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http://dx.doi.org/10.12957/tamoios.2014.13077
Resumo O presente trabalho tem como propósito recuperar a trajetória da questão habitacional
no Brasil, a partir da apresentação das principais intervenções realizadas pelo Estado,
com destaque para o Programa Minha Casa Minha Vida. O que se observa, ao longo do
tempo, é que diante da inconsistência e das distorções das políticas públicas no campo
habitacional, os segmentos sociais subalternizados e as classes trabalhadoras
subassalariadas providenciaram a partir de seus próprios meios as estratégias que
tornaram possível sua permanência na cidade, ainda que em condições de acentuada
precarização e de vulnerabilidade da moradia.
Abstract This paper aims to recover the trajectory of the housing issue in Brazil, from the
presentation of the main interventions by the state, highlighting the Minha Casa Minha
Vida Program. What is observed, over time, is that, given the inconsistency and
distortions of public policies on housing, what can be observed is that the social strata
represented by the urban poor had to develop strategies to remain in the city, even in
severe conditions of precariousness and vulnerability housing.
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Marcos Henrique Aguiar
INTRODUÇÃO
Existe um amplo consenso entre as inúmeras análises que tratam da questão da moradia no
Brasil de que as intervenções do Estado no setor habitacional não produziram resultados satisfatórios
no sentido de atender a crescente demanda decorrente do processo de urbanização vivido pelo país.
Fora a questão do não atendimento da demanda propriamente dita, relacionada ao acréscimo
insuficiente de novas unidades, considera-se que a urbanização brasileira gerou efeitos profundamente
seletivos no que diz respeito ao acesso aos benefícios urbanos - espacialmente concentrados - pelos
distintos segmentos sociais.
Desde o momento a partir do qual se pode falar da emergência de uma questão habitacional no
Brasil – talvez por volta do final do século XIX – aos segmentos sociais representados pelos
trabalhadores assalariados urbanos sempre recaiu a insegurança no que diz respeito ao acesso à
moradia.
Algumas das mais importantes intervenções do Estado brasileiro no setor habitacional anteriores
à Constituição Federal de 1988 (Institutos de Aposentadorias e Pensões-IAPs, 1937-1964; Fundação
da Casa Popular-FCP, 1946-1964; Banco Nacional da Habitação-BNH, 1964-1986) por diversas
razões, não produziram os resultados esperados de integração dos estratos sociais mais pobres na
esfera do direito à moradia.
De qualquer forma, o que se pode depreender da longa trajetória e da persistência da
problemática da moradia no Brasil é que a produção dos espaços de moradia subalternizados das
cidades brasileiras, representados pelos cortiços, favelas e loteamentos periféricos está associada às
ações/omissão do Estado e à dinâmica de funcionamento do mercado imobiliário. De fato, em grande
medida, foram os grupos sociais excluídos que se encarregaram através de suas próprias ações, de
produzir boa parte da cidade.
O Programa Minha Casa Minha Vida-PMCMV (Lei 11.977 de 7 de julho de 2009)¹ embora se
insira num novo contexto político, marcado pela emergência de um novo arcabouço jurídico-
institucional² - cujo ponto de partida é a Constituição Federal de 1988 – tem apontado, considerando o
caso do Rio de Janeiro, para uma tendência de reprodução e/ou expansão das áreas periféricas urbanas.
O referido Programa em sua modalidade de mercado é operacionalizado a partir de uma lógica
comandada pelas empresas privadas do setor imobiliário, o que tem deixado pouca margem de decisão
e de influência ao poder público quanto aos rumos da implantação dos empreendimentos.
Do ponto de vista metodológico, o presente trabalho apoia-se na literatura especializada na
discussão e análise da temática urbana e na consulta às fontes documentais de órgãos públicos
vinculados à questão urbana e habitacional, particularmente o Ministério das Cidades. Embora no
presente trabalho sejam mencionadas as três faixas de atendimento conforme definição da Lei que
institui o PMCMV, procuramos manter o foco da presente análise na chamada faixa 1 do Programa,
destinada ao atendimento às famílias com renda de até R$1.600,00 (mil e seiscentos reais)³. Essa
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escolha se justifica em virtude do fato do déficit habitacional brasileiro se concentrar justamente nos
segmentos sociais de baixa renda (Fundação João Pinheiro, 2008), incapazes de acessar o bem
moradia pela via do mercado.
