M E B Sposito - Urbanizacao Difusa e Cidades Dispersas

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SPOSITO, M. E. B. Urbanização difusa e cidades dispersas: perspectivas espaço-temporais contemporâneas.

In: Nestor Goulart Reis. (Org.). Sobre dispersão urbana. São Paulo: Via das Artes, 2009, p. 35-54.

URBANIZAÇÃO DIFUSA E CIDADES DISPERSAS:


PERSPECTIVAS ESPAÇO-TEMPORAIS CONTEMPORÂNEAS

Maria Encarnação Beltrão Sposito1

A oportunidade de acompanhar os eventos que vem se desenvolvendo em torno do tema


“Urbanização dispersa e mudanças no tecido urbano”, a partir do projeto de pesquisa2 de
mesmo título que se debruça sobre a realidade urbana contemporânea, abre-nos a
possibilidade de ousar avançar em alguns pontos.

Não se tratam, ainda, no caso desse texto, de enfoques que tenham sido submetidos à
prova empírica, por meio de realização de pesquisa, em que eles tenham sido o foco
central. Entretanto, investigações científicas já realizadas e o diálogo com pesquisadores
que se interessam pela mesma temática nos animam a levantar questões, mais do que a
apresentar análises, na forma de ensaio, de modo a que possamos dar alguma contribuição
à reflexão teórico-conceitual sobre o processo de extensão e espraiamento do tecido
urbano.

O texto está organizado em seis partes. Na primeira e mais longa delas, apresentamos um
quadro sucinto que serve de tela para se compreender os contextos em que o tema em
debate se circunscreve. Nas cinco partes subseqüentes, esse tema é tratado à luz dos
elementos que Bauman (2007) apresenta para caracterizar o período em que vivemos, o
que ele denomina de “Modernidade Líquida”, em contraponto ao anterior, em que os
fundamentos e valores de uma “Modernidade Sólida”, foram capazes de sugerir explicações
sobre o fato urbano e elaboração de projetos urbanos, que tomavam as cidades como
totalidades. Ao final, tendo em vista o caráter de ensaio deste texto, não é possível
apresentar conclusões, mas apenas destacar a importância de intensificação das pesquisas
sobre a problemática urbana contemporânea.

A. A contextualização da temática

Diferentes autores têm chamado a atenção para o fato de que há mudanças significativas
nas formas de assentamento humano. Em 1935, quando visitou os Estados Unidos, Le
Corbusier já ficou surpreso com a tendência de suburbanização, orientada pelo uso
residencial do espaço, que se delineava em

Nova York, uma vez que “a idéia de descentralização era o contrário de todas as teorias
urbanas e [ele] não as aceitava” (Rybczynski, 1996 p. 168).

Essa tendência estadunidense que tivera seus primórdios ainda no século XIX, ampliou-se,
em ritmo e intensidade, por meio de movimentos centrífugos de expansão territorial da
cidade.

Monclús (1998, p. 8) também localiza no século XIX o início desse movimento, mas
reconhece as especificidades do que vem ocorrendo mais recentemente, chamando
atenção para o aparecimento de “novas periferias”, destacando que
As últimas inovações tecnológicas unidas a complexas mudanças de caráter econômico e
social estariam dando como resultado uma ruptura generalizada nas pautas de localização de
praticamente todos e cada um dos elementos que compõem as aglomerações urbanas por
distintas que elas sejam. (tradução nossa)

Nos últimos trinta anos, a diversidade de iniciativas de produção de novos espaços e


edificações, bem como as de refuncionalização de outros, tem aberto mais interrogações
que respostas, quando nos esforçamos, para conceituar esses novos ambientes de vida
social, propiciados pela extensão dos tecidos urbanos e pela completa redefinição das
lógicas locacionais.

