BRACHT, VALTER. Educação Física e Aprendizagem Social
BRACHT, VALTER. Educação Física e Aprendizagem Social
BRACHT, VALTER. Educação Física e Aprendizagem Social
O AUTOR
Treinamento Desportivo.
Ingressou na Universidade
Estadual de Maringá, onde atua ain-
da hoje como docente da disciplina
de Fundamentos da Educação Físi-
ca, no curso de Graduação em Edu-
cação Física.
EDUCAÇÃO FÍSICA
E
APRENDIZAGEM SOCIAL
2ª EDIÇÃO
CartaPrefácio.........................................................................................................9
Prefácio à 2a edição..............................................................................................10
Introdução............................................................................................................ 11
PARTEI
Em torno da Autonomia e da Legitimidade da Educação Física.........................13
ISBN 8585275057
Capítulo I
1. Educação Física: a busca da autonomia pedagógica.......................................15
1.1 ................. 15
Introdução....................................................................................
1.2 Instrumento teórico da análise.......................................................................18
1.3 Educação Física Instituição Militar Instituição Esporte...........................19
1.4 A busca de um referencial teórico.................................................................24
Capítulo II
2. Educação Física: a busca da legitimação pedagógica.....................................33
2.1 Introdução......................................................................................................33
2.2 Excurso acerca da pergunta“o queé Educação Física?”
...........................34
LIVRARIA E EDITORA MAGISTER LTDA. 2.3 Crise e legitimação........................................................................................ 36
AV. WENCESLAU ESCOBAR, 2667/204 2.4 Os modelos delegitimação da Educação Física.................
...........................36
FONE (051) 249-5054
PORTO ALEGRE - RS - BRASIL 2.5 A produção do conhecimento nae para a Educação Física..........................37
EDITOR
JOSÉ PEREIRA RODRIGUES ......................42
2.6 A crítica e a superação dosmodelos de legitimação vigentes
PARTE II
Aprendizagem social na Educação Física............................................................55
Decorridos quase cinco anos desde sua 1a edição, cabe ressaltar o Conhecemonos em 1984, por ocasião da II Semana de Educação
fato do livro ter sido editado, em 1996, também em língua espanhola no país Física promovida pela UEM. Desde então, tenho acompanhado com muito
vizinho, a Argentina (Editorial Vellez Sarsfield). É importante frisar, tam- carinho a sua carreira e a sua militância. Tenho certeza de que o sucesso
bém, que decidimos manter a versão srcinal por entendermos que as ques- deveuse ao fato de você não desarticular Educação Física e Sociedade. E
tões aqui discutidas não foram esgotadas, ou seja, continuam a oferecer ele- mais. Pensar, não qualquer Educação Física em uma sociedade qualquer.
mentos importantes para a discussão pedagógica da Educação Física. Pensar, sim, esta Educação Física nesta sociedade.
Foi e continua sendo nossa expectativa, a de contribuir para o debate Nesta sociedade onde 45% de todos bens produzidos coletivamente
em torno de uma teoria da Educação Física, que encare esta como uma prá- estão nas mãos de 1% de proprietários. Onde as empresas multinacionais
tica pedagógica; reitero o convite aos colegas para participar deste projeto. detêm quase o dobro das terras dos nossos lavradores. Só faltava, mesmo,
ganhar uma medalha na competição da miséria. Não falta mais. Somos me-
dalha de bronze, de acordo com o Banco Mundial. Será que a Educação
Vitória (ES), julho/l997 Física não tem nada a ver com isso? Amigo Valter, você bem sabe que omis-
Valter Bracht são identificase com cumplicidade. Você não se omite e daí a sua importância.
*Vitor
Valter Bracht
EM TORNO DA AUTONOMIA E DA
LEGITIMIDADE DA EDUCAÇÃO FÍSICA
Educação Física: a busca da autonomia pedagógica 15
CAPÍTULO I
Educação Física: a busca da autonomia pedagógica
1.1 Introdução
2 Poderia aqui ser contraargumentado que o termo Educação Físicaé tão adequa-
do quanto o de cultura corporal para designar o conjunto das atividades corporais
de movimento. O inconveniente, a meu ver, é que teríamos que substituir o termo
Educação Física no seu sentido restrito, já que me parece urgente eliminar a am-
bigüidade. Por outro lado, não gostaria de adentrar aqui na questão da im-
propriedade do próprio termo Educação Física, que seria, na opinião de Sérgio
(1986, p. 24), com vantagens substituído por Educação Motora, devido ao maior
peso e densidade ontológica deste.
L
16 Educação Física e Aprendizagem Social Educação Física: a busca da autonomia pedagógica 17
Em parte, a confusão se deve ao fato do profissional denominado digo que denuncia seu condicionamento histórico, expressam/comunicam
Professor de Educação Física ou Licenciado em Educação Física (3), re- um sentido, incorporamse a um contexto que lhes confere sentido (5).
querer para si o direito de atuação profissional com todas as atividades cor-
porais de movimento da Educação Física, passando pelo esporte, pela Por exemplo, os movimentos na forma de exercícios ginásticos, de
dança, até a ginástica de academia. Essas atividades estavam desde logo corridas, etc., que incorporam os programas de preparação militar no inte-
presentes nos currículos de formação de professores de Educação Física no rior desta instituição, expressam e possuem um sentido, um determinado
Brasil, donde a célebre afirmação de que o esporte, a dança, os jogos a código que só pode ser apreendido, se considerados o sentido e os códigos
ginástica, etc., são os meios da Educação Física até aí nada de mais, que vigoram na própria instituição militar como um todo. Isto é, o movi-
derivandose daí a falsa conclusão de que o termo Educação Física seria mento corporal, na forma de ginástica, foi aí instrumentalizado.
mais “abrangente” do que os de Esporte, Ginástica (recreação [4]), etc.,
porque os compreendia. Neste escrito, portanto, a expressão Educação Físi- Se analisarmos, através da literatura específica, a forma cultural do
ca será utilizada no seu sentido restrito, definido acima. movimento corporal que tem sido objeto da Educação Física no Brasil, ve-
remos que inicialmente (pelo menos até a década de 40 deste século), havia
O tema Educação Física, como mencionado anteriormente, é o movi- o predomínio do exercício ginástico principalmente o de orientação mili-
mento corporal — é o que confere especificidade à Educação Física no inte- tarista que, a partir de então, cede lugar progressivamente ao movimento
rior da Escola. Mas o movimento corporal ou movimento humano que é seu na forma cultural de esporte. É lógico que outras expressões da cultura corpo-
tema, não é qualquer movimento, não é todo movimento. É o movimento ral ou de movimento, estiveram/estão presentes ou são tematizados na Educa-
humano
rido pelocom determinado
contexto significado/sentido,
históricocultural. que por
O movimento quesua vez, lhe
é tema é confe-
da Educação ção Física,
to, que como
essas a dança,constituem
expressões jogos e brincadeiras
minoria, e populares. Pareceme,
que podemos falar danoginástica
entan-
Física é o que se apresenta na forma de jogos, de exercícios ginásticos, de e posteriormente de esporte, como as atividades, nos respectivos momentos
esporte, de dança, etc. Esses movimentos não são propriedade exclusiva históricos, que se apresentam como hegemônicos na Educação Física.
desta área ou desta prática pedagógica, muito pelo contrário, a Educação
Física apoderouse em maior ou menor grau (ou foi ela que foi instrumenta- Por outro lado, a Educação Física, em se realizando na instituição
lizada?) dessas atividades corporais, pedagogizandoas (ou pretendendo pe educacional, presumese, assume o estatuto de atividade pedagógica e como
dagogizálas). Estas atividades, como disse, possuem um determinado có tal, incorporase aos códigos e funções da própria escola. Assim sendo, pa-
receme que a Educação Física, no Brasil, vai desenvolver sua identidade
(?), seus códigos, a partir da relação que estabeleceu/estabelece com um
meio ambiente que compreende, fundamentalmente, a instituição escola, a
instituição militar e a instituição esporte. E é neste conjunto de relações que
buscaremos, inicialmente, as bases para a discussão de dois pontos que nor-
tearão nossas reflexões daqui por diante:
3 É interessante notar que, em 1939, foi criada, integrando a Universidade do Bra-
sil, a Escola Nacional de Educação Física e Desportos, cujos egressos recebiam, a) O grau de autonomia pedagógica (identidade da Educação Física)
no entanto, o título de Professor de Educação Física (Marinho, 1984, p. 220). alcançada na sua relação com as instituições referidas acima;
4 O entendimento da recreação como uma forma específica de atividade que pu-
desse figurar ao lado da ginástica, do esporte, etc., foi apenas recentemente des
mistificado por RL. Moro, num artigo recomendável: Redimensionando a Recre 5 Não existe um salto em distância que seja em si capitalista e um que seja em si
acão em Educação Física. In: Comunidade Esportiva, nov./dez. 1986, n. 40. p. 2 socialista. Somente sua contextualização permitirá identificar possíveis sentidos
7. significados diferentes nesta ação.
18 Educação Física e Aprendizagem Social
Educação Física: a busca da autonomia pedagógica 19
6 Um dos mais importanies defensores desta teoria é o sociólogo alemão Niklas 9 É importante frisar que a questão que perseguimos é menos a de se a Educação
LUHMANN (1970). Para uma crítica a Luhmann ver HABERMAS (1983). Física constitui um sistema diferenciado no sentido da teoria dos sistemas, e sim,
que grau de autonomia pedagógica ela alcançou, as perspectivas de desenvolvi-
7 A respeito ver SCHIMANK (1987). mento de tal autonomia, bem como as influências que sofre na formação de sim
identidade.
20 Educação Física e Aprendizagem Social Educação Física: a busca da autonomia pedagógica 21
séculos XVIII e XIX. Foram inicialmente os Filantropos como Guths Mu atribuída pelo instrutor. A socialização do instrutor, ou seja, o processo pelo
ths (17591839) e Pestalozzi (17461827), que buscaram introduzir as ati- qual o sujeito assumia o papel de instrutor de ginástica consistia, fundamen-
vidades corporais no currículo escolar. No entanto, a influência destes pe- talmente, num treinamento no interior da instituição militar ou numa Escola
dagogos na Educação Física brasileira é claramente superada pelos chama- de Educação Física militar.
dos métodos ginásticos, como o desenvolvido por P.H. Ling na Suécia, ou o
Regulamento Geral da Educação Física conhecido no Brasil como método Poderíamos ainda analisar, por exemplo, a característica do fenotipo
francês. Uma outra característica marcante da Educação Física brasileira típico para o instrutor de ginástica, as habilidades técnicas necessárias, a
tem sido a influência da instituição militar em seu desenvolvimento. Assim, relação entre instrutor e aluno. Pareceme no entanto claro que, a nível da
os métodos inicialmente adotados foram, viaderegra, os adotados pela ins- caracterização dos papéis, fica explícita a transferência mecânica dos códi-
tituição militar, como foi o caso do já citado método francês (10). gos da formação física militar para a Educação Física.
Mas não somente os métodos ginásticos de inspiração militar foram, A pergunta é se neste quadro acabou sendo desenvolvido algo como
principalmente nas quatro primeiras décadas de nosso século, levadas à es- uma ação teóricoprática que propiciasse a recepção crítica da influência
cola, como também os próprios instrutores ou “aplicadores” dos métodos. militar, do papel atribuído à escola e à Educação Física pelos interesses
Ora, a preparação militar inclui historicamente a exercitação corporal com dominantes. Tudo indica que não, ou seja, a Educação Física não desenvol-
o objetivo do desenvolvimento da aptidão física e do que se convencionou veu a este tempo, um corpo de conhecimentos que a diferenciasse funda-
chamar de “formação do caráter” autodisciplina, hábitos higiênicos, ca- mentalmente da instrução física militar. A Educação Física não é ela mes-
pacidade de suportar a dor, coragem, respeito à hierarquia. ma;eem
de o maior ou menor grau ela
seu desenvolvimento são étotalmente
a instruçãodeterminados
física militar.a Apartir
sua identida-
de fora.
O importante a ressaltar é que a instituição escola, neste caso, é mais Seu entendimento como atividade eminentemente prática colabora também
ou menos palco de uma ação “pedagógica“ que se legitimava a partir de sua para impedir a reflexão teórica em seu interior. A figura do professor, ou seja, o
presumível contribuição para a saúde, ou seja, com função higiênica (inici- sujeito que poderia desempenhar tal tarefa, também não está ainda presente.
almente com um conceito anatômico e posteriormente anátomofisiológico),
e formação do caráter, e o seu conteúdo baseado fundamentalmente na exer- A "desmilitarização” da Educação Física brasileira dá os seus primeiros
citação corporal através de exercícios analíticos, corridas, saltos, etc. Isto é, passos c om a criação das primeiras escolas civis de formação de professores no
assume, através do conteúdo e da forma como ele é apresentado, através das final da década de 30 e início da de 40. Vale observar, para evitar equívocos,
características dos papéis desempenhados pelos instrutores e alunos, os có- que tal desmilitarização não alcançou em nossos dias o nível desejável tanto na
digos/símbolos/linguagem/sentido da instituição militar. O que aliás, em li- Educação Física quanto ao nível da sociedade em geral (11).
nhas gerais, não estava em dissonância com o projeto da ditadura do Estado
Novo (ver ALMEIDA CABRAL, 1987), e portanto, com o papel atribuído Após a II Guerra Mundial, que coincide a grosso modo com o fim da
à Escola naquele período da história do Brasil. ditadura do Estado Novo, a influência do esporte cresce rapidamente. Tam-
bém temos a influência neste período, do Método Natural Austríaco, desen-
Analisemos ainda um pouco as características dos papéis dos dois volvido por Gaulhofer e Streicher na Áustria e do Método da Educação
principais sujeitos envolvidos nesta atividade: o instrutor e o aluno. As fun- Física Desportiva Generalizada, divulgado no Brasil pelo Prof. Augusto
ções atribuídas ao instrutor eram as de apresentar os exercícios, dirigir, a Listello. Mas, como observado em outro momento, pareceme possível re-
manter a ordem e a disciplina. Ao aluno competia repetir e cumprir a tarefa
10 Ver a respeito MARINHO (1980). 11 A respeito ver FARIA JR (1987) e BRIGAGÃO (1985).
22 Educação Física e Aprendizagem Social Educação Física: a busca da autonomia pedagógica 23
nunciar à análise da influência destes dois métodos em favor da influência dizado e nas précondições fisiológicas e neuromotoras para a prática de
do esporte ou da instituição esporte. determinado esporte. Estas estratégias são trazidas para a escola com funda-
mentalmente uma única adaptação, qual seja, a divisão do processo em fun-
O esporte sofre, no período do pósguerra, um grande desenvolvimento ção dos tempos escolares e dos graus de ensino.
quantitativo. Afirmase paulatinamente em todos os países sob a influência da
cultura européia, como o elemento hegemônico da cultura de movimento. No Os papéis do agora professor de Educação Física e do educando como
Brasil as condições para o desenvolvimento do esporte, quais sejam, o desen- se apresentam? Os papéis desses sujeitos também não são diferenciáveis
volvimento industrial com a conseqüente urbanização da população e dos nos seus aspectos fundamentais dos de treinador e de atleta na instituição
meios de comunicação de massa, estavam agora, mais do que antes, presen- esportiva. Isto é, passouse do professorinstrutor e o de alunorecruta para
tes. Outro aspecto importante é a progressiva esportivização de outros elemen- o de professortreinador e de alunoatleta. A diferenciação entre o “bom”
tos da cultura de movimento, sejam elas vindas do exterior, como o judô ou o treinador e o “bom” professor não é possível. A socialização do professor é
karate, ou genuinamente brasileiras como a capoeira (ver JORGE, 1980). marcada pela atividade esportiva. Os próprios professores dos cursos supe-
riores de Educação Física, que, aliás, possuem um currículo predominante-
Mais uma vez a Educação Física assume os códigos de uma outra mente esportivo, foram e são contratados em função do seu desempenho no
instituição, e, de tal forma, que temos então, não o esporte da escola, e sim mundo esportivo. A conservação da divisão de turmas para as aulas de Edu-
o esporte na Escola, o que indica sua subordinação aos códigos/sentido da cação Física por sexo (M e F) é também, em parte, um reflexo da divisão
instituição esportiva. O esporte na escola é um braço prolongado da própria existente na instituição esportiva, pelo menos justificada a partir de seus
instituição esportiva. Os códigos da instituição esportiva podem ser resumi- códigos (12).
dos em: princípio do rendimento atléticodesportivo, competição, compara-
ção de rendimentos e recordes, regulamentação rígida, sucesso esportivo é Os professores não operam a diferenciação dos papéis de treinador e
sinônimo de vitória, racionalização de meios e técnicas. O que pode ser professor, em parte, porque a própria Educação Física, não tendo autono-
observado é a transplantação reflexa destes códigos do esporte para a Edu- mia ou uma identidade pedagógica, não fornece um referencial, um conjun-
cação Física. Utilizando a linguagem sistêmica, poderseia dizer que a in- to fundamentado e institucionalizado de expectativas de comportamento.
fluência do meioambiente (esporte) não foi/é selecionada (filtrada) por um Isto é, a própria definição do papel do professor de Educação Física inexiste.
código próprio da Educação Física, o que demonstra sua falta de autonomia Esta falta de referência é fator de perpetuação da indiferenciação destes papéis.
na determinação do sentido das ações em seu interior.
