Asherah

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ASHERAH, A AUSÊNCIA ERÓTICA DE DEUS

Angélica Tostes Thomaz*

Resumo
O presente artigo pretende demonstrar que Israel nem sempre foi
monoteísta. Essa crença em um único Deus se deu de uma construção
cultural-religiosa que ocorreu entre os séculos IX e V a.C. O panteão
israelita passou por diversas fases até chegar a síntese teológico-
-cultural mais propagada. A consolidação desse monoteísmo patriarcal
representa também a dessacralização da sexualidade e do erotismo. E
nesse desenvolvimento o monoteísmo suplantou Deuses e Deusas, en-
tre elas está Asherah. Nessa exposição trataremos de elucidar alguns
pontos a respeito da construção do monoteísmo javista-masculino,
a supressão da imagem da Grande-Mãe, focada em Asherah, e as
consequências de um Deus assexuado para a tradição judaico-cristã.
Palavras-chave: Asherah. Monoteísmo. Erotismo. Javé.

ASHERAH: THE EROTIC ABSENCE OF GOD

Abstract
This article aims to demonstrate that Israel has not always been mo-
notheistic. This belief in a single God came from a cultural-religious
construction raised the 9th and 5th centuries BC. The Israeli pantheon
went through several phases until the most propagated theological-
-cultural synthesis. The consolidation of this patriarchal monotheism
also represents the de-sacralization of sexuality and eroticism. And
in this development monotheism supplanted Gods and Goddesses,
among them is Asherah. In this exposition we will try to elucidate
a few points about the construction of the Yahwist-male mono-
theism, the suppression of the image of the Great Mother focused

* Mestranda em Ciências da Religião na Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Teóloga


pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pesquisadora das temáticas: diálogo inter-religioso,
teologia feminista, gênero.

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on Asherah, and the consequences of a desexualized God for the
Judeo-Christian tradition.
Keywords: Asherah. Monotheism. Eroticism. Yahweh.

ASHERAH, LA AUSENCIA ERÓTICA DE DIOS

Resumen
En el presente artículo se quiere demonstrar que Israel no siempre
ha sido monoteísta. La fe en un solo Dios es fruto de una construc-
ción cultural-religiosa ocurrida entre los siglos IX y V A.C. El panteón
israelita ha pasado por distintas etapas hasta llegar a la síntesis te-
ológico- cultural más difundida. La consolidación del monoteísmo
patriarcal representa también la desacralización de la sexualidad y
del erotismo. En dicho desarrollo el monoteísmo reemplazó Dioses
y Diosas, siendo una de ellas Asheral. En esta exposición trataremos
de aclarar algunos puntos que tiene que ver con la construcción del
monoteísmo yahvista- masculino, la supresión de la imagen de la
Grande- Madre, focalizada en Asherah, y las consecuencias de un
Dios asexuado, para la tradición judeocristiana.
Palabras-clave: Asherah, monoteísmo, erotismo, Yahvé.

INTRODUÇÃO
Israel nem sempre foi monoteísta. A crença em um único Deus foi
uma “construção cultural-religiosa ocorrida ao longo de um período
histórico relativamente longo, basicamente entre os séculos IX e V a.C”
(Haroldo REIMER, 2008, p. 66). O panteão israelita passou por diversas
fases até chegar a síntese teológico-cultural mais propagada. E nesse
desenvolvimento o monoteísmo suplantou Deuses e Deusas, entre elas
está Asherah.
O culto da Deusa-Mãe é um dos mais antigos da história da huma-
nidade. “Desde à época paleolítica até a neolítica, e estendendo-se aos
inícios da civilização antiga, encontramos a imagem da Deusa, ampla-
mente difundida, sem uma figura cúltica masculina que a acompanhasse”
(Rosemary RUETHER, 1993, p. 46). Deusas como Inana, Ishtar, Anate,
Asherah eram muito comuns nos tempos de construção do monoteís-
mo javista, sendo a própria Asherah consorte de Javé. Deusas da fer-
tilidade, grandes-mãe, controladoras da natureza, características que

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gradativamente foram assimiladas por Javé, o tornando o único Deus,
Todo-Poderoso e assexual.
“A consolidação do monoteísmo representa também a dessacra-
lização da sexualidade e do erotismo” (Nancy Cardoso PEREIRA, 2001,
p. 8). Ao suprimir as Deusas do panteão israelita a manifestação erótica
de Javé também foi suprimida. Os Deuses e Deusas que outrora eram
representados por suas características sexuais e eróticas, em Javé,
sua masculinidade, é representada apenas por associações como pai,
guerreiro, rei e não por aspectos de sua sexualidade. “A literatura vai
explicitamente evitar citar ou referir-se aos atributos sexuais da divin-
dade, esforçando-se por criar mecanismos de evitação do assunto”
(Nancy Cardoso PEREIRA, 2001, p. 7).
Nessa exposição trataremos de elucidar alguns pontos a respeito
da construção do monoteísmo javista-masculino, a supressão da ima-
gem da Grande-Mãe e as consequências de um Deus assexuado para a
tradição judaico-cristã.