Gottdiener, quando lançou seu livro em 1985, já advertia que:

Os atuais padrões de desenvolvimento e suas implicações sociais, econômicas e políticas


foram registrados, mas os cientistas urbanos pouco avançaram no caminho de seu
entendimento. Qualquer livro de sociologia urbana, por exemplo, revelará que a ‘cidade’
constitui a forma de assentamento urbano, que a ‘urbanização’ envolve a concentração de
pessoas dentro de áreas limitadas e que existem ‘diferenças’ entre o ‘modo urbano de vida’ e
sua contrapartida ‘suburbana’ ou ‘rural’. Apesar de obsoletos, esses conceitos continuam
sendo o foco central dos textos urbanos, mesmo que a maioria dos americanos esteja vivendo,
desde a década de 1970, em áreas metropolitanas polinucleadas, fora da cidade central”
(GOTTDIENER, 1993, p. 15).

De lá para cá, o que se observa é que dinâmicas e processos que sustentam e expressam
novas formas de assentamento humano não se restringem aos espaços metropolitanos
embora tenha sido neles que primeiramente ocorreram e com níveis de complexidade mais
acentuados.

Atualmente, espaços urbanos de diferentes tamanhos demográficos e diversidade de papéis


urbanos vêm conhecendo mudanças dessa natureza, indicando que se trata, efetivamente,
de novas formas de se produzir e se apropriar do espaço, com impactos importantes na vida
econômica e social, gerando, sobretudo, a constituição de novos habitats residenciais, ainda
que eles possam ser observados, também, no que respeita à localização de atividades
industriais, comerciais e de serviços.

Bernardo Secchi (2007, p.113) convidou-nos a mudar de óculos para compreender a “cidade
contemporânea e seu projeto”. O convite é interessante, mas contém desafio de grande
envergadura, porque nele está contida uma questão de fundo, qual seja haver algum
consenso sobre o fato de que as novas formas espaciais, reflexo e condição de novos
processos e dinâmicas de natureza econômica, social, política e cultural, possam ser
qualificadas de formas espaciais urbanas.

O espraiamento do tecido urbano, seja ele analisado e/ou conceituado pelo seu caráter de
dispersão, difusão ou descontinuidade territorial, coloca em xeque a distinção que desde a
Antiguidade, quando da origem das cidades, vinha se estabelecendo entre o que se
considera campo e o que se considera cidade. A intensificação das relações entre o urbano
e o rural, que o próprio desenvolvimento do modo capitalista de produção engendra, está
acompanhada, no período contemporâneo, de interpenetração entre espaços urbanos e
rurais, bem como de ampliação dos valores, práticas e formas de uso do tempo
relacionadas ao espaço urbano, sobre a vida e os valores, até então, reconhecidos como
rurais.

Desse ponto de vista, estaríamos vivenciando uma ruptura no longo processo de


urbanização, que terá se iniciado há cerca de 5.500 anos. Mantém-se uma divisão territorial
de trabalho entre o campo e a cidade, expressa pelos papéis urbanos e rurais que são
desempenhados nesses espaços. Amplia-se, progressivamente, a divisão interurbana do
trabalho, em sociedades em processo de mundialização crescente da economia e
globalização acentuada dos valores e da difusão de idéias e informações. Do mesmo modo,
pode-se ainda reconhecer que há maior concentração de papéis em espaços urbanos e
maior dispersão de seus tecidos, progressivamente amalgamados com os espaços,
chamados de rurais3.

Assim, a unidade espacial da cidade, em contraponto ao campo, encontra-se em processo


de dissolução, em função do espraiamento do tecido urbano e da diminuição relativa das
taxas de densidade demográfica em espaços urbanos ou periurbanos.

Cada vez menos se percebe com clareza, onde termina a cidade e começa o campo. Cada
vez mais se intensificam os fluxos de pessoas e mercadorias entre espaços rurais e urbanos
e o uso do tempo social cotidiano está se dividindo entre ambientes e paisagens que
poderiam ser considerados, segundo enfoques conceituais correntes, como campo e como
cidade.

Aceitando-se a idéia de que haveria uma ruptura no longo processo de urbanização,


trabalharíamos com análises que se refeririam ao antes e ao depois, ou a uma urbanização
que teria se delineado até meados da segunda metade do século X e a que tem se
caracterizado pelas mudanças recentes nas formas de assentamento, observadas nos
últimos 30 anos, sobretudo, em países ocidentais.