Esta orientação parece, mais uma vez, adequarse bem à orientação
É importante citar que o desenvolvimento da instituição esportiva tecnicista que, principalmente nas décadas de 60 e 70 predominam no sis-
não se dá independentemente do da Educação Física: condicionamse mu- tema educacional brasileiro, sob a égide da ditadura militar, do projeto “Bra
tuamente. A esta é colocada a tarefa de fornecer a “base” para o esporte de silGrande”. É a época dos, objetivos operacionais, do primado do planeja-
rendimento. A Escola é a base da pirâmide esportiva. É o local onde o talen- mento, da tecnologia do ensino. Menos o professor e o aluno têm importân-
to esportivo vai ser descoberto. Esta relação, portanto, não é simétrica. Por cia no processo de ensino, e mais o planejamento (SAVIANI, 1984, p. 15
outro lado, a instituição esportiva sempre lançou mão do argumento de que 9). Sob esta orientação, ocorreram reducionismos, ou uma segunda redução
esporte é cultura, é educação, para legitimarse no contexto social, e princi- do movimento corporal nas aulas (a primeira redução já havia ocorrido atra-
palmente para conseguir apoio e financiamento oficial.
vés da assimilação dos códigos do esporte), pela necessidade de operacio É interessante notar que, num regime autoritário, a legitimidade confunde
nalizar os objetivos, o que levou, pelo menos na tendência, à substituição do se com a legalidade. A última tende a subsumir a primeira e, assim, esta
lúdico em favor de tarefas mecânicas (13). questão é reduzida a um problema de legalidade da Educação Física (se por
decreto ou não, não é o problema!).
Com isto gostaria de chamar a atenção para o fato de que não basta
autonomizarse em relação à instituição esportiva e à instituição militar vol- O referido consenso funcionallatente quanto aos objetivos
tandose totalmente à Escola. É preciso que a autonomização pedagógi conteúdos da Educação Física que permanece latente enquanto não for
ca da Educação Física compreenda uma reflexão crítica do próprio papel problematizado pode ser caracterizado, a partir da análise desenvolvida
da Escola em nossa sociedade de classes. Isto é, não só uma relação crítica das práticas hegemônicas, ainda que de forma grosseira, da seguinte forma:
(filtragem crítica) para com o conjunto de atividades corporais (por ex. o
esporte) deve ser elemento constituinte do desenvolvimento da sua identi- Conteúdo: esporte, isto é, esporte federado, suas técnicas, regras,
dade pedagógica, mas também para com a instituição educacional. táticas, etc. A ginástica e a corrida, por ex., são praticadas com vistas a
“parte principal”. Os jogos populares são denominados e tematizados como
‘‘jogos préesportivos” (15).
1.4 A busca de um referencial teórico
Objetivos: aprendizagem dos esportes e desenvolvimento da apti-
Sem dúvida, a questão dos objetivosconteúdos (métodos de ensino) da dão física (para a saúde).
Educação Física é um dos pontos centrais do desenvolvimento da sua identida-
de pedagógica que, no entanto, tem sido negligenciada, enquanto tema, pela É claro que a Educação Física lançou mão, para buscar legitimidade
investigação em Educação Física no Brasil, ou, quando muito, discutida assis na escola, de um amplo leque de objetivos, como: desenvolvimento do sen-
tematicamente. Muito mais, pareceme predominar, quanto a esta questão, um timento de grupo, de cooperação, da sociabilidade, da autoconfiança, do
consenso funcionallatente, cuja existência devese, pelo menos em parte, à já conhecimento de si, etc. etc. (ou bla, bla, bla?), objetivos que, no entanto,
discutida subordinação da Educação Física à instituição esportiva. E esta situa- exercem função ideológica porque a ação pedagógica não está centrada na
ção persiste sobretudo porque é funcional no conjunto das relações sociais, ou sua consecução, relegandoos, de fato, a “efeitos paralelos desejáveis” (16).
seja, é fator de reprodução das relações sociais dominantes, é, assim, somente A Educação Física fez seu o discurso pedagogicista da Educação Integral.
serão os objetivos e conteúdos da Educação Física - radicalmente ques A este respeito convêm citar o prof. MELO DE CARVALHO (1987, p. III):
tionados quando as próprias relações sociais vigentes o forem. “a fundamentação do educador tem de recusar o discurso pedagogicista mais
ou menos mistificador para assentarse na análise honesta e lúcida das bases
Nesse contexto, a questão da legitimação da Educação Física na Es- objetivas que sustentam a escola. Qualquer esforço fora deste quadro para
cola também não é objeto da investigação em Educação Física, também não afirmar a disciplina é pura ilusão, quando não é puro e simples oportunismo
é problematizada. Aceitase a imposição do seu sentido a partir de fora (14). de caráter político e ideológico”.
18 Claramente identificável, por exemplo, no trabalho de DIECKERT (1987, p. 134): A assim chamada Educação Física Revolucionária. Como bem
“O Esporte para Todos, desenvolvido neste meio tempo no Brasil, representa lembra CAVALCANTI (1985), a concepção crítica ou revolucionária da
muito desta nova antropologia, que coloca a autonomia do ser humano no centro. Educação Física vem ensaiando os primeiros passos, porém ainda de forma
Não é o esporte que faz o homem, mas o homem que faz o esporte! Ele determina bastante difusa, apresentandose ainda muito fragmentada. O que diferen-
o que, como, onde, quando, por quanto tempo, com quem, sob que regras, com cia esta tendência de todas as outras descritas anteriormente é o fato dela
que objetivo e sob que condições o pratica”.
28 Educação Física e Aprendizagem Social E d u c a ç ã oF í s i c a :ab u s c ad a a u t o n o m i a p e d a g ó g i c a 29
realizar a crítica da Educação Física a partir de sua contextualização na dades nucleares da Escola), transmitir, enquanto partes constitutivas de uma
sociedade capitalista, operando tal crítica a partir da tradição teórica do totalidade de conhecimentos, o seu particular, sem entretanto estabelecer
marxismo e, assim, ressaltando a dimensão política da Educação e da Edu- uma posição com o geral. Entretanto, para que possamos realizar esta tare-
cação Física. Seus adeptos colocam como elemento norteador de uma “nova” fa, é preciso examinar atentamente o que fundamenta cada disciplina curri-
Educação Física, um compromisso político com as classes oprimidas, com cular e o porque de sua existência. É preciso captar o que a definiu como tal,
vistas a transformações estruturais na sociedade, condição indispensável a que necessidade pedagógica veio atender”. Nesta perspectiva, pareceme
para um com-viver Humano. Dois pontos têm sido objeto de análise crítica: necessário negarmos a oposição entre Educação pelo Movimento e Educa-
a) a ideologia burguesa veiculada pela Educação Física (19); eb) a “domes- ção do Movimento em favor de uma unidade dialética: Educação pelo, do e
ticação do corpo” na Educação Física (crítica realizada a partir das teorias para o Movimento. A Educação Física possui um conteúdo, um saber, cuja
de M. Foucault e também W. Reich (20). Como bem lembra KUNZ (1991), transmissão deve ser assumida como tarefa pela Escola.
estas novas concepções estão ainda numa fase críticoteórica que precisa
ser superada em favor de alternativas pedagógicas, para que o próprio dis- A Educação Física, na transmissão deste saber e em função das
curso não perca sua ressonância crítica. Se, na análise e avaliação da função características, deste elemento da cultura, pode contribuir para com os
que a Educação Física tem cumprido em nossa sociedade, não ocorre disso- objetivos da Escola (que transcendem a especificidade de uma dada dis-
nância maior entre estas duas correntes, o mesmo não pode ser dito das ciplina).
poucas propostas alternativas de ação pedagógica que delas tem emanado.
Enquanto a primeira centra sua proposta mais na transmissão crítica do sa- A desconsideração da Educação do e para o movimento, em favor da
ber, mesmo do ou
na experiência esporte, e na corporal,
vivência luta contraideológica,
nas práticas adesegunda centrase
conscientização Educação pelo
cocultural movimento(ecorreria
do movimento com eleo as
perigo de negligenciar
contradições sociais). oPor
fator
isso,históri
con-
corporal. sidero que as formas culturais de movimento que se apresentam no mundo
vivido de nossa população alvo, precisam ser tema e problematizadas na
Nenhuma destas novas tendências parece, no entanto, ameaçar seria- Educação Física. Isto implica, por exemplo, a tematização da vida de movi-
mente a hegemonia da “tendência esportiva”. Não fornecem também, até o mento das camadas populares (ver KUNZ, 1991).
momento, à ação pedagógica em Educação Física um quadro referencial
teórico consistente. Mas como podemos legitimar a Educação Física na Escola? Em que
consiste a importância da Educação Física? Para que Educação Física? Pa
Identificandome com a concepção revolucionária de Educação Físi- receme que a tendência progressista da Educação Física tem negligenciado
ca preferiria denominála de tendência progressista gostaria de, finali- esta questão em favor da questão: para quem serve a Educação Física? Na
zando e obedecendo ao caráter exploratório deste escrito, tentar uma peque- visão da Educação Física como atividade, com o objetivo do desenvolvi-
na contribuição à tarefa enunciada acima, abordando o complexo: Educa- mento da aptidão física com vistas à saúde, a legitimação ocorria pela sua
ção do movimento Educação pelo movimento? Antes de mais nada, é vinculação ao mundo do trabalho, pela sua importância para a produção
importante evitarmos aqui o “pedagogismo”. SOARES (1987) aponta o ca- (força de trabalho). Como vimos, com a afirmação do esporte também como
minho: “cabe às disciplinas que constituem o currículo (conjunto de ativi conteúdo hegemônico na Educação Física e as modificações estruturais a
nível da sociedade que codeterminaram esta mudança ocorre um certo
deslocamento em direção ao lazer. A Educação Física passa a ser relaciona
da, agora, menos diretamente com o mundo da produção, mas de forma
imediata através da mediação do lazer, o que, em função do maior status
19 Entre outros: CASTELLANI FILHO (1983); BRACHT (1986); CARMO (1987).
social do trabalho (atividade “nobre”) em relação ao lazer (atividade "su
20 Entre outros: MEDINA (1987) e FREIRE DA SILVA (1987).
30 Educação Física e Aprendizagem Social
Educação Física: a busca da autonomia pedagógica 31
pérflua”), não deixa de constituirse numa dificuldade para tal legitimação motora, em crescimento e desenvolvimento, em socialização, etc., pois, se
(21). No entanto, o lazer e a educação para o lazer parecem, cada vez mais, esta pode fornecer elementos para a realização dos objetivos da Educação
serem considerados um tema e uma tarefa também da Escola (22). Física, não descobrirei, com o seu auxílio, o compromisso político para com
os oprimidos de nossa sociedade (23).
Para alguns autores (KURZ [1985] e BENTO [1987]), a importância
quantitativa que o esporte assumiu em nossa sociedade é considerada já
como argumento justificador para a sua consideração por uma escola que
não é “cega” frente à realidade social. No entanto, para a legitimação da
Educação Física, a alusão à dimensão quantitativa do esporte não me parece
condição suficiente pois, antecedendo ou complementando a avaliação da
importância quantitativa do esporte, seria necessária uma avaliação do sen-
tido e funções do esporte (por ex. como elemento do lazer) para o Homem e
nossa sociedade; portanto, uma avaliação qualitativa (normativa) do espor-
te. E, neste sentido, uma teoria pedagógica da Educação Física, para além
da consideração do aspecto históricocultural concreto ou de como o movi-
mento se apresenta culturalmente, não pode renunciar a uma análise antro-
pológica do fenômeno da ludomotricidade humana, pois, para além das ca-
racterísticas
partir da suae códigos que os movimentos
contextualização corporais
históricocultural, e os jogos
pareceme assumemne-a
impossível
gar seu caráter universal e constituinte da natureza humana. Permanecer
nesta análise antropológica, fazendo dela a base única de uma teoria (da
legitimação) da Educação Física é condenála a um abstratismo ideológico
e ao ahistoricismo. No entanto, se não é condição suficiente, é, pelo menos,
condição necessária.
CAPÍTULO II
Educação Física: a busca da legitimação pedagógica
2.1 Introdução
1 Por exemplo: O que é Educação Física? É comum ouvirse, (nós nem sabemos o
que é Educação Física)!, o que é interpretado como sinal de uma “crise de identi-
dade”. A Educação Física seria uma (nova) ciência? ou, formulado de outra for-
ma: a Educação Física deveria assumir o estatuto de ciência? Tem sido denuncia-
do (se é que isto ainda pode ser considerado uma denúncia?!), que a função so
cial da Educação Física, assim como da Educação como um todo, e a de reprodu-
zir o nosso sistema societal, portanto, de reproduzir também, entre outras coisas,
a injustiça social, etc.
h
34 Educação Física e Aprendizagem Social Educação Física: a busca da legitimação pedagógica 35
sente (para não dizer que tem sido evitada). Refirome à questão da legiti- que ela seja (4) . Além disso, é importante atentar pa ra o que nos diz VI E I -
midade da Educação Física na Escola, ou seja, a razão de ser da Educação RA PINTO (1979, p. 901): “o conteúdo de todo conceito é a sua história”.
Física no currículo escolar (2). Acreditando estar respaldado pela história, entendo que a Educação Física
é a prática pedagógica que tem tematizado elementos da esfera da cul
Pretendo, portanto, me ater mais especificamente a esta problemáti- tura corporal/movimento.Este conceito, reconheço, é ainda meramente
ca, sem contudo me furtar de abordar questões que a tangenciam ou que descritivo; além disso, seria necessário complementálo com a elucidação
com ela estão intimamente relacionadas. Um exemplo, é a citada pergunta: do entendimento da expressão “prática pedagógica” (5). A resposta que
mas afinal, o que é Educação Física? ofereci aqui, e que tomo como base para minhas reflexões, tem um ca-
ráter descritivo, uma vez que entendo que um conceito de Educação
Física é uma teoria da Educação Física, e isto estamos tentando desen-
2.2 Excurso: acerca da pergunta, o que é Educação Física? volver.
Relembrando, no Brasil os elementos da cultura corporal/movimen-
Uma resposta a esta questão só é possível se tivermos claro o que na to predominantes na Educação Física foram, num primeiro momento, a gi-
verdade estamos perguntando. Entendo que parte das dificuldades no en- nástica e, num segundo e esta é a situação atual o esporte (6). É impor
frentamento desta pergunta, decorre da falta de clareza quanto ao “o que
estamos perguntando com esta pergunta”, portanto, residem na raiz da pró-
pria pergunta. Senão, vejamos: é comum buscarse elucidar a essência (3)
da Educação Física, como se esta existisse independentemente da Educação
Física concreta e situada historicamente, que conhecemos. É desta busca
que derivam expressões do tipo: “mas esta não é a verdadeira Educação
Física”. Ora, a “verdadeira Educação Física” é aquela que acontece concre
tamente, e não uma entidade metafísica que estaria hibernando em algum
recanto à espera de sua descoberta. Se é isto que estamos perguntando (pela 4 Não estou ignorando a necessária dialetização entre o velho e novo, no sentido
essência no sentido metafísico), estamos perguntando errado, pois a “ver- de que existem diferentes “projetos” para a Educação Física (que refletem dife-
dadeira” Educação Física é aquela que nós construímos no nosso fazer diá- rentes projetos de sociedade e visões de mundo). Mas enquanto projetos, eles
rio. Entendo que, para apreender a Educação Física enquanto fenômeno, é ainda não são a Educação Física.
preciso, num primeiro momento, desvencilharse daquilo que desejamos
5 Eu acentúo, a Educação Física é antes de tudo uma prática pedagógica, que como
toda prática social não é obviamente destituída de pensamento eu quero com
isso me contrapor àquelas posições que a denominam preferencialmente como
uma área do conhecimento. Ela elabora um corpo de conhecimentos que tendem
a fundamentála, pois toda prática exige uma teoria que a constitua e dirija. Mas
a Educação Física é uma prática social de intervenção imediata, e não uma práti-
ca social cuja característica primeira seja explicar ou compreender um determi-
nado fenômeno social ou uma determinada parte do real.