1. DO POLITEÍSMO AO MONOTEÍSMO
As escavações arqueológicas se tornaram uma grande fonte para
compreender o cotidiano do povo israelita e compreender que Israel
prestava culto a diversas divindades, como deuses da fertilidade, como
Baal, Asherah e Astarte (José Ademar KAEFER, 2015, p. 442).
Mark Smith faz alguns apontamentos importantes sobre a situação
religiosa em Israel:

1. “O monoteísmo se desenvolveu na religião israelita monárquica


ou pelo menos em segmentos de sua população e, finalmente,
ele se tornou normativo para os autores dos que vieram a ser os
textos bíblicos” (Mark SMITH, 2006, p. 133).
2. “Esse monoteísmo não se originou historicamente de um momen-
to prístino no Sinai com Moisés e a aliança feita lá. Ao apresentar
este tempo antigo, a Bíblia nos lembra que “outros deuses”
são uma possibilidade, como os Dez Mandamentos alertam os
israelitas [...] O monoteísmo foi um desenvolvimento na religião
israelita que foi lido retroativamente em sua tradição religiosa
antiga” (Mark, SMITH, 2006, p. 133).

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3. “Expressões explicitamente monoteístas realmente emergem
em um ponto crucial da religião israelita, mas isso não significa
negar que haviam formas corrente de politeísmo judaíta, nem
mesmo negar as pluralidades dentro da divindade no monoteísmo
bíblico” (Mark SMITH, 2006, p. 133).
4. “Até onde podemos dizer, sempre houve algo monista no polite-
ísmo, ele usava diferentes conceitos para expressar a “unicidade”
no universo” (Mark SMITH, 2006, p. 133).

A arqueologia tem auxiliado no resgate da tradição israelita. A


estela de Mesa, ou estela moabita, foi feita pelo rei Moab, entre 840
a.C. Nos escritos é dito que Javé é um Deus nacional, porém, ainda não
era cultuado como único Deus.
O desenvolvimento da religião israelita para um monoteísmo gerou
alguns movimentos nos panteões presentes da cultura. Um primeiro
movimento a ser destacado é a assimilação de divindades com Deus de
Israel e um segundo movimento é a “demonização” de tais divindades,
afirmando assim, a soberania do monoteísmo israelita.
No primeiro movimento podemos notar a assimilação de El com
Javé. El é o Deus criador e supremo do panteão ugarítico, os cultos a
El eram muito fortes em Canaã e mais tarde, também, em todo Israel
(José Ademar KAEFER, 2015, p. 422). Javé era mais um Deus entre os
outros no panteão, um Deus de nível inferior a El. Entretanto, no início
do panteão do Israel monárquico Javé e El “foram igualmente identifi-
cados” (Mark SMITH, 2006, p. 163). A assimilação de Javé-El é apenas
um exemplo de como o monoteísmo israelita absorveu as divindades
ugaríticas e de outras culturas para construir um Deus Todo-Poderoso.
Walter Brueggeman menciona o livro de Walter Harrelson, From Fertility
Cult to Worship, para compreender melhor essa temática. No estudo é
visto o desenvolvimento da fé israelita, que outrora era separada dos
cultos da fertilidade. “Porém, ele percebe, especialmente no livro de
Oséias, que as funções da fertilidade relacionadas à reprodução e ge-
ração são atribuídas a Javé, e não simplesmente aos baalins” (Walter
BRUEGGEMANN, 2014, p. 234).
Após as diversas assimilações dos diversos poderes de outros
Deuses e Javé no topo do panteão israelita, como único Deus, começa

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a perseguição e demonização das outras divindades. Onde estavam as
divindades menores, como “sol, lua e estrelas” são criticadas no culto
javista (2 Reis 23):

[...] do templo de Jerusalém teriam sido retirados utensílios feitos


para Baal, Aserá e o Exército do céu; sacerdotes dos ‘altos’ foram
depostos, a estaca sagrada (hebraico: asherah) foi destruída, cabanas
onde as mulheres teciam véus para Aserá foram demolidas etc. Tam-
bém os santuários do interior foram desautorizados e desmantelados.
Houve, assim, claramente, uma concentração do culto a Yahveh em
Jerusalém, com a conseqüente exigência da adoração exclusiva dessa
divindade (Haroldo REIMER, 2003, p. 982).