A questão relacionada ao déficit e à qualidade das moradias destinadas à população urbana mais
pobre já é bastante antiga. Se retrocedermos no tempo e considerarmos, a título de exemplo, o Rio de
Janeiro e São Paulo, a questão da moradia popular emerge a partir da segunda metade do século XIX,
devido ao acentuado crescimento populacional nessas cidades. Referindo-se a São Paulo, Bonduki
(2004) afirma que surgiram nesta cidade, várias modalidades de produção da moradia destinadas aos
setores de média e baixa renda, organizadas pelos agentes privados num contexto onde vigorava uma
concepção liberal do Estado, vigente até 19304.
Dentre essas modalidades, as casas de vilas e avenidas, mais higiênicas e confortáveis, eram
inacessíveis aos trabalhadores mais pobres, lhes restando os cortiços, construções que, devido ao
processo de adensamento tornaram-se insalubres e deterioradas. Pelo menos até as décadas iniciais do
século XX, essas eram ainda as tipologias predominantes de moradia, enquadradas dentro do chamado
sistema rentista, de mercado, modalidade que se estende aproximadamente até o início da Era Vargas,
ocasião em que o Estado toma para si a responsabilidade pelo provimento habitacional da classe
trabalhadora, através da criação das carteiras dos Institutos de Aposentadorias e Pensões-IAPs5.
É importante ressaltar que embora a década de 30 inaugure um período de intervenção do
Estado na produção habitacional numa escala mais ampla através dos IAPs, autores como Oliveira e
Fernandes (2010), consideram como experiência realmente pioneira na produção da moradia social, o
projeto idealizado pelo presidente Marechal Hermes da Fonseca no início do século XX. Tratava-se de
uma grande vila operária situada no subúrbio de Marechal Hermes na cidade do Rio de Janeiro, dotada
de infraestrutura completa, serviços e equipamentos urbanos, inaugurada em 1º de maio de 1914
(OLIVEIRA e FERNANDES, 2010, p. 75). Após essa primeira intervenção estatal, somente no final
dos anos 30 é retomada a política de habitação social, através da instituição das carteiras prediais dos
Institutos de Aposentadoria e Pensões.
Dos primórdios da industrialização brasileira até os anos 30, além da produção rentista, a
demanda por novas moradias pôde ser também atendida por iniciativa das próprias empresas
industriais por meio da construção de vilas operárias, solução viável enquanto se manteve
relativamente reduzido o contingente de trabalhadores urbanos. Entretanto, na medida em que se
intensificou o processo de industrialização e de urbanização, as empresas privadas passaram a
transferir para os trabalhadores os custos relacionados à moradia e às despesas de transporte. Surge
então no cenário urbano aquilo que, segundo Kowarick (1979), passou a ser designado de periferias,
aglomerados afastados das áreas mais centrais, desprovidos de infraestrutura, locais de moradia de
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assentamentos urbanos construídos pela própria classe trabalhadora. É principalmente por meio da
autoconstrução que a população urbana mais pobre soluciona seu problema de moradia – e não através
dos programas e políticas habitacionais oficiais – destinando tempo seja nas horas de folga e mesmo
nos finais de semana, num processo que pode se arrastar por muitos anos (MARICATO, 1982, p. 73).
Mesmo uma experiência de intervenção pública de grande porte, como foi o caso da atuação do
Banco Nacional de Habitação-BNH, não foi capaz de equacionar de forma adequada as necessidades
habitacionais no país. Durante a vigência do Sistema Financeiro da Habitação, o Estado promoveu a
produção de uma quantidade nada desprezível de moradias. Entre 1964 e 1986, ano em que o BNH foi
extinto, o Estado promoveu o financiamento de aproximadamente quatro milhões de moradias por
meio do Sistema Financeiro da Habitação-SFH, expressando uma notável capacidade de intervenção
no espaço urbano. Embora não se desconsidere a persistência do déficit habitacional, o governo
federal instituiu um conjunto de mecanismos institucionais e financeiros que tornaram possível a
produção em larga escala de moradias destinadas à população de baixa renda (ARRETCHE, 2000).
Entretanto, os dilemas e impasses relacionados à questão da moradia popular são reforçados a
partir da criação do SFH, uma vez que seu formato institucional direcionava seus investimentos
principalmente para as classes médias, à custa dos juros subsidiados do Fundo de Garantia por Tempo
de Serviço-FGTS. Do total dos recursos do FGTS disponibilizados para o financiamento de novas
moradias até o final da década de 80, cerca de 65% foram destinados ao atendimento das camadas de
renda média e alta (AZEVEDO e ANDRADE, 1982).