6 Aqui fazse necessária uma rápida observação: não posso derivar daí que o Es-
2 Esta foi a questão que levantei no ensaio anteriormente citado, no momento que porte é Educação Física. Não, o esporte é um fenômeno social que tem um desen-
fazia a (auto)crítica às “tendências progressistas” da Educação Física, que até volvimento, embora relacionado, relativamente autônomo em relação à Educa-
então haviam se omitido em relação a este problema. ção Física, assim como a dança já compunha a nossa cultura corporal/movimen-
to, muito antes que o próprio termo Educação Física tivesse sido usado pela pri-
3 Leiase, “essência metafísica”. meira vez.
36 Educação Física e Aprendizagem Social Educação Física: a busca da legitimação pedagógica 37
tante ressaltar que a eleição ou a tematização na Educação Física de deter- denamento legítimo merece reconhecimento. Legitimidade significa que um
minado elemento ou manifestação da cultura corporal/movimento, está re- ordenamento político é digno de ser reconhecido” (Idem, p. 219220). E
lacionada, direta ou indiretamente, com as necessidades do projeto educa- neste sentido, como lembra WEFFORT (1988), “um regime de legitimida-
cional hegemônico em determinada época, e com a importância daquela de política só pode ser a democracia. ... E isso porque a democracia é o
manifestação no plano da cultura e política em geral. A tematização privi- único regime que organiza, isto é, institucionaliza, o consentimento popu-
legiada da ginástica por exemplo, tem a ver com o papel higienista atri- lar. sem o qual a legitimidade perece” (p. 24). Eu diria, trazendo a discussão
buído à Educação Física no projeto educacional do início deste século para o nosso tema, que é só na democracia (ou seja, na luta democrática
no Brasil (ver a respeito os estudos de (CASTELLANI 1989; SOARES, entre grupos/partidos para a realização de sua proposta de democracia),
1990). que a questão da legitimidade pode vir à tona e ser efetivamente coloca-
da (7).
2.3 Crise e legitimação Legitimar a Educação Física significa, então, apresentar argumentos
plausíveis para a sua permanência ou inclusão no currículo escolar, apelan-
É cada vez mais comum ouvirse nos meios da Educação Física que do exclusivamente para a força dos argumentos, declinando do argumento
ela se encontra em crise. É de M. SÉRGIO (1988, p. 12) a afirmação de que da força (que é o que acontece quando um regime autoritário “legaliza”
“o discurso da Educação Física é, desde a década de 60, declaradamente de alguma prática social). Esta legitimação precisa integrarse e apoiarse dis
crise”. São aludidas diferentes causas para explicar a referida crise, além de cursivamente numa teoria da Educação.
diferentes interpretações do seu caráter. Uma delas, por exemplo, parte do Na verdade, a legitimação de uma matéria se dá em função do papel
argumento de que não existe uma profissão regulamentada de Professor de
Educação Física, o que causaria uma falta de respeito profissionais bem que uma determinada época lhe atribui. Que funções, que papéis foram atri-
como uma indefinição do mercado de trabalho. Outros entendem que a crise buídos à Educação Física nos diferentes momentos, e que função social/
é de cunho epistemológico. Considero que, neste contexto de crise, a legiti- humana a (pouca) teoria da Educação Física tem advogado para esta prática
mação da Educação Física no sistema de ensino, assume um caráter funda- pedagógica?
mental (a questão epistemológica não está aí excluída).
Antes de apresentar especificamente as tentativas de legitimação da
Contra uma possível falta de legitimação, o professor de Educação Educação Física na Escola, gostaria de discutir brevemente a questão da
Física não soube, até o momento, articular nada muito além de "altos brados produção do conhecimento na e para a Educação Física.
de indignação” e um discurso, na maioria das vezes, teoricamente inconsis-
tente, isto quando não se apega ou faz um discurso “legalista", confundindo
legalidade com legitimidade. 2.5 A produção do conhecimento na e para a Educação Física
camente à Educação Física. Quais sejam: quais as contribuições do exercí- cionalmente decisões normativas intersubjetivamente válidas, pois esta te-
cio físico sistemático e racionalizado para a saúde, entendida enquanto saú- ria que submeterse às seguintes premissas:
de biológica (higiene, funções orgânicas, etc.). Tratavase de evidenciar tam-
bém, os efeitos sobre o desenvolvimento do “caráter”, numa visão funcio
a) Fundamento racional significa dedução lógico formal de senten-
nalista da sociedade. Já sob o paradigma esportivo, a problemática passa a
ças a partir de sentenças mais básicas.
incluir, além da possível influência de determinado esporte sobre vari-
áveis relacionadas com a saúde (e com o desenvolvimento motor e or-
gânico), a investigação da variável melhoria do desempenho atlético b) Validade intersubjetiva de sentenças (afirmações) é igual a valida-
esportivo. de objetiva, no sentido da constatação não valorativa ou da dedução lógico
formal.
Vale registrar que a teoria do conhecimento ou a concepção de
ciência que predominou no âmbito da produção do conhecimento na c) A partir de tal verificação ou constatação (de fatos) não é possível,
área, foi o das ciências naturais de matriz positivista. Uma das princi- com o auxílio da dedução lógica, derivar nenhum julgamento de valor ou
pais características desta concepção de ciência, e que vai nos interessar afirmação normativa.
mais de perto, é que ela radicaliza a separação entre teoria e prática:
“ela apresenta como medida absoluta da cientificidade, os critérios da
Mas a teoria pedagógica, bem lembra SCHMIEDKOWARZIK
comprobabilidade
mana dirigida porintersubjetiva e da consistência
decisões é denunciada lógica. A por
como acientífica prática hu-
escapar (1983, p. 130), tem uma dupla tarefa: “pois na medida em que a Educação é
a produção do homem em homem através do homem (educador), o educa-
ao alcance experimental e à fixação empírica como validade universal,
dor necessita tanto da diretriz do “como” de sua ação educativa, como da
como tudo que não pode ser subsumido a este esquema” (SCHMIED
determinação de sentido desta ação dirigida ao homem em seu quê. Numa
KOWARZIK 1983, p. 21).
das tarefas da pedagogia sobressai uma motivação prática, já que a teoria se
coloca inteiramente a serviço da destinação prática do educador em sua prá
Isto nos remete ao problema da relação entre o conhecimento (cien- xis futura; na segunda tarefa sobressai uma motivação teórica, pois a teoria
tífico) produzido na “área” e a prática pedagógica em Educação Física. se esforça em desvelar ao educador o horizonte de tarefas da prática educa-
cional a partir da totalidade da humanização do homem. Entretanto, a teoria
nem é ensinamento artesanal puramente prático na sua primeira forma, nem
São várias as conseqüências da adoção da concepção de ciência pró-
na segunda, simples sabedoria teórica; pois em ambos os casos a motivação
pria do positivismo pela comunidade acadêmica que se propunha a produzir
prática e a teórica são mediatizadas em direção à unidade de teoria e prática
conhecimento “científico” na área da Cultura Corporal/movimento. Uma
no processo educacional”.
delas é a de que o conhecimento produzido é, viaderegra, inútil para a
prática pedagógica em questão. Outra é de que o conhecimento produzido
não enfrenta a questão do sentido da prática. Acontece que, nas ciências analíticas de orientação positivista, não
se colocam as questões práticas onde decisões sobre o sentido da prática
humana são solicitadas. Estas são recusadas em nome da neutralidade e
Para APEL (1988, p. 24), é justamente o conceito de racionalidade
objetividade científicas. Mas, como sabemos, a prática pedagógica exige
que domina no interior da ciência analítica, no seu sentido de objetividade
tais decisões. Se a “ciência” não se responsabiliza por tais decisões, se ela
sem julgamento de valor, que coloca a impossibilidade de fundamentar ra-
40 Educação Física e Aprendizagem Social Educação Física: a busca da legitimação pedagógica 41
somente se preocupa com o que é objetivamente, ou com o como (questões Retomando a "abordagem desenvolvimentista” de TANI et al.
técnicas), quem, e a partir de que bases vão ser tomadas estas decisões de (1988), gostaríamos de exemplificar as limitações das abordagens em
cunho normativo? píricoanalíticas no que diz respeito à formulação de uma teoria peda-
gógica para a Educação Física. Para os autores acima citados, “a Edu-
cação Física Escolar pode ser estruturada através de abordagens ma-
HABERMAS (1988, p.11) lembra que “questões técnicas colocam
croscópicas, de características filosóficas e administrativas, e também
se no sentido da organização de meios racionais com vistas a objetivos, e da
de abordagens mais microscópicas, que parte do estudo das caracterís-
escolha racional entre meios alternativos tendo em vista objetivos dados
ticas dos alunos em diferentes níveis de análise” (TANI et al., 1988. p.
(valores e máximas). Questões práticas no entanto, colocamse no sentido
135). Os autores optaram pela abordagem microscópica, considerada
da aceitação ou rejeição de normas, especialmente de normas de ação, cuja
uma entre várias outras possíveis. Ora, o equívoco é patente, na medida
aspiração de validade nós podemos fundamentar ou rejeitar racionalmente.
em que as abordagens macroscópica (filosófica) e microscópica (des-
Teorias que pela sua estrutura servem para esclarecer questões práticas, são
crição dos processos de desenvolvimento da criança) não são indepen-
estruturadas para entrar no âmbito da ação comunicativa”. O que é impor-
dentes entre si, de tal maneira que pudéssemos a posteriori apenas so-
tante ressaltar, é que “os interesses orientadores do conhecimento técnico e
mar uma à outra. Elas muito mais se interpenetram, pois as decisões
prático não são condutores da cognição, que em função da aspiração de
chamadas de filosóficas vão valerse das informações sobre o desen-
objetividade do conhecimento, precisariam ser colocados fora de ação. Eles
volvimento da criança, assim como aquelas decisões vão determinar,
muito mais determinam o aspecto.sob o qual a realidade pode ser objetivada
como diz HABERMAS (1988), o aspecto sob o qual aquele desenvolvi-
e assim tornada acessível à experiência" (Idem. p. 16). mento será objetivado e tornado acessível à experiência. Os objetivos
da Educação Física na Escola não podem ser simplesmente deduzidos
Como a primeira pergunta com a qual uma teoria pedagógica (como logicamente dos conhecimentos sobre o desenvolvimento da criança. É
uma teoria da Educação Física) é a do seu sentido, e a concepção de ciência preciso para tanto, elucidar qual o papel desejável para a Escola em
predominante no âmbito da Educação Física exclui esta questão do rol de nossa sociedade. Isto por sua vez implica, tanto em fazer uma leitu
suas competências, a (pouca) teoria da Educação Física desenvolvida até ra da sociedade em que vivemos, como implica em projetar a socie
então preocupouse fundamentalmente com as questões técnicas, instrumen- dade que almejamos. Portanto, para uma teoria para a prática pe
tais, não enfrentando a questão dos valores. Na abordagem chamada de de dagógica em Educação Física, o “porquê” (decisões normativas) não
senvolvimentista (ver TANI et al. 1988) há inclusive, uma tentativa de fun- pode ser discutido isoladamente do “como” (questões técnico-me-
damentar “cientificamente” a Educação Física a partir das necessidades todológicas).
obviamente “naturais” das crianças, e porque leis naturais, passíveis de se-
rem determinadas objetivamente, pois independem dos seres humanos con-
Assim, as diferentes disciplinas científicas que se ocupam do movi-
cretos, na esperança de contornar a questão dos valores.
mento humano, enquanto não envolvidas com a prática pedagógica em Edu-
cação Física, e ocupandose com dimensões parcelares desta prática, são
Estamos aí frente a uma das características de uma teoria da Educa- apenas fornecedoras de informações em estado bruto, que precisarão passar
ção Física. Enquanto teoria de uma prática pedagógica, ela precisa enfren- por um processo de teorização da pedagogia da Educação Física, e não po-
tar a questão dos valores (penetrar no âmbito da ética). Ou seja, ela vai derão jamais substituíla. A pedagogia da Educação Física enquanto ci
refletir (e fazer opções conscientes) em torno de uma visão (projeto) de ência prática, tem seu sentido não na “compreensão, mas no aperfeiço
mundo, de Homem e de sociedade. amento da práxis”.Assim, seria necessário que a produção do conheci
42 Educação Física e Aprendizagem Social Educação Física: a busca da legitimação pedagógica 43
mento para sustentar/orientar a prática pedagógica em Educação Física, se Eu classifiquei estas tentativas em modelos heterônomos e autôno-
pautasse no específico do “educativo”, isto é, a problemática a ser objeto de mos(8). As tentativas de fundamentação autônomas são aquelas que situam
investigação, seria determinada pelas questões que a prática educativa em a razão ou importância pedagógica das atividades corporais de movimento
Educação Física coloca. nelas mesmas. Nesta perspectiva, estas atividades encerrariam elementos
humanos fundamentais. As tentativas heterônomas, ao contrário, buscam
tal razão muito mais fora das atividades, em suas repercussões sociais. É
Quais são então as expectativas em relação a uma teoria da Edu-
importante observar, mais uma vez, que são tipos ideais que criei, e que não
cação Física? A quais perguntas deveria uma teoria da Educacão Física
aparecem de forma pura e, sim, na maioria das vezes, combinados e intere
responder? Basicamente a duas: o porque (sentido) e o como (instru- lacionados.
mental).
Enquanto, na perspectiva heterônoma, acentuase a funcão social, Compensatória,na medida em que a Educação Física colabora para
ligada principalmente ou tendo como referência básica o mundo do trabal- compensar a insatisfação e alienação do trabalho intelectual em sala de aula.
ho, isto é, uma função em última instância, “séria” ou “produtiva”, na pers- Uma atividade que compensa o desgaste na atividade séria e a implacável
pectiva autônoma, acentuase a dimensão lúdica do humano. materialização do mundo contemporâneo (coisificação das relações huma-
nas).
GRUPE (1976. p. 35), um pedagogo que busca fundamentar a Edu-
cação Física via Antropologia Filosófica, entende que a primeira questão Utilitaristaporque prepara para o trabalho (aptidão física e habili-
com a qual uma teoria da Educação Física precisaria se confrontar é exata- dades motoras), ao mesmo tempo que prepara o indivíduo para uma ativida-
mente de cunho antropológico. Neste sentido, entende que a legitimação da de que tem a função de recuperar a força de trabalho.