Essas atribuições à Javé dos poderes de outras deidades ou às


mudanças produziu um Deus que passou a representar todos esses
outros Deuses e Deusas “sem ser igual a elas e sem que elas tivessem
nenhuma existência genuína” (Mark SMITH, 2006, p. 179). Se nenhum
desses Deuses e Deusas são genuínos, nessa lógica, então devem ser
destruídos. E assim, no pós-exílio, foram suprimidas todas as divinda-
des, principalmente as femininas, e cultos femininos, apagando assim
a história e espiritualidades das mulheres, sacerdotisas e religiosas da
seguinte tradição.

2. A HISTÓRIA DA ESPOSA ESQUECIDA

A arqueologia permitiu que descobríssemos que Javé não substituiu


a Deusa no culto prático por um bom tempo. Rosemary Ruether diz
que Javé, para o imaginário de muitos, substituiu Baal, assim, ganhou
a esposa Asherah, que continuou sendo adorada ao lado de seu novo
parceiro Javé no templo salomônico por volta e dois terços de sua
existência (Rosemary RUETHER, 1993, p. 53).

Aserá, na maioria do tempo venerada sob o corpo de uma árvore,


era, inicialmente, a parceira de YAHWEH, mas com o crescente
desenvolvimento do javismo como religião de um deus masculino,
transcendente e único, ela foi taxada como sua maior rival e inimiga
(Monika OTTERMANN, 2005, p. 48).

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O cenário mudou quando a partir de 1929 e diante foi encontrado
os textos ugaríticos, pois antes era comum a negação de Asherah, den-
tro e fora da Bíblia, mas agora:

[...] no sólo reaparece como una Diosa principal en los textos ugarí-
ticos, sino que es identificada claramente en la Biblia, a pesar de la
fuerte represión ejercida por la religión oficial de Israel. Por lo demás,
no hace tanto tempo que la arqueología nos ha brindado material
epigráfico del sur de Israel en que la Diosa aparece en una notable
asociación con Yavé (Severino CROATTO, 2001, p. 30).

Asherah, a Deusa do panteão ugarítico passa a ser a consorte do


Deus israelita. Esse relacionamento foi esquecido propositalmente tanto
nas Escrituras, que queriam afirmar a única divindade masculina como
Javé, quanto nas teologias posteriores, que utilizaram desse imaginário
masculino de Deus para subjugar as mulheres por séculos e séculos.
Portanto, é de suma importância trazer a memória a imagem da Grande
Mãe na tradição judaico-cristã.
Além das evidências arqueológicas, que serão exploradas poste-
riormente, acadêmicas/os se dedicaram também ao estudo da palavra
Asherah, que aparece em 40 ocasiões na Bíblia hebraica.
• A palavra parece 18 vezes na forma nominal feminina do sin-
gular como, (Dt. 16:21; Ju. 6:25,26,28, 30; 1Reis. 15:13;
16:33; 18:19; 2Reis. 13:6; 17:16; 18:4; 21:3,7; 23:4,6,7,16; e 2Cr.
15:16).
• A forma plural masculina (muitas vezes com o sufixo)
ocorre 19 vezes (Ex. 34:13; Dt. 7:5; 12:3; 1Reis. 14:15,23; 17:10;
23:14; 2Cr. 14:2; 17:6; 24:18; 31:19; 34:3,4,7; Isa. 17:8; 27:9; Jer.
27:2; e Miq. 5:13).
• Os restantes das aparições da palavra ocorrem no substantivo
feminino plural
• Jz. 3:7; 2Cr. 19:3; e 33:3). (David BOKOVOY, 2012, p. 56).
• Para Ana Luísa Cordeiro (2011, p. 44) muitas dessas referências
se distanciam do símbolo da Deusa Asherah , pois houve
um processo de “masculinização” que “tenta apagar qualquer
memória da Deusa”. Então, ao transformar Asherah em um

