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2ª EDIÇÃO
Apresenta-se uma análise crítica das tendências de expan-
são dos espaços de consenso na justiça criminal brasileira,
fundamentalmente a partir da introdução de mecanismos
negociais, como o instituto da barganha, que, em termos
amplos, possibilita a concretização antecipada do poder pu- Nesta 2ª edição realizou-se uma am-
nitivo por meio do reconhecimento de culpabilidade con- pla revisão e atualização do texto,
sentido do acusado em troca, geralmente, do benefício de especialmente em relação às tendên-
redução em sua sanção penal. cias atuais de expansão dos espaços
Trata-se de forte inclinação no cenário internacional, que se de consenso no processo penal bra-
pauta cada vez mais pelo debatido objetivo de aceleração sileiro. Também foram introduzidas
procedimental. Após a definição introdutória dos contornos novas referências bibliográficas, al-
Barganha
das ideias de oportunidade, obrigatoriedade e consenso, de- gumas das quais com réplicas a crí-
VINICIUS GOMES DE linear-se-ão as principais características da barganha, espe- ticas e questionamentos opostos a
VASCONCELLOS cialmente a partir do marcante exemplo estadunidense. ideias sustentadas na 1ª edição deste
Serão estudadas as possibilidades de consenso no cenário livro. Além disso, deve-se ressaltar:
Pós-doutorando em Direito pela Univer- brasileiro atual. Em seguida, analisar-se-ão as propostas le- inclusão do item 1.1.4 sobre “A jus-
sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Doutor em Direito pela Universidade de gislativas atualmente em discussão em âmbito nacional. Por tiça consensual entre os mecanismos
São Paulo (USP), com período de san-
duíche (PDSE/Capes) na Universidad
Complutense de Madrid (ESP). Mestre
fim, estruturar-se-ão críticas à justiça negocial e ao instituto da
barganha, desvelando suas incontornáveis aporias e inconsis- e justiça criminal negocial: de diversificação e de aceleração
processual”; adição do item 1.2.4
tências, que acarretam violações a premissas fundamentais do sobre “Espécies de barganha: sobre
em Ciências Criminais pela Pontifícia Uni-
análise das tendências de expansão dos espaços
Barganha
e justiça criminal negocial:
análise das tendências de expansão dos espaços
de consenso no processo penal brasileiro
2ª EDIÇÃO
Editora D’Plácido
Copyright © 2018, D’Plácido Editora.
Copyright © 2018, Vinicius Gomes de Vasconcellos. Av. Brasil, 1843, Savassi
Belo Horizonte – MG
Editor Chefe Tel.: 31 3261 2801
Plácido Arraes CEP 30140-007
Produtor Editorial W W W. E D I TO R A D P L A C I D O. C O M . B R
Tales Leon de Marco
Capa, projeto gráfico
Enzo Zaqueu Prates Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida,
Diagramação por quaisquer meios, sem a autorização prévia
Enzo Zaqueu Prates do Grupo D’Plácido.
Bibliografia.
ISBN: 978-85-8425-980-9
CDU343.1 CDD341.43
Nota do autor à
2ª edição
Prefácio 13
Apresentação 19
Introdução 23
13
insuficiência estrutural do Poder Judiciário (sustentam os defensores do viés
expansionista). Mas a aceleração procedimental pode ser levada ao extremo
de termos uma pena sem processo e sem juiz? Sim, pois, na justiça negocial,
a garantia do juiz pode ficar reduzida ao papel de mero “homologador” do
acordo, muitas vezes feito às portas do tribunal (nos Estados Unidos, acordos
assim superam 90% dos meios de resolução de casos penais).
A negotiation viola desde logo o pressuposto fundamental da jurisdição,
pois a violência repressiva da pena não passa mais pelo controle jurisdicional
e tampouco se submete aos limites da legalidade, senão que está nas mãos do
Ministério Público e submetida à sua discricionariedade. Isso significa uma
inequívoca incursão do Ministério Público em uma área que deveria ser
dominada pelo tribunal, que erroneamente se limita a homologar o resultado
do acordo entre o acusado e o promotor. Não sem razão, afirma-se que o
promotor é o juiz às portas do tribunal.
O acordo no processo penal pode se constituir em um perverso intercâm-
bio, que transforma a acusação em um instrumento de pressão, capaz de gerar
autoacusações falsas, testemunhos caluniosos por conveniência, obstrucionismo
ou prevaricações sobre a defesa, desigualdade de tratamento e insegurança.