Educação Física é resultado de dois princípios independentes: em primeiro
lugar, do fato de que a existência humana é radicalmente “um ser corporal Moralistaporque é uma atividade que ajuda a suportar a disciplina e
no mundo” (não existe consciência sem corpo); e, em segundo, de que o as imposições obrigatórias da vida social, pela ocupação do tempo livre em
jogo (junto com o trabalho) pertence às formas srcinais (até agora não ple- atividades equilibradas, socialmente aceitas e moralmente corretas (enquanto
namente conhecidas) da existência humana. Ora, uma educacão que está a criança pratica esporte está ocupada com uma atividade socialmente acei-
voltada para o humano, que se volta para as dimensões essenciais do Ho- ta e não pensa em “bobagens”).
mem, não pode negligenciar a corporeidade e a ludicidade, pois estas são
formas humanas básicas de comunicacão com o mundo (o discurso pedago
gicista da Educação Integral também vai nutrirse nesta trilha de argumen- A abordagem funcionalista vê a Educação Física e a Educação como
elementos que garantem a funcionalidade do sistema como um todo, e aju-
tação).
dam a prevenir disfuncionalidades ou conflitos. O fundamento científico
desta perspectiva advém das ciências biológicas e da saúde de orientação
Mas, na verdade, o que tem predominado entre nós é a fundamenta- positivista. Daí advém também grande parte de suas limitações e seus redu
ção heterônoma. Aqui predomina uma visão instrumentalista da Educação cionismos, que, em termos de concepção pedagógica, tem sido denominada
Física. A Educação Física é fomentadora da saúde (via aptidão física), cria e denunciada como "biologista". Na verdade, a concepção positivista da
e desenvolve hábitos higiênicos, desenvolve o sentimento cívico, etc. ciência não pode fornecer o fundamento para a prática pedagógica, porque
ela radicaliza a separação entre teoria e prática. “Ela apresenta, como medi-
Usando uma classificação desenvolvida por MARCELLINO (1987) da absoluta da cientificidade, os critérios dacomprobabilidade intersubjeti
para o Lazer, poderíamos dizer que as funções atribuídas à Educação Física va e da consistência lógica. A prática humana dirigida por decisões (como é
neste plano são de ordem: o caso da prática pedagógica V.B.) é denunciada como acientífica por esca-
par ao alcance experimental e à fixação empírica como validade universal,
como tudo que não pode ser subsumido a este esquema” (SCHMIED
a) compensatória;
KOWARZIK 1983, p. 21). A partir deste modelo teórico, questões com-
plexas, como por exemplo a da saúde, sofrem uma redução de cunho
b) utilitaristae biologista.
c) moralista. Neste contexto, surge, mais recentemente, uma nova versão para le-
gitimar a Educação Física na Escola. Esta tem a ver com a dimensão que
46 Educação Física e Aprendizagem Social Educação Física: a busca da legitimação pedagógica 47
assumiu o fenômeno esportivo em nossa sociedade. A dimensão quantitativa admitiase, estava realizada na teoria e na prática! Mas é evidente, porém,
do esporte parece ser razão suficiente para que a escola assuma a tarefa de que a Educação Física estava seriamente ameaçada, correndo o risco de
transmitir este elemento da cultura. Definese, nesta perspectiva, a tarefa da perder a sua individualidade própria, e que esta educação pelo movimento
Educação Física como a de desenvolver a capacidade de ação no desporto” em breve diluirseia também nas disciplinas que, no movimento, haviam
(BENTO, 1987). de ver, mais cedo ou mais tarde, um meio excelente de resolver problemas
específicos, como a matemática, a aprendizagem da leitura e da escrita,
etc.”.
A legitimidade das práticas corporais, principalmente o esporte, nas
sociedades modernas, pode ser deduzida da praticamente unanimidade que
o esporte hoje alcança. Ser esportivo, aparentar boa forma física, já quase E ainda importante citar que, no Brasil do pós64, temos nos textos
não é mais uma opção, mas sim uma imposição social. Ligada a este “boom” legais uma combinação da fundamentação da Educação Física na Escola:
do corpo ou das práticas corporais, temos o “boom” da indústria do lazer e “Aptidão Física” (integrada na política de recursos humanos para o projeto
dos materiais esportivos. Assim, embora os pedagogos resistam em utilizar de desenvolvimento) e a Educação Física como base da pirâmide espor-
esta nova dimensão do cotidiano de boa parte da população como elemento tiva.
de legitimação da Educação Física na Escola,é bem provável que a Esco
la, concretamente, já esteja, através das aulas de Educação Física, ser Em termos gerais, procurouse legitimar a Educação Física via: a)
vindo a esta nova indústria, e a Educação Física esteja recebendo reco contribuição para o desenvolvimento da aptidão física para a saúde;b) con-
nhecimento a partir do reconhecimento tácito (9) destas práticas corpo-
rais na sociedade como um todo. tribuição para
tribuição o desenvolvimento
(específica) da Educaçãointegral
Física daeracriança e, neste sentido,
principalmente sobre oa “do-
con-
mínio psicomotor” ou “motor”; c) contribuição para a massificação esporti-
Poderíamos citar também a vertente da “psicomotricidade”, que ins- va e detecção de talentos esportivos (a famosa base da pirâmide);d) a Edu-
trumentaliza o movimento para as tarefas “fundamentais da escola”, e que cação Física trata de dimensões do comportamento humano que são bási-
tem sido utilizada pelos professores de Educação Física para fundamentar a cas: o movimento e o jogo.
Educação Física na préescola e nas quatro primeiras séries do primeiro
grau. Valem aqui, no entanto, as palavras de advertência de SOBRAL (1976) Estes modelos de legitimação perduraram por muito tempo sem so-
a respeito da Psicomotricidade: “Julgouse então conquistada a pedra filo- frer uma crítica mais radical e, portanto, puderam cumprir sua finalidade.
sofal da educação pelo movimento, a superação do dualismo cartesiano, No início da década de 80, este modelo começa a ser questionado mais
radicalmente (não posso recuperar aqui as causas ou determinantes sociais
de tal movimento questionador). O filósofo Manuel Sérgio acredita que uma
das mudanças mais significativas que derivaram desta crítica diz respeito a
um novo paradigma no entendimento do movimento humano ou do corpo,
ou ainda da motricidade humana. O movimento não é mais entendido como
o deslocamento de um “objeto” (sic!) no tempo e no espaço, mas sim como
um movimento do Homem em direção à transcendência.
9 Consumo.
48 Educação Física e Aprendizagem Social E d uc a ç ã oFí s i c a :ab u sc ad al e g i t i m a ç ã op e d a g ó g i c a 49
da de Educação Física Progressista. Esta corrente surge da crítica ao estabe- possuem portanto especificidades que permitem falar de “duas coisas”...
lecido. Critica a função da Educação Física a partir de um referencial teóri- que se relacionam). É preciso no entanto, conferir à fundamentação autôno-
co que inclui a crítica das relações sociais como um todo. Saúde? Mas quem ma historicidade, analisando e levando em consideração as formas históri-
ganha com a saúde do trabalhador? Civismo? que tipo de cidadão, o subser- cas da corporeidade ou da ludomotricidade (M. Sérgio). Isto significa que
viente? o adaptado, aquele “ensopado” de ideologia burguesa? Aquele que pontos de referência para a fundamentação da Educação Física são o fenô-
não questiona e serve ao poder? Estas criticas vão problematizar, ao menos meno do movimento, ou seja, o fato antropológico de que os homens nas
indiretamente, as próprias bases de legitimação da Educação Física na Es- suas relações com o mundo, através do movimento deste se apropriam, mas
cola. também, que as relações que os homens desenvolvem para com seus corpos
(neste processo de apropriação do mundo) acontecem em condições históri
No entanto, a Educação Física revolucionária ou progressista, no meu cosociais específicas e determinadas(educação através do movimento).
entendimento, não oferece ainda uma teoria positiva da Educação Física,
pois, entre outras coisas, ela (que aos poucos vai se constituindo) preocu Precisamos considerar/postular que a cultura corporal/movimento
pouse muito pouco com a questão: porque Educação Física? qual a razão resume um acervo produzido pelo homem que precisa ou merece ser veicu-
ou quais as razões de sua existência a partir de uma teoria crítica da Educa- lado pela instituição educacional, acrescentandose, no entanto, que é preci-
ção (Física)? o termo crítica aqui não é tomado no sentido Popperiano, e so fazer a crítica cultural e superála (é o nosso saber, é o saber que vamos
sim no sentido da negação da ordem social vigente, ou seja, não crítica em transmitir educação do movimento).
função de um procedimento presumivelmente “científico”, mas em função
do questionamento do conteúdo. Entendo que, no que diz respeito à fundamentação heterônoma, a
referência básica ou imediata deveria deixar de ser o mundo do trabalho, e
Pois a questão que se coloca é: se a fundamentação autônoma é, de passar a ser o mundo do nãotrabalho, o lazer. A Educação Física educaria
certa forma, idealista e ahistórica e tende a cair no pedagogismo, e reco- nesta perspectiva, para os momentos do nãotrabalho (educação para o
nhecermos com SOARES (1987) que é “preciso examinar atentamente o movimento).Sabemos que esta separação é empiricamente impossível, uma
que fundamenta cada disciplina curricular e o porquê de sua existência, e é vez que o indivíduo é um só. Portanto, as habilidades, competências, atitu-
preciso captar o que a definiu como tal, que necessidade pedagógica veio des, etc. adquiridas neste espaço pedagógico, assim como em outros, terão
atender”, e se por outro lado, a fundamentação heterônoma de orientação repercussão sobre o contato do indivíduo com o mundo do trabalho. No
funcionalista encerra um momento político extremamente conservador (fa- entanto, voltamos a repetir, a referência específica da Educação Física é o
vorecendo a vinculação da Educação Física com o setor produtivo), que mundo do nãotrabalho, uma vez que os seus conteúdos são os movimentos
perspectiva resta então à Educação Física neste quadro? da atividade lúdica, e não da prática laborai.
Gostaria de listar alguns pontos que poderiam apontar neste sen- Entendo que as mudanças em nível do processo produtivo e do pro-
tido. cesso de qualificação para o trabalho, diminuíram a importância direta da
Educação Física neste processo (aptidão física e habilidades motoras de-
Em primeiro lugar, considero que não podemos abdicar da funda- crescem em importância para o processo produtivo, são cada vez menos
mentação autônoma. Não podemos definir/fundamentar a Educação Física solicitadas no trabalho). A repredução da força de trabalho, por sua vez,
apenas pela sua função social (não estou adotando aqui uma visão dicotô- se dá muito mais através de uma cada vez mais necessária recuperação
mica entre o indivíduo e o social, mas sim, uma visão dualista interacionista, psíquica. Por outro lado, cresce a importância do lazer também no processo
ou seja, o entendimento de que um não se deixa reduzir ao outro, e que de controle social, pois o mundo do lazer está colonizado pelo mundo do
50 Educação Física
e Aprendizagem Social
Educação Física: a busca da legitimação pedagógica 51
trabalho. Como bem lembra HOPF (1984), um dos primeiros aspectos que “A riqueza efetiva da sociedade e a possibilidade de ampliar sempre
levam a modelar o comportamento dos indivíduos na esfera do consumo, o processo de reprodução depende, não da duração do trabalho excedente, e
nas sociedades capitalistas, é a sua rígida separação da esfera da produção. sim da produtividade deste e do grau de eficiência das condições de produ-
A ilusão da atividade livre ou da liberdade na esfera do consumo é, assim, ção em que se efetua. De fato, o reino da liberdade começa onde o trabalho
condição para uma efetiva reprodução da força de trabalho. deixa de ser determinado por necessidade e por utilidade exteriormente im-
posta, por natureza, situase além da esfera da produção propriamente dita.
Portanto, é preciso trabalhar com uma concepção de lazer que con O esforço para produzir com o menor dispêndio de energia e nas condições
trapõese ao lazer como instrumento de dominação. “Aquela que o entende mais condignas com a natureza humana situarseá sempre no reino da ne-
como um fenômeno gerado historicamente e do qual emergem valores ques cessidade. É além dele que começa o desenvolvimento das forças humanas
tionadores da sociedade como um todo, e sobre o qual são exercidas influ- como um fim em si mesmo, o reino genuíno da liberdade, que só pode flo-
ências da estrutura social vigente” (MARCELLINO 1987, p. 40). Nós pre- rescer tendo por base o reino da necessidade. E a condição fundamental
cisamos, através de uma Educação Física crítica, fazer frente aos efeitos desse desenvolvimento humano é a redução da jornada de trabalho” (apud
muitas vezes imbecilizantes da indústria cultural. GALVÃO, 1984).
Obviamente, pode haver resistências quanto a considerar o lazer e Portanto, “somente quando a história já tiver desenvolvido suficien-
não o trabalho como referência fundamental e primeira da Educação Física. temente as forças produtivas é que o homem poderá começar a se libertar do
Temos, contrapondose a isso, o valor ético do trabalho (“o trabalho digni- trabalho. Se, no modo capitalista de produção, trabalhase para criar mais
fica o homem”). Mas onde está a moralidade de um trabalho, cujo produto é riqueza para o capital, o socialismo deveria encaminhar o trabalho social
apropriado pelo privado e que é explorado via extração e apropriação da para a criação de mais liberdade, de mais tempo livre e menos tempo de
maisvalia? Onde está a dignidade de um trabalho que não permite que um trabalho socialmente necessário. É por esta razão que Paul Lafargue dizia
pai alimente, com o que recebe, sua família? que o socialismo seria a realização do direito à preguiça” (GALVÃO, 1984,
p. 48).
Ao postular que a dimensão heterônoma da legitimação da Educação
Física tenha como referência a importância do lazer, não estamos ignorando Não é porque o trabalho é importante que a Educação Física é im-
a relação entre trabalho e lazer e, mais genericamente, entre trabalho e cul- portante, mas porque o lazer é importante, a Educação Física é importante.
tura. Aqui bem cabe a advertência de NEGT (1989, p. 38): “A dicotomia A “utilidade” da Educação Física advém do seu caráter “inútil”.
entre cultura e trabalho é o erro do qual muitos tipos de legitimações da
dominação são apenas uma conseqüência (...) Cultura não documenta a li- Não é difícil perceber que, ao se tratar a questão do lazer, defron
berdade enquanto resultado, pois ela somente adquire sua vida e vivacidade tamonos com a realidade altamente contraditória da sociedade brasileira.
nos atos concretos de libertação e autolibertação. É correto que o conceito Como justificar uma prática pedagógica na Escola tendo como referência
de cultura não pode ser separado da libertação e autolibertação do trabalho, básica para sua fundamentação o lazer, numa sociedade que nem sequer
mas é falsa a idéia de que a cultura somente iniciaria ali onde o trabalho concretizou o acesso ao trabalho, e que mantém marginalizada grande
termina”. parte da população? De maneira que são estas as contradições que urge
superar. E a Educação Física? Ela precisa buscar o sentido de sua
Assim, o lazer não precisa necessariamente ser visto como uma fun- transformação na necessidade da transformação da própria socie
ção do setor produtivo. Ele poderia se justificar por ele mesmo. Eu gostaria dade brasileira.
de, neste sentido, citar Marx:
52 E d uc a ç ã oF í s i c aeA p r e nd i z a g e mS o c i a l Educação Física: a busca da legitimação pedagógica 53
A Educação Física, nesta perspectiva, educaria no sentido de instru- Educação Física Escolar como Campo de Vivência Social
mentalizar o indivíduo para ocupar de forma autônoma seu tempo livre tam-
bém com atividades corporais de movimento (com as conseqüências orgâ-
nicas, motoras, psíquicas e de qualidade de vida postuladas para as ativida-
des corporais de movimento), de instrumentalizar o indivíduo para entender
e se posicionar criticamente frente à nossa cultura corporal/movimento, e
educaria no sentido de desenvolver uma sociabilidade composta de valores
que permitam um enfrentamento crítico com os valores dominantes.