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mero objeto cúltico elimina o caráter da Deusa como parceira
de Javé e recebedora de adoração.
A maioria das aparições de Asherah no texto bíblico está na litera-
tura Deuteronomista ou então em fontes posteriores. David Bokovoy
(2012, p. 57) diz que as datações históricas dessas passagens acabam
criando desafios para as interpretações das concepções religiosas pré-
-exílicas em relação às visões israelitas de Asherah. E é necessário um
certo grau de cautela nas leituras, pois, segundo Binger (1997, p. 110-
111) os autores deuteronomistas possuíam um conhecimento limitado
do politeísmo pré-exílico já que tudo foi reunido relativamente tarde e
os redatores advogavam pelo monoteísmo javista. “Além disso, como
vários estudos recentes mostram, os autores pós-exilados não eram
tão dedicados ao monoteísmo radical como muitos comentaristas que
frequentemente assumem” (David BOKOVOY, 2012, p. 57).
É importante ressaltar a reforma político-religiosa de Josias, que
ocorreu no último quarto do século VII a.C. Essa reforma tentou afastar
as diversas formas de adoração a outros deuses, colocando Javé no
centro e travando batalhas contra templos de outros deuses e deusas
no seu reino e no antigo Reino do Norte, como é visível em 2 Reis 22-23.
Essas reformas, que é possível encontrar como partes fundamentais
em Deuteronômio, construíram e reforçaram a identidade monoteísta,
como Haroldo Reimer coloca, um “monoteísmo nacional em sua versão
oficial” (2008, p. 71)
Entretanto, por mais que a perseguição e supressão de outras divin-
dades tenha ocorrido em Israel, a cultura popular ainda mantinha suas
formas de adoração próprias. Sendo assim, mesmo com a perseguição
às deusas, como Asherah, ainda resistiram na fé israelita.

Outra evidência, entretanto, parece sugerir que Josias não conse-


guiu impedir a veneração de imagens esculpidas, pois estatuetas de
uma mulher de pé, segurando os seios com as próprias mãos (ge-
ralmente identificada com a deusa Asherat), foram encontradas, em
abundância, dentro de complexos residenciais privados em todos os
principais sítios do final do século VII (Israel FINKELSTEIN; Neil Ascher
SILBERMANN, 2003, p. 387).

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A arqueologia é uma fonte de resgate a essa fé marginal de Isra-
el. Veremos a seguir alguns pontos da arqueologia de Asherah e suas
diversas manifestações na cultura popular.

a) A arqueologia da Deusa
As evidências arqueológicas nos auxiliam a ir além do que é pres-
suposto pelos autores deuteronomistas. Existem diversos materiais que
ajudaram no resgate de Asherah, como o jarro encontrado em Laquis
pelo arqueólogo britânico James L. Starkey em 1934. Esse sítio ficava
a 40 km a sudoeste de Jerusalém, e foi datado do século XII a.C. (Ana
Luísa CORDEIRO, 2011, p. 36). A inscrição contida é para a Elat, o femi-
nino de El e equivaleria a Asherah, consorte de El no panteão cananeu.

O jarro é decorado e contém inscrições raras do antigo alfabeto semí-


tico. Na decoração, há o desenho de uma árvore flanqueada por duas
cabras com longos chifres voltados para trás, que, segundo Hestrin,
representa a Asherah. Uma inscrição que segue pela borda do jarro
foi reconstruída e traduzida por Frank M. Coss (apud HESTRIN, 1991,
p. 54) como: “Mattan. Um oferecimento para minha senhora “Elat”
(Ana Luísa CORDEIRO, 2001, p. 36).

Uma escavação em Arad, no sul de Judá, encontrou um templo de


Javé do século VIII. A seguir a descrição da escavação feita por José
Ademar Kaefer:

Construído em continuidade com os lugares altos, com as eiras, ou as


bamot, onde aconteciam os ritos da fertilidade, foram encontradas
nesse templo duas estelas (massebot). As estelas estavam colocadas
fixas no santo dos santos. A maior, que representava a divindade
masculina (Javé? Baal?) media 90 cm. A outra era um pouco menor
e representava uma divindade feminina (Asherá?). A maior era fálica,
tinha a parte superior arredondada e estava pintada de vermelho.
Em frente a cada uma delas havia um pequeno altar para incenso
[...] Portanto, uma prova contundente da forte presença, em tempos
tardios, de cultos da fertilidade no interior de Judá e da influência que
estes exerceram sobre o javismo (José Ademar KAEFER, 2015, p. 423).

