M E B Sposito - Urbanizacao Difusa e Cidades Dispersas
M E B Sposito - Urbanizacao Difusa e Cidades Dispersas
M E B Sposito - Urbanizacao Difusa e Cidades Dispersas
In: Nestor Goulart Reis. (Org.). Sobre dispersão urbana. São Paulo: Via das Artes, 2009, p. 35-54.
Não se tratam, ainda, no caso desse texto, de enfoques que tenham sido submetidos à
prova empírica, por meio de realização de pesquisa, em que eles tenham sido o foco
central. Entretanto, investigações científicas já realizadas e o diálogo com pesquisadores
que se interessam pela mesma temática nos animam a levantar questões, mais do que a
apresentar análises, na forma de ensaio, de modo a que possamos dar alguma contribuição
à reflexão teórico-conceitual sobre o processo de extensão e espraiamento do tecido
urbano.
O texto está organizado em seis partes. Na primeira e mais longa delas, apresentamos um
quadro sucinto que serve de tela para se compreender os contextos em que o tema em
debate se circunscreve. Nas cinco partes subseqüentes, esse tema é tratado à luz dos
elementos que Bauman (2007) apresenta para caracterizar o período em que vivemos, o
que ele denomina de “Modernidade Líquida”, em contraponto ao anterior, em que os
fundamentos e valores de uma “Modernidade Sólida”, foram capazes de sugerir explicações
sobre o fato urbano e elaboração de projetos urbanos, que tomavam as cidades como
totalidades. Ao final, tendo em vista o caráter de ensaio deste texto, não é possível
apresentar conclusões, mas apenas destacar a importância de intensificação das pesquisas
sobre a problemática urbana contemporânea.
A. A contextualização da temática
Diferentes autores têm chamado a atenção para o fato de que há mudanças significativas
nas formas de assentamento humano. Em 1935, quando visitou os Estados Unidos, Le
Corbusier já ficou surpreso com a tendência de suburbanização, orientada pelo uso
residencial do espaço, que se delineava em
Nova York, uma vez que “a idéia de descentralização era o contrário de todas as teorias
urbanas e [ele] não as aceitava” (Rybczynski, 1996 p. 168).
Essa tendência estadunidense que tivera seus primórdios ainda no século XIX, ampliou-se,
em ritmo e intensidade, por meio de movimentos centrífugos de expansão territorial da
cidade.
Monclús (1998, p. 8) também localiza no século XIX o início desse movimento, mas
reconhece as especificidades do que vem ocorrendo mais recentemente, chamando
atenção para o aparecimento de “novas periferias”, destacando que
As últimas inovações tecnológicas unidas a complexas mudanças de caráter econômico e
social estariam dando como resultado uma ruptura generalizada nas pautas de localização de
praticamente todos e cada um dos elementos que compõem as aglomerações urbanas por
distintas que elas sejam. (tradução nossa)
De lá para cá, o que se observa é que dinâmicas e processos que sustentam e expressam
novas formas de assentamento humano não se restringem aos espaços metropolitanos
embora tenha sido neles que primeiramente ocorreram e com níveis de complexidade mais
acentuados.
Bernardo Secchi (2007, p.113) convidou-nos a mudar de óculos para compreender a “cidade
contemporânea e seu projeto”. O convite é interessante, mas contém desafio de grande
envergadura, porque nele está contida uma questão de fundo, qual seja haver algum
consenso sobre o fato de que as novas formas espaciais, reflexo e condição de novos
processos e dinâmicas de natureza econômica, social, política e cultural, possam ser
qualificadas de formas espaciais urbanas.
O espraiamento do tecido urbano, seja ele analisado e/ou conceituado pelo seu caráter de
dispersão, difusão ou descontinuidade territorial, coloca em xeque a distinção que desde a
Antiguidade, quando da origem das cidades, vinha se estabelecendo entre o que se
considera campo e o que se considera cidade. A intensificação das relações entre o urbano
e o rural, que o próprio desenvolvimento do modo capitalista de produção engendra, está
acompanhada, no período contemporâneo, de interpenetração entre espaços urbanos e
rurais, bem como de ampliação dos valores, práticas e formas de uso do tempo
relacionadas ao espaço urbano, sobre a vida e os valores, até então, reconhecidos como
rurais.
