Pensar Ver
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Tese de Doutorado
Rio de Janeiro
Setembro de 2014
Maria Continentino Freire
Ficha Catalográfica
CDD: 100
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1011750/CA
À Fernanda Bernardo por ter encorajado o percurso desta tese na relação entre
arte e desconstrução, pelo cuidado e dedicação da orientação, pela riqueza dos
seminários e pelo acolhimento em Portugal.
Aos amigos do percurso acadêmico cujo companheirismo tornou esse trajeto mais
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rico e mais alegre: Ana Fay, Denise Dardeau, Gabriela Dunhofer, Jorge Sayão,
Leinimar Pires, Marianna Poyares, Marlon Miguel, Paola Gheti, Paula Padilha,
Rodrigo Brum, Rômulo Martins e Thiago Faria.
Aos amigos da vida pelo amor de sempre, mesmo no meu afastamento: Catalina
Baeza, Claudia Solano, Juliana Saba e Thiago Barros.
À Luisa Duarte, amiga querida, por lembrar constantemente que além de escrever
é preciso dançar.
Esta tese se propõe a refletir a postura de Jacques Derrida diante das obras
de arte ditas visuais. Partindo de uma invisibilidade na fonte de todo visível,
Derrida problematiza a estrutura hierárquica do pensamento estético, abrindo uma
outra abordagem artística não sobre, mas em torno das obras. O famoso tema de
um abalo desconstrutivo no pensamento metafísico da presença desdobra-se, neste
trabalho, na in-visibilidade do traço do desenho e na espectralidade da imagem
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cinematográfica.
Palavras-chave
Cette thèse vise à penser le point de vue de Jacques Derrida vis-à-vis les
oeuvres d’art visuels. En partant d’une invisibilité à la source du visible, Derrida
met en question la structure hiérarchique de la pensée esthétique en ouvrant une
autre approche, non pas sur les images, mais autour d’elles. Le célèbre thème du
choc déconstrutif dans la pensée métaphysique de la présence est traité, ici, dans
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Mots-clés
Introdução 11
6. Anexos 187
“Tudo quanto faço, sobretudo quando escrevo, parece-se com um jogo de
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“Escrevo sem ver. Vim. Queria beijar-vos a mão (...) Eis a primeira vez que
escrevo nas trevas (...) sem saber se formo caracteres. Por todo lado em que
não houver nada, lede que vos amo”.
Denis Diderot
“É preciso falar do fantasma, até mesmo ao fantasma e com ele, uma vez que
nenhuma ética, nenhuma política, revolucionária ou não, parece possível,
pensável e justa, sem reconhecer em seu princípio o respeito por esses outros
que não estão mais ou por esses outros que ainda não estão aí,
presentemente vivos, quer já estejam mortos, quer ainda não tenham
nascido”.
Jacques Derrida
11
Introdução
Esta tese inicia-se por instalar uma dúvida, uma suspeita, no seu próprio
valor de tese. A expressão que a intitula – pensar ver – concede uma dupla leitura:
por um lado, ela pode dar a entender – fazendo soar a falta de uma articulação
entre os dois verbos – que o trabalho desenvolvido aqui é aquele de “pensar o
ver”, de um pensamento do visível. Essa primeira leitura, talvez, mais adequada à
proposição de uma tese, pode nos fazer acreditar que o nosso objetivo é
estabelecer ou aprofundar uma relação de saber, de conhecimento, entre o pensar
e o ver. No entanto, deslocando essa leitura, o foco da nossa atenção direciona-se
à dimensão mais corriqueira desta expressão da língua portuguesa que,
extraordinariamente, suspende a certeza do olhar e faz aparecer no verbo pensar o
seu efeito de crença: quem pensa ver, acredita que vê, acha que vê, vacila na
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1
Texto recentemente publicado na França no livro de mesmo título, que inclui uma série de textos
em torno das artes do visível. DERRIDA, J. Penser à ne pas voir. Écrits sur les arts du visible
1979-2004. Paris: Éditions de la différence, 2013.
12
nem o pensar nem o ver pudessem deixar de ser questionados na sua pretensão de
plenitude.
Deste modo, a expressão pensar ver já aponta para o que chamamos aqui
de uma desconstrução do modelo ótico, consistindo na denúncia derridiana de um
privilégio do visual ou de uma autoridade do olhar que, junto com uma imposição
do logos e um valor de presença, para Derrida, dominam a história da filosofia,
fundamentalmente, conferindo-lhe uma dogmaticidade e uma pretensão de
hegemonia sobre outros discursos. Como Derrida confessa:
filosofia são temas recorrentes e dos quais não se pode escapar quando tratamos
da desconstrução, contudo, a abordagem dessa autoridade do olhar só aparece
tematizada de forma explícita na obra de Derrida mais tardiamente e, na maior
parte das vezes, naquelas obras que giram em torno das artes ditas “visuais”,
como o desenho e o cinema. A partir da leitura dessas obras, em que Derrida trata
de uma certa experiência da invisibilidade ou da cegueira, principalmente em
3
Mémoires d’aveugle e em algumas entrevistas e palestras publicadas
recentemente no livro Pensar em não ver4, acreditamos ser possível associar o seu
interesse pelo abalo de uma autoridade do visual às suas problematizações mais
antigas em relação ao que é estrutural na filosofia e a partir das quais o
pensamento de Derrida ficou conhecido como o pensamento da desconstrução.
Derrida assume:
2
DERRIDA, J. “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida.” In: Pensar em não ver.
Escritos sobre as artes do visível (1979-2004). Tradução: Marcelo Jacques de Moraes.
Florianópolis: Editora UFSC, 2012. p. 20.
3
Id., Mémoires d’aveugle: l’autoportrait et autres ruines. Éditions de la Réunion des Musées
Nationaux, Paris: 1990.
4
Id., Pensar em não ver. Escritos sobre as artes do visível (1979-2004). Florianópolis: Editora
UFSC, 2012.
13
entre ver e saber, garantindo à filosofia a autoridade do seu discurso, já que ela
fia-se na plenitude da visibilidade como certeza e testemunha do acesso à verdade
do que quer que seja.
Quanto à abordagem filosófica das artes, por exemplo, esta autoridade
manifesta-se na crença na possibilidade de acesso pleno – pela visão, no caso das
artes ditas “visuais” – à obra. Acreditando poder desvelar sua verdade teorizando
sobre ela, a filosofia faz falar aquilo que a obra não diz, porque não é pretensão da
arte dizer ou fazer sentido. É desse modo que a filosofia pretende conferir voz ao
mutismo da obra, conferir logos ao que não pertence à ordem do discurso.
Tratando do tema que nos importa aqui, isto é, do modelo ótico, podemos
pensar que, para Derrida, a filosofia teria a pretensão de se opor à arte na medida
em que enxerga na sua própria origem uma visão plena, de pura inteligibilidade,
de presença do sentido, enquanto, por outro lado, reconhece na origem da arte um
desvio, um afastamento da verdade, como uma invisibilidade. Assim, para a
tradição filosófica, toda arte partiria de uma cegueira, de um desconhecimento ou
um afastamento do sentido, enquanto, ao contrário, a filosofia partiria da luz, da
pura visibilidade, da certeza. Percebemos, então, de que modo haveria uma
oposição sustentada pela metafísica entre uma visibilidade inteligível, como coisa
do pensamento e, uma visibilidade sensível, como coisa das artes. Deste modo,
5
DERRIDA, J. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 81 - 83.
14
como sendo “do visível” é para podermos, ao mesmo tempo, nos remeter ao termo
metafísico “visual” a que estamos acostumados – crentes na plenitude da visão –,
mas também, desconstruir esta ilusão de pura visibilidade, conjugando este termo
com o valor da invisibilidade, dando-lhe, assim, o caráter aporético desconstrutivo
do in-visível. Pois, como entenderemos, a invisibilidade de que Derrida fala não é
simplesmente oposta à visibilidade, mas sua condição de im-possibilidade, que
não acaba com a experiência do visível, mas a contamina por uma certa cegueira.
Portanto, esperamos que sempre que falarmos em artes “do visível”, nos
lembremos do invisível na sua origem sem origem, remetendo à sua
impossibilidade de redução à verdade.
Muitas vezes, Derrida escapa desta nomeação metafísica de referência ao
visual chamando-as, a estas artes, de “espaciais”, já que este termo também lhe é
estratégico uma vez que o movimento desconstrutivo que o filósofo faz com o seu
texto pode ser chamado de espaçamento. Nas palavras de Derrida:
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7
DERRIDA, J. “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida.” In: Pensar em não ver.
p. 46.
8
Ibid., p. 47.
9
Id., “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 74.
16
pensar está nos rastros do que Heidegger propôs em Was heißt Denken?,
traduzido em francês como Qu’appelle-t-on penser? Segundo Derrida, Heidegger
inflexiona a sintaxe desta pergunta de seu título, fazendo-a dizer
Derrida explica:
10
DERRIDA, J. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 75.
11
Id., “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida.” In: Pensar em não ver. p. 46 e 47.
12
Ibid., p. 30.
17
1
(Re)pensar o pensamento: a desconstrução da metafísica
como uma experiência do im-possível
1.1.
A experiência desconstrutiva
13
DERRIDA, J. "Lettre à un ami japonais" In: Psyché: inventions de l’autre. II. Paris: Galilée,
1987-2003. p.13.
14
Sobre os indecidíveis citamos Derrida em Posições: “unidades de simulacro, “falsas”
propriedade verbais, nominais ou semânticas, que não se deixam mais compreender na oposição
filosófica (binária) e que, entretanto, habitam-na, opõem-lhe resistência, desorganizam-na mas sem
nunca constituírem um terceiro termo, sem nunca dar lugar a uma solução na forma da dialética
especulativa...”. In: DERRIDA, J. Posições. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2001. p. 49.
15
Em O monolinguismo do Outro, Derrida confessa o gosto pelo que ele chama de uma espécie de
hiperbolite generalisada que ele diagnostica como uma doença contraída na escola na Argélia
francesa. Cf. DERRIDA, J. O monolinguismo do Outro ou a prótese de origem. Tradução:
Fernanda Bernardo. Porto: Campo das letras, 2001. p. 66.
21
apresentando uma outra relação com o sentido, onde este não é nem a sua origem
nem o seu fim.
Isto não quer dizer, de maneira nenhuma que, ao pensar, Derrida não se
interesse pelo sentido ou pretenda abrir mão dele, mas, muito pelo contrário, ele
exige-se pensá-lo de maneira ainda mais radical e esta hiper-radicalidade é uma
marca da desconstrução, pois Derrida vai mostrar a necessidade de se pensar
“para-além” do sentido, algo assim como o sentido do sentido, ou a condição de
im-possibilidade do sentido. E eis aí o caminho sem caminho da desconstrução,
sua aporia, já que exigindo-se buscar uma espécie de “fundamento” do sentido,
Derrida reconhece também e, paradoxalmente, que este “fundamento” permanece
um segredo, que ao mesmo tempo em que sustenta, abala tudo o que se ergue a
partir dele. Dessa forma, o “fundamento” do sentido, seria, ao mesmo tempo, o
que resiste ao sentido, possibilitando-o apenas na condição de sua
impossibilidade, já que o possível só se estabelece em função de um impossível,
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do qual ele deriva e passa a existir, mas apenas como memória desse impossível.
Pois, para a desconstrução,
16
DERRIDA, J. Papel máquina. Tradução: Evando Nascimento. São Paulo: Estação liberdade,
2004. p. 258 - 259.
22
ser desvelado – que seria, portanto, a origem do sentido para a desconstrução, está
relacionado com o fato de Derrida enxergar na origem de tudo, sempre uma
relação de alteridade absoluta17, isto é, uma relação com o outro como outro, na
sua separação, na sua distância, na sua interrupção, no seu segredo, na sua
invisibilidade. E se o sentido do sentido diz desta ruptura, desta diferença na sua
origem, percebemos porque Derrida afirma que ele não pode ser uno, homogêneo,
idêntico, coincidir consigo mesmo, mas apenas apontar infinitamente para um
outro.
Desconstruindo, assim, o paradigma do sentido como o lugar próprio do
pensamento ou do pensamento como o lugar da propriedade, Derrida desloca o
terreno do pensar para um lugar diferente, ou melhor, para um não-lugar do
pensamento. Como Fernanda Bernardo nos explica, se a fenomenologia de
Husserl, e se as correntes filosóficas que variam dela - como a ontologia
heideggeriana e a hermenêutica - são filosofias que pretendem ser radicas, isto é,
17
Como nota a professora Fernanda Bernardo em seminário da Universidade de Coimbra, a
palavra “absoluto”, na língua portuguesa, carrega em si mesma dois sentidos diferentes, o sentido
que vem da sua genealogia latina ab-solus, apenas com um “l”, que quer dizer separado; e o
sentido que, pela mesma genealogia, vem de ab-sollus, com dois “l’s”, que quer dizer plenitude,
completude, totalidade. No caso da alteridade como abordada pela desconstrução, quer-se, sempre,
salientar o valor de distância, de separação, de segredo. De qualquer forma, este sentido já
desconstruiria qualquer valor de totalidade ou plenitude da palavra. O jogo aporético na mesma
palavra pode ficar mais claro a partir do entendimento da desconstrução como um pensamento
“quase-transcendental”.
23
que pretendem ir até a raiz do pensamento, até o limite do pensar, até a sua
condição de possibilidade, segundo Bernardo, Derrida mostrará a necessidade de
se pensar “para-além” deste limite do filosófico. Seguindo a explicação de
Bernardo, para Derrida, estas correntes filosóficas ainda pensariam dentro de um
horizonte mundano, ainda delimitariam um lugar próprio para o pensamento,
ainda estariam presas a um horizonte do possível, a um limite do teorizável. A
desconstrução – também uma certa interpretação da fenomenologia de Husserl –
apresentar-se-ia como um pensamento hiper-radical, já que pretende ir “para-
além” do limite do filosófico, “para-além” da sua condição de possibilidade,
“para-além” do horizonte do mundo, para um não-lugar do pensamento, “antes”
da raiz, “antes” do fundamento e que, mais uma vez, diria respeito à sua condição
de im-possibilidade.18
Ao propor pensar pensando o limite do filosófico, isto é, problematizando
os lugares e os limites do pensamento, Derrida marca (aquilo que Rodolphe
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19
Gasché nomeou) a singularidade quase-transcendental da desconstrução,
problematizando também o pertencimento deste pensamento estritamente à
filosofia. Muitas vezes, Derrida assume-se como um pensador mais do que como
um filósofo especificamente. Entretanto, não se pode entender com isso,
simplesmente, que a desconstrução não seja um pensamento filosófico. O
importante é perceber como ela relaciona-se com a tradição da filosofia, abalando
suas delimitações, seus pertencimentos. Ao apontar “para-além” do limite onto-
lógico, a desconstrução posiciona-se, também, como a desconstrução de uma
lógica dualista hierarquizante pela qual o pensamento da metafísica da presença
opera. A crença na presença de um sentido originário que guiaria o pensamento
em termos de certeza e de poder seria, para Derrida, uma ilusão metafísica para a
qual seria preciso atentar em nome de um respeito à alteridade. Contudo, ao
perceber a necessidade de ir “para-além” do horizonte do possível, Derrida não
sugere uma saída da metafísica ou seu ultrapassamento. Este gesto seria esperado
justamente pela crença em um outro lugar próprio para o pensar que seria então,
18
Seminário de Fernanda Bernardo sobre Memórias de cego de Jacques Derrida, na Universidade
de Coimbra no 2o semestre de 2012.
19
Como nos indica Geoffrey Bennington em Jacques Derrida, o termo quase-transcendental,
cunhado por Rodolphe Gasché referindo-se ao pensamento da desconstrução, passa a ser
regularmente utilizado por Derrida a partir de Glas. BENNINGNTON, G.; DERRIDA, J. Jacques
Derrida, p.186. Cf. GASCHÉ, Rodolphe. The tain of the mirror. Derrida and the philosophy of
reflection. Cambridge and London: Harvard University Press, 1986.
24
desta vez, puro e pleno. Mas esse gesto está muito longe do gesto derridiano, pois,
ao invés de abalar, ele reproduziria a própria lógica metafísica, na tentativa de
estabelecer um outro lugar de propriedade para o pensamento. A primazia que a
desconstrução reconhece à alteridade, como seu gesto ético, diz que se o outro
está na origem, não pode haver pureza ou propriedade. Portanto, o intuito de
Derrida não é sair da metafísica em direção a um lugar mais propício ao
pensamento, mas de dentro da metafísica, poder marcar e denunciar suas
clausuras a fim de liberar o pensamento de um ideal logocêntrico. Como Derrida
explica:
necessariamente duplo (...) marcado em certos lugares decisivos, por uma rasura
que permite ler aquilo que ela oblitera, inscrevendo violentamente no texto aquilo
que buscava comandá-lo de fora, eu tento, pois, respeitar o mais rigorosamente
possível o jogo interior e regrado desses filosofemas ou epistememas, ao fazê-los
deslizar, sem os maltratar, até o ponto de sua não-pertinência, de seu
esgotamento, de sua clausura.20
Por isso, o “para-além” derridiano não pode ser visto como um “para-
além” transcendental, que se pretenda plenamente separado de uma imanência,
mas apenas como um “para-além” quase-transcendental, isto é, um “para-além”,
que de dentro da metafísica, aponta para o seu fora, mas um fora que está
encetado em seu dentro e que, ao mesmo tempo, sustenta e faz tremer suas
estruturas. Assim, este “para-além” quase-transcendental – que em francês se
insinua na expressão pas au-delá21 e, por isso, dá-se a ler de forma ainda mais
aporética como, ao mesmo tempo, um passo além e um não há além –, não
funciona na lógica de um ou dentro ou fora, mas na “lógica” aporética, de
contaminação de um conceito pelo seu oposto, que inscrever-se-ia num e dentro e
20
DERRIDA, J. Posições. p. 12 e13.
21
Sobre a indecibilidade do termo “pas” em Derrida citamos Charles Ramond: “termo indecidível,
fonte por consequência de enunciados eles mesmos indecidíveis (…). ‘Trata-se de um certo termo
‘pas’, que significa tanto o movimento do andar, quanto um advérbio de negação’” In: RAMOND,
C. Le vocabulaire de Derrida. p. 53. Citamos ainda John Caputo em Às margens: a propósito de
Derrida: “…le pas au-delà, o passo que estamos sempre dando, mas nunca realizando.” p. 35.
25
22
Citamos Mónica Cragnolini sobre o pensamento de Derrida como um pensamento do entre, um
pensamento “que nos coloca nesse lugar (não-lugar) indiscernível, inidentificável do ‘entre’.
Diante da metafísica opositiva, caracterizada pelo binarismo, o pensamento da desconstrução se
colocou no ‘entre’ das oposições: nem verdade nem falsidade, nem presença nem ausência, se não
‘entre’. O ‘entre’ está apontando para um âmbito de oscilação do pensamento, e Derrida previne
para a comodidade metodológica de convertê-lo num novo lugar do pensamento ou num recurso
que assente bases para o pensamento.” CRAGNOLINI, Mónica B. Temblores del pensar:
Nietzsche, Blanchot, Derrida. Pensamiento de los confines, Buenos Aires, n.12, p.11-19, 2003.
Disponível em:http://www.jaquesderrida.com.ar/comentarios/temblores.htm última consulta em 12
de janeiro de 2014. Tradução minha.
23
Veremos esta problematização da relação a si desdobrar-se sob o ponto de vista das artes, no
tópico 2.2 desta tese, no tema do autorretrato impossível que Derrida desenvolve a partir do
desenho em Mémoires d’aveugle.
24
Cf. HADDOCK-LOBO, Rafael. Para um pensamento úmido. Editora PUC-Rio e NAU Editora,
Rio de Janeiro, 2011.
25
BRADLEY, A. Derrida's of grammatology. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2008. p.
43. Tradução minha.
26
ergue, ergue-se sempre a partir de sua própria ruína, e que toda suposta autonomia
é sempre uma heteronomia26, já que nada se constitui a partir de si mesmo e que
tudo tem origem sempre numa alteridade.
A hiper-radicalidade da desconstrução, diz, mais uma vez, da
impossibilidade de tratar o que quer que seja “enquanto tal”. E é justamente como
contraponto a uma certeza metafísica, bem como à sua pretensão de lidar com o
“enquanto tal” ou o “como tal” do que quer que seja que apresentamos um certo
impoder ou uma certa impossibilidade que a desconstrução derridiana traz para o
cerne do pensamento. Assim, a condição de im-possibilidade de qualquer conceito
diz respeito a uma hiper-lucidez desconstrutiva que enxerga uma invisibilidade na
origem de toda visibilidade, isto é, uma falta ou um excesso, talvez, uma abertura,
que condena o pensamento a se construir sem orientação segura, tateante,
aventuroso, correndo riscos e assumindo suas fragilidades. Reconhecer esta
condição de todo pensamento nos faz entender em que sentido a leitura
desconstrutiva não pode ser tomada como um método aplicado de fora no intuito
26
Como veremos no trecho sobre a invenção da identidade, neste capítulo, estamos todos
submetidos à lei do outro, isto é, à relação ao outro como uma lei. Sendo esta heteronomia o que
constitui a ética desconstrutiva: “...o que chega ou que funda em mim, aquilo a que estou exposto,
para além de qualquer controle. Heteronomia portanto, o outro é minha lei.” DERRIDA, J.