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Foram encontradas pequenas estátuas femininas quebradas em
1960, pela arqueóloga inglesa Kathleen Kenyon. Essas estátuas esta-
vam localizadas em uma caverna próxima ao templo de Salomão em
Jerusalém (Ana Luísa CORDEIRO, 2011, p. 37).
Em 1967 William Dever conduziu uma escavação de salvamento
próximo a Khirbet el Qom, uma pequena vila localizada entre Laschisch,
Tell Beit Mirsin e Hebrom. A escavação foi necessária para descobrir
inúmeros de itens em uma antiga loja em Jerusalém (Tilde BINGER, 1997,
p. 94). O sítio compunha dois túmulos, itens menores e três inscrições
que fizeram uma grande contribuição para o resgate de Asherah.
Severino Croatto (2001, p.33) traduz a inscrição da seguinte maneira:
1. Uryahu [... algo sobre él] su inscripción.
2. Bendito sea Uryahu por Yavé (lyhwh),
3. su luz por Asherá, la que mantiene su mano sobre él
4. por su rpy, que...
Nessa inscrição pode-se notar a colocação de Asherah como Deusa
e sua associação com Javé. E também a função de Asherah como Deu-
sa protetora, já que podemos considerar essas inscrições como uma
benção apotropaica.
Outro achado arqueológico de grande valia foi o de Kuntillet ‘Ajrud,
localizado no deserto do Sinal, a 50 km ao sul de Cades-Barnea, na via
que liga Gaza a Elat. Lá foram encontradas inúmeras inscrições e de-
senhos, e são de suma importância para a compreensão da história de
Israel e Judá (José Ademar KAEFER, 2015, p. 893).

O sítio foi escavado por uma equipe coordenada pelo arqueólogo


Ze’ev Meshel, do Instituto de Arqueologia da Universidade de Tel
Aviv, em 1975-1976, e foi datado com bastante precisão na primeira
metade do século VIII a.C. (MESHEL, Z., 1993). Portanto, com quase
total probabilidade, durante o longo reinado de Jeroboão II (788-747)
(José Ademar KAEFER, 2015, p. 894).

Entre os muitos achados em Kuntillet ‘Ajrud, dois potes de cerâmica


(pithos) se destacaram devido as inscrições contidas nele. “Em ambos
havia uma fórmula usada para introduzir uma carta-oração de bênção”
(José Ademar KAEFER, 2015, p. 895).

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No pithos A:

“Eu o abençoo por YHWH de Samaria e sua Asherah”

No pithos B:

“Eu te abençoo por YHWH de Teman e sua Asherah”

Da mesma maneira, a inscrição na porta do santuário de Kuntillet


‘Ajrud lê-se

“[Pertencendo] A Javé e sua Asherah” (David BOKOVOY, 2012, p. 53).

Entre os desenhos gravados nas jarras, alguns são mais notáveis, é o


caso da cena que retrata duas divindades, aparentemente uma mas-
culina e outra feminina. As divindades têm forma humana, mas com
traços de animal, possivelmente de leão ou de touro. A parte superior
do corpo está vestida com um vestuário de couro, e a parte inferior
aparentemente está nua. O que parece ser a genitália, pode ser a
cauda (do leão?). À parte tem outras cenas, um/a tocador/a de lira;
uma árvore da vida ladeada por dois cabritos montanheses comendo
das suas folhas; um leão; um grupo de pessoas (cinco figuras) com
as mãos e erguidas em oração; um arqueiro atirando; um grupo de
animais; e, por fim, uma vaca amamentando e lambendo seu filhote
(José Ademar KAEFER, 2015, p. 895).

3. SEXO E OS/AS DEUSES/AS


O sexo é uma poderosa experiência humana, inseparavelmente
conectada com a habilidade – como um Deus – de criar vida, como diria
Tikva Frymer‐Kensky um “fenômeno muito complexo” (Tikva FRYMER‐
KENSKY,1992, p. 187). E ela ainda afirma que a dimensão da atração
erótica tem um lugar integral no funcionamento do cosmos (Tikva FRY-
MER‐KENSKY, 1992, p. 187). E para haver atração é necessário que haja
corpo. Deuses e Deusas com corpos. De uma perspectiva psicológica,
é natural que humanos criem Deuses à sua imagem (David BOKOVOY,
2012, p. 6). De acordo com Esther Hamori, o teísmo é intrinsecamente

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antropomórfico, pelo menos até certo ponto, e as percepções antro-
pomórficas fornecem o fundamento básico para todas as concepções
religiosas (Esther HAMORI, 2008, p. 47). Deuses e Deusas com desejos,
corpos, sentidos, semelhante a humanos.