Cada vez menos se percebe com clareza, onde termina a cidade e começa o campo. Cada
vez mais se intensificam os fluxos de pessoas e mercadorias entre espaços rurais e urbanos
e o uso do tempo social cotidiano está se dividindo entre ambientes e paisagens que
poderiam ser considerados, segundo enfoques conceituais correntes, como campo e como
cidade.
Essas dinâmicas podem, entretanto, ser vistas a partir de outros pontos de vista e não são
dinâmicas que tenham lógicas independentes. Ao contrário, fazem parte do mesmo
processo, ou seja, estão articuladas aos interesses da produção imobiliária, porque, em
grande parte, refletem as mudanças no uso do tempo e do espaço relativas à ocupação e
uso desses novos espaços urbanos e aos deslocamentos necessários nessa cidade mais
extensa e descontínua.
“...criam um ambiente novo e de fato sem precedentes para as atividades da vida individual...”
(p. 7). Já, na introdução de seu livro, intitulada “Entrando corajosamente no viveiro das
incertezas”, ele nos convida a observar os cinco pontos que considera mais relevantes para
compreender esse conjunto de mudanças5. É a partir deles que sugiro a leitura do processo de
difusão da vida urbana, no período atual, para oferecer alguma contribuição à compreensão
das novas formas de assentamento humano.
Um primeiro ponto destacado pelo autor é sua chamada de atenção para o fato de que
vivemos a passagem da fase sólida para a líquida da Modernidade, tese que vem sendo
defendida em outras obras de sua autoria. Ele reconhece essa passagem pela constatação
de que as organizações sociais6 não se mantêm por muito tempo e, mais que isso, elas se
“decompõem e se dissolvem” em interregnos temporais mais curtos do que aqueles
necessários à sua constituição. Essa efemeridade torna-as frágeis ou insuficientes para
compor um quadro de referência sólido para a vida social, não oferecendo base para o
estabelecimento de “estratégias existenciais de longo prazo”. Aqui as imbricações entre a
ordem de determinações estruturais e as condições e escolhas individuais tornam-se
profundas, pois as organizações sociais têm
“...uma expectativa mais curta que o tempo que leva para desenvolver uma estratégia coesa e
consistente, e ainda mais curta que o necessários para a realização de um ‘projeto de vida’
individual.” (BAUMAN, 2007, p.7).
Nem somos capazes de vislumbrar, claramente, o projeto que defendemos ou queremos ver
estabelecido, nem há força suficiente para a validação, no plano da legalização e no da
legitimação, das diretrizes que orientam e protegem qualquer conjunto de políticas urbanas.
Assim, a cidade é pensada e vivida aos pedaços, de modo sempre provisório ou por tempos
curtos, pois não há mais âncoras sociais, políticas ou econômicas que nos atrelem a
ambientes urbanos e/ou nos façam apreender a cidade como um conjunto.
Desse ponto de vista, a urbanização difusa pode ser vista mais como tempo do que como
espaço, ou seja, são as novas temporalidades urbanas, dadas pela ampliação das NTICs,
que possibilitam a ocupação de tecidos urbanos cada vez mais extensos e em descontínuo
à cidade, cuja morfologia era mais integrada ou compunha, em algum nível, uma unidade
formal e de funcionamento.
Grande parte do poder de agir efetivamente, antes disponível ao Estado moderno, agora se
afasta na direção de um espaço global (e, em muitos casos, extraterritorial) politicamente,
descontrolado, enquanto a política – a capacidade de decidir a direção e o objetivo de uma
ação – é incapaz de operar efetivamente na dimensão planetária, já que permanece local. A
ausência de controle político transforma os poderes recém-emancipados numa fonte de
profunda e, em princípio, incontrolável incerteza, enquanto a falta de poder torna as instituições
políticas existentes, assim como suas iniciativas e seus empreendimentos, cada vez menos
relevantes para os problemas existenciais dos cidadãos do Estados-nações e, por essa razão,
atraem cada vez menos a atenção destes (p.8).