Assim, ao focalizar suas prioridades sobre os estratos de renda mais elevada, que representavam
uma demanda efetiva para os imóveis produzidos, o BNH promoveu um grande crescimento
imobiliário, que acabou por gerar efeitos multiplicadores bastante relevantes. No entanto, devido às
limitações salariais, o financiamento às camadas mais pobres mostrou-se mais problemático, ao
mesmo tempo em que gerou elevada inadimplência entre os setores que tiveram acesso ao
financiamento. A falta de subsídios combinada ao arrocho salarial, diante do preço elevado da moradia
e do imperativo de correção real dos débitos, são elementos responsáveis pela ineficácia do BNH, e
que contribuíram para a expansão da favelização e das periferias urbanas (AZEVEDO, 1988;
CARDOSO, 2003).
Nesse sentido, o desempenho da política de habitação empreendida pelo BNH evidencia que o
que realmente prevaleceu foi o privilegiamento da rentabilidade do sistema, em detrimento dos
objetivos sociais. Provavelmente a crítica central a ser feita à atuação do BNH como órgão formulador
e condutor da política urbana e habitacional no Brasil, foi sua incapacidade de atender a população de
baixa renda, objetivo que justificou sua criação.
Mais dois aspectos da atuação do BNH merecem observação, considerando seu papel como
órgão central da política de desenvolvimento urbano no país. O primeiro refere-se a não adoção de
mecanismos capazes de conter o aumento dos preços dos terrenos urbanos como consequência do
aumento da sua demanda para fins de produção habitacional, o que acabou por influenciar o padrão de
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localização dos conjuntos habitacionais, normalmente mais distante e periférico (ROLNIK et alii,
2013). O segundo aspecto, que seria inerente à própria concepção de operacionalização do BNH, diz
respeito às concessões feitas pelo Banco aos agentes privados, como por exemplo, o repasse dos
recursos financeiros (FGTS) e a transferência das decisões referentes à localização e a construção das
moradias (BOLAFFI 1982).
Acreditamos que algumas das características presentes no modelo de política do BNH estejam
identificadas no Programa Minha Casa Minha Vida em sua modalidade de mercado, conforme vemos
a seguir.
Após a extinção do BNH em 1986 e a transferência de suas atribuições para a Caixa Econômica
Federal, a política habitacional e urbana no Brasil passaria por um longo período de indefinição.
Somente a partir da Constituição Federal de 1988, emerge um novo arranjo institucional e jurídico
mais favorável e um novo modelo de política urbana, fruto da mobilização social que antecedeu e
sucedeu o processo constituinte, referenciada no ideário da reforma urbana (SANTOS JUNIOR,
1995).
Consideramos que a Constituição Federal 1988 representa de fato um momento de inflexão em
relação à política habitacional e de desenvolvimento urbano, na medida em que incorpora no âmbito
da lei boa parte da agenda reivindicatória dos movimentos sociais em torno do direito à cidade. Um
dos desdobramentos mais importantes da pressão popular foi a aprovação do Estatuto da Cidade (Lei
10.257 de 10 de julho de 2001), que estabeleceu os instrumentos de regulamentação do uso do solo
urbano, e a definição da função social da cidade e da propriedade urbana.
Com a criação do Ministério das Cidades em 2003 se redefine a política nacional de
desenvolvimento urbano, buscando inclusive preencher o vazio institucional deixado desde a extinção
do SFH/BNH. Referenciado nos princípios e nos instrumentos do Estatuto da Cidade, o Mcidades
procurou consolidar um novo formato institucional no campo da política urbana condizente com as
reivindicações históricas dos movimentos sociais defensores do ideário da reforma urbana.
Pode-se mesmo dizer que em ultima instância o Programa Minha Casa Minha Vida é herdeiro
de uma nova concepção de política habitacional, uma vez que a sua formulação e seu lançamento se
encontram, de alguma forma, referenciados nessa nova conjuntura político-institucional, conforme já
referida. No entanto, a despeito dos avanços jurídicos e institucionais alcançados, caberia indagar em
que medida tem se avançado efetivamente na produção de um modelo de cidade que seja menos
segregador e excludente, conforme reconhecimento do próprio Ministério das Cidades (CADERNOS
MCIDADES, 2004).
O Programa Minha Casa Minha Vida6, lançado em 2009 sob o argumento de equacionar o
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no Estatuto que permitem, por exemplo, a identificação nos planos diretores de terrenos em áreas
urbanas centralizadas e infraestruturadas destinadas aos programas de habitação de interesse social.
No entanto, certamente questões de ordem política, em virtude dos interesses privados envolvidos,
dificultam a adoção de mecanismos capazes de impor limites aos processos de acumulação urbana,
historicamente arraigados no Brasil.