O imaginário religioso compartilhado por diversos povos e também


por Israel percebia a sexualidade como parte da ordem natural da
vida, e como relação básica de geração, sustentação e re-criação do
cosmos. A atração erótica é um movimento fundamental na dinâmi-
ca do cosmos, suas aproximações e distanciamentos, copulações e
fertilidade. Deuses e deusas, homens e mulheres têm em comum a
capacidade relacional, o desejo erótico e a dinâmica da fertilidade
(Nancy Cardoso PEREIRA, 2001, p. 7).

E assim os mitos são criados, as trajetórias, aventuras são tecidas a


partir do corpo. A experiência sexual entra como um fenômeno impor-
tantíssimo nas antigas mitologias do Oriente Próximo. Reconhecendo
esse aspecto Tikva Frymer‐Kensky entende que o sexo comum também
pode ser visto como divino, pois as aventuras e as desventuras sexuais
dos deuses e deusas proporcionaram um paralelo divino para a sexu-
alidade. Essas histórias mostraram que os deuses e deusas também
sentiram essas pulsões e realizaram esses atos (1992, p. 187). Então, o
sexo passa a ter uma dimensão sagrada e não faz com que as pessoas
sejam menos “divinas”. Segundo Tikva Frymer‐Kensky (1992, p. 187)
é exatamente o contrário, já que reforça a semelhança com a ordem
superior do ser, que seriam os deuses e deusas. A virilidade e potência
dos deuses masculinos, os paradigmas de certo e errado na atividade
sexual, vem desse antropomorfismos entre seres humanos e deuses(as).
A afirmação de Frymer-Kensky, de fato, inverte a percepção da cons-
trução metafórica: os humanos são como os deuses (não o inverso).
Neste sentido, a mitologia que descreve os deuses como criaturas
sexuais funcionou como um tipo ou reflexo do comportamento huma-
no; essas imagens poderiam, portanto, fornecer lições valiosas sobre
a sexualidade humana (oferecendo modelos positivos e negativos),
bem como uma etiologia que explica as origens da presente ordem
mundial. Em termos de representações da era primordial, o sexo
geralmente aparece ligado nas tradições do Oriente Próximo com o
poder da criação divina. (David BOKOVOY, 2012, p. 8)

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Para citar como exemplo, podemos relembrar o mito sumério na
qual An (Céu) e Ki (Terra) se relacionam sexualmente, o Céu fecunda Ki
com seu sêmen divino e gera vida, entre isso o filho Enlil. Outro exem-
plo é ainda no panteão sumério o sexo sagrado entre Enki e Ninsikila/
Ninhursaga. El também aparece como um Deus cuja virilidade é mostrada
pelo falo, em KTU 1.23:

“Os comprimentos do pênis de El, como o mar,


Verdadeiramente, o pênis de El, como a comida.
O pênis de El alonga-se como o mar,
Verdadeiramente, o pênis de El, como o dilúvio. ”
(David BOKOVOY, 2012, p. 20).

O El do panteão ugarítico, que posteriormente virará o El israelita,


perde sua sexualidade com o monoteísmo israelita.

A consolidação do monoteísmo representa também a dessacralização


da sexualidade e do erotismo. Reduzidos a fenômeno estritamente
humano, erotismo e sexualidade não mais se apresentam como
alternativa possível da experiência religiosa, ficando muitas vezes
reduzidos e catalogados como sinônimo de pecado e idolatria (Oséias
+ Ezequiel) (Nancy Cardoso PEREIRA, 2001, p. 8).

a. A ausência erótica de Javé


Transformaram Javé em um Deus assexuado, sem relações fami-
liares, ausente de corporeidade. Vale ressaltar que a ausência erótica
de Deus é uma consequência do monoteísmo “anicônico, sacerdotal e
exclusivo” (Osvaldo Luiz RIBEIRO, 2015, p. 239). Entretanto, essa visão
do deus-sem-corpo-assexual foi uma construção e nem sempre foi assim
na história de Israel.

A negação e a omissão do imaginário sexual e erótico no fenômeno


religioso em Israel faz parte da intencionalidade editorial de cons-
trução de uma divindade única despossuída de elementos e relações
antropomórficos. A velação do corpo de Deus (Ninguém viu a Deus),
a afirmação de uma divindade única e, por isso mesmo, sem rela-
cionalidade estreitam as possibilidades do imaginário erótico como
expressão religiosa. Em lugar das trocas cósmicas fertilizadoras da

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vida, expressas em profusões de relações entre deuses e deusas,
estabelece-se uma divindade única que governa a partir da Lei e da
Palavra. De todos os orifícios do corpo responsáveis pelas trocas com
o mundo e as pessoas, somente a boca vai manter sua dignidade
(Nancy Cardoso PEREIRA, 2001, p. 8).