O furor negociador da acusação pode levar à perversão burocrática, em que
a parte passiva não disposta ao “acordo” vê o processo penal se transformar
em uma complexa e burocrática guerra.
Tudo é mais difícil para quem não aceita o “negócio”. O acusador
público, disposto a constranger e obter o acordo a qualquer preço, utilizará
a acusação formal como um instrumento de pressão, solicitando altas penas
e pleiteando o reconhecimento de figuras mais graves do delito, ainda que
sem o menor fundamento.
A tal ponto pode chegar a degeneração do sistema que, de forma clara e
inequívoca, o saber e a razão são substituídos pelo poder atribuído ao Minis-
tério Público. O processo, ao final, é transformado em um luxo reservado a
quem estiver disposto a enfrentar seus custos e riscos, como adverte Ferrajoli.
A superioridade do acusador público, acrescida do poder de transigir,
faz com que as pressões psicológicas e as coações (a prisão cautelar virou o
principal instrumento de coação) sejam uma prática normal, para compelir
o acusado a aceitar o acordo e também a “segurança” do mal menor de ad-
mitir uma culpa, ainda que inexistente. Os acusados que se recusam a aceitar
a delação ou acordo sobre a pena são considerados incômodos e nocivos, e
sobre eles pesarão todo o rigor do Direito Penal “tradicional”, em que qual-
quer pena acima de quatro anos impede a substituição e, acima de oito anos,
impõe o regime fechado.
O panorama é ainda mais assustador quando, ao lado da acusação, está
um juiz pouco disposto a levar o processo até o final, quiçá mais interessado
14
que o próprio promotor em que aquilo acabe o mais rápido e com o menor
trabalho possível. Quando as pautas estão cheias e o sistema passa a valorar mais
o juiz pela sua produção quantitativa do que pela qualidade de suas decisões,
o processo assume sua face mais nefasta e cruel. É a lógica do tempo curto
atropelando as garantias fundamentais em nome de uma maior eficiência.
No Brasil, a tendência de expansão é evidente e a preocupação, crescente.
Dos limites tímidos da transação penal e suspensão condicional do processo,
caímos no outro extremo: o amorfismo da colaboração (leia-se: delação)
premiada e a Lei 12.850/2013. Casualmente escrevo essas linhas tentando
entender uma decisão judicial (em famosa operação policial) em que alguém
– beneficiado pela delação premiada – é condenado a 15 anos e 10 meses
em regime de “reclusão doméstica” ou “prisão domiciliar”. Depois vem um
regime “semiaberto diferenciado”(?) e uma progressão para o regime aberto
após dois anos... Tudo isso sob o olhar atônito do Código Penal, que não se
reconhece nessa “execução penal a la carte”.
Mas isso é outro Direito Penal? Com certeza. E outro processo penal também.
Mas o que é esse “outro”? A serviço de que(m) ele está? Quais seus
limites de incidência? Por mais que se admita que o acordo sobre a pena
seja uma tendência mundial e inafastável, (mais) uma questão que preocupa
muito é: onde estão essas regras e limites na lei? Onde está o princípio da
legalidade? Reserva de lei? Será que não estamos indo no sentido negociação,
mas abrindo mão de regras legais claras, para cair no erro do decisionismo
e na ampliação dos espaços indevidos da discricionariedade judicial? Fico
preocupado, não apenas com a banalização da delação premiada, mas com
a ausência de limites claros e precisos acerca da negociação. É evidente que
a Lei 12.850/2013 não tem suficiência regradora e estamos longe de uma
definição clara e precisa acerca dos limites negociais.
Os mecanismos procedimentais de consenso sobre a pena (entre eles
situo a delação premiada), precisam ser objeto de uma problematização muito
mais complexa, como por exemplo:
a) Quais os limites quantitativos e qualitativos acerca da pena que
pode ser negociada? Como fixar uma pena de 15 anos em regime
de prisão domiciliar (como na “delação à brasileira”)? E as penas
acessórias? Qual o critério para fixação dos valores (milionários) a
serem restituídos (ou pena pecuniária)?
b) Até que momento pode ser efetivada? Apenas na fase pré-processu-
al? Após a denúncia, mas antes da instrução? A qualquer momento
(então não haverá a aceleração procedimental característica)?
c) Que consequências procedimentais ela gera em termos de aceleração
e limitação da cognição? Pode a defesa escolher o procedimento
que pretende utilizar (como no modelo italiano)?