O processo de valorização do solo urbano e a apropriação das rendas fundiárias têm implicações
diretas no processo de estruturação da cidade e de distribuição da população no espaço urbano. Paul
Singer (1982) afirma que a renda fundiária nada mais é do que o preço cobrado pelo acesso a um bem
que é condição para a realização das atividades urbanas. Porém, seja para fins de uso econômico, seja
para fins de uso residencial, o fator solo/localização torna-se objeto de disputa entre os diversos
agentes atuantes no espaço urbano. A formação dos preços de cada parcela da terra urbana tem,
portanto como ponto de partida a localização e sua posição relativa à totalidade do espaço urbano
(CARLOS, 2009).
Obviamente os agentes econômicos e os segmentos sociais mais influentes têm maior
capacidade de impor seus interesses em relação à acessibilidade e consequentemente aos benefícios
urbanos - muitas vezes providenciados pelo Estado - quando comparados à população urbana mais
pobre. Daí a importância de se aplicar os instrumentos de regulação urbana, boa parte deles já inscrita
nos Planos Diretores Municipais, necessitando apenas de regulamentação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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NOTAS
1-O Programa Minha Casa, Minha Vida tem por finalidade estabelecer mecanismos de incentivo à
produção e aquisição de novas unidades habitacionais ou requalificação de imóveis urbanos e rurais,
direcionadas à famílias com renda mensal de até R$ 4.650,00 (quatro mil, seiscentos e cinquenta
reais), compreendendo subprogramas seguintes: o Programa Nacional de Habitação Urbana – PNHU
e o Programa Nacional de Habitação Rural – PNHR. Ver: Lei 11.977 de 7 de julho de 2009, Art. 1º
2- Aqui merece destaque a aprovação da Emenda Constitucional nº26/2000, que reconhece o direito à
moradia; a aprovação da Lei nº 10.257/2001, que regulamenta o capítulo da política urbana; a criação
do Ministério das Cidades em 2003 e a aprovação da Lei nº 11.124/2005 que institui o Sistema
Nacional de Habitação de Interesse Social-SNHIS e cria o Fundo Nacional de Habitação de Interesse
Social-FNHIS. Ver: AGUIAR, M. H. de. O Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social:
Avanços e limites na perspectiva da reforma urbana. Rio de Janeiro: UFRJ/IPPUR. Série Estudos e
Debates, nº 8, novembro, 2008, p. 24-27).
3- De acordo a Lei que institui o Programa Minha Casa Minha Vida, três faixas de atendimento ou de
mercado devem ser contempladas na aquisição das unidades produzidas, prevendo-se níveis
diferenciados de concessão de subsídios segundo a faixa de renda dos beneficiários. Considera-se
como prioritária a faixa 1 do Programa, destinada ao atendimento dos beneficiários cuja renda familiar
não ultrapasse R$ 1.395,00 (três salários mínimos) faixa esta contemplada com subsídios praticamente
integrais. Ver: Lei 11.977 de 7 de julho de 2009.
4- Dentre essas formas de moradia produzidas pelo capital privado, o autor destaca o cortiço-corredor,
o cortiço-casa de cômodos, os vários tipos de vilas e as casas geminadas. Para maiores detalhes, ver:
BONDUKI, N. Origens da habitação social no Brasil: Arquitetura moderna, lei do inquilinato e
difusão da casa própria. São Paulo: Estação Liberdade, 2004, p. 43).
5- A principal crítica a ser feita aos IAPs, espécie de sistema rentista estatal, reside no seu caráter
essencialmente corporativista, uma vez que o acesso ao imóvel financiado estava restrito aos
trabalhadores vinculados ao sistema de previdência social de categorias profissionais específicas ver:
BONDUKI, N. Origens da habitação social no Brasil: Arquitetura moderna, lei do inquilinato e
difusão da casa própria. São Paulo: Estação Liberdade, 2004, p. 109).
6- O Programa Minha Casa Minha Vida contempla duas modalidades de promoção da habitação de
interesse social: a promoção realizada pelas empresas construtoras, modelo de mercado claramente
dominante e a promoção realizada pelas cooperativas e entidades sem fins lucrativos através do
modelo de autogestão. Ver: FIX, M.; ARANTES, P.F. Como o governo Lula pretende resolver o
problema da habitação. Jurdiaí: Human Rights in Brazil, 2009, p. 2.
7- O conceito de déficit habitacional refere-se tanto ao quantitativo de moradias que necessitam ser
repostas em virtude da depreciação do estoque (déficit por reposição de estoque) quanto daquelas que
precisam ser construídas em função de componentes como a coabitação familiar, o peso excessivo do
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