
progressão hierárquica das artes baseada no suporte das obras, Heidegger, por
outro lado, desfaz uma série de oposições metafísicas que tradicionalmente
comandavam a estética, tal qual a oposição entre matéria e forma. Contudo, ele
também acaba por submeter as artes espaciais à poesia e à palavra e, por isso, ao
discurso. Assim como também endereça o questionamento sobre as obras a um
suposto sentido primeiro, uno e nu da arte, que secundariamente, as obras, então,
como sua representação, desvelariam.
Não se trata, portanto, de questionar o sentido da arte. Simplesmente
porque, para a desconstrução, não há a arte, a não ser como impossível ou como
um desejo metafísico pelo sentido. Só existem as obras e cada uma na sua
singularidade, como alteridade absoluta. É por isso que Jean-Luc Nancy afirma
que Derrida não faz estética, porque ele não quer submeter os sentidos, ao sentido,
isto é, não quer submeter o sensível ao inteligível. Citamos Nancy:
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Jacques Derrida não faz “estética”, nada de “filosofia estética” nem de “estética”,
precisamente porque ele não deseja submeter a diferença profunda, arqui-original
do(s) sentido(s) a qualquer assunção unificante - e menos ainda a uma assunção
em forma de "disciplina", de categoria de saber, de método e de regime teórico.150

Apesar de termos iniciado as questões de Parergon, não se trata aqui de


percorrer inteiramente o caminho de Derrida na leitura das filosofias da arte,
como a que ele empreende, nesse texto, das estéticas de Kant ou de Hegel, por
exemplo. Decidimos, nesta tese, fazer um recorte que nos mantém na leitura dos
textos derridianos em que o filósofo nos proporciona uma outra abordagem das
obras e não do pensamento sobre as obras. De forma alguma a decisão de não
seguirmos inteiramente a leitura de Parergon ocorre por não darmos importância
a este percurso derridiano. Mas acreditamos que é, sobretudo, nos textos em que
se foca na experiência das obras que Derrida nos põe diante da cegueira ou da in-
visibilidade que nos propomos rastrear em seu pensamento. Assim, se a leitura de
Parergon nos interessa aqui apenas para começarmos a traçar o deslocamento
derridiano do pensamento estético, nos desviamos agora desse texto para

150
NANCY, J. L., “Éloquentes Rayures”. In: Derrida et la question de l’art, p. 18.
87

entrarmos naqueles que mostram uma postura “de retirada de Derrida diante das
obras”151 como forma de abordagem daquilo que sempre escapa.
Percebemos muitas vezes, quando Derrida se propõe a falar das artes, que
ele inicia seu discurso desenhando o campo de uma certa incompetência que não o
permitiria falar delas adequada ou satisfatoriamente. Este gesto traça o que
Ginette Michaud ressalta como uma postura de retirada152 de Derrida diante das
obras e que podemos interpretar como um gesto de respeito e de lucidez na
impossibilidade de insistir numa relação apropriadora diante de um segredo, de
uma singularidade ou de uma alteridade absoluta. Diante das artes como diante de
qualquer alteridade absoluta, segundo Derrida, seria preciso assumir a condição de
uma relação sem relação, uma relação traçada no afastamento do outro abordado
como outro, no respeito da sua separação. O que faria de toda experiência uma
experiência inexperimentada 153 de que Derrida fala a partir da sua experiência
com o desenho em (sem) o desígnio, o desenho154. E é nesse sentido que Derrida
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nomeará aquilo que é o ponto do nosso interesse nesta tese com respeito à relação
entre discurso e obras. Derrida diz que esta relação traça-se num “‘nada a ver’
simultaneamente no sentido do enceguecimento e no sentido da ausência de
relação. Quando se diz ‘não tem nada a ver’, isso quer dizer ‘isto não tem relação
com aquilo’, e é também uma maneira de desenhar o campo da incompetência.”155
Ora, se o fio condutor das estéticas é o sentido da arte, como já dissemos, a
relação sem relação da desconstrução com as artes inventa-se ali onde não se vê,
no traçar do pensamento sem os olhos para abrir um espaço seguro. Ao contrário,
esta “travessia” desconstrutiva lança-se num tatear aventuroso, sem garantias,
onde não se conhece, no próprio espaço da “incompetência”. Como explica
Ginette Michaud:

151
Cf. MICHAUD, G. “(sem) desígnio, o desenho”. In: Revista filosófica de Coimbra. No 43
(2013) p. 83.
152
Ibid.
153
DERRIDA, J. “Com o desígnio, o desenho”. In: Pensar em não ver. p. 163.
154
Optamos por usar esta tradução de Fernanda Bernardo para o título do texto de Derrida À
dessein le dessin, pois, apesar desta tradução seguir menos literalmente o sentido da expressão em
francês, acreditamos que seja mais adequada no contexto da conferência do filósofo e ao tema
desta tese, a saber, o pensar ver como uma dúvida na relação entre o visível e o saber, inscrevendo
essa relação como uma relação sem relação. Nesse sentido, o “sem” no título da tradução de
Fernanda Bernardo parece apontar melhor para uma falta de orientação ou de projeto no desenho a
que o texto de Derrida alude. Para conferir a justificativa desta tradução, reenviamos para a nota de
tradução no texto de Ginette Michaud (que repete o título de Derrida: “(sem) desígnio, o desenho”)
na Revista Filosófica de Coimbra, no 43 (2013) pg. 71. Este título foi traduzido no Brasil por:
Com o desígnio, o desenho. In: Pensar em não ver. p. 161-190.
155
DERRIDA, J. “Com o desígnio, o desenho”. In: Pensar em não ver. p. 164.
88

A “experiência inexperimentada” não é já efetivamente apenas mais um


“defeito”, uma “falta” de saber, mas antes uma outra maneira de pensar a relação
do ver com o saber e com o não-saber, e nomeadamente com um certo “rien a
voir” [“nada a ver”], de acordo com esta outra expressão-chave que estará no
coração desta experiência do desenho, e da arte em geral, para Derrida.156

Por isso a questão “o que é?” não importa para Derrida na abordagem do
que quer que “seja”, dado que ela sempre conduzirá o pensamento à lógica
dualista da metafisica da presença, pois parte sempre de um ponto pressuposto
como sua origem e esquece-se, na verdade, da sua anterioridade devida a uma
alteridade absoluta. Reconhecer essa alteridade absoluta na origem da origem é
também reconhecê-la diante de nós em qualquer relação, pois se ela diz de um
segredo na origem de tudo, estamos sempre diante do que quer que seja, como
diante de um segredo. Respostas para a questão “o que é?” serão sempre da ordem
da ilusão de uma presença metafísica para saciar o pensamento no terreno do
saber. A pergunta que moveria o pensamento de Derrida sem o fio condutor do
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sentido seria, então, a pergunta pela condição de im-possibilidade do que quer que
seja. Reencaminhando, portanto, a questão da arte para as obras e aqui, no caso
de La vérité en peinture, para a pintura, Derrida escreve:

A questão não seria mais então : “o que é um traço?”, ou “o que se torna um


traço?” (...). Mas “como o traço se traça? E como se contrai no seu
retraimento/retraçamento157? Um traço não aparece jamais, jamais ele mesmo, já
que ele marca a diferença entre as formas ou os conteúdos do aparecer, um traço
não aparece jamais, jamais ele mesmo, jamais uma primeira vez, ele começa por
se retirar. Estou aqui na consequência daquilo que chamei há muito tempo, antes
de vir em torno da pintura, a prótese [l’entame] de origem: aquilo que se abre de
um traço sem iniciar.158

156
MICHAUD, Ginette. “(sem)desígnio – o desenho”. p. 77.
157
A palavra em francês é “retrait”. Permitimo-nos citar a nota de tradução de Fernanda Bernardo
em Memórias de cego: “A palavra ‘retrait’ consente no idioma derridiano uma dupla escuta –
duplicidade que, notemo-lo, dobra o sentido de cada uma delas à outra. Assim, ‘retrait’ é passível
de, ao mesmo tempo, se dar a ouvir como o substantivo do verbo ‘retirer’ (retirar, retrair), mas
também e não sem um ‘abuso violento’ no dizer do próprio Derrida, como o substantivo do verbo
‘retracer’ (retraçar). Esta a razão pela qual optamos por traduzir aqui ‘re-trait’ por ‘re-
traimento/re-traçamento do traço’ a fim de – não sem tautologia, dado o sentido de ‘traço’ para
Derrida, que pressupõe sempre o retraimento, o apagamento, a interrupção ou a suspensão
daquilo mesmo que ‘traça’ –, dar conta do ‘suplemento de traço’, isto é, de um ‘traço’ (trait) que,
‘retirando-se’ ou ‘retraindo-se’ (e justamente porque se retrai ou se retira ao grafar-se) se retraça,
reiterando-se ou suplementando-se.” Nota de tradução de Memórias de cego: O auto-retrato e
outras ruínas p. 10 e11.
158
DERRIDA, J. “Passe-partout”. In: La vérité en peinture. p. 16. Tradução minha.
89

Mas antes de nos lançarmos à experiência inexperimentada do traço do


desenho em Mémoires d’aveugle, permaneçamos ainda um tempo em torno de La
vérité en peinture, passando agora para uma discussão trazida em seu último
texto, Restitutions: de la vérité en pointure, onde Derrida faz retornar os
fantasmas de uma disputa travada entre dois grandes professores europeus, o
filósofo Martin Heidegger e o historiador da arte Meyer Schapiro em seus desejos
de restituir a verdade a um quadro de Van Gogh. Esta leitura derridiana nos
interessa na medida em que ela põe em pauta uma problematização dos valores de
verdade, de propriedade, de pertencimento, de identidade e etc. no que diz
respeito às obras de arte na sua relação com o espectador como uma relação de
apropriação impossível e, por isso, como uma relação sem relação, como uma
relação na in-visibilidade. Em que sentido esses valores metafísicos mostrar-se-
iam inadequados para um pensamento derridiano em torno das obras?
Derrida interfere nesta disputa (como que fetichista 159 ) de restituições,
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partindo da hipótese de que haveria em ambos os pensadores um desejo de


correspondência e de emparelhamento em relação ao famoso quadro160 de Van
Gogh em que dois sapatos desenlaçados, soltos, destacados, abandonados161, nos
olham da tela162. De fato, segundo a narrativa derridiana, esta disputa iniciou-se
numa correspondência, numa troca de cartas, tornada pública por Schapiro em
seu texto The still life as a personal object – a note on Heidegger and Van
Gogh163. Trinta e três anos depois d’A origem da obra de arte, Schapiro escreve a
Heidegger a respeito da sua “má interpretação”, na conhecida passagem do texto
heideggeriano sobre o quadro em questão. Shapiro acredita veementemente, a
ponto de iniciar tal discussão, que os tais sapatos não pertenceriam à camponesa
ou ao campo – como defende Heidegger – mas, ao contrário, ao próprio Van

159
Derrida refere-se ao desejo, tanto de Heidegger como de Schapiro, pela verdade dos sapatos
pintados por Van Gogh como um desejo fetichista. Cf. “Restitutions. De la vérité en pointure”. In:
La vérité en peinture. pp. 291-436.
160
“Vieux souliers aux lacets”. Cf. o anexo 1, desta tese.
161
Todos adjetivos que Derrida endereça aos sapatos da tela de Van Gogh ao longo de
“Restitutions. De la vérité en pointure.” In: La vérité en peinture. p. 291-436. Tradução minha.
162
No final da próxima seção, na leitura de Mémoires d’aveugle, entenderemos em que sentido,
para Derrida, o espectador mais do que observar uma obra é olhado por ela.
163
SCHAPIRO, M. “The still life as a personal object – a note on Heidegger and Van Gogh”. In:
SIMMEL, M. L. (Org.). The rich of mind. Essays in memory of Kurt Goldstein. New York:
Springer Berlin Heidelberg, 1968.
90

Gogh, na época “a man of town and city” 164 . Derrida encena as palavras de
Schapiro: “Não, há aí erro e projeção, senão engano e falso testemunho, isso
retorna, esse par [de sapatos], da cidade”165.
Sobre este gesto, Derrida defende que Schapiro estaria dando vazão a um
sentimento de dívida diante do quadro, uma vez que na posição de conhecedor das
obras de arte, ele não deveria deixar passar em branco esta interpretação, segundo
ele, errônea de Heidegger. Como se, ao alertar Heidegger e todos mais para esta
falta, ele retornasse não só o quadro e sua verdade ao próprio signatário da obra,
mas também os sapatos em pintura aos seus verdadeiros pés.
O que Derrida pretende ressaltar aqui é que nenhum dos dois pensadores
mostra ter alguma dúvida quanto à origem do par de sapatos, nem mesmo quanto
ao fato deles formarem, realmente, um par. Derrida não cessa de se perguntar ao
longo do texto: “mas o que é um par?”, “esses sapatos formam mesmo um par?”.
Deixando essa questão do par para mais tarde, Derrida mostra como não há, em
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nenhum momento, por parte dos dois “pleiteadores” da verdade dos sapatos, uma
tentativa de deslocamento dessa questão da sua pretensão restituitiva da verdade,
mesmo sabendo-se tratar de sapatos pintados sobre uma tela, ou seja, de sapatos
em pintura. O espanto de Derrida gira em torno de uma postura ingênua de tão
célebres pensadores nesta disputa em termos de pertencimento por sapatos
pintados, em representação. O texto derridiano parece pretender ressaltar,
justamente, esse traço desviado de toda representação que o termo “em pintura”
assume. Restitutions problematiza, desse modo, toda discussão em torno de
verdade, pertencimento ou propriedade não apenas nesse contexto da pintura
como em qualquer outro contexto, pois, arriscamos dizer, que talvez, para
Derrida, o que se poderia aprender na relação com a arte – por nela aparecer de
forma mais evidente e até mesmo assumida como sua “realidade” – é essa
condição de representação, de afastamento, de desvio que, efetivamente, para a
desconstrução, seria comum a tudo o que há. Assim, Derrida parece querer nos
evocar a todo momento nesse texto e de forma ainda mais efusiva a respeito dos

164
SCHAPIRO apud DERRIDA. “Restitutions. De la vérité en pointure”. In: La vérité en
peinture. p. 296. Tradução minha.
165
DERRIDA, J. “Restitutions. De la vérité en pointure”. In: La vérité en peinture. p. 296.
Tradução minha.
91

sapatos em pintura a famosa proposição de Magritte: “isto não é um cachimbo”166.


E dito por Derrida:

De qualquer prova que se pretenda dispor, o signatário de um quadro não pode


ser identificado ao proprietário nomeável de um objeto essencialmente destacável
e representado em um quadro. Não se pode proceder a uma tal identificação sem
uma incrível ingenuidade, incrível da parte de um expert tão autorizado.
Ingenuidade identificatória quanto à estrutura de um quadro, e mesmo de uma
representação imitativa no sentido mais simples da “cópia”. Ingenuidade
identificatória quanto à estrutura de objeto destacável em geral e quanto à lógica
de seu pertencimento em geral. Que interesse pôde motivar um tal passo-em-falso
é questão que eu quis colocar a toda hora a propósito da estranha cena de
restituição...167

O texto de Derrida mostra como, por um lado, há uma visão oposta, em


relação à tela de Van Gogh, defendida por cada pensador e, por outro lado, mostra
como nesse contraste, os dois encontram-se em correspondência apenas na
medida em que revelam a mesma sede apropriativa em relação aos sapatos
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pintados. Esta correspondência entre os dois dar-se-ia apenas como exposição das
suas posturas desejantes por uma correspondência do quadro com seus próprios
discursos. Cada um, na sua projeção singular, tentaria fazer os sapatos e o quadro
corresponderem ao pensamento que defendem. Nas palavras de Derrida:

Coloquemos como axioma que o desejo de atribuição [ou de restituição] é um


desejo de apropriação. Em matéria de arte como por toda parte, dizer: isto (esta
pintura ou estes sapatos) pertence a [revient à] X, vem a dizer [revient à dire] que:
isto diz respeito a mim [me revient] pelo desvio de um “isto diz respeito a (um)
eu [moi]”. Não apenas: isto pertence propriamente àquele ou àquela, ao portador
ou à portadora (...) mas isto diz respeito propriamente a mim, por um breve
desvio: a identificação, dentre muitas outras identificações, de Heidegger com a
camponesa e de Schapiro com o habitante da cidade, daquele com o sedentário
enraizado, deste com o emigrante desenraizado.168

Logo, percebemos que, para Derrida, esta pulsão apropriativa em relação


ao quadro revela, no fundo, um desejo de identificação, de afirmação do próprio
sujeito em seus plenos poderes. Um desejo como que egóico por propriedade e

166
“Ceci n’est pas une pipe”. Tela de René Magritte.
167
DERRIDA, J. “Restitutions. De la vérité en pointure”. In: La vérité en peinture. p. 318 e 320.
Tradução minha.
168
Ibid., p. 297. Tradução: Paulo Cesar Duque-Estrada, no trecho também citado por ele em
HADDOCK-LOBO, R. (org.). Os filósofos e a arte. p. 336.
92

possibilidade de correspondência e restituição como restauração e retorno a si.


Como Derrida insiste, “a restituição restaura nos seus direitos ou em sua
propriedade remetendo o sujeito em pé, em sua postura, em sua instituição. ‘...the
erect body’ escreve Schapiro”169.
Como um desejo de poder, este aspecto do sujeito soberano é exposto no
texto de Derrida quase como uma denúncia da violenta postura dos dois
pensadores em suas vontades de afirmação diante da obra. A exposição desta
violência não é rara em Derrida e revela como que um traço ético da
desconstrução em relação a toda alteridade absoluta. Se aqui em Restitutions esta
denúncia faz-se diante da obra de arte, ela também aparece, por exemplo, como a
instituição da superioridade do humano diante do animal. Em Economimesis,
Derrida direciona essa denúncia, por exemplo, na instituição da arte como uma
afirmação da superioridade do homem sobre o que este, comodamente, e como
que para reafirmar sua superioridade, nomeia “o animal”. Citamos Economimesis:
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O que pode ser vislumbrado nesta inesgotável reiteração do tema humanista, bem
como da ontologia ligada a ele, neste zumbido obscurantista que sempre trata a
animalidade em geral sob a alçada de um ou dois exemplos escolares, como se
houvesse apenas uma única estrutura ‘animal’ que pudesse ser contrária ao
humano (inalienavelmente dotado de razão, liberdade, sociabilidade, riso,
linguagem, lei, simbólico, com consciência ou inconsciente etc.) é que o conceito
de arte também é construído com apenas uma tal garantia em vista. Ele está lá
para levantar o homem, isto é, sempre para erguer um homem-deus, para evitar a
contaminação de ‘baixo’ e para marcar um incontestável limite da domesticidade
antropológica.170

O questionamento da soberania do sujeito, tanto quanto do humano, como


necessidade de acolhimento da diferença no pensamento, é trabalhado por Derrida
já na desconstrução do conceito metafísico de linguagem e seu “ultrapassamento”
pelo quase-conceito de escrita, na medida em que esta última não pode mais ser
absorvida como poder e afirmação do próprio do homem em contraposição ao que
faltaria, por exemplo, aos animais. A escrita não pode ser reduzida a uma
propriedade do humano. Como já dissemos, para Derrida, os animais, em suas
singularidades, também são capazes de escrita.

169
DERRIDA, J. “Restitutions. De la vérité en pointure”. In: La vérité en peinture. p.297.
Tradução minha.
170
Id., Economimesis. In: Diacritics, v. 11. Johns Hopkins University Press, 1981. p. 5. Tradução
minha.
93

Assim como o problema de se falar da arte no singular, como a tentativa


de reduzir a singularidade de cada obra a um sentido logocêntrico que pudesse dar
conta delas todas, esta questão é também estendida aos animais: tratá-los todos,
cada um na sua singularidade, sob a designação de “animal”, em oposição ao
humano, seria uma violência diante daquilo que é uma alteridade absoluta e que
não se deixa simplesmente domesticar no esquecimento de suas diferenças. Esta
lembrança de uma estrutura sacrificial da nossa civilização diante do animal
levanta uma questão, por exemplo, na ordem excludente dos direitos humanos que
acolhe em suas leis protetoras apenas o seu semelhante, ou seja, os outros homens,
deixando de lado, por exemplo, o seu outro mais distante. Como se o animal,
definido pela falta de tudo aquilo que é próprio apenas ao homem, não fosse digno
de sua com-paixão.
Justamente ao contrário, a visão de Derrida é aquela de quem sente-se
visto pelo animal, isto é, daquele que sente a sujeição do olhar de uma alteridade
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absoluta tornando toda experiência uma experiência de paixão. Ou seja, trazendo


à tona sua dimensão passiva e desconstruindo, portanto, a pretensão de soberania
do “sujeito” e do humano. A questão dos animais é uma grande questão na obra
de Derrida trabalhada, sobretudo, no texto l’animal que donc je suis171. Mas aqui,
seguimos este breve desvio porque nos interessa lembrar que, também na questão
dos animais, o aspecto da passividade da experiência diante de uma alteridade
absoluta é colocado sob o ponto de vista do outro, ou melhor, é também abordado
a partir do tema da suspensão do olhar como desconstrução da superioridade ou
privilégio do sujeito, lembrando seu assujeitamento em qualquer relação. Também
em relação às obras de arte, como exploraremos melhor no terceiro capítulo, o
sujeito estaria colocado sob o olhar do outro, daquele que, como um fantasma,
possui o direito de olhar172 e pode ver sem ser visto. Assim, o que pretendemos
ressaltar aqui é que tudo o que tradicionalmente é desprezado pela filosofia como
pouco sério ou indigno de ser pensado é abordado por Derrida como exemplo
privilegiado de relação sem relação de que fala a desconstrução. Isto é, de relação
com uma alteridade absoluta, assumindo o apelo e o sofrimento a que ela nos
impele.

171
DERRIDA, J. O animal que logo sou: (a seguir). Tradução: Fabio Landa. São Paulo: Editora
UNESP, 2004.
172
Discutiremos o tema do direito de olhar no terceiro capítulo desta tese.
94

Para a desconstrução, a experiência artística – como qualquer experiência


– só poderia frustrar o sujeito em sua postura soberana ao expor sua fragilidade e
seu assujeitamento diante de uma alteridade absoluta. E seria justamente essa
condição originariamente assujeitada de todo sujeito que levaria à sua sede
apropriativa, ao desejo de correspondência e de verdade. Observe-se a explicação
de Duque-Estrada:

Trata-se de uma não correspondência entre o que a restituição pretende fazer e o


que ela efetivamente faz. Esta não correspondência pode ser sintetizada nos
seguintes termos: onde há restituição, onde quer que se pretenda restituir – algo
ao seu fundamento, à sua verdade, a seu campo, domínio ou contexto de origem
etc. – há, em verdade, apropriação.173

Portanto a não correspondência aqui diz de um desvio entre o desejo, a


pretensão de restituição e a frustração desse desejo não realizado plenamente na
relação com a obra. Este desvio talvez seja, justamente, aquele que a arte sempre
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foi acusada de carregar e que quer-se ressaltar como a interrupção, a


impossibilidade comum a toda experiência. Ele diz daquilo que faz com que a
desconstrução assuma-se como um pensamento da im-possibilidade de toda
experiência e da necessidade de pensar (n)essa im-possibilidade.
Voltando ao caso dos sapatos pintados, Derrida escreve:

O par [de sapatos] em questão, se é um par, poderia certamente não retornar a


ninguém. As duas coisas poderiam portanto, ainda que elas não fossem feitas
para desapontá-lo, exasperar o desejo de atribuição, de reatribuição com mais-
valia, de restituição com benefício de uma retribuição. Desafiando o tributo, elas
poderiam certamente ser feitas para restarem aí (rester-lá).174

A obra é sempre aquilo que nos olha da sua mudez absoluta, que apela
nossa atenção sem, contudo, co-responder ao nosso olhar, ao nosso pedido de
revelação. Ela é aquilo que, chamando-nos, não se dá à relação, ri-se de toda
projeção sobre ela e escapa.
Portanto, fica marcado nesse texto de Derrida como que um riso da obra
sobre os discursos de pretensão restituidora tanto de Schapiro como de Heidegger,

173
DUQUE-ESTRADA, P. C. in: Os filósofos e a arte. p. 335-336.
174
DERRIDA, J. “Restitutions. De la vérité en pointure”. In: La vérité en peinture. p. 296.
95

meio que expostos ao ridículo nesta disputa pela verdade dos sapatos diante de
sua mudez inapropriável. Em relação a Heidegger, Derrida confessa:

Sempre estive convencido da forte necessidade do questionamento


heideggeriano, mesmo se ele repete aqui, no pior ou no melhor sentido do termo,
a filosofia tradicional da arte. E talvez nessa medida mesmo. Mas eu tenho a cada
vez percebido a famosa passagem ‘um célebre quadro de Van Gogh’ como um
momento de desabamento patético, ridículo e sintomático, significante.175

Em relação a Schapiro, Derrida é ainda mais veemente a respeito do seu


desejo de exposição pública na disputa para devolver cada coisa aos seus devidos
lugares e ver, enfim, o seu discurso afirmado como o correspondente da verdade
dos sapatos pintados. Nesta postura de conhecedor das artes, Schapiro nem sequer
parece dar-se conta de todo um esforço heideggeriano em sua proposta de trazer
uma interpretação não representacional da obra n’A origem da obra de arte.
Como é sabido, Derrida é um devedor confesso do pensamento de
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Heidegger. A citação acima não pretende desmerecer o discurso d’A origem da


obra de arte, mas apenas salientar como todo discurso diante de uma obra é um
discurso que se expõe, na medida em que ele faz dizer aquilo que a “própria” obra
não diz. A palavra “significante” com que Derrida acaba sua frase na citação
acima, parece indicar, justamente, este aspecto de exposição, de abertura à
aparência, de representação para o qual todo discurso está disponível como
escrita.
Ainda em relação à mudez da obra, Derrida chama atenção para o seu não
“dizer”. A obra não diz, ela pinta, ou seja, ela escapa de toda intenção, de todo
querer dizer, de todo efeito fonologocêntrico que se queira atribuir-lhe. Portanto,
se por um lado, Derrida reconhece o esforço de Heidegger no seu afastamento da
metafísica, por outro, ele também enxerga em sua abordagem da obra, uma
afirmação daquilo mesmo que ele pretendia negar. Essa disputa de restituições,
trazida à tona por Schapiro, parece sublinhar, mais uma vez, a visão derridiana em
relação ao que ainda permaneceria de metafísico em Heidegger, já que a sua
crítica da representação na abordagem da arte parece, ao invés de afastar a questão
da verdade, trazê-la para mais perto, uma vez que a obra não seria apenas sua

175
DERRIDA, J. “Restitutions. De la vérité en pointure”. In: La vérité en peinture. 299.
96

representação mas, de forma ainda mais direta, sua própria apresentação. Ou


seja, ela negaria, justamente, o desvio que a afasta da verdade.
Ora, para Derrida, haveria, portanto, na abordagem artística dos dois
pensadores, uma possibilidade de voltar às coisas mesmas e uma pressa em seus
discursos que parecem já partir de certezas. Aqui podemos retomar a questão do
par, indicada acima. Derrida questiona, por exemplo, a certeza dos sapatos da tela
formarem mesmo um par e não serem, talvez, dois pés esquerdos. O filósofo traça
uma analogia sobre essa certeza do emparelhamento dos sapatos no quadro com o
desejo de orientar-se com segurança no pensamento pelo fio condutor do sentido
logocêntrico e de seus pares opositivos. Partir da certeza do par é partir da ideia da
presença metafísica garantidora da verdade. Citamos Derrida: “...antes de toda
reflexão tranquiliza-se com o par. – Sabe-se então como se orientar no
pensamento.”176
Mas, para Derrida, justamente aquilo que está em pintura deveria ser o
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exemplo paradigmático da impossibilidade de correspondência ou restituição em


toda relação. Diante das obras de arte, como diante de toda alteridade absoluta, só
podemos experimentar uma sensação de não correspondência com aquilo que se
está em relação. Só podemos experimentar, enfim, a relação sem relação que nos
obriga a inventar para tecer um “contato” com o que se relaciona, mas sempre
levando em consideração que este contato dá-se no desvio, na distância imposta
pelo outro que interdita toda apropriação. Assim, estamos todos, enquanto
espectadores, na relação com as obras, expondo o nosso desejo de apropriação.
Quando escrevemos, quando tentamos atribuir ou nos apropriar do que quer que
seja, estamos sempre já revelando o nosso desejo impossível por correspondência.
Por isso, escrever a respeito da obra ou de qualquer coisa, é sempre traçar uma
“autobiografia” impossível, na media em que, ao pretender escrever sobre a obra,
acabamos por revelar a nossa projeção sobre ela como desejo de apropriação
daquilo que não vemos, daquilo que sempre escapa.