APRENDIZAGEM SOCIAL NA
EDUCAÇÃO FÍSICA
A criança que pratica esporte respeita as regras do jogo ... capitalista 57
CAPÍTULO III
“A Criança que pratica esporte respeita as regras do
jogo... capitalista”
3.1 Introdução
Apenas recentemente algumas tentativas neste sentido foram leva- aprendem as crianças, também, a conviver com vitórias e derrotas, apren-
das a efeito. Dentre elas, citamos a de CASTELLANI (1983) que, analisan- dem a vencer através do esforço pessoal; desenvolvem através do esporte a
do os documentos e legislação relativos à Educação Física desde a década independência e a confiança em si mesmos, o sentido de responsabili-
de 30, chegou basicamente à conclusão de que esta tem cumprido o papel de dade, etc. Todas estas afirmações têm em comum o fato de serem afir-
reforçar a esteriotipação do comportamento masculino e feminino, tem co- mações que identificam um papel positivofuncional para o esporte no
laborado para o adestramento físico, necessário tanto à defesa da Pátria quanto processo educativo; privilegiam os aspectos positivofuncionais camu-
à preparação e manutenção da força de trabalho necessária aos interesses da flando, desta forma, os disfuncionais. Estas posições não partem de uma
classe dominante. CAVALCANTI (1984), demonstrou o caráter ideológico análise crítica da relação entre a Educação Física/Esporte e o contexto
do discurso que fundamentou a campanha “Esporte para Todos” no Brasil, sócioeconômicopolítico e cultural em que se objetivam, e sim, da aná-
na medida em que esta menosprezou os fundamentos filosóficos, sociológi- lise da Educação Física/Esporte enquanto instituições autônomas e iso-
cos e psicológicos da atividade física e esportiva, e valorizou os aspectos ladas, ou quando muito, como instituições funcionais, ou seja, como
metodológicos, não questionando, desta forma, o significado do esporte para instituições que devem colaborar para a funcionalidade e harmonia da
o homem e a sociedade. FERREIRA (1984), a partir da elaboração de uma sociedade na qual se inserem. Quando estas abordagens identificam as-
matriz teórica dual, em que classifica as atitudes e procedimentos do profes- pectos negativos, estes são colocados como disfuncionais, sendo suas
sor num modelo de reprodução ou numa perspectiva de transformação so- causas buscadas em distorções internas da própria Educação Física/Es-
cial, procedeu a uma investigação empírica que demonstrou o caráter repro- porte.
dutivo da atividade pedagógica do professor de Educação Física do primei-
ro grau. Para fazer justiça, teríamos ainda que citar as reflexões pioneiras de No entanto, ao lado destas afirmações que consideram positivofun
LOPES (1979 e 1980), e as análises críticas de OLIVEIRA (1983) e MEDI cional o resultado do processo de socialização através do esporte, podería-
NA (1983). mos listar outras que indicam no sentido contrário, como por exemplo: pe-
las regras das competições, o esporte imprime no comportamento as nor-
Buscando colaborar no processo de análise crítica pelo qual passa a mas desejadas da competição e da concorrência (PARLEBAS, 1980); as
Educação Física no Brasil hoje, o que ocorre intensivamente com a Educa- condições do esporte organizado ou de rendimento são simultaneamente as
ção de uma maneira geral, é que nos propomos a analisar e assinalar uma condições de uma sociedade de estruturação autoritária (WEIGELT, 1972
outra faceta da Educação Física escolar, que é a sua contribuição no proces- apud DIETRICH, 1975); o ensino dos esportes nas escolas enfatiza o res-
so de socializaçao das crianças e adolescentes. peito incondicional e irrefletido às regras, e dá a estas um caráter estático e
inquestionável, o que não leva à reflexão e ao questionamento, mas sim, ao
acomodamento; na linguagem de WEIS (1979), forja um “conformista feliz
e eficiente”; o aprender as regras significa reconhecer e aceitar regras pre-
3.2 O conteúdo sócioeducativo do esporte fixadas.
Muitos pedagogos da Educação Física/Esporte têm realçado a con- Como pudemos verificar, sob um enfoque distinto, temos também
tribuição da atividade esportiva na socialização das crianças, contribuição valorizações diferentes do produto do processo de socialização que ocorre
essa que tem sido utilizada como justificativa para a inclusão da Educação no esporte infantil.
Física nos currículos escolares. Neste sentido, as colocações indicam que a
criança através do esporte aprende que entre ela e o mundo existem “os
outros”, que para a convivência social precisamos obedecer determinadas Estas diferentes valorizações decorrem de diferentes visões de socie
regras, ter d eterminado comportamento (OBERTEUFER/ULRICH, 1977); dade ou teorias sociais. As valorizações positivas estão respaldadas teórica
60 Educação Física e Aprendizagem Social A criança que pratica esporte respeita as regras do jogo ... capitalista 61
mente na teoria Estruturalfuncionalista da sociedade, a partir da qual os 1. O esporte competitivo reflete uma série de valores de muita im-
elementos isolados do sistema social como a Educação, o Esporte, etc., po- portância para a sociedade. Desta forma, o recrutamento para o esporte cum-
dem ser descritos como funções do sistema. Eles são importantes desde que pre a função de integração social.
tenham importância funcional para o sistema, mantendo, portanto, sua esta-
bilidade como unidade de funcionamento. 2. O esporte funciona, nas sociedades industriais ocidentais (capita-
listas), como um mecanismo de mobilidade social.
Uma afirmação que tem o respaldo desta teoria é a de que a nova
geração é educada em e para uma sociedade competitiva na qual o princípio 3. O esporte oferece a oportunidade para a aprendizagem de diferen-
de rendimento se impôs. O jovem esportista é confrontado muito cedo com tes papéis sociais.
princípios de rendimento, e dele é esperado não só suportar diferenças
de rendimento, como também respeitálas (BÜHRLE apud DIETRICH,
1975). Cumpre assinalar que, como lembra DEMO (1983), o funcionalismo
é mais típico de países desenvolvidos (capitalistas), pois tal postura colabo-
ra com o dominador, pois este está muito pouco interessado em mudar, por-
As análises que criticam a função socializadora que o esporte cum- que isto pode representar a perda de privilégios. Nesta perspectiva tratase,
pre, partem de uma teoria da sociedade que poderíamos chamar de aborda- não de mudar o sistema, mas sim conseguir mudanças dentro do sistema.
gem (LOY et al. 1979) ou ótica (DEMO, 1983) do conflito. Esta teoria, Não questionando o sistema (capitalista), tratase então de fazêlo funcio-
desenvolvida
ver por do
a sociedade e aponto
partirdedevista
Marxdee suas
Engels, acredita que
contradições é mais(DEMO,
históricas correto nar melhor.
1983, p. 66). Portanto, a adoção desta teoria significa não entender as socie-
dades capitalistas, por exemplo, como sendo harmônicas e funcionais, e sim Assim sendo, o processo de socialização não é um processo neutro,
que estas encerram contradições fundamentais. pois ele acontece dentro de um contexto de valores específicos. Os valores
que são inculcados são os valores dominantes que, como lembram Marx
e Engels (1984) em “A Ideologia Alemã”, são sempre os valores da
GRUNEAU apud LOY et al. (1978, p. 3401) coloca que, a partir da classe dominante. Dessa forma, o que a socialização principalmente
ótica do conflito, o esporte: reproduz são as desigualdades sociais, isto é, é a própria dominação se
processando.
1. Precisa ser entendido no contexto mais amplo das condições ob-
jetivas das sociedades capitalistas. Assim, podemos dizer que a socialização através do esporte escolar
pode ser considerada uma forma de controle social, pela adaptação do pra-
2. Está intimamente relacionado com as diferenças de classe em ter- ticante aos valores e normas dominantes como condição alegada para a fun-
mos de poder e riqueza. cionalidade e desenvolvimento da sociedade. Um dos papéis que cumpre o
esporte escolar em nosso País, então, é o dereproduzir e reforçar a ideolo-
3. Todo esporte competitivo reflete a ideologia burguesa. gia capitalista, que por sua vez visa fazer com que os valores e normas nela
inseridos se apresentem como normais e desejáveis. Ou seja, a dominação e
a exploração devem ser assumidas e consentidas por todos, explorados e
Por outro lado, coloca o mesmo autor que, a partir da abordagem exploradores, como natural.
estruturalfuncionalista, o esporte é assim encarado:
62 Educação Física e Aprendizagem Social A criança que pratica esporte respeita as regras do jogo ... capitalista 63
É ainda dentro da ótica estruturalfuncionalista que ouvimos com social. Esta crença de que no esporte desaparecem as desigualdades colabo-
freqüência a afirmação de que o esporte educa. Se indagarmos por que, ou o ra também para um certo abrandamento das contradições ou conflitos soci-
que tem de educativo no esporte, obteremos quase que invariavelmente a ais.
seguinte resposta: o esporte educa porque ensina a criança a conviver com a
vitória e a derrota, ensina a respeitar as regras do jogo (já que todos são
SHINNICK (1978, p. 96) lembra muito bem que os valores “univer-
iguais perante a lei, devemos respeitála, sem discutíla), ensina a vencer
sais” camuflam as contradições sociais, e os valores universais no esporte
(no jogo e na vida) através do seu esforço pessoal (às vezes tem que, mo-
também encobrem a dominação e a exploração de classe.
mentaneamente, aliarse a outro ou outros para atingir este objetivo, proces-
so que os pedagogos do esporte chamam de cooperação ou companheirismo),
ensina a competir (já que a sociedade é extremamente competitiva e isto a Assim, como vimos, realmente o esporte educa. Mas, educação
prepara para a vida (1), desenvolve o respeito pela autoridade, que é o árbi- aqui significa levar o indivíduo a internalizar valores, normas de
tro ou o professor (chamase a isso de disciplina). Precisamos entender que comportamento, que lhe possibilitarão adaptarse à sociedade capitalis-
as atitudes, normas e valores que o indivíduo assume através do processo de ta. Em suma, é uma educação que leva ao acomodamento, e não ao ques-
socialização no esporte estão relacionados com sistemas de significados e tionamento. Uma educação que ofusca, ou lança uma cortina de fumaça
valores mais amplos, que se estendem para além da situação imediata do sobre as contradições da sociedade capitalista. Uma educação a serviço
esporte. Como lembram BERGER/BERGER (1978), os jogos das crianças da classe dominante. Uma educação que não leva à formação “do indi-
norteamericanas revelam certos valores básicos, como a independência, as víduo consciente, crítico, sensível à realidade que o envolve” (OLIVEI-
realizações individuais, o que se depreende da ênfase que põem na compe- RA, 1983).
tição individual.
Se analisarmos as aulas de Educação Física onde o esporte escolar é
Nessa medida, não é difícil, numa rápida análise da resposta ante- iniciado e desenvolvido, veremos que a idéia da aprendizagem do esporte
riormente mencionada, identificar valores e elementos da ideologia burgue- enquanto aprendizagem das técnicas esportivas, predomina. Isto porque,
sa. No esporte, desenvolvemse idéias ou valores que levam ao conformismo, para a competição, na verdade, é isto que conta. Permeia, portanto, a busca
como é o respeito incondicional a regras, porque o comportamento não con- do rendimento atléticoesportivo, que é condição para as possibilidades de
formado no esporte não leva a modificações do esporte mas, sim, à exclusão vitória nas competições. Com a exacerbação do espírito competitivo do es-
dele. No esporte, colocase em destaque a idéia de que todos têm a oportu- porte na escola, as técnicas esportivas e o próprio esporte foram elevados à
nidade de vencer (vencer no esporte = vencer na vida), através do esforço condição de finalidade, ou seja, o esporte enquanto fim em si mesmo. Neste
pessoal e individual (2), bastando para isso que se esforcem e que tenham momento, em que a idéia da competição (concorrência) toma conta do es-
talento (como Pelé, Zico, Bernard e outros), o que, em última análise, justi- porte escolar, idéia esta que é fomentada pela busca da vitória, às vezes a
fica e explica as diferenças sociais, negando toda e qualquer determinação qualquer custo (lucro), e do que ela representa na nossa sociedade (vencer
na vida), já não existe mais espaço para a discussão sobre as normas do
esporte, para a criação no esporte (adaptar o esporte à realidade social e
cultural do grupo que faz esporte = criação cultural); já não existe mais
espaço para a preocupação com o desenvolvimento de valores relacionados
com o coletivismo (entendido como ações que visem prioritariamente o bem
1 Ou para o mercado?
comum, ou seja, priorizem o coletivo ao individual): já não existe o espaço
para a discussão de estratégias que permitam a participação de todos os
2 “Só depende de você a alegria de vencer”, dizia a propaganda do chiclete Ping alunos com as mesmas oportunidades nas aulas, porque o professor tem de
Pong na TV, associando a idéia ao esporte.
64 Educação Física e Aprendizagem Social A criança que pratica esporte respeita as regras do jogo ... capitalista 65
preocuparse com os que apresentam melhor rendimento; preocuparse com tificar a contribuição específica da Educação no processo de transfor-
a melhoria da técnica (elevandoa à categoria de fim); preocuparse com o mação da sociedade.
ensino das regras internacionais dos esportes, ou melhor, com a imposição
das regras internacionais que permitirão as condições objetivas de compa-
ração de performances; preocuparse em desenvolver nos alunos e suas equi- Esta possível contribuição prendese ao fato de que a escola não é
pes o espírito de competição, condição para a obtenção de vitórias (vencer um instrumento homogêneo da classe dominante, pois nela refletemse as
contradições existentes na sociedade, refletese portanto o antagonismo en-
na vida).
tre os interesses burgueses e proletários. Neste sentido, na escola existe um
espaço, embora pequeno, para o que GADOTTI (1983, p. 162) chama de
Como mencionamos anteriormente, estas características que o es- “guerrilha ideológica travada na escola”.
porte escolar apresenta não são geradas no seio do próprio esporte, e sim,
são o reflexo mediatizado da estrutura social em que ele se realiza, ou seja,
da sociedade capitalista. Neste momento, cabe ou surge a grande indaga- Cumpre, para desenvolver uma pedagogia esportiva com alguma
ção: em que medida ou até que ponto poderemos chegar a um quadro dife- força transformadora, tomar como ponto de partida um compromisso
rente? ou seja, o esporte escolar pode ser diferente? pode cumprir um papel político com a classe oprimida e dominada, que é a classe trabalhadora;
diferente do de inculcar a ideologia burguesa? portanto, uma pedagogia que não se comprometa com os interesses bur-
gueses, e sim com os interesses da classe trabalhadora e, mais ainda,
com os “interesses revolucionários das classes populares” (GADOTTI,
Se assumíssemos aqui e agora a postura das teorias crítico
reprodutivistas (SAVIANI, 1984), afirmaríamos que o esporte, nesta socie- 1983, p. 150).
dade, invariavelmente contribuirá para a reprodução da atual estrutura so-
cial. Embora reconhecendo as ferrenhas determinações sociais que sobre a Neste sentido, a tarefa que se impõe parecenos ser a de desenvol-
Educação Física Escolar recaem, acreditamos que no seu interior a contra- ver uma pedagogia desportiva que possibilite aos indivíduos perten-
dição não foi suprimida, ela persiste. Embora os espaços a serem ocupados centes à classe dominada, aos oprimidos, o acesso a uma cultura espor-
no sentido de uma ação transformadora sejam restritos, admitimos sua exis- tiva desmistificada. Permitir ou possibilitar, através desta pedagogia,
tência. Neste sentido, o da identificação deste espaços, cumpre inicialmente que estes indivíduos possam analisar criticamente o fenômeno esporti-
incluir a Educação Física/Esporte escolar no contexto mais amplo da Edu- vo, situálo e relacionálo com todo o contexto sócioeconômicopolíti
cação e, enquanto parte desta, analisar as possibilidades de contribuição/ co e cultural.
colaboração para o processo de transformação social, condição para a con-
cretização de uma sociedade mais justa e livre.