ROUDINESCO, E. De que amanhã... diálogo. Tradução: André Telles. Rio de Janeiro: Zahar,
2004. p. 69.
27
A desconstrução não é nem mesmo um ato ou uma operação. Não apenas porque
haveria nela alguma coisa de ‘passiva’ ou de ‘paciente’ (...). Não apenas porque
ela não retorna a um sujeito (individual ou coletivo) que teria a iniciativa e a
aplicaria a um objeto, um texto, um tema, etc. A desconstrução acontece. É um
acontecimento que não espera deliberação, consciência ou organização do sujeito,
nem mesmo da modernidade. Isso se desconstrói. O isso não é aqui alguma coisa
impessoal que se oporia a alguma subjetividade egológica. Está em
desconstrução (o Litrré dizia “se desconstruir... perder sua desconstrução”). E o
“se” do “se desconstruir” que não é a reflexividade de um eu ou de uma
consciência carrega todo o enigma.27
27
DERRIDA, J. "Lettre à un ami japonais". In : Psyché: inventions de l’autre II. p. 12 e 13.
Tradução minha.
28
Id., “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida.” In: Pensar em não ver. p. 60.
28
paixão, ou melhor, é uma ação que brota de uma passividade inexpugnável e que
não pode ser esquecida na ideia de experiência, pois ela interrompe a própria
experiência como pura vontade e ação de um sujeito soberano.
O chamado, o apelo, a injunção, do pensamento devem ser entendidos
como acontecimento, ou seja, como aquilo que é da ordem do desconhecido, do
inantecipável, do que vem sem que vejamos vir e nos convoca a responder. Pois,
para ser acontecimento, é preciso que sua irrupção não seja pre-visível ou
amortecida pelos olhos. Não se pode dizer o que é esse chamado e é por isso que o
pensamento se faz necessário, pois é porque há desconhecimento que é preciso
pensar: “o chamado é heterogêneo ao conhecimento. Para que esse chamado
exista, a ordem do conhecimento precisa ser fendida. Se podemos identificar,
objetificar, reconhecer o lugar, a partir desse momento não há chamado.” 29 É
nesse sentido que propomos o tema de uma certa cegueira na obra de Derrida
como aquilo que é da ordem do não conhecido, da não presença e chama,
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É justamente não a relação presente com o que está presente, mas a viagem ou a
travessia, o que quer dizer experimentar rumo a, através da ou desde a vinda do
outro na sua heterogeneidade mais imprevisível; trata-se da viagem não
programável, da viagem cuja cartografia não é desenhável, de uma viagem sem
design, de uma viagem sem desígnio, sem meta e sem horizonte. A experiência a
meu ver seria exatamente isso. Se a experiência fosse apenas a relação com, ou o
encontro do que é previsível e antecipável sobre o fundo de um horizonte
presente, não haveria experiência nesse segundo sentido; haveria experiência no
primeiro sentido, mas esta última não é uma experiência do acontecimento (...). A
viagem da qual sabemos de onde ela parte e para onde nos leva não é uma
viagem, está previamente encerrada. Já chegamos e nada mais acontece. Não há
experiência no sentido mais perigoso (...) do termo viagem. Uma viagem que não
fosse ameaçadora, uma viagem que não fosse uma viagem em vista do
impossível, em vista do que não está em vista, seria ainda uma viagem? Ou
apenas turismo?31
29
DERRIDA, J. “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida.” In: Pensar em não ver.
p.52.
30
Id., “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p.79.
31
Ibid., p.80.
29
1.2.
A dimensão inventiva da desconstrução
32
Em seminário na Universidade de Coimbra no Segundo semestre de 2012.
33
DERRIDA, J. “Invention de l’autre”. In: Psyché, inventions de l’autre. I. p. 11. Tradução minha.
31
ele. E se nem sempre, totalmente cegos, se por acaso, o outro como outro aparece
diante de nós, não sendo nem da ordem da presença nem da ausência, aparece
apenas na indecidibilidade de um espectro34 e, nessa condição, podemos apenas
pensar vê-lo, aluciná-lo, mas nunca ter certeza da sua vinda.
Como trataremos mais adiante, apesar da impossibilidade de pre-ver a
vinda do outro, Derrida fala de uma certa preparação para deixá-lo vir que é
importante para entendermos o trabalho tanto do pensador quanto do artista na
relação com o que os inspira na invenção de suas obras. Mas, de qualquer forma,
apresentamos aqui a desconstrução como um pensamento da invenção como a
única forma de se preparar para responder ao que vem, ao que acontece e apela a
pensar ou a pôr em obra ali onde não se vê vir, onde se é tomado de surpresa pela
vinda do outro que não se esperava, que visita sem ser convidado previamente.
Retornando à reinvenção da invenção, se ficássemos apenas com esse seu
lado irruptivo seria difícil entender porque Derrida afirma que ela é sempre
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...apresentando-se como uma invenção, o discurso de que estou falando terá que
ter sua invenção avaliada, reconhecida e legitimada por outro, por um outro que
não é alguém da família: o outro como membro de uma comunidade social e de
uma instituição. Pois uma invenção não pode nunca ser privada uma vez que seu
estatuto de invenção, digamos, sua patente ou seu brevet, sua identificação
manifesta, aberta, pública, tem que ser significada e conferida. Traduzamos:
falando de invenção, este velho assunto (...) que tratar-se-ia hoje de reinventar,
ele mesmo deveria receber um brevet de invenção. Isso supõe contrato, promessa,
compromisso, instituição, direito, legalidade, legitimação.35
34
Trataremos a dimensão espectral da alteridade sob o ponto de vista do cinema no terceiro
capítulo desta tese.
35
DERRIDA, J. “Invention de l’autre”. In: Psyché: inventions de l’autre. I. p. 15. Tradução
minha.
32
...para que a invenção seja uma invenção, quer dizer, única, mesmo que essa
unicidade deva dar lugar à repetição, é necessário que essa primeira vez seja
também uma última vez, a arqueologia e a escatologia se acenam na ironia do
instante único.36
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36
DERRIDA, J. “Invention de l’autre”. In: Psyché: inventions de l’autre. I. p.16. Tradução minha.
37
Ibid., p. 34. Tradução minha.
33
38
DERRIDA, J. “Invention de l’autre”. In: Psyché: inventions de l’autre. I. p. 39. Tradução
minha.
39
Entraremos na questão da oposição entre performativo e constativo mais adiante nesta seção,
quando Derrida pensa a desconstrução desta oposição a partir do poema Fábula, de Francis Ponge.
40
DERRIDA, J. “Invention de l’autre”. In: Psyché, inventions de l’autre. I. p. 35. Tradução minha.
41
Derrida: the movie. Dirigido por Kirby Dick e Amy Kofman. França e EUA, 2002.
34
ou de um evento, através do qual o porvir nos chega como promessa do que está
por vir.
Se, então, a aporia da invenção parece ter sido reduzida, na tradição, pela
convenção, sua desconstrução, contudo, parece nos lembrar o seu lado irruptivo e,
assim, a indecidibilidade ou a impossibilidade da invenção. Percebemos na
citação acima uma associação entre uma rede de palavras que têm em comum a
raiz latina do venire, isto é, do vem que é de extrema importância para o
pensamento desconstrutivo. O vem como o chamamento do outro e pelo outro que
engaja toda relação e que liga, neste texto derridiano, as palavras evento, advento,
invenção, convenção e porvir, lembra a im-possibilidade da experiência do
pensamento em sua dimensão inventiva:
42
DERRIDA, J. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 80.
43
Encontramos esta ideia da origem cega do pensamento e da arte na cena de Dibutade e a origem
do desenho que tratamos na seção 2.2 desta tese.
35
44
DERRIDA, J. “Invention de l’autre”. In: Psyché: inventions de l’autre. I. p.59. Tradução minha.
36
A desconstrução mais rigorosa não foi jamais apresentada (...) como alguma coisa
possível. E eu diria que a desconstrução não perde nada se confessando
impossível. (...) O perigo para uma tarefa da desconstrução seria antes a
possibilidade de se tornar um conjunto disponível de procedimentos regrados, de
práticas metódicas, de caminhos acessíveis. O interesse da desconstrução, de sua
força e de seu desejo, se ela tem um, é uma certa experiência do impossível: quer
dizer, (...) do outro – a experiência do outro como invenção do impossível, em
outros termos, como a única invenção possível.45
45
DERRIDA, J. “invention de l’autre”. In: Psyché: inventions de l’autre. I. p.26 e 27.
37
oposição como toda uma série de oposições relacionada a esta, como aquela entre
ficcionalidade e realidade ou literatura e filosofia. Leiamos Fable:
FABLE
Par le mot par commence donc ce texte
Dont la première ligne dit la vérité,
Mais ce tain sous l’une et l’autre
Peut-il être toléré?
Cher lecteur déjà tu juges
Là de nos difficultés...
Traduzindo:
FÁBULA
Inventa pelo único ato de enunciação que ao mesmo tempo faz e descreve, opera
e constata. O “e” não associa dois gestos diferentes. A constatação é o próprio
performativo já que ele não constata nada que lhe seja anterior ou estrangeiro. Ele
performa constatando, efetuando a constatação – e nada além. Uma relação a si
muito singular, reflexão que produz o si da auto-reflexão produzindo o
46
PONGE, F. citado por DERRIDA, J. “invention de l’autre”. In: Psyché: Inventions de l’autre. I.
p. 19.
47
Tradução Minha.
38
48
DERRIDA, J. “invention de l’autre”. In: Psyché: inventions de l’autre. I. p. 24.
49
Ibid., p. 19.
50
Ibid., p. 26.
51
Ibid.
52
Ibid.
39
...dobrando essas regras no respeito dessas próprias regras a fim de deixar o outro
vir ou se anunciar na abertura dessa deiscência. Isso é talvez o que se chama a
desconstrução. A performance de “Fábula” respeita as regras mas segundo um
gesto estranho, que outros julgariam perverso, já que ele cumpre fiel e
lucidamente as condições mesmas de sua própria poética. Este gesto consiste em
desafiar e em exibir a estrutura precária dessas regras, respeitando-as pela marca
de respeito que ele inventa.53
54
DERRIDA, J. “Invention de l’autre”. In: Psyché: inventions de l’autre. I. p. 53 e 54.
41
1.3.
Invenção da Identidade
55
DERRIDA, J. O monolinguismo do outro. p. 43.
56
Id., “Il faut bien manger ou le calcul de sujet”. In: Points de suspension. Entretiens. p. 280.
57
Id., O monolinguismo do outro. p. 101.
43
não a possui, porque ninguém possui a língua, nós precisamos inventar uma
relação com ela, inventando-nos a nós mesmos nesta invenção.
Se pensamos a identidade a partir da língua, como algo que não possuímos
desde a origem, mas como uma alteridade de que precisamos nos apropriar ao
longo de toda a nossa vida, já começamos a entendê-la como um processo infinito
e não como uma essência que naturalmente nos caracterize e nos diferencie de
outras essências. Discutiremos mais adiante, ainda neste capítulo, como a
diferença pensada a partir de essências, para Derrida, ainda seria uma diferença
pensada em termos de presença e de identidade, ainda seria uma diferença entre
coisas diferentes, porém, tidas como idênticas a si mesmas. A problematização da
identidade em Derrida é justamente o reconhecimento da impossibilidade dessa
identidade a si, da impossibilidade de coincidência consigo, da propriedade, do
“enquanto tal”, da unidade ou da pureza do que quer que seja. Aliás, o abalo da
identidade não deixa de ser um abalo ontológico, um abalo da possibilidade de
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dizer o que “é”. Deslocando a questão ontológica, Derrida vai pensar a diferença
de forma mais radical, de forma hiperbólica, partindo da impossibilidade de uma
identidade una, de uma origem plena, como aquilo que chamará de différance58 e
de que falaremos ainda neste capítulo quando nos lançarmos na noção de escrita
derridiana.
Mas, como dizíamos acima, se a nossa possibilidade de identificação, se a
formação do nosso “eu” vem da relação com a língua que já está aqui antes de
nós, isto é, se o “eu”, se a nossa propriedade, só se forma a partir daquilo que vem
do outro, percebemos porque, para a desconstrução, não pode haver propriedade
que já não seja imprópria, ou seja, contaminada pelo que não é ela. Esta aporia da
identidade impossível é apresentada, em relação à língua, na louca lei do
monolinguismo do outro que diz que cada um de nós fala apenas uma única língua
e, contudo, ninguém possui a língua que fala: “eis o duplo gume de uma lâmina
afiada que gostaria de te confiar, quase sem palavras, eu sofro e fruo com isso que
te digo na nossa língua dita comum: ‘sim, eu não tenho senão uma língua, ora ela
não é minha’”59. Esta lei aporética, por um lado, pretende afirmar uma autonomia
na imposição de uma monolíngua como marca singular, porém, o fato dela vir
sempre do outro acaba por sublinhar uma heteronomia a qual estamos todos
58
Desenvolvemos o quase-conceito différance na seção 1.4.
59
DERRIDA, J. O monolinguismo do outro. p. 15.
44
O monolinguismo do outro seria em primeiro lugar esta soberania, esta lei vinda
de algures, sem dúvida, mas seria também e em primeiro lugar a própria língua da
Lei. E a Lei como Língua. A sua experiência seria aparentemente autónoma,
porque tenho de a falar, a esta língua, e de a apropriar para a ouvir como se eu
próprio ma desse; mas ela permanece necessariamente, assim o quer no fundo a
essência de toda lei, heterônoma. A loucura da lei aloja para todo o sempre a sua
possibilidade no foro dessa auto-heteronomia.60
Portanto, a lei como língua diz que estamos sempre submetidos àquilo que
vem do outro, isto é, àquilo que não vemos vir, que não conhecemos
absolutamente. Por isso, toda pretensão de autonomia acaba no reconhecimento de
que estamos todos submetidos a uma relação com o in-visível que condiciona toda
identidade a uma apropriação impossível do que vem do outro. A língua, para
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60
DERRIDA, J. O monolinguismo do outro. p. 56.
61
Ibid., p. 13 - 14.
45
Por outro lado, ninguém possui esta língua que, embora carregue a marca
de cada singularidade, é maior do que a apropriação idiomática que cada falante
faz dela, daí o reconhecimento derridiano de sua aporia: “Ora jamais esta língua, a
única que assim estou votado a falar, enquanto falar me for possível, e em vida e
na morte, jamais esta língua única, estás a ver, virá a ser minha. Nunca na verdade
o foi.”62 É porque ninguém possui a língua que fala que precisa traçar uma relação
inventiva com ela, isto é, cultivá-la como o acolhimento da vinda do outro. Este
trabalho de acolhimento ou de hospitalidade entre língua e falante, Derrida o
chama de experiência de ex-apropriação63 da língua, porque esta experiência é, ao
mesmo tempo e aporeticamente, apropriação e expropriação: se por um lado, para
falar, o falante apropria-se à sua maneira da língua que é anterior a ele, que já
existia antes da sua chegada, por outro lado, contudo, a língua, entrando no
falante, como a chegada do outro, expropria-o de si. Mas essa expropriação de si é
a própria formação da sua interioridade. Isto é, a única formação possível do
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Fazer uma experiência com algo, seja com uma coisa, com um ser humano, com
um deus, significa que esse algo nos atropela, nos vem ao encontro, chega até
nós, nos avassala e transforma. “Fazer” não diz aqui de maneira alguma que nós
mesmos produzimos e operacionalizamos a experiência. Fazer tem aqui o sentido
de atravessar, sofrer, receber o que nos vem ao encontro, harmonizando-nos e
sintonizando-nos com ele. É esse algo que se faz, que se envia, que se articula.65
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65
HEIDEGGER, Martin. “A essência da linguagem”. In: A caminho da linguagem. Tradução:
Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, Bragança Paulista: Editora universitária São
Francisco, 2003. p. 121.
66
BERNARDO, Fernanda. Seminário na Universidade de Coimbra. Primeiro semestre de 2013.
47
Porque, contrariamente ao que somos a maior parte das vezes tentados a crer, o
senhor não é nada. E não tem nada de próprio. Porque não possui como próprio,
naturalmente, o que no entanto chama a sua língua; porque, independentemente
do que queira ou faça, não pode entretecer com ela relações de propriedade ou de
identidade naturais, nacionais, congenitais, ontológicas; porque não pode
acreditar e dizer esta apropriação senão no decurso de um processo não natural de
construções político-fantasmáticas; porque a língua não é o seu bem natural, ele
pode justamente por isso historicamente, através de uma violação de uma
usurpação cultural, ou seja, sempre de essência colonial, fingir apropriá-la para a
impor como “a sua”. Tal é a sua crença, que ele quer obrigar a partilhar pela força
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ou pela manha, e na qual ele quer obrigar a crer, como um milagre, pela retórica,
pela escola ou pelo exército.67
Assim, essa estrutura de alienação originária da língua, o fato dela não nos
pertencer, nos interdita uma relação de propriedade e pertencimento com ela ou
com o que quer que seja, já que todas as nossas relações partem dessa relação de
interdição com a língua, fazendo de nós seres estruturalmente alienados na
origem:
Tal como a ‘falta’, esta ‘alienação’ originária parece constitutiva. Mas ela não é
nem uma falta nem uma alienação, não tem falta de nada que a preceda ou a siga,
não aliena nenhuma ipseidade, nenhuma propriedade, nenhum si que tenha
alguma vez podido representar a sua véspera. (...). Esta estrutura de alienação
sem alienação, esta alienação inalienável não é apenas a origem da nossa
responsabilidade, ela estrutura o próprio e a propriedade da língua. 68
67
DERRIDA, J. O monolinguismo do outro. p. 38.
68
Ibid., p. 39 - 40.
48
propriedade, uma identidade. Porque, no fundo, não possuímos nada disso, apenas
cultivamos uma relação infinita e aporética de ex-apropriação com o que nos
relacionamos. Derrida explica:
69
DERRIDA, J. O monolinguismo do outro. p. 47.
70
Ibid., p. 38.
49
Perturbante – como não confessá-lo? – não deixa de ser perceber que a criação e
a dissidência pela arte têm a mesma fonte de imposição soberana, imperialista ou
colonialista, da língua – brotam ambas desta despossessão originária da língua e
da paixão ciosa, que ela desencadeia, pela sua impossível apropriação – pela sua
in-finita ex-apropriação.71
Quando dizemos que toda obra tem origem nessa relação de interdição
com a língua, não nos referimos apenas às obras discursivas, às obras que lidam
diretamente com a palavra, mas também às obras do visível ou espaciais. Ou seja,
as obras que aparentemente não se fazem no discurso, as obras ditas mudas não
estão nunca completamente fora de uma experiência da língua. Pois, para Derrida,
não há sentimento, não há experiência fora da língua:
Percebes assim a origem dos meus sofrimentos, uma vez que esta língua os
atravessa de parte a parte, e o lugar das minhas paixões, dos meus desejos, das
minhas preces, a vocação das minhas esperanças. Mas não tenho razão, não, não
tenho razão em falar de travessia e de lugar. Porque é à beira do francês,
unicamente, nem nele nem fora dele, na linha inencontrável da sua costa que,
desde sempre, para sempre, eu me pergunto se se pode amar, fruir, suplicar,
rebentar de dor ou muito simplesmente rebentar noutra língua ou sem mesmo
nada dizer a ninguém, sem falar sequer.72
71
BERNARDO, F. Eco-grafias. Dar à língua: contra-assinatura, re-invenção e sobrevivência.
Ovídio-Derrida. In: Revista filosófica de Coimbra N. 39 (2011). p. 257.
72
DERRIDA, J. O monolinguismo do outro. p. 14.
50
O que faço com as palavras é fazê-las explodir para que o não verbal apareça no
verbal. Quer dizer que faço as palavras funcionarem de uma tal maneira que em
certo momento elas não pertencem mais ao discurso, ao que regula o discurso
(...). E se eu amo as palavras é também por causa da habilidade que elas têm de
escaparem à sua forma própria (...). Ou seja, interesso-me também pelas palavras,
paradoxalmente, na medida em que elas são não discursivas, porque é assim que
elas podem ser usadas para explodir o discurso (...). Nem sempre, mas na maioria
dos meus textos há um ponto no qual as palavras funcionam de uma maneira não
discursiva. De repente elas interrompem a ordem e as regras, mas não graças a
mim. Presto atenção ao poder que têm as palavras bem como, às vezes, às
possibilidades sintáticas de romper o uso normal do discurso, o léxico e a
sintaxe.73
Quando dizemos, então, que toda obra de arte, mesmo da arte dita do
visível, parte de uma relação com a língua, dizemos que ela parte da invenção
originada por uma relação de interdição da língua, pelo ciúme decorrido do fato
da língua não pertencer e não formar um sujeito soberano. É nesse sentido que
podemos dizer que toda invenção nasce sempre a partir dessa estrutura originária
de alienação e, por isso, como desejo de identificação. Então, mesmo que a obra
não seja literária, discursiva, isto é, que ela não se faça diretamente na palavra, ela
não está, por isso, fora dessa situação de endividamento à língua e, assim, de
alguma forma, relaciona-se com a língua, seja porque parte de quem está sempre
73
DERRIDA, J. “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida”. Pensar em não ver. p.