Esse ponto, ao ser trazido para a nossa reflexão, reforça um aspecto já ressaltado, que é
aquele referente à dúvida se poderíamos ou não pensar em um projeto urbano
relativamente estável na Modernidade Líquida, reforçando um outro elemento também já
frisado: esse projeto poderia ser pensado para a cidade como um conjunto? Haveria
qualquer eficácia social e econômica na elaboração de projetos que se referem a uma
cidade, como os Planos Diretores de Desenvolvimento que, no Brasil, são pensados em
bases municipais, dando mais atenção ao espaço urbano e pouca ou nenhuma a seus
espaços rurais?
Sendo relativos, no máximo, a um município e mais freqüentemente a uma cidade, eles são
suficientes e adequados aos novos modos de assentamento humano que se estendem à
escala das dezenas ou centenas de quilômetros abarcando varias entidades espaciais, do
ponto de vista político-administrativo?
Do ponto de vista das novas formas espaciais, expressas por uma cidade progressivamente
mais dispersa, não são simples quaisquer tentativas de se exercitar a política, por meio da
elaboração e implementação de diretrizes para um projeto urbano que queiramos que seja
implantado.
Por outro lado, sabemos bem que não há novas formas espaciais, marcadas pela dispersão,
sem se considerar o conjunto de dinâmicas e processos que orientam, no mundo
contemporâneo, o desenvolvimento de uma urbanização difusa.
Assim, podemos nos perguntar em que medida teria validade iniciativas de aprovação e
respeito a normativas legais que impeçam ou inibam a expansão territorial em descontínuo,
por exemplo, através de dispositivos que exijam contigüidade territorial ou algum nível de
proximidade entre as áreas urbanas já implantadas e os novos empreendimentos urbanos
que proliferam nas franjas urbanas mais próximas ou mais distantes?
Do ponto de vista, da normatização das ações dos agentes envolvidos com os momentos
primeiros do processo de produção do espaço (proprietários fundiários, incorporadores,
construtores, corretores e agentes financeiros), essas iniciativas poderiam ter algum efeito.
Elas evitariam, talvez, que a dispersão do tecido urbano alcançasse escalas em que os
custos públicos e sociais da expansão das infra-estruturas, equipamentos e serviços sociais
fossem grandes demais, uma vez que, no caso dos empreendimentos voltados aos
segmentos de médio e alto poder aquisitivo, as alianças entre iniciativa privada e poder
público, no Brasil, têm sido freqüentes.
Do outro lado, há que se considerar o ponto de vista mais amplo, ou seja, aquele que
incorpora na leitura da produção do espaço os interesses, valores e práticas socioespaciais
do que vão adquirir ou ocupar esses novos ambientes urbanos, sejam eles proprietários dos
imóveis edificados e/ou locatários deles. Esses agentes tornam, por meio de suas decisões
e ações, indissociáveis as articulações entre propriedade e apropriação, aspecto que não é
novo no modo capitalista de produção, mas que agora, passa a se realizar, em novas bases
espaciais.
Esse descompasso entre o poder e a política, deixando aos agentes locais apenas o papel
de influenciar, com capacidade muito reduzida, as formas espaciais que estão sendo
conformadas, já que as escolhas relativas aos novos modos de vida, em novos habitats8
sejam eles urbanos ou não, estão sendo feitas em escalas mais amplas ou por elas
influenciadas. Essa constatação é que nos leva a concluir sobre a indeterminação que
caracteriza a urbanização difusa, quando ela não é vista apenas do ponto de vista dos
interesses econômicos, mas avaliada a partir da perspectiva de valores e práticas
socioespaciais que reafirmam o interesse da separação social e negam o ideal de cidade,
enquanto espaço de convivência entre as diferenças.
Verifica-se que as primeiras expressões dessa cidade mosaico, que é composta de práticas,
dinâmicas e processos de fragmentação, estão na autosegregação daqueles que têm
optado pelos espaços de uso exclusivo em que o “público” é apenas o espaço de uso
coletivo, já que os sistemas de segurança e controle filtram e regulam a circulação e direito
de ir e vir.
Se são rápidas as mudanças, porque são intensos os interesses do mercado que geram
novas demandas e substituem cada vez mais rapidamente os desejos de consumo, os
conteúdos em sucessão dessas mudanças revelam a imponderabilidade, como expressão
dessa seqüência rápida de lógicas que vão tornando o espaço mais continente das
transformações que das permanências.