3.3 Princípios de uma pedagogia crítica para a Educação Física
Na busca do esclarecimento da contribuição da Educação para a
transformação social, deparase com duas posições antagônicas. De um Embora não seja objetivo deste ensaio desenvolver uma proposta
lado, a postura teórica que identifica na Educação a redenção da socie- pedagógica numa perspectiva de classe, e que tenha como fundamento o
dade/humanidade (teorias acríticas), e por outro, a postura teórica que referido compromisso político com a classe dominada, ousadamente coloco
percebe na Educação o papel invariável da reprodução da estrutura so- algumas reflexões que, acredito, apontam neste sentido.
cial (teorias críticoreprodutivistas). O que cabe, no entender de SAVI-
ANI (1984), não é a polarização das duas posturas, mas sim, a busca da
superação através de uma teoria crítica da Educação, que possa iden- Os professores de Educação Física na ação devem, efetivamente, in
corporar novas posturas frente a algumas questões básicas:
66 Educação Física e Aprendizagem Social A criança que pratica esporte respeita as regras do jogo ... capitalista 67
Precisam superar a visão positivista de que o movimento é predo- Superar a falsa polarização entre diretividade e nãodiretividade.
minantemente um comportamento motor. O movimento é humano, e o Ho- Embora as pedagogias nãodiretivas tenham contribuído para a denúncia do
mem é fundamentalmente um ser social. A “motricidade já não é mais bio- excessivo autoritarismo com que a Educação bancária (FREIRE, 1983) con-
lógica e sim histórica e social” (ROUYER, 1975, p. 192). Desta forma, o duzia o processo educativo, o oposto, ou seja, o nãodiretivismo, pode nos
movimento tem repercussão sobre todas as dimensões do ser humano. A levar a um espontaneísmo estéril que acaba tornandose ideológico. FER-
conseqüência disso para a ação pedagógica é de que, nas aulas de Educação REIRA (1984), que citamos no início deste capítulo, de certo modo cai nes-
Física, devemos objetivar muito mais do que a aptidão física, a aprendiza- ta “armadilha” quando coloca que as fontes de informações, normas e san-
gem motora, a destreza desportiva, etc.; devemos entender que o movimen- ções, numa perspectiva de transformação, devem provir dos interesses, ne-
to que a criança realiza num jogo tem repercussões sobre todas as dimen- cessidade e motivações do educando, o “indivíduo”. Para tanto, segundo a
sões do seu comportamento, e mais, que esta atividade veicula e faz a crian- autora, o educador deve ser um “facilitador da conscientização”, a partir de
ça introjetar determinados valores e normas de comportamento. Portanto, motivações “intrínsicas” dos indivíduos. Ora, as crianças não chegam “va-
aquela idéia de que, atuando sobre o físico estamos automaticamente e ma- zias” às aulas de Educação Física; elas já estão incorporadas ao processo de
gicamente atuando sobre as outras dimensões, precisa ser superada para socialização burguesa, e, se nós quisermos a introjeção de normas e valores
que estas possam ser levadas efetivamente em consideração na ação peda- que se contrapõem aos burgueses, temos que dar uma direção, ou seja, “di-
gógica, através do estabelecimento de estratégias que objetivem conscien- rigir” o processo educativo, pois os interesses, necessidades, etc., da crian-
temente o desenvolvimento, num determinado sentido, destes outros aspec- ça, já estão “contaminados”, isto é, estes já estão determinados pelo social
tos/dimensões dos educandos. O que atualmente acontece é que, embora os (meioambiente). Assim, permitir ou facilitar, simplesmente, que eles desa-
objetivos da Educação Física incorporem a dimensão psicosocial, as estra- brochem, implica na reprodução e não na transformação. A postura de que o
tégias/atividades são totalmente norteadas pelos objetivos relacionados à educador deve apenas facilitar o desenvolvimento das potencialidades da
aptidão física, destrezas desportivas, aprendizagem motora, esperandose criança, tem como fundamento a idéia de que a criança possui uma “nature-
que estas, automaticamente, tenham repercussão sobre as outras dimensões. za” que é fundamentalmente boa, e que bastaria permitir que isto se mani-
festasse. Se assumirmos uma postura de classe social para a Educação, os
Precisam superar a visão de infância que enfatiza o processo de interesses e necessidades que devem ser levados em consideração não são
os dos “indivíduos”, e sim os interesses de classe.
desenvolvimento da criança como natural, e não social. Falase da criança
em si, e não de uma criança situada social e historicamente. Falase da natu-
reza da criança, e isto é ideológico na medida em que encobre as diferenças Um outro equívoco que precisa ser superado é o de que devemos
produzidas pela condição social destas crianças. “Na sociedade capitalista, simplesmente ignorar a cultura dominante, que, nesse entendimento, não
definida pelas relações estabelecidas entre classes sociais antagônicas, a serve à classe dominada. Não podemos simplesmente negar a cultura domi-
srcem da criança determina uma condição específica de infância” (MI- nante, e sim permitir que a classe dominada, em dominando a cultura domi-
RANDA, 1984, p. 128). nante, possa reconstruíla a partir de suas necessidades e interesses. Em
termos de Educação Física, significa que não devemos negar o desporto
Os professores de Educação Física devem buscar o entendimento como meio da Educação Física, porque ele, segundo alguns, é “essen-
de que o que determinará o uso que o indivíduo fará do movimento (na cialmente burguês” (LAGUILLAUMIE, 1978 apud FERREIRA, 1984, p.
forma de esporte, de jogo, de trabalho manual, de lazer, de agressão a outros 54). Para que a classe dominada possa reelaborar o esporte, tornandoo não
e à sociedade, etc.), não será, em última análise, a condição física, habilida- mais burguês, existe a necessidade que esta classe domine a cultura esporti
de esportiva, flexibilidade, etc., e sim, os valores e normas de comporta- va burguesa, mas, também, que lhe seja simultaneamente permitido desmis
mento introjetados pela condição econômica e pela posição na estrutura de tifícar essa mesma cultura esportiva. O esporte é burguês, não porque é esta
a sua essência e, sim, porque suas múltiplas determinações lhe fornecem as
classes de nossa sociedade.
68 Educação Física e Aprendizagem Social A criança que pratica esporte respeita as regras do jogo ... capitalista 69
características para tal. De maneira que, para termos um esporte nãoburgu so ver, visar uma ação que permita que se estabeleça uma política educacio-
ês, precisamos atuar sobre suas determinações. E o Educador representa o nal, e que se concretize uma escola em nosso País, de acordo com as neces-
momento de ruptura em relação ao que é determinado socialmente, ao mes- sidades e interesses da classe trabalhadora. A atuação política do professor
mo tempo que define uma conduta para levar o educando a uma solidarieda- de Educação Física deve também alcançar a política partidária, para que,
de consciente, vale dizer, ao sentido coletivo de sua formação (LIBANEO, enquanto cidadão comum, assuma o papel de sujeito político da sociedade.
1985). Procurando desenvolver um esporte em que o princípio do rendi-
mento e da competição discriminatória (melhores dos piores), do esforço Finalizando, gostaríamos de lembrar as palavras do professor Flo-
pessoal e individual (às vezes associado) para vencer o adversário não seja restan Fernandes, ditas no III Congresso Estadual de Educação, em São
o norteador principal deste, desenvolvendo um esporte em que se busca o Paulo: “O educador que se nega no plano ideológico e político, se nega
jogar com e não contra o adversário, um esporte onde se busca insistente- também como educador” (Abril de 1985).
mente o desenvolvimento do coletivismo (priorização do coletivo ao indivi-
dual, incluindo o “adversário/companheiro”), estaremos na verdade descarac-
terizando o esporte burguês e lançando e criando as bases de um novo es-
porte que, por sua vez, somente se consolidará com a criação também de
uma nova ordem social, sem a qual não terá condições de sobreviver, por-
que será fatalmente submetido à ordem burguesa.
Para que este novo esporte que leve a uma nova sociabilização,
emerja, os professores de Educação Física devem superar também a idéia,
muito difundida, de que, nas aulas de Educação Física, não se deve falar, ou
seja, não se deve sentar e discutir com os alunos o que está se fazendo, sob
o argumento de que a aula de Educação Física deve ser “orática” (entenda
se “adestrante”).
CAPÍTULO IV
A Educação Física escolar como campo de vivência social
4.1 Introdução
Os chamados métodos ginásticos que, por muito tempo, prepondera- problemas de nossa sociedade, sem a necessidade da transformação es-
ram na nossa Educação Física escolar, significam a prática da visão dualista trutural desta.
do Homem.
A visão anteriormente caracterizada tem muitas facetas, mas que no
O dualismo, todavia, ou esta dicotomia, nem sempre se apresenta fundo têm em comum o fato de não se embasar numa crítica radical à socie-
de forma tão flagrante na Educação Física. Muitas vezes vêmolo ca- dade capitalista, que, com “características próprias”, é o caso da sociedade
muflado por um discurso pretensamente holista que, contudo, não so- brasileira.
brevive a uma análise teórica mais detalhada e/ou a uma verificação
crítica de sua prática. Referimonos ao fato costumeiro de se atribuir à
Educação Física finalidades “biopsicosociais” nos planejamentos di- Se fizermos, no entanto, uma análise não mais funcionalista da
dáticos, arrolados muitas vezes da legislação e na ação, ou seja, no função social da Educação e mesmo de nossa sociedade, mas sim uma
momento em que se fundem prática e teoria; os valores considerados análise a partir do materialismo histórico e dialético, chegaremos, como
são de ordem “física”, com o menosprezo das questões “psicosociais”, muitos educadores que assim procederam, a algumas conclusões impor-
tantes:
esperandose que os efeitos positivos sobre estes ocorram automática e
“magicamente”, não sendo necessário considerálos efetivamente na
ação pedagógica. A Educação é ao mesmo tempo determinada e determinante da
estrutura social. Daí que não seja possível negar o caráter político da Edu-
Além desta questão fundamental, as diversas maneiras de com- cação. Daí que os problemas básicos da pedagogia não sejam estritamente
preender a Educação também têm influenciado, decisivamente, a ação pe- pedagógicos, mas políticos e ideológicos.
dagógica em Educação Física.
A Educação nas sociedades capitalistas, ou na sociedade brasi-
Não existe a possibilidade, nem é a intenção aqui, discutir aprofun leira, é fator de reprodução social, vale dizer, fator de reprodução ou
dadamente as diversas teorias educacionais, vale dizer, o papel social da manutenção da sociedade de classes. Esta reprodução se dá de diversas
Educação. A breve análise que colocaremos a seguir tem o objetivo mínimo formas:
de situar a nossa posição frente a esta questão.
1. O acesso à Educação é seletivo. Isto significa que a estratificação
De uma forma bastante rústica, poderíamos dizer que, entre os social se reflete no sistema educacional brasileiro. Filhos das camadas me-
profissionais da Educação Física, impera a idéia ou a certeza da positi- nos favorecidas, ou não têm acesso à escola ou são obrigados por múltiplas
vidade do papel da Educação em nossa sociedade. Assim, sendo a Edu- razões a abandonála precocemente, ou ainda, quando nela permanecem,
cação Física parte integrante da Educação, tem ela também uma função não alcançam, com não significativas excessões, os níveis de ensino secun-
social positiva e importante. É a chamada visão funcionalista do papel dário ou superior. O contrário acontece com os filhos das camadas mais
da Educação. Tratase de colaborar, dentro do campo educacional, para favorecidas que, viaderegra, têm acesso tanto à Educação via sistema de
a funcionalidade, progresso e desenvolvimento de nossa sociedade. Nesta ensino, como são beneficiados por um ambiente cultural favorável ao seu
concepção, a Educação desfruta de autonomia frente ao todo social de desenvolvimento intelectual. É o que poderíamos chamar de a reprodução
modo que ela se apresenta como instância social capaz de resolver os pela exclusão e seletividade.
74 Educação Física e Aprendizagem Social AE d uc a ç ã oFí s i c ae sc o l a rc o m oc a m p od ev i v ê nc i as o c i a l 75
2. A Escola ou a Educação, no sentido mais amplo, é veiculadora cificamente, a socialização para o desempenho de determinado papel social
de uma visão de mundo, de homem e de sociedade impregnada da ideo- envolve a aquisição de capacidades (habilidades) físicas e sociais, valores,
logia burguesa. Isto é, a Educação é uma das responsáveis pela sociali- conhecimentos, atitudes, normas e disposições que podem ser aprendidas
zação das pessoas para viverem numa sociedade de classes, a ponto de em uma ou mais instituições sociais, como por exemplo a família, a escola,
encararem suas costradições como absolutamente normais, quando não o esporte, e ainda através dos meios de comunicação.
desejáveis. Para a veiculação ideológica, são vários os aspectos que para
tanto contribuem: vão desde a organização burocrática da instituição
Segundo DIETRICH (1974), desde que há considerações peda-
Escola, passando pela forma de ensino até o conteúdo ensinado ou tra-
gógicas acerca dos jogos de movimento, há tanto tempo também seus
tado.
aspectos socialeducativos tem sido ressaltados. A inclusão e início de
programas de esportes na escola tem sido, freqüentemente, baseados na
Em se identificando o caráter reprodutivista da Educação brasileira, crença comum de que a participação no esporte é um elemento de soci-
cabe ao Educador tomar uma posição que, digase de passagem, não pode alização que contribui para o desenvolvimento mental e social (LOY et
ser de neutralidade; “ou fazemos uma pedagogia do oprimido, ou fazemos al. 1978).
uma pedagogia contra ele” (FREIRE, 1983). Assumindo um compromisso,
que é político, com o processo de transformação estrutural da sociedade na
perspectiva da edificação de uma sociedade efetivamente democrática, isto De acordo com DIETRICH (1974), se for seguida a literatura especi-
alizada até o fim dos anos 60, descobrese uma relativa concordância nas
é, a superação da sociedade de classes, o Educador deve atuar no sentido de
inverter ou reverter esta situação, buscando colocar sua prática e a Educa- declarações sobre as funções sócioeducativas do esporte em geral e dos
jogos esportivos em especial, com afirmações como as de que o reconhecer
ção a serviço deste projeto social.
das determinações de campeonatos e o respeitar (manter) das regras do jogo,
educam para um sentimento de responsabilidade, de cavalheirismo, de sin-
O educador, na sua prática, quer queira quer não, é um veiculador de ceridade, para trabalhar com o próximo.
valores. É neste sentido que reside a vinculação da forma de ensino com o
seu conteúdo. A socialização do indivíduo ou da criança se dá exatamente
através da internalização de valores e de normas de conduta da sociedade a Os brasileiros ouviram, durante o ano de 1980, repetirse nas trans-
que pertence. A Escola é uma das instituições que promove tal socialização. missões esportivas da Rede Globo de Televisão, o seguinte slogan: “a crian-
ça que pratica esporte respeita as regras do jogo; pratique esporte”, numa
Portanto, o fenômeno da socialização ou a aprendizagem do social também
clara alusão ao conteúdo “pedagógico” do esporte.
ocorre nas aulas de Educação Física, sendo inclusive enfatizada como
importante função pela pedagogia desportiva ou da Educação Física.
Por conseguinte, existe a necessidade de aprofundarmonos nesta ques- Em suma, a literatura tem atribuído ao esporte o poder de desen-
tão. volver, em quem pratica, principalmente na criança, o companheirismo, a
cooperacão, o respeito às regras e normas, o valor e a força de vontade,
além da responsabilidade, sentido social, etc.
valorização deste resultado. Por exemplo, WEIGELT apud DIETRICH DIETRICH (1974) analisa a aprendizagem social no esporte a partir
(1974) afirma que as condições ou necessidades do esporte organizado, do do ponto de vista de três teorias sociológicas, quais sejam: a teoria estrutu
esporte de alto nível ou de rendimento e do êxito olímpico são, simultanea- ralfuncionalista, cujo principal representante é Talcot Parsons, a teoria do
mente, as condições de uma sociedade de estruturação autoritária. Suas ne- conflito e a teoria crítica. Das suas análises depreendese que a socialização
cessidades motoras autoritárias são, conseqüentemente, preparadas durante através do esporte, como hoje acontece, é valorizada somente a partir da
a fase de socialização na família e na escola. CACHAY/KLEINDIENST ótica estruturalfuncionalista da sociedade. Ainda de acordo com o autor, o
(1975) argumentam que a aceitação, por parte da didática, de que “virtudes” esporte é mais apropriado para desenvolver valores conforme o sistema, do
são assumidas em espaços de ação esportiva e através da intemalização de que valores superadores ou questionadores do sistema. O jogo esportivo é
normas necessárias à execução de exercícios corporais, mostra que esta di- um modelo exemplar da interação equilibrada, e como tal é um símbolo
dática representa uma educação ao acomodamento, e não ao questionamen- para um sistema social que, autoregulativamente, permanece em equilí-
to e à revisão de normas. brio. O jogar, disciplinada e silenciosamente, é uma forma de comunicação
restrita e ritualística.
Como ressalta PARLEBAS (1980), pelas próprias regras das compe-
tições, o esporteimprime ao comportamento motor as normas desejadas da Como muito bem lembra SHAFER apud LOY et al. (1978), os pro-
competição e da concorrência. Assim, o esporte é um molde social do cor- gramas escolares de esportes têm contribuído mais no sentido de promover
po. os valores e estilo de vida da sociedade, do que no de propiciar aos indiví-
duos a oportunidade de questionar o existente, ou tentar modelos alternativos.
Fica claro nesta colocação que a socialização não é um processo neu-
tro e universal; pelo contrário, isso acontece dentro de um contexto de valo-
res específicos. “Normas e valores podem ser aceitos, mas são sobretudo 4.3 A aprendizagem social no ensino dos esportes nas escolas
impostos, pois normas e valores dominantes são sobretudo dos dominan-
tes” (DEMO, 1983).
Como afirmam LOY et al. (1978), na infância são justamente a famí-
lia e a escola as instituições sociais de maior influência no processo de soci-
Como vimos anteriormente, temos diferentes valorizações dos resul- alização. A Escola é formalizada, com regras estabelecidas, onde os profes-
tados da aprendizagem social através do esporte. Qual seria a razão desta sores representam não só a autoridade adulta e a necessidade de ordem e
disparidade? disciplina, como também os valores do conhecimento. A Escola, assim, fun-
ciona para reforçar valores correntes na sociedade convencional (ELKIM,
Para DIETRICH (1974), as controvertidas interpretações do sig- 1968).
nificado da aprendizagem social no esporte, e nisso estão baseadas as pos-
sibilidades pedagógicas do jogo esportivo, devemse a pontos de vista teó- Segundo HARPER et al. (1980), na escola não se adquire apenas
ricos diferentes no que diz respeito à sociedade como um todo. Para um conhecimentos, mas aprendese também uma série de valores e de normas
melhor entendimento das interpretações contraditórias sobre a importância de comportamento. Muitos desses valores são impostos por certas práticas
da aprendizagem social no esporte, devemos tornar claras as teorias sociais pedagógicas, como o aprendizado do sentimento de inferioridade, de sub-
que as suportam. missão, o respeito pela ordem estabelecida, o aprendizado do “cada um por
si”, da competição, inculcando desta forma o individualismo, sem que as
pessoas se apercebam disso.