39 - 40.
51
assujeitado a ela, seja porque será sempre interpretada dentro de uma experiência
da língua.
Com efeito, é nesse sentido que dizemos aqui de uma origem comum entre
obras de arte e obras do pensamento, como a filosofia, por exemplo. Pois, se tanto
uma como a outra nascem da relação de um “sujeito” interrompido com aquilo
que, sem que seja visto ou esperado, lhe chega como inspiração, tanto o
pensamento como a arte só aparecem como obras. Isto é, como resto de uma
experiência impossível com o invisível ou o desconhecido. E é justamente na
medida em que a desconstrução admite a filosofia como obra, isto é, como
trabalho da invenção ou como resto de uma experiência impossível, que a
abordagem desconstrutiva da arte não pode ser hierarquizada, não pode pretender
desvelar o que, na arte, seria invisível. Pois, ao contrário, como explosão do
discurso filosófico, a desconstrução pretende salientar, mostrando “em si mesma”
aquilo que na obra se marca como impossibilidade ou invisibilidade, aquilo que
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Tudo quanto faço, sobretudo quando escrevo, parece-se com um jogo de cabra-
cega: aquele que escreve, sempre à mão, mesmo quando se serve de máquinas,
estende a mão como um cego para lograr tocar aquele ou aquela a quem poderia
agradecer pelo dom de uma língua, pelas próprias palavras nas quais se diz pronto
a dar graças, a pedir graça também.75
74
Este tema do reconhecimento como agradecimento aparece na seção 2.2 desta tese na leitura de
Mémoires d’aveugle. Como veremos, a possibilidade do traço ou da obra aparece como um dar
graças ao dom recebido.
75
DERRIDA, J. O monolinguismo do outro. p. 97.
52
1.4.
Explosão da linguagem: a escrita76
76
Optamos por traduzir o termo derridiano “écriture” por “escrita” para não fazer uma diferença
entre o quase-conceito derridiano e a noção de escrita corrente, a partir da qual o quase-conceito
derridiano é nomeado. No entanto, no caso das citações, preservamos a opção de cada autor ou
tradutor.
53
77
DERRIDA, J. De la grammatologie. Paris: Minuit, 1967.
54
Não que o lógos seja o pai. Mas a origem do lógos é seu pai. Dir-se-ia, por
anacronia, que o “sujeito falante” é o pai de sua fala. (...) O lógos é um filho,
então, e um filho que se destruiria sem a presença, sem a assistência presente de
seu pai. De seu pai que responde por ele e dele. Sem seu pai ele é apenas,
precisamente, uma escritura. É ao menos o que diz aquele que diz, é a tese do pai.
A especificidade da escritura se relacionaria, pois, com a ausência do pai. Uma tal
ausência pode se modalizar ainda de formas diversas, distinta ou confusamente,
sucessiva ou simultaneamente: ter perdido seu pai de forma natural ou violenta,
por uma violência qualquer ou por parricídio; em seguida, solicitar a assistência,
possível ou impossível, da presença paterna. Solicitá-la diretamente ou
pretendendo prescindir dela etc. Sabemos como Sócrates insiste sobre a miséria,
deplorável ou arrogante, do lógos entregue à escritura: “...ele tem sempre
necessidade da assistência de seu pai (...): sozinho, com efeito, não é capaz nem
de se defender nem de dar assistência a si mesmo”79
Percebemos, então, que não é que a escrita não tenha logos, mas seu logos
é fraco, é um logos sem a voz do pai para sustentá-lo e, assim, é um discurso sem
força, perdido e errante. E é desse modo que a ligação entre logos e voz é
essencial em Platão, pois é essa união fonologocêntrica que parece resguardar a
78
DUQUE-ESTRADA, P. C. “Derrida e a escritura”. In: Às margens: a propósito de Derrida. p.
16.
79
DERRIDA, J. A farmácia de Platão. p. 22 e 23.
55
80
DERRIDA, J. “La pharmacie de Platon”. In: La dissémination. Paris: Editions de Seuil, 1972.
56
81
DERRIDA, J. A farmácia de Platão. Tradução: Rogério Costa. São Paulo: Iluminuras, 2005. p.
51 - 52.
82
Id., “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 81.
83
Ibid., p. 81.
84
Id., A farmácia de Platão. p. 85.
57
definidos por Platão. Muito pelo contrário, esses traços da escrita são assumidos
por Derrida como uma “realidade” da qual não se escapa. E, portanto, a postura de
acolhimento desses traços mostra uma lucidez desconstrutiva ao denunciar um
certo moralismo da metafísica da presença na luta para estabelecer o pensamento
em termos de pureza. Então, sim, para Derrida, a escrita está ligada à morte,
talvez de forma ainda mais radical do que para Platão. Como Mónica Cragnolini
argumenta:
85
CRAGNOLINI, M. “adieu, adieu, remember me: Derrida, a escritura e a morte”. In: DUQUE-
ESTRADA, P. C. (Org). Espectros de Derrida. p.41.
58
86
A indecidibilidade da escrita como o perdersalvar num único verbo a que Derrida se refere em
“Salvar os fenômenos. Para Salvatore Puglia”. In: Pensar em não ver p. 216.
87
CRAGNOLINI, M. “adieu, adieu, remember me: Derrida, a escritura e a morte”. In: DUQUE-
ESTRADA, P.C. (org). Espectros de Derrida. p.42.
88
No terceiro capítulo desta tese ampliamos essa discussão do espectral como o que suspende a
oposição entre vida e morte.
59
através de um jogo com o seu fora, com o seu oposto, com o que não é ela. Se não
fosse essa condição de relacionar-se com o seu fora, a memória não seria mais
memória, e sim, pura presença a si. Dessa forma, a memória já nos diz do
esquecimento, dessa possibilidade. Ou melhor, da impossibilidade de uma
presença a si, pois ela é justamente o que aponta para fora, para a necessidade da
relação com o fora. Isto é, o receio aqui é que a repetição da escrita, que a sua
capacidade de trazer de volta, possa acabar apagando e confundindo a origem e o
sentido do pensamento. Este é o perigo do phármakon do qual Platão tenta livrar a
fala, no desejo de estabelecer e manter a pureza metafísica do pensamento. Ou
seja, a possibilidade de uma presença a si sem relação com uma alteridade, de
uma memória e uma fala sem phármakon, sem escrita. Mas já que a escrita
retorna o tempo inteiro como que para assombrar o filósofo grego,
impossibilitando seu sonho de um pensamento livre de phármakon, o que Derrida
sugere ser a farmácia de Platão, sua atividade farmacêutica, é, justamente, a
tentativa de criar um antídoto para o phármakon da escrita, estabelecendo a
episteme e a dialética como uma espécie de contra-veneno capaz de salvar dos
malefícios da escrita e da sofística.
89
DERRIDA, J. A farmácia de Platão. p. 56.
60
A voz é mais próxima da vida daquele que fala; ela é mais presente, mais
presente para quem fala e para quem escuta; há aí um duplo privilégio da
proximidade ou da presença imediata, mas também da interioridade, da
proximidade da vida. Em nome desses valores (presença, proximidade, vida etc.),
prefere-se a voz, a palavra viva à escrita.90
90
DERRIDA. J. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 76 e 77.
91
Derrida chama de significado transcendental aquilo que diria respeito à crença da metafísica na
presença de um sentido que pudesse existir em si mesmo, independente da referência de uma
linguagem ou de uma estrutura de significação. Nas palavras de Derrida: “… daquilo que propus
chamar de ‘significado transcendental’, o qual, em si mesmo, em sua essência, não remeteria a
nenhum significante, excederia à cadeia dos signos, e não mais funcionaria, ele próprio, em um
certo momento, como significante”. DERRIDA, J. Posições. p. 25.
61
Derrida reconhece-os como traços comuns a toda linguagem, a toda palavra, seja
ela falada, pensada ou escrita. É por isso que reconhecer em toda palavra a marca
dos traços perigosos que Platão reservava apenas à escrita é desconstruir toda a
estrutura do pensamento ocidental sustentada pela metafísica da presença, que
acredita e aposta na propriedade, na essência, na identidade una de cada coisa, na
possibilidade de apresentar-se “enquanto tal”. Para Derrida, nunca pôde haver
algo como a pureza do pensamento. A origem do pensamento é já sempre ferida
pelo desvio da escrita. Como Fernanda Bernardo explica:
O é já (déjà) traduz a fala como escrita traçando no que nela compromete numa
aquiescência, que responde reenviando ao que antecipadamente nos terá já, desde
sempre, comprometido na subscrição de um apelo prévio. (...) Derrida designa
este é já por re-marca, cuja estrutura faz de todo começo um re-começo daí a
Gramatologia se dizer um pensamento da repetição originária. É a decapitação
(...) do incipt, a rasura do valor de archê, que aqui está em questão. O começo é,
já sempre, dado devido “A cette avance que ... fait la langue” (...); o ponto de
92
Citamos Fernanda Bernardo: “Com efeito, o que é a escrita, em sentido derridiano, o que é a
arqui-escrita senão a escrita, isto é, o apagamento, o silêncio, a ausência, a elipse, a rasura, o
branco, o desvio, o gesto, o acento ou o sotaque, o canto, o tom, o timbre, … na própria fala?”.
BERNARDO, F. Eco-grafias – Dar à língua: Contra-assinatura, Re-invenção e sobre-vivência –
Ovídio – Derrida. Revista filosófica de Coimbra N. 39, 2011. p. 251 e 252.
62
um pensamento que, assumindo sua origem sem origem, sua origem desviada,
secundária, invisível, differante94, constrói-se sem a presença de um logos como
seu sentido ou direção. Mostra-nos a necessidade de pensar de uma outra maneira
que não guiada pela “lógica do logos” mas pela “lógica”, ou melhor, pelo jogo do
rastro e da différance.
Nesse sentido, acreditamos que a desconstrução do conceito de linguagem,
em De la grammatologie, vem anunciar o pensamento da desconstrução de uma
forma geral. Pois, para Derrida, este conceito, tradicionalmente, se estabelece a
partir da suposta superioridade da fala em relação à escrita, ou seja, de um
fonologocentrismo. Em outras palavras, Derrida denuncia no conceito de
linguagem uma redução fonética da escrita, tida como mera representação gráfica
da palavra falada. Mas, ao pôr em cena um transbordamento da linguagem,
mostrando como ela é excedida por uma ideia de escrita, o texto derridiano
desnuda, ao mesmo tempo, um transbordamento das estruturas conceituais como
um todo, apresentando-se, portanto, como uma desconstrução do próprio conceito,
do conceito de conceito. Seguindo as palavras de Derrida em Gramatologia:
93
BERNARDO, Fernanda. “O dom do texto, a leitura como escrita. (O programa gramatológico
de Jacques Derrida)”. In: Revista filosófica de Coimbra. N.1 (1992). p.155.
94
Cf. adiante o conceito de différrance.
63
linguagem que não se conteria mais nos limites de seu conceito tradicional,
evidenciando-se aí uma crise deste conceito. Como o filósofo explica:
Tudo o que o desejo quisera subtrair ao jogo da linguagem é retomado neste, mas
apenas porque, simultaneamente, a linguagem mesma acha-se ameaçada em sua
vida, desamparada, sem amarras por não ter mais limites, devolvida à sua própria
finidade no momento exato em que seus limites parecem apagar-se, no momento
exato em que o significado infinito que parecia excedê-la deixa de tranquilizá-la a
respeito de si mesma, de contê-la e de cercá-la.97
95
DERRIDA, J. Gramatologia. Tradução de Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São
Paulo: Perspectiva, 1999. p. 8.
96
Ibid., p. 7.
97
Ibid.
64
98
SAUSSURE, Ferdinand. Curso de linguística geral. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo
Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Editora cultrix. 1995.
65
dos signos “mesa”, “chão”, “lápis”, “papel”, e assim por diante, infinitamente.
Assim, o rastro, ao invés de acalmar-se na identidade, é aquilo, justamente,
que impossibilita que o sentido se feche nela, é aquilo que condiciona toda
identidade a uma relação ao outro100, não a um suposto conteúdo próprio de cada
termo de um dado sistema, mas a suas diferenças em relação aos outros termos do
sistema. Nas palavras de Derrida: “Esse encadeamento faz com que cada
“elemento” – fonema ou grafema – constitua-se a partir do rastro, que existe nele,
dos outros elementos da cadeia ou do sistema.”101 O rastro é justamente o que
nunca é, o que só se constitui numa relação de diferencialidade. Este movimento
de um eterno apontar para o outro, é o que fere a estrutura de significação
logocêntrica, pois não se pode, a partir de então, pensar num sentido próprio,
idêntico, auto-centrado, presente a si mesmo e que não dependa de seu fora. É
preciso pensar, então, pela “lógica” do rastro, que todo sentido está condicionado
e só produz efeitos numa cadeia de referencialidade, isto é, que o sentido só se
constitui na escrita. Pois, para Derrida,
99
BRADLEY, A. Derrida’s of grammatology. p. 69. Tradução minha.
100
Como já tratamos na seção 1.3 deste capítulo a propósito da identidade como um processo
interminável de identificação sem identidade a si.
101
DERRIDA, J. Posições. p. 32.
66
Esse encadeamento, esse tecido, é o texto que não se produz a não ser na
transformação de um outro texto. Nada, nem nos elementos nem no sistema, está,
jamais, em qualquer lugar, simplesmente presente ou simplesmente ausente. Não
existe, em toda parte, a não ser diferenças e rastros de rastros.102
E ainda, em Gramatologia:
Pensar o rastro como origem é assumir que o referente, que a coisa mesma,
que o sentido, sempre foram rastros, simplesmente porque não tiveram origem
neles mesmos, porque começaram sempre antes deles próprios. Em outras
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O rastro não é somente a desaparição da origem, ele quer dizer aqui – no discurso
que proferimos e segundo o percurso que seguimos – que a origem não
desapareceu sequer, que ela jamais foi retroconstituída a não ser por uma não-
origem, o rastro, que se torna, assim, a origem da origem.105
102
DERRIDA, J. Posições. p. 32.
103
Os tradutores brasileiros de gramatologia optaram por traduzir o termo différance por
diferência, mas por não acreditarmos que esta tradução faça jus a todos os sentidos da palavra
cunhada por Derrida, optamos por manter, fora das citações, o termo derridiano não traduzido.
104
DERRIDA, J. Gramatologia. p. 79 e 80.
105
Ibid., p. 75.
67
Desse modo, a différance, como jogo do rastro, precisa ser entendida como
condição de im-possibilidade de toda “identidade”. Como mostra a citação acima,
a différance não é uma diferença, já constituída, entre duas coisas diferentes, entre
duas identidades, auto-centradas, auto-idênticas, com essências próprias, que
divirjam entre si. A différance diz que só há efeito de identidade, processo de
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106
DUQUE-ESTRADA. P.C. “Derrida e a escritura”. In: Às margens: a propósito de
Derrida. p. 19.
107
Derrida, J. “A diferença”. In: Margens da filosofia. Tradução: Joaquim Torres Costa e António
M. Magalhães. São Paulo: Papirus, 1991. p. 42.
68
e, desse modo, différance, diria respeito a uma voz média, nem passiva nem ativa,
para a qual a experiência desconstrutiva não deixa de chamar atenção108.
A insistência na palavra différance, grafada de outra forma, procura
também atentar-nos para dois sentidos diferentes do diferir, que estão contidos no
differre latino, mas que o diapherein grego não dá conta: o sentido de adiamento,
de apontar para mais tarde, de desviar no tempo e o sentido de não ser igual, de
ser discernível espacialmente 109 . Assim, percebemos que esses dois sentidos,
apontam para uma ideia espaço-temporal a qual a escrita condena o pensamento.
A escrita joga o pensamento para fora, para a distância do espaço e do tempo. E
Derrida mostra como a différance é o que amarra essas duas vertentes, do espaço
e do tempo, de forma inextrincável, indecidível, no que ele chama de
temporização e espaçamento, ou seja, o devir-tempo do espaço e o devir-espaço
do tempo. Nas palavras de Derrida:
A différance é o que faz com que o movimento da significação não seja possível
a não ser que cada elemento dito ‘presente’, que aparece sobre a cena da
presença, se relacione com outra coisa que não ele mesmo, guardando em si a
marca do elemento passado e deixando-se já moldar pela marca da sua relação
com o elemento futuro, relacionando-se o rastro menos com aquilo a que se
chama presente do que àquilo a que se chama passado, e constituindo aquilo a
108
Cf. DERRIDA, J. “A diferença”. In: Margens da filosofia. p. 40.
109
Ibid., p. 38 - 39.
69
que chamamos presente por intermédio dessa relação mesma com o que não é ele
próprio: absolutamente não ele próprio, ou seja, nem mesmo um passado ou um
futuro como um presente modificados. É necessário que um intervalo o separe do
que não é ele para que ele seja ele mesmo, mas este intervalo que o constitui em
presente deve, ao mesmo lance, dividir o presente em si mesmo, cindindo assim,
como o presente, tudo o que a partir dele se pode pensar, ou seja, todo o ente, na
nossa língua metafísica, particularmente a substância e o sujeito. Esse intervalo
constituindo-se, dividindo-se, dinamicamente, é aquilo a que podemos chamar
espaçamento, devir-espaço do tempo ou devir-tempo do espaço (temporização).
E é a esta constituição do presente, como síntese ‘originária’ e irredutivelmente
não-simples, e portanto, stricto senso, não-originária, de marcas, de rastros, de
retenções e pretensões (para reproduzir aqui analogicamente e provisoriamente
uma linguagem fenomenológica e transcendental que se revelará em seguida
inadequada) que eu proponho que se chame arqui-escrita, arqui-rastro ou
différance. Esta (é) (simultaneamente) espaçamento (e) temporização.110
O que é o pai? (...). O pai é. (...). A escritura, o filho perdido, não responde a essa
questão, ela (se) escreve: (que) o pai não está, ou seja, não está presente. Quando
ela não é mais uma fala despossuída do pai, ela suspende a questão o que é, que é
sempre, tautologicamente, a questão “o que é o pai?” e a resposta “o pai é o que
é”. Então, produz-se uma linha de frente que não se deixa mais pensar na
oposição corrente do pai e do filho, da fala e da escritura.111
110
DERRIDA, J. “A diferença”. In: Margens da filosofia. p. 45.
111
Id., A farmácia de Platão p. 98.
70
inteligível, ou seja, daquilo que “é”. Enquanto, por outro lado, a desconstrução
como pensamento da escrita (não precisamos mais falar aqui em arqui-escrita),
assume a impossibilidade da presença e, assim, a impossibilidade de resposta à
questão “o que é?”. Escrevendo a ausência da autoridade de um logos, ela assume
a escrita na “própria” fala, isto é, desconstrói a ilusão da ideia de presença,
impossibilitando e interrompendo o pensamento do que “é”. É nesse sentido que
não se pode dizer o que “é” a desconstrução, pois a desconstrução, assim como a
escrita, não “é” alguma coisa. Ela desloca a questão ontológica inscrevendo o
pensamento no risco e na errância. Sem a autoridade de um “querer-dizer”, ao
contrário de um pensamento do que “é”, a desconstrução acontece como um
pensamento espectral, perturbando a pretensão de toda “última palavra”. O jogo
indecidível do rastro inscreve o pensamento na ordem do in-visível, condena-o a
uma promessa sem horizonte de expectativa, sem pré-visão e sem palavra final.
Marcando de ficcionalidade tudo que ouse dizer o que “é”, a desconstrução
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1.5
O tempo fora dos eixos: anacronia desconstrutiva
Antes, uma abissalidade infinita que aponta, por um lado, para trás, para
um passado absoluto, para uma anterioridade cada vez mais antiga, sem ponto de
origem, sem nascente. Por outro lado, para frente, o engajamento na promessa de
um eterno porvir daquilo que não pode nunca se presentificar. Guardemos a ideia
dessas duas direções como uma duplicação da origem que inscreverá o sentido
sem sentido - ou a desconstrução do sentido (na) – (da) impossibilidade da
presença como temporalidade anacrônica da desconstrução.
A leitura derridiana do Timeu de Platão, ao pensar khôra como que no
“lugar” da arkhê, complica a ideia de uma origem simples, ou melhor, de um
ponto dado de onde tudo brote. Esta palavra grega, khôra, que desde o Timeu é
fonte de inúmeras interpretações, para Derrida, é um exemplo singular de
intraduzibilidade, porque diz, de uma forma geral, de uma im-possibilidade da
71
112
DERRIDA, J. Khôra. Tradução Nicia Adan Bonatti. Campinas: Papirus Editora, 1995. p.9.
72
plantonistas distinguem sem muita dúvida como seu sentido próprio – “lugar”,
“receptáculo”, “suporte” – e como seu sentido figurado, metafórico – “mãe”,
“ama” e etc. O que Derrida problematiza nesta distinção, e que para ele, simplifica
Platão, é o fato dela promover justamente a separação daquilo que khôra
complica. Derrida aponta que os platonistas não se dão conta de que ao separarem
um sentido próprio de um figurado para definir khôra, eles baseiam-se na
oposição entre sensível e inteligível que ela abala. Desta forma, a
intraduzibilidade da palavra khôra não quer dizer que não haja em outra língua
uma palavra adequada para substituir a palavra grega, mas diz, de forma geral, de
uma inadequação de toda palavra, de todo discurso àquilo que ele se refere. Pois,
mesmo dentro de uma “mesma” língua há já uma tradução operando quando
aponta-se, por exemplo, no próprio texto de Platão, do grego para o grego, vários
nomes para designar khôra. Esta impossibilidade de lhe dar apenas um nome,
marcada exemplarmente neste caso, para Derrida, representa, um “problema” da
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113
DERRIDA, J. Khôra. p. 15.
