Como Fazer A.C Um Negro S.scansar
Como Fazer A.C Um Negro S.scansar
Como Fazer A.C Um Negro S.scansar
Como Fazer Amor Com Um Negro Sem Se Cansar de Dany Laferrière: uma análise
pela teoria pós-colonial
Porto Velho
2017
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA
NÚCLEO DE CIÊNCIAS HUMANAS
PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM NÍVEL DE MESTRADO
MESTRADO ACADÊMICO EM ESTUDOS LITERÁRIOS
Como Fazer Amor Com Um Negro Sem Se Cansar de Dany Laferrière: uma análise
pela teoria pós-colonial
Porto Velho
2017
Agradecimentos
Considering the problematic of racial discrimination, which lasts until the present day,
the proposal of this research is to analyze the book entitled How to Make Love To a
Negro Without Getting Tired, authored by the Haitian writer Dany Laferrière, in
confrontation with the work Black Skin , White Masks written by the martinique-born
author Frantz Fanon from the perspective of postcolonial theory, with the purpose to
highlight the way racism influences black people's thinking about themselves, and how
these stereotypes affect the psyche of people subjugated by the colonialism. For the
development of this work, the qualitative methodology was used based on a
bibliographical review, subsidized by the theoretical contribution made by authors who
discuss issues related to literature and postcolonial theory, such as Bertens (2014),
Bonnici (2012), Handerson (2015), Figueiredo (2004, 2006), Memmi (1977) and
Cesáire (1978, 2010). Therefore, it is observed that the black man discovers the load
of prejudices tied to his color from the moment he starts to live in a society that allows
and reinforces the existence of racial hierarchies as a result of racism, which is a
method used by the colonialism to justify the atrocities committed against non-
European people. Thus, the Negro has sexual relations with white women to
compensate his subaltern condition. The fulfillment of this study and the comparison
of the works above mentioned allowed to conclude that this behavior of the black man
before the white woman happens because of the assimilation of the racism, that ends
up culminating in the desire to change his color, in order to be able to enjoy the
privileges that to become white can confer, and get rid of negative stereotypes attached
to the black color.
INTRODUÇÃO
à sua cor ao viver em um local de maioria branca. O psiquiatra e filósofo Frantz Fanon
também passou por situação semelhante, nascido na Martinica, onde 93,4% da
população é formada por mestiços entre negros, brancos e asiáticos (CORNEVIN,
1999), mudou-se para a França para completar seus estudos, local onde estima-se
ser composto por 85% de brancos (LIMITED, 2009). Tendo em vista que a constituição
francesa proíbe que sejam realizadas pesquisas estatísticas baseadas em raça ou
grupos étnicos (SIMON, 2008, p. 27), não existem dados demográficos precisos em
relação ao fenótipo da população residente na França. Em suma, ambos os autores
tiveram experiências similares ao se deslocarem de um local de maioria negra, para
serem percebidos como minoria em países majoritariamente brancos.
Para o desenvolvimento deste trabalho foi utilizada a metodologia qualitativa.
Este estudo é constituído de uma revisão bibliográfica e da análise literária sob a ótica
da teoria pós-colonial, sendo os principais temas de estudo a assimilação do racismo
pelo homem negro e sua abordagem na obra de Laferrière, mediante investigação
deste pensamento sob a ótica do livro teórico de Fanon (2008) em comparação com
o comportamento demonstrado pelo personagem principal de Laferrière (2012), e por
fim, a emancipação do negro a partir da perspectiva pós-colonial, sua tomada de
consciência e a consequente descolonização. O aporte teórico utilizado para subsidiar
este estudo é composto principalmente por autores que debatem temas relacionados
à literatura e ao pós-colonialismo, tais como Bertens (2014), Bonnici (2012),
Handerson (2015), Figueiredo (2004, 2006), Memmi (1977) e Cesáire (1978, 2010).
A primeira seção trata do conceito de racismo e como este foi evidenciado na
literatura a partir da abordagem de Bertens (2014) e Bonnici (2012), os quais
destacaram características racistas nas obras canônicas intituladas A Tempestade de
William Shakespeare, e Robinson Crusoé de Daniel Defoe, as quais foram revisitadas
pela teoria pós-colonial que elucidou, entre outros aspectos, a forma como o negro
era tratado na época em que foram escritas. Uma característica relevante é que a
problematização do racismo se tornou mais frequente a partir do movimento do
Renascimento do Harlem, marcado por manifestações culturais do povo negro, e
saudado até mesmo por Aimé Cesáire (2010), um dos precursores do conceito de
negritude. Além disso, a esta parte é composta por uma breve conceituação dos
estudos pós-coloniais, partindo do pressuposto de que o racismo está intimamente
ligado aos processos de colonização. Por fim, a seção encerra com um panorama
10
SEÇÃO I
1 Contexto Histórico e Social
que não estava sozinho. Então, o protagonista ao encontrar três nativos, entre eles
um cativo que estava fugindo de dois membros de uma tribo canibal, mata os
perseguidores e consegue dominar o autóctone restante, que demonstra gratidão ao
seu salvador. Crusoé o batizou de Sexta-Feira. Ao “selvagem” ensinou a chamá-lo de
Amo, a língua inglesa para se comunicar e o converteu em cristão. Essa obra deixa
evidente que a escravização de um nativo por um homem branco é representada
como natural, como se a supremacia branca tivesse o dever de levar o esclarecimento
europeu aos seres considerados inferiores a eles.
Outra obra que notavelmente trata da questão da dominação racial é A
tempestade, de William Shakespeare, que apresenta, entre outras questões, a relação
do personagem principal chamado Próspero com seu escravo Caliban, que antes de
ser dominado era dono da ilha que foi expatriada pelo protagonista sob o argumento
de que o nativo teria tentado violar sua filha. No decorrer dos atos da peça de
Shakespeare, vários adjetivos negativos são atribuídos ao escravo, tais como
monstro, venenoso, selvagem, o que reforça a suposta inferioridade de Caliban e
atribui ao europeu a exclusividade da condição humana, enquanto o autóctone é
retratado como um ser na periferia da civilização (BONNICI, 2012, p. 44).