Nesse contexto, parece-nos que a cidade dispersa e a urbanização difusa não são,
somente, forma e processo, mas aparecem como essência de da articulação inexorável
entre o espaço e o tempo.
O quarto ponto levantado por Bauman (2007, p. 9-10) abre caminho para a reflexão sobre
as relações entre passado e futuro coletivos nos ambientes urbanos:
O colapso a que se refere o autor sugere, a nós, a idéia de que não seria mais possível
formular uma utopia urbana, enquanto projeto coletivo. Ele desenvolve o tema da utopia no
capítulo cinco da mesma obra. Aqui tratamos, apenas, dessa sugestão oferecida pelo texto,
em sua introdução, uma vez que, no caso da cidade, tem significado enorme a passagem
histórica da condição de possibilidade de grandes utopias, propiciada pelos contextos da
Modernidade Sólida, para a verificação de que temos, hoje, somente, pequenos projetos ou
desejos individuais ou de grupos, que compõem o perfil da Modernidade Líquida.
Quando nos referimos aos projetos de empresas, instituições, famílias, grupos, tribos
urbanas verificam-se algumas possibilidades de se interferir nas escolhas que engendram o
futuro dessas ‘comunidades’, apesar dos limites e contrações que essas possibilidades
experimentam em função da ampliação dos interesses dos grandes agentes econômicos e
políticos. Há chances de se pensar em futuro, nesses níveis e formas de agrupamentos,
sejam eles definidos por escolhas temáticas, identidades culturais, sexuais ou étnicas,
estratégias de sobrevivência orientadas pela solidariedade ou pela consecução de projetos
econômicos ou políticos (e não apenas os político-partidários cada vez menos importantes).
Quando nos referimos às cidades e à vida urbana, duas dificuldades se apresentam para
pensar, no presente, o futuro como possibilidade(s), ancorado no conhecimento que temos
do passado. Essas dificuldades combinadas entre si, parecem-nos, decorrência direta dos
pontos destacados por Bauman, de um lado, o colapso do “planejamento e da ação de
longo prazo” e, por outro lado, não termos mais as estruturas sociais que poderiam constituir
a base de elaboração desse futuro ou dessa utopia.
A primeira dificuldade está no fato de que as ações e práticas humanas podem mudar e têm
mudado, de modo relativamente rápido, quando vistas pelas alterações nas formas de
estabelecimento de relações de sociabilidade e parceria, de expressão da vida afetiva e dos
múltiplos modos como ela pode se realizar, de constituição da vida social em seus
diferentes campos, de comportamento humano, em espaços urbanos, visto pela ótica dos
sexos, das faixas etárias ou dos padrões de consumo.
No caso das cidades, as mudanças enfrentam a força das formas construídas para servir
tempos pretéritos. Isso pode ser pensado no plano objetivo (investimentos realizados em
dadas parcelas dos territórios urbanos) e no plano subjetivo (as representações sociais e,
portanto, coletivas que elaboramos sobre os espaços em que vivemos ou conhecemos).
Nas cidades, para mudar é possível expandir, mas é necessário também destruir, porque a
densidade dos objetos técnicos, nos termos propostos por Santos (1996) é grande e o
projeto de futuro tem que conter as formas do passado, ainda que refuncionalizadas ou
reconstruídas.
Este primeiro ponto em si não traria nada de novo ao debate que estamos nos esforçando
para enfrentar, aquele relativo às novas formas de assentamento humano dispersas, que
são, ao mesmo tempo, condição e reflexo de dinâmicas e processos de desconcentração
territorial e centralização complexos e, por isso, imponderáveis. Ele não traz nada de novo,
porque poderia ser aplicado à cidade de todos os tempos, quando notamos a densidade de
investimentos, de objetos técnicos, de imagens e representações presentes ou ancoradas
na cidade, comparada ao que se observa no campo.
O segundo ponto, articulado ao primeiro, pode oferecer alguma pista para tratar do nosso
tema. Trata-se da constatação de que, em função dessa densidade de objetos técnicos, de
capitais fixos e circulantes, de experiências objetivas e subjetivos, de pessoas que se
relacionam, expressando vivências de todo tipo, grande parte delas conflituosas, a cidade é,
por excelência, um ambiente que sugere o compartilhamento, a convivência e a
proximidade.