176
DERRIDA, J. “Restitutions. De la vérité en pointure”. In: La vérité en peinture. p. 302.
97

2.2.
A invisibilidade do traço

Partindo, portanto, da impossibilidade de escrever a propósito das obras


sem ex-por-se, sem abrir-se ou mostrar-se ao espaço público, sem revelar-se,
correndo o risco de cair no ridículo nessa aventura do pensamento, passamos
agora à leitura de Mémoires d’aveugle, l’autoportrait et autres ruines. Texto que,
sem dúvida, é aquele de tom mais “autobiográfico” dentre os pensados por esta
tese e, talvez, junto com Circunfession177 e Le monolinguisme de l’autre, um dos
mais confessionais de todos os derridianos. Além disso, acreditamos, é justamente
nesse texto, que o tema da experiência da cegueira – como uma necessidade de
desconstrução do modelo ótico ligado à metafísica da presença – aparece
explicitamente e como motivo principal pela primeira vez na obra de Derrida. Por
isso mesmo, confessamo-nos ao dizer que Mémoires d’aveugle foi a inspiração
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para arriscarmos o pensar ver como hipótese deste trabalho, abrindo a


possibilidade de percorrer a obra derridiana sob a perspectiva sem perspectiva da
origem in-visível do pensamento.
É quando entrega-se à experiência do desenho, isto é, quando focado numa
singular experiência artística, que Derrida consegue, de forma extraordinária, dar-
nos a ver a in-visibilidade do traço tanto do desenho quanto da escrita.
Este texto derrididano integra o catálogo da primeira de uma série de
exposições intitulada Partis Pris, sob a tutela do museu do Louvre, que convidava
nomes ligados a um discurso crítico, mas que não fossem curadores ou experts
das artes, para organizarem uma exposição a partir das obras de seu acervo,
oferecendo, assim, uma exposição montada sob uma perspectiva diferente daquela
do curador “competente”. Em outras palavras, essas exposições partiram de um
outro tipo de olhar e de visibilidade em relação às obras escolhidas, um olhar,
talvez, mais próximo de um espectador “despreparado” e, por isso, menos
hierarquizado na relação com as artes.

177
DERRIDA, J. “Circunfession”. In: _____; BENNINGTON, G. Jacques Derrida. Paris:
Éditions du Seuil, 1991. Tradução brasileira de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1996.
98

Derrida estreiou essa série com a exposição por ele nomeada Memórias de
cego: o auto-retrato e outras ruínas, montada no Hall Napoleão do museu, entre
26 de outubro de 1990 a 21 de janeiro de 1991. Tendo aceito o convite do museu,
Derrida legou-nos, assim, uma de suas mais “belas” obras, que acreditamos ser
indispensável a qualquer trabalho que pretenda rastrear a abordagem
desconstrutiva das artes. Justamente porque, nela, o filósofo parte da experiência
do desenho, como um exemplo paradigmático das artes, alertando-nos para o
caráter gráfico comum tanto às artes quanto ao pensamento. Em outras palavras,
Derrida mostra-nos como a origem sem origem tanto das artes como do
pensamento traduz-se numa experiência de cegueira não só do artista como
também do espectador diante das obras, obrigando-nos a repensar o olho e a
experiência do olhar a partir de um certo impoder, isto é, a partir de uma certa
invisibilidade em toda visão.
A montagem de Derrida é composta apenas por obras que, de alguma
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forma, trazem à luz o tema da cegueira, construindo, assim, uma narrativa da


perspectiva derridiana: uma desconstrução da certeza do olhar e do olhar como
fonte de certeza, enxerto de um ponto cego em toda perspectiva e, portanto, de
uma dúvida, uma suspeita no coração de toda tese. Anunciando que o seu tema
será aquele do ponto de vista, Derrida explica que haveria aí, em todo ponto de
vista (point de vue), uma espécie de vista nenhuma (point de vue), um invisível
constituinte de toda visão. Citamos Fernanda Bernardo em nota de tradução sobre
a expressão francesa “point de vue”:

Note-se que no idioma de Derrida, “point de vue” consente uma dupla escuta e/ou
um duplo entendimento: tanto pode ouvir-se/entender-se como “ponto de vista”,
no sentido de visão ou perspectiva, como no sentido de “nenhuma vista” e,
portanto, de “cegueira”. Indecidibilidade com que o filósofo joga nesta obra na
sua desconstrução do privilégio da autoridade do olhar, do óptico, do eidético, do
theorein ou do teorético: um privilégio que, como o filósofo referirá, desde o
eidos platônico até o objeto ou a objetividade moderna, permite ler a história da
filosofia como uma história da visibilidade – destino que ela partilha com as artes
do visível.178

Eis aí, efetivamente exposto, o tema desta tese. A questão da ideia


platônica como o contorno de uma forma visível e a fenomenologia como o

178
BERNARDO, Fernanda. Nota de tradução In: DERRIDA, J. Memórias de cego. O auto-retrato
e outras ruínas. p. 9 e 10.
99

aparecer de um objeto para um sujeito, são tomados como exemplos maiores da


relação entre o ver e o saber no pensamento ocidental, mostrando como a
filosofia, desde o seu início, desenvolveu-se perto desta relação, pensando a
própria ideia de relação ou de experiência a partir de uma certeza da visibilidade.
Por conseguinte, é preciso entender o ponto de vista, que será o tema de
Derrida nesta exposição, como a indecidibilidade do in-visível. Se a expressão
francesa point de vue pode ter o sentido de nenhuma vista e, por outro lado, de
perspectiva, mesmo neste último sentido, em que significa um ângulo da visão, já
se pode entendê-lo também num certo sentido de invisibilidade pois, como
Derrida explica, a perspectiva, a visão posta em ângulo, já opera uma seleção,
uma escolha do que se deve ver e do que deve ser sacrificado, deixado de fora,
neste enquadramento. Nas palavras de Derrida:

O ponto de vista é a perspectiva, isto é, a visão do olhar que, ao pôr em


perspectiva, seleciona. Falar de perspectivismo é dizer que sempre vemos as
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coisas, que sempre interpretamos as coisas de certo ponto de vista, segundo um


interesse, recortando um esquema de visão organizado, hierarquizado, um
esquema sempre seletivo que, consequentemente, deve tanto ao enceguecimento
quanto à visão. A perspectiva deve ficar cega a tudo o que está excluído da
perspectiva; para ver em perspectiva, é preciso negligenciar, é preciso ficar cego
a todo resto; O que acontece o tempo todo. Um ser finito só pode ver em
perspectiva e, portanto, de maneira seletiva, excludente, enquadrada, no interior
de uma moldura, de uma borda que exclui. Consequentemente, deve-se cercar o
visível posto em perspectiva com toda uma zona de enceguecimento. A
perspectiva é cega tanto quanto vidente. Desse “ponto de vista” também, uma
certa cegueira é a condição da organização do campo do visível. Há mil maneiras
(...), de pensar um enceguecimento intrínseco ao próprio ver da vista.179

Voltando à exposição derridiana em Memórias de cego, o texto de seu


catálogo vai muito além de guiar o visitante ou o leitor de obra a obra, apenas
como um fio condutor na demonstração dos desenhos que compõem a sua
montagem. Tecendo a relação sem relação entre discurso e obras, nem o texto
escrito nem a reprodução das obras aparecem aqui como suplemento de menor
importância, um em relação ao outro. Pelo contrário, num gesto tipicamente
derridiano de valorização do suplemento, ele mostra como que uma necessidade
de suplementariedade de traço a traço, do desenho à escrita, tecendo entre os dois,
nessa relação sem relação, uma declaração de amor, de respeito, àquilo que os une

179
DERRIDA, J. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 73.
100

na separação, a saber, o caráter gráfico, a possibilidade de impressão, de marca, de


rastro, numa palavra: de escrita.
Numa espécie de confissão, na forma de uma auto-biografia impossível,
este texto vai se construindo como uma espécie de declaração de amor ao traço.
Assim como gramatologia, memórias de cego é uma reflexão sobre o pensamento
como escrita. Mas se gramatologia se inscreve na perspectiva da desconstrução do
privilégio do logos sobre o grama, refletindo as clausuras que o pensamento cria
para si mesmo dentro dessa perspectiva da presença, Memórias de cego,
concentrando-se na estrutura em abismo do autorretrato impossível, dobra o
grama sobre o grama no que poderíamos chamar de uma gramatografia ou uma
filografia, sublinhando uma paixão ("narcísica") do traço.
No que nos parece ser uma de suas mais importantes revelações nesta
obra, Derrida confessa uma cena de ciúmes familiar na origem do seu gosto pela
escrita. Como uma prótese ou como substituição de uma frustrante experiência do
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desenho, a escrita surge como que por “vingança fratricida”, para compensar uma
falta, uma derrota: quando criança, o filósofo tentava imitar sem jeito os desenhos
de seu irmão mais velho que faziam sucesso na família e eram pendurados pela
casa dando a ver o talento do irmão em contraposição a uma “incompetência” de
Derrida. Frustrado nas suas tentativas de impressionar pelo traço do desenho, o
futuro filósofo elege, ou melhor, sente-se eleito pelo traço da escrita. Derrida
confessa:

Sofria por ver os desenhos do meu irmão permanentemente expostos,


religiosamente emoldurados nas paredes de todos os quartos. E tentava por minha
vez imitar as suas cópias: uma lastimável falta de jeito confirmava-me na dupla
certeza de ter sido punido, privado, lesado, é certo, mas também, e por isso
mesmo, secretamente eleito. Eu havia enviado a mim mesmo, que não existia
ainda, a mensagem indecifrável de uma convocação. Como se, nas vezes do
desenho, ao qual o cego em mim renunciou para sempre, eu fosse chamado por
um outro traço [trait], por esta grafia de palavras invisíveis, por este acordo do
tempo e da voz a que se chama verbo – ou escrita. Substituição, portanto, troca
clandestina: um traço para o outro, traço por traço [...] Palavra de ordem
fratricida: economia do desenho. Do desenho visível, do desenho enquanto tal,
como se eu tivesse dito a mim mesmo: eu, eu escreverei, votar-me-ei às palavras
que me apelam.180

180
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 45.
101

Se por um lado, nesta cena de suplementariedade de traço por traço,


percebemos o caráter gráfico, “próprio” do desenho estendido à palavra, por outro
lado, percebemos o caráter invisível, espectral, comum às palavras, estendido ao
desenho. Se costumamos pensar o desenho como da ordem da visibilidade, do
sensível e, ao contrário, damos às palavras o privilégio da voz, da inteligibilidade,
a abordagem derridiana do desenho vai reafirmar a palavra como escrita,
sublinhando, por outro lado, o caráter invisível do desenho como o que aponta
para uma certa insignificância do traço, como o que escapa do sentido. O traço,
“comum” a essas duas experiências – do discurso e do desenho – é o que tece
Memórias de cego como um texto de palavras e imagens sem hierarquia entre
elas, caracterizando, justamente, a abordagem derridiana das artes. Pois, se
Derrida sente-se eleito pela escrita, pelo discurso, é, contudo, na contaminação do
discurso pelo traço que seu pensamento ficará marcado como desconstrução. Ou
seja, a escolha de desviar-se do desenho para as palavras como que afirma este
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desvio ao invés de tentar apagá-lo numa negação de sua inaptidão. Se Derrida


dedicou sua vida ao pensamento, à filosofia, o traço do desenho, como que o
retorno de uma assombração, não deixou de obsidiá-lo a ponto de seu pensamento
ficar conhecido como o pensamento da escrita, daquilo justamente que se arrisca
no espaço de modo equivalente às artes do visível. Mas, ao mesmo tempo e,
paradoxalmente, o que fica marcado no discurso derridiano do desenho, isto é,
naquilo que vem, como escrita, envolver, margear, transbordar o desenho, é um
“nada a ver” que desloca o discurso do seu fio condutor fonologocêntrico para
inscrevê-lo na errância do traço. Nas palavras de Derrida:

Bem, estou, quanto a mim, do lado do discurso, ou seja, quando vou na direção
das palavras para falar do desenho ou da pintura, é também uma maneira de fugir
do que sei que não posso dizer a respeito do próprio desenho. Porque no fundo,
uma vez que a questão que é aqui colocada a todos os participantes é: “O que é o
desenho?”, minha resposta é: “Eu não sei o que é o desenho”. E, incessantemente,
sou tentado a reconduzir o desenho, na medida em que ele desenha alguma coisa
e em que identifica uma figura, na medida em que é orientado pelo desígnio, isto
é, por um sentido, ou uma finalidade, que permite sua interpretação, sempre sou
tentado a puxar o desenho para o insignificante, isto é, para o traço. E foi por aí
que, incessantemente, fui levado a reconduzir minha preocupação com o desenho
na direção da minha preocupação mais antiga e mais geral com o traço da escrita,
102

com a linha da escrita na medida em que consiste em rede ou sistema de traços


diferenciais.181

O texto do catálogo, inicia-se sem iniciar, dando a palavra ao outro com


uma epígrafe de Diderot que parece condensar toda experiência da escrita em
memórias de cego. Assim é o texto de Diderot citado por Derrida: “Escrevo sem
ver. Vim. Queria beijar-vos a mão (...) Eis a primeira vez que escrevo nas trevas
(...) sem saber se formo caracteres. Por todo lado em que não houver nada, lede
que vos amo.”182 Sentiremos os ecos destas frases de Diderot por todo o texto
derridiano e retornaremos a elas.
No momento, gostaríamos de salientar como logo na primeira linha do
texto derridiano, depois das reticências que seguem a epígrafe de Diderot, como
que em resposta a ela, Derrida traz a questão da crença e do ceticismo ligando-a à
visibilidade. Em outras palavras, Derrida problematiza a certeza da vista,
introduzindo a indecisão do pensar ver. É o que Ginette Michaud pergunta em seu
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texto: como distinguir “entre o fenômeno e a aparição espectral? Entre percepção


e alucinação”183.
Justificando o título desta tese, o pensar ver como uma suspensão da
certeza do olhar para uma dimensão do pensar como crença, do pensar no
ceticismo, Derrida começa por apontar uma dúvida no olhar e no pensamento, isto
é, ele começa por relacionar o olhar com o pensamento a partir, justamente, da
dúvida, da dúvida do olho, que no final do livro balançará na indecidibilidade
entre o ver e o chorar. Nas palavras de Derrida:

Antes de a dúvida se tornar um sistema, a skepsis é coisa dos olhos, a palavra


designa uma percepção visual, a observação, a vigilância, a atenção do olhar no
decurso do exame. Espreita-se, reflecte-se sobre o que se vê, reflecte-se o que se
vê atrasando o momento de concluir. Mantendo a coisa à vista, olhamo-la. O
juízo está suspenso à hipótese.184

A impossibilidade de concluir, de dar a palavra final sobre o que se olha,


inscreve todo traço no terreno da precipitação, da dúvida e, por isso, da hipótese,

181
DERRIDA, J. “Com o desígnio, o desenho”. Pensar em não ver. p.165.
182
DIDEROT, Denis. Carta a Sophie Volland, 10 de junho de 1759. Citada por DERRIDA, J. In:
Memórias de cego. p. 9.
183
MICHAUD, Ginette. Revista filosófica de Coimbra no 43 (2013). p. 98.
184
DERRIDA, J. Memórias de cego. p.9.
103

já que, como Derrida explica, “uma hipótese, como o seu nome indica é suposta,
pressuposta” 185 e, assim, sempre apressada, sempre anterior e aquém de toda
certeza ou conclusão. Por isso, o autor adverte o leitor desde o início: o que pode
guiá-lo nesta tarefa da escrita em torno de desenhos são apenas hipóteses,
pressuposições como que lançadas à frente feito antenas para orientá-lo “na
errância, no tacteio, na especulação que se aventura” 186 . Certamente, este guia
enviado à frente – como mãos de cego adiantadas ao resto do corpo, tateando o
espaço em reconhecimento para evitar a queda – difere-se daquele do fio condutor
do sentido, orientador do pensamento em termos de certeza. Este guia hipotético
assume o percurso na noite, na impotência dos olhos como garantidor do caminho
e a necessidade do suplemento das mãos como apoio à fragilidade do olhar. E é
nesse sentido que, tateante, logo nas primeiras páginas do livro, Derrida apresenta
duas hipóteses do desenho que guiarão, na dúvida, a escrita-leitura deste texto.
A primeira hipótese, chamada pelo filósofo de abocular – que quer dizer
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sem os olhos – é designada como uma hipótese transcendental já que ela se refere
a uma condição de possibilidade do desenho. Ela diz respeito a um ponto cego na
origem do desenho apenas a partir do qual todo traço se traça. Como a “origem”
invisível de todo traço ou de todo rastro esta cegueira primeira é o que possibilita
ver, por isso o seu caráter transcendental.
A segunda hipótese, chamada por Derrida de hipótese sacrificial seria
como que a tematização, nos desenhos, dessa sua condição de possibilidade
invisível. Ela ganha esse nome porque diz de um certo sacrífico sofrido pelos
olhos nas cenas ilustradas pelas obras da exposição, dando a ver, na escolha das
obras, a inscrição derridiana numa cultura greco-judaico-cristã. As ilustrações
mitológicas, assim como do velho e novo testamentos, mostram o que acontece
aos olhos como punição, eleição ou conversão nas cenas de enceguecimento. Por
isso, esta hipótese sacrificial seria a representação, no desenho, da sua própria
condição de possibilidade. Seria a cegueira posta em retrato pelo traço. É o que
Michael Naas nos explica:

185
DERRIDA, J. Memórias de cego. p.9.
186
Ibid.
104

Há portanto a condição transcendental de todo desenho e, depois, tudo o que


representa ou que exibe essa condição, essa cegueira ou esse enceguecimento na
origem do desenho. Para retomar uma oposição ao mesmo tempo clássica e
obsoleta, o pensamento transcendental é um pensamento da condição ou da forma
do desenho, enquanto que o pensamento sacrificial é um pensamento do
conteúdo, dos temas ou do assunto. É este último como reflexo do primeiro,
como representação de sua própria condição que terá determinado evidentemente
a escolha de desenhos que Derrida integra na exposição Mémoires d’aveugle –
cenas de cegos ou de deficientes visuais, cenas de cabra-cega ou de errância com
os olhos vendados, cenas de olhos arrancados, cegos ou afundados na
obscuridade ou, ainda, levemente escondidos atrás desses suplementos da visão,
óculos, lentes, lunetas. A cegueira não pode, portanto, ser um tema entre outros
no desenho ou na pintura. Cada vez que se representa um cego, é como se
representasse a própria origem do desenho, o invisível que é a condição de todo
desenho.187

Assim, se Derrida faz uso de uma oposição clássica para nomear essas
duas hipóteses, veremos como essa oposição é desconstruída, já que elas
contaminam-se uma a outra, precisam uma da outra para fazerem obra. Com
efeito, a hipótese sacrificial é o que dá a ver a hipótese transcendental, mas, ao
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mesmo tempo, esta última é a condição da primeira.


A contaminação dessas duas hipóteses pode ser percebida no que Derrida
chama o autorretrato do desenho, ou seja, o desenho colocando em cena sua
própria condição de possibilidade. Para Derrida, todo desenhador seria um cego
vidente ou visionário, na medida em que ele dá a ver, na medida em que ele forma
as imagens, a partir do que não vê, a partir da falta de um modelo que esteja
plenamente presente diante de seus olhos. Como o filósofo defende: "um desenho
de cego é um desenho de cego"188. Um desenho que tematiza a cegueira é sempre
um desenho feito por um cego:

Duplo genitivo. Não há aqui nenhuma tautologia, mas uma fatalidade do auto-
retrato. De cada vez que um desenhador se deixa fascinar pelo cego, de cada vez
que ele faz do cego um tema do seu desenho, projeta, sonha ou alucina uma
figura de desenhador (...). Mais precisamente ainda, começa a representar uma
potência desenhadora a operar, o próprio ato do desenho. Inventa o desenho. O
traço [trait] não se paralisa então na tautologia que dobra o mesmo ao mesmo.
Pelo contrário está a mercê da alegoria, deste estranho auto-retrato do desenho
abandonado à palavra e ao olhar do outro. Subtítulo então de todas as cenas de
cego: a origem do desenho. Ou, se preferirem, o pensamento do desenho, uma

187
NAAS, Michael. La nuit du dessin: foi et savoir dans Mémoires d’aveugle de Jacques Derrida.
p. 5. Tradução minha.
188
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 10.
105

certa pose pensativa, uma memória do traço que especula em sonhos acerca da
sua própria possibilidade.189

Como lemos na citação acima, estas duas hipóteses do desenho cruzam-se


uma na outra: primeiramente, o desenho teria a ver com a cegueira e, justamente
por isso, tematizá-la, desenhar cenas de cegos, seria sempre, de alguma forma,
para Derrida, fazer um autorretrato do desenho, colocar em obra sua “própria”
origem invisível, irrepresentável. Dando a ver cegos, o desenho estaria falando de
si mesmo, da atividade do desenhador que traça sempre no escuro, a partir do que
não vê e, por isso, inventa o desenho. E é na medida em que põe em cena uma
dobra sobre si mesmo que essa invenção do desenho pode ser entendida também
como um pensamento do desenho, já que essa dobra não deixa de ser uma
reflexão sobre si. Dando a ver sua própria origem in-visível, o desenho se pensa
no seu próprio traço, representando-se a si mesmo ou re-traçando-se.
Há nesta cena de reflexão do desenho que se desenha, que tematiza sua
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própria origem, uma relação entre invisibilidade e invenção de si. Mas uma
invenção de si sempre como outro, porque, como poderemos entender melhor ao
longo deste texto, se por um lado, esta tematização de sua própria origem aciona
uma potência do autorretrato, por outro lado, percebemos que este autorretrato é
sempre da ordem do impossível. Pois, se as cenas de cegos, como autorretrato, são
a representação do irrepresentável, esses autorretratos seriam, portanto, sempre
autorretratos alegóricos do desenho, já que eles representam, encenam, sua
própria impossibilidade de representação190.
Além disso, o tema da cegueira assume e representa a impossibilidade de
apropriação do que se desenha, o desvio e a distância da própria representação, a
impossibilidade de apropriação daquilo que se pretende desenhar, capturar no
traço. Esta im-potência do autorretrato do desenho diria, na verdade, de uma
melancolia comum a toda arte, já que mostra aquilo que se marca em si como um
luto da origem perdida, um luto do modelo que não se pode apropriar. É este jogo
do “salvar perdendo” de toda escrita, de todo registro, que se marca no que
Derrida chama do retraimento/retraçamento do traço, e que o desenho, como

189
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 10.
190
A estrutura do autorretrato impossível ou alegórico diz da impossibilidade da relação a si que
trabalhamos em diversos momentos do primeiro capítulo, principalmente, na seção 1.3, a
propósito da invenção da identidade.
106

exemplo paradigmático das artes, nos mostrando cegos, nos dá a ver como que um
pensamento do desenho. Seguindo a explicação de Derrida:

A sua potência [do desenho] desenrola-se sempre à beira da cegueira. A cegueira


mergulha nela, e ganha justamente aí em potência: ângulo de visão ameaçada ou
prometida, perdida ou devolvida, dada. Há neste dom como que um re-
traimento/re-traçamento do traço [re-trait], ao mesmo tempo a interposição de
um espelho, a reapropriação ou o luto impossíveis, a invenção de um Narciso
paradoxal, por vezes perdido em abismo, em suma uma dobra ou prega [repli]
especular – e um traço suplementar. Mas vale nomear em italiano esta hipótese
do retraimento/retraçamento do traço [retrait] em memória de si a perder de vista:
l’autoritratto do desenho.191

O duplo sentido da palavra retrait, em francês, como ao mesmo tempo


retraimento e retraçamento, inscreve o caráter aporético do traço, pois diz que o
que se traça nele é apenas a fuga daquilo que ele pretendia traçar. Isto é, o que se
guarda no traço como re-traçamento ou representação é sempre a perda daquilo
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que o inspirou. Contudo, ao mesmo tempo e paradoxalmente, é essa fuga ou


resistência do modelo, da inspiração que permite que haja traço ou re-traçamento
do traço. Pois, podemos imaginar que se o modelo e a inspiração se retiram,
fogem em direção à sua origem invisível, à sua origem sem origem, ao seu
passado absoluto, o que marca-se no traço, em outra direção, é o rastro, a
representação dessa partida, desse retraimento da coisa perdida como memória e
promessa de sua apresentação. A apresentação é aqui sempre da ordem da
promessa. Essa é a condição de todo traço, ele está condenado apenas à ordem da
representação. Pois, como acreditamos já ser possível entender neste ponto da
tese, para a desconstrução, a ordem da representação não diz, de forma alguma, de
uma dimensão menos importante. Pelo contrário, a desconstrução assume,
justamente, que tudo o que temos é da ordem da representação, do traço, da
escrita.
É importante perceber como há, no pensamento derridiano da arte,
também uma crítica da mímesis e da representação, mas num sentido inverso da
crítica empreendida pelas filosofias da arte tradicionais, posto que Derrida
questiona não o desvio e o afastamento da representação em relação àquilo que
ela representa mas, ao contrário, a ideia de que haja um modelo primeiro, original

191
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 10 - 11.
107

e presente que já não seja, em si mesmo, desvio, rastro, espectro ou sombra.


Assim como vimos que para o pensamento da escrita só há rastros de rastros, para
o pensamento desconstrutivo do desenho só há representações de representações,
fantasmas, simulacros, traços de traços. Portanto, a crítica da mímesis, em
Derrida, não seria propriamente uma crítica da representação, isto é, do caráter
secundário da cópia, mas direciona-se, ao invés disso, à ilusão de que poderia
haver, em algum momento, a presença de um modelo original e efetivamente
presente a si mesmo. O que se desconstrói nessa crítica derridiana da mímesis é a
própria percepção e a estrutura contemplativa que acredita na possibilidade de ver
presentemente. Para Derrida, a própria percepção já está na ordem da memória ou
da imaginação, do desvio que a representação é acusada de promover. Não há
percepção sem esse desvio que condena todo modelo à ordem do espectral. Seja
porque o “próprio” modelo nunca coincidiu com ele mesmo, seja porque o olhar
do artista é já sempre ferido por uma cegueira. Por exemplo, por um batimento de
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pálpebras que o impede de ver continuamente.


Retomando o fio "auto-biográfico" de Derrida na narrativa da composição
desta exposição, é importante observar que na data em que ocorreria a primeira
reunião com os responsáveis do museu, o filósofo estava sofrendo, já há alguns
dias, de uma paralisia facial de origem viral dita a frigore que ele descreve assim:

Desfiguração, o nervo facial inflamado, o lado esquerdo do rosto atingido de


rigidez, o olho esquerdo fixo e terrível de se ver num espelho, a pálpebra não se
fecha mais normalmente: privação da piscadela do olho, logo deste instante de
cegamento que assegura à vista sua respiração192.

Depois de duas semanas de intensa vigilância e inspeção médica, Derrida


está curado: "sentimento de conversão ou ressurreição, a pálpebra pestaneja de
novo, mas o meu rosto permanece assombrado por um fantasma de
desfiguração" 193 . É nesse estado que acontece, então, a primeira reunião no
Louvre para organização da exposição. Na volta pra casa, ainda no carro, impõe-
se a ele o tema da exposição. Rabisca, sem ver, em um pedaço de papel ao seu
lado, enquanto dirige, um título provisório para ordenar suas notas "Louvre où ne
pas voir", "Louvre onde não ver" que também se pode entender em francês como

192
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 39.
193
Ibid.
108

"o aberto onde não ver" e, ainda, por uma proximidade fônica, "a obra onde não
ver"194.
Dessa experiência de escrever sem ver, que acabava de lhe acontecer no
carro, depois da reunião no museu, quando voltava para casa, Derrida aproveita
para tomá-la como exemplo da experiência de toda escrita e de todo traço. E
ouvimos ressoar na citação abaixo, o texto de Diderot escrito na noite e que abre,
como epígrafe, Memórias de cego:

O que é que se passa quando se escreve sem ver? uma mão de cego aventura-se
solitária ou dissociada, num espaço mal delimitado, tateia, apalpa, acaricia tanto
quanto inscreve, fia-se na memória dos fios e suplementa a vista, como se um
olho sem pálpebra se abrisse na ponta dos dedos: o olho a mais acaba de brotar
rente à unha, um único olho, um olho de zarolho ou de ciclope e dirige o traçado -
é uma lâmpada de mineiro na ponta da escrita, um substituto curioso e vigilante, a
prótese de um vidente ele mesmo invisível. Do movimento das letras, do que
assim inscreve este olho no dedo, a imagem esboça-se sem dúvida em mim. A
partir do retraimento absoluto de um centro de comando invisível, um poder
oculto assegura à distância uma espécie de sinergia que coordena as
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possibilidades de ver, de tocar e de mover. E de ouvir e entender, porque são já


palavras de cego que eu assim desenho195.