Ambas as obras literárias supracitadas servem de metáfora para a forma como
os negros escravizados foram tratados no período de colonização, Caliban e Friday
representam os dominados pelos homens brancos, e ao passarem pelo processo de
aculturação europeia tiveram sua cultura anulada, sua voz calada e sua condição
humana retirada. Ambas as histórias são indicativos do racismo que permeava a
sociedade da época em que foram escritas, considerando que de acordo com Bertens
(2014):
[…] the literary text is a time- and place-bound verbal construction that
is always in one way or another political. Because it is inevitably
involved with ideologically charged discourses, it cannot help but be a
vehicle for power. As a consequence, and just like any other text,
literature does not simply reflect relations of power, but actively
participates in the consolidation and/or construction of discourses and
ideologies, just as it functions as an instrument in the construction of
identities, not only at the individual level – that of the subject – but on
the level of the group or even that of the national state. Literature is not
simply a product of history; it actively makes history.1 (p. 155)
1[...] o texto literário é uma construção verbal limitada pelo tempo e lugar, e é sempre, de uma
maneira ou de outra, político. Por isto é inevitavelmente envolvido por um discurso ideologicamente
carregado, ele pode não ser a solução, mas sim um veículo de poder. Como consequência, e como
qualquer outro texto, a literatura não somente reflete as relações de poder, mas participa ativamente
14
na consolidação e/ou construção de discursos e ideologias, assim como ela funciona como um
instrumento na construção de identidades, não apenas no nível individual – ou do sujeito – mas também
em um nível coletivo ou até mesmo nacional. A literatura não é simplesmente um produto da história,
ela faz história ativamente. (Tradução minha)
15
2 Ao invés de estudarem o racismo como um problema social, muitos sociólogos – verdadeiros produtos
de seu tempo – mantiveram atitudes racistas e incorporaram premissas discriminatórias em seus
resultados e explicações sobre as diferenças sociais entre grupos raciais. O racismo impregnou a
sociedade, inclusive a sociologia, e foi legitimado por discursos científicos dominantes, como o
Darwinismo Social, que aplicou equivocadamente o conceito de seleção natural no mundo social para
16
justificar por que alguns grupos (de raça, classe, etc.) se sobressaem mais que outros. (Tradução
minha)
17
referido texto, Achebe se mostra indignado, pois os escritos dos colonialistas não
precisam passar por nenhum crivo para serem considerados universais. Além disso,
ele diz que “gostaria de ver a palavra ‘universal’ banida completamente das
discussões acerca da literatura africana, até o momento em que as pessoas parem
de utilizá-la como sinônimo do limitado paroquialismo a serviço da Europa, até que
seus horizontes se estendam para incluir todo o mundo”3 (ACHEBE, 2005, p. 77), ou
seja, até que a palavra passe a ser utilizada em seu real sentido, e possua a
capacidade de englobar realmente todas as etnias do mundo.
As obras de Laferrière e de Fanon, mesmo que possuam propósitos diferentes,
integram a manifestação cultural do povo negro mencionada por Achebe, e possuem
valor universal, considerando que a experiência do negro descrita em ambas é comum
aos seus semelhantes. Estas obras, apesar de terem sido concebidas em um período
onde várias conquistas já haviam sido alcançadas, demonstram que a questão racial
ainda se encontrava em discussão na época, e que o racismo era evidente, tanto no
Canadá como na França, o que evidencia que ainda há muito o que fazer para que
todas as etnias sejam tratadas com igualdade e estejam livres de preconceitos raciais.
3 I should like to see the word 'universal' banned altogether from discussions of African literature
until such a time as people cease to use as a synonym for the narrow, self-serving parochialism of
Europe, until their horizon extends to include all the world. (ACHEB, 2005, p.77)
20
No âmbito da literatura, a crítica pós-colonial como a tecida por Fanon pode ser
entendida como um conjunto de estratégias de leitura e de interpretação, que
permitem ao leitor vislumbrar a diversidade, as características culturais e sociais dos
povos que foram oprimidos por meio do colonialismo, bem como a compreender os
danos causados por este processo de assimilação das ideias de inferiorização, e todo
o procedimento de superação, às vezes de revolta, daqueles que se libertaram da
mordaça imposta pelo colonialismo, também chamados de descolonizados. Em
Laferrière, a absorção da inferiorização do negro demonstrada e questionada pelo
protagonista corrobora o descrito por Fanon.
Apesar de as características conferidas pelo colonizador serem mentirosas e
terem como objetivo justificar as atrocidades do processo de colonização, elas
perseguirão aqueles que o sofreram em todas as suas relações sociais, haja vista que
“é significativo que o racismo faça parte de todos os colonialismos, em todas as
latitudes. Não é uma coincidência: racismo resume e simboliza a relação fundamental
que une colonialista e colonizado” (Memmi, 1977, p. 68). Assim, para o mundo branco,
de grandes conquistas e dominante, manifestar o fenótipo de um homem de raízes
africanas é o suficiente para colocá-lo em posição inferior. Enfim, o racismo pode ser
considerado uma espécie de elo que une colonizador e colonizado, e que perpetua a
relação de hierarquização entre eles.