73
além desse nome que ele representaria. Mais do que isto, este desvio vem
inscrever o problema da representação, da inadequação entre ser e nome, como
um problema do próprio sentido do ser, isto é, como um problema do pensamento
e da experiência do pensamento em sua relação com o sentido como presença. Se
a tradição do pensamento ocidental sempre baseou-se na crença da presença de
um sentido como guia e ao qual a linguagem reportar-se-ia, a desconstrução vem
inscrever nos textos da tradição os rastros de uma outra experiência do
pensamento que enxerga no “lugar” do ser e do eidos, isto é, no “lugar” da
origem, já uma escrita, uma representação, uma secundariedade e, por isso, uma
impossibilidade da origem ou, na origem, o rastro.
Khôra vem mostrar o que só “nos chega, e como o nome”114, o que só se
anuncia e só pode ser pensado já como nome, como desvio, como separação,
numa palavra, como escrita. Forçando-nos a pensar diferentemente da lógica
metafísica, khôra escapa, portanto, das bi-polaridades opositivas e aponta “para-
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114
DERRIDA, J. Khôra. p. 9.
115
Ibid., p. 16.
74
se imprimir – que assim não é, não pertence aos dois gêneros de ser conhecidos
ou reconhecidos. Ela não é e esse não-ser só pode se anunciar...116
116
DERRIDA, J. Khôra. p. 20.
117
BERNARDO, Fernanda. Seminário na Universidade de Coimbra. 1o semestre de 2013.
118
A propósito da diferença entre a messianicidade e o messianismo, citamos o site derridex: “o
messianismo tem um conteúdo, enquanto a messianicidade é uma estrutura formal, sem conteúdo.
Ela é portadora de uma promessa infinita mas insustentável, uma promessa que nos guia mas cujo
resultado é inantecipável.” Cf. http://www.idixa.net/Pixa/pagixa-0508301426.html . Tradução
minha.
119
Sobre Khôra e Messiânico como os dois nomes da origem Cf. O texto de Derrida “Fé e saber,
as duas fontes da ‘religião’ nos limites da simples razão”, no livro A religião. Citamos Derrida:
“…demos dois nomes à duplicidade destas origens. Porque aqui a origem é a própria duplicidade,
uma coisa e a outra. Nomeemos estas duas fontes, estes dois poços ou estas duas pistas ainda
visíveis no deserto. Atribuamo-lhes dois nomes ainda ‘históricos’, aí onde um certo conceito de
história se torna, ele próprio, inapropriado. Para o fazer, refiramo-nos – … – por um lado ao
75
Não foi do ‘direito inaudito’ do presente que toda a história da filosofia retirou a
sua autoridade? Não foi nele que sempre se produziu o sentido, a razão o ‘bom’
senso? (...) Como se poderia ter pensado o ser e o tempo de outro modo senão a
partir do presente, na forma do presente, ou seja, de um certo agora em geral que
nenhuma experiência, por definição, poderá jamais abandonar? A experiência do
pensamento e o pensamento da experiência não se relacionam senão com a
presença.121
Em primeiro lugar, seria preciso lembrar mais uma vez e sempre que for
necessário, que não se trata, para Derrida, de conceber um outro conceito de
tempo não metafísico, já que para ele o conceito de tempo é estruturalmente
metafísico, pois sempre foi pensado a partir da presença. Como já dissemos o
“para-além” derridiano é um para-além quase-transcendental. Por isso, pensar
“para-além” dos textos da tradição não significa pensar fora deles,
independentemente deles, mas reconhecer que todo texto é marcado, ferido em si
mesmo, por um “para-além” como um excesso ou um abismo dentro dele que não
pode ser apropriado, que como o invisível, sempre escapa da teorização. Como
essa abissalidade ou esse rasgão que, por exemplo, khôra abre no texto platônico.
Em outras palavras, este “para-além” desconstrutivo marca a abertura de qualquer
texto para o seu porvir, para outras leituras. Se a desconstrução enxerga a
necessidade de se pensar o tempo “para-além” de sua concepção metafísica, trata-
se, portanto, de rastrear isto que não pôde ser apropriado nos textos da tradição e
que permanece como seu segredo, inscrevendo a impossibilidade de ultrapassá-
los, de deixá-los para trás em busca de um fora da metafísica. Se por um lado, a
desconstrução identifica nos textos as suas clausuras, mostrando a necessidade de
repensá-los, apontando para fora deles, por outro lado e, ao mesmo tempo, ela
mostra como isto que resta ou que excede (n)os textos, torna-os inultrapassáveis,
mostra a necessidade de lê-los sempre novamente. Como uma impossibilidade de
apropriação, este abismo do texto é a sua condição de im-possibilidade, de seu
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122
Cf. DERRIDA, J. «La double séance». In: La dissémination. Paris: Éditions du Seuil, 1972.
p.215-347.
123
DERRIDA, J. De la grammatologie p. 227. Tradução em Gramatologia: “não há fora-de-
texto”. p. 194.
77
agora”. Como explica Derrida, este tempo seria o de “...um agora sem conjuntura.
Um agora disjunto ou desajustado, ‘out of joint’, um agora disjunto que arrisca
sempre não manter nada junto na conjunção assegurada de algum contexto cujas
bordas seriam ainda determináveis.”127
Se a condicionalidade à alteridade abala a pretensão de qualquer
identidade pura, também não podemos mais pensar, pelo movimento do rastro, na
ideia de um tempo ou de um espaço puros, independentes um do outro. Como que
por um jogo da différance, já podemos perceber, também, implicado na ideia de
khôra, um imbricamento espaço-temporal. O espaço não “é” simplesmente
espaço, mas espaçamento, isto é, o vir-a-ser espaço do tempo, assim como o
tempo não “é”’ simplesmente tempo, mas temporalização ou, vir-a-ser tempo do
espaço 128 . Pois, se na leitura de Platão, khôra está relacionada ao espaço, ao
lugar, Derrida vê inscrito aí também o rastro do tempo (o messiânico), já que é no
124
DERRIDA, J. Khôra. p. 18.
125
Id., Spectres de Marx. L’État de la dette, le travail du deuil et la nouvelle internationale. Paris,
Galillé, 1993.
126
Citamos Derrida: “É portanto o atraso que é originário”. “Pela palavra atraso, é preciso
entender outra coisa diferente de uma relação entre dois “presentes”. In: DERRIDA, J. A escritura
e a diferença. Tradução: Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 1995. p.
188.
127
DERRIDA, J. Espectros de Marx. O estado da dívida, o trabalho do luto e a nova
internacional. Tradução: Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994. p.21.
128
Cf. citação sobre a “différance”: o vir-a-ser espaço do tempo e vir-a-ser tempo do espaço, na
seção 1.4 desta tese.
78
o passado que se lembra aqui é um passado que nunca foi presente, um passado
diferente de um presente que tenha virado passado, um passado que nunca foi
vivido, que foi já sempre passado e que nenhuma memória viva pode recordar.
Assim como, também, desloca a ideia de um futuro, de alguma forma antecipável
ou programável e que um dia se presentificará. O porvir da desconstrução é sem
horizonte de espera, é da ordem do que não se pode ver vir, do totalmente outro,
que será sempre desconhecido. Por isso, o discurso ou a escrita dessa
temporalidade de dupla origem, implica que haja invenção, pois assume tratar do
que nunca esteve ou do que nunca estará simplesmente presente.
Desdobraremos essa temporalidade anacrônica da desconstrução sob o
ponto de vista do cinema ressaltado em seu caráter espectral no terceiro capítulo
desta tese.
129
Sobre a ideia do tempo vir sempre como aquilo que nos falta, indicamos a leitura do texto de
Derrida “Penser ce qui vient”, no livro Derrida pour les temps à venir. E citamos: “O tempo vem a
nos faltar. É assim, sempre, que ele vem, o tempo. É assim que ele nos vem. O tempo nos falta.
Ele nos é dado como aquilo que vai nos faltar...”. In: MAJOR, R. (Org.). Derrida pour les temps à
venir. Paris: Stock, 2007. p. 24. Tradução minha.
79
2
(Re)pensar as artes: em torno das obras
2.1.
A desconstrução em obra
Talvez esse capítulo já tenha tido seu início precipitado em algum lugar do
anterior, e, por isso, já possamos supor, como ele deve se concentrar na relação de
Derrida com as ditas “obras de arte do visível” ou em como o pensamento im-
possível da desconstrução pensa a experiência artística. De antemão, já podemos
imaginar que o pensamento da desconstrução, também na abordagem da arte,
abala e repensa suas abordagens filosóficas tradicionais. Assim, este segundo
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capítulo funciona como uma espécie de reflexo do primeiro (ou o primeiro como
um reflexo deste, a ordem é indecidível 130 ), na medida em que, a partir da
experiência artística, ele continua a escrever o “próprio” pensamento da
desconstrução sob uma nova ótica, mesmo que afirmando ainda mais a ótica do
in-visível.
Se o primeiro capítulo, entre outras coisas, pretendeu evidenciar o
pensamento como rastro, isto é, reconhecer que ele é tão traçado e desviado
quanto a arte, já podemos entrever como Derrida desconstrói uma subordinação
da arte ao pensamento promovida por todas as grandes filosofias da arte ou
estéticas tradicionais. De uma forma mais geral, o que parece primeiramente se
abalar nesta insubordinação desconstrutiva é a clássica oposição entre mythos e
logos que, sustentada pela ilusão da presença metafísica de um sentido garantidor
do pensamento131, reservaria para a filosofia o lugar da verdade e para as artes o
limite da ficção.
Acreditamos que é justamente por acolher uma parasitagem ou uma
contaminação do pensamento pela arte que a desconstrução afirma-se como
130
Depois da torsão promovida pela escrita na fala, não se pode mais encontrar a origem do jogo de
reflexos. Citamos gramatologia: “Promiscuidade perigosa, nefasta cumplicidade entre o reflexo e o
refletido que se deixa seduzir de modo narcisista. Neste jogo de representação, o ponto de origem
torna-se inalcançável.” Gramatologia. p. 44.
131
Cf. a desconstrução do fonologocentrismo no primeiro capítulo desta tese.
80
De todos os seus textos, aqueles mais diretamente voltados para uma reflexão a
respeito, ou a propósito, de uma obra de arte são os que talvez melhor espelhem a
radicalidade do chamado pensamento desconstrutivo. Como se os termos e temas
que são caros ao seu pensamento – singularidade, alteridade, heterogeneidade,
diferença, apropriação, desenraizamento, abandono, espectralidade, para citarmos
alguns poucos – se encontrassem, todos evocados em cada uma de suas páginas, e
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mobilizassem, de uma ponta à outra, a leitura dos textos em que Derrida se dedica
a uma reflexão sobre, ou a propósito de, uma obra de arte.133
132
TROTTEIN, Serge. “Pour une esthétique des parerga: lire Derrida avec Kant”. In: JDEY,
Adnen (org). Derrida et la question de l’art. Déconstruction de l’esthétique. p. 241. Tradução
minha.
133
DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar. “Derrida: o pensamento da desconstrução diante da obra de
arte”. In: HADDOCK-LOBO, Rafael (org). Os filósofos e a arte. Pg.333.
134
O que nos propomos a pensar respectivamente no primeiro capítulo, experiência do pensamento
e, no segundo, experiência das obras, mostrando como, no fundo, estas duas experiências dizem da
mesma experiência im-possível da desconstrução como pensamento.
135
CÉZANNE apud DERRIDA. La vérité en peinture. Paris: Champs Flammarion, 1978. p. 6.
Tradução e grifo meus.
81
verdade no modo como Derrida parece nos dá-la a pensar: uma verdade em
pintura que, diferentemente do pensamento de Heidegger, não seria um pôr em
obra da verdade, como se houvesse uma verdade que pudesse ser desvelada pela
obra. A verdade em pintura, diz de um mise en abyme136 da verdade, diz de uma
verdade posta entre aspas, suspensa da sua anterioridade e superioridade, porque
estaria no “próprio” lugar da obra, isto é, no lugar impróprio, no lugar do desvio,
da representação, do secundário, do inautêntico, do que apenas resta. Nas palavras
de Derrida: “Se a locução ‘a verdade em pintura’ tem força de ‘verdade’ e se abre,
de seu jogo, ao abismo, é talvez porque em pintura, vai a verdade e, na verdade,
vai (esse idioma) (d)o abismo”.137 Seria preciso, então, pensar este movimento em
abismo da verdade em pintura tal qual o movimento da escrita derridiana que,
como sugerido no primeiro capítulo, desloca o pensamento da questão do sentido.
Movimento tipicamente desconstrutivo que, nesta tese, sempre vale ressaltar, é
abordado pelo tema do pensar ver como uma suspensão dos valores metafísicos,
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136
Como Derrida nota em Khôra, o termo mise en abyme “…remete a um movimento de cratera
sem fundo, de sorvedouro abissal, de um abismo dentro de outro que regularia o discurso sobre
khôra”. DERRIDA, J. Khôra. p.32.
137
DERRIDA, J. “Passe-partout”. In: La vérité en peinture. p. 12. Tradução minha.
138
É importante lembrar que esta inversão desconstrutiva não pretende apenas inverter o polo
opositivo da metafísica, garantindo, agora, para as artes, o lugar privilegiado, antes ocupado pela
verdade. Na desconstrução, o movimento de inversão não pode ser pensado sem o deslocamento
que ele promove na lógica da hierarquia binária. O importante é pensar para-além dessa lógica e
não apenas inverter o par opositivo. Para essa questão Cf. O texto de Paulo Cesar Duque-Estrada,
“Derrida e a escritura” no livro Às Margens: a propósito de Derrida. p. 9-28.
82
Quando um filósofo repete essa questão [o que é a arte?] sem transformá-la, sem
destruí-la em sua forma, na forma de questão, na sua estrutura onto-interrogativa,
ele já submeteu todo o espaço às artes discursivas, à voz e ao logos. Pode-se
verificá-lo: a teleologia e a hierarquia estão prescritas no envolvimento da
questão.141
Aqui está o grande problema das estéticas ou das filosofias da arte para
Derrida, afinal elas guiam-se sempre a partir da pressuposição da presença de um
logos a que não apenas o pensamento, mas também a arte, estaria submetida. E, se
a filosofia, de uma forma geral, na sua relação com a arte, tem a pretensão de
teorizá-la, de apreendê-la, de falar sobre ela, e assim o fazendo, submetê-la à
ordem da verdade que, de alguma forma, possa ser revelada ou mesmo desvelada,
a desconstrução, ao contrário, enxerga uma impossibilidade que interrompe esta
relação apropriadora da arte.
139
Passe-partout é o título do que poder-se-ia chamar de “prefácio” do livro La vérité en peinture.
Cf. DERRIDA, J. La vérité en peinture. p. 5.
140
Id., “Passe-partout”. In: La vérité en peinture. p. 14. Tradução minha.
141
Id., “Parergon”. In: La vérité en peinture. p. 27. Tradução minha.
83
Aliás, para Derrida, falar da arte, ao invés de falar das obras em suas
singularidades, falar da arte como se houvesse um conceito reunidor que servisse
para todas as obras, já seria um sintoma do pensamento preso à lógica e ao fio
condutor metafísico do sentido, pois seria partir da ilusão de que há, para-além da
existência das obras, em algum outro espaço e tempo, uma ideia de arte que
legitimaria ou não as obras como “obras de arte”. Nas palavras de Derrida:
Por esse viés, pensar a arte e não as obras, já seria, portanto, pensar sob os
valores metafísicos, pela via da compreensão do que Derrida chama os círculos
142
DERRIDA, J. “Parergon”. In: La vérité en peinture. p. 26. Tradução minha.
143
RODRIGUES, C. A literatura entre Derrida e Lacan: dentro/fora das relações de poder. In:
VISO, cadernos de estética aplicada n.13, p. 7-8. Disponível em:
<http://www.revistaviso.com.br/pdf/Viso_13_CarlaRodrigues.pdf>
84
144
Derrida mostra como a figura do círculo se impõe no início tanto das Lições sobre estética de
Hegel como, de forma diferente, mas também, na Origem da obra de arte de Heidegger. Para essa
questão Cf. DERRIDA, J. “Parergon”. In: La vérité en peinture p. 27 - 28.
145
DERRIDA, J. “Parergon”. In: La vérité en peinture. p. 25.
146
Ibid., p. 41.
85
arte, que ela não é consumível. A beleza é alguma coisa que acorda/desperta o
meu desejo ao dizer “você não me consumirá”.147
Quer dizer, a beleza é o que escapa, o que não se deixa representar na obra
e que, por isso, como o invisível, fascina o espectador, deixa-o boquiaberto e faz
com que não se possa falar sobre, mas apenas girar em torno dela. Assim, para
Derrida, não se pode dizer que a beleza pertença à obra como uma qualidade
intrínseca, como o seu dentro, mas apenas como aquilo que de dentro aponta para
o fora, indicando sua incompletude, sua in-visibilidade, sua inacessibilidade e sua
necessidade de suplementação. É nesse sentido que dizemos que a “lógica” do
parergon promove uma desconstrução das estéticas tradicionais abrindo uma
outra experiência do pensamento diante das obras. Voltamos a citar Rodrigues:
“Trata-se então de resguardar à arte um lugar totalmente outro, um lugar em que o
irrepresentável permaneça irrepresentável. Não se tratará portanto de decifrar o
‘segredo da arte’...”148.
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147
DERRIDA, J. “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida”. In: Pensar em não
ver. p. 44.
148
RODRIGUES, C. A literatura entre Derrida e Lacan: dentro/fora das relações de poder. In:
VISO, cadernos de estética aplicada n.13. p.8.
149
A ideia de que Parergon, texto de Derrida, enquadra o círculo filosófico e sua metafísica é
trabalhada por Serge Trottein no livro Derrida et la question de l’art. pp. 237-259.
86
Hegel e Heidegger. Para falar brevemente, se Hegel, por um lado, traça uma
progressão hierárquica das artes baseada no suporte das obras, Heidegger, por
outro lado, desfaz uma série de oposições metafísicas que tradicionalmente
comandavam a estética, tal qual a oposição entre matéria e forma. Contudo, ele
também acaba por submeter as artes espaciais à poesia e à palavra e, por isso, ao
discurso. Assim como também endereça o questionamento sobre as obras a um
suposto sentido primeiro, uno e nu da arte, que secundariamente, as obras, então,
como sua representação, desvelariam.
Não se trata, portanto, de questionar o sentido da arte. Simplesmente
porque, para a desconstrução, não há a arte, a não ser como impossível ou como
um desejo metafísico pelo sentido. Só existem as obras e cada uma na sua
singularidade, como alteridade absoluta. É por isso que Jean-Luc Nancy afirma
que Derrida não faz estética, porque ele não quer submeter os sentidos, ao sentido,
isto é, não quer submeter o sensível ao inteligível. Citamos Nancy:
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Jacques Derrida não faz “estética”, nada de “filosofia estética” nem de “estética”,
precisamente porque ele não deseja submeter a diferença profunda, arqui-original
do(s) sentido(s) a qualquer assunção unificante - e menos ainda a uma assunção
em forma de "disciplina", de categoria de saber, de método e de regime teórico.150
150
NANCY, J. L., “Éloquentes Rayures”. In: Derrida et la question de l’art, p. 18.
87
entrarmos naqueles que mostram uma postura “de retirada de Derrida diante das
obras”151 como forma de abordagem daquilo que sempre escapa.
Percebemos muitas vezes, quando Derrida se propõe a falar das artes, que
ele inicia seu discurso desenhando o campo de uma certa incompetência que não o
permitiria falar delas adequada ou satisfatoriamente. Este gesto traça o que
Ginette Michaud ressalta como uma postura de retirada152 de Derrida diante das
obras e que podemos interpretar como um gesto de respeito e de lucidez na
impossibilidade de insistir numa relação apropriadora diante de um segredo, de
uma singularidade ou de uma alteridade absoluta. Diante das artes como diante de
qualquer alteridade absoluta, segundo Derrida, seria preciso assumir a condição de
uma relação sem relação, uma relação traçada no afastamento do outro abordado
como outro, no respeito da sua separação. O que faria de toda experiência uma
experiência inexperimentada 153 de que Derrida fala a partir da sua experiência
com o desenho em (sem) o desígnio, o desenho154. E é nesse sentido que Derrida
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nomeará aquilo que é o ponto do nosso interesse nesta tese com respeito à relação
entre discurso e obras. Derrida diz que esta relação traça-se num “‘nada a ver’
simultaneamente no sentido do enceguecimento e no sentido da ausência de
relação. Quando se diz ‘não tem nada a ver’, isso quer dizer ‘isto não tem relação
com aquilo’, e é também uma maneira de desenhar o campo da incompetência.”155
Ora, se o fio condutor das estéticas é o sentido da arte, como já dissemos, a
relação sem relação da desconstrução com as artes inventa-se ali onde não se vê,
no traçar do pensamento sem os olhos para abrir um espaço seguro. Ao contrário,
esta “travessia” desconstrutiva lança-se num tatear aventuroso, sem garantias,
onde não se conhece, no próprio espaço da “incompetência”. Como explica
Ginette Michaud:
151
Cf. MICHAUD, G. “(sem) desígnio, o desenho”. In: Revista filosófica de Coimbra. No 43
(2013) p. 83.