Podemos entender, então, que se Derrida ressalta as mãos nos desenhos


de cego, como aquilo que tateia ou acaricia o papel no momento de traçar, é para
lembrar-nos que este movimento do traço avança sempre na interação de um
sentido com o outro, num trabalho de memória e auxílio ali onde não há plenitude
de um sentido. O que Derrida salienta na passagem acima é que no exemplo
extraordinário do escrever sem ver, temos a chance de perceber como todo traçar
dá-se sempre a partir desse jogo de suplementariedade entre todos os sentidos.
Pois se os olhos nas pontas dos dedos guiam as mãos, em memória, no traçar das
palavras, essa memória engaja também a audição, pois a palavra, parte sempre da
cegueira de um fenômeno sonoro. Disso que se escuta e se entende e que, então,
por um trabalho de mãos, torna-se traço, escrita, desenho: “algo” da ordem do
visível. Há uma cegueira comum que encontra-se no retraimento absoluto de
todos os sentidos, nesse centro de comando invisível que inventa para traçar. Ou
seja, a origem do traço tanto do desenho como da escrita, do traço da palavra, da

194
Cf. nota de tradução de Fernanda Bernardo em Memórias de cego p. 40.
195
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 11 e 12.
109

linguagem, é um fenômeno in-visível na medida em que parte da cegueira para


dar-se à visão. Na explicação de Derrida:

É sempre preciso lembrar que a palavra, o vocábulo se ouve e se entende


[entend], que o fenómeno sonoro permanece invisível enquanto tal. Preocupando
em nós o tempo mais do que o espaço, ele não se endereça somente de cego a
cego, como um código para não-vidente, na verdade fala-nos, todo o tempo, da
cegueira que o constitui. A linguagem fala-se, o que quer dizer da cegueira. Ela
fala-nos sempre da cegueira que a constitui. Mas quando ainda por cima escrevo
sem ver, aquando da experiência excepcional que evocava há instantes, na noite
ou com os olhos algures noutro lado, já um esquema se anima na minha
lembrança. Virtual, potencial, dinâmico, este gráfico ultrapassa todas as fronteiras
dos sentidos, o seu ser-em-potência é ao mesmo tempo visual e auditivo, motor e
táctil. Mais tarde, a sua forma aparecerá à luz do dia como uma fotografia
revelada. Mas de momento, no preciso momento em que escrevo, não vejo
literalmente nada destas letras.196

Portanto, este momento de cegueira, do escrever sem ver, escolhido ou


imposto, amplifica o que cotidianamente nos acontece sem que prestemos muita
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atenção. As nossas experiências, posto que dão-se sempre na linguagem, partem


da cegueira, do que não se vê. Nitidamente evocando Heidegger – naquilo que no
primeiro capítulo já apontamos como o caráter passivo da experiência tanto no
filósofo alemão quanto no franco-magrebino –, Derrida relaciona o caráter
passivo da experiência da língua com a cegueira quando escreve que a língua fala-
nos sempre da cegueira que a constitui.
Se não podemos olhar para o papel ou para a tela quando traçamos, seja
porque precisamos manter os olhos em outro canto seja porque, no escuro, na falta
de luz, não conseguimos enxergar a superfície de inscrição, nossos dedos e mãos
percorrem a superfície feito mãos de cegos percorrem o espaço em
reconhecimento. Derrida chama nossa atenção para como o gesto das mãos
hesitantes, sempre adiantadas ao resto do corpo nas cenas dos desenhos de cegos
poderiam retratar a própria figura do desenhador ou do pensador. É o que
podemos observar nos desenhos de Coypel197 escolhidos por Derrida para integrar
a exposição:

Como todos os cegos, eles têm de avançar, quer dizer, de se expor de per-correr o
espaço como se corre um risco. Apreendem o espaço com mãos ávidas, errantes

196
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 12.
197
Cf. Os Estudos de cegos de Antoine Coypel no anexo 2 desta tese.
110

também, desenham nele de um modo ao mesmo tempo prudente e audacioso,


calculam, contam com o invisível.198

Assumindo o risco da queda, as mãos adiantadas ao corpo no gesto da


inscrição seria o próprio retrato da invenção do desenho ou do pensamento. Como
se os cegos representados nos desenhos fossem a própria figura do desenhador ou
do pensador a trabalhar, a traçar ali onde não veem, Derrida pergunta-se: “Acaso
sou vítima de uma alucinação quando creio ver, através deste Erro de Coypel199, a
figura de um desenhador a trabalhar?”200.
Tema recorrente nesses desenhos, as mãos na postura dos cegos dizem de
uma antecipação que protege da precipitação: a precipitação, referindo-se a uma
certa passividade do sujeito, diria de uma exposição da cabeça (praecaput),
lançada no ar sem proteção. Enquanto a antecipação, nesse sentido, poderia dizer,
ao contrário, de uma ação, como um adianto dos olhos – ou das mãos, no caso dos
cegos – para proteger da precipitação. A plenitude do olhar no modelo ótico, o
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poder de ver vir, de pre-ver, teria, justamente, esta função de antecipação e


proteção diante do que ou de quem vem ao nosso encontro. Mas, no caso dos
cegos, as mãos tomam essa função do olho indo “ao encontro do obstáculo para
prevenir o perigo”201. É isso que faz das mãos, como suplemento dos olhos, tema
especial nos desenhos de cego.
Derrida explica que a antecipação como o adianto das mãos, inscreveria
um reconhecimento antes do próprio conhecimento, pois correndo na frente,
tateantes, para guiar o percurso onde não se vê, onde não se conhece, as mãos
varrem o espaço em reconhecimento para pre-ver tateando. Como próteses do
olho, como suplemento da visão nesta aventura do pensamento sem os olhos, é
preciso assumir a postura errante do pensador ou do desenhador como a do cego
que sempre percorre o espaço correndo risco.

A antecipação protege da precipitação, adianta-se ao espaço para ser a primeira a


agarrar, para se lançar para diante no movimento da preensão, do contacto ou da
apreensão: de pé, um cego explora às apalpadelas a extensão que deve reconhecer
sem ainda a conhecer – e o que na verdade ele apreende é o precipício, a queda –

198
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 13.
199
Falaremos logo em seguida deste quadro, O Erro de Antoine Coypel, que se encontra no anexo
3 desta tese.
200
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 20.
201
Id., “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 69.
111

e ter já franqueado alguma linha fatal, com a mão desprotegida ou armada (a


unha, a bengala, ou o lápis).202

Embora as mãos estejam adiantadas ao corpo neste retrato do pensamento,


aquilo que elas parecem poder apreender na errância do percurso é a própria
queda ou a impossibilidade da apreensão. Como se esses desenhos de cegos, de
mãos antecipadas para proteger na falta dos olhos, quisessem dizer de uma
desconstrução tanto do modelo ótico quanto do haptocêntrico. Pois, se na
autoridade metafísica desses modelos, o papel das mãos e dos olhos seria o de
manobrar, manipular, apropriar, agarrar o obstáculo, controlando seguramente o
percurso, na cegueira, ao contrário, não só os olhos parecem feridos como
também as mãos perdem sua função preensiva conjugando-se, antes, com a
apreensão no sentido de receio, dúvida, hesitação. Derrida explica a conjugação
do modelo ótico com o haptocêntrico no sentido metafísico:
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No léxico da antecipação, temos todo o espectro semântico da percepção ou do


conceito, a percepção é também uma pegada manual, uma maneira de apreender,
o Begriff, o conceito. Begreiffen é apreender, tomar para dominar, e, portanto, o
conceito tem isso em comum com a percepção. (...) O conceito tem em comum
com o percepto, com a percepção, ao menos o fato de engajar a mão que pega, a
apreensão. O cego avança com apreensão, isto é, com uma espécie de inquietude
que consiste em tomar previamente a coisa de que ele precisa ou de que ele
precisa proteger-se. Logo a visão é também apreensão. Não digo que a visão seja
apenas isso. Mas a visão, os olhos videntes e não os olhos que choram, está lá
para prevenir, por antecipação, por pré-conceitualização, por percepção: para ver
vir o que vem.203

Se na conjugação desses modelos metafísicos, a mão empresta ao olho sua


capacidade de agarrar, de apoderar-se do outro e, assim, de conceitualizar, aqui,
ao contrário, a cegueira do olhar como que fere também as mãos obrigando a
repensar o toque como um toque não apropriativo, um toque sem toque que
respeita uma interdição, uma distância, uma separação e uma intangibilidade do
outro. Então, esta desconstrução dos modelos ótico e haptocêntrico a partir da
cegueira, isto é, na assunção da impossibilidade da percepção e da preensão, é
também uma desconstrução do conceito e da dimensão apropriativa do
pensamento. Pois se o pensamento assumido na sua cegueira reconhece que todo

202
Id., Memórias de cego. p. 12.
203
DERRIDA, J. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 69 - 70.
112

juízo, toda conclusão é sempre precipitada, todo conceito é sempre um pré-


conceito.
Deste modo, esta postura das mãos antecipadas no gesto do tatear ou do
traçar dizem, justamente, do avanço do pensamento como traço, como escrita, e
de sua diferença em relação à postura de um pensamento que se pretende pleno de
visão ou de conhecimento, que acredita poder avançar autoritário,
conceitualizando para acalmar o pensar. Mas, este estranho avanço do
reconhecimento antes do conhecimento que a desconstrução põe em cena diz, no
fundo, de uma lucidez do pensar quando se reconhece que toda experiência de
conhecimento se faz sempre no avanço de uma escrita. A escrita corre sempre
com as mãos na frente, assumindo a noturnidade do caminho e, por isso, a
surpresa do que vem sem previsão. As mãos estendidas na frente do corpo no
gesto dos cegos ou da escrita e do traçar diriam de um toque diferente do toque
apropriador do modelo haptocêntrico. Assim como o tema da cegueira na
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desconstrução nos faz pensar numa invisibilidade no coração de toda visão,


também a desconstrução do toque nos faz pensar num toque interrompido, num
tato com tato que só toca a distância do outro. Derrida explica:

Eu distinguiria a experiência do tocar do haptocentrismo. O haptocentrismo não é


simplesmente uma homenagem prestada ao tocar, tomado como fundamental: é
uma maneira de interpretar o tocar como contato absoluto, sem distância, sem
tato. (...) Ousarei dizer que, assim como a experiência da visão não
necessariamente pré-vê, a experiência do tocar não toca necessariamente no
continuísmo, no intuicionismo continuísta para o qual não há distância entre o
tocante e o tocado. Pois há uma distância entre o tocante e o tocado que é a
condição do tocar e que é o que se pode chamar de tato: tocar sem tocar: toca-se
sem tocar.204

Assim como estamos seguindo uma desconstrução do modelo ótico nesta


tese para pensar uma visão assumida no seu “ponto de vista”, também seria
possível, no pensamento de Derrida, seguir a experiência de uma desconstrução
de um modelo haptocêntrico que o filósofo trabalha sobretudo em Le toucher,
Jean-Luc Nancy, mas que não será o caso de desenvolver aqui, a não ser nos seus
pontos de ligação mais óbvios com a desconstrução do modelo ótico.

204
DERRIDA, J. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver p. 85.
113

Retomando a questão das mãos e dos cegos de Coypel, mais adiante,


Derrida compara a figura da obra O Erro 205 com a concepção do erro em
Descartes. O desenho de Coypel mostra um homem com os olhos vendados
exatamente na postura que aqui, para Derrida, representa os cegos: inclinado para
frente, cambaleante, com as mãos estendidas na frente do corpo tentando
reconhecer o espaço ou, talvez, tentando proteger-se da queda. Em suma,
aventurando-se para além da visão. Quanto a Descartes, Derrida explica que este
pensava o erro como uma vontade de “ir para além da visão”, como um “excesso
da vontade infinita em relação ao entendimento finito. Estou no erro, engano-me
porque, capaz de mover a minha vontade ao infinito e no próprio instante posso
querer ir para além da percepção, querer para além do ver.”206 Nos dois casos, no
desenho de Coypel e no conceito cartesiano, o erro consistiria na aventura do
pensamento ali onde não se vê. O que é preciso enxergar aqui é que o pensar, para
Derrida, está sempre no terreno da errância e, assim, da cegueira, porque não parte
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nunca da vontade soberana de um sujeito mas, ao contrário, parte sempre do apelo


de uma alteridade que ao eleger um pensador, como que venda-lhe os olhos,
exigindo-lhe uma resposta ali onde ele não vê ou não sabe. Portanto, mesmo se o
homem da figura de Coypel não é exatamente um cego, mas um homem vendado,
ele representa a figura deste eleito obrigado a responder, a duelar com a
invisibilidade da inspiração ou do modelo para traçar um caminho no escuro, para
inventar o desenho ou o pensamento. Assim, inscrever o pensamento no terreno
do erro seria, nesse sentido, apontar para uma desconstrução do modelo ótico e do
modelo teorético metafísicos que consignam o ver, o saber e o poder: “a vontade
de saber [savoir] como vontade de ver [voir] (...). Idein, eidos, idea: toda a
história, toda a semântica da ideia europeia, na sua genealogia grega, sabemo-lo,
vemo-lo, consigna o ver ao saber”207.
É esta relação entre o ver, o saber e o poder na tradição do pensamento
ocidental que esta tese pretende, não exatamente, dar conta, mas chamar atenção
para a urgência de sua desconstrução no sentido de repensá-la, reconhecendo,
agora, nesta relação, o caráter im-possível que impediria o tom dogmático do
pensamento, uma vez que questiona-se a autoridade do olhar e assume-se a sua

205
Cf. O Erro de Antoine Coypel no anexo 3 desta tese.
206
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 20
207
Ibid.
114

cegueira congênita. Acreditamos que a expressão pensar ver, como já dissemos,


aponta para essa desconstrução ressaltando a necessidade do pensar em outro
lugar, deslocando o pensamento da ideia, do eidos, do theoros, do logos
metafísico para um terreno da errância, do risco e da promessa.
Com isso não se trata, contudo, como poder-se-ia supor, de diminuir o
valor do pensamento, muito pelo contrário. É assim que o pensamento se
potencializa para além do logos, como aventura e invenção. A cegueira do traço
inscreve, ao mesmo tempo e aporeticamente, uma im-potência do pensamento e
do desenho, daquilo que se traça ou se re-traça. Assim, a cegueira desloca o
pensamento e o desenho do limite da visão e do saber para um terreno da errância,
daquilo que não tem confirmação possível, que não coincide, não se adequa, não
se encontra consigo mesmo fechando um circuito circular.
A cegueira de que Derrida nos fala aqui não seria, portanto, uma cegueira
oposta a uma visibilidade, mas uma cegueira constituinte e fonte de todo olhar. Se
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estamos acostumados a pensar na oposição e estranhar a concepção de uma


cegueira na própria visibilidade, Derrida lembra, contudo, que o tema de uma
visibilidade invisível é tão tradicional quanto moderna. Tradicional, porque ela
remonta a Platão e a Aristóteles. Como Derrida explica em À dessein le dessin,
para Platão,

A fonte de luz que torna as coisas aparentes e que, portanto, permite que o visível
apareça, a fonte de luz em si mesma não é visível. O que faz com que as coisas
sejam visíveis, logo a própria visibilidade do visível, não é visível, a luz não é
visível.208

Derrida segue explicando que, por isso, o que vemos são as coisas
luminosas, mas que, como Aristóteles defendia, a transparência, o diáfano não é
visível. Isto é, aquilo que permite que a própria visibilidade apareça não é visível.
E, ao mesmo tempo, Derrida insiste que este tema é também moderno porque
Merleau-Ponty defende em Le visible et l’invisible que o visível não se opõe ao
invisível: “que a invisibilidade não é um recurso da visibilidade, não é algo visível
em potencial; que há uma invisibilidade que estrutura o campo da visibilidade”209.

208
DERRIDA, J. “Com o desígnio, o desenho”. In: Pensar em não ver. p. 183.
209
Ibid.
115

Portanto, o que Derrida defende nesse pensamento do desenho a partir da


invisibilidade do traço é que

Não se vê a visibilidade do visível. O que faz com que seja num elemento de
algum modo noturno, de transparência não visível, que o visível aparece. Dizendo
de outro modo, nesse ponto, não há oposição entre o visível e o invisível, não se
vê a visibilidade pura. Portanto, não se vê a condição da visão210.

Assim, se em Memórias de cego Derrida insiste em relacionar a


experiência do desenho com a da cegueira, sem citar, contudo, um exemplo, na
história, de um desenhador que fosse cego – em contraposição a tantos exemplos
dados ao longo do texto de pensadores ou poetas nomeadamente cegos –, isto não
seria motivo para deixar de associar essa experiência do desenho com a cegueira,
já que, para ele, a experiência do traço do desenho – ele insiste não falar de
pintura, mas de desenho – liga-se a aspectos do impoder do olho. Um impoder
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que “dá o seu recurso quase-transcendental à experiência do desenho” 211 . Em


outras palavras, este impoder não é apenas uma falta de poder, mas um im-poder,
na sua aporeticidade, ao mesmo tempo, uma cegueira e uma visão no coração do
desenho. A aperspectiva do ato gráfico, isto é, a impossibilidade de enxergar o
traço presentemente, no seu momento de rompimento, seria um dos três aspectos
deste impoder do olho lançados por Derrida, condenando toda percepção à
memória e à invenção. Derrida explica a aperspectiva do ato gráfico como um
primeiro impoder do olho:

No seu momento de rompimento originário, na potência traçante do traço, no


instante em que a ponta na ponta da mão (...) avança para o contato com a
superfície, a inscrição do inscrevível não se vê. Improvisada ou não, a invenção
do traço não segue, não se regula pelo que é presentemente visível, e estaria ali
pousado, diante de mim, como um tema. Mesmo se o desenho é mimético,
como se diz, reprodutivo, figurativo, representativo, mesmo se o modelo está
presentemente diante do artista, é preciso que o traço proceda na noite. Ele
escapa ao campo da visão. Não somente porque não é ainda visível, mas
porque não pertence à ordem do espetáculo, da objetividade especular - e
aquilo então que ele faz advir não pode ser mimético em si. A heterogeneidade
permanece abissal entre a coisa desenhada e o traço desenhando, seja ele entre
uma coisa representada e a sua representação, o modelo e a imagem. A noite
deste abismo pode interpretar-se de duas maneiras, quer como a véspera ou a
memória do dia, por outras palavras, como uma reserva de visibilidade (o

210
DERRIDA, J. “Com o desígnio, o desenho”. In: Pensar em não ver. p. 183 - 184.
211
Id., Memórias de cego. p. 51.
116

desenhador não vê presentemente, mas viu e verá: a perspectiva é a perspectiva


antecipadora ou a retrospectiva anamnésica), quer como radical e
definitivamente estrangeira à fenomenalidade do dia.212

Este impoder do olho como aperspectiva do ato gráfico poderia ser


associado com o que já desenvolvemos no primeiro capítulo sobre a defesa
derridiana do pensamento como acontecimento, como aquilo que vem sem que
vejamos vir. Neste sentido, a aperspectiva do ato gráfico daria conta, justamente,
da relação do desenho com a irrupção imprevisível do que acontece. Nas palavras
de Derrida:

O momento em que isso traça, o movimento em que o desenho inventa, em que


ele se inventa, é um momento em que o desenhista é de algum modo cego, em
que ele não vê, ele não vê vir, ele é surpreendido pelo próprio traço que ele trilha,
pela trilha do traço, ele está cego. É um grande vidente, ou mesmo um visionário
que, enquanto desenha, se seu desenho constitui acontecimento, está cego.213
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O segundo aspecto do impoder do olho também diz respeito à


invisibilidade do traço: se a aperspectiva do traço diz de uma impossibilidade da
visão no momento exato do traçar, da impossibilidade de ver presentemente, o
segundo aspecto, diferentemente, aponta para uma invisibilidade depois do traço
traçado, como uma retirada ou um apagamento do próprio traço. Este segundo
impoder do olho ligado ao traço, seria o que Derrida chama do
retraimento/retraçamento do traço que, como já dissemos, salienta aquilo que
resta, como cinza, no resultado da obra. Além deste nome, Derrida chama-o
também de traço diferencial do desenho, já que o que se marca nele nunca é ele
mesmo, mas sempre uma diferencialidade, o próprio espaçamento do espaço.
Devido a importância do motivo da invisibilidade do traço em Memórias
de cego, permitimo-nos, neste ponto, citar três longos trechos parecidos sobre este
assunto, que se encontram, contudo, em três textos diferentes de Derrida. Sendo
um deles o próprio Memórias de cego, os outros dois – À dessein le dessin e
Penser à ne pas voir – como desdobramento, eco ou comentário ao primeiro,
trazem de volta, muitas vezes de forma mais assimilável, importantes pontos do

212
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 51- 52.
213
Id., “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 71.
117

texto principal do qual giram em torno. Portanto, em Memórias de Cego, Derrida


escreve:

Um traçado não se vê. Dever-se-ia não o ver (...) na medida em que, o que lhe
resta de espessura colorida, tende a extenuar-se para marcar a orla única de um
contorno: entre o dentro e o fora de uma figura. Alcançando este limite, nada
mais há a ver, nem mesmo o preto e branco, da figura/forma, e tal é o traço
[trait], eis aqui a própria linha: que portanto não é mais o que é, porque, desde
então, nunca mais ela se relaciona a si mesma sem imediatamente se dividir,
interrompendo aqui a divisibilidade do traço [trait] qualquer identificação pura, e
formando, ter-se-á sem dúvida agora compreendido, a nossa hipoteca geral para
com todo o pensamento do desenho, no limite de jure inacessível. Nunca este
limite é presentemente alcançado, mas sempre o desenho acena para esta
inacessibilidade, para o limiar onde não aparece senão o redor do traço, o que ele
espaça, delimitando-o e que portanto não lhe pertence. Nada pertence ao traço, e
portanto ao desenho e ao pensamento do desenho, nem mesmo o seu próprio
“rastro” [trace] (...). Ele não toca nem junta senão separando.214

Assim, se a invisibilidade do traço resta mesmo depois do traço traçado,


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isso não quer dizer que não haja no desenho algum tipo de visibilidade.
Naturalmente, o desenho dá a ver alguma coisa, mas o que Derrida pretende trazer
a esta discussão é a questão de como há nesta arte dita do visível uma experiência
singular de invisibilidade, na medida em que há no traço do desenho um
desligamento da ordem do saber, da propriedade e do pertencimento. Como o
rastro da escrita derridiana, o traço é aquilo que aponta sempre para o outro.
Afastando-se de si, ele traça para dar a ver outra coisa, nunca ele mesmo. Estando
entre o dentro e o fora que ele divide, ele é a própria divisão sem, contudo, poder
distinguir-se a si próprio. Sem identificação possível, o traço resta invisível,
impedindo e impossibilitando todo juízo, toda decisão. O pensamento do traço na
sua invisibilidade, escreve-se como pensamento da hipótese, sem confirmação de
si. O traço diferencial do desenho pode ser desdobrado no traço da escrita, como o
traço gráfico da “própria” différance, instituidora de diferenças e, por isso,
condição de possibilidade do que quer que se distinga, do que quer que apareça,
contudo, ela própria, nunca identificável, e por isso, invisível. Escutemos agora À
dessein le dessin:

O traço diferencial (...) é, naturalmente, o traço aparentemente visível que separa


dois grossos, ou duas superfícies, ou duas cores, mas que, enquanto traço

214
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 59 - 60.
118

diferencial, é o que permite toda identificação e toda percepção. Então, o traço


diferencial, metaforicamente, pode designar também aquilo que, no interior de
qualquer sistema, gráfico ou não, gráfico no sentido corrente ou não, institui
diferenças, por exemplo numa palavra ou numa frase (...), é aquilo que permite
opor o mesmo e o outro, o outro e outro, e distinguir. Mas o traço enquanto tal,
ele próprio enquanto traço diferencial, não existe, não tem grosso. (...) O rastro,
ou traço, designaria, entretanto (...), a diferença pura, a diacriticidade, o que faz
com que alguma coisa possa se determinar por oposição a outra coisa: o intervalo,
o espaçamento, o que separa. E então, o que separa – o intervalo, o espaçamento
– por si mesmo não é nada, não é nem inteligível, nem sensível, e na medida em
que não é nada, não está presente, remete sempre a outra coisa e,
consequentemente, não estando presente, não se dá a ver.215

Como que ecoando as duas citações acima, esta terceira, do texto Penser à
ne pas voir, inicia por ressaltar o fato de Derrida se referir sempre, quando fala da
invisibilidade do traço em Memórias de Cego, especificamente ao traço do
desenho e não da pintura:
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Falo do desenho mais do que da cor, uma vez que no desenho, na experiência do
desenho (ali onde ele se distingue até mesmo em meio à cor mais aparentemente
homogênea), está em jogo a experiência do traço, do rastro diferencial. É a
experiência do que vem colocar um limite entre espaços, tempos, figuras, cores,
tons, mas um limite que é ao mesmo tempo condição da visibilidade e invisível.
Naturalmente, há traços espessos, como se diz, traços que têm uma espessura de
visibilidade, um enorme traço negro, mas o que faz traço nesse enorme traço
negro não é sua espessura negra, mas a diferencialidade, o limite que, enquanto
limite, enquanto traço, não é visível. A operação de desenho não lida nem com o
inteligível nem com o sensível, e é por isso que ela é, de certa maneira, cega. Esse
enceguecimento não é uma enfermidade. É preciso ver no sentido corrente do
termo para desdobrar essas potências de cegueira.216

Estas três últimas citações de Derrida, como que repetindo-se, marcam a


invisibilidade da experiência do traço para a qual se quer chamar atenção em
Memórias de cego como uma interdição de toda experiência.
Como Derrida faz questão de ressaltar, a invisibilidade do traço não seria
aquela das sombras da caverna platônica da qual bastaria sair para dar-se a
enxergar melhor, pois, como já dissemos, para Derrida, se o traço é representação,
contudo, ele não é a sombra de uma presença anterior mas, ao contrário, denuncia
o caráter espectral da suposta presença de que ele é traço. Se a “presença”
precisou desdobrar-se em traço para guardar-se, para representar-se, é porque a

215
Id., “Com o desígnio, o desenho”. In: Pensar em não ver. p. 165 - 166.
216
DERRIDA, J. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 87.
119

sua presença não é realmente plena mas já, ao contrário, espectral. A


invisibilidade do traço não é, portanto, como em Platão, da ordem mais baixa de
uma hierarquia da visibilidade. Para esta invisibilidade derridiana, faltaria à
caverna de Platão a lucidez de que não se vê senão sombras, ou melhor, espectros
– já que a sombra, como a mímesis, pode fazer referência a uma presença primeira
e menos espectral da qual ela desvia-se. A espectralidade da invisibilidade
derridiana não é nem sensível nem inteligível. Confunde essa lógica opositiva da
metafísica platônica impossibilitando toda conversão para um outro tipo de
visibilidade que não reconheça um invisível em sua constituição intrínseca.
Derrida segue explicando:

No fundo, a maior generalidade da definição do traço, tal como ela vem me


interessando há muito tempo, é que no fundo ele dá tudo a ver, mas não é visto.
Ele dá a ver sem se dar a ver. E, portanto, a relação com o próprio traço – com o
traço sem espessura, com o traço absolutamente puro –, a relação com o próprio
traço é uma relação, uma experiência de enceguecimento.217
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Antes de partirmos para o desenvolvimento derridiano da manifestação da


experiência da cegueira no desenho, apresentamos o terceiro aspecto do impoder
do olho: aquilo que o filósofo chama a retórica do traço. Isto é, aquilo mesmo que
no traço do desenho, como o seu outro, chama a palavra: “Acaso não é o
retraimento [retrait] da linha, aquilo que a retira no momento em que o traço
[trait] se traça, o que deixa a palavra?”218. Este retraimento do traço como uma
retirada, mostra a necessidade de suplementariedade ali onde o dom da visão se
reconhece falho, pedindo, assim, o auxílio de uma narrativa, de um título ou de
uma legenda para complementar a experiência da obra. É justamente o
retraimento do traço, sua invisibilidade, que abre a chance de uma articulação na
diferença entre traço do desenho e traço do discurso. Veremos como a experiência
do autorretrato, por exemplo, nunca se faz longe dessa articulação entre obra e o
fora da obra que a confirma como autorretrato. A retórica do traço, como o último
aspecto do impoder do olho apresentado por Derrida, é aquilo que permite que se
fale em torno das obras. Mas, como Derrida sublinha: “Esta questão não visa
restaurar uma autoridade do dizer sobre o ver, da palavra sobre o desenho ou da