A prática racista está intimamente ligada aos processos de colonização, e as
marcas da escravização do povo africano estão presentes na sociedade até a
contemporaneidade, fato que pode gerar até mesmo um “auto racismo”, pois o povo
negro ao internalizar e tomar como verdade as acusações negativas do colonizador,
passa a manifestar o desejo de ser diferente para ver-se livre dos estereótipos
cravados em prol da dominação promovida pelo ocidente. Para Memmi, autor da
célebre obra Retrato do Colonizado Precedido pelo Retrato do Colonizador, escrita no
contexto da descolonização dos países africanos, o racismo pode ser compreendido
como um:
examinar os relatos escritos de dois homens brancos que viveram no período final da
revolução haitiana, Popkin relata que:
Arbres Musiciens (1957), foi fortemente influenciado pelo escritor indigenista Jacques
Roumain. Alexis (1970, p. 249) argumenta em seu ensaio intitulado Prolegômenos a
um Manifesto do Realismo Maravilhoso dos Haitianos que a maior característica das
expressões artísticas, culturais e literárias do Haiti é o realismo maravilhoso, o qual foi
moldado a partir de três aportes, sendo eles o indígena, o africano e o
ocidental/francês. Por outro lado, o autor demonstra que é inegável que a contribuição
de origem africana representa a maior parte da constituição da cultura haitiana, tanto
na literatura oral, como na dança, nas manifestações religiosas e nas artes plásticas,
para o escritor o realismo maravilhoso dos haitianos se propõe a cantar as belezas e
as mazelas de sua pátria; a rejeitar a arte sem conteúdo social e real, a procurar
vocábulos expressivos próprios ao seu povo e a ter uma clara consciência dos
problemas e dramas que enfrentam as massas de forma a impulsioná-las em suas
lutas. Em resumo:
De acordo com Moreira (2006, p. 37), a partir da década de 1960, surge no Haiti
dois movimentos literários, o Haiti littéraire e Spiralisme. Do primeiro grupo, destacam-
se os autores Davertige e Legagneur, Anthony Phelps, Roland Morisseau e René
Philoctète. Já o Spiralisme, pode ser considerado como um estado de espírito contra
a angústia vivenciada no período da ditadura, e reconcilia vida e arte por meio da
literatura, seus principais autores são Jean-Claude Fignolé, René Philoctète e
Franckétienne, este último escreveu diversas obras em língua crioula. Dany Laferrière,
entre outras figuras proeminentes da literatura haitiana, tais como Edwige Danticat,
Yanick Lahens, Lyonel Trouillot e René Depestre, representa a literatura haitiana
contemporânea e possui grande reconhecimento de sua obra tanto em seu país como
internacionalmente, recebeu vários prêmios e em 2013 tornou-se o primeiro cidadão
não francês a ser eleito para Academia de Letras da França.
SEÇÃO 2
2 A obra de Laferrière
tipos que se relacionam de forma explosiva e com objetivos extrínsecos, tais como a
transgressão de barreiras sociais, de raça e credo pelas garotas brancas, e pela
possível vingança contra o período colonial empreendida pelos negros ao dominarem
sexualmente essas moças da elite.
O livro Como Fazer Amor com Um Negro Sem se Cansar, é narrado pelo
personagem principal, apelidado de Velho por seu amigo Buba; o protagonista é um
homem negro que reside em uma “abjeta pocilga” localizada na rua Saint-Denis em
Montreal. O narrador situa o leitor em um quente verão da década de oitenta e inicia
o livro com um diálogo entre Buba e Velho, regado de música e de discussões sobre
como o profeta de Alá na terra, Sigmund Freud, foi o inventor do Jazz. A interessante
argumentação é interrompida pelos sons do vizinho do andar de cima, apelidado pelos
personagens de Belzebu, que mantêm violentas relações sexuais semelhantes a uma
corrida desembestada dos quatro cavalos do apocalipse (Laferrière, 2012, p. 15).
Na segunda parte do livro, o narrador representa como no início da década de
1980 o valor do homem negro desceu de nível na escala de preferência das moças
brancas W.A.S.P.5, os amarelos é que estavam em alta. No decorrer do capítulo,
Velho descreve como o ódio manifestado no ato sexual pode ser mais eficaz do que
o amor, fazendo com que o sexo assuma um caráter de revanche, diante de toda
subjugação à que sua raça foi submetida.
Em seguida, o protagonista relata que Miz Literatura, uma estudante da
Universidade McGill, com quem mantém um relacionamento descompromissado, lhe
deixou um bilhete para contar que havia conhecido uma nova sorveteria. Além disso,
ela levou à quitinete uma bolsinha repleta de itens destinados a higiene pessoal. Após,
o narrador menciona que leva consigo sempre uma foto de Carole Laure
acompanhada de seu marido Lewis Furey, um filhinho de papai inteligente e
sofisticado, que simboliza tudo o que o personagem gostaria de ser. Após, Miz
Literatura faz uma visita ao protagonista e traz consigo uma diversidade de lanches,
o que o deixa satisfeito por ser servido por uma inglesa. Ao vê-lo comer, a moça se
5 Acrônimo de “White, Anglo-Saxon, Protestant”, utilizado para denominar a elite branca, anglo-
saxã e protestante.
32
demonstra admirada com a voracidade de Velho, que se põe a pensar sobre como as
garotas da elite branca são tão ingênuas, e que, apesar de serem enviadas às
melhores universidades da região para aprenderem os princípios da ciência e da
dúvida, elas acreditam em absolutamente tudo o que lhes dizem, e ele, no papel de
um homem negro, não pode se dar ao luxo de fazer o mesmo, pois em um primeiro
vacilo sua pele não valeria muito.
Em uma outra visita de Miz Literatura à quitinete, o protagonista se põe a
devanear enquanto assiste a moça lavar as louças, ele acha inexplicável que uma
garota elitizada como ela se submeta a servir um negro. Em seguida, Belzebu começa
seu galopar infernal acima da cabeça dos dois, o que acaba deixando a moça excitada
e a incentiva a fazer algo considerado degradante e que o narrador não ousaria pedir,
o que o faz refletir sobre a hierarquia dos valores ocidentais, em que o negro, sendo
inferior à branca, é aquele que lhe deve prazer. Daí, nasce o mito do negro garanhão
e bom de cama. (Ibidem, p. 43)
Na nona parte do livro, após algumas discussões acaloradas com Buba, Velho
retira a poeira de sua máquina de escrever modelo Remington 22, se senta em frente
a ela, coloca uma garrafa de vinho barato ao lado, e prepara-se para escrever em uma
folha em branco. Três horas depois, a folha continuava sem nenhuma palavra. Logo,
ele decide fazer uma faxina completa para espalhar sua genialidade por toda a
quitinete. Após, o protagonista decide ir aos correios com a finalidade de atualizar seu
endereço. Na fila, ele encontra uma moça lendo um livro e pergunta a ela do que se
trata e se ela está gostando. Posto isso, a bela garota se irrita e pede para ele deixá-
la em paz. Diante desta situação, todos os que estavam na fila passam a observá-lo,
o negro agredindo a branca (Ibidem, p. 49). Assim, uma mulher, apelidada pelo
protagonista como Miz Cabelo Curto, se vira e altera a voz em tom revoltoso para
dizer que os negros são todos uns maníacos que no verão paqueram garotas brancas
persistentemente, e que, se não bastassem eles, os sul-americanos surgem neste
período para assediar a população com a venda de uma diversidade de badulaques.