78 Educação Física e Aprendizagem Social A Educação Física escolar como campo de vivência social 79
Parecenos claro, pois, que, através do esporte, podem ser veicula- Na Escola atual, o professor é o ponto de orientação, e os alunos
dos determinados valores e normas, como ilustrado por PARLEBAS (1980), devem observálo, pois ele é o início e o fim do que há para fazer. Nessa
quando afirma que, através do esporte, impõese todo o dispositivo oficial estrutura, deve ser observado o princípio básico: “obedecer ao professor”
da instituição esportiva: federações, regulamentos, calendários de encon- pois, na aula, o comportamento inteiramente aceito é somente aquele
tros, cerimônias, sanções, instâncias de autoridades, dirigentes, árbitros e que corresponde às regras de relacionamento validadas pela instituição
capitães de equipes. Participar do torneio esportivo equivale a reconhecer, Escola.
implicitamente, uma tal autoridade. No campo, em última instância, é sem-
pre o árbitro quem decidirá. O poder institucional desportivo denota uma
organização hierárquica, autoritária e centralizada. Esta aparelhagem é ple- É lógico que existem formas de ensino que atenuam e que procuram
na de implicações sóciopolíticas. modificar essa relação. Porém, de acordo com os estudos de LABORINHA
(1981), BRESSANE (1981) e FARIA JR.(1981), o professor de Educação
Física, no Brasil, se caracteriza pela diretividade, o que vem reforçar a situ-
Estando a nossa atividade esportiva escolar atrelada, através de sua ação enunciada anteriormente.
estruturação burocrática e da ideologia do esporte competição que a nor-
teia, ao sistema esportivo internacional (BRACHT, 1983), tornase muito
lógico pensar que os valores acima ressaltados por PARLEBAS (1980) es- Segundo LANDAU/DIETRICH (1979), um outro fato marcante das
tarão norteando e influindo, fortemente, na atividade esportiva em nossas regras que regem o ensino e a Escola é a diferenciação social dos alunos,
escolas, e, conseqüentemente, contribuindo para a afirmação daqueles va- baseada no rendimento individual que propicia a comparação. O espor-
lores. te e a escola são sistemas sociais que estão cunhados pela idéia da con-
corrência.
Se quisermos empreender uma tentativa de superação da tradicional Como lembra OLIVEIRA (1983), a Educação Física, apesar de ser
concepção de aprendizado social que, no esporte, enfatiza o respeito incon- uma atividade essencialmente prática, pode e deve oferecer a oportunidade
dicional e irrefletido às regras, que dá a estas um caráter estático e inquesti- para a formação do homem consciente, crítico e sensível à realidade que o
onável e que não leva à reflexão e ao questionamento, mas ao acomoda- envolve.
mento, precisamos determinar, em coerência com nossas idéias educacio-
nais, o que deveria buscar o aprendizado social no esporte e como alcancá
DIETRICH (1974), colocando o aprendizado social como um ob-
lo.
jetivo a ser buscado nas aulas de Educação Física, fez uma análise das inte-
rações nos jogos esportivos, utilizando a seguinte diferenciação de concei-
Apoiamonos em GEIST/WEICHERT (1981), para quem o apren- tos: a) ação social que aparece como efeito racional é de ação respectiva ao
dizado social deve ser o conhecer, o tornarse consciente das normas sociais trabalho e, b) ação social como compromisso comunicativo é da ação res-
e, se necessário, o saber e o poder modificálas. Em oposição ao "compor pectiva à interação. Na sua análise, classifica a metodologia tradicional do
tarse socialmente" não é postulada nenhuma norma social positiva, tratase ensino dos jogos esportivos como sendo uma ação respectiva ao trabalho, o
primeiro de testála num contexto social e então decidirse, livre e consci- que transforma o jogo num ritual que valoriza as normas técnicas, e no qual
entemente, sobre sua adoção ou modificação. Nesta concepção, toma o comportamento divergente é encarado como interruptor, e não fomenta-
se uma decisão livre e consciente pelo estudo das normas, tendo em dor do aprendizado social. Isto é, o jogo esportivo, como é ensinado e prati-
vista a conscientização do processo de regulamentação, isto é, daqueles cado atualmente, exalta o jogar como trabalho, assemelhandose a um ritual
caminhos
binadas, oupelos quais e/ou
impostas novasdestituídas.
regras sãoA instituídas, discutidas
esta concepção e com-
acrescentamos estritamente determinado.
controle é exercido por uma Nesse caso, oso árbitro
força externa, papéis ousão prédeterminados, e o
o professor.
as afirmações de LANDAU/DIETRICH (1979) de que, ao aparecimen-
to das regras no esporte e no ensino desse, deveria seguir um acordo
Neste ponto, ressaltamos o fato de que, no momento em que deixa-
social que, ao mesmo tempo, desse chances a que essas regras fossem
mos de supervalorizar as regras regulativas, constitutivas e técnicas do es-
entendidas e testadas.
porte, ou seja, o jogar como ação respectiva a trabalho, estamos subtraindo
a característica mais acentuada do esporte moderno e recuperando, parcial-
Para questionar regras e significados, devese falar. A afirmação de mente, o jogo.
que o ensino dos esportes não é para se sentar e discutir, mas sim para se
movimentar, deve ser encarada seriamente sob o ponto de vista da "defici-
ência de movimento na escola”. No entanto, falar sobre o social não deve
ficar reduzido à discussão das matérias onde os alunos permanecem senta- 4.4 O fenômeno do jogo na sua relação com o esporte
dos, porque ali só são possíveis experiências de interação de forma reduzi-
das enquanto que, nos jogos esportivos, os processos de interação são vari- O esporte moderno, cada vez mais, perde as características do jogo
ados e especiais. Além disso, o argumento de que a intensidade de movi- estabelecidas por HUIZINGA (1980), que, já em 1938, detectava este pro-
mento e o entendimento de que essa atividade forma uma boa aula de Edu- blema: "a sistematização e regulamentação cada vez maior do esporte im-
cação Física, onde os alunos suam sem que outros resultados sejam consci- plica a perda de uma parte das características lúdicas mais puras”.
entemente objetivados, será, neste caso, somente quantidade de movimen-
to. A isso, podese opor uma consciência de qualidade de movimento a par-
CAGIGAL (1979) afirma que o esporte será tanto mais educativo
tir do qual o aluno, por si mesmo, motivado e consciente, pratica esporte por
quanto mais conservar sua qualidade lúdica, sua espontaneidade e seu po
longo tempo (GEIST/WEICHERT, 1981).
der de iniciativa. Daí porque o esporte superclassificado, levado a extremos
82 E d uc a ç ã oF í s i c aeA p r e nd i z a g e mS o c i a l A Educação Física escolar como campo de vivência social 83
pelo fato do tecnicismo, modelado e esteriotipado, não é mais educativo. O verificar qual o de maior eficácia no ensino do basquetebol para meni-
movimento esteriotipado, o gesto típico, a precisão biomecânica dos exercí- nos de nove anos de idade. O resultado de seu estudo indicou que, para
cios graças aos quais se obtiveram recordes tão surpreendentes, harmoni destrezas simples, o método global foi melhor, e, para destrezas com-
zamse dificilmente com a riqueza do movimento humano, com a expressi- plexas, o método parcial foi superior. OLIVEIRA (1981) pesquisou os
vidade pessoal do gesto e com a rica dimensão do comportamento do exer- métodos parcial e global do ensino do basquetebol para meninos de 8 a
cício físico. Para este autor, o excesso de técnicas ou o condicionamento da 12 anos de idade e não encontrou diferença significativa entre os resul-
técnica numa atividade cujo maior valor reside na espontaneidade lúdica, tados obtidos.
no poder da expressividade da criatividade, da afirmação da pessoa e do
grupo, pode anulála. O excesso de aprendizagem de modelos, de taxiono
Podese observar, nas pesquisas desenvolvidas na área de apren-
mias e o supertecnicismo são os perigos mais graves do esporte educativo
dizagem motora, que alguns aspectos das aulas de Educação Física ou en-
de nosso tempo.
sino dos jogos esportivos, não têm sido levados em consideração, como,
por exemplo, a possibilidade de interrelacionamento social, tipo de apren-
Daí pensarmos que o esporte na escola deva preservar ou recupe- dizagem social, o desenvolvimento cognitivo, o desenvolvimento de moti-
rar o caráter lúdico, devendo, portanto, estar a ação pedagógica voltada vação para a prática permanente do esporte que um ou outro método propi-
para tal. cia.
4.7.1.2 Questionário
Os dados referentes a esta variável do grupo controle foram coleta- FIGURA 2 - Série me todológica de jogos para o aprendizado do basquetebol
dos durante o mesmo período, através da observação e registro de seis aulas
de outras turmas de 6a série do mesmo colégio, às quais estavam sendo
ministradas aulas de esportes coletivos.
c) Procedimentos do professor:
Consoante com essas orientações de ordem global, deve objetiva- A comparação entre os resultados obtidosna categoria “contatos so-
mente: ciais” quando utilizada a MFI e quando utilizada a MT, foi realizada a par-
tir da tabela 1.
Incentivar os alunos e possibilitarlhes a participação no planeja-
mento das aulas;
TABELA 1 — Freqüência total dos comportamentos positivos, neutros e
negativos de seis aulas da MFI e da MT na categoria “Contatos sociais”
Incentivar os alunos a expressarem idéias para a realização e modi-
ficação dos jogos.
4.7.4 Metodologia tradicional (MT) calculado com os dados da tabela 3 foi 293,3. O quiquadrado tabelado
para alfa = .01 e 2 graus de liberdade é igual a 9,21. Portanto, rejeitou
se a hipótese nula.
No presente estudo, a metodologia tradicional (MT) foi considerada
como sendo a metodologia comumente utilizada nas aulas de Educação Fí-
sica na Escola.
A freqüência dos comportamentos de interação social obtidos atra- TABELA 4 — Freqüência total dos comportamentos positivos, neutros e
vés do registro nas fichas do SIRCIS estão descritos em tabelas que se- negativos na categoria “Participação na r esolução de conflitos”,
guem. Não existe, neste espaço, a possibilidade da apresentação das tabelas em seis aulas da MFI e da MT
que demonstram o comportamento das freqüências por categoria e por di-
mensão nas diferentes aulas observadas das duas melodologias. Desta ma-
neira, apresentamos somente as tabelas resumo, onde estão computados os
resultados das observações por categoria, em seis aulas desenvolvidas com
a MFI e em seis aulas desenvolvidas com a MT.
portamentos positivo, neutros e negativos, como nas categorias 1, 2 e 3, e TABELA 6 - Freqüência total dos comportamentos positivos, neutros e
negativos na categoria “Mudanças de regras/expressão de idéias”,
sim, sobre o total de comportamentos verificados, pois o total de comporta- em seis aulas da MFI e da MT
mentos registrados denota a dimensão da preocupacão do professor em ex-
por estes conflitos, e solicitar a participação dos alunos para a sua supera-
ção.
TABELA 5 - Freqüência total dos comportamentos positivos, neutros e Como referido anteriormente, esses resultados mostram que os alu-
negativos na categoria “Aceitação de mudança de regras”, nos, nas aulas desenvolvidas com a MFI, tiveram uma contribuição muito
em seis aulas da MFI e da MT mais efetiva no que diz respeito à sugestão de mudança de regras e expres-
são de idéias em relação aos alunos que participaram das aulas desen-
volvidas com a MT. Isso vem ao encontro da idéia de aprendizagem
social adotada para fundamentar a MFI que enfatiza o reconhecimento
da relatividade das normas e a conscientização do processo de regula-
mentação.
TABELA 7 - Freqüência das respostas dos alunos sobre as finalidades das aulas TABELA 8 — Freqüência das respostas dos alunos sobre as finalidades das aulas
de Educação Física no pré-teste de Educação Física no pós-teste
Educação
5. 4 3 Para educar
1 Para nos desenvolver
Verificase, nestas tabelas, que a diversidade das respostas dadas no 6. Transferência 2 1 Parater maiscapacidade
préteste exigiu o estabelecimento de cinco categorias, enquanto que, no de estudos
pósteste, exigiu o estabelecimento de dez. No pósteste, não apareceu a 1 Aprender coisas boas
categoria “saúde”, no entanto apareceram opiniões que foram classificadas para a nossa vida e saber
em categorias como “Educação”, “Transferência”, “Sociabilização”, “Cria-
7.
Socialização 6 1 União entre professores e
tividade”, “Novidades” e “Exercícios físicos e movimentos”, categorias es-
alunos
tas ausentes no préteste. 1 Aprender a discutir os
problemas com os colegas
Esses resultados demonstram que ocorreu um alargamento do en- 1 Aprender a ter
responsabilidade
tendimento das finalidades da Educação Física com o surgimento, no pós 1 Respeitar os professores
teste, de categorias não relacionadas exclusivamente ao domínio psicomo- 1 Desenvolver a união do
tor e ao desenvolvimento morfofuncional mas, também, ao domínio social grupo
e cognitivo. 1 Respeitar os colegas
Novidades
8. 2
A questão nº 4 teve a seguinte redação: O que você aprende nas aulas
de Educação Física que você utiliza ou faz em outras situações (como por 9. Exercício físico e
movimento 7
ex., nas outras aulas, em casa, nos finais de semana, etc.)? Os resultados das
respostas dos alunos a esta questão no pré e no pósteste, estão resumidos 10.Criatividade 1
nas tabelas 9e 10.
98 Educação Física e Aprendizagem Social A Educação Física escolar como campo de vivência social 99
2. Regras 2
3. Higiene 2
4. Disciplina 2 1 Disciplina
1 Se comportar
100 E d u c a ç ã oF í s i c aeA p r e n d i z a g e mS o c i a l A Educação Física escolar como campo de vivência social 101
4.9 Discussão dos resultados tivo. Os alunos citaram em relação à pergunta referida, outras diferenças
com sentido positivo, como: "maior liberdade”, “mais brincadeira”, “podí-
amos conversar”, “discussão dos grupos", e isso mostra que outros fatores
Genericamente, verificouse que, nas aulas desenvolvidas com a MFI,
podem ter motivado esse nível de participação maior, como por exemplo, a
ocorreu um índice maior de comportamentos positivos do que nas aulas
forma menos diretiva de conduzir as aulas.
desenvolvidas com a MT. De acordo com a metodologia utilizada no pre-
Uma das idéias dessa metodologia é, justamente, melhorar o nível de
sente estudo, isso equivale dizer que a utilização da MFI propicia uma vi-
participação do aluno a partir do seu envolvimento consciente nas decisões
vência social diferenciada de quando é utilizada a MT. Porém, para uma
de aula, de modo a assegurar uma adequação real das atividades aos seus
melhor apreciação, impõese fazermos a análise dos resultados das catego-
interesses e necessidades.
rias.
será sua atuação. Quando, no entanto, o professor de Educação Física tem tos, pois eles interrompem a ordem e prejudicam a “produtividade”. Esque-
objetivos que visam o desenvolvimento da interação e a melhoria do enten- cem, no entanto, estes professores, que, neste “perigo” (o conflito), reside,
dimento recíproco, em suma, o desenvolvimento numa perspectiva global, de acordo com THOMAS (1978), a esperança de uma solução construtiva.
a comunicação, ao invés de reprimida, deve ser convenientemente incenti- A busca de uma solução conjunta satisfatória do conflito pode ter como
vada. resultado uma melhora nas relações e/ou funcionamento de todo o grupo.