217
DERRIDA, J. “Com o desígnio, o desenho”. In: Pensar em não ver. p. 166.
218
Id., Memórias de cego. p. 62.
120

legenda sobre a inscrição. Trata-se antes de compreender como é que esta


hegemonia pôde impor-se.”219
Em seguida, percorreremos várias formas como Derrida explora estes
aspectos do impoder do olho na experiência do desenho.
No mesmo sentido do evento do escrever sem ver, narrado por Derrida,
quando se desenha, mesmo que se tenha o modelo à disposição, há que se fazer
uma escolha do ponto de vista: ou bem se olha para o modelo e não se vê o que se
está traçando, ou se olha para o desenho e perde-se o modelo de vista. Desse
modo, pode-se dizer que o traço está sempre em memória, endividado, num louco
desejo de guardar a singularidade da visão fantasmática. Assim, há, na origem
desse endividamento do traço, como estamos vendo, uma desconstrução da
percepção. Para Derrida, a percepção está já na ordem da recordação, e, portanto,
traz em si também o esquecimento. O traço é a marca deste ponto cego, desta
impossibilidade do olhar.
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Se é preciso fazer uma escolha do ponto de vista para traçar, é preciso


reconhecer uma impossibilidade mimética do desenho. Por mais fiel que se tente
representar um modelo, a memória como esquecimento, como acidente,
interrompe toda fidelidade. Toda visão funciona, para o filósofo, no que ele
chama de uma lei da entrevista. Isto é, uma visão que leva em conta a piscadela do
olho e que não pode ver senão no intervalo. A piscadela não é apenas o que priva
a vista, mas também o que permite ver, assim como todo sentido só pode se dar
nas falhas, nos brancos da escrita. Lembramos aqui a narrativa derridiana sobre a
doença do olho de que ele sofria quando foi convidado a montar a exposição no
Louvre. A doença que acabou por impor o tema da exposição, privava-o desse
piscar do olho que, ao invés de gerar uma visão plena, sem descontinuidade,
cegava-o por um excesso de visão sem interrupção. Entretanto, se partiu de uma
doença, de um acidente circunstancial que afetava a vista naquele momento,
Derrida assume que a experiência da cegueira de que trata a exposição não se
resume a esses casos acidentais que podem afetar a vista de vez em quando, mas
antes, a uma invisibilidade na origem do visível:

‘Antes’ de todas as ‘manchas cegas’ que, literal ou figurativamente, organizam o


campo escópico e a cena do desenho, ‘antes’ de tudo quanto pode acontecer à

219
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 62.
121

vista, ‘antes’ de todas as interpretações, as oftalmologias, as teo-psicanálises do


sacrifício ou da castração, haveria então o ritmo eclíptico do traço [trait], o
ciúme, a contracção abocular que dá a ver ‘a partir’ do invisto [invu].220

A piscadela do olho é o enxerto da diferença no meio da visão, que


condena o pensamento a um ritmo eclíptico, a se construir na descontinuidade, na
articulação de diferenças. Dessa forma, o traço, como a própria divisibilidade da
presença em representação, em fantasma, é testemunha desta disjunção do olhar.
E por isso, sua articulação não pretende, portanto, criar uma linearidade, um
contínuo do pensamento sem brechas. Pelo contrário, ela evidencia a
divisibilidade da linha. O traço da representação é a própria divisibilidade: ao
mesmo tempo, testemunho e despedida da visão do espectro que se deixou traçar.
Articulando e denunciando a disjunção do olhar, o traço liga separando o desenho
de sua inspiração irrepresentável.
A cegueira, como reconhecimento da alteridade na fonte e no
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endereçamento do pensamento, afirma a temporalidade anacrônica da


impossibilidade de ver presentemente. A desconstrução da pretensão de
presentificação do olhar não deixa de ser também uma desconstrução da soberania
do sujeito, já que, mostrando sempre como que um atraso ou um adianto, uma
dessincronia àquilo com que ele está em relação – mesmo que seja ele “próprio” –
ordena seu assujeitamento, seu arrebatamento pela alteridade a que está exposto,
afirmando, mais uma vez, toda experiência como paixão. Estar em relação é como
estar cego de paixão, cego pela dissimetria que o outro impõe como a irredutível
heteronomia de toda relação. Por isso, traçar como tentativa de costurar uma
relação ali onde a relação é sem relação, seria tecer uma declaração de amor à
invisibilidade do outro, seria endereçar-se ao outro no amor, no respeito à sua
separação, à sua distância, à sua impossibilidade de apropriação. É o que
percebemos na narrativa de Dibutade, frequentemente referida como a origem do
desenho 221 e que, como Derrida ressalta, já promoveria uma desconstrução da
mímesis ao ordenar a percepção à recordação.
Seguindo a narrativa de Derrida, Dibutade era uma jovem coríntia
apaixonada que, infeliz por ter de se separar do seu amado por alguns dias, traça

220
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 61.
221
Cf. no anexo 4 desta tese as cenas de Dibutade ou a Origem do desenho, pintadas por Joseph-
Benoit Suvée e por Jean-Baptiste Regnault.
122

num muro o contorno da sombra dele, guardando, assim, nesse traço de sombra,
não exatamente a presença do amado, mas a sua partida, a sua memória, nem
presença nem ausência. Nas palavras de Derrida:

Que Dibutade (...) siga então os traços de uma sombra ou de uma silhueta, que ela
desenha na superfície de um muro ou de um véu, em qualquer dos casos uma
skiagraphia, esta escrita da sombra, inaugura uma arte da cegueira. A percepção
pertence desde a origem à recordação. Ela escreve, logo ela ama já na nostalgia.
Desligada do presente da percepção, caída da própria coisa que assim se partilha,
uma sombra é uma memória simultânea, e a varinha de Dibutade é um bordão de
cego.222

Pensar a narrativa de Dibutade como a origem do desenho seria pensar o


amor na origem da obra, reconhecer que toda obra nasce da separação como uma
declaração de amor àquilo que inspirou e guiou, na distância, o traço. Nos dois
quadros escolhidos por Derrida para representar esta narrativa de Dibutade, o
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casal exposto não cruza o olhar um do outro. Esta troca de olhar impossível
representa a dissimetria da alteridade como a distância que apela o amor em toda
relação. Aqui, nesta narrativa, há uma relação do amor, do coração, com a
memória, já que Dibutade traça sem ver, como que de cor, de memória, de
coração, o contorno do amado. A origem do desenho como esta escrita da sombra,
esta skiagraphia, traçada pelas mãos de uma mulher cega de paixão ressalta o
ponto cego como origem da obra. Como já dissemos, um desenhador nunca vê
presentemente o modelo que desenha, ele traça sempre de memória. Dibutade não
traça aqui a partir do modelo, mas já de sua sombra, dessa memória simultânea, já
um rastro da presença do amado, “como se ver fosse interdito para desenhar,
como se não se desenhasse senão na condição de não se ver, como se o desenho
fosse uma declaração de amor destinada à invisibilidade do outro”223.
Como a declaração de amor traçada no escuro de Diderot a Sophie Voland,
Derrida parece entender que todo traçar e por isso toda obra, todo pensamento, é
sempre destinado a uma singularidade, à singularidade da alteridade que inspirou.
Assim, toda obra é a tentativa de fazer justiça, de alcançar e fazer falar a
inspiração que visitou, mas que, de um só golpe, se retirou para a sua distância
desconhecida sem se deixar apropriar plenamente. Toda obra, todo traço é a ruína,

222
DERRIDA. J. Memórias de cego. p. 56.
223
Ibid., p. 56.
123

a restância, a cinza ou a memória do evento único da visita da alteridade


inspiradora. Como Fernanda Bernardo argumenta, o artista ou o pensador é um
melancólico apaixonado que tenta desesperadamente guardar no traço a memória
deste acontecimento perdido.224
Reconhecendo, portanto, o caráter espectral da visão, toda inscrição parece
querer dar graças a esse dom e ao mesmo tempo à sua falha. A escrita, o registro
do traço, aparece como que para agradecer o dom do olhar, reconhecendo, ao
mesmo tempo, sua fragilidade. É o que propomos na leitura do trecho de
Memórias de cego sobre a ordenação do anjo Rafael para que se escreva a
narrativa do livro de Tobite no Velho Testamento. Depois de guiar Tobias na
recuperação da visão de seu pai, a aparição do anjo Rafael, ordena que se escreva
esta história como que para agradecer o dom recebido: “é preciso inscrever a
memória do evento para dar graças” 225. É o que os desenhos selecionados por
Derrida parecem fazer ao narrar esta cena.
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Arquivo da narrativa, a história escrita dá graças, como o farão todos os


desenhos que mergulharão na narrativa. Na descendência gráfica, do livro ao
desenho, trata-se menos de dizer o que é tal como é, de descrever ou de constatar
o que se vê (percepção ou visão) do que de observar a lei para além da vista, de
ordenar a verdade à dívida, de dar graças ao mesmo tempo ao dom e à falta, ao
devido, à falha [la faille] do ‘é preciso’ [‘il faut’], seja ele o ‘é preciso’ [‘il faut’]
do ‘é preciso ver’ [‘il faut voir’] ou de um ‘resta ver’ [‘il reste à voir’] que conota
ao mesmo tempo a superabundância e a fraqueza [défaillance] do visível, o
demasiado e o demasiado pouco, o excesso e a falência [faillite]. O que guia a
ponta gráfica, a caneta, o lápis ou o escalpelo, é a observação respeitosa de um
mandamento, o reconhecimento antes do conhecimento, a gratidão do receber
antes do ver, a benção antes do saber.226

A impossibilidade da visão se apresenta como a própria possibilidade da


escrita, do traço, do registro. Se as coisas realmente aparecessem, plenamente
presentificadas, não seria preciso representá-las, registrar a memória delas. Elas
seriam seu próprio registro, seu próprio arquivo e não permitiriam seu
desdobramento no traço. O traço denuncia, então, o caráter espectral de toda
presença, ele é o registro da impropriedade de toda presença, mostrando, portanto,
como o que deixa marca, o que inscreve, nunca é exatamente a coisa como tal,

224
Fernanda Bernardo seminário sobre Memórias de cego na Universidade de Coimbra no
Segundo semestre de 2012.
225
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 36.
226
Ibid., p. 36 - 37.
124

mas um certo espectro, nem presença nem ausência, que exige registro, memória e
invenção.
Reconhecer que o traço marca mais a ausência do que a presença do outro
seria reconhecer também, ao lado do agradecimento, o luto em todo traçar. Se o
agradecimento no traço festeja a vinda, o toque da inspiração, a “aparição
invisível” do outro – como a aparição do anjo Rafael –, por outro lado e
aporeticamente, o luto no traço faz derramar lágrimas pelo que é já sempre apenas
o resto dessa visita, pelo que é já despedida em memória do que aconteceu. Esta
aporia, como condição de toda obra é que marca a experiência artística (como
aliás toda experiência) – seja do ponto de vista do artista, seja do ponto de vista do
espectador – como uma experiência inexperimentada, uma experiência interdita,
barrada. Mas lembramos novamente que a im-possibilidade da experiência não
pode ser considerada negativamente, porque é justamente a interdição de
apropriação do outro que faz com que tenhamos de inventar, de responder ao
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apelo da alteridade que nos toca e escapa, sem previsão.


Derrida sugere que o estilo de um artista, aquilo que nele repete-se de obra
em obra é justamente a insistência para capturar a inspiração que, contudo, não se
deixa marcar no traço. Ou melhor, o estilo seria aquilo que marca-se como o
retraimento ou a invisibilidade do traço, o que não se dá a ver, embora insista e
continue a assombrar o artista, ao mesmo tempo como inspiração e interdição, não
deixando-o parar de trabalhar ou satisfazer-se numa obra pronta. Derrida
pergunta-se: “Quanto ao ‘grande desenhador’, (...), não procura ele também em
vão, até o esgotamento de um ductus ou de um estilo, capturar este retraimento do
traço [retrait du trait], remarcá-lo, assiná-lo finalmente – numa escarificação sem
fim?”227
Isto que marca o estilo como uma obsessão do artista, como aquilo que
sempre retorna para assombrá-lo, pode ser traduzido como o ponto cego da obra,
sua origem invisível, arruinada. Aquilo que foi sua inspiração, mas que permanece
na obra como o que não se deixa apropriar. Dessa forma, esse ponto cego, como a
origem da obra, mas ao mesmo tempo, como o que não se deu à visibilidade do
artista, é também aquilo que “cega” o espectador, no sentido em que torna a obra
inapropriável também para ele. Este ponto cego, por parte do espectador, é

227
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 61.
125

justamente aquilo que torna impossível contemplá-la, visioná-la plenamente e, por


isso, teorizar sobre ela. É esta cegueira que impede aqui o ver e o saber em relação
à obra. Pois, se ela nasceu de um ponto invisto e ignoto, de um segredo para o
artista, ela não pode, pelo mesmo motivo, deixar-se apropriar, conceitualizar pelo
espectador, seja ele um expert da arte ou um amante contemplador.
Percebemos, então, que propor uma cegueira ou uma invisibilidade como
origem da obra desconstrói um suposto privilégio da posição do artista com
respeito a do espectador em relação a ela. Pois, para Derrida, na experiência
artística, o artista também está na posição de espectador diante de uma alteridade
absoluta como inspiração da obra. É só nessa condição de uma experiência de
cegueira originária que o artista faz obra. Portanto, o artista não detém uma
autoridade sobre a obra que, ao contrário, é negada ao espectador. A obra é marca
de uma experiência de interdição para o artista e que é repassada adiante para o
espectador. A obra é o resto ou o resultado dessa experiência de cegueira do
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artista como espectador do mundo. As experiências tanto de um como de outro


partem da mesma cegueira diante do mundo, diante de qualquer alteridade que os
fascine. Para o artista, o fascínio está na alteridade inspiradora que ele quer
colocar em obra e, para o espectador, o fascínio está na obra como resto da
experiência do artista que, por sua vez, também o fascina, podendo inspirar outras
obras.
Uma vez que assumimos nossa condição de herdeiros, uma vez que
assumimos o nosso atraso em relação a qualquer origem, não pode haver uma
diferença hierárquica do ponto de vista de quem faz e de quem recebe a obra, já
que a obra vem também de uma alteridade anterior, de uma experiência
impossível de percepção do artista. A experiência de cegueira de um espectador
diante de uma obra espelha, reflete, a experiência de cegueira do artista diante da
inspiração. Este é o mise en abyme, ou o rastro do passado absoluto de khôra que
coloca artista e espectador diante da mesma impossibilidade da origem. A
experiência da obra de arte dita “do visível”, seja do ponto de vista do artista, seja
do ponto de vista do espectador, é a mesma experiência de invisibilidade. O artista
e o espectador se alternam nesse espelhamento em abismo.
Podemos nos perguntar: porque a obra de arte exerce sobre nós esse
fascínio que faz com que se queira apropriá-la, girar em torno dela? A partir do
ponto de vista de Derrida, acreditamos que esse valor venha do seu ponto cego,
126

isto é, daquilo que na obra marca-se como “algo” inapropriável. A invisibilidade é


a testemunha da heteronomia a que estamos condenados em toda relação, como
marca do desconhecimento, do mistério, do segredo não revelável que é a relação
com o outro, com tudo o que vem, nos arrebata e pede uma resposta. Nesse
sentido, o nosso fascínio é tanto maior quanto a invisibilidade se marca na obra
como registro de sua im-possibilidade porque, segundo Derrida:

Os desenhistas, os pintores, não dão a ver “alguma coisa”, sobretudo os grandes;


eles dão a ver a visibilidade, o que é uma coisa completamente diferente,
absolutamente irredutível ao visível, que permanece invisível. Quando se fica
sem ar diante de um desenho ou de uma pintura, é porque não se vê nada; o que
se vê essencialmente não é o que se vê, mas imediatamente a visibilidade. E,
portanto, o invisível.228

Portanto, não há nada a ver na obra de arte. Quando ficamos sem ar diante
de uma obra é porque o que ela nos dá a ver é este nada a ver que nos rouba as
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palavras, que nos deixa de boca aberta, nos desestabiliza. Talvez, porque ela erga
diante de nós o segredo sem segredo da nossa origem fugidia, desconhecida, o
mistério e a distância da alteridade a que estamos votados a nos relacionar sem,
contudo, realmente, entrar em contato com ela.
Da perspectiva do espectador, este ponto cego na obra pode ser
interpretado também como uma espécie de olho da própria obra que, embora
invisível, observa o espectador, invertendo a cena do espetáculo e inscrevendo
uma dissimetria irredutível em toda relação com ela229. Uma vez que o olhar da
obra é sem troca possível, uma vez que ele observa sem ser visto, sem cruzar, hora
nenhuma, com o olhar do espectador, marca-se uma espécie de elevação da obra
que diria da sua impossibilidade de apropriação. Visto pela obra, o espectador é
como que enceguecido por ela. Derrida confessa não ser o único a defender esse
ponto de vista230:

228
DERRIDA, J. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 82.
229
Como o quadro Olho com papoula, de Odilon Redon, que integra a exposição de Derrida e que
está no anexo 5 desta tese.
230
Esta ideia de que somos olhados por aquilo que julgamos ver é explorada por Didi-Huberman
no livro Ce que nous voyons, ce que nous regarde. Paris: Les Éditions de Minuit, 1992. Traduzido
no Brasil sob o título: O que vemos, o que nos olha. Tradução: Paulo Neves. São Paulo: Editora
34, 1998.
127

Tornou-se um lugar comum: diz-se que, na pintura, uma dissimetria irredutível


faz com que, diante de um quadro, não olhemos, sejamos olhados, mesmo que o
quadro não seja um retrato ou um rosto, mesmo que seja a montanha Sainte-
Victoire: somos olhados pela montanha Sainte-Victoire; e isso nos olha e nos
concerne231.232

Assim, este olhar da obra, como o seu ponto cego, como aquilo que nela
diz da sua invisibilidade, da sua impossibilidade de apropriação e de
conhecimento, pode ser observado também na especularidade em abismo narrada
por Derrida no momento do artista traçar um autorretrato. Diante de um espelho
para desenhar-se, o signatário da obra, “ao olhar-se ver, ele vê-se igualmente a
desaparecer no momento em que o desenho tenta desesperadamente apossar-se
dele.”233 Por isso, todo autorretrato é também um mostrar-se como cego, como
cego vidente que o desenhador é ao desenhar. E nesse ponto, percebemos outra
dimensão do título da exposição de Derrida, dado que as memórias de cego não
são apenas suas memórias em relação à experiência do desenho, mas também,
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como ele explica: “os autorretratos dos desenhistas fazendo a experiência de


algum modo alucinada, vertiginosa, do seu próprio enceguecimento, do fato de
que eles veem na própria medida em que não conseguem ver, que não conseguem
se ver.”234
Assim, se esta cegueira do desenhador marca-se em toda obra como o seu
ponto cego, segundo Derrida, nos autorretratos, este ponto cego aparece no
próprio olho do desenhador-modelo como um olho vazado, alucinado pela
impossibilidade de ver-se olhar. É o que o filósofo enxerga no autorretrato de
Fantin-Latour235 que ilustra a capa de Mémoires d’aveugle e que, como Michael
Naas e Pascale-Anne Brault observam236, pode-se pensar como o próprio retrato
de Derrida no percurso dessa exposição. Pois, se lembramos de como Derrida

231
Na nota de tradução da edição brasileira do livro Pensar em não ver para esta frase, cujo
original é “et ça nous regarde à tous les sens du terme”, o tradutor explicita o duplo sentido do
verbo “regarder” podendo ser entendido tanto quanto olhar como quanto concernir. In: Pensar em
não ver. Por isso, para Derrida, aquilo que nos olha é o que nos concerne. É importante ressaltar
que esse duplo sentido é também referenciado no título do livro de Didi-Huberman citado na nota
anterior.
232
DERRIDA, J. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 82 - 83.
233
Id., Memórias de cego. p. 63.
234
Id., “Com o desígnio, o desenho”. In: Pensar em não ver. p. 184.
235
Cf. o autorretrato de Fantin-Latour no anexo 6 desta tese.
236
Permitimo-nos citar Michael Naas e Pascale-Anne Brault: “como se o auto-retrato de Fantin-
Latour reproduzido na capa do livro fosse para Derrida um emblema para a sua própria doença de
olho como ele conta ao longo do livro. In: To believe: an intransitive verb? Translating skepticism
in Jacques Derrida’s Memoirs of the blind. p. 8. Tradução minha.
128

descreve a sua doença da paralisia do rosto que o deixava com um olho cego, fixo,
alucinado, sem a piscadela da pálpebra, reconhecemos a mesma descrição
derridiana sobre este autorretrato de Fantin-Latour:

A fixidez monocular de um ciclope narciso: um único olho aberto, o direito, e


firmemente fixado na sua própria imagem. (...) O olho fixo parece-se sempre com
um olho de cego, por vezes com o olho do morto, no preciso momento em que o
luto começa (...). Vendo o vidente e não o visível, ele não vê nada. Este vidente
vê-se cego.237

Assim, se Derrida assume-se como o cego do qual este texto é a narrativa,


seu autorretrato, percebemos também, como este desdobramento do título da
exposição acaba por dizer como todo autorretrato é sempre uma memória de cego,
já que é sempre feito por alguém que não pode se ver ver, que não pode se
desdobrar em traço a não ser como cego. Ninguém pode se traçar, se descrever a
si mesmo, sem cegar-se nesta operação238. Michael Naas explica:
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Quando um artista tenta se desenhar, por exemplo, torna-se ainda mais claro que
ele não pode ao mesmo tempo se ver e se desenhar em vias de se ver em um
espelho, que ele não pode se desenhar em vias de se desenhar sem se olhar em
um espelho onde ele não está em vias de se desenhar. Isso que nós chamamos um
autorretrato é, portanto, sempre atravessado pelo invisível e não encontra nunca
ele mesmo num processo de identificação. A invisibilidade cruza a visibilidade
assim como a ruína mina o autorretrato que não pode nunca se apresentar como
tal. A inevitável cegueira entre o desenhador e seu tema atinge o próprio
desenhador no interior mesmo do seu auto-retrato (...). A fim de se representar, o
artista se mergulha na noite do retrato onde a visão deve ceder à memória e o
estatuto do autorretrato começa a tremer.239

Portanto, o que aparece aqui como a impossibilidade do autorretrato é a


própria impossibilidade da relação a si. Uma impossibilidade que divide o artista
em modelo e em espectador de si como outro, fazendo de todo suposto auto-
retrato um hetero-retrato ou um autorretrato alegórico, um retrato de si como
outro.

237
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 63.
238
Esta ideia não vale apenas para os desenhos de autorretrato, mas também para os
“autorretratos” escritos, isto é, para as chamadas autobiografias, que seriam também sempre uma
autobiografia de cego e, por isso, alegóricas ou heterobiografias.
239
NAAS, Michael. La nuit du dessin: foi et savoir dans Mémoires d’aveugle de Jacques Derrida.
p. 6. Tradução minha.
129

Há ainda uma outra explicação para a cegueira do artista nesta experiência


de traçar o autorretrato. Uma outra explicação que reenvia a Platão. Pois, se para o
filósofo grego não podemos ver a fonte do visível, a própria visibilidade, para
Derrida, não podemos ver os olhos videntes. Assim, ao tentar ver seus olhos
videntes, isto é, ao tentar ver-se vendo a si mesmo desenhar-se, o desenhador
cega-se. Derrida lembra como Platão compara, na República, o sol (aquilo que
ilumina todas as coisas) aos olhos, “o mais helioforme dos órgãos sensíveis”.
Derrida explica:

Quando olho alguém nos olhos – apelo aqui para a experiência de cada um –,
preciso escolher entre olhar os olhos vistos do outro e olhar os olhos videntes do
outro. Não posso olhar os olhos do outro como ao mesmo tempo vistos e videntes
(...), como visíveis e olhadores. Se os vejo como visíveis, torno-me de algum
modo cego à sua vidência. (...). Sabemos muito bem que os olhos que olhamos e
que são visíveis são também olhos videntes. Sabemos muito bem disso, mas não
os vemos simultaneamente como videntes e visíveis. É a mesma perturbação
diante do espelho. Na experiência do espelho, essa indecisão aflora. Quando nos
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olhamos em um espelho, devemos escolher entre olhar a cor dos nossos olhos e
olhar o fluxo, o influxo do olhar que se olha com todos os paradoxos do
autorretrato.240

Portanto, diante do espelho, olhando-se olhar-se, o desenhador só pode


assumir-se como cego neste autorretrato: seu olho fixo, ciclópico, fica marcado na
obra como o seu ponto cego, sua im-possibilidade. Se este olho alucinado do
retratado lembra também o olho de um morto é porque este ponto cego, que
Derrida chama por vezes de ponto-fonte241 é, ao mesmo tempo, a origem e a ruína
da obra, o seu luto. Se o auto-retrato só pode traçar-se como um hetero-retrato,
isto deve-se a esse enceguecimento especular que inscreve a origem da obra como
invenção ali onde o desenhador não pode ver-se ver e, por isso, não pode
reproduzir-se fielmente, mas apenas inventar-se como outro, representar-se – no
sentido em que esta palavra ganha, por exemplo, no teatro – como uma encenação
que marca o desvio, a distância em relação ao modelo que, no entanto, seria ele

240
DERRIDA, J. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 72.
241
Sobre a aporeticidade da expressão francesa point-source, permitimo-nos citar a nota de
tradução de Fernanda Bernardo em Memórias de cego: “indecidibilidade com que o filósofo joga
para referir o aparecer desaparecente da origem ou da fonte do desenho: a ‘origem arruinada’ ou
‘em abismo’ que está justamente na origem da retirada ou do re-traimento/re-traçamento do
traço.” Em Memórias de cego. p. 62.
130

mesmo: “Toda e qualquer simetria está rompida, entre ele e ele, entre ele, o
espetáculo, e o espectador que ele é também. Não há mais do que espectros”242.
Podemos pensar que se Derrida chama, por vezes, este ponto cego da obra
de ponto-fonte, é para nos lembrar que este luto, esta ruína da obra não lhe
acontece como um acidente, como uma crítica ao desvio da mímesis que afasta da
presença, do original, mas, justamente ao contrário, é esta experiência ruinosa de
enceguecimento que abre a chance da obra, que lhe dá possibilidade: “Esta
dimensão de simulacro ruinoso nunca ameaçou, antes pelo contrário, o
surgimento de uma obra” 243 . É por isso que em certo ponto do texto e da
exposição, Derrida apresenta o tema da ruína também como uma ilustração da
cegueira. Para o filósofo, também os temas de ruínas no desenho diriam dessa
origem invisível como sua condição transcendental. Por isso, os desenhos de
ruínas, assim como os desenhos que tematizam a cegueira, também podem ser
considerados autorretratos do desenho 244 . Pois, a ruína é desde o início, a
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condição de im-possibilidade da obra:

A ruína não sobrevém como um acidente a um monumento ontem intacto. No


começo há a ruína. Ruína é o que acontece à imagem desde o primeiro olhar.
Ruína é o auto-retrato, este rosto fitado ou desfigurado como memória de si, o
que resta ou retorna como um espectro desde que, ao primeiro olhar sobre si
lançado, uma figuração se eclipsa.245

O ponto fonte, como a origem arruinada da obra, pode se referir também à


outra fonte ruinosa ou enceguecedora do olho, a saber, a fonte das lágrimas que
velando os olhos no choro, trazem a dúvida para a visão e deslocam o ver para o
pensar ver. No final de Memórias de cego, Derrida traz o motivo das lágrimas
para problematizar a visão como o próprio do olho nos homens. Citando um
poema de Marvell246 em que os olhos teriam sido feitos para chorar mais do que

242
DERRIDA, J. Memórias de Cego. p. 71.
243
DERRIDA, J. Memórias de Cego.p. 70.
244
Cf. no anexo 7 desta tese, As ruínas do coliseu de Roma, de François Stella, que integra a
exposição de Derrida como um autorretrato do desenho.
245
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 71.
246
Citamos a tradução de Fernanda Bernardo para o trecho do poema de Marvell citado por
Derrida: “Como foi sábia a Natureza ao destinar, / Às lágrimas e à vista os mesmos olhos! / Para
que, vista a vanidade do objecto, / Estejamos prontos a lamentar-nos […] Abri então, meus olhos,
a vossa dupla represa, / E realizai assim o vosso mais nobre uso; / Porque, se também outros
podem ver, ou dormir, / Só olhos humanos podem chorar. […] Deixai pois a torrente transbordar a
131

para ver, Derrida defende este ponto de vista lacrimejante para desconstruir a
dogmaticidade do modelo ótico em que a visão é equacionada ao saber e ao poder
para relacioná-la, antes, à imploração e à prece. Citamos Derrida:

se as lágrimas vêm aos olhos, se elas podem então também velar a vista, talvez
elas revelem, no próprio decurso desta experiência, nesse curso de água, uma
essência do olho (...). No fundo, no fundo do olho, este não seria destinado a ver
mas a chorar. No exacto momento em que velam a vista, as lágrimas desvelariam
o próprio do olho (...): ter em vista a imploração mais do que a visão, endereçar a
prece, o amor, a alegria, a tristeza, mais do que o olhar. (...) Se os olhos de todos
os animais são destinados à visão, e talvez por isso ao saber escópico do animal
racional, apenas o homem sabe ir além do ver e do saber, porque só ele sabe
chorar. (...) A essência do olho é o próprio do homem. Contrariamente ao que se
crê saber, o melhor ponto de vista (o ponto de vista [point de vue] terá sido o
nosso tema) é um ponto fonte [point source] e um ponto de água [point d’eau] –
vem a ser as lágrimas.247