Após, um homem de aproximadamente quarenta anos se manifesta e argumenta que
não se pode comparar uma paquera com o que os colonialistas fizeram com os negros
no tráfico de escravos. A garota, então, demonstra-se revoltada, pois, em sua
perspectiva, os colonialistas realizaram suas fantasias de dominação e quem sofre a
consequência são as moças brancas por terem que aturar os negros. Ao final da
33
discussão, quem fica com a garota paquerada inicialmente por Velho, é justamente
Miz Cabelo Curto.
Na parte seguinte do livro, o narrador conta que comprou sua Remington 22
em uma loja de máquinas de escrever usadas e com pedigree, pois já pertenceram a
escritores notáveis. Para Velho, essas máquinas velhas são vendidas para jovens
escritores ingênuos, que sonham em um dia serem como James Baldwin. Diante de
sua máquina, ele aguarda Buba terminar de cozinhar um arroz com amendoim, em
seguida, os dois começam a ouvir jazz e conversar sobre o romance de Velho.
No capítulo onze, Miz Literatura, ao fazer uma rápida visita à quitinete, revelou
para Buba que tem uma amiga chamada Valérie que não acredita que ele existe, pois
ela contou à moça que ele se comporta como um monge e possui uma vida límpida.
Ela revela que sua amiga é lindíssima, e Buba não demonstra o mínimo de interesse,
o que deixou Miz Literatura pasma. Então, Velho conta a ela que seu companheiro
tem horror a beleza, logo após, Valérie, bate à porta da quitinete para buscar Miz
Literatura. Ao vê-la Buba continua impassível diante de sua beleza estonteante, o que
deixa a moça eufórica.
Após, o protagonista narra um episódio em que Buba recebe uma
frequentadora da quitinete, apelidada de Miz Suicida, uma moça que sempre aparece
duas vezes por semana no mesmo horário para se aconselhar sobre a morte, o que
deixa o narrador preocupado, mas Buba argumenta que falar sobre a morte é
exatamente o que a mantém viva. Por isso, ele se comporta diante dela como um
verdadeiro Buda Negro. Em outro dia, os rapazes receberam em sua quitinete a visita
de Miz Literatura e Valérie. Velho admira a beleza deslumbrante da amiga de sua
paquera, enquanto as moças observam que o protagonista não possui muitos livros
escritos por mulheres em sua coleção, e depois de beberem alguns goles de vinho,
começam a recitar eufóricas o poema “Sylvia Plath está viva na Argentina”, para, em
seguida, irem embora, e deixarem os rapazes com a companhia do buquê de lilases
que elas haviam trazido.
No capítulo quatorze, a quitinete recebe a visita de Miz Sophisticated Lady,
apelido dado a ela em homenagem a música de Duke Ellington, que janta na
companhia de Velho e Buba após tomar alguns goles de vinho, porém, a garota segue
um regime severo e depois de comer retira da bolsa um livro destinado a fazer as
contas de todas as calorias ingeridas. Ao ver a moça pegar o livro, o protagonista
pensa que também gostaria de ter a conta exata das calorias ingeridas na alimentação
34
muitos segredos. Ao ouvir a história o narrador fica surpreso ao saber que a fama de
seu amigo Buba havia ultrapassado as fronteiras da praça Saint-Louis.
No capítulo seguinte, Miz Literatura e Velho debatem sobre o romance que o
protagonista estava escrevendo, intitulado Paraíso do Paquerador Negro, até que a
moça pergunta se ele deseja ser o melhor escritor negro da história, o então narrador
responde que gostaria de superar até mesmo James Baldwin. Em seguida, os dois
vão até a livraria Hachette, que está lotada de pessoas se abrigando do calor no ar-
condicionado do local, e Velho aproveita para ensinar a moça a roubar livros,
deixando-a animada com a situação. Os dois roubam alguns livros e saem
discretamente, após, Miz Literatura faz um pedido desejando que um dia eles roubem
o livro escrito pelo protagonista das estantes daquela livraria, o que faz o narrador
imaginar perversamente uma senhora escondendo em sua bolsa, sem que ninguém
perceba, um exemplar de Paraíso do Paquerador Negro.
Posteriormente, Buba avisa a Velho que Miz Literatura deixou um bilhete
pedindo para que ele a encontrasse à noite. Logo, ele vai até o local indicado pela
garota, uma festa onde estava tocando uma banda de senegaleses. Ele a encontra
conversando com uma moça que logo recebe o apelido de Miz Punk. Em seguida,
debaixo de uma forte chuva, o narrador e Miz Literatura se deslocam até a casa da
garota. Ao chegar, a moça se dirige até o banheiro para secar os cabelos, enquanto
Velho analisa o ambiente, a intimidade e a ordem anglo-saxã, e constata que tudo
está em seu lugar, menos ele, que só estava ali para trepar com a garota.