152
Ibid.
153
DERRIDA, J. “Com o desígnio, o desenho”. In: Pensar em não ver. p. 163.
154
Optamos por usar esta tradução de Fernanda Bernardo para o título do texto de Derrida À
dessein le dessin, pois, apesar desta tradução seguir menos literalmente o sentido da expressão em
francês, acreditamos que seja mais adequada no contexto da conferência do filósofo e ao tema
desta tese, a saber, o pensar ver como uma dúvida na relação entre o visível e o saber, inscrevendo
essa relação como uma relação sem relação. Nesse sentido, o “sem” no título da tradução de
Fernanda Bernardo parece apontar melhor para uma falta de orientação ou de projeto no desenho a
que o texto de Derrida alude. Para conferir a justificativa desta tradução, reenviamos para a nota de
tradução no texto de Ginette Michaud (que repete o título de Derrida: “(sem) desígnio, o desenho”)
na Revista Filosófica de Coimbra, no 43 (2013) pg. 71. Este título foi traduzido no Brasil por:
Com o desígnio, o desenho. In: Pensar em não ver. p. 161-190.
155
DERRIDA, J. “Com o desígnio, o desenho”. In: Pensar em não ver. p. 164.
88
Por isso a questão “o que é?” não importa para Derrida na abordagem do
que quer que “seja”, dado que ela sempre conduzirá o pensamento à lógica
dualista da metafisica da presença, pois parte sempre de um ponto pressuposto
como sua origem e esquece-se, na verdade, da sua anterioridade devida a uma
alteridade absoluta. Reconhecer essa alteridade absoluta na origem da origem é
também reconhecê-la diante de nós em qualquer relação, pois se ela diz de um
segredo na origem de tudo, estamos sempre diante do que quer que seja, como
diante de um segredo. Respostas para a questão “o que é?” serão sempre da ordem
da ilusão de uma presença metafísica para saciar o pensamento no terreno do
saber. A pergunta que moveria o pensamento de Derrida sem o fio condutor do
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sentido seria, então, a pergunta pela condição de im-possibilidade do que quer que
seja. Reencaminhando, portanto, a questão da arte para as obras e aqui, no caso
de La vérité en peinture, para a pintura, Derrida escreve:
156
MICHAUD, Ginette. “(sem)desígnio – o desenho”. p. 77.
157
A palavra em francês é “retrait”. Permitimo-nos citar a nota de tradução de Fernanda Bernardo
em Memórias de cego: “A palavra ‘retrait’ consente no idioma derridiano uma dupla escuta –
duplicidade que, notemo-lo, dobra o sentido de cada uma delas à outra. Assim, ‘retrait’ é passível
de, ao mesmo tempo, se dar a ouvir como o substantivo do verbo ‘retirer’ (retirar, retrair), mas
também e não sem um ‘abuso violento’ no dizer do próprio Derrida, como o substantivo do verbo
‘retracer’ (retraçar). Esta a razão pela qual optamos por traduzir aqui ‘re-trait’ por ‘re-
traimento/re-traçamento do traço’ a fim de – não sem tautologia, dado o sentido de ‘traço’ para
Derrida, que pressupõe sempre o retraimento, o apagamento, a interrupção ou a suspensão
daquilo mesmo que ‘traça’ –, dar conta do ‘suplemento de traço’, isto é, de um ‘traço’ (trait) que,
‘retirando-se’ ou ‘retraindo-se’ (e justamente porque se retrai ou se retira ao grafar-se) se retraça,
reiterando-se ou suplementando-se.” Nota de tradução de Memórias de cego: O auto-retrato e
outras ruínas p. 10 e11.
158
DERRIDA, J. “Passe-partout”. In: La vérité en peinture. p. 16. Tradução minha.
89
159
Derrida refere-se ao desejo, tanto de Heidegger como de Schapiro, pela verdade dos sapatos
pintados por Van Gogh como um desejo fetichista. Cf. “Restitutions. De la vérité en pointure”. In:
La vérité en peinture. pp. 291-436.
160
“Vieux souliers aux lacets”. Cf. o anexo 1, desta tese.
161
Todos adjetivos que Derrida endereça aos sapatos da tela de Van Gogh ao longo de
“Restitutions. De la vérité en pointure.” In: La vérité en peinture. p. 291-436. Tradução minha.
162
No final da próxima seção, na leitura de Mémoires d’aveugle, entenderemos em que sentido,
para Derrida, o espectador mais do que observar uma obra é olhado por ela.
163
SCHAPIRO, M. “The still life as a personal object – a note on Heidegger and Van Gogh”. In:
SIMMEL, M. L. (Org.). The rich of mind. Essays in memory of Kurt Goldstein. New York:
Springer Berlin Heidelberg, 1968.
90
Gogh, na época “a man of town and city” 164 . Derrida encena as palavras de
Schapiro: “Não, há aí erro e projeção, senão engano e falso testemunho, isso
retorna, esse par [de sapatos], da cidade”165.
Sobre este gesto, Derrida defende que Schapiro estaria dando vazão a um
sentimento de dívida diante do quadro, uma vez que na posição de conhecedor das
obras de arte, ele não deveria deixar passar em branco esta interpretação, segundo
ele, errônea de Heidegger. Como se, ao alertar Heidegger e todos mais para esta
falta, ele retornasse não só o quadro e sua verdade ao próprio signatário da obra,
mas também os sapatos em pintura aos seus verdadeiros pés.
O que Derrida pretende ressaltar aqui é que nenhum dos dois pensadores
mostra ter alguma dúvida quanto à origem do par de sapatos, nem mesmo quanto
ao fato deles formarem, realmente, um par. Derrida não cessa de se perguntar ao
longo do texto: “mas o que é um par?”, “esses sapatos formam mesmo um par?”.
Deixando essa questão do par para mais tarde, Derrida mostra como não há, em
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nenhum momento, por parte dos dois “pleiteadores” da verdade dos sapatos, uma
tentativa de deslocamento dessa questão da sua pretensão restituitiva da verdade,
mesmo sabendo-se tratar de sapatos pintados sobre uma tela, ou seja, de sapatos
em pintura. O espanto de Derrida gira em torno de uma postura ingênua de tão
célebres pensadores nesta disputa em termos de pertencimento por sapatos
pintados, em representação. O texto derridiano parece pretender ressaltar,
justamente, esse traço desviado de toda representação que o termo “em pintura”
assume. Restitutions problematiza, desse modo, toda discussão em torno de
verdade, pertencimento ou propriedade não apenas nesse contexto da pintura
como em qualquer outro contexto, pois, arriscamos dizer, que talvez, para
Derrida, o que se poderia aprender na relação com a arte – por nela aparecer de
forma mais evidente e até mesmo assumida como sua “realidade” – é essa
condição de representação, de afastamento, de desvio que, efetivamente, para a
desconstrução, seria comum a tudo o que há. Assim, Derrida parece querer nos
evocar a todo momento nesse texto e de forma ainda mais efusiva a respeito dos
164
SCHAPIRO apud DERRIDA. “Restitutions. De la vérité en pointure”. In: La vérité en
peinture. p. 296. Tradução minha.
165
DERRIDA, J. “Restitutions. De la vérité en pointure”. In: La vérité en peinture. p. 296.
Tradução minha.
91
pintados. Esta correspondência entre os dois dar-se-ia apenas como exposição das
suas posturas desejantes por uma correspondência do quadro com seus próprios
discursos. Cada um, na sua projeção singular, tentaria fazer os sapatos e o quadro
corresponderem ao pensamento que defendem. Nas palavras de Derrida:
166
“Ceci n’est pas une pipe”. Tela de René Magritte.
167
DERRIDA, J. “Restitutions. De la vérité en pointure”. In: La vérité en peinture. p. 318 e 320.
Tradução minha.
168
Ibid., p. 297. Tradução: Paulo Cesar Duque-Estrada, no trecho também citado por ele em
HADDOCK-LOBO, R. (org.). Os filósofos e a arte. p. 336.
92
O que pode ser vislumbrado nesta inesgotável reiteração do tema humanista, bem
como da ontologia ligada a ele, neste zumbido obscurantista que sempre trata a
animalidade em geral sob a alçada de um ou dois exemplos escolares, como se
houvesse apenas uma única estrutura ‘animal’ que pudesse ser contrária ao
humano (inalienavelmente dotado de razão, liberdade, sociabilidade, riso,
linguagem, lei, simbólico, com consciência ou inconsciente etc.) é que o conceito
de arte também é construído com apenas uma tal garantia em vista. Ele está lá
para levantar o homem, isto é, sempre para erguer um homem-deus, para evitar a
contaminação de ‘baixo’ e para marcar um incontestável limite da domesticidade
antropológica.170
169
DERRIDA, J. “Restitutions. De la vérité en pointure”. In: La vérité en peinture. p.297.
Tradução minha.
170
Id., Economimesis. In: Diacritics, v. 11. Johns Hopkins University Press, 1981. p. 5. Tradução
minha.
93
171
DERRIDA, J. O animal que logo sou: (a seguir). Tradução: Fabio Landa. São Paulo: Editora
UNESP, 2004.
172
Discutiremos o tema do direito de olhar no terceiro capítulo desta tese.
94
A obra é sempre aquilo que nos olha da sua mudez absoluta, que apela
nossa atenção sem, contudo, co-responder ao nosso olhar, ao nosso pedido de
revelação. Ela é aquilo que, chamando-nos, não se dá à relação, ri-se de toda
projeção sobre ela e escapa.
Portanto, fica marcado nesse texto de Derrida como que um riso da obra
sobre os discursos de pretensão restituidora tanto de Schapiro como de Heidegger,
173
DUQUE-ESTRADA, P. C. in: Os filósofos e a arte. p. 335-336.
174
DERRIDA, J. “Restitutions. De la vérité en pointure”. In: La vérité en peinture. p. 296.
95
meio que expostos ao ridículo nesta disputa pela verdade dos sapatos diante de
sua mudez inapropriável. Em relação a Heidegger, Derrida confessa:
175
DERRIDA, J. “Restitutions. De la vérité en pointure”. In: La vérité en peinture. 299.
96
176
DERRIDA, J. “Restitutions. De la vérité en pointure”. In: La vérité en peinture. p. 302.
97
2.2.
A invisibilidade do traço
177
DERRIDA, J. “Circunfession”. In: _____; BENNINGTON, G. Jacques Derrida. Paris:
Éditions du Seuil, 1991. Tradução brasileira de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1996.
98
Derrida estreiou essa série com a exposição por ele nomeada Memórias de
cego: o auto-retrato e outras ruínas, montada no Hall Napoleão do museu, entre
26 de outubro de 1990 a 21 de janeiro de 1991. Tendo aceito o convite do museu,
Derrida legou-nos, assim, uma de suas mais “belas” obras, que acreditamos ser
indispensável a qualquer trabalho que pretenda rastrear a abordagem
desconstrutiva das artes. Justamente porque, nela, o filósofo parte da experiência
do desenho, como um exemplo paradigmático das artes, alertando-nos para o
caráter gráfico comum tanto às artes quanto ao pensamento. Em outras palavras,
Derrida mostra-nos como a origem sem origem tanto das artes como do
pensamento traduz-se numa experiência de cegueira não só do artista como
também do espectador diante das obras, obrigando-nos a repensar o olho e a
experiência do olhar a partir de um certo impoder, isto é, a partir de uma certa
invisibilidade em toda visão.
A montagem de Derrida é composta apenas por obras que, de alguma
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Note-se que no idioma de Derrida, “point de vue” consente uma dupla escuta e/ou
um duplo entendimento: tanto pode ouvir-se/entender-se como “ponto de vista”,
no sentido de visão ou perspectiva, como no sentido de “nenhuma vista” e,
portanto, de “cegueira”. Indecidibilidade com que o filósofo joga nesta obra na
sua desconstrução do privilégio da autoridade do olhar, do óptico, do eidético, do
theorein ou do teorético: um privilégio que, como o filósofo referirá, desde o
eidos platônico até o objeto ou a objetividade moderna, permite ler a história da
filosofia como uma história da visibilidade – destino que ela partilha com as artes
do visível.178
178
BERNARDO, Fernanda. Nota de tradução In: DERRIDA, J. Memórias de cego. O auto-retrato
e outras ruínas. p. 9 e 10.
99
179
DERRIDA, J. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 73.
100
desenho, a escrita surge como que por “vingança fratricida”, para compensar uma
falta, uma derrota: quando criança, o filósofo tentava imitar sem jeito os desenhos
de seu irmão mais velho que faziam sucesso na família e eram pendurados pela
casa dando a ver o talento do irmão em contraposição a uma “incompetência” de
Derrida. Frustrado nas suas tentativas de impressionar pelo traço do desenho, o
futuro filósofo elege, ou melhor, sente-se eleito pelo traço da escrita. Derrida
confessa:
180
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 45.
101
Bem, estou, quanto a mim, do lado do discurso, ou seja, quando vou na direção
das palavras para falar do desenho ou da pintura, é também uma maneira de fugir
do que sei que não posso dizer a respeito do próprio desenho. Porque no fundo,
uma vez que a questão que é aqui colocada a todos os participantes é: “O que é o
desenho?”, minha resposta é: “Eu não sei o que é o desenho”. E, incessantemente,
sou tentado a reconduzir o desenho, na medida em que ele desenha alguma coisa
e em que identifica uma figura, na medida em que é orientado pelo desígnio, isto
é, por um sentido, ou uma finalidade, que permite sua interpretação, sempre sou
tentado a puxar o desenho para o insignificante, isto é, para o traço. E foi por aí
que, incessantemente, fui levado a reconduzir minha preocupação com o desenho
na direção da minha preocupação mais antiga e mais geral com o traço da escrita,
102
181
DERRIDA, J. “Com o desígnio, o desenho”. Pensar em não ver. p.165.
182
DIDEROT, Denis. Carta a Sophie Volland, 10 de junho de 1759. Citada por DERRIDA, J. In:
Memórias de cego. p. 9.
183
MICHAUD, Ginette. Revista filosófica de Coimbra no 43 (2013). p. 98.
184
DERRIDA, J. Memórias de cego. p.9.
103
já que, como Derrida explica, “uma hipótese, como o seu nome indica é suposta,
pressuposta” 185 e, assim, sempre apressada, sempre anterior e aquém de toda
certeza ou conclusão. Por isso, o autor adverte o leitor desde o início: o que pode
guiá-lo nesta tarefa da escrita em torno de desenhos são apenas hipóteses,
pressuposições como que lançadas à frente feito antenas para orientá-lo “na
errância, no tacteio, na especulação que se aventura” 186 . Certamente, este guia
enviado à frente – como mãos de cego adiantadas ao resto do corpo, tateando o
espaço em reconhecimento para evitar a queda – difere-se daquele do fio condutor
do sentido, orientador do pensamento em termos de certeza. Este guia hipotético
assume o percurso na noite, na impotência dos olhos como garantidor do caminho
e a necessidade do suplemento das mãos como apoio à fragilidade do olhar. E é
nesse sentido que, tateante, logo nas primeiras páginas do livro, Derrida apresenta
duas hipóteses do desenho que guiarão, na dúvida, a escrita-leitura deste texto.
A primeira hipótese, chamada pelo filósofo de abocular – que quer dizer
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sem os olhos – é designada como uma hipótese transcendental já que ela se refere
a uma condição de possibilidade do desenho. Ela diz respeito a um ponto cego na
origem do desenho apenas a partir do qual todo traço se traça. Como a “origem”
invisível de todo traço ou de todo rastro esta cegueira primeira é o que possibilita
ver, por isso o seu caráter transcendental.
A segunda hipótese, chamada por Derrida de hipótese sacrificial seria
como que a tematização, nos desenhos, dessa sua condição de possibilidade
invisível. Ela ganha esse nome porque diz de um certo sacrífico sofrido pelos
olhos nas cenas ilustradas pelas obras da exposição, dando a ver, na escolha das
obras, a inscrição derridiana numa cultura greco-judaico-cristã. As ilustrações
mitológicas, assim como do velho e novo testamentos, mostram o que acontece
aos olhos como punição, eleição ou conversão nas cenas de enceguecimento. Por
isso, esta hipótese sacrificial seria a representação, no desenho, da sua própria
condição de possibilidade. Seria a cegueira posta em retrato pelo traço. É o que
Michael Naas nos explica:
185
DERRIDA, J. Memórias de cego. p.9.
186
Ibid.
104
Assim, se Derrida faz uso de uma oposição clássica para nomear essas
duas hipóteses, veremos como essa oposição é desconstruída, já que elas
contaminam-se uma a outra, precisam uma da outra para fazerem obra. Com
efeito, a hipótese sacrificial é o que dá a ver a hipótese transcendental, mas, ao
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Duplo genitivo. Não há aqui nenhuma tautologia, mas uma fatalidade do auto-
retrato. De cada vez que um desenhador se deixa fascinar pelo cego, de cada vez
que ele faz do cego um tema do seu desenho, projeta, sonha ou alucina uma
figura de desenhador (...). Mais precisamente ainda, começa a representar uma
potência desenhadora a operar, o próprio ato do desenho. Inventa o desenho. O
traço [trait] não se paralisa então na tautologia que dobra o mesmo ao mesmo.
Pelo contrário está a mercê da alegoria, deste estranho auto-retrato do desenho
abandonado à palavra e ao olhar do outro. Subtítulo então de todas as cenas de
cego: a origem do desenho. Ou, se preferirem, o pensamento do desenho, uma
187
NAAS, Michael. La nuit du dessin: foi et savoir dans Mémoires d’aveugle de Jacques Derrida.
p. 5. Tradução minha.
188
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 10.
105
certa pose pensativa, uma memória do traço que especula em sonhos acerca da
sua própria possibilidade.189
própria origem, uma relação entre invisibilidade e invenção de si. Mas uma
invenção de si sempre como outro, porque, como poderemos entender melhor ao
longo deste texto, se por um lado, esta tematização de sua própria origem aciona
uma potência do autorretrato, por outro lado, percebemos que este autorretrato é
sempre da ordem do impossível. Pois, se as cenas de cegos, como autorretrato, são
a representação do irrepresentável, esses autorretratos seriam, portanto, sempre
autorretratos alegóricos do desenho, já que eles representam, encenam, sua
própria impossibilidade de representação190.
Além disso, o tema da cegueira assume e representa a impossibilidade de
apropriação do que se desenha, o desvio e a distância da própria representação, a
impossibilidade de apropriação daquilo que se pretende desenhar, capturar no
traço. Esta im-potência do autorretrato do desenho diria, na verdade, de uma
melancolia comum a toda arte, já que mostra aquilo que se marca em si como um
luto da origem perdida, um luto do modelo que não se pode apropriar. É este jogo
do “salvar perdendo” de toda escrita, de todo registro, que se marca no que
Derrida chama do retraimento/retraçamento do traço, e que o desenho, como
189
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 10.
190
A estrutura do autorretrato impossível ou alegórico diz da impossibilidade da relação a si que
trabalhamos em diversos momentos do primeiro capítulo, principalmente, na seção 1.3, a
propósito da invenção da identidade.
106
exemplo paradigmático das artes, nos mostrando cegos, nos dá a ver como que um
pensamento do desenho. Seguindo a explicação de Derrida:
191
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 10 - 11.
107
192
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 39.
193
Ibid.
108
"o aberto onde não ver" e, ainda, por uma proximidade fônica, "a obra onde não
ver"194.
Dessa experiência de escrever sem ver, que acabava de lhe acontecer no
carro, depois da reunião no museu, quando voltava para casa, Derrida aproveita
para tomá-la como exemplo da experiência de toda escrita e de todo traço. E
ouvimos ressoar na citação abaixo, o texto de Diderot escrito na noite e que abre,
como epígrafe, Memórias de cego:
O que é que se passa quando se escreve sem ver? uma mão de cego aventura-se
solitária ou dissociada, num espaço mal delimitado, tateia, apalpa, acaricia tanto
quanto inscreve, fia-se na memória dos fios e suplementa a vista, como se um
olho sem pálpebra se abrisse na ponta dos dedos: o olho a mais acaba de brotar
rente à unha, um único olho, um olho de zarolho ou de ciclope e dirige o traçado -
é uma lâmpada de mineiro na ponta da escrita, um substituto curioso e vigilante, a
prótese de um vidente ele mesmo invisível. Do movimento das letras, do que
assim inscreve este olho no dedo, a imagem esboça-se sem dúvida em mim. A
partir do retraimento absoluto de um centro de comando invisível, um poder
oculto assegura à distância uma espécie de sinergia que coordena as
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194
Cf. nota de tradução de Fernanda Bernardo em Memórias de cego p. 40.
195
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 11 e 12.
109
Como todos os cegos, eles têm de avançar, quer dizer, de se expor de per-correr o
espaço como se corre um risco. Apreendem o espaço com mãos ávidas, errantes
196
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 12.