Assim, o choro como o próprio dos olhos desconstrói uma dogmaticidade


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filosófica que se pode verificar em vários níveis. Primeiramente, e mais


explicitamente, este enceguecimento é uma desconstrução da autoridade da visão.
Mas, decorrente deste primeiro nível, poderíamos identificar aí ainda um abalo da
postura falo-logocênctrica do pensamento. Pois, como Derrida defende ao longo
do livro, há vários exemplos de cegos ilustres, pensadores, ou escritores que, uma
vez privados da visão, foram como que convertidos a uma luz interior que os teria
permitido escrever ainda mais, ainda melhor. No entanto, nessa relação da visão
com o saber, com o pensamento, não há nunca o exemplo de cegas ilustres, de
escritoras ou pensadoras cegas. Como se a experiência dessa conversão a uma
visibilidade inteligível, proporcionada pelo enceguecimento, dogmaticamente,
fosse uma experiência de homens. Mas Derrida, justamente no momento de falar
de uma propriedade do olho do humano, deslocando a sua essência da visão para
o choro, desloca também o exemplo do homem, do humano, para a figura
feminina, já que na nossa tradição cultural, as mulheres é que são vinculadas mais
diretamente ao choro. Nesse sentido, o tema das lágrimas é também um abalo do
caráter falocênctrico da dogmaticidade metafísica.

sua fonte, / até que olhos e lágrimas sejam a mesma coisa: / E cada um a diferença do outro porte/
Estes olhos chorosos, estas lágrimas videntes.” In: Memórias de cego. p. 132.
247
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 130.
132

O tema das lágrimas no final de Memórias de cego mostra como a


percepção está ordenada a uma invisibilidade que lhe é anterior. Reconhecer as
lágrimas como a essência dos olhos é reconhecer a anterioridade de uma
invisibilidade em relação à visibilidade, é reconhecer que toda visão é recebida do
outro como um dom e, por isso, ela está ordenada a dívida, à súplica e ao
agradecimento ou ao reconhecimento. Assim, antes de poder ver, os olhos estão
carregados de lágrimas implorantes por esse dom, o dom de ver como o dom de
saber e conhecer.
É nesse sentido que Michael Naas defende que há em Memórias de cego,
como que uma progressão da invisibilidade da ordem do ceticismo para a ordem
da crença. Segundo Naas, este percurso da dúvida da visão como a inserção de
uma dúvida no pensamento, progride, no texto de Derrida, para a necessidade do
reconhecimento de que todo saber, todo conhecimento, origina-se num ato de fé.
Um ato de fé que não tem a ver com nenhuma religião, mas que é a condição para
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o pensamento, para a relação com o outro, já que é a possibilidade de fiabilidade


na palavra, como o que se recebe do outro. Na explicação de Naas:

Mémoires d’aveugle é certamente, antes de tudo, um testemunho (...) da fé que


torna possível toda palavra como testemunho. Num texto escrito quatro anos
depois de Mémoires d’aveugle e intitulado justamente “Foi et Savoir”, Derrida
sustenta que uma fé elementar é a condição de todo testemunho e de toda
memória. Cada vez que se fala, mesmo para contar anedotas ou lembranças as
mais banais – o ciúmes de um irmão, a narrativa de uma doença ocular que
ameaçou uma exposição – é como se dissesse sempre “acredite naquilo que eu
digo como se acredita em um milagre”. Não há aqui, é preciso sublinhar, nada de
místico ou de mistificante. Pois é preciso sempre, Derrida volta a isso sem cessar,
avaliar, criticar e questionar o que se diz, o que se revela no espaço público e na
luz do dia. Mas no que concerne essa abertura ao que se diz, esta abertura de um
mundo ou do mundo, essa condição transcendental, esta mancha cega que o outro
é e deve sempre permanecer [rester] para mim, é preciso confiar e acreditar
como se acredita num milagre. É preciso, portanto, nunca abandonar o saber, mas
é preciso saber que uma certa fé é sempre a condição de todo saber.248

Acreditamos que o ceticismo, a dúvida que inicia o livro indica uma forma
desconstrutiva de se posicionar no pensamento marcando uma diferença em
relação a uma postura metafísica. Para Derrida, o pensamento metafísico, partindo
da certeza da presença de um sentido como garantia do saber, estaria enclausurado

248
NAAS, Michael. La nuit du dessin: foi et savoir dans Mémoires d’aveugle de Jacques Derrida.
p. 10. Tradução minha.
133

numa ilusão. Enxergar esta clausura do pensamento metafísico seria desconstruir,


questionar, duvidar, fazer o luto da presença do sentido e admitir que ela não
passa de uma crença não assumida como tal, no desejo de equacionar o
pensamento ao poder. Assim, assumir uma crença ou uma fé na origem do
pensamento seria deslocar a ordem do saber para um terreno mais instável, seria
assumir o pensamento como uma relação com o que não está presente, seria
assumir a necessidade de traçar uma relação sem relação com o que não se vê,
seria deslocar a “propriedade” do olho da visão para o choro, traçando um retrato
do pensador ou da pensadora com os olhos velados de lágrimas, implorando ou
agradecendo a visitação de uma alteridade249 que, no entanto, não se deixa ver
propriamente, mas faz pensar ver.
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2.3.
Os debaixos das artes

Para estender ainda um pouco o tema da invisibilidade da experiência


artística em geral, gostaríamos de abrir um pequeno trecho para nos dedicarmos
àquilo que Derrida reconhece por baixo das obras de arte, como seu suporte ou
subjétil e que nós “esquecemos, negligenciamos, deixamos em segundo plano”250,
tomando por evidente. É o mesmo que fazemos em relação à moldura, ao
parergon, “que, por encontrar-se mais em torno do que debaixo, não deixa,
contudo, de tender também a ser esquecida, lateralizada, deixada em segundo
plano, denegada”251. Enfim, gostaríamos de falar de algo que nos chega, segundo
Derrida, por baixo da experiência artística, como uma hipótese ou uma suposição
e que se mantém como que invisível nessa experiência. Pois, como o filósofo
explica em Les dessous,

249
Como a “chorosa” de Daniele de Volterra que encerra o livro de Derrida. Cf. o anexo 8 desta
tese.
250
DERRIDA, J. “Os debaixos da pintura, da escrita e do desenho: suporte, substância, sujeito,
sequaz e suplício”. In: Pensar em não ver. p. 285.
251
Ibid.
134

Uma hipótese (palavra de origem grega) ou uma suposição (palavra de origem


latina) (...), é o que colocamos debaixo. A tese, a thêsis, em grego é o que se põe,
o que se coloca, é, diríamos em latim, uma posição, uma colocação, e uma
hipótese, uma suposição, é o que se antecipa quando o pomos, quando o
colocamos pelo lado de baixo, debaixo, no debaixo.252

A ideia de subjétil é desenvolvida por Derrida a partir da obra de Antonin


Artaud e, apesar de não ser uma palavra inventada pelo artista francês, apesar de
Derrida reconhecer algumas poucas referências a ela como o suporte da obra já
antes de Artaud, contudo, o filósofo argumenta que o artista ressuscitou, reativou
este vocábulo, o “fez sair dos debaixos da memória da língua, onde ele dormia
como uma múmia...”253.
Não será o caso, nesta tese, de acompanhar o desenvolvimento da leitura
derridiana da obra de Artaud em Forcener le subjectile254, mas apenas de dar a
pensar esta palavra subjétil naquilo em que ela aponta para uma invisibilidade da
experiência artística. Pensaremos o subjétil como o que, por baixo, como suporte
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da obra, não pode ser reduzido ao material ou à substância que a sustenta. É


preciso que o entendamos na mesma dimensão de khôra que, apesar de designar o
suporte ou o receptáculo, não se deixa apreender por eles. O subjétil dá lugar à
obra sem se dar, ele mesmo, à obra. Recebendo o outro, tanto o subjétil como
khôra abrem espaço ao que pretende se apresentar sem apresentarem-se eles
mesmos.
Acreditamos que assim como a questão do parergon, a ideia de subjétil,
em Derrida, desloca o pensamento da arte da questão do sentido. Como aquilo que
está debaixo, o subjétil não pertenceria ao “dentro” da obra. Para as estéticas
tradicionais, se a moldura é apenas o ornamento acessório, o subjétil é apenas um
suporte sem valor artístico. Mas o ponto de vista de Derrida desloca o olhar
tradicional da arte do centro para o seu entorno, para o que seria invisível ao olhar
do especialista. O que o parergon tem em comum com o subjétil é a
invisibilidade, o fato de serem ambos, para o olhar estético, “ignorados,
desconhecidos, recalcados, denegados” ao passo que, para Derrida, “a obra não

252
Ibid., p. 281.
253
DERRIDA, J. “Os debaixos da pintura, da escrita e do desenho: suporte, substância, sujeito,
sequaz e suplício”. In: Pensar em não ver. p. 286.
254
DERRIDA, J; THÉVENIN, Paule. Forcener le subjectile. Étude pour les dessins et portraits
d’Antonin Artaud. Paris: Gallimard, Munich: Schirmer/Mosel Verlag Gmgh, 1986.
135

seria nada sem eles.”255 Portanto, do ponto de vista derridiano – assumido na sua
cegueira, mas também atento ao que comumente passa despercebido, como
invisibilidade – o subjétil aponta para “aquilo que, em uma obra, não suporta a
perda do suporte.”256 Ou seja, o subjétil está ligado ao corpo da obra como o que
lhe confere não uma unidade, mas uma unicidade, uma singularidade, uma
raridade, em suma, um valor, uma sacralidade artística.
Assim, o debaixo da obra é tão importante quanto o seu em cima, a sua
superfície: a representação, o traço, a cor, cuja visibilidade somente se dá a partir
de um trabalho no suporte. É a indissociabilidade, a indecidibilidade entre o
debaixo e o em cima que garante o cuidado, a veneração, “a guarda zelosa do que
na obra não se reduz à superfície ou ao em cima visível ou legível da forma ou da
representação.”257 Para Derrida,

Há obra ali onde há unicidade e singularidade, insubstituibilidade, não


reprodutibilidade, isto é, ali onde o que se impõe, o que faz a lei, é a
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indissociabilidade, a irredutibilidade do debaixo como corpo, ali onde essa


impossibilidade, ou mesmo essa interdição de tocar no corpo do suporte (para
neutralizá-lo, destruí-lo, substituí-lo, reproduzi-lo, dissociá-lo), ali onde esse não
poder ou esse não dever-tocar no corpo do suporte, ali onde esse dever-não-tocar
no corpo do suporte, esse tato, esse respeito absoluto, é o próprio princípio, o
começo dessa experiência, de uma experiência que se engaja junto à obra de arte,
que lhe dá por aval uma marca de respeito pela unicidade absoluta de cada obra.
Ora, esta unicidade está ligada à indissociabilidade de que estou falando:
qualquer que seja a sua matéria, o corpo do suporte é uma parte indissociável da
obra. 258

O suporte como a indissociabilidade do corpo da obra é onde está marcado


o corpo a corpo do artista com aquilo que se tornará a obra, ou seja, o duelo do
artista com a alteridade inspiradora ficará marcado, como resto dessa experiência,
no corpo da obra, indissociando o seu em cima e o seu debaixo. Este corpo a
corpo ou este duelo pode ser entendido como a “própria” assinatura do artista.
Não a assinatura no sentido corrente como o nome do artista grafado na obra, mas
a assinatura como a memória deste duelo, como o rastro da “presença” do artista
em seu trabalho de pôr em obra. A assinatura “não é nada além do acontecimento

255
DERRIDA, J. “Os debaixos da pintura, da escrita e do desenho: suporte, substância, sujeito,
sequaz e suplício”. In: Pensar em não ver. p. 286.
256
Ibid., p. 287.
257
Ibid.
258
Ibid.
136

da obra em si, na medida em que ela atesta de uma certa maneira (...) o fato de que
alguém fez isso, e é isso que resta. O autor está morto (...) mas isso resta” 259. E é
este lugar da assinatura, esta topologia do corpo a corpo que confere o nosso
apego, o nosso afeto à unicidade, à raridade da obra, pois, “Amar a arte, votar-se
ou devotar-se a ela, (...), é primeiramente saber que não se deve separar o suporte
da obra, que esta não poderia se separar do que parece sustentá-la por baixo, que
nós não podemos nos separar disso.”260
Há, porém, um paradoxo ou o que Derrida chama de uma dramaturgia da
obra “que complica tudo na estrutura do único”. Uma estrutura aporética que
pode-se verificar no efeito do rastro da escrita derridiana: “ele alia na mesma
lógica paradoxal a inseparabilidade e a separabilidade. (...) Só nos apegamos
àquilo de que somos ou podemos ser separados, desmamados, privados” 261 .
Assim, se o debaixo ou o suporte da obra é o que lhe confere sacralidade, o que
ativa o nosso desejo de apropriação, o nosso apego, ele é, ao mesmo tempo, o que
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garante à obra uma emancipação, um desligamento de nós, uma capacidade de


sobreviver à nossa ausência e à nossa morte. Gerando, assim, na própria obra
“original”, já uma experiência de luto. O luto pela impossibilidade da presença do
artista se efetivar em seu corpo a corpo com a obra e também a impossibilidade da
presença da obra se efetivar para os espectadores, para os destinatários da obra em
seu corpo a corpo com ela. É o que podemos entender nas palavras de Derrida em
seu exemplo sobre a obra de Van Gogh:

A maneira como a obra é, eu diria assombrada pelo corpo de Van Gogh, é


irrefutável. (...) Eu diria que há uma provocação inegável que podemos identificar
no que é pintado e assinado por Van Gogh, e que é tanto mais violenta e inegável
em virtude de não estar presente. O que quer dizer que o próprio corpo de Van
Gogh que assombra os seus quadros é tanto mais violentamente implicado e
envolvido no ato de pintar na medida em que não estava presente durante o ato,
pois o próprio corpo é irrompido, ou, digamos, fendido de não presença, pela
impossibilidade de identificar-se consigo mesmo, ou simplesmente, de ser Van
Gogh. (...). Eu sou entregue [given over] ao corpo de Van Gogh como ele se
entregava à experiência. Ainda mais porque estes corpos não estão presentes. A
presença quereria dizer morte. Se a presença fosse possível, no sentido pleno de
um ser que está aí onde ele está, que se reúne [se rassemble] aí onde ele está, se
isso fosse possível, não haveria nem Van Gogh nem o corpo de Van Gogh, nem a

259
DERRIDA, J. “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida”. In: Pensar em não
ver. p. 35.
260
Id., “Os debaixos da pintura, da escrita e do desenho: suporte, substância, sujeito, sequaz e
suplício”. In: Pensar em não ver. p. 287 - 288.
261
Ibid., p. 293.
137

experiência que podemos ter da obra de Van Gogh. Todas essas experiências,
obras, ou assinaturas, só são possíveis na medida em que a presença não foi bem-
sucedida em estar aí e em se reunir [assembling] aí. Ou (...), o aí, o ser-aí, [l’être-
là], existe apenas com base nessa obra de rastros [traces] que se desloca. 262

Portanto, o nosso afeto, o nosso apego, o nosso desejo de apropriação da


obra, aquilo que faz com que não queiramos nos separar dela, aquilo que não nos
deixa separar do que na obra é in-separável entre seu suporte e sua superfície, não
cria, em Derrida, uma simples oposição entre original, como o sagrado, e a cópia,
como a dessacralização do original. Pois, para Derrida, há

ao mesmo tempo a sacralização da obra original, o desejo desvairado do


colecionador (a aura da obra não reprodutível de que fala Benjamin) e [...] um
devir-mercadoria aparentemente dessacralizante – logo, ao mesmo tempo
sacralizante-dessacralizante quando a própria sacralidade da obra proporciona a
mais-valia e a escalada especulativa à raridade (e a unicidade do corpo original, a
unicidade do laço com o debaixo, é a raridade absoluta, é o absoluto da rarefação:
nada é mais raro do que o único, o singular; é a raridade por excelência).263
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Percebemos, então, como o afeto pelo único, pelo raro, não inscreve a
reprodução da obra como sua simples dessacralização, pois, se Derrida já
reconhece um luto da presença na relação com o corpo “original” da obra, a cópia
apenas multiplica este luto que já estava lá. A cópia não produz essa separação do
em cima e do debaixo da obra, ela apenas reproduz esta aporia da in-
separabilidade de seu corpo. Pois, se podemos dizer que na cópia, de certa forma,
a obra separa-se de seu debaixo, de seu corpo, isto é verdade apenas em termos,
afinal, ela nunca esquece, realmente, do seu debaixo, pois, como luto impossível
do “original”, ela faz o tempo inteiro menção a ele, não nos deixando esquecê-lo
em nenhum momento. Mas, ao contrário, lembrando também que o próprio corpo
original já restou desta impossibilidade de presentificação do corpo a corpo do
artista com a inspiração.
Voltando à questão da assinatura, há aqui um outro paradoxo, ou antes,
uma anacronia, que consideramos importante ressaltar e que traz de volta a
questão do “sentido” ou da origem da obra. Como vimos anteriormente, na
primeira seção deste capítulo, não há, para o filósofo, um sentido da arte que
262
Id., “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida:. In: Pensar em não ver. p. 30-32.
263
DERRIDA, J. “Os debaixos da pintura, da escrita e do desenho: suporte, substância, sujeito,
sequaz e suplício”. In: Pensar em não ver. p. 291 e 292.
138

exista anterior a cada obra e que lhe confira esse valor essencialmente. Para ele, o
que está na origem da obra de arte é o seu reconhecimento, isto é, a contra-
assinatura do destinatário ou do espectador antes da própria assinatura do artista.
Pois, é apenas no reconhecimento do destinatário, na sua atestação de que aquela
obra é uma obra de arte, que ela pode ser recebida como tal, fazendo aparecer um
artista ou uma assinatura. Nas palavras de Derrida:

...tudo começa com a contra-assinatura, com o receptor, com o que chamamos de


receptor. A origem da obra de arte em última análise reside no destinatário, que
não existe ainda, mas que está onde a assinatura começa. Em outras palavras,
quando alguém assina uma obra, temos a impressão de que a assinatura é a
iniciativa dela ou dele. É aí que começa; ela ou ele produzem essa coisa e então
assinam. Mas essa assinatura já é produzida pelo futuro perfeito da contra-
assinatura, que terá de vir assinar aquela assinatura. Quando assino pela primeira
vez, quer dizer que estou escrevendo algo que, eu sei, deverá ser assinado apenas
se os destinatários vierem contra-assiná-lo. Assim, a temporalidade da assinatura
é sempre esse futuro perfeito que naturalmente politiza a obra, que a entrega a
uma outra pessoa, isto é, à sociedade, a uma instituição, à possibilidade de
assinatura.264
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Percebemos novamente um afastamento do pensamento derridiano das


artes de um pensamento estético tradicional, pois a origem da obra de arte não
está antes dela mas, sim, depois, na sua recepção. É o que podemos atestar, por
exemplo, no próprio caso Van Gogh, artista apenas reconhecido como tal, depois
de sua própria morte e que, portanto, só pôde assinar suas obras já como
assombração, a partir do porvir guardado nos segredos ou na invisibilidade de
seus debaixos.

264
DERRIDA, J. “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida”. In: Pensar em não
ver. p. 36 e 37.
139

3
Espectrografia: arriscar um pensamento desconstrutivo do
cinema

Neste capítulo pretendemos nos concentrar na experiência derridiana do


cinema como forma de exemplificarmos e discutirmos a abordagem
desconstrutiva diante de mais uma forma de expressão artística. Dizemos aqui
arriscar um pensamento do cinema na medida em que não há, na obra derridiana,
muitos textos dedicados a esta arte. Por isso, este capítulo aventura-se num
pensamento esboçado nas linhas de algumas declarações do filósofo em relação à
sua experiência cinematográfica. Apesar de não haver uma obra específica de
Derrida em torno do cinema, contamos com algumas entrevistas – sobretudo a
concedida ao Cahiers du cinéma em dois momentos diferentes (em 1998 e em
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2000), embora publicada de uma só vez na revista francesa em abril de 2001 sob o
título Le cinéma et ses fantômes265 – além de um trecho do livro Tourner les
mots266 que debruça-se na experiência da filmagem do “documentário” D’ailleurs,
Derrida267. Este livro é co-escrito pelo filósofo e pela diretora do filme, a egípcia
Safaa Fathy. Apesar da contribuição de Derrida ser bem menor do que a da
diretora, há em suas declarações ótimas passagens que acreditamos trazer à tona
importantes temas desconstrutivos. Permitimo-nos, também, associar ao cinema
as questões levantadas por Derrida quanto à televisão e às tecnologias da imagem,
incluindo aqui algumas discussões travadas em Échographies de la télévision268
que enriquecem, principalmente, o tema da espectralidade da imagem
cinematográfica.
Apostamos no risco de afirmar um pensamento desconstrutivo do cinema,
não só porque julgamos as fontes em que nos baseamos já uma estimulante
abertura para tal aventura, mas também porque, como defendemos nos capítulos

265
Entrevista com Antoine de Baecque e Thierry Jousse, publicada no Cahiers du cinéma, n. 556,
abr. 2001, pp 74-85 e, no Brasil, em 2012, sob o título “o cinema e seus fantasmas”, no livro
Pensar em não ver. Pp. 371-395.
266
DERRIDA, J. “Lettre sur un aveugle. Punctum caecum”. In: ____; FATHY, Safaa. Tourner les
mots: au bord d’un film. Paris: Éditions Galiée; Arte Éditions, 2000. pp. 71-126.
267
D’ailleurs, Derrida. Realizado por Safaa Fathy, 1999. 68 min.
268
DERRIDA, J; STIEGLER, Bernard. Échographies de la télévision. Paris, Galillé, 1996.
140

anteriores, para Derrida, tanto a experiência do pensamento como a da arte,


acontecem no sentido em que o filósofo dá ao termo experiência: toda
experiência, para a desconstrução, é, em alguma medida, inexperimentada, cega,
interrompida, da ordem do pathos. Assim, apesar de Derrida não ter escrito sobre
o cinema e se, nos momentos em que o abordou, confessa uma espécie de
“incompetência” sua em relação a esta arte, defendemos que é num certo sentido
desta “incompetência” que arriscamos associar cinema e desconstrução.
Como Fernanda Bernardo menciona em “Croire aux fantômes. Penser le
cinéma avec Derrida”, a experiência derridiana do cinema “desnuda a hiper-
radicalidade, a inventividade, a singularidade e a tomada política da desconstrução
269
como pensamento.” E, ressaltando as últimas palavras de Bernardo,
sublinhamos aqui a desconstrução como pensamento e não necessariamente como
filosofia, pois a desconstrução insiste no que permanece impensado pela filosofia
e que retorna como que para assombrá-la, ali onde ela não pensou. Em outras
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palavras, do ponto de vista derridiano, o cinema, como “a arte de fazer os


fantasmas retornarem”270, projetaria algo que a filosofia não vê: sua fragilidade,
sua cegueira ou sua desconstrução. Assim, o cinema afirmaria a dimensão
espectral do pensamento desconstrutivo como o que Derrida chama em francês de
uma hantologie271: um pensamento da assombração, do fantasma e do espectro
abalando o lugar do ser ou da presença metafísica.
Com isso, adiantamos que o nosso objetivo não é, a partir dessas fontes,
desenvolver uma teoria do cinema. Visto que, como defendemos antes, propor
uma teoria seria ir contra a abordagem desconstrutiva do que quer que seja, na
medida em que, baseando-se na ordem da competência ou de uma visibilidade
plena, uma teoria pretenderia negar a espectralidade irredutível a toda experiência.
É esta espectralidade como invisibilidade ou impossibilidade que buscamos
marcar neste capítulo a partir da experiência cinematográfica. Por isso,
pretendemos, por um lado, rastrear aberturas para o que seria uma abordagem não
metafísica do cinema, uma abordagem pelo rastro e não pelo signo, que admitisse
uma visão fantasmática em sua origem, assumindo, antes, o cinema como uma

269
BERNARDO, Fernanda. “Croire aux fantômes. Penser le cinéma avec Derrida”. In: Derrida et
la question de l’art. p. 400. Tradução minha.
270
Declaração de Derrida no filme Ghost dance de Ken McMullen. Tradução minha.
271
Termo traduzido em Espectros de Marx por obsidiologia, como um pensamento da obsessão ,
daquilo que retorna. Cf. Espectros de Marx pg. 26. Preferimos manter o termo em francês não
traduzido para afirmá-lo mais como uma lógica da assombração do que da obsessão.
141

arte do in-visível e dos espectros. Por outro lado, pretendemos, da mesma forma,
expor como a experiência do cinema, sublinhada na sua in-visibilidade, põe em
obra o próprio pensamento como desconstrução ou como assombração à filosofia,
contribuindo, desse modo, para destacar a “lógica” do pensar ver como a
desconstrução do “modelo ótico” que propomos abordar nesta tese.
Portanto, voltando à questão da incompetência, é no sentido em que ela
abalaria uma autoridade filosófica que, na entrevista intitulada As artes
espaciais272, Derrida diz: “Chega de competência”273. O filósofo nos explica em
que viés ele recorre à incompetência para falar de sua relação com o cinema:

Gosto muito de cinema; vi muitos filmes, mas em comparação com aqueles que
conhecem a história do cinema e a teoria do cinema, sou, e digo isso sem falsa
modéstia, incompetente. (...) Com respeito a outros domínios poderia dizer a
mesma coisa com a mesma sinceridade. Sinto-me bastante incompetente também
nos campos literário e filosófico, embora a natureza da minha incompetência seja
diferente. Minha formação é a filosofia, então não posso dizer seriamente que
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seja incompetente nesse domínio. No entanto, sinto-me despreparado quando


confrontado com a obra de um filósofo, mesmo quando se trata da obra dos
filósofos que estudei longamente. Mas esta é uma outra ordem de
incompetência.274

Entendemos, portanto, que apesar de Derrida falar de uma incompetência


na abordagem de qualquer campo, ele reconhece, diferenças nas
“incompetências” quando refere-se, por exemplo, à filosofia, campo em que se
formou e que possui uma preparação. Quando diz “chega de competência”,
Derrida não defende uma falta de preparação e de rigor nos discursos, mas apenas
chama atenção para a fragilidade de toda competência, lembrando que por mais
preparado que se esteja, é preciso sempre contar com a imprevisibilidade dos
acontecimentos, com a possibilidade de novas leituras, com o que permanece
inapropriável em todo texto. Em outras palavras, é preciso contar com a
impossibilidade de esgotar qualquer campo – impossibilidade inscrita nesta tese,
por exemplo. E é nesse sentido que o filósofo, aqui, problematiza um discurso que
se afirme como competente, pois, esta afirmação acabaria por fechar o

272
“The spatial arts: an interview with Jacques Derrida”. Concedida a Peter Brunette David Wills.
Publicada no Brasil sob o título: “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida”, no
livro Pensar em não ver, p. 17-61.
273
DERRIDA. J. “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida”. In: Pensar em não ver
p. 21.
274
Ibid.,p. 20.
142

pensamento nos limites do possível, conferindo-lhe um dogmatismo que a


desconstrução denuncia na filosofia. Citamos novamente Derrida:

Ora, em termos da minha competência em filosofia, pude conceber um certo


programa, uma certa matriz de investigação que me permite começar colocando a
questão da competência em termos gerais – quer dizer, investigar como a
competência se formou, o processo de legitimação, de institucionalização, e
assim por diante em todos os domínios, e então avançar em diferentes domínios,
não apenas admitindo muito sinceramente a minha incompetência, mas também
me perguntando sobre a questão da competência, ou seja, sobre o que define os
limites do meu domínio, os limites do corpus, a legitimidade das questões, e
assim por diante. Cada vez que me confronto com um domínio que me é
estranho, um dos meus interesses ou investimentos concerne precisamente à
legitimidade do discurso, com que direito se fala, como o objeto é constituído –
questões que são, na verdade, filosóficas tanto na origem quanto no estilo.
Mesmo que, dentro do campo da filosofia, eu tenha trabalhado para elaborar
questões desconstrutivistas relativas a ela, que a desconstrução da filosofia traz
consigo, um certo número de questões que podem ser feitas em campos
diferentes. Sobretudo estava tentando, a cada vez, descobrir o que, em um
determinado campo, o libera da autoridade filosófica.275
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Com efeito, a incompetência que se delineia aqui em relação ao cinema


pode ser entendida em dois sentidos: por um lado, Derrida confessa como que um
“despreparo” seu em relação ao “saber” de um campo específico, de uma técnica
específica, de uma história específica que o posiciona no lugar de espectador
“ingênuo”, sem pretensões teóricas em relação a essa arte. Para falar dela, ele
parte de um lugar diferente do que ele ocupa no “seu” campo, na filosofia. É o que
o faz admitir, por exemplo, nunca ter “falado” a respeito de algumas artes a não
ser quando foi convidado para isso. Todas as vezes em que abordou o cinema ou o
desenho, a iniciativa nunca partiu dele, mas sempre do convite e do apelo de
outros para fazê-lo. Aceitando esses convites, isto é, acolhendo o apelo do que lhe
chegava do outro, Derrida não deixava de delinear o campo desta
“incompetência” que, contudo, o permitia falar de um outro lugar. É justamente
este outro lugar que abre o segundo sentido da “incompetência” que estamos
traçando aqui. Uma “incompetência” que deslocaria o lugar da fala ou do
pensamento do saber ou do conhecimento autorizados ou autoritários. Portanto,
este outro sentido da “incompetência” pode ser interpretado, de forma mais geral,
na própria relação de Derrida com a filosofia e como aquilo que promove uma