Segundo Esther Hamori todo teísmo é antropomórfico e a tenta-


tiva de rejeitar o antropomorfismo é forçada, pois por mais que possa
negar algum aspecto, nunca será possível negar o fenômeno em si
(2008, p. 46). Só podemos abordar Deus de maneira antropomórfi-
ca. “Sem qualquer tipo de antropomorfismo, não pode haver religião
como a conhecemos” (Esther HAMORI, 2008, p. 47). Essa noção da
deidade com características humanas existe em todas as tradições,
inclusive na tradição de Israel. Em Êxodo 24:9‐11, em uma teofania no
Monte Sinai, Moisés, Arão, Nadabe e Abiú e mais 70 anciãos subiram a
montanha e viram a “o Deus de Israel” (‫ אלהי ישראל‬v. 10). De acordo
com o texto, esse homens não apenas viram os pés e mãos de Deus,
mas também se juntaram com o ‫ אלהי ישראל‬em uma refeição (David
BOKOVOY, 2012, p. 5-6).
Entretanto, por mais que a tradição seja antropomórfica, pensar
na corporeidade integral de Javé leva a pensar as dimensões da sexua-
lidade de Deus. Portanto é mais fácil negar o corpo de Javé, negar sua
companheira Asherah, negar o erótico. Porém, isso faz com que seja
necessário suspeitar do que os textos deuteronomistas nos apresen-
tam e ir além dele, além das fontes da bíblia hebraica. Buscar, como já
foi feito, na arqueologia indícios de uma corporeidade de Javé, da sua
sexualidade, da sua ligação com a Grande Mãe Asherah.
Javé tem sexo e é masculino. Mesmo que todas as representações
de imagem tenham sido banidas, a referência ao Deus-Pai deixa claro
a representação de uma divindade masculina. Além desse fator, como
foi visto no achado de Kuntillet ‘Ajrud tem uma imagem de Deus eroti-
zado, com seus órgãos sexuais expostos e ao lado de duas divindades
femininas associada a Asherah (Haroldo REIMER, 2001, p. 43). Mas com
o passar do tempo Javé vai perdendo sua corporeidade e se tornando
um Deus para-além-do-corpo, patriarcal, kyrial e assexual. “Na rejeição
da sexualidade rejeitou-se a mulher” (Ivone GEBARA, 2016, p. 91).

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A ausência erótica de Javé se inicia na perseguição e destruição
de seu lado feminino. Javé incorpora Asherah em alguns aspectos, mas
toda simbologia do sagrado é masculina, devido ao contexto patriarcal
dominante. “A religião oficial israelita adota, então, uma identidade for-
temente masculina, na qual o feminino passa a ser relegado ao espaço
particular das mulheres” (Ana Luísa CORDEIRO, 2011, p. 61).
Resgatar o erotismo de Deus é, em primeiro lugar, resgatar a Deusa.
Reimaginar as categorias do Divino.

Reimaginar é questionar compreensões fechadas acerca do poder


divino, questionar a dominação máscula sobre mulheres, homens
e outros seres vivos. Reimaginar é poder dar voz àquilo que nunca
deixou de existir, o imaginário feminino da divindade, a representação
feminina da Deusa (Ana Luísa CORDEIRO, 2011, p. 63).

E revisitar todo o silenciamento e a repressão das divindades femi-


ninas no Antigo Israel e como isso reflete em nossos dias na tradição
judaica-cristã. Severino Croatto afirma a tragicidade do predomínio ab-
soluto e exagerado do uso do Deus masculino (2001, p. 18). E destaca
alguns pontos para destacar a importância de uma linguagem e símbolos
femininos em relação ao sagrado.

a) En multiplicar las funciones, representaciones y nombres femeni-


nos, si se quiere, Sofía/Sabiduría como nombre de Dios y no como
una metáfora ni una simple personificación del ideal sapiencial. Hay
muchas posibilidades de atribuir a la divinidad papeles femeninos, lo
que lleva a la identificación de la Diosa;

b) En recuperar a la Diosa, sea como alternativa coherente (no lo es el


Dios Madre, ¡porque en este caso “madre” no pasa de ser un atributo
metafórico de un ser masculino!) o como integrada heterosexual-
mente como la Diosa junto a Dios [...]No obstante, cualquiera sea
la especialización funcional de los Dioses en la instancia masculina o
femenina, ellos/ellas tienen su consorte: Ilu-Atíratu, en Ugarit, Marduc-
-Sarpanitu en Babilonia, Enlil-Ningal entre los sumerios, Zeus-Hera
para los griegos, etc (Severino CROATTO, 2001, p. 18-19).