15
d) Uma vez feita, mas por qualquer motivo não efetivada ou descumprida,
como vamos lidar com a confissão já realizada? E o pré-julgamento,
como fica? O juiz que teve contato com a confissão/delação deve
ser afastado ou continuaremos com a ilusão de que não há quebra
da imparcialidade, de que o juiz pode dar um rewind mental e deletar
o que ouviu, viu e leu? Continuaremos na ingenuidade cartesiana?
e) Nos casos penais de competência do Tribunal do Júri, como se dará
o julgamento? Haverá júri e os jurados poderão não homologar a
delação? E a íntima convicção, como fica? Haverá quesitação sobre a
delação? Ou com a negociação usurparemos a competência do júri?
f) Havendo assistente da acusação, poderá se opor a negociação sobre
a pena? Qual o espaço da vítima no ritual negocial? Ela poderá
estabelecer “condições” ou será ignorada (como ocorre na transa-
ção penal oferecida pelo Ministério Público nas ações penais de
iniciativa privada)?
g) Existe um “direito” do imputado ao acordo ou ele é um poder dis-
cricionário do Ministério Público? Se o acusador, sem justificativa
legítima, deixar de oferecer, pode o juiz efetivar a diminuição da
pena (novamente recordo o modelo italiano)?
h) Qual o nível e dimensão de controle jurisdicional feito? Qual o
papel do juiz no espaço negocial sem que ele deixe de ser “juiz”
(ou seja, imparcial)?
Muitas são as perguntas não respondidas pelo sistema jurídico brasileiro,
chegando-se a uma elasticidade absurda (e decisionismo igualmente absurdo) de
fixar uma pena de 15 anos de reclusão a ser cumprida em regime de recolhimento
domiciliar, absolutamente fora de tudo o que temos no Código Penal brasileiro...
Mas, antes de pensarmos que “legislar” é a solução para tudo isso, faço
mais um questionamento: já foi elaborado um sério e profundo “estudo
de impacto carcerário” da expansão do espaço negocial? A expansão da
possibilidade de concretização antecipada do poder de punir por meio do
reconhecimento consentido da culpabilidade não representará um aumen-
to significativo da nossa já inchada população carcerária? Como o sistema
carcerário sucateado e medieval que temos irá lidar com isso? Pois é, parece
que mais uma vez legislaremos primeiro, para ver o que vai ocorrer depois...
Dessarte, entrando – sem muito rumo ou prumo – em terreno minado, (em
grande parte) desconhecido e muito perigoso para o processo penal demo-
crático e constitucional.
Também é preciso mostrar que a barganha não decorre - como defen-
dem alguns - da adoção do modelo processual penal acusatório e tampouco
está na sua estrutura fundante. A partir de estudo do objeto do processo (a
16
pretensão acusatória), chega-se à conclusão (inexorável) de que o Ministério
Público não pode(ria) negociar “pena”, porque não possui pretensão punitiva,
senão a pretensão acusatória, já que o poder de punir é do Estado-Juiz. Ou
seja, recordando Carnelutti, ao MP não lhe compete o poder de punir, mas
apenas de promover a acusação por meio do processo. Portanto, a barganha
não é decorrência lógica e necessária da adoção do modelo acusatório, senão
todo o oposto, está mais alinhada à essência inquisitiva, pois se utiliza da co-
ação para obter a confissão do réu e se acarreta a violação do contraditório,
sem falar que se utiliza elementos coletados sem o controle judicial. Enfim,
é uma “nova versão refinada da inquisição”.
Por fim, questão importante, trazida por Vinicius, diz respeito às três
condições para validade do acordo: voluntariedade, inteligência e adequação.
Adverte que o acordo, para ser legítimo,“deve ser aceito pelo acusado em con-
dições de liberdade voluntária, sem pressões ou coações, com conhecimento
de seus termos e de suas consequências, especialmente a renúncia a direitos
fundamentais, como à defesa e ao contraditório, além de, por fim, apresentar
uma base fática mínima para atestar sua adequação ao caso”. Tais pontos são
relevantes quando verificamos que grande parte dos “acordos à brasileira”
(delação premiada) são feitos em um contexto de absoluto constrangimento
situacional, em que o imputado está preso e submetido a todo tipo de tortura
e pressão psicológica. É, sem dúvida, um consentimento viciado, similar à
situação do cautelarmente preso que “consente” em ser conduzido e permitir
que a autoridade policial faça uma busca domiciliar. É ingenuidade, senão
má-fé, sustentar que isso é um acordo que deita sua base de legitimação na
livre e espontânea vontade de partes iguais...