275
DERRIDA, J. “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida”. In: Pensar em não
ver. p. 20.
143

desconstrução da autoridade filosófica. Uma “incompetência” primordial que diria


respeito a um ponto cego ou a uma impossibilidade da qual parte todo
pensamento.
É, então, entre esses dois sentidos da incompetência, no ponto em que eles
se tornam indecidíveis que, para nós, o pensamento derridiano do cinema pode ser
esboçado como o que o filósofo chama de uma “relação não cultivada”276 e como
uma outra espécie de cinefilia não calcada no saber e na memória, mas antes na
emoção e na paixão:

Pelo cinema, tenho uma paixão, é uma espécie de fascinação hipnótica, eu


poderia ficar horas e horas numa sala, mesmo para ver coisas medíocres. Mas não
tenho absolutamente a memória do cinema. É uma cultura que, em mim, não
deixa rastro. Fica registrado virtualmente, (...). Não sou absolutamente um
cinéfilo no sentido clássico do termo. Sou mais um caso patológico.277

Assim como a indecisão que identificamos nessa incompetência de que


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fala Derrida em relação às artes, sentimos pesar na sua entrevista ao Cahiers du


cinéma, também o que parece ser uma indecisão no modo como o cinema poderia
ser acolhido pelo seu pensamento. Pois, se Derrida parece, em certos momentos,
sublinhar a necessidade do cinema permanecer, para ele, afastado do saber e da
filosofia, como um “gozo infantil” ou “um esquecimento do trabalho”,
percebemos, no entanto, que é nessa distância cuidada para permanecer uma
“relação não cultivada”, que esta arte pode, precisamente, se apresentar ao
pensamento como resistência ao filosófico. Ou seja, é neste sentido que o cinema
pode se apresentar ao pensamento como desconstrução ou como assombração,
como o retorno insistente daquilo que a filosofia tenta esconjurar em nome de
uma pureza do pensamento, como vimos ser, no primeiro capítulo desta tese, o
caso da escrita na ocidentalidade.
Então, numa leitura mais superficial da entrevista de Derrida aos Cahiers
du cinéma, poderíamos acreditar apenas que o cinema como “liberação dos
interditos”, pudesse permanecer, para Derrida, afastado do pensamento. Ouçamos
Derrida:
276
Expressão usada pelos entrevistadores Antoine de Baecque e Thierry Jousse para designar a
relação de Derrida com o cinema. “O cinema e seus fantasmas. Entrevista com Antoine de
Baecque e Thierry Jousse”. In: Pensar em não ver. p. 375
277
DERRIDA, J. “O cinema e seus fantasmas. Entrevista com Antoine de Baecque e Thierry
Jousse”. In: Pensar em não ver, p. 373 e 374.
144

Digamos que, em situação de “voyeur”, no escuro, enceno uma liberação


inigualável, um desafio a interditos de toda espécie. Estamos ali, diante da tela,
voyeurs invisíveis, autorizados a todas as projeções possíveis, a todas as
identificações, sem a menor sanção e sem o menor trabalho. Talvez seja isso o
que o cinema me traz: uma maneira de me libertar dos interditos e principalmente
de esquecer o trabalho. É também por isso, certamente, que essa emoção
cinematográfica não pode, para mim, tomar a forma de um saber, nem mesmo de
uma memória efetiva. Uma vez que essa emoção pertence a um registro
totalmente diferente, ela não deve ser um trabalho, um saber, nem mesmo uma
memória.278

Já sabemos que, para a desconstrução, o pensamento não é o lugar do


saber e, portanto, não é apenas o lugar do trabalho, mas também da paixão.
Assim, o cinema – ocupando, obviamente, um lugar diferente do da filosofia na
vida de Derrida –, parece lembrar esse lugar indecidível onde o pensamento
acontece como paixão.
Como uma sensação de liberação inigualável, o cinema é, antes, para o
filósofo, uma emoção que não deve se reduzir a um saber: “o cinema permanece
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para mim um grande gozo oculto, secreto, ávido guloso e, portanto infantil. Ele
precisa continuar a ser isso”279. Percebemos como as declarações acima parecem
justificar o fato de Derrida ter escrito muito pouco a respeito desta arte, quase
como um cuidado para não diminuir a emoção e a experiência de libertação que
ela lhe proporciona. Apesar disso, não podemos esquecer que a experiência
cinematográfica não permaneceu propriamente distante do filósofo, em razão de
que, talvez, num certo sentido, Derrida tenha sido um dos pensadores que mais
participou dela: além de ter atuado como um professor de filosofia, representando,
talvez, o seu próprio personagem, no filme Ghost dance 280 , foi tema de, pelo
menos, dois “documentários”: um francês que já citamos acima, intitulado
D’ailleurs, Derrida, do qual ainda falaremos bastante aqui, e um americano
chamado, Derrida: the movie 281 . Além disso, aceitou o convite para fazer um
vídeo282 sobre o seu livro Mémoires d’aveugle, em que lê trechos do seu texto em
torno da invisibilidade do traço do desenho. Assim como gravou, também, uma

278
DERRIDA, J. “O cinema e seus fantasmas. Entrevista com Antoine de Baecque e Thierry
Jousse”. In: Pensar em não ver. p. 374.
279
Ibid., p. 376.
280
Ghost dance. Realizado por Ken McMullen, 1983, 94 min.
281
Derrida: the movie. Realizado por Amy Kofman e Dick Kirby, 2002, 85 min.
282
Vídeo realizado por Jean-Paul Fargier, produzido por museu do Louvre e Films d’ici, em 1990.
52 min.
145

série de entrevistas com Bernard Stiegler a respeito das próprias teletecnologias


da imagem que deram origem ao livro Échographies de la télévision.
Portanto, se Derrida escreveu pouco sobre o cinema e se em suas
declarações ouvimos a necessidade desta arte permanecer para ele um “gozo
infantil”, encontramos nesses escritos, um pensamento tanto do ponto de vista do
espectador como do ponto de vista de quem esteve, mais de uma vez, do outro
lado das câmeras. E, mesmo que essas experiências tenham se dado, na maior
parte das vezes, no que nomeamos comumente “documentários”, como veremos,
Derrida discute a experiência de representar seu próprio personagem, de ser o
Ator de seus incontáveis “eus”, nos legando, assim, o pensamento de uma troca de
olhar impossível entre o espectador e o ator/personagem.
Se, então, nas poucas ocasiões em que Derrida escreveu a propósito do
cinema, ele confessa a necessidade de um certo afastamento a um saber, podemos
interpretar esta postura não como uma negação a esta arte mas, ao contrário, como
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um amor e um respeito desconstrutivo pela sua espectralidade. Sendo o espectral,


para o filósofo, justamente o ponto de encontro entre cinema e desconstrução. Nas
palavras de Derrida:

A experiência cinematográfica pertence, de um extremo ao outro, à


espectralidade, (...) ou à própria natureza do rastro. O espectro, nem vivo nem
morto, está no centro de alguns dos meus escritos, e é nesse sentido que, para
mim, um pensamento do cinema talvez fosse possível.283

Ainda em relação à importância, para Derrida, de um certo afastamento


entre saber e cinema, sublinhamos o respeito que está envolvido na relação sem
relação – da qual já dissemos no capítulo anterior, na abordagem desconstrutiva
das artes ou do que quer que seja – é o que Fernanda Bernardo elabora ao abrir a
palavra francesa spectre (em português espectro), como anagrama da palavra
respect (em português respeito) 284 . Ou seja, além da “coincidência” dessas
palavras escreverem-se, em francês, com as mesmas letras, há na relação com o
espectro, a necessidade do respeito pelo afastamento por ele imposto a toda
relação. Pois o espectro é aquilo que não se dá plenamente à relação, inscrevendo

283
DERRIDA, J. “O cinema e seus fantasmas. Entrevista com Antoine de Baecque e Thierry
Jousse”. In: Pensar em não ver. p. 377.
284
BERNARDO, Fernanda. “Croire aux fantômes. Penser le cinéma avec Derrida” In: JDEY,
Adnen (org). Derrida et de l’art. Déconstruction de l’esthétique. pp. 397-418.
146

a separação na relação que o pensamento desconsrutivo encena como única


relação possível: a relação na distância, no desvio do absolutamente outro. Tal
operação favorece a reflexão e o desdobramento do tema da espectralidade
cinematográfica. Esta distância imposta pelo espectro, no que diz respeito à
visibilidade, diz que ele não é da ordem nem do visível nem do invisível, mas do
que se pensa ver:

Um espectro é algo que se vê sem ver e que não se vê ao ver, a figura espectral é
uma forma que hesita de maneira inteiramente indecidível entre o visível e o
invisível. O espectro é aquilo que se pensa ver, “pensar” desta vez no sentido de
“acreditar”, pensamos ver. Há aí um “pensar-ver”, um “ver-pensado”. Mas nunca
se viu pensar. Em todo caso, o espectro, como na alucinação, é alguém que
atravessa a experiência da assombração, do luto etc., alguém que pensamos
ver.285

Ligando já o tema da espectralidade ao tema do luto no cinema,


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gostaríamos ainda de ressaltar, quanto a este afastamento em que parece se tecer a


experiência cinematográfica derridiana, mais um anagrama que Fernanda
Bernardo, lendo desta vez Envois286, lembra em seu mesmo texto em torno de
Derrida e o cinema. Este outro anagrama seria aquele das palavras francesas trace
– o rastro da escrita derridiana – e écart, que quer dizer em francês afastamento,
distância, intervalo, lacuna. Marcando o afastamento inscrito no rastro derridiano,
Fernanda Bernardo sublinha a estrutura espectral comum ao cinema e à
desconstrução. Leiamos Fernanda Bernardo:

... não sendo, portanto, senão uma “salvação do sem-salvação”, de fato, uma
sobrevivência infinitamente enlutada da vida, da existência, da coisa ou do
próprio acontecimento, que ela [a escrita] não guarda senão os perdendo, isso
quer dizer que o rastro tem uma estrutura intrinsecamente espectral e
testamentária – Derrida ressalta que a palavra “trace” é o anagrama perfeito da
palavra “écart” –; a imagem cinematográfica tem, ela também, uma estrutura de
parte à parte espectral. Ela não é senão um “rastro fantasmático sem
representação”, uma “aparição mágica” ou uma “re-aparição fantasmática”
daquilo de que ela é o rastro enlutado. Ou a ruína monumentalisadora. E isso em
razão da tekhnè cinematográfica que imediatamente se divide entre sua vida
presente e sua sobrevida, o presente vivo do acontecimento ou da coisa que a

285
DERRIDA, J. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 68.
286
Id., “Envois”. In: La carte Postale: de Socrate à Freud et au-delà. Paris: Flammarion, 1999.
147

câmera vê e filma e que a imagem pretende contudo guardar viva na sua única e
singular vez.287

Assim, a imagem cinematográfica, como todo rastro, como todo registro,


como toda escrita, é já o luto daquilo que ela pretende guardar, é já a memória
enlutada do suposto “presente vivo” que se permitiu dividir em imagem, em
simulacro, que se permitiu arquivar na fantasmalidade da película. Pois, o que se
registrou como memória, no filme, como rastro no arquivo da película, não foi,
como poder-se-ia supor, a singularidade daquele instante único mas, ao contrário,
a própria perda do que não poderá jamais voltar. Assim, o que se repete diante de
nós, a cada projeção, na sala de cinema, é a memória enlutada como única
sobrevivência do que está perdido para sempre. Na impossibilidade de retermos o
presente como presente, de apropriarmo-nos deste instante fugidio, podemos
apenas sobreviver da sua memória ou da sua promessa. Esta temporalidade
cinematográfica é a temporalidade desconstrutiva, que marcamos no primeiro
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capítulo desta tese e que desenvolvemos aqui sob a ótica do fantasma, como
impossibilidade de um presente-vivo ou de uma presença a si, que se dá a ver num
movimento de retenção e protensão, isto é, na estrutura de um presente ferido já
pela lembrança de um passado absoluto ou ainda na promessa de um eterno
porvir.
Assim, o que o cinema traz de volta diante de nós não é um passado que
alguma vez pôde apresentar-se como presente, mas apenas a lembrança enlutada
da impossibilidade de todo presente e de toda presença. Fazendo os fantasmas
retornarem, dando a eles voz, o cinema, contudo, não os presentifica, mas lembra
a cada repetição, como aquele passado já era absolutamente passado. Ou seja,
posicionando-nos diante das aparições da tela como diante de fantasmas, o cinema
apenas nos lembra como aquele “presente passado” era já, desde sempre, marcado
pelo rastro de uma ausência que melancolicamente desajustava e impossibilitava a
sua presença a si. O cinema, portanto, como uma espectrografia, ou seja, como
uma escrita de fantasmas, diz de uma repetição que traz outra vez não a coisa em
si, como tal, não o presente novamente, não a memória viva do que não pôde
acontecer presentemente, mas a recordação, a lembrança assombrada, enlutada
por um tempo fora dos eixos.

287
BERNARDO, F. In: Derrida et la question de l’art. p.415 - 416. Tradução minha.
148

No texto Espectrographies, que faz parte do livro Échographies de la


télévision, Derrida narra uma situação que lhe ocorreu durante uma exibição do
filme Ghost dance nos Estados Unidos, e que descreve muito bem a sensação de
assombração e disjunção do tempo trazida, segundo ele, pela escrita
cinematográfica. A cena narrada pelo filósofo é aquela em que ele atua com a
atriz Pascale Ogier e que improvisa sobre os fantasmas. Como que multiplicando
a espectralidade desta cena, ele narra a experiência desta exibição do filme, no
Texas, anos mais tarde: primeiramente, Derrida explica que quando a cena foi
rodada em seu escritório, ele e Pascale Ogier precisaram repeti-la pelo menos
trinta vezes e que, no final do seu texto, quando improvisava sobre os fantasmas,
ele deveria perguntar a Pascale: “e você, acredita nos fantasmas?”, ao que ela lhe
deveria responder: “sim, agora eu acredito, sim”. Então, dois ou três anos após a
filmagem, quando Pascale Ogier já havia morrido, solicitado por estudantes a
debater o filme nos Estados Unidos, Derrida relata que, de repente, em meio à
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exibição, da plateia, vê o rosto de Pascale – o rosto, sabia ele, de uma mulher


morta – surgir na tela e responder à questão por ele proposta: “e você, acredita em
fantasmas?” e ela, praticamente olhando-o nos olhos, responde da tela grande:
“sim, agora eu acredito, sim”. 288 Com esta descrição, Derrida chama nossa
atenção para esse “agora” que o cinema desvia, repetindo-o em outro tempo e
espaço, evidenciando a própria disjunção do tempo. Em suas palavras:

Que agora? Anos mais tarde no Texas. Eu tive a sensação perturbadora do retorno
do seu espectro [do espectro de Pascale Ogier], do espectro do seu espectro
voltando para me dizer – pra mim aqui, agora: “agora...agora...agora, quer dizer,
nesta sala escura, em outro continente, em outro mundo, aqui, agora, sim,
acredite-me, eu acredito em fantasmas”
Mas ao mesmo tempo, eu sei que a primeira vez em que Pascale disse isso, já
quando ela repetiu isso em meu escritório, já ali esta espectralidade estava a
operar. Ela já estava lá, ela já estava dizendo isso e ela sabia, assim como nós
sabemos, que mesmo se ela não tivesse morrido no intervalo, um dia ela seria
uma mulher morta que disse, “Eu estou morta” ou “Eu estou morta, eu sei do que
estou falando de onde estou, e eu estou te observando”289

Além desta troca de olhar impossível entre o fantasma da tela e o


espectador, que discutiremos mais adiante, o que é importante perceber nesta

288
Descrição da cena narrada em “Spectrographies” In: Echographies of television p. 119 e 120.
Tradução minha.
289
DERRIDA, J. “Spectrographies”. In: Echographies of television p. 120. Tradução minha.
149

narrativa é que, para Derrida, mesmo se a atriz não houvesse morrido no intervalo
entre a filmagem e a reprodução do filme, anos mais tarde, o próprio registro em
imagem e, por isso, a divisão daquele presente singular em recordação, marca sua
espectralidade e já nos coloca numa relação de luto com os acontecimentos, pois o
que se guarda em toda inscrição é, justamente, a perda de um “aqui e agora”
único. Portanto, a espectralidade desta cena, não se dá apenas pela morte de
Pascale ou porque a cena gira em torno dos espectros, mas porque, toda imagem
capturada pelo dispositivo técnico da câmera ativa a espectralidade, pois,

... uma vez que ela tenha sido tomada, capturada, essa imagem será reprodutível
na nossa ausência, e porque nós já sabemos disso, nós já somos assombrados por
esse futuro que traz a nossa morte. O nosso desaparecimento já está aqui. Nós já
somos atravessados por um desaparecimento que promete e oculta
antecipadamente outra mágica “aparição”, uma “re-aparição” fantasmática que é
na verdade, propriamente miraculosa, algo a ver, tão admirável quanto incrível,
acreditável apenas graças a um ato de fé.[...] Nós somos espectralizados pela
tomada, capturados ou possuídos pela espectralidade antecipadamente.290
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Percebemos que este poder espectral da câmera, de registrar e dividir o


“presente” já era descrito como o poder de assombração que a técnica da escrita
produzia para Platão, já que o texto escrito também poderia sobreviver ao seu
autor, dividindo-o, multiplicando-o, fazendo-o falar em sua ausência ou em sua
morte, isto é, fazendo-o falar como fantasma onde ele não estava presente.
Assim, para Derrida, não apenas as técnicas do cinema, mas as tecnologias
de uma forma geral, ao contrário do que facilmente poderíamos pensar, seriam
propagadoras de fantasmas. É, justamente, o que o filósofo assume no seu texto
improvisado nesta cena do filme Ghost dance citada anteriormente. Perguntado
por Pascale se ele acredita em fantasmas, Derrida começa a improvisar sobre o
assunto, explicando que ali, como foi pedido para representar o seu próprio papel
sem um roteiro fixo, sem falas determinadas, ele tem a impressão de estar
deixando um fantasma falar em seu lugar, “ventriloquá-lo”. É aí que ele defende
que o cinema seria a arte de deixar os fantasmas retornarem. Pois, naquela cena,
os dois atores estariam fazendo exatamente isso: interpretando o face a face de
uma cena espectral, deixando-se parasitar pelas vozes dos fantasmas de si
mesmos. E ele segue explicando que toda tecnologia da telecomunicação, ao invés

290
DERRIDA, J. “Spectrographies”. In: Echographies of television. p. 117. Tradução minha.
150

de restringir o espaço dos fantasmas, como o pensamento técnico e científico


acreditam fazer – na possibilidade de estar deixando a época dos fantasmas para
trás, uma época antiga, ultrapassável – ao contrário, ele, Derrida, acredita que “o
futuro pertence aos fantasmas” e que a tecnologia moderna da imagem, da
cinematografia, da telecomunicação, realça o poder dos fantasmas e o seu retorno.
Ou seja, a técnica realça o poder da assombração. 291 Segundo Derrida, este
pensamento iria contra a cientificidade, porque “é em nome da cientificidade da
ciência que esconjura-se fantasmas ou condena-se o obscurantismo, o
espiritualismo, em suma, tudo o que tem a ver com a assombração e com os
espectros.”292
Assim, essas técnicas de que fala Derrida não são modernas, e é por isso
que a desconstrução assume-se como uma hantologie, pois, para este pensamento,
desde que haja rastro, ou seja, desde sempre, há assombração. Portanto, apesar de
acreditarmos estar já marcado nesse ponto da tese, achamos importante ressaltar
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que se defendemos o cinema como uma arte da espectralidade, de modo algum


dizemos que esta arte inaugura uma experiência de assombração, ou que só há
espectralidade depois das tecnologias modernas das telecomunicações mas, o que
gostaríamos de sublinhar é como essas tecnologias ampliam e multiplicam a
experiência de espectralidade, já que, como escrita, registro, recordação, elas são
tecnologias do simulacro, da fantasmagoria ou da cópia da cópia ou ainda, nas
palavras de Benjamin, da “reprodutibilidade técnica” 293 . Tecnologias, portanto,
que mediam ou diferem o desvio da origem e da presença.
Com efeito, o cinema, com as suas características singulares, pode ser
tomado como a arte de uma encenação exemplar daquilo que, contudo, já está em
operação na experiência vivida fora da sala de projeção. Então, se não podemos
dizer que na sala escura os acontecimentos que se dão nesse espaço-tempo
recortado da dita vida real são de uma ordem diferente do que acontece fora da
sala escura, na “realidade”, dizemos que, pelo menos, o ambiente encenado por
ele contribui para ampliar o efeito de fantasmagoria. Em outras palavras, a

291
Este trecho é a narração de uma fala de Derrida no filme Ghost dance, de Ken McMullen.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0nmu3uwqzbI
292
DERRIDA, J. “Spectrographies” In: Echographies of television. p. 118. Tradução minha.
293
Cf. BENJAMIN, W. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In: Magia e
técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas vol. I.
Tradução: Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.
151

experiência proporcionada pelo cinema, da qual fala Derrida na entrevista ao


Cahiers, a experiência de desligamento do mundo externo; a experiência
proporcionada pela sala escura que dá ao espectador a sensação de estar sozinho,
como um “voyeur invisível”, embora esteja cercado por outros espectadores, num
face-a-face com as aparições da tela; a impossibilidade de cruzar o olhar com
essas aparições, tudo isso, parece ampliar e magnificar a experiência espectral
que, contudo, para a desconstrução, já é a experiência da vida, ou melhor, da
sobrevida, que é como Derrida chama a experiência da vida em sua
indecidibilidade com a morte, ou seja, a vida como sobrevivência.
Voltando à questão da aporia inescapável do rastro que só salva perdendo,
que só registra testemunhando a perda do que se gostaria de guardar para sempre,
segundo Fernanda Bernardo, esta aporia aparece no cinema como sua melancolia,
no trabalho de projeção e ampliação do que Derrida chama o meio luto ou o luto
impossível, que ele repensa a partir da ideia de luto freudiana. Pois, ao contrário
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de Freud, para quem há a possibilidade da realização de um luto bem sucedido,


isto é, de um luto que supere a perda e, assim, cure a melancolia pelo que não está
mais presente – acabando, desse modo, com a assombração e enterrando de vez os
mortos –, para Derrida, o trabalho de luto é sempre impossível e, por isso,
interminável e a assombração dos fantasmas é a prova de uma certa sobrevivência
dos mortos, é a prova de que, embora eles não estejam mais presentes, eles não
estão, contudo, mudos ou enterrados, eles permanecem ao redor, apelando-nos,
falando em nós, nos filmes, nas escritas. É, nesse sentido, que o cinema colocaria
em cena esta impossibilidade e este trabalho de luto sem fim que inscreve como
recordação ou como fantasmagoria, a perda do que se gostaria de manter vivo. O
registro do rastro é sempre o testemunho da fuga do que se pretendia guardar,
introjetar. Citamos Fernanda Bernardo:

(...) Escrito ou fílmico, o rastro é sempre espectral. Com efeito, da mesma forma
que o rastro (escrito) – ao mesmo tempo aquilo que se inscreve e se apaga, aquilo
que só se escreve se apagando –, a imagem cinematográfica, do ponto de vista de
sua captura, possui já sua ruína originária, ela é já o “que aconteceu ali”
melancolicamente em luto no filme. [...]. O cinema é assim um “luto ampliado” –
ou seja impossível ou infinito como é para ele [Derrida] o luto (que repensa a
partir de Freud). E um “luto magnificado”, o cinema não é nada além de um
“simulacro absoluto da sobrevivência absoluta”, na verdade uma “fantomaquia”,
pois não é nada além da memória enlutada daquilo que assombra sem jamais ter
tido a forma da presença – e sem jamais estar presente. O cinema é assim uma
152

“memória espectral”, seja do ponto de vista do seu registro, seja daquele de sua
“reprodução”.294

Assim, o cinema não nos deixa esquecer a nossa condição espectral. Pois
percebemos que aquele registro filmado, aquela escrita fantasmagórica, é a
lembrança da nossa própria finitude, a lembrança de que a imagem registrada,
como o nosso duplo, como o nosso resto ou rastro, pode sobreviver à nossa morte
e falar por nós quando já não estivermos mais aqui. Essa espectrografia ou essa
ecografia, nos transforma em fantasmas antecipadamente em relação à nossa
morte.
Nesse sentido, o cinema, como simulacro, como divisão do suposto
presente-vivo em imagem, em fantasmagoria, é o que sobrevive como testemunha
de que a vida, vivida na impossibilidade do presente-vivo, assim como os filmes,
é já sobrevivência. Mas, se, então, o cinema, como escrita, só guarda à medida em
que perde aquilo que guarda, testemunhando essa perda, para Derrida, ele o faz de
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forma absolutamente singular, uma vez que projeta e amplia diante de nós a
espectralidade do rastro guardado, proporcionando-nos, no espetáculo da sala
escura, um “face-a-face” com os fantasmas que nos assombram e nos dão uma
“visão” ou um testemunho alucinado da nossa própria sobrevivência:

O cinema é o simulacro absoluto da sobrevivência absoluta. Ele nos conta aquilo


de que não se retorna, ele nos conta a morte. Por seu milagre espectral, ele nos
designa o que não deveria deixar rastro. Ele é, portanto, duas vezes rastro: rastro
do próprio testemunho, rastro do esquecimento, rastro da morte absoluta, rastro
do sem-rastro, rastro do extermínio. É o salvamento, pelo filme, do que
permanece sem salvação, a experiência da sobrevivência pura que testemunha.
Penso que diante “disso”, o espectador é capturado. Essa forma encontrada para a
sobrevivência é irrecusável.295

A aporia de todo registro, de todo rastro, de todo traço, segundo Derrida,


parece dar-se a ver de forma singular no cinema, em sua espectralidade, pois a
película, onde se imprime esse rastro da separação do presente vivo em simulacro,

294
BERNARDO, F. Derrida et la question de l’art. p. 416. Tradução minha.
295
DERRIDA, J. “O cinema e seus fantasmas. Entrevista com Antoine de Baecque e Thierry
Jousse”. In: Pensar em não ver. p. 384.
153

em imagem, é ela mesma, como Derrida diz, já fantasmática296, quase invisível.