A cidade é uma das aderências que ligam indivíduos, famílias e grupos sociais entre si. Uma
dessas resistências que não permitem que suas memórias fiquem perdidas no tempo, que lhes
dão ancoragem no espaço.
Mas a cidade não é um coletivo de vivências homogêneas. [...] O que faz com que surja uma
memória grupal ou social, referida a algum lugar, é o fato de que aquele grupo ou classe social
estabeleceu ali relações sociais. Essas relações, entretanto, podem ser de dominação, de
cooperação ou de conflito, e variam tanto no tempo como no espaço. Consequentemente, a
vivência da cidade dá origem a inúmeras memórias coletivas, que podem ser bastante distintas
umas das outras, mas que têm como ponto comum a aderência a essa mesma cidade.
Haveria que se considerar, ainda, que a memória sobre as cidades vem sendo valorizada,
como aspecto importante às “novas estratégias culturais da cidade-empreendimento”
(ARANTES, 2000, p. 16). Pelas características do urbanismo de intervenção que se pratica,
essa valorização é instável, tanto quanto pode ser artificial, uma vez que expressão dos
interesses de mercantilização da imagem das cidades.
Sechi (2005, p. 31), analisando a cidade do século X, chama atenção para o fato de que:
Nas cidades brasileiras, tratando aqui do particular, sem deixar de considerar o que se
poderia avaliar como universal e singular nessa tendência, diminuem os ambientes públicos
em que a acessibilidade espacial e o interesse de convivência social garantam o diálogo
entre as diferenças. Partindo dessa constatação, podemos nos preocupar com a hipótese de
que as diferentes memórias coletivas sobre uma dada cidade, encontram, cada vez menos,
pontos ou interfaces de superposição ou identidade.
Nesses termos, é possível, para nós, supor que a cidade dispersa e o processo de
urbanização difusa, nos temos como se constituem, sobretudo no âmbito de formações
sociais caracterizadas por amplo gradiente de disparidades, são a face da vida urbana que
nega a própria memória da cidade como espaço de vida coletiva e continente das
diferenças.
Por fim, na introdução de seu livro, Bauman (2007, p. 10) frisa que:
Tanto quanto na passagem do século XIX para o século XX, conhecemos os ajustes
promovidos pelo movimento do modo capitalista de produção, neste período reconhecido
como 2ª Revolução Industrial ou Revolução Fordista, vive-se, atualmente, de modo intenso,
os ajustes decorrentes da Revolução Informacional10, que cria as condições à instauração
de um Pós-Fordismo. No âmbito do conjunto de transformações que marcam o período atual
está o regime de acumulação flexível, segundo o qual, em função dos interesses de
diminuição de custos, a demanda é que orienta o ritmo e natureza do que se produz, sejam
bens, sejam serviços.
Do mesmo modo como a Revolução Fordista teve seu rebatimento nas formas de
estruturação do espaço urbano, entre as quais, pode-se destacar a tendência ao
zoneamento funcional, a revolução atual transfere à vida social e, por conseguinte, ao
espaço urbano, seus princípios de fundamento, entre eles a flexibilidade, do mesmo modo
como os espaços mais flexíveis são também determinantes do processo, na medida em que
propiciam as condições que o sistema de acumulação requer. A maleabilidade e a ligeireza
se instalam reordenando as decisões que orientam as escolhas locacionais e as práticas
socioespaciais urbanas.
Esses novos elementos da vida urbana aparecem sob diferentes formas nas cidades, mas
têm relação direta com o fato de que há possibilidades tecnológicas de uma
Assim, a circulação ganha tanta importância quanto a localização ou, até mesmo, mais que
ela. A imponderabilidade dos trajetos que poderão ser realizados, numa cidade reordenada
para ser flexível reflete e sustenta, por sua vez, a tendência à individualização, uma vez que
grande parte dos deslocamentos, quando nos referimos às cidades brasileiras e aos
extratos de médio e alto poder aquisitivo, é efetuada por transporte automotivo individual.