Nesse contexto complexo e turbulento se insere a obra deVinicius, que não
tem (e nem pretende, pois seria uma ilusão) respostas para todas essas questões,
mas sem dúvida contribui muito para a compreensão do problema (o primeiro
passo) e sinaliza alguns aspectos e perspectivas que precisam ser ponderados,
para construirmos respostas complexas para problemas complexos como esses.
Enfim, é uma obra imprescindível neste terreno, para ser lida de espírito
livre, exigindo uma profunda reflexão ao final.
Tenho certeza de que irá valer a pena.
17
Apresentação
19
apresentada por Vinicius Vasconcellos, sob o mesmo título, sob a orientação
do Professor Nereu José Giacomolli, com a qual obteve o título de Mestre em
Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul. Mais do que isso, a qualidade da dissertação assegurou o adendo, dos três
examinadores, de aprovação com louvor, não só pelo tratamento profundo
e exauriente dado à matéria, mas, também, pela dificuldade e ousadia em
enfrentar um tema central do processo penal.
Depois disso, tive oportunidade de um contato mais próximo com Vini-
cius, que, para minha felicidade, tornou-se meu orientando no Doutorado do
Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, em que também já se destaca nos debates e nos trabalhos apresentados
nas disciplinas cursadas.
Apresentado o autor, chega-se a sua obra.
O texto parte de uma constatação: tem havido uma inegável expansão dos
mecanismos de consenso no processo penal, e não só no campo das infrações
de menor potencial ofensivo, que foi sua porta de entrada no ordenamento
jurídico brasileiro, por meio da transação penal, mas também agora em re-
lação a todo e qualquer crime, mesmo os de elevada gravidade, por meio da
delação premiada, eufemisticamente chamada de “colaboração processual”.
Para realizar a análise crítica de tal cenário, parte o autor de uma depu-
ração conceitual, definindo os contornos de oportunidade, obrigatoriedade
e consenso. Nesse caminho enfrenta questões relevantes a partir do instituto
da barganha, cujo conceito é claramente demarcado pelo autor, que também
se detém sobre as causas e justificações da barganha no direito estaduniden-
se, e os seus requisitos de voluntariedade, informação e adequação, que são
examinados de forma crítica, com riquíssima bibliografia norte-americana.
O autor não fica, porém, apenas no campo conceitual, lançando-se na
análise do direito positivo, no cenário atual, enfrentando o instituto da transa-
ção penal, mas também a atualíssima “delação premiada”. Estudado o direito
posto, já antecipa os problemas que poderão advir da expansão do processo
penal consensual no Projeto de Novo Código de Processo Penal, em que o
futuro procedimento sumário traz uma verdadeira proposta de introdução de
barganha na justiça criminal brasileira, admitindo acordos envolvendo penas
privativas de liberdade, desde que o crime objeto do processo seja sancionado
com pena que, em seu máximo, não ultrapasse oito anos. Ou seja, barganha-se
a liberdade em troca de uma punição menor. O acusado abre mão de sua
liberdade, para não ser privado de sua liberdade! Ainda que com diminuição
do tempo de pena.
O cuore do trabalho ainda está por vir: a firme tomada de posição no
sentido crítico à chamada justiça negocial e ao instituto da barganha. Para tanto,
o terceiro capítulo traz questões fundamentais, a começar pela expansão do
20
Direito Penal e o suposto empecilho que se torna o devido processo legal em
tal contexto. Especial importância é dada à subversão dos papéis dos sujeitos
processuais, passando pelo desequilíbrio das posições entre quem formula a
proposta e quem a aceita, até mesmo nos casos em que se sabe inocente. Por
fim, analisa-se a supressão do contraditório e a própria usurpação da função
jurisdicional, deixando de ser o juiz quem fundamentalmente decide sobre a
existência do crime, sua autoria e a determinação da pena, em um modelo de
justiça consensual em que a confissão, como manifestação do consenso, passa
a ser a rainha da pena, tal qual no processo inquisitório, era a rainha das provas.
A reflexão crítica trazida na monografia vencedora mostra-se indispen-
sável para os estudiosos e também para os operadores do Direito Penal e Pro-
cessual Penal, em momentos nos quais a aceleração processual e a necessidade
de respostas rápidas – como se Justiça fosse apenas um resultado qualquer,
desde que dado com presteza – têm procurado fazer crer a sociedade que o
respeito ao devido processo penal não passa de um estorvo ao eficientismo
para punir mais, muito mais, mas muito pior.