Assim também como o é a projeção dessa imagem numa tela, na sala escura do
cinema, diante do espectador. A experiência do cinema é uma experiência do
lusco-fusco, de uma fenomenalidade diferente para a qual Derrida chama atenção:
assim como a palavra espectro constitui-se a partir do que se dá a ver, isto é, como
da ordem do espetáculo, a palavra fenômeno vem da palavra grega phainesthai,
que quer dizer, ao mesmo tempo, o aparecer e o fantasma: “Em grego e não
apenas em grego, fantasma designa a imagem e a alma-do-outro-mundo. O
fantasma é um espectro.”297 Ou seja, lembrando a origem grega do fenômeno,
Derrida problematiza a ideia de um puro aparecer, de um dar-se plenamente à
visão, pois, segundo ele,

O que acontece com a espectralidade, com a fantasmalidade [...] é que alguma


coisa torna-se quase visível, sendo visível apenas enquanto não é visível em carne
e osso. É uma visibilidade da noite. Tão logo haja uma tecnologia da imagem, a
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visibilidade traz a noite, ela encarna num corpo de noite, ela irradia uma luz
noturna [...] nós já estamos na noite tão logo somos capturados por instrumentos
óticos que nem mesmo precisam da luz do dia. Nós já somos espectros de uma
“televisão”.298

Portanto, a fenomenalidade do cinema é de um fenômeno que lembra a


não-visão na visão, o invisível que trabalha e assombra toda visibilidade. E, por
isso, esta outra fenomenologia da imagem cinematográfica liga a visão e o
aparecer à crença, a um ato de fé, pois, para ver, é preciso crer nas imagens que
são projetadas diante de nós. Nas palavras de Derrida:

No cinema, cremos sem crer, mas esse crer sem crer permanece um crer. Lidamos
na tela, haja ou não vozes, com aparições nas quais, como na caverna de Platão, o
espectador crê, aparições que às vezes são idolatradas. Uma vez que a dimensão
espectral não é nem a do vivo nem a do morto, nem a da alucinação nem a da
percepção, a modalidade do crer que se reporta a ela deve ser analisada de
maneira absolutamente original. Essa fenomenologia não era possível antes do

296
Citamos Derrida: “a película projetada, que é ela própria já um fantasma...”. DERRIDA, J. “O
cinema e seus fantasmas. Entrevista com Antoine de Baecque e Thierry Jousse”. In: Pensar em
não ver p. 379.
297
DERRIDA, J. “O cinema e seus fantasmas. Entrevista com Antoine de Baecque e Thierry
Jousse”. In: Pensar em não ver. p. 392.
298
Id., “Spectrographies”. Echographies of television. p. 115 - 117.
154

cinematógrafo, pois esta experiência do crer está ligada a uma técnica particular,
a do cinema, ela é inteiramente histórica.299

Admitir esta visão condicionada à crença que a experiência


cinematográfica ou toda tecnologia da imagem nos proporciona, desloca a
autoridade do “modelo ótico” baseada numa visibilidade plena que associa
diretamente visão e saber. A fenomenologia cinematográfica, ao contrário, põe a
visão na ordem do pensar ver, isto é, põe o pensamento na ordem da
desconstrução, na ordem da abertura do pensamento para além de suas amarras
logocêntricas, mostrando a necessidade de se pensar ali onde não se vê a não ser
espectros, fantasmas, imagens, simulacros, rastros.
Se a visão plena é ver o que está presente, pensar ver é ver espectros,
aquilo que não é nem presente nem ausente. É nesse sentido que o cinema seria
uma arte do pensar ver, uma arte do in-visível. Ver um filme seria pensar ver um
filme, à medida que não vemos uma presença, mas a própria disjunção da
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presença e do presente, o tempo out of joint de Hamlet. Mas, é preciso lembrar


novamente que o cinema só amplia essa dimensão do pensar ver que já se dá fora
do filme, na dita realidade. Pois, como vimos no primeiro capítulo desta tese, tudo
o que há no mundo é ferido pelo rastro de uma ausência que interrompe e
impossibilita a ideia de presença a si, de um presente sincrônico que já não seja
ferido por um passado absoluto. Deste modo, o cinema aparece como uma
projeção ampliada dessa disjunção espectral do tempo. Se não há presença, não
pode haver visão plena, mas apenas um pensar ver. A experiência do cinema –
como das artes, de forma geral –, nos proporciona uma relação de crença confessa
com o que vemos ou com o que experienciamos na sala escura. Isto é, quando
entramos na sala de cinema ou quando lemos um romance, para entrarmos em
contato com os acontecimentos “narrados”, ativamos uma dimensão de crença que
não costumamos relacionar às experiências vividas fora do campo da ficção. É
nesse viés que o pensamento da desconstrução reconhece uma ficcionalidade em
tudo o que há, pois se todos os acontecimentos, mesmo aqueles vividos fora dos
limites da ficção, são espectrais, para estabelecer uma relação com eles é preciso
crer neles como nos fantasmas. Assim, nesse sentido, como já defendemos no

299
DERRIDA, J. “O cinema e seus fantasmas. Entrevista com Antoine de Baecque e Thierry
Jousse”. In: Pensar em não ver. p. 378 - 379.
155

capítulo anterior, não pode haver, de fato, uma oposição entre o domínio da arte e
o domínio da verdade para a desconstrução. Os acontecimentos vividos tanto na
arte como na dita “realidade” são da ordem da espectralidade e, por isso,
demandam uma crença, uma relação de fé com o que está diante de nós. Citamos
Derrida:

Se eu escrevesse sobre o cinema, o que me interessaria seria principalmente seu


modo e seu regime de crença. Há no cinema uma modalidade de crer
inteiramente singular: inventaram, há um século, uma experiência sem precedente
da crença. Seria apaixonante analisar o regime do crédito em todas as artes: o
modo como se crê em um romance, em certos momentos da representação teatral,
ao que se escreve na pintura e, é claro, o que é uma coisa completamente
diferente, ao que o cinema nos mostra e nos conta [...]. É por isso que a visão do
cinema é tão rica. Ela permite ver aparecerem novos espectros ao mesmo tempo
em que guarda na memória (permitindo então projetá-los na tela, por sua vez) os
fantasmas que assombram os filmes já vistos.300

Quando Derrida diz que o cinema inventou uma modalidade de crença sem
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igual, ele não quer dizer com isso que não haja nas outras artes, por exemplo, este
“crer sem crer” que nos liga à ficcionalidade, e que a filosofia – mas não só ela,
pois também a História, a ciência – opõe à realidade ou à verdade. O que Derrida
quer ressaltar é a singularidade com que o cinema ativa esta dimensão da crença.
E isso nos importa especialmente aqui porque essa singularidade da crença na arte
cinematográfica está ligada diretamente à visão, colocando em cena sua dimensão
in-visível. Como percebemos na citação acima, extraída da entrevista ao Cahiers
du cinéma, Derrida comenta como seria interessante pensar cada arte, os seus
limites e suas fronteiras, a partir do tipo de crença que cada uma delas põe em
jogo.
Em relação à possibilidade de pensar a especificidade de cada arte e aqui,
da arte cinematográfica, Derrida levanta uma questão importante, em Tourner les
mots, que já está no título desse livro. Esta questão refere-se ao fato de que,
diferentemente das outras artes do visível, como o desenho, a pintura ou a
escultura, o cinema não é apenas uma arte do visível, ele é também uma arte da
palavra. E a questão desconstrutiva, em relação ao tema da nossa tese, seria pensar
em que sentido o cinema, como uma arte do visível e da palavra representa uma

300
DERRIDA, J. “O cinema e seus fantasmas. Entrevista com Antoine de Baecque e Thierry
Jousse”. In: Pensar em não ver. p. 378 - 379.
156

resistência à autoridade logocêntrica. Isto é, em que sentido nesse acolhimento da


palavra, esta arte, no entanto, não se deixa regular por um logocentrismo. Em
entrevista sobre as artes espaciais, Derrida afirma:

Obviamente, se há uma especificidade da mídia cinematográfica, ela é estranha à


palavra. O que quer dizer que mesmo o cinema mais falante supõe uma
reinscrição da palavra dentro de um elemento especificamente cinematográfico
não governado pela palavra. Se há algo específico ao cinema e ao vídeo (...) é a
forma com a qual o discurso é posto em jogo, inscrito ou situado, sem em
princípio governar a obra.301

Há uma passagem da entrevista ao Cahiers du cinéma em que embora


Derrida refira-se especificamente ao filme D’ailleurs Derrida, podemos estender
o que ele diz à técnica cinematográfica de forma geral no que diz respeito à
possibilidade de sua técnica articular imagem e palavra, encontrando na
montagem uma potência de resistência ao logocentrismo. Ouçamos Derrida:
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O que conta na imagem não é simplesmente o que é imediatamente visível, mas


também as palavras que habitam as imagens, a invisibilidade que determina a
lógica das imagens, isto é, a interrupção, a elipse, toda essa zona de invisibilidade
que força a visibilidade. (...) anacoluto. Essa interrupção da imagem não
interrompe o efeito da imagem, ela leva mais longe a força a que a visibilidade dá
um impulso. A sequência interrompida é reencontrada em outro momento do
filme, ou não é reencontrada, e cabe ao destinatário, àquele a quem chamamos de
espectador, reencontrar-se ou não, deixar o fio correr, seguir o alinhavo ou não.
Consequentemente, a imagem enquanto imagem é trabalhada no corpo por
invisibilidade. Não forçosamente a invisibilidade sonora das palavras, mas uma
outra invisibilidade, e creio que o anacoluto, a elipse, a interrupção formam
talvez o que esse filme guarda de próprio. O que se vê no filme tem certamente
menos importância do que o não dito, o invisível que é lançado como um lance de
dados, que será ou não substituído (cabe ao destinatário responder) por outros
textos, por outros filmes.302

Esta analogia da técnica da montagem no cinema com figuras de


linguagem, feita por Derrida no trecho citado acima, nos faz perceber o cinema
como escrita em sua explosão do sentido logocêntrico. Ou seja, se o cinema
articula imagem e palavra na in-visibilidade, isto se faz como a própria

301
DERRIDA, J. “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida”. In: Pensar em não
ver. p. 27.
302
Id., “O cinema e seus fantasmas. Entrevista com Antoine de Baecque e Thierry Jousse”. In:
Pensar em não ver. p. 390 - 391.
157

possibilidade de articulação, de montagem. Se nele, a palavra já não fosse tomada


na sua invisibilidade não haveria espaço para a elipse, para o anacoluto. Assim, a
possibilidade de montagem aparece como evidência da palavra como rastro, isto
é, da evidência de sua incompletude, de seu eterno apontar para um outro. Por
isso, a arte cinematográfica, por acolher imagem e palavra, contudo, não precisa
submeter a imagem à palavra. Obviamente, os filmes e os diretores
cinematográficos exploram as possibilidades de sua técnica de formas diferentes,
resistindo mais ou menos a um logocentrismo.
É para este desvio do logocêntrico que o título de Tourner les mots
pretende, entre outras coisas, apontar, pois, sendo um livro a respeito de um filme,
Derrida e Safaa Fathy defendem que este título gostaria de sugerir, pelo menos,
três sentidos diferentes: primeiramente, que a palavra “tourner”, em francês, assim
como “rodar”, em português, refere-se à prática cinematográfica da filmagem, já
que nas duas línguas, podemos dizer “rodar um filme”. Este sentido nos leva
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diretamente ao segundo sentido que os autores pretendem destacar como o


movimento do “rodar” querendo dizer “contornar, evitar, exceder, transgredir”303
as palavras, dando a ver, em D’ailleurs, Derrida, a preocupação de como filmar
as palavras. Isto é, havia previamente uma preocupação de que um filme em torno
do filósofo da desconstrução não se submetesse à autoridade do logocêntrico, ao
domínio das palavras sobre a imagem. E, além desses dois sentidos, haveria ainda
um terceiro que diria respeito à expressão tourner les mots como o cuidado em
refinar, em ajustar as palavras para encontrar uma expressão apropriada 304. Nas
palavras dos autores do livro:

A filmagem devia, sem dúvida, também, a sua maneira, rodar as palavras. (...)
Por um lado ela devia rodá-las, sim, essas palavras, contornando-as, excedendo-
as, superando-as, (...) às vezes evitando-as: fazer tudo então para que as palavras
não matem a imagem pretendendo comandá-la. Era preciso então rodar a
soberania de um discurso elaborado, surpreender a palavra no despertar e depois
entregá-la, toda nua, à improvisação: ao imprevisto.305

Derrida conta que a improvisação foi, nesse filme, um modo de contornar


as palavras, de resistir à sua autoridade. Baixar a guarda e não preparar um

303
DERRIDA, J.; FATHY, S. Tourner les mots. p. 19 - 20. Tradução minha.
304
Ibid.
305
Ibid., p. 18. Tradução minha.
158

discurso previamente foi uma forma de se deixar dirigir pelo outro, de dar espaço
no filme a uma certa experiência da invisibilidade, pois, não ver vir a palavra,
deixar o discurso surpreender, determina o sentido desconstrutivo da invenção, do
pensamento como acontecimento.
Mas, se D’ailleurs, Derrida tem essa preocupação, não podemos dizer,
contudo, que em todas as situações, ou melhor, que em todos os filmes, o
elemento “essencialmente cinematográfico” se sobreponha à palavra. Derrida,
sem dúvida, mais do que reconhecer as diferenças entre filmes dados – ou seja,
reconhecer que, em relação ao discurso, há filmes mais próximos da pintura ou da
fotografia –, problematiza a pretensão de delimitar cada arte a partir de uma
suposta essência que lhe daria uma unidade. Em relação a isso, Derrida confessa:

Acho que há provavelmente mais diferença entre obras diferentes, entre


diferentes estilos de obras cinematográficas, com respeito ao que acabou de ser
levantado sobre discurso e não discurso, do que há entre o cinema e a fotografia.
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Nesse caso é provável que estejamos lidando com muitas artes bem diferentes no
interior do mesmo meio tecnológico – se definimos o cinema com base no
aparelho técnico – e assim talvez não haja unidade na arte cinematográfica. (...)
um método cinematográfico dado pode ser mais próximo de um tipo de literatura
do que outro método cinematográfico. E assim precisamos perguntar se o fato de
identificar ou não uma arte – presumindo que se possa falar de cinema como se
soubéssemos o que seja a arte – procede do meio técnico, ou seja, se, no caso do
cinema, ele procede de um aparelho como a câmera, que pode fazer coisas que
não podem ser feitas pela escrita ou pela pintura. Isso é suficiente para identificar
a arte, ou, na verdade, a especificidade de um filme dado depende afinal menos
do meio técnico e mais da sua afinidade com uma obra literária dada, e não com
outro filme? Não sei. Estas são para mim questões que não têm respostas.306

Desse modo, acreditamos que, para Derrida, não há unidade da arte


cinematográfica como de nenhuma arte. Reconhecer o espectral como o elemento
do cinema não é dar a ele uma essência mas, justamente ao contrário, é admitir a
impossibilidade de essencializá-lo, assim como a impossibilidade de reduzir o que
quer que seja a uma essência. A resistência que as artes do in-visível representam
ao pensamento logocêntrico não se estabelece, portanto, apenas porque elas não
são artes da palavra, pois, no exemplo do cinema, podemos perceber a inserção
deste elemento logocêntrico numa situação em que nem sempre elas governam a
cena

306
DERRIDA, J. “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida”. In: Pensar em não
ver. p. 27 - 28.
159

Assim, desse ponto de vista, podemos encontrar no cinema os meios de repensar


ou refundar todas as relações entre a palavra e a arte silenciosa, na medida em
que elas acabaram sendo estabilizadas antes da aparição do cinema. Antes do
advento do cinema havia a pintura, a arquitetura, a escultura, e dentro delas
podia-se encontrar estruturas que institucionalizaram as relações entre discurso e
não discurso na arte. Se o advento do cinema permitiu algo completamente novo,
foi a possibilidade de jogar com as hierarquias. Ora, aqui não estou falando do
cinema em geral, pois eu diria que há práticas cinematográficas que reconstituem
a autoridade do discurso, enquanto outras tentam fazer coisas que se assemelham
mais de perto à fotografia ou à pintura.307

Então, se antes do cinema as artes do visível se relacionavam com a


palavra como o seu “fora” – mas como um “fora” que era chamado pelo seu
“dentro” – esta arte, trazendo a palavra para o seu “dentro”, contudo, pode
continuar mantendo-a em sua borda, sem deixar-se comandar por ela, sem
submeter-se à sua autoridade logocêntrica mas, antes, podendo fazer com que o
elemento cinematográfico faça explodir o seu sentido metafísico.
Voltando à questão da crença, toda arte pode ser analisada a partir do
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regime de crença que ela põe em cena, sendo que este regime está ligado, para
Derrida, à técnica específica de cada arte. No caso do cinema, está em jogo uma fé
na visão,

Fé que é convocada pela própria técnica, pela nossa relação de incompetência


essencial à operação técnica. (pois mesmo se sabemos como alguma coisa
funciona, nosso conhecimento é incomensurável com a percepção imediata que
nos sintoniza à eficácia técnica, ao fato de que “ela funciona”: nós vemos que
“ela funciona”, mas mesmo se nós sabemos disso, nós não vemos como “ela
funciona”; ver e saber são incomensuráveis aqui.)308

Assim, entendemos em que sentido, para Derrida, a técnica não se opõe a


uma dimensão da fé mas, ao contrário, ela mesma a convoca, na medida em que,
como técnicas de registro do rastro, de arquivo, de escrita, elas só são possíveis
por conta de uma différance. Isto é, de um diferimento, de um desvio, de uma
duplicação e afastamento de si. Desse modo, se dizemos que toda visão, como no
cinema, é ver espectros, é pensar ver, podemos dizer, no mesmo sentido, que toda
visão é, no fundo, uma televisão, ou seja, uma visão afastada da coisa mesma, da

307
DERRIDA, J. “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida”. In: Pensar em não
ver. p. 27 - 28.
308
Id., “Spectrographies” In: Echographies of television p. 117. Tradução minha.
160

presença, uma visão na distância imposta pelo fantasma que exige que se acredite
nele.
Na relação com as artes, admitimos esta dimensão de crença de forma
muito mais fácil, porque assumindo a distância da obra daquilo que ela pretende
representar, precisamos ativar a crença para relacioná-la à sua origem. Assim, a
crença se faz necessária nas relações de distância entre a coisa e sua origem. E
como, para a metafísica, a “realidade” é o que está presente, o que é “em si
mesmo”, “como tal”, a relação de crença não se aplicaria a ela. Desse modo, a
metafísica pode opor uma visão a uma televisão, isto é, ela pode opor uma visão
presente e plena a uma visão na distância, mediada por dispositivos técnicos. Mas
Derrida desconstrói essa oposição. Pois, reconhecendo que tudo é rastro ou desvio
de uma origem sem origem, assim como toda fala é já escrita, toda visão seria
uma televisão.
Esta distância e este afastamento da origem é o que justifica, para a
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tradição do pensamento, o perigo e a falsidade das artes e da escrita, como aquilo


que é apenas da ordem da crença, pois não está presente a si mesmo. E insistimos
aqui que promover uma inversão e um deslocamento neste pensamento
tradicional, admitindo a impossibilidade da presença a si, é reconhecer que toda
experiência, mesmo as vividas fora do domínio das artes, isto é, mesmo as
experiências ditas reais, exigem uma crença, já que são também experiências
espectrais, isto é, vividas no afastamento e no diferimento de qualquer ideia de
presença. Por isso, a experiência cinematográfica, para Derrida, assim como as
outras artes, ao invés de se oporem a uma dita realidade, salienta e nos lembra a
espectralidade que já nos cerca na vida, transformando a vida em sobrevida e
admitindo que é preciso crer na realidade como nos espectros. Pois não há
vivência, não há experiência da realidade ou da presença que já não sejam feridas
ou diferidas pelo rastro de uma ausência, por um passado absoluto. É o que
podemos entender na explicação de Derrida em Espectrographies sobre as
transmissões ditas em “tempo real”:

Em princípio, todo acontecimento é experienciado ou vivido, como se diz e como


se acredita, em “tempo real”. O que nós estamos vivendo “em tempo real”, e que
achamos notável é o acesso preciso ao que nós não estamos vivendo: nós estamos
“ali” onde não estamos, em tempo real, através de imagens ou através de relações
técnicas. Aquilo acontece conosco, em tempo real, acontecimentos que não estão
acontecendo conosco, isto quer dizer, que nós não estamos experienciando
161

imediatamente ao nosso redor. Nós estamos lá, em tempo real, onde as bombas
estão explodindo no Kwait ou no Iraque. Nós gravamos e acreditamos que
estamos percebendo de um modo imediato acontecimentos aos quais nós não
estamos presentes. Mas o registro de um acontecimento, a partir do momento em
que há uma interposição técnica, é sempre diferido, o que quer dizer que esta
“différance” está inscrita no próprio coração da própria sincronia, no presente
vivo. [...] O encurtamento do intervalo é apenas o encolhimento no espaço dessa
“différance” e dessa temporalidade. Assim que nós somos capazes [...] de ver
espetáculos ou de gravar vozes que foram registradas no início do século, a
experiência que nós temos delas hoje é uma forma de presentificação que, apesar
de ser impossível e mesmo impensável antes, é, no entanto, inscrita na
possibilidade desse atraso ou desse intervalo que garante que haja experiência
histórica em geral, memória em geral. O que significa que não há nunca
absolutamente um tempo real. O que nós chamamos tempo real, e é fácil entender
como ele pode se opor ao tempo diferido na linguagem cotidiana, nunca é, de
fato, puro. O que nós chamamos tempo real é simplesmente uma “différance”
extremamente reduzida, mas não há puramente um tempo real porque a própria
temporalização é estruturada por um jogo de retenção ou de protensão e,
consequentemente, de rastros: a condição de possibilidade do presente vivo,
absolutamente real é já memória, antecipação, em outras palavras, um jogo de
rastros. O efeito de tempo-real é ele próprio um efeito particular da
“différance”.309
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Acreditamos que as análises derridianas, cada vez que abordam uma


determinada arte, salientam suas singularidades a partir deste modo de crença
ligada à sua técnica específica. Por isso, insistimos que se Derrida afirma que o
cinema inventou, há um século, um modo de crença sem igual, é porque o cinema
faz isso de forma absolutamente singular: “é o que faz a nossa experiência tão
estranha. Nós somos espectralizados pela tomada, capturados ou possuídos pela
espectralidade antecipadamente.”310 Mesmo se a câmera fotográfica, sem dúvida,
também nos captura e nos espectraliza da mesma forma, a câmera
cinematográfica, contudo, tem a capacidade de fotografar vários quadros em
sequência, numa dada velocidade que, depois, será projetada de forma a gerar no
espectador a sensação do movimento contínuo do cinema. Esta velocidade de
captura e de projeção contribui para aumentar o valor de crença do cinema. E
aqui, seria importante lembrar que esta arte cinética, isto é, que o movimento que
distingue o cinema da fotografia, só se dá a sentir, só se dá ao olhar, por meio de
um intervalo, de uma separação, de uma lacuna entre os fotogramas que se
encontram em sequência na película. Este intervalo entre os quadros seria como o
bater de pálpebras que garante à vista sua respiração, seria uma invisibilidade

309
DERRIDA, J. “Specrographies”. In: Echographies of television. p. 128 e 129. Tradução minha.
310
Ibid., p. 117. Tradução minha.
162

trabalhando por baixo da visão, possibilitando-a a partir da invisibilidade. Mas,


então, de qualquer forma, é importante perceber como a câmera e o projetor, no
caso do cinema, são multiplicadores da fantasmagoria.
Além dos dispositivos técnicos, Derrida lembra na entrevista ao Cahiers,
um outro aspecto importante no cinema que o diferenciaria do teatro e que
privilegia um “face-a-face” com os fantasmas. Este aspecto é aquele do modo de
exibição do espetáculo, pois, apesar de ser, por excelência, uma arte das massas,
ele proporciona a sensação de estar sozinho diante das aparições da tela. Na sala
de cinema, embora cercado por outros espectadores, quando as luzes se apagam e
as imagens entram em cena, é como se estivéssemos sozinhos. Portanto, esse
espetáculo partilha, ao mesmo tempo, a experiência da massa e do singular. Nas
palavras de Derrida:

O cinema – e esta é sua própria definição, a da projeção em sala – chama o


coletivo, o espetáculo e a interpretação comunitária. Porém, ao mesmo tempo,
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existe uma desvinculação fundamental: na sala, cada espectador está só. É a


grande diferença em relação ao teatro, cujo modo de espetáculo e arquitetura
interior contrariam a solidão do espectador. É o aspecto fundamentalmente
político: a audiência é uma e expressa uma audiência coletiva militante, e se ela
se dividir, é em torno de batalhas, de conflitos, da intrusão de um outro no seio de
um público. É o que me deixa frequentemente infeliz no teatro, e feliz no cinema:
o poder de estar só diante do espetáculo, a desvinculação suposta pela
representação cinematográfica.311

Podemos entender esta desvinculação que a desconstrução reconhece e


afirma no espetáculo cinematográfico não como uma postura apolítica, muito pelo
contrário. Esta desvinculação é a abertura para uma outra ideia de política, para
uma política que não perca a atenção à singularidade e à diferença na suposta
unidade das massas. Pois, para Derrida, é apenas na consideração da singularidade
que uma política pode abrir-se para o acolhimento das diferenças. E é nesse
sentido que a ideia de justiça, para Derrida, pode ser levada adiante por uma
política. Não apenas na ideia de uma democracia como um governo das massas –
pois isto não seria ainda suficientemente democrático. Seria preciso pensar no que
o filósofo chama de uma democracia por vir 312 , ou seja, na ideia de uma
democracia que esteja ciente de que, para ser justa, é preciso pensar a justiça
311
DERRIDA, J. “O cinema e seus fantasmas. Entrevista com Antoine de Baecque e Thierry
Jousse”. In: Pensar em não ver. p. 381.
312
Cf. Espectros de Marx.
163

como uma promessa, é preciso pensar que o tempo da justiça nunca se


presentificará coroando algum governo em si. Para ser justo é preciso manter
aberta a promessa do eterno porvir da justiça, da impossibilidade de sua
presentificação. Pois, uma democracia que se considere já democrática, sempre
deixará de fora de sua política todas as diferenças e singularidades, tudo o que não
pode ser acolhido como mesmo, tudo o que assombra na figura do outro.
Assim, o cinema, em sua espectralidade, nos lembra que o deixado de fora
é o fantasma, isto é, aquele que não pode ter a forma da presença e do vivo. É por
isso que ousamos pensar aqui, o cinema como um espaço da ética derridiana,
desta outra política, que não nos deixa esquecer dos fantasmas como aqueles que
não estão presentes.
Ousamos dizer que, por isso, talvez, o espectador sinta-se capturado pela
projeção cinematográfica. Porque diante do espetáculo, ele está diante da sua
própria condição espectral, devida a sua suposta presença-viva desajustada pela
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dessincronia dos tempos, pela impossibilidade da presença-viva que inscreve toda


vida como sobrevivência. A sobrevivência de que nos fala o cinema, como
testemunha da perda inevitável, é justamente a indecidibilidade do espectro
projetado diante de nós. Pois, se o espectro é o que não é nem visível nem
invisível, é porque ele está entre a vida e a morte, naquilo que Derrida chama de
uma sobre-vida, como única experiência de vida possível, ou melhor, im-possível,
porque no limite entre a vida e a morte:

... uma sobre-vida, a saber, um traço em relação ao qual vida e morte seriam
apenas traços e traços de traços, uma sobrevida cuja possibilidade vem
antecipadamente desajuntar ou desajustar a identidade a si do presente vivo.
Espíritos. É preciso contar com eles. Não se pode não dever, não se pode não
poder contar com eles...313

Contar com os fantasmas é contar com o que não está presente na forma
do vivo, é lembrar a nossa condição de herdeiros e, por isso, de devedores: é
lembrar que recebemos a vida de um outro, vindo de um passado absoluto, que
não está mais presente, mas que está antes e diante de nós, falando em nós. Para a
desconstrução, em nome de uma justiça, seria impossível esquecer dos fantasmas,

313
DERRIDA, J. Espectros de Marx. p. 13.
164

pois eles são aquilo que nunca é levado em conta na lógica do presente-vivo, na
ontológica binária da metafísica da presença e do vivo.
No cinema, são os fantasmas que retornam nos assombrando para nos
lembrar do tempo desajustado, do tempo fora dos eixos, da própria assombração
como sinal de que alguma coisa não vai bem no nosso “reino”: aquilo que Hamlet
sentia a necessidade de restaurar em nome da justiça. Uma justiça que não pode
ser feita sem contar com os fantasmas, ou seja, com aqueles que ainda não estão
ou já não estão presentes.
Se há uma diferença aqui entre Derrida e Hamlet é que em nome de uma
justiça, o filósofo não pretende ver o tempo restaurado, em seu devido lugar, na
possibilidade de cumprir a promessa ou de, enfim, redescobrir o tempo perdido.
Apesar dessa diferença, Derrida divide com o “príncipe da Dinamarca”, a
sensação de ter sido eleito “sentinela de uma desordem, o guardião cego e
vigilante dos espectros e dos crimes”314, pronto para denunciar o tempo fora dos
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eixos, disjunto ou desajustado. Não para, enfim, restaurá-lo ao seu devido lugar,
acreditando poder, de fato, fazer justiça, mas apenas lembrar que a justiça nunca
se faz. Em outras palavras, em nome da justiça, seria preciso observar sua
condição de promessa e denunciar o seu desajuste.
Nesse sentido, o cinema aparece como uma chance de conviver com os
fantasmas, com a lembrança da necessidade de não enterrar os mortos, mas de
falar deles ou falar com eles em nome de um futuro mais justo. Nas palavras de
Derrida:

É preciso falar do fantasma, até mesmo ao fantasma e com ele, uma vez que
nenhuma ética, nenhuma política, revolucionária ou não, parece possível,
pensável e justa, sem reconhecer em seu princípio o respeito por esses outros que
não estão mais ou por esses outros que ainda não estão aí, presentemente vivos,
quer já estejam mortos, quer ainda não tenham nascido. Justiça alguma [...]
parece possível ou pensável sem o princípio de alguma responsabilidade, para
além de todo presente vivo, nisto que desajunta o presente vivo, diante dos
fantasmas daqueles que já estão mortos ou ainda não nasceram, [...]. Sem essa
não- contemporaneidade a si do presente vivo, sem isto que secretamente o
desajusta, sem essa responsabilidade e respeito pela justiça com relação a estes
que não estão presentes e vivos, que sentido teria formular-se a pergunta “onde?”,
“onde amanhã?”315