197
Cf. Os Estudos de cegos de Antoine Coypel no anexo 2 desta tese.
110
198
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 13.
199
Falaremos logo em seguida deste quadro, O Erro de Antoine Coypel, que se encontra no anexo
3 desta tese.
200
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 20.
201
Id., “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 69.
111
202
Id., Memórias de cego. p. 12.
203
DERRIDA, J. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 69 - 70.
112
204
DERRIDA, J. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver p. 85.
113
205
Cf. O Erro de Antoine Coypel no anexo 3 desta tese.
206
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 20
207
Ibid.
114
A fonte de luz que torna as coisas aparentes e que, portanto, permite que o visível
apareça, a fonte de luz em si mesma não é visível. O que faz com que as coisas
sejam visíveis, logo a própria visibilidade do visível, não é visível, a luz não é
visível.208
Derrida segue explicando que, por isso, o que vemos são as coisas
luminosas, mas que, como Aristóteles defendia, a transparência, o diáfano não é
visível. Isto é, aquilo que permite que a própria visibilidade apareça não é visível.
E, ao mesmo tempo, Derrida insiste que este tema é também moderno porque
Merleau-Ponty defende em Le visible et l’invisible que o visível não se opõe ao
invisível: “que a invisibilidade não é um recurso da visibilidade, não é algo visível
em potencial; que há uma invisibilidade que estrutura o campo da visibilidade”209.
208
DERRIDA, J. “Com o desígnio, o desenho”. In: Pensar em não ver. p. 183.
209
Ibid.
115
Não se vê a visibilidade do visível. O que faz com que seja num elemento de
algum modo noturno, de transparência não visível, que o visível aparece. Dizendo
de outro modo, nesse ponto, não há oposição entre o visível e o invisível, não se
vê a visibilidade pura. Portanto, não se vê a condição da visão210.
210
DERRIDA, J. “Com o desígnio, o desenho”. In: Pensar em não ver. p. 183 - 184.
211
Id., Memórias de cego. p. 51.
116
212
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 51- 52.
213
Id., “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 71.
117
Um traçado não se vê. Dever-se-ia não o ver (...) na medida em que, o que lhe
resta de espessura colorida, tende a extenuar-se para marcar a orla única de um
contorno: entre o dentro e o fora de uma figura. Alcançando este limite, nada
mais há a ver, nem mesmo o preto e branco, da figura/forma, e tal é o traço
[trait], eis aqui a própria linha: que portanto não é mais o que é, porque, desde
então, nunca mais ela se relaciona a si mesma sem imediatamente se dividir,
interrompendo aqui a divisibilidade do traço [trait] qualquer identificação pura, e
formando, ter-se-á sem dúvida agora compreendido, a nossa hipoteca geral para
com todo o pensamento do desenho, no limite de jure inacessível. Nunca este
limite é presentemente alcançado, mas sempre o desenho acena para esta
inacessibilidade, para o limiar onde não aparece senão o redor do traço, o que ele
espaça, delimitando-o e que portanto não lhe pertence. Nada pertence ao traço, e
portanto ao desenho e ao pensamento do desenho, nem mesmo o seu próprio
“rastro” [trace] (...). Ele não toca nem junta senão separando.214
isso não quer dizer que não haja no desenho algum tipo de visibilidade.
Naturalmente, o desenho dá a ver alguma coisa, mas o que Derrida pretende trazer
a esta discussão é a questão de como há nesta arte dita do visível uma experiência
singular de invisibilidade, na medida em que há no traço do desenho um
desligamento da ordem do saber, da propriedade e do pertencimento. Como o
rastro da escrita derridiana, o traço é aquilo que aponta sempre para o outro.
Afastando-se de si, ele traça para dar a ver outra coisa, nunca ele mesmo. Estando
entre o dentro e o fora que ele divide, ele é a própria divisão sem, contudo, poder
distinguir-se a si próprio. Sem identificação possível, o traço resta invisível,
impedindo e impossibilitando todo juízo, toda decisão. O pensamento do traço na
sua invisibilidade, escreve-se como pensamento da hipótese, sem confirmação de
si. O traço diferencial do desenho pode ser desdobrado no traço da escrita, como o
traço gráfico da “própria” différance, instituidora de diferenças e, por isso,
condição de possibilidade do que quer que se distinga, do que quer que apareça,
contudo, ela própria, nunca identificável, e por isso, invisível. Escutemos agora À
dessein le dessin:
214
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 59 - 60.
118
Como que ecoando as duas citações acima, esta terceira, do texto Penser à
ne pas voir, inicia por ressaltar o fato de Derrida se referir sempre, quando fala da
invisibilidade do traço em Memórias de Cego, especificamente ao traço do
desenho e não da pintura:
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Falo do desenho mais do que da cor, uma vez que no desenho, na experiência do
desenho (ali onde ele se distingue até mesmo em meio à cor mais aparentemente
homogênea), está em jogo a experiência do traço, do rastro diferencial. É a
experiência do que vem colocar um limite entre espaços, tempos, figuras, cores,
tons, mas um limite que é ao mesmo tempo condição da visibilidade e invisível.
Naturalmente, há traços espessos, como se diz, traços que têm uma espessura de
visibilidade, um enorme traço negro, mas o que faz traço nesse enorme traço
negro não é sua espessura negra, mas a diferencialidade, o limite que, enquanto
limite, enquanto traço, não é visível. A operação de desenho não lida nem com o
inteligível nem com o sensível, e é por isso que ela é, de certa maneira, cega. Esse
enceguecimento não é uma enfermidade. É preciso ver no sentido corrente do
termo para desdobrar essas potências de cegueira.216
215
Id., “Com o desígnio, o desenho”. In: Pensar em não ver. p. 165 - 166.
216
DERRIDA, J. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 87.
119
217
DERRIDA, J. “Com o desígnio, o desenho”. In: Pensar em não ver. p. 166.
218
Id., Memórias de cego. p. 62.
120
219
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 62.
121
220
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 61.
221
Cf. no anexo 4 desta tese as cenas de Dibutade ou a Origem do desenho, pintadas por Joseph-
Benoit Suvée e por Jean-Baptiste Regnault.
122
num muro o contorno da sombra dele, guardando, assim, nesse traço de sombra,
não exatamente a presença do amado, mas a sua partida, a sua memória, nem
presença nem ausência. Nas palavras de Derrida:
Que Dibutade (...) siga então os traços de uma sombra ou de uma silhueta, que ela
desenha na superfície de um muro ou de um véu, em qualquer dos casos uma
skiagraphia, esta escrita da sombra, inaugura uma arte da cegueira. A percepção
pertence desde a origem à recordação. Ela escreve, logo ela ama já na nostalgia.
Desligada do presente da percepção, caída da própria coisa que assim se partilha,
uma sombra é uma memória simultânea, e a varinha de Dibutade é um bordão de
cego.222
casal exposto não cruza o olhar um do outro. Esta troca de olhar impossível
representa a dissimetria da alteridade como a distância que apela o amor em toda
relação. Aqui, nesta narrativa, há uma relação do amor, do coração, com a
memória, já que Dibutade traça sem ver, como que de cor, de memória, de
coração, o contorno do amado. A origem do desenho como esta escrita da sombra,
esta skiagraphia, traçada pelas mãos de uma mulher cega de paixão ressalta o
ponto cego como origem da obra. Como já dissemos, um desenhador nunca vê
presentemente o modelo que desenha, ele traça sempre de memória. Dibutade não
traça aqui a partir do modelo, mas já de sua sombra, dessa memória simultânea, já
um rastro da presença do amado, “como se ver fosse interdito para desenhar,
como se não se desenhasse senão na condição de não se ver, como se o desenho
fosse uma declaração de amor destinada à invisibilidade do outro”223.
Como a declaração de amor traçada no escuro de Diderot a Sophie Voland,
Derrida parece entender que todo traçar e por isso toda obra, todo pensamento, é
sempre destinado a uma singularidade, à singularidade da alteridade que inspirou.
Assim, toda obra é a tentativa de fazer justiça, de alcançar e fazer falar a
inspiração que visitou, mas que, de um só golpe, se retirou para a sua distância
desconhecida sem se deixar apropriar plenamente. Toda obra, todo traço é a ruína,
222
DERRIDA. J. Memórias de cego. p. 56.
223
Ibid., p. 56.
123
224
Fernanda Bernardo seminário sobre Memórias de cego na Universidade de Coimbra no
Segundo semestre de 2012.
225
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 36.
226
Ibid., p. 36 - 37.
124
mas um certo espectro, nem presença nem ausência, que exige registro, memória e
invenção.
Reconhecer que o traço marca mais a ausência do que a presença do outro
seria reconhecer também, ao lado do agradecimento, o luto em todo traçar. Se o
agradecimento no traço festeja a vinda, o toque da inspiração, a “aparição
invisível” do outro – como a aparição do anjo Rafael –, por outro lado e
aporeticamente, o luto no traço faz derramar lágrimas pelo que é já sempre apenas
o resto dessa visita, pelo que é já despedida em memória do que aconteceu. Esta
aporia, como condição de toda obra é que marca a experiência artística (como
aliás toda experiência) – seja do ponto de vista do artista, seja do ponto de vista do
espectador – como uma experiência inexperimentada, uma experiência interdita,
barrada. Mas lembramos novamente que a im-possibilidade da experiência não
pode ser considerada negativamente, porque é justamente a interdição de
apropriação do outro que faz com que tenhamos de inventar, de responder ao
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227
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 61.
125
Portanto, não há nada a ver na obra de arte. Quando ficamos sem ar diante
de uma obra é porque o que ela nos dá a ver é este nada a ver que nos rouba as
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palavras, que nos deixa de boca aberta, nos desestabiliza. Talvez, porque ela erga
diante de nós o segredo sem segredo da nossa origem fugidia, desconhecida, o
mistério e a distância da alteridade a que estamos votados a nos relacionar sem,
contudo, realmente, entrar em contato com ela.
Da perspectiva do espectador, este ponto cego na obra pode ser
interpretado também como uma espécie de olho da própria obra que, embora
invisível, observa o espectador, invertendo a cena do espetáculo e inscrevendo
uma dissimetria irredutível em toda relação com ela229. Uma vez que o olhar da
obra é sem troca possível, uma vez que ele observa sem ser visto, sem cruzar, hora
nenhuma, com o olhar do espectador, marca-se uma espécie de elevação da obra
que diria da sua impossibilidade de apropriação. Visto pela obra, o espectador é
como que enceguecido por ela. Derrida confessa não ser o único a defender esse
ponto de vista230:
228
DERRIDA, J. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 82.
229
Como o quadro Olho com papoula, de Odilon Redon, que integra a exposição de Derrida e que
está no anexo 5 desta tese.
230
Esta ideia de que somos olhados por aquilo que julgamos ver é explorada por Didi-Huberman
no livro Ce que nous voyons, ce que nous regarde. Paris: Les Éditions de Minuit, 1992. Traduzido
no Brasil sob o título: O que vemos, o que nos olha. Tradução: Paulo Neves. São Paulo: Editora
34, 1998.
127
Assim, este olhar da obra, como o seu ponto cego, como aquilo que nela
diz da sua invisibilidade, da sua impossibilidade de apropriação e de
conhecimento, pode ser observado também na especularidade em abismo narrada
por Derrida no momento do artista traçar um autorretrato. Diante de um espelho
para desenhar-se, o signatário da obra, “ao olhar-se ver, ele vê-se igualmente a
desaparecer no momento em que o desenho tenta desesperadamente apossar-se
dele.”233 Por isso, todo autorretrato é também um mostrar-se como cego, como
cego vidente que o desenhador é ao desenhar. E nesse ponto, percebemos outra
dimensão do título da exposição de Derrida, dado que as memórias de cego não
são apenas suas memórias em relação à experiência do desenho, mas também,
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231
Na nota de tradução da edição brasileira do livro Pensar em não ver para esta frase, cujo
original é “et ça nous regarde à tous les sens du terme”, o tradutor explicita o duplo sentido do
verbo “regarder” podendo ser entendido tanto quanto olhar como quanto concernir. In: Pensar em
não ver. Por isso, para Derrida, aquilo que nos olha é o que nos concerne. É importante ressaltar
que esse duplo sentido é também referenciado no título do livro de Didi-Huberman citado na nota
anterior.
232
DERRIDA, J. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 82 - 83.
233
Id., Memórias de cego. p. 63.
234
Id., “Com o desígnio, o desenho”. In: Pensar em não ver. p. 184.
235
Cf. o autorretrato de Fantin-Latour no anexo 6 desta tese.
236
Permitimo-nos citar Michael Naas e Pascale-Anne Brault: “como se o auto-retrato de Fantin-
Latour reproduzido na capa do livro fosse para Derrida um emblema para a sua própria doença de
olho como ele conta ao longo do livro. In: To believe: an intransitive verb? Translating skepticism
in Jacques Derrida’s Memoirs of the blind. p. 8. Tradução minha.
128
descreve a sua doença da paralisia do rosto que o deixava com um olho cego, fixo,
alucinado, sem a piscadela da pálpebra, reconhecemos a mesma descrição
derridiana sobre este autorretrato de Fantin-Latour:
Quando um artista tenta se desenhar, por exemplo, torna-se ainda mais claro que
ele não pode ao mesmo tempo se ver e se desenhar em vias de se ver em um
espelho, que ele não pode se desenhar em vias de se desenhar sem se olhar em
um espelho onde ele não está em vias de se desenhar. Isso que nós chamamos um
autorretrato é, portanto, sempre atravessado pelo invisível e não encontra nunca
ele mesmo num processo de identificação. A invisibilidade cruza a visibilidade
assim como a ruína mina o autorretrato que não pode nunca se apresentar como
tal. A inevitável cegueira entre o desenhador e seu tema atinge o próprio
desenhador no interior mesmo do seu auto-retrato (...). A fim de se representar, o
artista se mergulha na noite do retrato onde a visão deve ceder à memória e o
estatuto do autorretrato começa a tremer.239
237
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 63.
238
Esta ideia não vale apenas para os desenhos de autorretrato, mas também para os
“autorretratos” escritos, isto é, para as chamadas autobiografias, que seriam também sempre uma
autobiografia de cego e, por isso, alegóricas ou heterobiografias.
239
NAAS, Michael. La nuit du dessin: foi et savoir dans Mémoires d’aveugle de Jacques Derrida.
p. 6. Tradução minha.
129
Quando olho alguém nos olhos – apelo aqui para a experiência de cada um –,
preciso escolher entre olhar os olhos vistos do outro e olhar os olhos videntes do
outro. Não posso olhar os olhos do outro como ao mesmo tempo vistos e videntes
(...), como visíveis e olhadores. Se os vejo como visíveis, torno-me de algum
modo cego à sua vidência. (...). Sabemos muito bem que os olhos que olhamos e
que são visíveis são também olhos videntes. Sabemos muito bem disso, mas não
os vemos simultaneamente como videntes e visíveis. É a mesma perturbação
diante do espelho. Na experiência do espelho, essa indecisão aflora. Quando nos
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olhamos em um espelho, devemos escolher entre olhar a cor dos nossos olhos e
olhar o fluxo, o influxo do olhar que se olha com todos os paradoxos do
autorretrato.240
240
DERRIDA, J. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 72.
241
Sobre a aporeticidade da expressão francesa point-source, permitimo-nos citar a nota de
tradução de Fernanda Bernardo em Memórias de cego: “indecidibilidade com que o filósofo joga
para referir o aparecer desaparecente da origem ou da fonte do desenho: a ‘origem arruinada’ ou
‘em abismo’ que está justamente na origem da retirada ou do re-traimento/re-traçamento do
traço.” Em Memórias de cego. p. 62.
130
mesmo: “Toda e qualquer simetria está rompida, entre ele e ele, entre ele, o
espetáculo, e o espectador que ele é também. Não há mais do que espectros”242.
Podemos pensar que se Derrida chama, por vezes, este ponto cego da obra
de ponto-fonte, é para nos lembrar que este luto, esta ruína da obra não lhe
acontece como um acidente, como uma crítica ao desvio da mímesis que afasta da
presença, do original, mas, justamente ao contrário, é esta experiência ruinosa de
enceguecimento que abre a chance da obra, que lhe dá possibilidade: “Esta
dimensão de simulacro ruinoso nunca ameaçou, antes pelo contrário, o
surgimento de uma obra” 243 . É por isso que em certo ponto do texto e da
exposição, Derrida apresenta o tema da ruína também como uma ilustração da
cegueira. Para o filósofo, também os temas de ruínas no desenho diriam dessa
origem invisível como sua condição transcendental. Por isso, os desenhos de
ruínas, assim como os desenhos que tematizam a cegueira, também podem ser
considerados autorretratos do desenho 244 . Pois, a ruína é desde o início, a
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242
DERRIDA, J. Memórias de Cego. p. 71.
243
DERRIDA, J. Memórias de Cego.p. 70.
244
Cf. no anexo 7 desta tese, As ruínas do coliseu de Roma, de François Stella, que integra a
exposição de Derrida como um autorretrato do desenho.
245
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 71.
246
Citamos a tradução de Fernanda Bernardo para o trecho do poema de Marvell citado por
Derrida: “Como foi sábia a Natureza ao destinar, / Às lágrimas e à vista os mesmos olhos! / Para
que, vista a vanidade do objecto, / Estejamos prontos a lamentar-nos […] Abri então, meus olhos,
a vossa dupla represa, / E realizai assim o vosso mais nobre uso; / Porque, se também outros
podem ver, ou dormir, / Só olhos humanos podem chorar. […] Deixai pois a torrente transbordar a
131
para ver, Derrida defende este ponto de vista lacrimejante para desconstruir a
dogmaticidade do modelo ótico em que a visão é equacionada ao saber e ao poder
para relacioná-la, antes, à imploração e à prece. Citamos Derrida:
se as lágrimas vêm aos olhos, se elas podem então também velar a vista, talvez
elas revelem, no próprio decurso desta experiência, nesse curso de água, uma
essência do olho (...). No fundo, no fundo do olho, este não seria destinado a ver
mas a chorar. No exacto momento em que velam a vista, as lágrimas desvelariam
o próprio do olho (...): ter em vista a imploração mais do que a visão, endereçar a
prece, o amor, a alegria, a tristeza, mais do que o olhar. (...) Se os olhos de todos
os animais são destinados à visão, e talvez por isso ao saber escópico do animal
racional, apenas o homem sabe ir além do ver e do saber, porque só ele sabe
chorar. (...) A essência do olho é o próprio do homem. Contrariamente ao que se
crê saber, o melhor ponto de vista (o ponto de vista [point de vue] terá sido o
nosso tema) é um ponto fonte [point source] e um ponto de água [point d’eau] –
vem a ser as lágrimas.247
sua fonte, / até que olhos e lágrimas sejam a mesma coisa: / E cada um a diferença do outro porte/
Estes olhos chorosos, estas lágrimas videntes.” In: Memórias de cego. p. 132.
247
DERRIDA, J. Memórias de cego. p. 130.
132
Acreditamos que o ceticismo, a dúvida que inicia o livro indica uma forma
desconstrutiva de se posicionar no pensamento marcando uma diferença em
relação a uma postura metafísica. Para Derrida, o pensamento metafísico, partindo
da certeza da presença de um sentido como garantia do saber, estaria enclausurado
248
NAAS, Michael. La nuit du dessin: foi et savoir dans Mémoires d’aveugle de Jacques Derrida.
p. 10. Tradução minha.
133
2.3.
Os debaixos das artes
249
Como a “chorosa” de Daniele de Volterra que encerra o livro de Derrida. Cf. o anexo 8 desta
tese.
250
DERRIDA, J. “Os debaixos da pintura, da escrita e do desenho: suporte, substância, sujeito,
sequaz e suplício”. In: Pensar em não ver. p. 285.
251
Ibid.
134
252
Ibid., p. 281.
253
DERRIDA, J. “Os debaixos da pintura, da escrita e do desenho: suporte, substância, sujeito,
sequaz e suplício”. In: Pensar em não ver. p. 286.
254
DERRIDA, J; THÉVENIN, Paule. Forcener le subjectile. Étude pour les dessins et portraits
d’Antonin Artaud. Paris: Gallimard, Munich: Schirmer/Mosel Verlag Gmgh, 1986.
135
seria nada sem eles.”255 Portanto, do ponto de vista derridiano – assumido na sua
cegueira, mas também atento ao que comumente passa despercebido, como
invisibilidade – o subjétil aponta para “aquilo que, em uma obra, não suporta a
perda do suporte.”256 Ou seja, o subjétil está ligado ao corpo da obra como o que
lhe confere não uma unidade, mas uma unicidade, uma singularidade, uma
raridade, em suma, um valor, uma sacralidade artística.
Assim, o debaixo da obra é tão importante quanto o seu em cima, a sua
superfície: a representação, o traço, a cor, cuja visibilidade somente se dá a partir
de um trabalho no suporte. É a indissociabilidade, a indecidibilidade entre o
debaixo e o em cima que garante o cuidado, a veneração, “a guarda zelosa do que
na obra não se reduz à superfície ou ao em cima visível ou legível da forma ou da
representação.”257 Para Derrida,
255
DERRIDA, J. “Os debaixos da pintura, da escrita e do desenho: suporte, substância, sujeito,
sequaz e suplício”. In: Pensar em não ver. p. 286.