Ao final da leitura, o leitor terá uma visão não só do processo penal
que temos, mas poderá concluir também (e a tendência atual sinaliza para)
o processo penal que queremos ter, mas, principalmente, saberá qual processo
penal poderemos ter, em um marco do devido processo constitucional, enquan-
to delineador e limitador de um instrumento – o processo – legitimador da
aplicação do poder punitivo estatal.
Por todas essas qualidades, do autor e de seu trabalho, com grande ale-
gria recebi o convite que muito me honrou para apresentar a monografia
vencedora do Concurso de Monografias do IBCCRIM. Um livro que deve
ser lido por quem deseja entender e pensar sobre o processo penal do futuro.
Parabéns ao Vinicius; felicitações ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais;
boa leitura a todos.
Santiago, 27 de julho de 2015.
21
Introdução
23
ou da incriminação de terceiros, visando a facilitar a atividade acusatória ao
afastar o imperativo de comprovação integral dos fatos incriminatórios – a
partir de provas licitamente produzidas pelo acusador público – e a anular a
postura defensiva de resistência à denúncia.
Diante desse panorama, este trabalho pretende desenvolver análise crítica
das tendências de ampliação dos espaços de consenso no processo penal brasi-
leiro, pautadas fundamentalmente por influxos de exemplos estrangeiros, além
de recorrentes propostas legislativas e construções doutrinárias pátrias, que
pretendem introduzir mecanismos de aplicabilidade mais ampla para autori-
zar a imposição de sanções penais antecipadas em procedimentos abreviados
pautados por um reduzido (ou inexistente) espaço de atuação defensiva, em
razão de um suposto consentimento com os termos da pretensão acusatória.
Ou seja, delimitam-se os seguintes problemas: 1) quais as características da
justiça negocial e, especificamente, da barganha?; 2) qual a sua relação com as
tendências de simplificação e diversificação processual, como a previsão do
princípio da oportunidade?; 3) quais as consequências da expansão dos espaços
de consenso às premissas do processo penal democrático?; 4) os acordos entre
acusação e defesa para imposição de sanção penal a partir do reconhecimento
de culpabilidade em troca de benefícios são opções legítimas à justiça penal
de um Estado Democrático de Direito?
Assim, importante apontar que parte-se da hipótese de que a barganha
e os mecanismos negociais em sentido amplo acarretam inevitáveis violações
a premissas fundamentais do processo penal democrático5 – necessariamente
24
concebido como instrumento de limitação do poder punitivo estatal6 – ao
inviabilizar o exercício da defesa, distorcer os papéis dos atores do campo ju-
rídico-penal,7 aumentar exponencialmente a possibilidade de condenações de
inocentes, acarretar punições ilegítimas pelo exercício do direito ao processo,
desvirtuar a presunção de inocência e o contraditório, entre outras críticas
patentes. Ademais, suas justificações apresentam questionável legitimidade ao
fundamentar uma suposta necessidade sistêmica das negociações entre acusa-
ção e defesa, a qual oculta uma instrumentalização funcional simbiótica que
possibilita a indevida dilatação do controle estatal por meio do poder punitivo
em um cenário de expansão do Direito Penal, em que a realização da barganha
seria supostamente limitada e legitimada por requisitos de admissibilidade iluso-
riamente construídos, mas invariavelmente inoperantes na prática transacional.
A barganha, portanto, coloca-se em um panorama mais amplo de dis-
cussões sobre certas premissas do processo penal contemporâneo, em que
25
se questiona, por exemplo, o paradigma da obrigatoriedade da ação pública
com a introdução de espaços de oportunidade, sob o argumento de que a
pretensão dos sistemas penais modernos de fornecer uma resposta estatal
punitiva a todo caso criminal é inviável na concretização prática do modelo
processual. Entretanto, a aceleração procedimental não tem se mostrado su-
ficiente para responder às demandas sociais punitivistas por sanções rápidas,
de modo que a própria noção do devido processo se tornou um entrave
para certos atores jurídicos.8
Configura-se, assim, emblemático momento de tensão no campo jurídi-
co-penal, ao passo que a caracterização ampla de um modelo de justiça cri-
minal negocial – já recorrente em diversos ordenamentos internacionalmente
e alegadamente inevitável no Brasil – expõe a dúvida entre a ocorrência do
“fim do Estado de Direito” ou o desvelamento de um “novo princípio”.9 Ou
seja, o discurso doutrinário acerca da recepção de mecanismos negociais varia
do extremo da caracterização de uma “revolução”, ou “a nova panaceia do
processo penal”,10 até o desvelamento de uma decorrente “crise do processo
penal continental” e de um “golpe mortal ao Estado de Direito liberal”.11 De
qualquer modo, a descrição do cenário é inegável:“o processo de julgamento
completo está em declínio em todos os lugares”;12 o que torna evidente a
importância do estudo crítico do tema aqui proposto.