A tendência à produção do espaço urbano, a partir de lógicas de expansão territorial


marcadas pela descontinuidade em relação às áreas implantadas e ocupadas
anteriormente, conformando cidades dispersas (MONCLÚS, 1999) responde, com grande
intensidade, no caso brasileiro, aos interesses dos agentes da produção do espaço urbano.
O aumento da oferta de novos lotes urbanos, cada vez mais distantes, reflete o ritmo mais
acelerado com que essa de produção de novos espaços realiza-se comparativamente à
evolução do crescimento demográfico.

Nas décadas de 1960 e 1970, as altas taxas de urbanização, decorrentes, de um lado, de


elevadas taxas de crescimento vegetativo e, de outro, da rápida transformação do perfil
demográfico do país, marcado neste período por passagem de grandes contingentes
populacionais do campo para a cidade, gerava uma forte pressão sobre a oferta de imóveis
residenciais. Essa dinâmica foi caracterizada, muitas vezes, como “déficit habitacional”, ou
seja, uma incapacidade, sobretudo nas maiores cidades, de crescimento da oferta de
imóveis, de modo a que a demanda pudesse ser atendida. Mesmo sabendo que esse déficit
tem maior relação com o tamanho da demanda solvável, do que propriamente com
incapacidade do setor imobiliário de produzir um estoque que respondesse às necessidades
crescentes de habitação em meios urbanos, é preciso notar que essas curvas se alteraram
nos últimos 20 anos. Os ritmos de crescimento da população urbana decaíram, aumentou a
proporção dos que não têm acesso a moradias adequadas em meios urbanos, mas
mantiveram-se ou cresceram os ritmos de implantação de novos loteamentos, em função
dos interesses fundiários e imobiliários que se associam a essa dinâmica.

Tomando-se como referência esse quadro de determinações, temos uma caracterização da


problemática a partir dos interesses de grupos e agentes econômicos, cujas decisões e atos
não podem ser compreendidos no plano individual. São eles os grandes responsáveis pela
produção de uma cidade cuja estruturação é constituída pela paradoxal combinação entre
vazios urbanos (amplas áreas não loteadas à espera de valorização combinadas com
elevado percentual de lotes não edificados) e adensamento demográfico de parcelas do
território urbano (tanto as que se verticalizam como modo de ampliar as rendas fundiárias e
taxas de lucro possíveis nas parcelas do território urbano melhor dotadas de meios de
consumo coletivo, como os extensos setores na periferia urbana que se caracterizam pela
implantação de loteamentos populares, autoconstrução e conjuntos habitacionais
construídos com recursos públicos).

A lógica da combinação entre densidade elevada em alguns setores com extensão


exacerbada do tecido urbano vem se acentuando nas duas últimas décadas no Brasil4,
sobretudo, em função dos interesses de lançamento de novos produtos imobiliários, num
período em que as taxas de crescimento da demanda solvável deixam de ocorrer no mesmo
ritmo que cresciam nas décadas de 1960 e 1970. Loteamentos e condomínios horizontais e
verticais, associados aos ideais de segurança, melhor qualidade ambiental e de vida,
ampliam a tendência de uma cidade dispersa, propiciada pela generalização do uso do
transporte automotivo individual entre os segmentos de médio e alto poder aquisitivo.

Essas dinâmicas podem, entretanto, ser vistas a partir de outros pontos de vista e não são
dinâmicas que tenham lógicas independentes. Ao contrário, fazem parte do mesmo
processo, ou seja, estão articuladas aos interesses da produção imobiliária, porque, em
grande parte, refletem as mudanças no uso do tempo e do espaço relativas à ocupação e
uso desses novos espaços urbanos e aos deslocamentos necessários nessa cidade mais
extensa e descontínua.