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Trabalhar com as diferentes linguagens a respeito de Deus é quebrar
a estrutura patriarcal, kyrial e masculino. Um Deus que com sua masculi-
nidade governa como um pai e é um patrão como um político (Severino
CROATTO, 2001, p. 15). “Quando uma divindade feminina é atacada como
inimiga, logo o que a divindade representa também passa a ser considera-
do como inimigo, o feminino” (Angélica TOSTES, 2017, p. 4). As divindades
femininas se tornam negativas, e as mulheres não possuem sua imagem
nos céus, portanto, entre as mulheres e Deus há um abismo.

No que se refere à divindade, o vazio feminino está presente nos


céus. As mulheres nunca foram dignas de estar sentadas no céu, nem
ter anjos a seus pés. As mulheres nunca tiveram verdadeiramente seu
“dublê” divino nos céus. Tiveram sim que se contentar com o rosto da
divindade masculina, forçosamente convencidas de sua inferioridade
ontológica e histórica, pois nada nelas assemelhava-se ao divino para
merecer uma habitação digna nos céus (Ivone GEBARA, 1991, p. 18).

O resgate da imagem do divino feminino tem uma importância na


tentativa da reconstrução da História de Israel e o processo dar a voz a
essas divindades femininas é a possibilidade da “identificação sagrada
das mulheres, em busca de relações mais recíprocas e humanizadas
entre os gêneros” (Ana Luísa CORDEIRO, 2007, p. 12). Quebrar o sa-
grado como “masculino” é quebrar as relações de poder. É dar espaço
a experiência de alteridade religiosa das mulheres ao se identificar com
um divino positivo (Angélica TOSTES, 2017, p. 5).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nossas reflexões procuraram tratar a ausência erótica de Javé no
decorrer da construção do monoteísmo patriarcal de Israel. Observamos
o desenvolvimento da religião de Israel e seus desdobramentos de um
politeísmo para o monoteísmo javista como é divulgado pelos deute-
ronomistas. Em seus diversos estágios de desenvolvimento é possível
observar a Deusa Ugarítica Asherah como esposa de El-Javé.
Outro ponto foi trazer à memória a imagem e função da Grande
Deusa Israelita, apagada dos escritos oficiais da Bíblia Hebraica, mas
ainda sim resistindo na arqueologia. Apontamos a arqueologia como

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fonte principal para o resgate de Asherah e reconstrução da História
de Israel. Além da arqueologia como esse recurso do resgate, também
observamos na Bíblia Hebraica as referências a Asherah e as tentativas
de transformar a divindade em apenas postes e árvores sagradas (que
eram símbolos da divindade, não objeto de culto) pela cultura patriarcal.
Também vimos que por mais que a repressão de Josias destruísse as
imagens e as divindades femininas do templo de Javé, não foi possível
tirar isso do imaginário da cultura popular, que continuou a produzir
estatuetas de divindades femininas.
Ressaltamos a importância do sexo para as mitologias no Oriente
Próximo e alguns mitos de criação envolvendo a relação sexual entre
deuses. Apontamos que o antropomorfismo dos deuses e deusas per-
passam também pela sexualidade e desejos. Apresentamos o El ugarítico
que era exaltado pela sua virilidade fálica.
A ausência erótica de Javé acontece com a tentativa de transformar
Javé em um Deus não-antropomórfico, o que é algo impossível. Como
foi apresentado, é impossível falar de Deus em o antropomorfismo.
Javé se torna patriarcal, kyrial e sem corpo. Ao tirar o corpo de Javé,
tiramos sua sexualidade. Assim, Javé não precisa de sua consorte mais.
No desprezo da sexualidade e de Asherah as mulheres não tiveram mais
espaço no âmbito religioso.
O resgate da divindade feminina é uma tarefa que requer grandes
esforços. Destituir o masculino como único símbolo possível do Sagrado
no âmbito judaico-cristão é um trabalho sem fim e prazo, pois a mulher
continua sendo menosprezada nas diversas facetas da sociedade, e
principalmente na religião. Recuperar o feminino, a Deusa, a linguagem
feminina como parte da tradição judaica-cristã é fundamental para a
alteridade da mulher com o Sagrado.

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Submetido em: 8-5-2018


Aceito em: 26-6-2018

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