8
Sobre isso, paradigmática é a manifestação do relator da comissão de redação do projeto de
reforma integral do Código Penal (PLS 236/2012), Luiz Carlos Gonçalves, ao comemorar a
inclusão da “barganha” no texto do relatório final:“Estamos pela primeira vez rompendo com
o devido processo legal. Este instituto é revolucionário”. Entrevista disponível em: <http://
ns2.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=105884>.
Acesso em: 26 mar. 2015. Sobre o referido projeto, ver item 2.3 deste trabalho.
9
“A pergunta que na sua frontalidade desejo colocar é pois a seguinte: devem reputar-se
admissíveis, perante a nossa Constituição processual penal (especialmente minuciosa, como
é reconhecido) e o nosso sistema processual penal ordinário, conversações e acordos sobre a
sentença, destinados a facilitar, a simplificar e consequentemente abreviar o procedimento e
o resultado do processo? É a eficiência funcionalmente orientada, daqui indiscutivelmente
resultante, ainda compatível com o respeito devido aos princípios do Estado de Direito?
Representa ela – como já foi chamada – o ‘adeus ao Estado de Direito’? Ou, pelo contrário,
pode constituir para este ‘um novo princípio’?” (Dias, Jorge de Figueiredo. Acordos sobre a
sentença em processo penal. O “fim” do Estado de Direito ou um novo “princípio”? Porto:
Conselho Distrital do Porto, 2011. p. 28).
10
Teixeira, Carlos Adérito. Princípio da oportunidade. Manifestações em sede processual penal
e sua conformação jurídico-constitucional. Coimbra: Almedina, 2000. p. 25.
11
Schünemann, Bernd. Cuestiones básicas de la estructura y reforma del procedimiento penal
bajo una perspectiva global. Revista de Derecho Penal y Criminología, v. 25, n. 76, p. 175-197,
2004, p. 188; Anitua, Gabriel I. El juicio penal abreviado como una de las reformas penales
de inspiración estadunidense que posibilitan la expansión punitiva. In: Maier, Julio B. J.;
Bovino, Alberto (comps.). El procedimiento abreviado. Buenos Aires: Del Puerto, 2005. p. 142.
12
Damaška, Mirjan. Negotiated justice in international criminal courts. In:Thaman, Stephen.
World plea bargaining. Consensual procedures and the avoidance of the Full Criminal Trial.
26
Em que pese tal marcante tendência, o instituto da barganha e as
consequentes negociações na justiça criminal são intensamente criticados
pela doutrina, inclusive nos países em que sua utilização prática rotineira é
indiscutível, como nos Estados Unidos.13 Aponta-se, inclusive, que as cortes
estadunidenses inicialmente rechaçaram a plea bargaining. Contudo, por meio
de um processo de aceitação gradual, diversas construções teóricas foram
estruturadas para justificar o mecanismo negocial, especialmente em razão
de uma suposta necessidade incontornável para o funcionamento da justiça
criminal contemporânea, que, de modo latente, serve perfeitamente aos in-
teresses dos atores do campo jurídico-penal.
Os dados estatísticos acerca do percentual de condenações criminais que
são obtidas por meio de barganhas (com o reconhecimento da culpabilidade
do acusado) são perturbadores e ameaçadores. No sistema estadunidense, a
plea bargaining é a regra absoluta, ou seja, o seu aclamado modelo acusatório
de júri puro é um mito na realidade prática, embora teoricamente previsto
como direito a todos os cidadãos processados criminalmente.14 Em termos
médios, aponta-se que 90% dos casos de sentença condenatória se funda-
mentam no reconhecimento de culpabilidade (guilty plea), obtido por meio
de acordos entre acusação e defesa e, portanto, sem a necessidade de provas
incriminatórias sólidas e lícitas, além da dúvida razoável.15 Nesse sentido, em
interessantes dados de 2002, verificou-se que no sistema criminal federal
27
estadunidense 73% das investigações resultam em denúncias (ou seja, não são
arquivadas), das quais 89% acabam em condenações, em que 96% se deram
por meio de acordos entre acusação e defesa.16
Em 2013, Dervan e Edkins apontaram a estatística de que quase 97%
das condenações no sistema de justiça federal se dão com base em acordos para
reconhecimento de culpabilidade.17 Em termos mundiais, embora sejam ampla-
mente reconhecidas as inúmeras e relevantes objeções, especialmente em relação
à compatibilização com ordenamentos de origem continental,18 os mecanismos
de barganha estão sendo ou foram implementados nos mais diversos sistemas
jurídicos internacionalmente. Há quem avente, inclusive, a hipótese de uma
“marcha triunfal do modelo processual penal norte-americano sobre o mundo”,19
diante da expansão da plea bargaining pelo território europeu e latino-americano.