256
Ibid., p. 287.
257
Ibid.
258
Ibid.
136
da obra em si, na medida em que ela atesta de uma certa maneira (...) o fato de que
alguém fez isso, e é isso que resta. O autor está morto (...) mas isso resta” 259. E é
este lugar da assinatura, esta topologia do corpo a corpo que confere o nosso
apego, o nosso afeto à unicidade, à raridade da obra, pois, “Amar a arte, votar-se
ou devotar-se a ela, (...), é primeiramente saber que não se deve separar o suporte
da obra, que esta não poderia se separar do que parece sustentá-la por baixo, que
nós não podemos nos separar disso.”260
Há, porém, um paradoxo ou o que Derrida chama de uma dramaturgia da
obra “que complica tudo na estrutura do único”. Uma estrutura aporética que
pode-se verificar no efeito do rastro da escrita derridiana: “ele alia na mesma
lógica paradoxal a inseparabilidade e a separabilidade. (...) Só nos apegamos
àquilo de que somos ou podemos ser separados, desmamados, privados” 261 .
Assim, se o debaixo ou o suporte da obra é o que lhe confere sacralidade, o que
ativa o nosso desejo de apropriação, o nosso apego, ele é, ao mesmo tempo, o que
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259
DERRIDA, J. “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida”. In: Pensar em não
ver. p. 35.
260
Id., “Os debaixos da pintura, da escrita e do desenho: suporte, substância, sujeito, sequaz e
suplício”. In: Pensar em não ver. p. 287 - 288.
261
Ibid., p. 293.
137
experiência que podemos ter da obra de Van Gogh. Todas essas experiências,
obras, ou assinaturas, só são possíveis na medida em que a presença não foi bem-
sucedida em estar aí e em se reunir [assembling] aí. Ou (...), o aí, o ser-aí, [l’être-
là], existe apenas com base nessa obra de rastros [traces] que se desloca. 262
Percebemos, então, como o afeto pelo único, pelo raro, não inscreve a
reprodução da obra como sua simples dessacralização, pois, se Derrida já
reconhece um luto da presença na relação com o corpo “original” da obra, a cópia
apenas multiplica este luto que já estava lá. A cópia não produz essa separação do
em cima e do debaixo da obra, ela apenas reproduz esta aporia da in-
separabilidade de seu corpo. Pois, se podemos dizer que na cópia, de certa forma,
a obra separa-se de seu debaixo, de seu corpo, isto é verdade apenas em termos,
afinal, ela nunca esquece, realmente, do seu debaixo, pois, como luto impossível
do “original”, ela faz o tempo inteiro menção a ele, não nos deixando esquecê-lo
em nenhum momento. Mas, ao contrário, lembrando também que o próprio corpo
original já restou desta impossibilidade de presentificação do corpo a corpo do
artista com a inspiração.
Voltando à questão da assinatura, há aqui um outro paradoxo, ou antes,
uma anacronia, que consideramos importante ressaltar e que traz de volta a
questão do “sentido” ou da origem da obra. Como vimos anteriormente, na
primeira seção deste capítulo, não há, para o filósofo, um sentido da arte que
262
Id., “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida:. In: Pensar em não ver. p. 30-32.
263
DERRIDA, J. “Os debaixos da pintura, da escrita e do desenho: suporte, substância, sujeito,
sequaz e suplício”. In: Pensar em não ver. p. 291 e 292.
138
exista anterior a cada obra e que lhe confira esse valor essencialmente. Para ele, o
que está na origem da obra de arte é o seu reconhecimento, isto é, a contra-
assinatura do destinatário ou do espectador antes da própria assinatura do artista.
Pois, é apenas no reconhecimento do destinatário, na sua atestação de que aquela
obra é uma obra de arte, que ela pode ser recebida como tal, fazendo aparecer um
artista ou uma assinatura. Nas palavras de Derrida:
264
DERRIDA, J. “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida”. In: Pensar em não
ver. p. 36 e 37.
139
3
Espectrografia: arriscar um pensamento desconstrutivo do
cinema
2000), embora publicada de uma só vez na revista francesa em abril de 2001 sob o
título Le cinéma et ses fantômes265 – além de um trecho do livro Tourner les
mots266 que debruça-se na experiência da filmagem do “documentário” D’ailleurs,
Derrida267. Este livro é co-escrito pelo filósofo e pela diretora do filme, a egípcia
Safaa Fathy. Apesar da contribuição de Derrida ser bem menor do que a da
diretora, há em suas declarações ótimas passagens que acreditamos trazer à tona
importantes temas desconstrutivos. Permitimo-nos, também, associar ao cinema
as questões levantadas por Derrida quanto à televisão e às tecnologias da imagem,
incluindo aqui algumas discussões travadas em Échographies de la télévision268
que enriquecem, principalmente, o tema da espectralidade da imagem
cinematográfica.
Apostamos no risco de afirmar um pensamento desconstrutivo do cinema,
não só porque julgamos as fontes em que nos baseamos já uma estimulante
abertura para tal aventura, mas também porque, como defendemos nos capítulos
265
Entrevista com Antoine de Baecque e Thierry Jousse, publicada no Cahiers du cinéma, n. 556,
abr. 2001, pp 74-85 e, no Brasil, em 2012, sob o título “o cinema e seus fantasmas”, no livro
Pensar em não ver. Pp. 371-395.
266
DERRIDA, J. “Lettre sur un aveugle. Punctum caecum”. In: ____; FATHY, Safaa. Tourner les
mots: au bord d’un film. Paris: Éditions Galiée; Arte Éditions, 2000. pp. 71-126.
267
D’ailleurs, Derrida. Realizado por Safaa Fathy, 1999. 68 min.
268
DERRIDA, J; STIEGLER, Bernard. Échographies de la télévision. Paris, Galillé, 1996.
140
269
BERNARDO, Fernanda. “Croire aux fantômes. Penser le cinéma avec Derrida”. In: Derrida et
la question de l’art. p. 400. Tradução minha.
270
Declaração de Derrida no filme Ghost dance de Ken McMullen. Tradução minha.
271
Termo traduzido em Espectros de Marx por obsidiologia, como um pensamento da obsessão ,
daquilo que retorna. Cf. Espectros de Marx pg. 26. Preferimos manter o termo em francês não
traduzido para afirmá-lo mais como uma lógica da assombração do que da obsessão.
141
arte do in-visível e dos espectros. Por outro lado, pretendemos, da mesma forma,
expor como a experiência do cinema, sublinhada na sua in-visibilidade, põe em
obra o próprio pensamento como desconstrução ou como assombração à filosofia,
contribuindo, desse modo, para destacar a “lógica” do pensar ver como a
desconstrução do “modelo ótico” que propomos abordar nesta tese.
Portanto, voltando à questão da incompetência, é no sentido em que ela
abalaria uma autoridade filosófica que, na entrevista intitulada As artes
espaciais272, Derrida diz: “Chega de competência”273. O filósofo nos explica em
que viés ele recorre à incompetência para falar de sua relação com o cinema:
Gosto muito de cinema; vi muitos filmes, mas em comparação com aqueles que
conhecem a história do cinema e a teoria do cinema, sou, e digo isso sem falsa
modéstia, incompetente. (...) Com respeito a outros domínios poderia dizer a
mesma coisa com a mesma sinceridade. Sinto-me bastante incompetente também
nos campos literário e filosófico, embora a natureza da minha incompetência seja
diferente. Minha formação é a filosofia, então não posso dizer seriamente que
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272
“The spatial arts: an interview with Jacques Derrida”. Concedida a Peter Brunette David Wills.
Publicada no Brasil sob o título: “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida”, no
livro Pensar em não ver, p. 17-61.
273
DERRIDA. J. “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida”. In: Pensar em não ver
p. 21.
274
Ibid.,p. 20.
142
275
DERRIDA, J. “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida”. In: Pensar em não
ver. p. 20.
143
para mim um grande gozo oculto, secreto, ávido guloso e, portanto infantil. Ele
precisa continuar a ser isso”279. Percebemos como as declarações acima parecem
justificar o fato de Derrida ter escrito muito pouco a respeito desta arte, quase
como um cuidado para não diminuir a emoção e a experiência de libertação que
ela lhe proporciona. Apesar disso, não podemos esquecer que a experiência
cinematográfica não permaneceu propriamente distante do filósofo, em razão de
que, talvez, num certo sentido, Derrida tenha sido um dos pensadores que mais
participou dela: além de ter atuado como um professor de filosofia, representando,
talvez, o seu próprio personagem, no filme Ghost dance 280 , foi tema de, pelo
menos, dois “documentários”: um francês que já citamos acima, intitulado
D’ailleurs, Derrida, do qual ainda falaremos bastante aqui, e um americano
chamado, Derrida: the movie 281 . Além disso, aceitou o convite para fazer um
vídeo282 sobre o seu livro Mémoires d’aveugle, em que lê trechos do seu texto em
torno da invisibilidade do traço do desenho. Assim como gravou, também, uma
278
DERRIDA, J. “O cinema e seus fantasmas. Entrevista com Antoine de Baecque e Thierry
Jousse”. In: Pensar em não ver. p. 374.
279
Ibid., p. 376.
280
Ghost dance. Realizado por Ken McMullen, 1983, 94 min.
281
Derrida: the movie. Realizado por Amy Kofman e Dick Kirby, 2002, 85 min.
282
Vídeo realizado por Jean-Paul Fargier, produzido por museu do Louvre e Films d’ici, em 1990.
52 min.
145
283
DERRIDA, J. “O cinema e seus fantasmas. Entrevista com Antoine de Baecque e Thierry
Jousse”. In: Pensar em não ver. p. 377.
284
BERNARDO, Fernanda. “Croire aux fantômes. Penser le cinéma avec Derrida” In: JDEY,
Adnen (org). Derrida et de l’art. Déconstruction de l’esthétique. pp. 397-418.
146
Um espectro é algo que se vê sem ver e que não se vê ao ver, a figura espectral é
uma forma que hesita de maneira inteiramente indecidível entre o visível e o
invisível. O espectro é aquilo que se pensa ver, “pensar” desta vez no sentido de
“acreditar”, pensamos ver. Há aí um “pensar-ver”, um “ver-pensado”. Mas nunca
se viu pensar. Em todo caso, o espectro, como na alucinação, é alguém que
atravessa a experiência da assombração, do luto etc., alguém que pensamos
ver.285
... não sendo, portanto, senão uma “salvação do sem-salvação”, de fato, uma
sobrevivência infinitamente enlutada da vida, da existência, da coisa ou do
próprio acontecimento, que ela [a escrita] não guarda senão os perdendo, isso
quer dizer que o rastro tem uma estrutura intrinsecamente espectral e
testamentária – Derrida ressalta que a palavra “trace” é o anagrama perfeito da
palavra “écart” –; a imagem cinematográfica tem, ela também, uma estrutura de
parte à parte espectral. Ela não é senão um “rastro fantasmático sem
representação”, uma “aparição mágica” ou uma “re-aparição fantasmática”
daquilo de que ela é o rastro enlutado. Ou a ruína monumentalisadora. E isso em
razão da tekhnè cinematográfica que imediatamente se divide entre sua vida
presente e sua sobrevida, o presente vivo do acontecimento ou da coisa que a
285
DERRIDA, J. “Pensar em não ver”. In: Pensar em não ver. p. 68.
286
Id., “Envois”. In: La carte Postale: de Socrate à Freud et au-delà. Paris: Flammarion, 1999.
147
câmera vê e filma e que a imagem pretende contudo guardar viva na sua única e
singular vez.287
capítulo desta tese e que desenvolvemos aqui sob a ótica do fantasma, como
impossibilidade de um presente-vivo ou de uma presença a si, que se dá a ver num
movimento de retenção e protensão, isto é, na estrutura de um presente ferido já
pela lembrança de um passado absoluto ou ainda na promessa de um eterno
porvir.
Assim, o que o cinema traz de volta diante de nós não é um passado que
alguma vez pôde apresentar-se como presente, mas apenas a lembrança enlutada
da impossibilidade de todo presente e de toda presença. Fazendo os fantasmas
retornarem, dando a eles voz, o cinema, contudo, não os presentifica, mas lembra
a cada repetição, como aquele passado já era absolutamente passado. Ou seja,
posicionando-nos diante das aparições da tela como diante de fantasmas, o cinema
apenas nos lembra como aquele “presente passado” era já, desde sempre, marcado
pelo rastro de uma ausência que melancolicamente desajustava e impossibilitava a
sua presença a si. O cinema, portanto, como uma espectrografia, ou seja, como
uma escrita de fantasmas, diz de uma repetição que traz outra vez não a coisa em
si, como tal, não o presente novamente, não a memória viva do que não pôde
acontecer presentemente, mas a recordação, a lembrança assombrada, enlutada
por um tempo fora dos eixos.
287
BERNARDO, F. In: Derrida et la question de l’art. p.415 - 416. Tradução minha.
148
Que agora? Anos mais tarde no Texas. Eu tive a sensação perturbadora do retorno
do seu espectro [do espectro de Pascale Ogier], do espectro do seu espectro
voltando para me dizer – pra mim aqui, agora: “agora...agora...agora, quer dizer,
nesta sala escura, em outro continente, em outro mundo, aqui, agora, sim,
acredite-me, eu acredito em fantasmas”
Mas ao mesmo tempo, eu sei que a primeira vez em que Pascale disse isso, já
quando ela repetiu isso em meu escritório, já ali esta espectralidade estava a
operar. Ela já estava lá, ela já estava dizendo isso e ela sabia, assim como nós
sabemos, que mesmo se ela não tivesse morrido no intervalo, um dia ela seria
uma mulher morta que disse, “Eu estou morta” ou “Eu estou morta, eu sei do que
estou falando de onde estou, e eu estou te observando”289
288
Descrição da cena narrada em “Spectrographies” In: Echographies of television p. 119 e 120.
Tradução minha.
289
DERRIDA, J. “Spectrographies”. In: Echographies of television p. 120. Tradução minha.
149
narrativa é que, para Derrida, mesmo se a atriz não houvesse morrido no intervalo
entre a filmagem e a reprodução do filme, anos mais tarde, o próprio registro em
imagem e, por isso, a divisão daquele presente singular em recordação, marca sua
espectralidade e já nos coloca numa relação de luto com os acontecimentos, pois o
que se guarda em toda inscrição é, justamente, a perda de um “aqui e agora”
único. Portanto, a espectralidade desta cena, não se dá apenas pela morte de
Pascale ou porque a cena gira em torno dos espectros, mas porque, toda imagem
capturada pelo dispositivo técnico da câmera ativa a espectralidade, pois,
... uma vez que ela tenha sido tomada, capturada, essa imagem será reprodutível
na nossa ausência, e porque nós já sabemos disso, nós já somos assombrados por
esse futuro que traz a nossa morte. O nosso desaparecimento já está aqui. Nós já
somos atravessados por um desaparecimento que promete e oculta
antecipadamente outra mágica “aparição”, uma “re-aparição” fantasmática que é
na verdade, propriamente miraculosa, algo a ver, tão admirável quanto incrível,
acreditável apenas graças a um ato de fé.[...] Nós somos espectralizados pela
tomada, capturados ou possuídos pela espectralidade antecipadamente.290
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290
DERRIDA, J. “Spectrographies”. In: Echographies of television. p. 117. Tradução minha.
150
291
Este trecho é a narração de uma fala de Derrida no filme Ghost dance, de Ken McMullen.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0nmu3uwqzbI
292
DERRIDA, J. “Spectrographies” In: Echographies of television. p. 118. Tradução minha.
293
Cf. BENJAMIN, W. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In: Magia e
técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas vol. I.
Tradução: Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.
151
(...) Escrito ou fílmico, o rastro é sempre espectral. Com efeito, da mesma forma
que o rastro (escrito) – ao mesmo tempo aquilo que se inscreve e se apaga, aquilo
que só se escreve se apagando –, a imagem cinematográfica, do ponto de vista de
sua captura, possui já sua ruína originária, ela é já o “que aconteceu ali”
melancolicamente em luto no filme. [...]. O cinema é assim um “luto ampliado” –
ou seja impossível ou infinito como é para ele [Derrida] o luto (que repensa a
partir de Freud). E um “luto magnificado”, o cinema não é nada além de um
“simulacro absoluto da sobrevivência absoluta”, na verdade uma “fantomaquia”,
pois não é nada além da memória enlutada daquilo que assombra sem jamais ter
tido a forma da presença – e sem jamais estar presente. O cinema é assim uma
152
“memória espectral”, seja do ponto de vista do seu registro, seja daquele de sua
“reprodução”.294
Assim, o cinema não nos deixa esquecer a nossa condição espectral. Pois
percebemos que aquele registro filmado, aquela escrita fantasmagórica, é a
lembrança da nossa própria finitude, a lembrança de que a imagem registrada,
como o nosso duplo, como o nosso resto ou rastro, pode sobreviver à nossa morte
e falar por nós quando já não estivermos mais aqui. Essa espectrografia ou essa
ecografia, nos transforma em fantasmas antecipadamente em relação à nossa
morte.
Nesse sentido, o cinema, como simulacro, como divisão do suposto
presente-vivo em imagem, em fantasmagoria, é o que sobrevive como testemunha
de que a vida, vivida na impossibilidade do presente-vivo, assim como os filmes,
é já sobrevivência. Mas, se, então, o cinema, como escrita, só guarda à medida em
que perde aquilo que guarda, testemunhando essa perda, para Derrida, ele o faz de
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forma absolutamente singular, uma vez que projeta e amplia diante de nós a
espectralidade do rastro guardado, proporcionando-nos, no espetáculo da sala
escura, um “face-a-face” com os fantasmas que nos assombram e nos dão uma
“visão” ou um testemunho alucinado da nossa própria sobrevivência:
294
BERNARDO, F. Derrida et la question de l’art. p. 416. Tradução minha.
295
DERRIDA, J. “O cinema e seus fantasmas. Entrevista com Antoine de Baecque e Thierry
Jousse”. In: Pensar em não ver. p. 384.
153
visibilidade traz a noite, ela encarna num corpo de noite, ela irradia uma luz
noturna [...] nós já estamos na noite tão logo somos capturados por instrumentos
óticos que nem mesmo precisam da luz do dia. Nós já somos espectros de uma
“televisão”.298
No cinema, cremos sem crer, mas esse crer sem crer permanece um crer. Lidamos
na tela, haja ou não vozes, com aparições nas quais, como na caverna de Platão, o
espectador crê, aparições que às vezes são idolatradas. Uma vez que a dimensão
espectral não é nem a do vivo nem a do morto, nem a da alucinação nem a da
percepção, a modalidade do crer que se reporta a ela deve ser analisada de
maneira absolutamente original. Essa fenomenologia não era possível antes do
296
Citamos Derrida: “a película projetada, que é ela própria já um fantasma...”. DERRIDA, J. “O
cinema e seus fantasmas. Entrevista com Antoine de Baecque e Thierry Jousse”. In: Pensar em
não ver p. 379.
297
DERRIDA, J. “O cinema e seus fantasmas. Entrevista com Antoine de Baecque e Thierry
Jousse”. In: Pensar em não ver. p. 392.
298
Id., “Spectrographies”. Echographies of television. p. 115 - 117.
154
cinematógrafo, pois esta experiência do crer está ligada a uma técnica particular,
a do cinema, ela é inteiramente histórica.299
299
DERRIDA, J. “O cinema e seus fantasmas. Entrevista com Antoine de Baecque e Thierry
Jousse”. In: Pensar em não ver. p. 378 - 379.
155
capítulo anterior, não pode haver, de fato, uma oposição entre o domínio da arte e
o domínio da verdade para a desconstrução. Os acontecimentos vividos tanto na
arte como na dita “realidade” são da ordem da espectralidade e, por isso,
demandam uma crença, uma relação de fé com o que está diante de nós. Citamos
Derrida:
Quando Derrida diz que o cinema inventou uma modalidade de crença sem
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igual, ele não quer dizer com isso que não haja nas outras artes, por exemplo, este
“crer sem crer” que nos liga à ficcionalidade, e que a filosofia – mas não só ela,
pois também a História, a ciência – opõe à realidade ou à verdade. O que Derrida
quer ressaltar é a singularidade com que o cinema ativa esta dimensão da crença.
E isso nos importa especialmente aqui porque essa singularidade da crença na arte
cinematográfica está ligada diretamente à visão, colocando em cena sua dimensão
in-visível. Como percebemos na citação acima, extraída da entrevista ao Cahiers
du cinéma, Derrida comenta como seria interessante pensar cada arte, os seus
limites e suas fronteiras, a partir do tipo de crença que cada uma delas põe em
jogo.
Em relação à possibilidade de pensar a especificidade de cada arte e aqui,
da arte cinematográfica, Derrida levanta uma questão importante, em Tourner les
mots, que já está no título desse livro. Esta questão refere-se ao fato de que,
diferentemente das outras artes do visível, como o desenho, a pintura ou a
escultura, o cinema não é apenas uma arte do visível, ele é também uma arte da
palavra. E a questão desconstrutiva, em relação ao tema da nossa tese, seria pensar
em que sentido o cinema, como uma arte do visível e da palavra representa uma
300
DERRIDA, J. “O cinema e seus fantasmas. Entrevista com Antoine de Baecque e Thierry
Jousse”. In: Pensar em não ver. p. 378 - 379.