Quando as regras de um jogo não são, simplesmente, impostas pelo Outro aspecto que envolve essa questão é o ressaltado por LAN
professor, mas resultam de um acordo entre os alunos, é necessário haver DAU/DIETRICH (1979), de que o tratamento normalmente dado pelo pro-
conversas sobre a conveniência, as exigências e a validade dessas regras. fessor, ou ignorando o conflito ou suprimindoo, baseado no estilo de co-
Exemplo de um incentivo à intercomunicação, característica da MFI, é a mando, só pode solucionar o conflito aparentemente, permanecendo os
solicitação freqüente do professor no sentido de que os alunos de deter- motivos de fundo sem serem tocados.
minado grupo discutam sobre a melhor maneira de organizar um determinado
jogo, ou de resolver determinado conflito ou problema. Essa questão pode ser evidenciada no conflito entre os alunos “mai-
ores” e “menores”, acontecido no grupo experimental. O envolvimento dos
Com relação à categoria “formação de subgrupos”, o que se verifi- alunos na solução daquele conflito levouos, em nosso entendimento, a com-
cou nas duas metodologias foi que a dimensão neutra predominou sobre as prometeremse e a coresponsabilizaremse pelo sucesso da solução encon-
demais, sendo que, na MT, essa predominância foi um pouco mais acentua- trada e sugerida por eles próprios. Neste caso formase. também, o ambien-
da. Acreditávamos que o maior envolvimento dos alunos no planejamento e te sóciopsicológico propício para a ação cooperativa.
decisões de aulas, propiciado pela MFI, tivesse como resultado uma maior
freqüência de atitudes de iniciativa na formação de grupos para os jogos, Outro fator levado em consideração pela MFI e que parece ser tam-
quando comparado com a MT, o que. efetivamente ocorreu, mas de forma bém uma das causas dessa diferença de freqüências nesta categoria, é o de
não significativa, como demonstraram as provas estatísticas. que os conflitos sobre a aplicação de regras oportunizam a discussão sobre
a validade e necessidade destas regras. Conseqüentemente, há uma tomada
Na categoria “participação na resolução de conflitos” verificouse de consciência por parte dos alunos, do processo de regulamentação e da
uma evidente diferença entre as duas metodologias, porém não em relação à própria razão de existir das regras. Ao contrário, na MT o surgimento dos
proporcionalidade dos comportamentos positivos, neutros e negativos, e sim, conflitos sobre regras não leva a esse tipo de questionamento, mas sim, à
no que diz respeito ao todo das freqüências nestas dimensões. Estes resulta- aplicação pura e simples destas regras, já que elas são prédeterminadas
dos indicam, por um lado, que nas aulas da MFI, houve uma maior preocu- pelos regulamentos internacionais.
pação em expor os conflitos e de submetêlos à apreciação dos alunos para
uma solução dialogada, e por outro, que os conflitos nestas aulas foram A categoria 6, “mudanças de regras/expressão de idéias” reúne, tal-
mais freqüentes. vez, o fundamento mais importante da MFI. Indica essa categoria, generica-
mente, o número de sugestões de mudanças de regras e o número de idéias
A utilização de exercícios com prédeterminação precisa pelo pro- dadas pelos alunos nas aulas. Esclarecemos, porém, que o significado des-
fessor de toda a conduta motora e social do aluno, não favorece o apareci- sas sugestões tem de ser analisado numa perspectiva teórica mais ampla.
mento de conflitos. Na verdade, o professor que se utiliza do estilo de co-
mando, que estabelece como objetivo total das aulas de Educação Física o A concepção de aprendizagem social adotada enfatiza que esta ocor
aprendizado de destrezas esportivas (MT) teme o aparecimento de confli- rerá na medida em que o aluno passar a reconhecer, a saber, a tomar consci
104 Educação Física e Aprendizagem Social A Educação Física escolar como campo de vivência social 105
ência das regras e normas sociais que regulamentam a sua ação no esporte, de transpor a um nível idiomático as ações e de mudálas sob vontade, o que
na escola, etc., sua interação com colegas e professores, como também en- não é possível no ritual forçado.
fatiza a tomada de consciência por parte do aluno, da relatividade das nor-
mas, ou seja, da necessidade de adaptálas às necessidades situativas. O maior envolvimento do aluno na programação e decisões de aula.
a satisfação dos seus interesses de jogar, a liberdade na participação propi-
Em função dessa concepção, na MFI, prevêse o envolvimento dos ciada pela MFI, pressupunhase, favoreceria a modificação e a formação de
alunos no processo de regulamentação dos jogos, o que implica a criação atitudes positivas em relação às aulas de Educação Física.
pelos alunos de seus próprios papéis representativos. O contrário acontece,
comumente, no ensino dos esportes no qual os alunos são submetidos às Os resultados da análise comparativa entre o pré e o pósteste, per-
regras esportivas internacionais, sem possibilidades de questionálas. Tra- mitiram verificar que ocorreu uma ampliação no entendimento das finalida-
tase, portanto, do aluno apenas reconhecer as regras e observálas. des da Educação Física por parte dos alunos. Essa ampliação processouse
em direção às finalidades normalmente atribuídas à Educação Física e, por
Esse aspecto refletiuse nos registros desta categoria verificados nas conseqüência, nos planejamentos didáticos, mas que, como demonstram os
aulas da MT, cuja freqüência perfez apenas 10% da ocorrida nas aulas da resultados do préteste não têm correpondência na ação docente. Tratase
MFI. das finalidades “psicosociais” da Educação Física. Na questão que solici-
tava aos alunos que citassem o que eles aprendem nas aulas de Educação
Durante a iniciação em determinado esporte com a utilização da MFI, Física
no e que transferem
pósteste, oito vezes para outrasligados
aspectos situações da vida, os alunos
à sociabilização, numaindicaram,
indicação
diante de uma divergência entre alunos sobre a aplicação de determinada
regra, a ação do professor não é a de aplicar a regra internacional deste clara de tomada de consciência de que outros valores são desenvolvidos nas
esporte naquela situação, mas sim. de colocar o problema aos alunos, para aulas de Educação Física que não apenas aqueles ligados estritamente ao
que estes, através do diálogo, possam regulamentar aquelas ações esporti- exercício físico e às destrezas esportivas. A expressão de um aluno, “apren-
vas. O resultado é que o aluno reconhece aquelas regras e tem consciência di que quando a gente está num grupo, a gente não pode escolher só o que
de sua necessidade e seu significado. Essa conduta do professor na MFI, quer fazer, tem que ter as opiniões de todos”, em nosso entendimento, é uma
explica a maior freqüência de expressão de idéias e sugestões de mudanças demonstração clara da possibilidade do desenvolvimento desses valores. A
de regras ocorrida nas aulas desenvolvidas com a MFI. questão de saber se esses valores são transferidos ou não para outras situa-
ções da vida não pode ser respondida com precisão. Acreditamos que, quanto
mais significativa para o aluno for essa experiência vivida e quanto mais a
As regras determinadas pelos alunos correspondem às normas de ação sociedade (meio ambiente) fomentar ou reforçar esse tipo de atitude, maior
no jogo esportivo. Porém, o estabelecimento pelos alunos, dessas regras, será a probalidade de ocorrer esta transferência. A questão da transferência,
não garante a igualdade de agir dos jogadores em relação a elas. Muito nessa perspectiva, vinculase, portanto, à idéia de que as transformações
provavelmente ocorram conflitos, e então fazemse necessárias novas dis- sociais não ocorrerão através da escola, mas sim, terão de operarse simul-
cussões, novas regras, etc. Esse processo diminui a sua intensidade na me- taneamente nesta e na sociedade. Mesmo assim, os educadores não devem
dida que as normas de ação (regras) forem sendo esclarecidas e acordadas menosprezar a possibilidade de sua contribuição para esta transformação,
entre os jogadores. nem tampouco cruzar os braços afirmando ser isso impossível. O professor
deve acreditar nessa possibilidade, acrescentando à sua ação a consciêcia
As formas de jogos oriundas desse processo diferenciamse do ritual desta interrelação.
de tal maneira, que os jogadores, a qualquer momento, estão em condições
106 E d u c a ç ã oF í s i c aeA p r e n d i z a g e mS o c i a l A Educação Física escolar como campo de vivência social 107
Quanto à questão que procurou captar as diferenças que os alunos A sociedade capitalista na qual vivemos, com o auxílio do mito da
puderam perceber entre as aulas desenvolvidas com a MFI e as aulas ante- liberdade (individual) e da igualdade de oportunidades, mantém uma estra-
riores (MT), consideraram os alunos que as aulas da MFI propiciaram um tificação social extremamente injusta. Para a manutenção de seus privilégi-
ambiente de maior liberdade, e que levaram os alunos a uma participação os a classe dominante necessita que sejam aceitos como normais e desejá-
mais intensa nas atividades de jogos e nas decisões de aula sobre conteúdo, veis determinados valores, como por exemplo, a competição ou concorrên-
organização de grupos e regulamentação de jogos. cia baseadas na idéia de igualdade de oportunidades, o que leva ao culto do
individualismo.
As expressões dos alunos no pósteste, em resposta a esta questão,
principalmente as reunidas na categoria "participação”, indicam que estes O esporte na escola não deixa de veicular e reproduzir esta ideologia.
tomaram consciência de que lhes foi possibilitado participar nas aulas não A obediência incondicional às regras determinadas pelos regulamentos in-
somente como meros cumpridores de tarefas determinadas pelo professor, ternacionais (autoridades), sem que o indivíduo tenha consciência do pro-
mas como agentes ou sujeitos da atividade educativa. Expressões como “po- cesso de regulamentação, e a busca da performance para a superação do
díamos dar idéias”, “todo mundo podia colaborar”, “pela participação na adversário, são exemplos.
organização dos jogos” demonstram a percepção por parte dos alunos de
que isso não lhes era permitido nas aulas anteriores, ou seja, com a Metodo- Assim sendo, se por um lado, para favorecer o desenvolvimento de
logia Tradicional. consciências críticas (indivíduos com uma visão crítica do esporte, como
fenômeno social e individual) existe a necessidade de substituir, nas aulas
de Educação Física, a costumeira relação assimétrica entre professor e alu-
4.10 Conclusão no por uma relação baseada no diálogo na acepção de FREIRE (1978), para
que desta forma possa realmente acontecer um ato educativo libertador e
não um ato domesticador, por outro, não menos importante, é o conteúdo ou
Quando nos referimos à questão do conteúdo sócioeducativo dos objeto dessa interação. Tratar no ensino dos jogos esportivos unicamente
jogos esportivos, procuramos ressaltar que os professores de Educação Fí- dos gestos técnicos ou das regras esportivas internacionais, sem relacioná
sica devem tomar consciência de que na escola são inculcados nos alunos, las com os interesses e a realidade dos educandos, continua, em nosso en-
os valores e normas de comportamento “desejáveis” da nossa sociedade. tendimento, a não concorrer para o desenvolvimento de uma visão crítica
Esses valores “desejáveis”, são os valores dominantes, que por sua vez, são do esporte.
os dos dominantes, ou seja, a escola reproduz a ideologia da classe domi-
nante.
Por isto, na metodologia que propomos, a MFI, além de buscar a
eliminação da dominação pela autoridade, sem no entanto renunciar o direi-
Como afirma LEIF (1983), toda ideologia social, cuja interiorização to e o dever do professor de indicar uma direção, indicadora do compromisso
e reprodução a escola favorece, incide essencialmente sobre a conduta: ide- político assumido, procurase mostrar o esporte numa perspectiva crítica,
ais, modelos, imagens de autoridade, da justiça, das obrigações para com a onde os alunos possam realmente “fazer” o seu esporte levando em consi-
sociedade, o Estado, as instituições e os grupos. Por isso, a sociedade en- deração as características de sua realidade infantil e existencial (social, eco-
contra na escola, de maneira notável e solidamente organizada, o esteio e a nômica, política, cultural), e não apenas praticar o esporte. Para isso, entre
garantia de perenidade de suas estruturas vigentes. outras coisas, o aluno tem de participar ativa e conscientemente do processo
de normatização que determina as condições das interações no esporte.
108 Educação Física e Aprendizagem Social A Educação Física escolar como campo de vivência social 109
Como nos lembra BRANDÃO (1985, p. 103), ‘‘não há transmissão A competição esportiva, por sua vez, tem como suporte a ideologia
de conhecimento se este não se der através de um processo de reconstrução da igualdade de oportunidades, ou seja, todos os competidores têm a mesma
do conhecimento. Por isto, ensinar implica criar condições para que o seu chance de vitória. Obviamente, esta idéia pressupõe apenas as condições
aluno compreenda como e porque chegouse a um determinado estágio de imediatas à competição e não leva em consideração as condições sociais e
conhecimento em uma determinada área, através da desmistificação do sa- econômicas dos que nela tomam parte.
ber. Transmissão do conhecimento não é imposição de conteúdos. É sim,
desenvolver um processo que permita o acesso a conteúdos através do de- Acreditamos que a competição é um elemento motivador para a par-
bate e da critica do conhecimento estabelecido". ticipação nos jogos esportivos que não deve ser menosprezado. No entanto,
existe a necessidade, a nosso ver, de determinar, embora seja difícil fazêlo,
A MFI substitui também a prioridade dada pela Metodologia Tradi- os limites entre a desejabilidade e a indesejabilidade da competição, ou ain-
cional ao ensino dos gestos técnicos e ao aprendizado das regras esportivas da o "tipo” de competição.
internacionais, pela vivência do jogo. procurando transformar as aulas num
campo de ação e vivência social. Para nós, a competição é desejável na medida em que os competidores
encarem seus opositores como companheiros de jogo; tornase indesejável
Ao problema de colocar os gestos esportivos como conteúdo “a pri na proporção em que os competidores percebam seus oponentes como ri-
ori”, somase a tendência burocrática da Educação e Educação Física brasi- vais que precisam ser vencidos a todo custo e, mais indesejável ainda, quan-
do transformam estes em inimigos que devem ser odiados. LEIF/BRUNEL
leira. Os
como professores
meta. de Educação
ficam a estabelecer Física específicos
objetivos colocando ocomo
ensino
“o dos
alunoesportes
deverá LE (1978, p. 21), referemse a esta questão de forma singular quando co-
ser capaz de em 5 arremessos à cesta, converter no mínimo 3”, e a procurar mentam que o “jogo de bocha requer um parceiro; a partida de bocha, um
estratégias para atingilos e avaliálos. E nessa mania de controle acabam adversário; e o torneio, inimigos”.
perdendo ou não tendo a noção das finalidades últimas de sua atividade
pedagógica. Para isso concorre também a formação estritamente técnica desse Se, por um lado, o individualismo resultante da comparação de per-
profissional que não consegue inscrever sua prática num contexto social formances, a competição desmedida, o respeito irrefletido às regras, são
mais amplo, num projeto de sociedade, numa visão de mundo. valores de nossa sociedade que são reforçados pelo esporte e, conseqüen-
temente, pelo esporte escolar, acreditamos ser possível, por outro lado, reo
A idéia de que o esporte é basicamente a comparação de desempenhos, rientar esse ensino e esse esporte no sentido do desenvolvimento do coleti
ou seja, a competição, está fortemente enraizada na nossa sociedade. As vismo (entendido como a ação pessoal comprometida prioritariamente com
escolas vêem no esporte uma forma de adquirir prestígio, e para isso existe o bem comum), do desenvolvimento da consciência da relatividade das nor-
a necessidade de que vençam as competições; para vencer as competições mas e da possibilidade de sobre elas agir, e de reorientar a competição es-
suas equipes devem ser convenientemente treinadas. Essa análise foi feita portiva destituindoa da finalidade precípua de indicar a supremacia de uns
para demonstrar (se é que isto é necessário) que o ensino dos gestos esporti- sobre os outros (discriminar melhores dos piores) através da análise crítica
vos nas escolas é legitimado pela idéia da competição, e para ressaltar a do significado da competição. Porém, se nisso acreditamos e mesmo, se
estreita ligação entre a característica competitiva do esporte e a busca nisso depositamos nossas esperanças educacionais, estamos conscientes tam
do aperfeiçoamento dos gestos esportivos e da condição atlética (fisio- bém, das limitações impostas pela ordem social vigente, para a efetivação
lógica). de tal proposta. Nas palavras de Manuel SÉRGIO (1978) em “Desporto em
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Atualmente é Presidente do
Colégio Brasileiro de Ciências do
Esporte, e desenvolve estudos nas
áreas
Física edaSociologia
Pedagogia da Educação
do Esporte.
O Editor
VALTER BRACHT
EDUCAÇÃO FÍSICA
APRENDIZAGEM SOCIAL