Para abordar de modo sistemático esse instigante tema e os problemas a
ele relacionados, este trabalho será dividido em três partes. Inicialmente, no
primeiro capítulo serão definidas as premissas fundamentais ao enfrentamen-
to consistente do objeto proposto. Para tanto, mostra-se basilar esclarecer as
definições dos princípios que envolvem a discussão acerca da justiça criminal
negocial (oportunidade, legalidade, obrigatoriedade e consenso), que em regra
são utilizados de modo confuso pela doutrina brasileira e estrangeira. Desse
modo, no item 1.1, descrever-se-á a problemática que envolve tais conceitos
e inviabiliza a abordagem doutrinária consistente, o que ensejará a proposição
de novas significações a tais princípios. Ao final, adentrar-se-á especificamente
no estudo do instituto da barganha (item 1.2), em que se partirá do exemplo
estadunidense, que, por certo, é o modelo de referência em termos inter-
nacionais, cujo desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial permitirá o
adequado estabelecimento de seus contornos fundamentais. Serão analisados o
seu conceito, as suas justificativas (teorias legitimadoras) e os seus requisitos de
admissibilidade. De modo crítico, desvelar-se-ão as aporias de tais construções,
especialmente a partir do esvaziamento dos argumentos justificadores e da
28
demonstração da inaptidão limitativa dos referidos pressupostos artificialmente
estruturados pela jurisprudência norte-americana.
Então, adentrar-se-á na exposição do panorama brasileiro atual, em que
serão descritos os exemplos de espaços de consenso no processo penal pátrio
hodierno, quais sejam, os mecanismos regulados em âmbito dos Juizados Es-
peciais Criminais – composição civil, transação penal e suspensão condicional
do processo (item 2.1) – e a delação premiada (tópico 2.2), especialmente
a partir da nova regulamentação introduzida pela Lei 12.850/2013. Sem
pretensão de exaustividade, almeja-se estruturar uma análise dos contornos
de tais institutos em seus pontos de contato com as características da justiça
negocial e do princípio da oportunidade, primando-se por apontamentos
úteis ao posterior estudo das suas tendências de expansão. Por fim (2.3),
desenvolver-se-á investigação das propostas legislativas de ampliação dos
espaços consensuais na justiça criminal brasileira, fundamentalmente a partir
da crítica às previsões do procedimento sumário e da barganha, regulados,
respectivamente, nos Projetos de Lei do Senado 156/2009 (reforma integral do
Código de Processo Penal)20 e 236/2012 (reforma integral do Código Penal).
No terceiro e último capítulo deste trabalho, estruturar-se-á lastro teó-
rico sistematizado de críticas à justiça negocial, apontando-se suas insolúveis
aporias violadoras dos preceitos de um processo penal democrático pautado
pelo respeito às regras do devido processo penal. Trata-se de apontamentos
direcionados à concepção da barganha em termos amplos, que se caracteriza
pela conformidade do acusado (em regra, com uma confissão) e pela renúncia
à defesa, o que possibilita a sua aplicabilidade (com pequenas diferenciações
de intensidade) ao cenário brasileiro atual e, especialmente, às propostas de
expansão anteriormente analisadas.