156
301
DERRIDA, J. “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida”. In: Pensar em não
ver. p. 27.
302
Id., “O cinema e seus fantasmas. Entrevista com Antoine de Baecque e Thierry Jousse”. In:
Pensar em não ver. p. 390 - 391.
157
A filmagem devia, sem dúvida, também, a sua maneira, rodar as palavras. (...)
Por um lado ela devia rodá-las, sim, essas palavras, contornando-as, excedendo-
as, superando-as, (...) às vezes evitando-as: fazer tudo então para que as palavras
não matem a imagem pretendendo comandá-la. Era preciso então rodar a
soberania de um discurso elaborado, surpreender a palavra no despertar e depois
entregá-la, toda nua, à improvisação: ao imprevisto.305
303
DERRIDA, J.; FATHY, S. Tourner les mots. p. 19 - 20. Tradução minha.
304
Ibid.
305
Ibid., p. 18. Tradução minha.
158
discurso previamente foi uma forma de se deixar dirigir pelo outro, de dar espaço
no filme a uma certa experiência da invisibilidade, pois, não ver vir a palavra,
deixar o discurso surpreender, determina o sentido desconstrutivo da invenção, do
pensamento como acontecimento.
Mas, se D’ailleurs, Derrida tem essa preocupação, não podemos dizer,
contudo, que em todas as situações, ou melhor, que em todos os filmes, o
elemento “essencialmente cinematográfico” se sobreponha à palavra. Derrida,
sem dúvida, mais do que reconhecer as diferenças entre filmes dados – ou seja,
reconhecer que, em relação ao discurso, há filmes mais próximos da pintura ou da
fotografia –, problematiza a pretensão de delimitar cada arte a partir de uma
suposta essência que lhe daria uma unidade. Em relação a isso, Derrida confessa:
Nesse caso é provável que estejamos lidando com muitas artes bem diferentes no
interior do mesmo meio tecnológico – se definimos o cinema com base no
aparelho técnico – e assim talvez não haja unidade na arte cinematográfica. (...)
um método cinematográfico dado pode ser mais próximo de um tipo de literatura
do que outro método cinematográfico. E assim precisamos perguntar se o fato de
identificar ou não uma arte – presumindo que se possa falar de cinema como se
soubéssemos o que seja a arte – procede do meio técnico, ou seja, se, no caso do
cinema, ele procede de um aparelho como a câmera, que pode fazer coisas que
não podem ser feitas pela escrita ou pela pintura. Isso é suficiente para identificar
a arte, ou, na verdade, a especificidade de um filme dado depende afinal menos
do meio técnico e mais da sua afinidade com uma obra literária dada, e não com
outro filme? Não sei. Estas são para mim questões que não têm respostas.306
306
DERRIDA, J. “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida”. In: Pensar em não
ver. p. 27 - 28.
159
regime de crença que ela põe em cena, sendo que este regime está ligado, para
Derrida, à técnica específica de cada arte. No caso do cinema, está em jogo uma fé
na visão,
307
DERRIDA, J. “As artes espaciais: uma entrevista com Jacques Derrida”. In: Pensar em não
ver. p. 27 - 28.
308
Id., “Spectrographies” In: Echographies of television p. 117. Tradução minha.
160
presença, uma visão na distância imposta pelo fantasma que exige que se acredite
nele.
Na relação com as artes, admitimos esta dimensão de crença de forma
muito mais fácil, porque assumindo a distância da obra daquilo que ela pretende
representar, precisamos ativar a crença para relacioná-la à sua origem. Assim, a
crença se faz necessária nas relações de distância entre a coisa e sua origem. E
como, para a metafísica, a “realidade” é o que está presente, o que é “em si
mesmo”, “como tal”, a relação de crença não se aplicaria a ela. Desse modo, a
metafísica pode opor uma visão a uma televisão, isto é, ela pode opor uma visão
presente e plena a uma visão na distância, mediada por dispositivos técnicos. Mas
Derrida desconstrói essa oposição. Pois, reconhecendo que tudo é rastro ou desvio
de uma origem sem origem, assim como toda fala é já escrita, toda visão seria
uma televisão.
Esta distância e este afastamento da origem é o que justifica, para a
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imediatamente ao nosso redor. Nós estamos lá, em tempo real, onde as bombas
estão explodindo no Kwait ou no Iraque. Nós gravamos e acreditamos que
estamos percebendo de um modo imediato acontecimentos aos quais nós não
estamos presentes. Mas o registro de um acontecimento, a partir do momento em
que há uma interposição técnica, é sempre diferido, o que quer dizer que esta
“différance” está inscrita no próprio coração da própria sincronia, no presente
vivo. [...] O encurtamento do intervalo é apenas o encolhimento no espaço dessa
“différance” e dessa temporalidade. Assim que nós somos capazes [...] de ver
espetáculos ou de gravar vozes que foram registradas no início do século, a
experiência que nós temos delas hoje é uma forma de presentificação que, apesar
de ser impossível e mesmo impensável antes, é, no entanto, inscrita na
possibilidade desse atraso ou desse intervalo que garante que haja experiência
histórica em geral, memória em geral. O que significa que não há nunca
absolutamente um tempo real. O que nós chamamos tempo real, e é fácil entender
como ele pode se opor ao tempo diferido na linguagem cotidiana, nunca é, de
fato, puro. O que nós chamamos tempo real é simplesmente uma “différance”
extremamente reduzida, mas não há puramente um tempo real porque a própria
temporalização é estruturada por um jogo de retenção ou de protensão e,
consequentemente, de rastros: a condição de possibilidade do presente vivo,
absolutamente real é já memória, antecipação, em outras palavras, um jogo de
rastros. O efeito de tempo-real é ele próprio um efeito particular da
“différance”.309
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309
DERRIDA, J. “Specrographies”. In: Echographies of television. p. 128 e 129. Tradução minha.
310
Ibid., p. 117. Tradução minha.
162
... uma sobre-vida, a saber, um traço em relação ao qual vida e morte seriam
apenas traços e traços de traços, uma sobrevida cuja possibilidade vem
antecipadamente desajuntar ou desajustar a identidade a si do presente vivo.
Espíritos. É preciso contar com eles. Não se pode não dever, não se pode não
poder contar com eles...313
Contar com os fantasmas é contar com o que não está presente na forma
do vivo, é lembrar a nossa condição de herdeiros e, por isso, de devedores: é
lembrar que recebemos a vida de um outro, vindo de um passado absoluto, que
não está mais presente, mas que está antes e diante de nós, falando em nós. Para a
desconstrução, em nome de uma justiça, seria impossível esquecer dos fantasmas,
313
DERRIDA, J. Espectros de Marx. p. 13.
164
pois eles são aquilo que nunca é levado em conta na lógica do presente-vivo, na
ontológica binária da metafísica da presença e do vivo.
No cinema, são os fantasmas que retornam nos assombrando para nos
lembrar do tempo desajustado, do tempo fora dos eixos, da própria assombração
como sinal de que alguma coisa não vai bem no nosso “reino”: aquilo que Hamlet
sentia a necessidade de restaurar em nome da justiça. Uma justiça que não pode
ser feita sem contar com os fantasmas, ou seja, com aqueles que ainda não estão
ou já não estão presentes.
Se há uma diferença aqui entre Derrida e Hamlet é que em nome de uma
justiça, o filósofo não pretende ver o tempo restaurado, em seu devido lugar, na
possibilidade de cumprir a promessa ou de, enfim, redescobrir o tempo perdido.
Apesar dessa diferença, Derrida divide com o “príncipe da Dinamarca”, a
sensação de ter sido eleito “sentinela de uma desordem, o guardião cego e
vigilante dos espectros e dos crimes”314, pronto para denunciar o tempo fora dos
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eixos, disjunto ou desajustado. Não para, enfim, restaurá-lo ao seu devido lugar,
acreditando poder, de fato, fazer justiça, mas apenas lembrar que a justiça nunca
se faz. Em outras palavras, em nome da justiça, seria preciso observar sua
condição de promessa e denunciar o seu desajuste.
Nesse sentido, o cinema aparece como uma chance de conviver com os
fantasmas, com a lembrança da necessidade de não enterrar os mortos, mas de
falar deles ou falar com eles em nome de um futuro mais justo. Nas palavras de
Derrida:
É preciso falar do fantasma, até mesmo ao fantasma e com ele, uma vez que
nenhuma ética, nenhuma política, revolucionária ou não, parece possível,
pensável e justa, sem reconhecer em seu princípio o respeito por esses outros que
não estão mais ou por esses outros que ainda não estão aí, presentemente vivos,
quer já estejam mortos, quer ainda não tenham nascido. Justiça alguma [...]
parece possível ou pensável sem o princípio de alguma responsabilidade, para
além de todo presente vivo, nisto que desajunta o presente vivo, diante dos
fantasmas daqueles que já estão mortos ou ainda não nasceram, [...]. Sem essa
não- contemporaneidade a si do presente vivo, sem isto que secretamente o
desajusta, sem essa responsabilidade e respeito pela justiça com relação a estes
que não estão presentes e vivos, que sentido teria formular-se a pergunta “onde?”,
“onde amanhã?”315
314
DERRIDA, J. Tourner les mots. p. 91. Tradução minha.
315
Id., Espectros de Marx. p. 11 - 12.
165
Espectros de Marx:
316
DERRIDA, J. Espectros de Marx. p. 27.
166
Esta Coisa [o espectro] olha para nós, no entanto, e vê-nos não vê-la mesmo
quando ela está aí. Uma dissimetria espectral interrompe aqui toda
317
Derrida nomeia o efeito de viseira a partir do fantasma do pai de Hamlet que aparece vestindo
sua armadura. Citamos Espectros de Marx: “A armadura não deixa ver nada do corpo espectral,
mas à altura da cabeça sob a viseira, permite ao soi-disant pai ver e falar. Fendas aí são
preparadas, e ajustadas, permitindo-lhe ver sem ser visto, mas falar para ser ouvido (…). Para o
efeito de elmo basta que uma viseira seja possível, e que se jogue com ela. Mesmo quando está
erguida, de fato, sua possibilidade continua a significar que alguém, sob a armadura, pode, com
segurança, ver sem ser visto ou sem ser identificado. Mesmo quando está erguida, a viseira,
recurso e estrutura disponíveis, sólida e estável como a armadura, a armadura que cobre o corpo
dos pés à cabeça, a armadura de que faz parte e a que está presa. Eis o que distingue uma
armadura de uma máscara, com que, no entanto, compartilha esse poder incomparável, talvez a
insígnia suprema do poder: poder ver sem ser visto.” In: DERRIDA, J. Espectros de Marx. p. 23 e
24.
167
Sentimo-nos olhados por ele [algum outro espectral], fora de toda sincronia, antes
mesmo e para além de qualquer olhar de nossa parte, segundo uma anterioridade
(que pode ser da ordem da geração, de mais de uma geração) e uma dissimetria
absolutas, segundo uma desproporção absolutamente incontrolável. A anacronia
faz a lei aqui. Que nos sintamos vistos por um olhar com que sempre será
impossível cruzar, aí está o efeito de viseira, a partir de que herdamos a lei. Como
não vemos quem nos vê, e quem faz a lei, quem liberta a injunção, uma injunção
aliás contraditória; como não vemos quem ordena “jura” (swear), não podemos
identificá-lo com toda certeza; ficamos entregues à sua voz. (...), só podemos
acreditar em sua palavra. Submissão essencialmente cega ao seu segredo, ao
segredo de sua origem, eis uma primeira obediência à injunção.319
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Nunca, com conhecimento de causa, eu agi assim como cego, os olhos fechados
sobre uma ordem que me ditava: “nesse ponto, nessa data, você deve renunciar a
guardar e a te guardar e a te resguardar. Renunciar a tudo, renunciar a todos os
aspectos que você reserva habitualmente ao que te protege. Esquecer tudo aquilo
que te guarda ou te resguarda, sim, baixar a guarda, desfaça-se das armas do
discurso, não conserte mais palavra por palavra, adormeça a vigilância de uma
palavra que não terminaria nunca de se precisar, refinar (...), de pesar o pró e o
contra para, enfim, se retirar. Aceite a hipnose, sim, a hipnose.320
318
DERRIDA, J. Espectros de Marx. p. 22.
319
Ibid., p. 23.
320
Id., Tourner les mots, p. 73. Tradução minha.
168
encenação em que, aparentemente, ele era sempre muito ativo. Por isso, esta
hipnose seria uma “quase-hipnose” 321 . Eis aí a indecidibilidade entre uma
passividade e uma atividade que se marca na experiência cinematográfica como
espécie de cegueira: para o espectador essa passividade ativa ou esta atividade
passiva reflete-se na experiência de ser observado pelas imagens que ele pensa ver
e, no caso do Ator ou do retratado de um filme, reflete-se não só na experiência de
ser observado e capturado pela câmera, como também no “mal-estar” em encenar
o seu “próprio” personagem, em representar o seu “próprio” papel. É esse “mal-
estar” que Derrida observa, entre outras coisas, marcado no título do filme,
D’ailleurs, Derrida. Leiamos a declaração de Derrida:
321
DERRIDA, J. Tourner les mots, p. 111. Tradução minha.
169
Se me acontece agora de dizer tanto o Ator quanto eu, isso não será portanto
sempre o resultado de uma escolha deliberada. É que muitas vezes eu não sei
mais, o indecidível está no lugar. Ali onde o filme acontece, o incalculável já
estava lá. Deixando-lhe sua “parte”, fazendo seu jogo, eu não acredito que o filme
tenha registrado o incalculável como o faria um constato realista ou o arquivo de
um documentário. Com a energia inventiva de uma ficção, ele relançou ou
intensificou, ele capitalizou o incalculável através de todas as espécies de
máquinas e maquinações.323
322
DERRIDA, J. Tourner les mots. p. 74 e 75. Tradução minha.
323
Ibid., p. 76. Tradução minha.
170
324
DERRIDA J. Tourner les mots. 78. Tradução minha.
171
Isso não me é próprio, estou bem convencido, “nós” podemos todos dizer o
mesmo, tudo e todos sofremos o mesmo, gozamos o mesmo, mas cada divórcio
tem sua história, seu estilo, sua língua, seu rosto, seus nomes próprios, suas
assinaturas, e se o filme deu a entrever meus divórcios, os nomes de meus
divórcios, ele terá dito verdade, de sua “parte” ele terá feito a parte das partes, ele
terá feito verdade a cada vez para os divórcios que nos são comuns e verdade
para os insubstituíveis e irreversíveis divórcios que foram meu lote, que foram os
meus próprios (quero dizer entre eu e mim, divórcios os mais frequentemente
secretos, concluídos por vezes por traição unilateral, às vezes amigavelmente, às
vezes com reconhecimento de erros recíprocos, às vezes por incompatibilidade de
humor, etc.) (...) Dizendo de outro modo, o divórcio entre o Ator e mim, é bem
possível que ele [o filme] tenha fielmente representado, na verdade, até um certo
ponto, e reproduzido o divórcio entre mim e mim, entre mais de um eu, entre eu e
meus papéis “na existência”, “alhures” ao filme. Entre mim e as imagens de mim,
as visuais e as sonoras – que me foram sempre, meus amigos e os meus poderão
atestá-lo, intoleráveis. As quais eu sempre fui doentemente alérgico (nunca esta
palavra me pareceu mais justa).325
325
DERRIDA, J. Tourner les mots. p. 75. Tradução minha.
172
4
Adeus: despedida e saudação
...mais do lado da morte, do passado do que da vida e do futuro. (...) Tudo o que
eu digo da sobrevida como complicação da oposição vida/morte, procede em
mim de uma afirmação incondicional da vida. A sobrevivência, é a vida além da
vida, a vida mais que a vida.326
326
DERRIDA, J. Apprendre à vivre enfin. Entretien avec Jean Birnbaum. Paris: Éditions Galilée/
Le Monde, 2005. p. 54. Tradução minha.
173
se repete o anúncio de sua morte mais de um dia (...), quando se repete mais e
mais, é porque está acontecendo outra coisa, é que o morto não está tão morto.”327
Desse modo, gostaríamos de chamar atenção para o deslocamento
proporcionado por Derrida nos discursos de tom apocalíptico como aqueles que
atestam a morte da filosofia, a morte da arte, a morte do comunismo, a morte do
cinema, em suma, que decretam o fim do mundo. Derrida perturba esses discursos
por detectar neles um sintoma: o sintoma de um trabalho de luto em curso, um
trabalho de luto infinito que, justamente, fere a vida de morte, transformando-a
em sobrevida e inscrevendo-a como responsabilidade de levar o mundo depois do
fim do mundo, de levar a vida depois da morte do outro de quem a recebemos
como uma herança. Assim, podemos perceber que a perturbação desses discursos
não pretende, obviamente, negar a morte, mas reconhecer como a vida continua e
só começa como continuação, como sobrevivência depois de todas essas mortes e,
por isso, como afirmação da vida.
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É nesse sentido que nos permitimos abrir aqui um espaço para uma
provocação específica, que adiantamos inscrever-se apenas como promessa e
porvir de outros pensamentos e, portanto, não pretende encontrar nenhuma
resposta, mas apenas marcar-se como inquietação.
Desviando-nos um pouco da experiência especificamente derridiana do
cinema, contudo inscrevendo-nos nos rastros desse pensamento da sobrevivência
e do luto impossível, lançamos uma provocação de tipo desconstrutiva a respeito
das obras e de algumas declarações de dois grandes cineastas contemporâneos:
Jean-Luc Godard e Peter Greenaway. Encontramos em ambos os cineastas,
embora de formas diferentes, um certo discurso em torno do slogan “a morte do
cinema”. Godard já declarou esta morte em algumas entrevistas e Peter
Greenaway, por sua vez, também já o fez, dando palestras ao redor do mundo
sobre a preocupação do cinema ter-se entregue a formas narrativas literárias e não
explorar interações mais ativas com seu público, fazendo o cineasta apresentar
outras disposições e formatos para a exibição de filmes nas salas de cinema.
O que gostaríamos de propor como levantamento de uma discussão é a
aporia desse discurso sobre a morte ou o fim do cinema, proferido por dois
cineastas, que acreditamos ser dos que mais trabalham e reinventam a linguagem
327
DERRIDA, J. “Marx é alguém” In: Pensar em não ver. p. 427.
174
328
DERRIDA, J. Gramatologia. p. 7.
175
relação amorosa. Porque esta é já marcada por uma certa melancolia baseada na
certeza de que um dos dois morrerá antes e, por isso, caberá ao sobrevivente
carregar um diálogo com o outro, que já não responde mais. Mas se ele não
responde mais é também porque, diz Derrida, ele começa a responder de outra
maneira, dentro de nós, como outro em nós. Esse diálogo constante que é
carregado pelo sobrevivente não é um diálogo "de identificação, nem de simetria,
nem de reconhecimento, mas o dessa estranha comunidade: é esse Comum que
nos une, separando-nos"329
O luto impossível, anterior a qualquer morte, enxerga na vida uma relação
com fantasmas. Se o luto normal só se dá com a morte, o luto na perspectiva
derridiana se inicia com cada relação, ou melhor, possibilita e impossibilita toda
relação como num aceno que ao mesmo tempo saúda e se despede:
A relação com o amigo é sempre um cogito do adeus, uma saudação sem retorno.
Porém, assim o é desde o primeiro momento, desde a primeira saudação. O luto
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está sempre adiantado, está sempre ali, antes de toda morte. Já sabemos quando
trocamos a primeira palavra com o amigo que um dos dois morrerá antes, e que
ao outro compete a tremenda responsabilidade de “levar seu mundo” depois do
fim do mundo, do fim deste mundo singular e único. A cada vez, com cada amigo
morto, produz-se o fim do mundo. (...) O sobrevivente, o que permanece só, em
um mundo fora de mundo, sente-se responsável por levar o outro e seu mundo, o
outro e o mundo desaparecidos (...). Que responsabilidade levar seu mundo!330
329
CRAGNOLINI, Mónica. “adieu, adieu, remember me: Derrida, a escritura e a morte”. In:
DUQUE-ESTRADA, Paulo Cesar (org.) Espectros de Derrida. Rio de Janeiro: NAU Editora: Ed.
PUC-Rio, 2008, p. 43.
330
Id., “adieu, adieu, remember me: Derrida, a escritura e a morte”. p. 42.
331
CONTINENTINO, A. M. A alteridade no pensamento de Jacques Derrida: escritura, meio-luto,
aporia. Tese de doutorado, Rio de Janeiro, 2007. p. 130.
176
332
DERRIDA, J. “O sobrevivente, o sursis, o sobressalto”. In: Pensar em não ver. p. 438.
177
5
Referências bibliográficas
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Gogh”. In: SIMMEL, M. L. (Org.). The rich of mind. Essays in memory of
Kurt Goldstein. New York: Springer Berlin Heidelberg, 1968.
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Anexos
Anexo 1
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Vincent Van Gogh, Vieux souliers aux lacets, 1886, Museu Van Gogh.
188
Anexo 2
Anexo 3
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Anexo 4
Jean-Baptiste Regnault,
Dibutade ou a Origem
do Desenho, 1785,
Castelo de Versailles.
191
Anexo 5
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Anexo 6
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Anexo 7
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Anexo 8
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