Apresentada essa contextualização, abordaremos a problemática em pauta, a partir das


idéias que Bauman (2007) lança ao propor a compreensão do período atual, destacando
que estão em curso um conjunto de mudanças que

“...criam um ambiente novo e de fato sem precedentes para as atividades da vida individual...”
(p. 7). Já, na introdução de seu livro, intitulada “Entrando corajosamente no viveiro das
incertezas”, ele nos convida a observar os cinco pontos que considera mais relevantes para
compreender esse conjunto de mudanças5. É a partir deles que sugiro a leitura do processo de
difusão da vida urbana, no período atual, para oferecer alguma contribuição à compreensão
das novas formas de assentamento humano.

B. Urbanização difusa e tempo

Um primeiro ponto destacado pelo autor é sua chamada de atenção para o fato de que
vivemos a passagem da fase sólida para a líquida da Modernidade, tese que vem sendo
defendida em outras obras de sua autoria. Ele reconhece essa passagem pela constatação
de que as organizações sociais6 não se mantêm por muito tempo e, mais que isso, elas se
“decompõem e se dissolvem” em interregnos temporais mais curtos do que aqueles
necessários à sua constituição. Essa efemeridade torna-as frágeis ou insuficientes para
compor um quadro de referência sólido para a vida social, não oferecendo base para o
estabelecimento de “estratégias existenciais de longo prazo”. Aqui as imbricações entre a
ordem de determinações estruturais e as condições e escolhas individuais tornam-se
profundas, pois as organizações sociais têm

“...uma expectativa mais curta que o tempo que leva para desenvolver uma estratégia coesa e
consistente, e ainda mais curta que o necessários para a realização de um ‘projeto de vida’
individual.” (BAUMAN, 2007, p.7).

Essa perspectiva enseja, imediatamente, a dúvida se poderíamos ou não pensar em um


projeto urbano relativamente estável na Modernidade Líquida.
Organizações sociais pouco duradouras ou frágeis, interesses associados ao mundo da
mercadoria, que estimulam a constante substituição de valores materiais e interesses
subjetivos, e as incertezas relativas às instabilidades geradas no mundo do trabalho não
compõem um quadro favorável ao estabelecimento de políticas urbanas, cuja articulação
entre elas e a forma de seus estabelecimentos pudesse compor alguma unidade a ser
reconhecida como um projeto urbano.

Nem somos capazes de vislumbrar, claramente, o projeto que defendemos ou queremos ver
estabelecido, nem há força suficiente para a validação, no plano da legalização e no da
legitimação, das diretrizes que orientam e protegem qualquer conjunto de políticas urbanas.

Assim, a cidade é pensada e vivida aos pedaços, de modo sempre provisório ou por tempos
curtos, pois não há mais âncoras sociais, políticas ou econômicas que nos atrelem a
ambientes urbanos e/ou nos façam apreender a cidade como um conjunto.

A tendência ao crescente lançamento de novos produtos imobiliários não responde, assim,


apenas aos interesses do mercado em oferecer novas mercadorias para a parte da
sociedade que já satisfez suas necessidades de moradia, mas que é aquela com poder
aquisitivo suficiente para ser atraída a realizar uma nova aquisição de imóvel residencial.

Responde, também, à mudança do próprio perfil de interesses e de formas de uso do tempo


na sociedade contemporânea. As articulações entre os interesses e determinações da
produção e do consumo estão mais fortes do que nunca, porque há uma aceleração no
ritmo de produção da cidade, marcada pela sucessão cada vez mais rápida de novos
empreendimentos imobiliários e de novos jeitos de morar e viver.

A constituição de uma cidade dispersa é, desse modo, parte do processo de conformação


de uma urbanização difusa (DEMATTEIS, 1999), propiciada pela intensificação da
circulação, dada pela ampliação e aceleração das formas de se deslocar e de se comunicar.
Ascher (1995, p. 41-79)7 destaca, no capítulo 2 de seu livro, o papel das novas Tecnologias
de Informação e Comunicação (NTICs) no processo de extensão dos tecidos urbanos.

Desse ponto de vista, a urbanização difusa pode ser vista mais como tempo do que como
espaço, ou seja, são as novas temporalidades urbanas, dadas pela ampliação das NTICs,
que possibilitam a ocupação de tecidos urbanos cada vez mais extensos e em descontínuo
à cidade, cuja morfologia era mais integrada ou compunha, em algum nível, uma unidade
formal e de funcionamento.