Essa constatação pressupõe o total domínio do indivíduo sobre os trajetos que vai
desenhar, os horários em que eles ocorrerão, bem como os dias da semana em que
deverão se dar. Os deslocamentos casa-trabalho, no começo do dia, e trabalho-casa, ao
final da jornada, não são mais exclusivos na definição do tráfego urbano, pois a eles se
sobrepõem de modo crescente os deslocamentos realizados pelos novos “trabalhadores” –
os pós-fordistas – aqueles que vivem de teletrabalho, os que são remunerados por serviços
terceirizados, os que efetuam em suas motocicletas o delivery, os que sobrevivem do
sistema de encomendas montado pelas indústrias para baixar custos, os que abastecem
esse sistema em suas múltiplas etapas, os que realizam comércio ambulante e ilegal, os
que estão sub-empregados ou desempregados. São novos “atores” urbanos cujos horários
e percursos são imponderáveis, reforçando a tendência à individualização da vida urbana.
As escolhas, de parte dos segmentos de médio e alto poder aquisitivo, pelos habitats
urbanos mais distantes das áreas centrais e pericentrais, parte deles murados e/ou
controlados por sistemas de vigilância dos mais modernos, são parte fundamental do
mesmo conjunto de dinâmicas que levam às novas escolhas locacionais, gerando uma
cidade dispersa. Elas se acompanham de reforço das necessidades de deslocamento,
dando nova densidade aos fluxos intra e interurbanos. De todo modo, em seus conteúdos,
essas escolhas podem ser interpretadas como expressão espacial da individualização da
sociedade.
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Notas:
2. Projeto temático apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP),
coordenado por Nestor Goulart Reis Filho (FAU/USP).
4. Ascher (1995, p. 24) destaca esse processo tomando como referência empírica a aglomeração metropolitana
parisiense, afirmando que: Os territórios metropolitanos se estendem progressivamente sobre suas periferias, a
densidade média das aglomerações diminui. [...] As metrópoles são assim, às vezes, mais diluídas e mais
compactas, mais integrantes e mais descontínuas.” (tradução nossa).
5. A partir de outros pontos de vista, o enfoque a partir do qual Bauman lê o mundo contemporâneo, aparece em
várias de suas obras, entre as quais destacamos algumas (2001, 2003 e 2008).
6. As organizações sociais são conceituadas como “estruturas que limitam as escolhas individuais, instituições
que asseguram a repetição de rotinas, padrões de comportamento aceitável” (BAUMAN, 2007, p. 7).
8. Afirmamos que se tratam de novos habitats urbanos, pois há uma transformação não apenas nas estratégias
locacionais dos novos empreendimentos imobiliários, mas também uma completa redefinição do par centro-
periferia e das práticas socioespaciais, que essa mudança provoca. Secchi (2005, p. 25) refere-se a “uma nova
forma de habitar” e a problematiza, afirmando que “a dispersão é um fenômeno embaraçante”.
9. A análise de novas práticas socioespaciais, que têm como determinante a idéia de “insegurança urbana”
mereceria um tópico neste texto. No entanto, ele demandaria um conjunto de novas relações a serem tratadas
que levariam a um desenvolvimento que poderia prejudicar o esforço de síntese que estamos fazendo, ao
observar os cinco pontos destacados por Bauman, vis-à-vis às dinâmicas de urbanização difusa. Estamos
realizando pesquisa sobre o tema “Urbanização difusa, espaço público e (in)segurança urbana”, em parceria com
os pesquisadores Eda Maria Goes (coordenadora) e Oscar Sobarzo, com apoio da FAPESP, cujos resultados ao
serem divulgados, poderão oferecer alguma contribuição à análise do tema.
10. Castells (1999, p. 36-37) afirma que: o fator histórico mais decisivo para a aceleração, encaminhamento e
formação do paradigma da tecnologia da informação e para indução de suas conseqüentes formas sociais foi/é o
processo de reestruturação capitalista, empreendido nos anos 80, de modo que o novo sistema econômico pode
ser adequadamente caracterizado como capitalismo informacional. [...] Portanto, o informacionalismo está ligado
à expansão e ao rejuvenescimento do capitalismo, como o industrialismo estava ligado a sua constituição como
modo de produção”.