No capítulo dezoito, o narrador conta um sonho que teve ao dormir em cima de
sua máquina de escrever, ele descreve que estava em um banco na praça Saint-Louis
distraído, quando avista Henry Miller sentado tranquilamente e conversando com um
mendigo, que na verdade é o novelista Blaise Cendrars. Após, Velho se aproxima e
pede para sentar próximo aos escritores, quando então, um carro da polícia chega
com Bukowski todo ensanguentado. Em seguida, o narrador é acordado por Buba que
diz que ele precisa de descanso, porém Velho continua diante da Remington
escrevendo diversas palavras que remetem ao ambiente da quitinete, até chegar em
sua caixa de livros e os quarenta escritores que a compõe
espontaneamente que em seu país de origem existe o costume de comer gatos, o que
deixa ambos constrangidos. Foi uma grande gafe que o fez perder sua noite com a
garota apelidada de Miz Gato.
No capítulo seguinte, Velho se depara com um bilhete de Miz Literatura que lhe
dá três opções para encontrá-la. Após a leitura do recado, ele decide sentar-se em
frente à sua máquina de escrever, e em seguida dialoga com seu companheiro de
quitinete, que conta sobre uma garota que não quis fazer sexo com ele, pois estava
focada em traçar seu mapa astral. Após, Buba teoriza que o ocidente não se interessa
mais por sexo, e tenta diminuí-lo por ser coisa de negros, os quais devem tentar
devolver sua dignidade. E esta missão seria a nova cruzada de Buba.
Em seguida, o protagonista narra um episódio em que seu amigo chega com
uma garota maravilhosa, apelidada de Miz Cover Girl, e o convida para almoçar.
Então, Velho anuncia que acabara de terminar de escrever a primeira versão de seu
romance, o que faz Buba se agarrar com o manuscrito e dançar de felicidade. Após,
os três se dirigem para um restaurante vegetariano, onde conhecem duas moças
naturebas, Miz Alfafa e Miz Cigarro.
Velho passou três dias trancado na quitinete escrevendo seu livro, sua obra-
prima que vai tirá-lo do buraco. “De dia escrevo, de noite sonho” (Ibidem p. 132), o
narrador imagina seu livro nas prateleiras da Livraria Hachette, pensa em um cliente
folheando e levando a obra até o caixa para comprá-la, seu primeiro leitor verdadeiro.
Após uma conversa com o livreiro, o protagonista liga para o editor de sua obra
intitulada Paraiso do Paquerador Negro, que o informa que a crítica está adorando,
bem como que ele se irá se encontrar com Miz Bombardier, apresentadora de um
programa de entrevistas chamado Preto no Branco. Além disso, o editor lhe diz que
Carole Laure ligou e pediu para Velho retornar o contato, ele o faz e os dois marcam
um encontro. Após, continuando a descrição de seu sonho, o narrador descreve a
entrevista com Miz Bombardier, em que discutem sobre a problemática relação entre
o negro e a branca. A história é concluída com o herói descrevendo o encerramento
da escrita de seu romance, que considera ser sua única chance.
branca, caracterizada por ele como explosiva. Quando uma moça de cor clara tenta
negar a existência do mito do negro “bom de cama”, ele replica
Em seguida, Velho deixa a moça com quem estava debatendo para ir dançar
com outra que pensa ser ele o deus egípcio Rá, e ao sair do bar o protagonista diz a
Buba que a garota com que discutiu, apelidada por ele de Miz Mito, mereceu ser
abandonada por não ter concordado com ele, expondo que não quer lidar com a
oposição, afinal, a sexualidade é o único estereótipo atribuído ao negro com que ele
consegue tirar alguma vantagem, e que ele pensa ser positivo.
Dada a complexidade do conflito evidenciado no decorrer da obra, bem como
nas relações problemáticas com as moças brancas e nos devaneios do narrador a
respeito de sua condição de negro, Velho pode ser considerado uma personagem
redonda, para Brait
Miz Literatura elaborou dois longos parágrafos para me contar que foi
a uma “deliciosa doceria grega na Park Avenue”. Garota engraçada,
eu a encontrei na universidade (em um sarau literário típico da McGill).
Eu dei a entender que Virginia Woolf era tão boa quanto Yeats ou uma
besteira do tipo. Talvez ela tenha achado isso barroco na boca de um
negro. (LAFERRIÈRE, 2012, p. 23)
Por ser representada pelo narrador inicialmente como uma moça de referência
da elite branca canadense, espera-se que apresente uma postura polida, de acordo
com os preceitos da cultura judaico-cristã e com sua elevada formação acadêmica
(PAULA, 2006, p. 406), a moça aparentemente íntegra surpreende ao realizar ações
que podem ser consideradas sexualmente degradantes, e até mesmo cometer ato
ilícito (LAFERRIÈRE, 2012, p. 53 e 84), para Velho, corromper uma garota de
Outremont é quase uma boa ação, pois a retira da monotonia.
Ressalta-se que, da mesma maneira que o negro empreende a missão de
conquistar moças brancas, o que para eles tem a finalidade de compensar as
injustiças sofridas e dominar a cultura ocidental, para elas representa a transgressão
dos valores judaico-cristãos, que moldaram a mulher como um ser desprovido do
direito de sentir prazer, sendo a castidade um padrão ideal (RODRIGUES, 2016).
Dessa maneira, é surpreendente que a moça descrita como comum e integrante de
determinado grupo conservador se comporte de forma lasciva e imoral. As atitudes
sexuais da moça deixam o protagonista abismado:
uma personalidade bem marcada, e por tratar-se de uma entidade que quase sempre
se beneficia de sua peculiaridade, sendo uma figura de destaque no universo
diegético ao qual pertence (REIS & LOPES, 1988, p. 219).
Deste modo, apesar das divergências assinaladas entre Velho e Buba, por
serem sujeitos do exílio ambos sofreram o dilaceramento de suas identidades ao
passarem a viver em um contexto que provém do colonialismo, e que
consequentemente perpetua a discriminação. Dessa maneira, os conflitos
evidenciados e a forma de encará-los refletem uma luta constante para sobreviverem
em um local que desfavorece a existência do negro, e permite a ocorrência do
racismo. Porém, Buba enfrenta as dificuldades de forma espiritual, transcendendo, e
às vezes, se alienando da realidade.