C. Urbanização difusa e indeterminação

Há reconhecimento de que novas formas de circulação (transportes e comunicações),


decorrentes da associação entre novos materiais disponíveis, sistemas de transmissão por
satélite e o desenvolvimento da informática constituem a base material que viabiliza
tecnicamente as mudanças nas formas de assentamento humano, mas isso não pode ser
entendido como a razão das mudanças.

Um segundo ponto destacado por Bauman (2007) refere-se à “separação e iminente


divórcio” entre poder e política:

Grande parte do poder de agir efetivamente, antes disponível ao Estado moderno, agora se
afasta na direção de um espaço global (e, em muitos casos, extraterritorial) politicamente,
descontrolado, enquanto a política – a capacidade de decidir a direção e o objetivo de uma
ação – é incapaz de operar efetivamente na dimensão planetária, já que permanece local. A
ausência de controle político transforma os poderes recém-emancipados numa fonte de
profunda e, em princípio, incontrolável incerteza, enquanto a falta de poder torna as instituições
políticas existentes, assim como suas iniciativas e seus empreendimentos, cada vez menos
relevantes para os problemas existenciais dos cidadãos do Estados-nações e, por essa razão,
atraem cada vez menos a atenção destes (p.8).

Esse ponto, ao ser trazido para a nossa reflexão, reforça um aspecto já ressaltado, que é
aquele referente à dúvida se poderíamos ou não pensar em um projeto urbano
relativamente estável na Modernidade Líquida, reforçando um outro elemento também já
frisado: esse projeto poderia ser pensado para a cidade como um conjunto? Haveria
qualquer eficácia social e econômica na elaboração de projetos que se referem a uma
cidade, como os Planos Diretores de Desenvolvimento que, no Brasil, são pensados em
bases municipais, dando mais atenção ao espaço urbano e pouca ou nenhuma a seus
espaços rurais?

Sendo relativos, no máximo, a um município e mais freqüentemente a uma cidade, eles são
suficientes e adequados aos novos modos de assentamento humano que se estendem à
escala das dezenas ou centenas de quilômetros abarcando varias entidades espaciais, do
ponto de vista político-administrativo?

Do ponto de vista das novas formas espaciais, expressas por uma cidade progressivamente
mais dispersa, não são simples quaisquer tentativas de se exercitar a política, por meio da
elaboração e implementação de diretrizes para um projeto urbano que queiramos que seja
implantado.

Se fôssemos capazes de delineá-lo, num período de incertezas, essa iniciativa exigiria


articulações entre agentes econômicos e políticos que não se circunscrevem no nível
municipal e encontraria, ainda, as barreiras impostas pelo poder que se constitui em escalas
muito mais amplas que as das aglomerações urbanas.

Por outro lado, sabemos bem que não há novas formas espaciais, marcadas pela dispersão,
sem se considerar o conjunto de dinâmicas e processos que orientam, no mundo
contemporâneo, o desenvolvimento de uma urbanização difusa.

Por isso, parece-nos que qualquer esforço no sentido de estabelecimento de um projeto


urbano, baseado nas forças passíveis de serem constituídas para o exercício da política
local, entendido aqui em sua escala supra municipal, poderia se conformar, apenas, em
projetos que limitassem ou orientassem a implantação de novos empreendimentos,
definindo diretrizes e parâmetros que pudessem evitar os ‘exageros’ decorrentes dos
interesses fundiários e imobiliários que empurram a cidade para fora dela.

Assim, podemos nos perguntar em que medida teria validade iniciativas de aprovação e
respeito a normativas legais que impeçam ou inibam a expansão territorial em descontínuo,
por exemplo, através de dispositivos que exijam contigüidade territorial ou algum nível de
proximidade entre as áreas urbanas já implantadas e os novos empreendimentos urbanos
que proliferam nas franjas urbanas mais próximas ou mais distantes?