Para tanto, determinar-se-ão seis tópicos de estudo: 1) Expansão do Direito
Penal e o empecilho do devido processo legal, em que se abordará a mercantilização
processual ocasionada pela autorização de acordos entre as partes e a decorrente
relativização de garantias fundamentais, ambos os fenômenos intrinsecamente
relacionados com a instrumentalização do processo penal como meio célere
de concretização antecipada do poder punitivo em resposta às demandas de
uma expansão descomedida da intervenção penal estatal; 2) Barganhas, relações
e concessões, em que se desvelará a distorção dos papéis dos atores do sistema
criminal em razão da primazia de seus interesses pessoais a partir do poder
da barganha, findando por corromper completamente os fundamentos do
processo democrático; 3) O problema dos inocentes e a coercibilidade da proposta,
cuja função será aclarar a pressão inerente à possibilidade de barganha, a qual,
inquestionavelmente, resulta na confissão de inocentes por medo de punições
20
O PLS 156/2009 foi aprovado em sua casa de início e encaminhado à Câmara dos Depu-
tados, onde recebeu o número 8.045/2010.
29
mais severas em caso de utilização do direito ao julgamento; 4) O retrocesso
processual autoritário, no qual será exposta a violação de preceitos fundamen-
tais do processo, como o retorno do tarifamento de provas com primazia da
confissão e a consequente obstaculização integral do exercício da defesa e
do contraditório; 5) O desequilíbrio da balança entre os atores processuais, em que
se fragilizará uma das fundamentais premissas da realização da barganha, a
igualdade entre as partes negociadoras, além de se expor a indevida usurpação
das funções decisórias pelo acusador em razão de seu papel nevrálgico na
determinação da culpabilidade e da pena do imputado; e, 6) O desaparecimento
do processo e da defesa, no qual se problematizará a possibilidade de renúncia ao
direito à defesa e a suposta autonomia de vontade para a efetivação do pacto.
Por fim (tópico 3.2), a partir de descrição empírica da concretização da
justiça negocial no campo jurídico-penal brasileiro contemporâneo por meio
dos mecanismos dos Juizados Especiais Criminais, apresentar-se-ão traços da
realização prática das críticas anteriormente expostas, de modo a desvelar as
problemáticas fundamentais dos acordos entre acusação e defesa no panorama
nacional. Desse modo, verificar-se-á a hipótese de que, em razão das carac-
terísticas específicas do cenário brasileiro (como as marcantes seletividade e
desigualdade reproduzidas pelo poder punitivo estatal), a concretização de
eventuais expansões aos espaços de consenso acarretará aporias intensificadas
e, assim, graves violações a direitos e garantias fundamentais do processo penal
de um Estado Democrático de Direito.
30
Barganha e justiça criminal negocial:
2ª EDIÇÃO
Apresenta-se uma análise crítica das tendências de expan-
são dos espaços de consenso na justiça criminal brasileira,
fundamentalmente a partir da introdução de mecanismos
negociais, como o instituto da barganha, que, em termos
amplos, possibilita a concretização antecipada do poder pu- Nesta 2ª edição realizou-se uma am-
nitivo por meio do reconhecimento de culpabilidade con- pla revisão e atualização do texto,
sentido do acusado em troca, geralmente, do benefício de especialmente em relação às tendên-
redução em sua sanção penal. cias atuais de expansão dos espaços
Trata-se de forte inclinação no cenário internacional, que se de consenso no processo penal bra-
pauta cada vez mais pelo debatido objetivo de aceleração sileiro. Também foram introduzidas
procedimental. Após a definição introdutória dos contornos novas referências bibliográficas, al-
Barganha
das ideias de oportunidade, obrigatoriedade e consenso, de- gumas das quais com réplicas a crí-
VINICIUS GOMES DE linear-se-ão as principais características da barganha, espe- ticas e questionamentos opostos a
VASCONCELLOS cialmente a partir do marcante exemplo estadunidense. ideias sustentadas na 1ª edição deste
Serão estudadas as possibilidades de consenso no cenário livro. Além disso, deve-se ressaltar:
Pós-doutorando em Direito pela Univer- brasileiro atual. Em seguida, analisar-se-ão as propostas le- inclusão do item 1.1.4 sobre “A jus-
sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Doutor em Direito pela Universidade de gislativas atualmente em discussão em âmbito nacional. Por tiça consensual entre os mecanismos
São Paulo (USP), com período de san-
duíche (PDSE/Capes) na Universidad
Complutense de Madrid (ESP). Mestre
fim, estruturar-se-ão críticas à justiça negocial e ao instituto da
barganha, desvelando suas incontornáveis aporias e inconsis- e justiça criminal negocial: de diversificação e de aceleração
processual”; adição do item 1.2.4
tências, que acarretam violações a premissas fundamentais do sobre “Espécies de barganha: sobre
em Ciências Criminais pela Pontifícia Uni-
análise das tendências de expansão dos espaços