45
SEÇÃO 3
Fanon a escreveu após descobrir que estava com leucemia, mesmo doente,
não interrompeu seu trabalho de apoio à libertação dos povos africanos. O filósofo
faleceu em dezembro de 1961 em Washington. Três anos após sua morte, é publicada
em Paris a obra Pour La Révolution Africaine, que consiste em uma compilação de
textos do filósofo.
Diante dessa breve biografia dos autores, percebe-se que os dois quando
jovens tiveram que sair de seus países, ambos de população predominantemente
negra, em consequência de situações de opressão. Um em virtude de uma ditadura
imposta por um negro, e o outro por um regime implementado por soldados oriundos
da França, a metrópole dos países de origem dos autores no período colonial. Eles
viveram em seguida em locais de população preponderantemente branca, e
consequentemente sofreram com o racismo. Os dois são vozes do exílio em países
onde nunca estiveram totalmente integrados, tal como descreve Bhabha (1998, p.
138) se encontram no mundo ambivalente do “não exatamente/não branco”, e pelo
fato de transitarem entre as duas culturas, estão aptos a enxergar o que há de
problemático em ambas, especialmente em relação a questões de discriminação.
A partir das primeiras obras de ambos os autores, Como Fazer Amor com um
Negro sem se Cansar e Pele negra, Máscaras Brancas nesta seção, será utilizada a
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Assim, apesar do tema central do livro ser algo que geralmente é tratado com
seriedade, o autor o subverte e ao ironizá-lo faz o leitor refletir a seu respeito. Contudo,
sem transparecer militância ou vitimismo, e sim com muito bom humor. O relatado por
Paula no trecho anterior pode ser percebido na forma como o narrador
constantemente abusa da ingenuidade das moças brancas, que apesar de serem
educadas em instituições de renome, são facilmente enganadas por negros que usam
de estereótipos para conseguirem levá-las para cama.
50
E dizer que mandam essas garotas para uma instituição séria (McGill)
para aprender a clareza, a análise e a dúvida científica. Elas são tão
contaminadas pela propaganda judaico-cristã que assim que falam
com um Negro, começam a pensar primitivamente. Para elas, um
Negro é muito ingênuo para mentir. Não é culpa delas, antes existiu a
Bíblia, Rousseau, o blues, Hollywood etc. (Laferrière, 2013, p. 102)
O narrador tira esta conclusão após uma garota, apelidada por ele de Miz Snob,
tentar diminuí-lo na frente de Miz Literatura. Então, ele resgata sua dignidade com
uma série de mentiras que ambas acreditam cegamente, expondo assim a
ingenuidade das moças W.A.S.P. As garotas aparentemente se comportam da
mesma forma que os colonialistas durante o tráfico negreiro, como se homens de cor
fossem desprovidos de inteligência, reforçando assim todo um arsenal de estereótipos
negativos em torno do negro. Entretanto, o protagonista no decorrer da história tira
vantagem dos preconceitos que o rodeiam.
Esse comportamento demonstrado pelo narrador representa o coletivo, e os
tipos tratados no romance, o Negro e a Branca se reconhecem coletivamente, o
comportamento de ávido paquerador de moças W.A.S.P., evidenciado por Velho, já
era uma característica dos homens Negros que migraram para Montreal antes dele.
Portanto, esta conduta pode ser destinada a se camuflar diante do grupo ao qual ele
é involuntariamente parte. Quanto a esse reconhecimento coletivo, é válido destacar
o trecho abaixo:
pelo fato de que ele dizia à garota que gostava de carne humana, que
vinha da selva, que seu pai era o grande feiticeiro do vilarejo. Bom, já
sabemos a história. Eu fiquei vendo a garota balançar a cabeça em
êxtase diante de um espécime verdadeiro, o homem primitivo, o Negro
segundo a National Geographic, Rousseau e Companhia. Conheço
muito bem esse cara e sei que ele vem não da selva, mas de Abidjan,
uma das grandes cidades da África que ele morou muito tempo na
Dinamarca e na Holanda antes de se estabelecer em Montreal. É
alguém urbano e ocidental. Mas isso, ele não admitirá diante de
nenhuma Branca nem por todo marfim do mundo. Diante do Branco,
ele quer passar por Ocidental, mas diante de uma Branca, a África
ainda funciona como uma reserva sexual. (LAFERRIÈRE, 2012, p.
138)
[...] Fanon faz reflexões sobre a alma do negro, ou seja, ele enfoca a
psique negra. Ela é importante para a compreensão das marcas
psicológicas e sóciais-históricas do racismo na identidade de uma
52
Dessa maneira, a temática discutida por Fanon pode ser aplicada à experiência
de vida de qualquer negro, principalmente aqueles que sofreram como o racismo de
forma direta, como é o caso de Dany Laferrière. O negro descobre sua cor a partir do
contato com sociedades que permitem a ocorrência do racismo e a distinção de seres
humanos pelo fenótipo. Ainda de acordo com Handerson (2007), é válido ressaltar
que o alvo do filósofo não é o homem branco, este em si não é o principal responsável
pela propagação do racismo, e sim o colonialismo, para o qual a discriminação racial
serve como justificativa para a inferiorização de povos adversos aos das metrópoles.
O autor propõe, inclusive, que o negro se liberte de seus complexos e passe a tender
para o universalismo inerente à condição humana (FANON, 2008, p. 27).
6Partidodos Panteras Negras fundado na década de 1960, tinha como objetivo lutar pela liberdade dos
negros e pelo pagamento da dívida histórica dos séculos de exploração branca.