Do ponto de vista, da normatização das ações dos agentes envolvidos com os momentos
primeiros do processo de produção do espaço (proprietários fundiários, incorporadores,
construtores, corretores e agentes financeiros), essas iniciativas poderiam ter algum efeito.
Elas evitariam, talvez, que a dispersão do tecido urbano alcançasse escalas em que os
custos públicos e sociais da expansão das infra-estruturas, equipamentos e serviços sociais
fossem grandes demais, uma vez que, no caso dos empreendimentos voltados aos
segmentos de médio e alto poder aquisitivo, as alianças entre iniciativa privada e poder
público, no Brasil, têm sido freqüentes.

Do outro lado, há que se considerar o ponto de vista mais amplo, ou seja, aquele que
incorpora na leitura da produção do espaço os interesses, valores e práticas socioespaciais
do que vão adquirir ou ocupar esses novos ambientes urbanos, sejam eles proprietários dos
imóveis edificados e/ou locatários deles. Esses agentes tornam, por meio de suas decisões
e ações, indissociáveis as articulações entre propriedade e apropriação, aspecto que não é
novo no modo capitalista de produção, mas que agora, passa a se realizar, em novas bases
espaciais.

Sem dúvida, qualquer esforço de exercício conseqüente da política, aquele que se


caracterizaria pela busca de um nível mínimo de equidade territorial, seria inócuo. A
separação entre o poder e a política revela-se, nesse caso, em função das diferenças
escalares em que esses dois âmbitos da vida social se realizam, mas também em razão do
fato de que as escolhas espaciais podem ser feitas entre um conjunto de possibilidades para
os que têm maior poder aquisitivo e são mínimas ou não existem, a não ser como
imposição, para os que não podem comprar as melhores localizações.

Se acreditássemos na hipótese de que uma legislação cuidadosamente elaborada, mesmo


aquela comprometida com o ideal de se alcançar alguma justiça espacial, pudesse ter efeito
na direção de definição de uma política urbana que contivesse a tendência de fragmentação
urbana, essa política seria, do ponto de vista da urbanização difusa, muito mais forma, do
que processo.

Esse descompasso entre o poder e a política, deixando aos agentes locais apenas o papel
de influenciar, com capacidade muito reduzida, as formas espaciais que estão sendo
conformadas, já que as escolhas relativas aos novos modos de vida, em novos habitats8
sejam eles urbanos ou não, estão sendo feitas em escalas mais amplas ou por elas
influenciadas. Essa constatação é que nos leva a concluir sobre a indeterminação que
caracteriza a urbanização difusa, quando ela não é vista apenas do ponto de vista dos
interesses econômicos, mas avaliada a partir da perspectiva de valores e práticas
socioespaciais que reafirmam o interesse da separação social e negam o ideal de cidade,
enquanto espaço de convivência entre as diferenças.

D. Urbanização difusa e imponderabilidade

Dando continuidade à apresentação das “mudanças seminais” que caracterizam o período


atual, Bauman (2007, p. 8-9) entra em tema que coloca em relação o papel do Estado, ou a
ausência dele, no que se refere ao oferecimento de segurança e à organização da
sociedade como uma rede:

[...] a retração ou redução gradual, embora consistente, da segurança comunal, endossada


pelo Estado, contra o fracasso e o infortúnio individuais retira da ação coletiva grande parte da
atração que esta exercia no passado e solapa os alicerces da solidariedade social. [...] A
exposição de indivíduos aos caprichos dos mercados de mão-de-obra e de mercadorias inspira
e promove a divisão e não a unidade. [...] A “sociedade” é cada vez mais vista e tratada como
uma “rede” em vez de uma “estrutura” (para não falar em uma “totalidade sólida”): ela é
percebida e encarada como uma matriz de conexões e desconexões aleatórias e de um
volume essencialmente infinito de permutações possíveis.
Esta perspectiva também pode ser pensada a partir das novas formas de produção do
espaço urbano. Grande parte dos novos habitats bem como dos novos espaços de consumo
refletem, de modo profundo, a tendência de fortalecimento dos agrupamentos por extratos
socioeconômicos e/ou por interesses de consumo, seja de bens seja de lazer.