314
DERRIDA, J. Tourner les mots. p. 91. Tradução minha.
315
Id., Espectros de Marx. p. 11 - 12.
165

Portanto, a ética desconstrutiva posta em cena pelo cinema, seria esta


convivência perto dos fantasmas que não nos deixa esquecê-los como promessa
de justiça. Uma convivência ao mesmo tempo respeitosa e responsável, ou seja,
uma convivência que saiba da distância, do afastamento dessa relação, mas que
inclua também uma responsabilidade como a necessidade de responder aos
fantasmas que falam em nós ou conosco.
É por isso que, para Derrida, o lugar do espectador cinematográfico não
pode se transformar naquele do espectador competente, de quem deve teorizar
sobre a obra como quem, realmente, pôde visioná-la. Pois estes espectadores
“competentes” não acreditam nos fantasmas, não veem as aparições do espetáculo
cinematográfico como espectros, mas têm a ilusão, ao contrário, de poderem ter
acesso pleno à obra assistida, sem um excesso que escape para assombrar a
interpretação, como um expert ou como o que Derrida chama, a partir do
personagem Marcelo de Hamlet, de um scholar. Nas palavras de Derrida em
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Espectros de Marx:

No fundo, o último a quem um espectro pode aparecer, dirigir a palavra ou


prestar atenção, é um espectador enquanto tal. [...] Teóricos ou testemunhas,
espectadores, observadores, eruditos e intelectuais, os scholars acreditam que
basta olhar. Por isso, eles já não se encontram sempre na posição mais
competente para fazer o que é necessário, falar ao espectro. [...] Nunca houve um
scholar que tivesse verdadeiramente, enquanto tal, lidado com fantasmas. Um
scholar tradicional não acredita em fantasmas – nem em tudo a que se poderia
chamar o espaço virtual da espectralidade. Nunca houve scholar que, enquanto
tal, não acreditasse na distinção definitiva entre o real e o não-real, o efetivo e o
não-efetivo, o vivo e o não-vivo, o ser e o não-ser (...), a oposição entre o que está
presente e o que não está, por exemplo sob forma de objetividade. Para além
dessa oposição, não há para o scholar senão hipótese acadêmica, ficção teatral,
literatura e especulação.316

Por isso a necessidade da relação de Derrida com o cinema permanecer


uma relação “não cultivada”, a necessidade dele, como um espectador singular ao
meio de outros tantos olhares singulares, permanecer um “voyer invisível” na sala
escura. A necessidade de não se colocar diante dos fantasmas como um scholar,
como um teórico, pois essa postura é a postura da ilusão de que basta ver, da
ilusão da possibilidade de olhar presentemente sem atentar para a condição
espectral de tudo o que há. Portanto, este cuidado da relação não cultivada com o

316
DERRIDA, J. Espectros de Marx. p. 27.
166

cinema é a assunção de uma certa “incompetência”, de uma certa passividade


diante dos fantasmas cinematográficos. O cinema, como a possibilidade de
proporcionar essa experiência de “voyeur invisível” na sala escura da projeção,
abre para uma convivência respeitosa, distanciada, para a convivência de uma
relação sem relação com os fantasmas. Abre a possibilidade de falar deles ou de
deixá-los falar conosco ou em nós. Se esconder na sala escura do cinema, se
colocar na posição do voyeur invisível diante daquelas aparições fantasmáticas é
estar ciente que, nessa experiência, se está sob a influência dos fantasmas, sob o
olhar das aparições da tela que olham sem serem vistas. Pois o fantasma não é
justamente aquele que pode olhar sem ser visto? Para Derrida, não se pode cruzar
o olhar dos fantasmas, já que eles vêm de um outro tempo, um tempo fora do
tempo que não pertence ao “agora” da visibilidade, mas à lembrança ou à projeção
do que não está presente. Essas aparições da tela, capturadas pelo dispositivo
cinematográfico – graças apenas à disjunção do tempo, que permite a
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reprodutibilidade técnica – exercem no espectador aquilo que Derrida chama o


direito de olhar da obra como uma fascinação que resulta em uma dissimetria
entre obra e espectador, tirando deste último o poder da visão, o poder de
apropriação plena da obra e, tornando a experiência artística uma experiência de
ser observado pela obra mais do que observá-la – como já dissemos ser a
experiência de um observador diante de um quadro, sob o ponto de vista de
Mémoires d’aveugle, no segundo capítulo desta tese. É também o que Derrida
nomeia, em Espectros de Marx, o efeito de viseira317 como o poder do fantasma
ver sem ser visto:

Esta Coisa [o espectro] olha para nós, no entanto, e vê-nos não vê-la mesmo
quando ela está aí. Uma dissimetria espectral interrompe aqui toda

317
Derrida nomeia o efeito de viseira a partir do fantasma do pai de Hamlet que aparece vestindo
sua armadura. Citamos Espectros de Marx: “A armadura não deixa ver nada do corpo espectral,
mas à altura da cabeça sob a viseira, permite ao soi-disant pai ver e falar. Fendas aí são
preparadas, e ajustadas, permitindo-lhe ver sem ser visto, mas falar para ser ouvido (…). Para o
efeito de elmo basta que uma viseira seja possível, e que se jogue com ela. Mesmo quando está
erguida, de fato, sua possibilidade continua a significar que alguém, sob a armadura, pode, com
segurança, ver sem ser visto ou sem ser identificado. Mesmo quando está erguida, a viseira,
recurso e estrutura disponíveis, sólida e estável como a armadura, a armadura que cobre o corpo
dos pés à cabeça, a armadura de que faz parte e a que está presa. Eis o que distingue uma
armadura de uma máscara, com que, no entanto, compartilha esse poder incomparável, talvez a
insígnia suprema do poder: poder ver sem ser visto.” In: DERRIDA, J. Espectros de Marx. p. 23 e
24.
167

especularidade. Ela dessincroniza, faz-nos voltar à anacronia. A isto chamaremos


efeito de viseira: não vemos quem nos olha.318

Assim, mais do que assistir ao filme numa postura puramente ativa, o


espectador cinematográfico vive a experiência de ser assistido pelo cinema e seus
fantasmas:

Sentimo-nos olhados por ele [algum outro espectral], fora de toda sincronia, antes
mesmo e para além de qualquer olhar de nossa parte, segundo uma anterioridade
(que pode ser da ordem da geração, de mais de uma geração) e uma dissimetria
absolutas, segundo uma desproporção absolutamente incontrolável. A anacronia
faz a lei aqui. Que nos sintamos vistos por um olhar com que sempre será
impossível cruzar, aí está o efeito de viseira, a partir de que herdamos a lei. Como
não vemos quem nos vê, e quem faz a lei, quem liberta a injunção, uma injunção
aliás contraditória; como não vemos quem ordena “jura” (swear), não podemos
identificá-lo com toda certeza; ficamos entregues à sua voz. (...), só podemos
acreditar em sua palavra. Submissão essencialmente cega ao seu segredo, ao
segredo de sua origem, eis uma primeira obediência à injunção.319
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Esta experiência de ser observado pelo cinema marca bem a passividade


da experiência cinematográfica que Derrida não deixa de lembrar tanto do ponto
de vista do espectador como do ponto de vista do Ator, daquele cuja imagem, na
projeção da sala escura, como fantasma, parece observar o espectador. Pois, se a
experiência de Derrida como espectador é aquela de uma certa passividade do
olhar, de uma certa cegueira, a de ser observado pelo cinema, é assim também que
ele marca sua experiência como Ator do seu “próprio” personagem em D’ailleurs,
Derrida, o filme de Safaa Fathy que gira em torno do filósofo. Derrida confessa:

Nunca, com conhecimento de causa, eu agi assim como cego, os olhos fechados
sobre uma ordem que me ditava: “nesse ponto, nessa data, você deve renunciar a
guardar e a te guardar e a te resguardar. Renunciar a tudo, renunciar a todos os
aspectos que você reserva habitualmente ao que te protege. Esquecer tudo aquilo
que te guarda ou te resguarda, sim, baixar a guarda, desfaça-se das armas do
discurso, não conserte mais palavra por palavra, adormeça a vigilância de uma
palavra que não terminaria nunca de se precisar, refinar (...), de pesar o pró e o
contra para, enfim, se retirar. Aceite a hipnose, sim, a hipnose.320

318
DERRIDA, J. Espectros de Marx. p. 22.
319
Ibid., p. 23.
320
Id., Tourner les mots, p. 73. Tradução minha.
168

A hipnose que Derrida reconhece sentir diante das imagens


cinematográficas, como espectador, pode ser comparada à sensação de hipnose na
experiência de se deixar dirigir por um outro num filme que, apesar de se propor
retratá-lo, não é obra sua, mas de outra pessoa e, por isso, decidida, editada a
partir do ponto de vista de um outro sobre ele. Este ponto de vista do outro sobre
ele é o que o assujeita, o que o cega, nos lembrando a heteronomia como a lei do
outro a que estamos submetidos e que se pode sentir muito bem na narrativa da
experiência do filme retratada pelo filósofo em Tourner les mots. Que experiência
é essa de ter que baixar a guarda para se deixar comandar por um outro, ao mesmo
tempo em que deveria representar-se a si mesmo, em que deveria deixar falar o
seu “próprio” pensamento, seu “próprio” discurso? Pois, se por um lado, esta é a
experiência de uma certa hipnose, contudo, Derrida diz não ter recebido, hora
nenhuma, um roteiro ou um texto que devesse seguir. Todas as cenas, todas as
palavras do filme foram improvisadas por ele, dando a ver, portanto, uma
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encenação em que, aparentemente, ele era sempre muito ativo. Por isso, esta
hipnose seria uma “quase-hipnose” 321 . Eis aí a indecidibilidade entre uma
passividade e uma atividade que se marca na experiência cinematográfica como
espécie de cegueira: para o espectador essa passividade ativa ou esta atividade
passiva reflete-se na experiência de ser observado pelas imagens que ele pensa ver
e, no caso do Ator ou do retratado de um filme, reflete-se não só na experiência de
ser observado e capturado pela câmera, como também no “mal-estar” em encenar
o seu “próprio” personagem, em representar o seu “próprio” papel. É esse “mal-
estar” que Derrida observa, entre outras coisas, marcado no título do filme,
D’ailleurs, Derrida. Leiamos a declaração de Derrida:

Que eu permaneça estrangeiro (“ailleurs”, outro) mesmo em relação a minha


“verdade”, eis a experiência da qual eu não chegarei a falar mas que me parece
dever ser ao menos evocada. Pensada senão conhecida. Divórcio entre o Ator e
mim. Esse divórcio, essa separação de corpos parece privar o Ator, certamente,
de toda verdade representativa, de toda legitimidade, de toda fidelidade: há o
abismo entre ele e mim. Mesmo se o Ator me interpreta e me representa, se ele
representa um personagem reenviando a minha pessoa, ele não sou eu, ele não me
reflexiona (réfléchit), não mais do que ele não me reflete (reflète). Ele me trai.
Mas inversamente é preciso saber que esse divórcio não começou com a
filmagem, com o desvio da filmagem (e divorciar é se separar por uma via, por
um desvio: divortium, divertere, eis a imagem). O divórcio entre o Ator e mim,
entre os personagens que ele representa e mim, entre os meus papéis e mim, entre

321
DERRIDA, J. Tourner les mots, p. 111. Tradução minha.
169

minhas “partes” e mim, começou em “mim” bem antes do filme. E isso se


multiplicou, proliferou durante toda “minha-vida”.322

Assim, por um lado, Derrida mostra o desvio inevitável da imagem, o


divórcio entre todo tipo de registro e aquilo que o registro pretende representar.
Mas, por outro lado, o filósofo enfatiza como esse desvio, esse divórcio, já está na
“vida” antes mesmo de qualquer filmagem e que o filme, levando à cena esses
divórcios, mostraria uma verdade, na medida em que refletiria os divórcios,
apenas a partir dos quais toda identidade se dá. Portanto, o filme é, ao mesmo
tempo o divórcio, a distância, a representação impossível de Derrida, a ficção que
representa o filósofo na sua ausência, como o seu fantasma, como a sua imagem,
como o seu simulacro. Mas também seria um documentário, um registro
“verdadeiro”, na medida em que seria o próprio arquivo, a própria testemunha do
divórcio que já está em operação na vida do filósofo como de quem quer que seja,
como a impossibilidade de qualquer identidade una. Nesse sentido, Derrida chama
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atenção no livro em torno do filme para uma indecidibilidade entre os gêneros do


filme documentário e de ficção. Pois, se o filme pretende dizer a verdade sobre
Derrida, isto é, pretende retratá-lo e apresentá-lo como filósofo, ao mesmo tempo,
há já nele uma ficcionalidade em operação. Ouçamos Derrida:

Se me acontece agora de dizer tanto o Ator quanto eu, isso não será portanto
sempre o resultado de uma escolha deliberada. É que muitas vezes eu não sei
mais, o indecidível está no lugar. Ali onde o filme acontece, o incalculável já
estava lá. Deixando-lhe sua “parte”, fazendo seu jogo, eu não acredito que o filme
tenha registrado o incalculável como o faria um constato realista ou o arquivo de
um documentário. Com a energia inventiva de uma ficção, ele relançou ou
intensificou, ele capitalizou o incalculável através de todas as espécies de
máquinas e maquinações.323

Se Derrida fala aqui, especificamente, de D’ailleurs, Derrida, nós


disseminamos essa questão, acreditando que, então, para Derrida, nenhum filme
dito documentário pode pretender ser um constato realista do que quer que seja,
dado que uma ficcionalidade está já sempre em operação em todo registro.
Assumindo isso, o filme de Safaa Fathy parece, então, capitalizar ou abusar dessa
“energia inventiva” para registrar o filósofo, pretendendo, desse modo, dar a ver a

322
DERRIDA, J. Tourner les mots. p. 74 e 75. Tradução minha.
323
Ibid., p. 76. Tradução minha.
170

indecidibilidade entre invenção e realidade que está em jogo em todo suposto


“documentário”. É o que entendemos também quando, em Tourner les mots,
Derrida chama-se o Ator do seus próprios “eus”, já que não é suposto um
documentário contar com atores. Tradicionalmente, num documentário, como
gênero de filme que pretende mostrar a verdade, não se conta com interpretação,
com atuação, com atores mas, uma vez que se tem a pretensão de mostrar a coisa
nela mesma, enquanto tal, sem desvios miméticos, os personagens devem ser eles
mesmos e não outros que assumam os seus lugares. Assim, dizer-se o Ator de si
mesmo é já chamar atenção para uma distância e um desvio entre “mim e mim”,
entre “mais de um eu” que o documentário tradicional gostaria de esconder ou
diminuir ao pretender fazer o retrato de uma suposta identidade una. O filósofo
segue explicando essa divisão da identidade na indecidibilidade entre os gêneros
documentário e ficção:
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A “verdade”, a verdade “realista” dessa “realidade” não exclui em nada a ficção,


bem ao contrário. Essa surge toda nova e recém nascida de uma certa aliança do
documento com o simulacro. O Ator o sugere desde o primeiro segundo: a única
seletividade, diz ele em suma, o único corte, a única finitude das imagens não
engendra outra coisa senão uma simples reprodução do verdadeiro. Sobretudo no
momento decisivo da montagem. Esta performa ao mesmo tempo uma ficção e
uma outra verdade, uma verdade mais ou menos verdadeira do que a verdade,
aquela do testemunho jurado (“toda a verdade, nada além da verdade”). Meu
terror ou minha esperança, eu não sei mais, é a seguinte: que a ficção torne-se um
arquivo. Não apenas porque ela seria arquivada como ficção, mas porque ela teria
lugar de arquivo.324

Ou seja, Derrida expressa a indecidibilidade entre arquivo realista ou


ficcional. Pois esta indecidibilidade é a impossibilidade de qualquer
acontecimento estabelecer-se como verdade, como palavra final. O que pode ser,
ao mesmo tempo, um terror, já que nada pode estabilizar-se num presente, mas
também uma esperança, já que esta impossibilidade da presença é a única
possibilidade da diferença, da mudança, do porvir do que quer que seja.
Em outras palavras e para reenviar ao que já dissemos sobre o processo de
identificação, para a desconstrução, o filme como divórcio, seria a experiência de
que toda identificação se dá como expropriação de si, como a multiplicação, a
invenção ou a encenação dos nossos incontáveis “eus”:

324
DERRIDA J. Tourner les mots. 78. Tradução minha.
171

Isso não me é próprio, estou bem convencido, “nós” podemos todos dizer o
mesmo, tudo e todos sofremos o mesmo, gozamos o mesmo, mas cada divórcio
tem sua história, seu estilo, sua língua, seu rosto, seus nomes próprios, suas
assinaturas, e se o filme deu a entrever meus divórcios, os nomes de meus
divórcios, ele terá dito verdade, de sua “parte” ele terá feito a parte das partes, ele
terá feito verdade a cada vez para os divórcios que nos são comuns e verdade
para os insubstituíveis e irreversíveis divórcios que foram meu lote, que foram os
meus próprios (quero dizer entre eu e mim, divórcios os mais frequentemente
secretos, concluídos por vezes por traição unilateral, às vezes amigavelmente, às
vezes com reconhecimento de erros recíprocos, às vezes por incompatibilidade de
humor, etc.) (...) Dizendo de outro modo, o divórcio entre o Ator e mim, é bem
possível que ele [o filme] tenha fielmente representado, na verdade, até um certo
ponto, e reproduzido o divórcio entre mim e mim, entre mais de um eu, entre eu e
meus papéis “na existência”, “alhures” ao filme. Entre mim e as imagens de mim,
as visuais e as sonoras – que me foram sempre, meus amigos e os meus poderão
atestá-lo, intoleráveis. As quais eu sempre fui doentemente alérgico (nunca esta
palavra me pareceu mais justa).325

Mais do que produzir o divórcio, o filme terá reproduzido, representado


esse divórcio que já era da “existência”. É nesse sentido que todo filme, todo
registro diz ou retrata a “verdade”, na medida em que ele reproduz a
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espectralidade da vida ou, para usar palavras derridianas, da sobrevida. Pois a


“própria” vida é já escrita, é já simulacro. E, portanto, o filme, como “simulacro
do simulacro”, diz dos nossos divórcios ou das nossas expropriações como
memória da nossa sobrevivência.

325
DERRIDA, J. Tourner les mots. p. 75. Tradução minha.
172

4
Adeus: despedida e saudação

Para finalizar sem finalizar, isto é, para deslocar a conclusão da pretensão


logocêntrica da palavra final, para abrir o porvir dos temas levantados por esta
tese, gostaríamos de continuar ainda um pouco no assunto dos fantasmas, naquilo
que nele inscreve a impossibilidade de um fim ou, mais especificamente, a
impossibilidade da morte. A morte de alguém ou de algum tema, de algum
pensamento, não exatamente do que quer que seja, mas do que quer que reste.
Porque, como vimos, deslocar o pensamento do ser para o pensamento do
fantasma ou da assombração, isto é, deslocar uma ontologie para uma hantologie,
seria reconhecer tudo o que “é” ou que pretende “ser”, como restância, como
sobrevivência, uma vez que só vivemos a vida no rastro da morte, da morte dos
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outros e da nossa “própria” morte.


Assim, o que gostaríamos de marcar nessa conclusão impossível é o
caráter afirmativo da sobrevivência ressaltado por Derrida, uma sobrevivência
originária que não está

...mais do lado da morte, do passado do que da vida e do futuro. (...) Tudo o que
eu digo da sobrevida como complicação da oposição vida/morte, procede em
mim de uma afirmação incondicional da vida. A sobrevivência, é a vida além da
vida, a vida mais que a vida.326

Há nesta ideia de sobrevivência derridiana um sentido da vida marcado


pela morte, da vida como um continuar a viver até a morte, da vida como a morte
ainda não presentificada, e ainda, o sentido de uma vida após a morte, de uma
vida além da morte, como no caso da sobrevivência de um livro após a morte de
seu autor ou da assombração daqueles que amamos e que morreram antes de nós
e, no entanto, retornam como o que resta deles, como lembrança, atestando a
impossibilidade de fazermos seu luto, a impossibilidade de, realmente,
enterrarmos nossos mortos de uma vez por todas. Pois, “quando alguém morre e

326
DERRIDA, J. Apprendre à vivre enfin. Entretien avec Jean Birnbaum. Paris: Éditions Galilée/
Le Monde, 2005. p. 54. Tradução minha.
173

se repete o anúncio de sua morte mais de um dia (...), quando se repete mais e
mais, é porque está acontecendo outra coisa, é que o morto não está tão morto.”327
Desse modo, gostaríamos de chamar atenção para o deslocamento
proporcionado por Derrida nos discursos de tom apocalíptico como aqueles que
atestam a morte da filosofia, a morte da arte, a morte do comunismo, a morte do
cinema, em suma, que decretam o fim do mundo. Derrida perturba esses discursos
por detectar neles um sintoma: o sintoma de um trabalho de luto em curso, um
trabalho de luto infinito que, justamente, fere a vida de morte, transformando-a
em sobrevida e inscrevendo-a como responsabilidade de levar o mundo depois do
fim do mundo, de levar a vida depois da morte do outro de quem a recebemos
como uma herança. Assim, podemos perceber que a perturbação desses discursos
não pretende, obviamente, negar a morte, mas reconhecer como a vida continua e
só começa como continuação, como sobrevivência depois de todas essas mortes e,
por isso, como afirmação da vida.
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É nesse sentido que nos permitimos abrir aqui um espaço para uma
provocação específica, que adiantamos inscrever-se apenas como promessa e
porvir de outros pensamentos e, portanto, não pretende encontrar nenhuma
resposta, mas apenas marcar-se como inquietação.
Desviando-nos um pouco da experiência especificamente derridiana do
cinema, contudo inscrevendo-nos nos rastros desse pensamento da sobrevivência
e do luto impossível, lançamos uma provocação de tipo desconstrutiva a respeito
das obras e de algumas declarações de dois grandes cineastas contemporâneos:
Jean-Luc Godard e Peter Greenaway. Encontramos em ambos os cineastas,
embora de formas diferentes, um certo discurso em torno do slogan “a morte do
cinema”. Godard já declarou esta morte em algumas entrevistas e Peter
Greenaway, por sua vez, também já o fez, dando palestras ao redor do mundo
sobre a preocupação do cinema ter-se entregue a formas narrativas literárias e não
explorar interações mais ativas com seu público, fazendo o cineasta apresentar
outras disposições e formatos para a exibição de filmes nas salas de cinema.
O que gostaríamos de propor como levantamento de uma discussão é a
aporia desse discurso sobre a morte ou o fim do cinema, proferido por dois
cineastas, que acreditamos ser dos que mais trabalham e reinventam a linguagem

327
DERRIDA, J. “Marx é alguém” In: Pensar em não ver. p. 427.
174

ou a escrita cinematográfica. Pois, em que sentido Godard e Greenaway poderiam


defender tal discurso sobre a morte do cinema, se suas obras atestam que ele está
vivo? Não seria, talvez, porque, no mesmo sentido derridiano, essas obras
marcariam uma sobrevida do cinema, uma vida após a morte ou uma vida
marcada de morte e trabalhada neste luto? Uma vida que já nasceu da morte do
cinema? O que acreditamos poder pensar porvir é como esses cineastas trabalham
exatamente no limite do cinema, na exaustão e na explosão da sua linguagem e,
portanto, na assunção da sobrevivência e da espectralidade da arte
cinematográfica.
Podemos pensar também que, talvez, esses cineastas queiram dizer da
morte do cinema no mesmo sentido em que Derrida fala, em Gramatologia, do
“fim do livro e o começo da escritura”328. Este título de um capítulo da obra de
Derrida, ao contrário do que possa parecer, não decreta a morte do livro, mas
apenas chama atenção para o que o pensamento logocêntrico gostaria de poder
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circunscrever dentro dos limites do livro, em sua ilusão de unidade e totalidade,


com um começo, meio e fim. O “começo da escritura”, de que fala Derrida, joga o
livro para fora do livro, impedindo sua unidade, sua pretensão de fechamento e
assim, na verdade, pede mais e mais livros, infinitos livros, assumindo a
impossibilidade de esgotar qualquer assunto ou qualquer escrita. Será que
podemos ouvir o discurso de Godard e de Greenaway neste mesmo tom
desconstrutivo? Isto é, uma morte do cinema que peça mais e mais filmes para
trabalhar este luto infinitamente? Enfim, não queremos estender esse assunto,
contudo, apenas marcá-lo como uma das apostas de continuação ou assombração
das reflexões abertas por este trabalho.
Assim, esta conclusão impossível marca-se como o “adeus” derridiano,
onde não se lê apenas uma despedida, mas também uma saudação e abertura para
uma relação de alteridade com o pensamento que não terminará de se escrever.
Pois a saudação e a despedida assinaladas no “adeus” – repensado por Derrida na
linha de Lévinas – assumem-se na interdição de toda relação, na relação sem
relação de que já falamos diversas vezes. Se o adeus pensado tradicionalmente
seria aquele da despedida e, mais radicalmente, aquele diante da morte, para
Derrida, este adeus se dá diante de cada relação de alteridade, diante de toda

328
DERRIDA, J. Gramatologia. p. 7.
175

relação amorosa. Porque esta é já marcada por uma certa melancolia baseada na
certeza de que um dos dois morrerá antes e, por isso, caberá ao sobrevivente
carregar um diálogo com o outro, que já não responde mais. Mas se ele não
responde mais é também porque, diz Derrida, ele começa a responder de outra
maneira, dentro de nós, como outro em nós. Esse diálogo constante que é
carregado pelo sobrevivente não é um diálogo "de identificação, nem de simetria,
nem de reconhecimento, mas o dessa estranha comunidade: é esse Comum que
nos une, separando-nos"329
O luto impossível, anterior a qualquer morte, enxerga na vida uma relação
com fantasmas. Se o luto normal só se dá com a morte, o luto na perspectiva
derridiana se inicia com cada relação, ou melhor, possibilita e impossibilita toda
relação como num aceno que ao mesmo tempo saúda e se despede:

A relação com o amigo é sempre um cogito do adeus, uma saudação sem retorno.
Porém, assim o é desde o primeiro momento, desde a primeira saudação. O luto
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está sempre adiantado, está sempre ali, antes de toda morte. Já sabemos quando
trocamos a primeira palavra com o amigo que um dos dois morrerá antes, e que
ao outro compete a tremenda responsabilidade de “levar seu mundo” depois do
fim do mundo, do fim deste mundo singular e único. A cada vez, com cada amigo
morto, produz-se o fim do mundo. (...) O sobrevivente, o que permanece só, em
um mundo fora de mundo, sente-se responsável por levar o outro e seu mundo, o
outro e o mundo desaparecidos (...). Que responsabilidade levar seu mundo!330

Esta responsabilidade marca a afirmatividade do luto impossível, pois é o


seu trabalho interminável que inscreve a vida como engajamento: “O sim que o
luto implica não é aquele que é dado a uma determinada causa, mas aquele que
confirma a impossibilidade de não se engajar: desde sempre estamos enredados na
escritura, em seu movimento incessante e disto não podemos fazer o luto.”331
É nesse engajamento que encontro-me aqui, na tarefa de guardar os temas
deste trabalho não na perspectiva da memória de um passado que possa ser
resgatado por um relato, mas na memória de um porvir, da esperança e da

329
CRAGNOLINI, Mónica. “adieu, adieu, remember me: Derrida, a escritura e a morte”. In:
DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar (org.) Espectros de Derrida. Rio de Janeiro: NAU Editora: Ed.
PUC-Rio, 2008, p. 43.
330
Id., “adieu, adieu, remember me: Derrida, a escritura e a morte”. p. 42.
331
CONTINENTINO, A. M. A alteridade no pensamento de Jacques Derrida: escritura, meio-luto,
aporia. Tese de doutorado, Rio de Janeiro, 2007. p. 130.
176

promessa de escritas que se farão, “com o sentimento, ao mesmo tempo


desenganado e cheio de esperança, de que ainda não comecei...”332.
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332
DERRIDA, J. “O sobrevivente, o sursis, o sobressalto”. In: Pensar em não ver. p. 438.
177

5
Referências bibliográficas

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BERNARDO, F. (Coord.). Derrida à Coimbra/Derrida em Coimbra. Viseu,


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6
Anexos

Anexo 1
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011750/CA

Vincent Van Gogh, Vieux souliers aux lacets, 1886, Museu Van Gogh.
188

Anexo 2

Antoine Coypel, Estudos de cegos,


1752, Museu do Louvre.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011750/CA
189

Anexo 3
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011750/CA

Antoine Coypel, O Erro, 1752, Museu do Louvre.


190

Anexo 4

Joseph-Benoit Suvée, Dibutade


ou a Origem do Desenho, 1799,
Bruges, Groeninguemuseum.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011750/CA

Jean-Baptiste Regnault,
Dibutade ou a Origem
do Desenho, 1785,
Castelo de Versailles.
191

Anexo 5
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011750/CA

Odilon Redon, Olho com Papoula, 1892, Museu do Louvre,


fundos do Museu d’Orsay.
192

Anexo 6
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011750/CA

Henri Fantin-Latour, Autorretrato, 1860, Museu do Louvre,


fundos do Museu d’Orsay.
193

Anexo 7
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011750/CA

François Stella, Ruínas do Coliseu de Roma, 1587, Museu do Louvre.


194

Anexo 8
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011750/CA

Daniele de Volterra, Mulher aos Pés da Cruz, 1545, Museu do Louvre.

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