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O ódio sexual é mais eficaz que o amor. [...] A última guerra em solo
americano. Ao lado dessa guerra entre sexos de cores diferentes, a
da Coréia foi uma briguinha sem importância. E a guerra do Vietnã,
uma brincadeira sem impacto no curso da civilização judaico-cristã. Se
você quer um resumo da guerra nuclear, ponha um negro e uma
branca na mesma cama. Mas hoje isso acabou. Estivemos à beira da
destruição total sem perceber. O negro era a última bomba sexual
capaz de fazer explodir o planeta. E ele está morto. (LAFERRIÈRE,
1985, p. 19)
pois o ódio intenso e a vingança empreendida pelo ato sexual não irão mudar a forma
como o negro é visto na sociedade, e somente conferirão uma autossatisfação
momentânea. Já a rebeldia manifestada pelas W.A.S.P. em se relacionarem com
aqueles que são considerados exóticos, apenas reforça os estereótipos racistas e
objetificam o homem negro na sociedade ambivalente. Tal como descreve Bhabha
(1998, p. 138). A pele negra se divide sob o olhar racista, deslocada em signos de
bestialidade, de genitália, do grotesco, que revelam o mito fóbico do corpo branco
inteiro, não-diferenciado.
É válido ressaltar que a relação entre o negro e a branca não é errada, e a
intenção nesse trabalho não é de nenhuma forma propor que devem haver somente
relacionamentos intrarraciais, mas, sim, destacar que a forma com que a relação está
descrita no livro de Laferrière e de Fanon não leva ao crescimento social e a igualdade,
e não traz a evolução da dita “má consciência” branca, e nem mesmo anula a
existência do racismo.
No final do trecho destacado do livro de Laferrière, o protagonista fala da morte
do negro no meio da roleta de preferências da mulher branca. O homem de cor, nos
tempos de escravidão, se fosse pego com uma branca, poderia ser capado, e, no
momento em que o texto foi escrito, o negro está castrado de outra forma. Afinal, sem
a permissão da branca para obter a cópula da vingança, não será possível
empreender a missão de autossatisfação tão desejada pelo narrador.
Tanto Fanon quanto Laferrière tratam da questão da cor da pele sem vitimismo,
contudo o primeiro nega o estereótipo do negro que precisa dominar uma branca como
revanche da colonização. Sua análise permite compreender como a questão da má
consciência presente em ambos atrapalha a forma com que o negro é representado
na sociedade, e que, se o homem de cor aceita esse papel, logo ele está condenado
a tentar igualar-se ao branco. Apesar do personagem principal da obra de Laferrière
ser dotado de elevada inteligência, e de ele ter consciência de que a branca o enxerga
como um ser ingênuo, inferior a ela na hierarquia de cores imposta pelos
colonizadores escravocratas, o protagonista reforça o estereótipo do negro garanhão
como forma de obter prazer e realização pessoal.
ele é o principal elo que une colonialista e colonizado. Deste modo, mesmo que Velho
não tenha tido sua origem relatada no decorrer da história, este manifesta o fenótipo
de um homem de raízes africanas, o que, na perspectiva de um colonialista, é o
bastante para torná-lo insignificante. Por conseguinte, o racismo é a principal ligação
entre o colonizador e colonizado, que conserva a hierarquização entre eles. Mesmo
sob a cultura da sociedade ocidental na qual a mulher é tratada como um ser inferior
ao homem, quando se trata da mulher branca, a cor lhe confere um patamar superior
ao negro, na escala das raças ela se encontra abaixo do branco e acima do homem
de cor, sendo esse último aquele que tem a obrigação de satisfazê-la sexualmente.
Ao procurar o negro para suas aventuras sexuais, a mulher branca o transforma,
então, em um objeto.
O racismo está profundamente relacionado à colonização e os resquícios da
escravidão repercutem na sociedade até os dias atuais, o que pode eventualmente
gerar a assimilação do racismo, pois o negro, ao internalizar e inconscientemente
tomar como verdade as acusações negativas do colonizado, pode desejar modificar-
se e libertar-se dos estereótipos estabelecidos em benefício da dominação ocidental.
O racismo consiste em um conjunto de comportamentos e reações adquiridas desde
a meninice, e manifestados espontaneamente por meio de palavras e gestos que
engendram a postura colonialista (Memmi, 1977, p. 69).
Memmi evidencia que o preconceito racial é algo adquirido socialmente desde
a infância e que está onipresente nas condutas da sociedade, é considerável então
que não somente o branco conheça desde cedo esse comportamento, mas que os
negros também devem sofrê-lo já muito pequenos, o que contribui para que esse
pensamento seja assimilado e perpetuado por eles, deixando-os mais vulneráveis a
se sentirem inferiores. Com essa atitude racista, o colonizador tomou não somente as
terras, o corpo, a cultura e as riquezas do colonizado, mas também a condição de ser
humano. Logo, tornar-se branco, possibilitaria ao personagem de Laferrière sair da
categoria de selvagem que lhe foi imposta e subir na escala dos valores judaico-
cristãos.
Após questionar-se sobre a possibilidade de um branco manifestar a vontade
de tornar-se negro, o personagem de Laferrière prossegue devaneando que “Talvez
existam alguns, mas é por causa do ritmo, do jazz, da brancura dos dentes, do
bronzeado eterno, do fun negro, da risada aguda. Falo de um branco que quisesse
ser negro, só por ser”. (2012, p. 68). O trecho destacado salienta e reforça o
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ânsia de mudar de cor parte das vantagens que isso poderia proporcionar na visão da
sociedade que ele reside. O personagem reconhece a seriedade da questão e trata
como coletivo o desejo pelo branqueamento, ou seja, ele não é o único negro que se
sente desta maneira, enfim, sendo o racismo um legado da colonização, ele engloba
todos aqueles que são herdeiros dos que foram subjugados no período colonial, tal
como afirma Memmi (1997)
se que o autor ilustra como a relação sexual com mulheres brancas permite ao negro
a proximidade com a sensação de branqueamento, segue o trecho em questão
mesmo que o irmão de sua amada tenha lhe dado a anuência para cortejá-la, ele
hesita, pois sabe do comportamento de seus semelhantes.
Como a perspectiva do personagem Jean em relação à branca é vista por ele
de maneira diferenciada da maioria de seus congêneres, percebe-se que o mesmo
está impregnado pelo pensamento estereotipado colonial, que considera selvagem o
homem negro, pois ele é incapaz de ver em seus semelhantes de cor a capacidade
de amar uma branca tal como ele ama, manifestando assim o racismo de sua própria
cor de pele.