Amendola (2000) já apresentou o que considera os elementos da cidade pós-moderna,


destacando da tendência de fuga das pessoas da cidade, por meio de processos de
desurbanização ou deslocalização, expressos pela formação de Edge Cities. Ressalta,
igualmente, que a cidade atual tem sua centralidade espacial arrefecida por práticas que se
referem a uma cidade bricolagem. As metáforas “cidade porosa”, “cidade da simulação”,
“zapping experiencial” servem para nos chamar atenção sobre o fato de que não há, do
ponto de vista da cidade atual, qualquer possibilidade de acalentar o ideal de unidade, como
igualmente Bauman nos sugere ao tratar da sociedade atual, indicando que ela é
caracterizada pela divisão e pela rede e não pela unidade e pela estrutura.

Tal constatação vem acompanhada do fato de que as partes da cidade que,


progressivamente, deixam de dialogar entre si, porque seus próprios citadinos já não
freqüentam as mesmas parcelas de seu espaço e, mesmo que compartilhem uma dessas
parcelas (por razões de trabalho ou de circulação), não se apropriam dela, quando sua
essência é a diferença.

Verifica-se que as primeiras expressões dessa cidade mosaico, que é composta de práticas,
dinâmicas e processos de fragmentação, estão na autosegregação daqueles que têm
optado pelos espaços de uso exclusivo em que o “público” é apenas o espaço de uso
coletivo, já que os sistemas de segurança e controle filtram e regulam a circulação e direito
de ir e vir.

Os novos empreendimentos imobiliários verticais e horizontais que combinam sistemas de


controle ao acesso com ampliação dos espaços para o esporte e o lazer, para a convivência
de grupos por faixa de idade ou por opção gastronômica ou por qualquer outro nível de
segmentação cultural revelam, de modo claro, como partes das cidades se enclausuram,
ainda que isso não seja desejo de uma parte dos citadinos ou possível para outra parte
deles, para não nos esquecermos que a cidade é mais complexa, tanto quanto a sociedade,
do que o sonho que os anúncios imobiliários vendem.

Retomamos a mesma indagação que perpassou o desenvolvimento do raciocínio, contido


nos itens anteriores: Por que a cidade comporia uma totalidade sólida, num contexto de
Modernidade líquida?

Os múltiplos ângulos e perspectivas a partir das quais as fraturas socioespaciais se realizam


dificultam a recuperação de qualquer unidade urbana, se é que ela é, ainda, desejada. Não
se trata, apenas, da unidade de suas formas espaciais, tampouco de sua morfologia urbana,
mas sim das interações espaciais que fariam dela uma estrutura em movimento.

As reestruturações observadas, nos últimos 20 anos, são também desestruturações. Essa


afirmação não se baseia no fato que as reestruturações expressam a superação das
lógicas, dinâmicas e processos que anteriormente orientavam a estruturação urbana. O que
há de novo é que essa superação não vem seguida de qualquer nível de estabilidade, pois
há que se considerar a seqüência de mudanças e o ritmo de sucessão delas, característicos
de um tempo que Milton Santos tão bem definiu como sendo, simultaneamente, um período
e uma crise.

Se são rápidas as mudanças, porque são intensos os interesses do mercado que geram
novas demandas e substituem cada vez mais rapidamente os desejos de consumo, os
conteúdos em sucessão dessas mudanças revelam a imponderabilidade, como expressão
dessa seqüência rápida de lógicas que vão tornando o espaço mais continente das
transformações que das permanências.

Nesse contexto, parece-nos que a cidade dispersa e a urbanização difusa não são,
somente, forma e processo, mas aparecem como essência de da articulação inexorável
entre o espaço e o tempo.