Ao analisar o comportamento de Jean Veneuse sob o viés psiquiátrico, Fanon
(1998, p. 80) detecta que o personagem apresenta a atitude de um neurótico, e que
sua cor é apenas um pretexto para disfarçar sua condição psíquica, caso o empecilho
da cor não existisse, ele apresentaria a mesma reação. Fanon (1998, p. 81) prossegue
com a análise expondo que Jean Veneuse não representa um exemplo das relações
ideais entre o negro e o branco, mas, sim, o modo com que um neurótico,
acidentalmente negro, se comporta. Ao fim das observações sobre este personagem,
o autor encerra o capítulo esplendidamente
Em síntese, a mulher branca que dorme com um negro corre o risco de tornar-
se algo semelhante a uma negra, afinal adormecer com alguém representa entregar-
se totalmente à intimidade, todavia estabelecer esse tipo de relacionamento com um
homem de cor corresponderia a se depreciar, sua atitude transparece que
compartilhar o sono com um preto, um momento de sossego e fragilidade, é mais
asqueroso que procurar um rato no meio da madrugada. Esta conduta confirma a
ironia da situação, ao mesmo tempo em que o negro a domina no ato sexual, a
situação reafirma o preconceito da sociedade colonialista, e a supremacia branca por
meio do comportamento de sua parceira após o ato.
Ao concluir a análise do comportamento de Jean Veneuse, Fanon (2008, p. 80)
argumenta que o comportamento dele não deve ser estendido a todos os homens
negros, que ele não é igual aos outros. Invocar sua cor é somente uma tentativa de
mascarar sua estrutura psíquica, pois ele expressaria tal comportamento
independente de seu fenótipo. O autor conclui o capítulo dizendo que é compreensível
que a sociedade racista influencie os negros a apresentarem uma neurose e se
considerarem inferiores, porém parte disso é proveniente do próprio negro, afinal, ao
tomar consciência, o negro pode escolher sentir-se um ser humano abaixo do branco
na hierarquia racial, ou simplesmente se considerar tão humano quanto e agir
ativamente para que o racismo seja extinguido da sociedade.
Já o protagonista da obra de Laferrière tem conhecimento de sua condição na
hierarquia racial imposta pelo colonialismo. Por esse motivo, quando deseja ser de
outra cor, pensa em ser um “branco melhorado”, pois terá a consciência de ambas as
raças, e se livrará dos estigmas de ser negro ao mesmo tempo que não apresentará
68
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do estudo sobre os conceitos de racismo, foi possível concluir que este
tipo de preconceito está enraizado na cultura ocidental há muito tempo, como
demonstra a representação dos negros nas obras Robinson Crusoé e A Tempestade.
Ressalta-se que, mesmo com as melhorias conquistadas pelas lutas do povo negro,
e pelos avanços da ciência, que refutaram a existência de raças humanas, os debates
em torno do preconceito racial retornam periodicamente ao foco, demonstrando que
este está longe de ser extirpado, principalmente dos lugares onde o imperialismo e o
colonialismo exerceram ou continuam exercendo sua dominação. Dessa maneira, é
possível concluir que apesar de ser um comportamento desprezível, o racismo
perdura, e transcende o espaço e o tempo.
Os estudos pós-coloniais possibilitaram que aqueles que sofreram com a
dominação colonial pudessem falar, e tivessem voz face a seus opressores, mesmo
que o lócus de enunciação de parte dos teóricos do pós-colonialismo sejam os países
imperialistas (MIGNOLO, 1995), é válido ressaltar que é preciso que se aprenda
primeiro a falar a língua da metrópole para melhor combatê-la em seguida
(SANTIAGO, 2000, p. 20), e para se fazer alcançar o eco dessas vozes de forma mais
abrangente. Dessa forma, os autores destacados ao escreverem na língua da
metrópole, o Francês, conseguiram alcançar e provocar os colonialistas. A luta contra
o racismo não é recente, porém, ressalta-se que os movimentos do Harlem
Renaissance conferiram maior visibilidade a cultura dos negros, e culminaram na
união do povo descendente de africanos face à opressão, bem como na consolidação
do conceito de negritude de Aimé Cesáire.
Dessa forma, considerando que a negritude ressalta as experiências em
comum do povo negro, como a tomada de consciência destes sujeitos discriminados
face ao colonialismo, pode-se inferir que obras como a de Laferrière e Fanon
descrevem e evidenciam de forma distinta os danos psicológicos do racismo, haja
vista que este preconceito é responsável por dilacerar a identidade do negro, desde o
momento em que ele se descobre um, o que ocorre a partir do contato com uma
sociedade que permite a existência e a propagação da discriminação racial. Dessa
maneira, destaca-se que o capítulo final da obra de Laferrière, intitulado “A gente não
nasce negro, a gente se torna um”, assinala que o contato com o colonialismo, e a
saída de determinado país de população majoritariamente negra para outro onde os
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pós-colonial, foi alcançado no sentido de que por meio desta análise constatou-se os
danos da assimilação do racismo, bem como que estes perduraram em épocas e
contextos distintos, demonstrando a transcendência do tempo e do espaço que a
discriminação racial alcançou, e que, apesar dos avanços em decorrência das lutas e
dos movimentos culturais do povo negro, provavelmente seus efeitos perdurem até os
dias atuais, evidenciando que a união por meio do movimento da negritude é
necessária, e que as discussões sobre o racismo não se esgotaram.
Além disso, foi possível constatar que tanto a obra literária como a teórica
transparecem que a similaridade entre as experiências de vida dos autores, ambos
exilados de seus países de origem para locais onde prevalece a cultura ocidental,
possibilitou que estes estabelecessem um questionamento semelhante acerca do
racismo, e que Laferrière por meio do deboche e do escárnio e Fanon pela intensa
discussão a partir de experiências psiquiátricas e de análises literárias, empreendem
assim um discurso que põe em evidência a necessidade de descolonização do negro.
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