E. Urbanização difusa, memória e práticas socioespaciais

O quarto ponto levantado por Bauman (2007, p. 9-10) abre caminho para a reflexão sobre
as relações entre passado e futuro coletivos nos ambientes urbanos:

[...] o colapso do pensamento, do planejamento e da ação a longo prazo, e o desaparecimento


ou enfraquecimento das estruturas sociais nas quais estes poderiam ser traçados com
antecedência, leva a um desmembramento da história política e das vidas individuais numa
série de projetos e episódios de curto prazo que são, em princípio, infinitos e não combinam
com os tipos de seqüências aos quais conceitos como ‘desenvolvimento’, ‘maturação’,
‘carreira’ ou ‘progresso’ (todos sugerindo uma ordem de sucessão pré-ordenada) poderiam ser
significativamente aplicados. [...] Um imediato e profundo esquecimento de informações
defasadas e o rápido envelhecimento de hábitos pode ser mais importante para o próximo
sucesso do que a memorização de lances do passado e a construção de estratégias sobre um
alicerce estabelecido pelo aprendizado prévio.

O colapso a que se refere o autor sugere, a nós, a idéia de que não seria mais possível
formular uma utopia urbana, enquanto projeto coletivo. Ele desenvolve o tema da utopia no
capítulo cinco da mesma obra. Aqui tratamos, apenas, dessa sugestão oferecida pelo texto,
em sua introdução, uma vez que, no caso da cidade, tem significado enorme a passagem
histórica da condição de possibilidade de grandes utopias, propiciada pelos contextos da
Modernidade Sólida, para a verificação de que temos, hoje, somente, pequenos projetos ou
desejos individuais ou de grupos, que compõem o perfil da Modernidade Líquida.

Por que o significado é enorme?

Quando nos referimos aos projetos de empresas, instituições, famílias, grupos, tribos
urbanas verificam-se algumas possibilidades de se interferir nas escolhas que engendram o
futuro dessas ‘comunidades’, apesar dos limites e contrações que essas possibilidades
experimentam em função da ampliação dos interesses dos grandes agentes econômicos e
políticos. Há chances de se pensar em futuro, nesses níveis e formas de agrupamentos,
sejam eles definidos por escolhas temáticas, identidades culturais, sexuais ou étnicas,
estratégias de sobrevivência orientadas pela solidariedade ou pela consecução de projetos
econômicos ou políticos (e não apenas os político-partidários cada vez menos importantes).

Quando nos referimos às cidades e à vida urbana, duas dificuldades se apresentam para
pensar, no presente, o futuro como possibilidade(s), ancorado no conhecimento que temos
do passado. Essas dificuldades combinadas entre si, parecem-nos, decorrência direta dos
pontos destacados por Bauman, de um lado, o colapso do “planejamento e da ação de
longo prazo” e, por outro lado, não termos mais as estruturas sociais que poderiam constituir
a base de elaboração desse futuro ou dessa utopia.

A primeira dificuldade está no fato de que as ações e práticas humanas podem mudar e têm
mudado, de modo relativamente rápido, quando vistas pelas alterações nas formas de
estabelecimento de relações de sociabilidade e parceria, de expressão da vida afetiva e dos
múltiplos modos como ela pode se realizar, de constituição da vida social em seus
diferentes campos, de comportamento humano, em espaços urbanos, visto pela ótica dos
sexos, das faixas etárias ou dos padrões de consumo.

No caso das cidades, as mudanças enfrentam a força das formas construídas para servir
tempos pretéritos. Isso pode ser pensado no plano objetivo (investimentos realizados em
dadas parcelas dos territórios urbanos) e no plano subjetivo (as representações sociais e,
portanto, coletivas que elaboramos sobre os espaços em que vivemos ou conhecemos).

Nas cidades, para mudar é possível expandir, mas é necessário também destruir, porque a
densidade dos objetos técnicos, nos termos propostos por Santos (1996) é grande e o
projeto de futuro tem que conter as formas do passado, ainda que refuncionalizadas ou
reconstruídas.

Este primeiro ponto em si não traria nada de novo ao debate que estamos nos esforçando
para enfrentar, aquele relativo às novas formas de assentamento humano dispersas, que
são, ao mesmo tempo, condição e reflexo de dinâmicas e processos de desconcentração
territorial e centralização complexos e, por isso, imponderáveis. Ele não traz nada de novo,
porque poderia ser aplicado à cidade de todos os tempos, quando notamos a densidade de
investimentos, de objetos técnicos, de imagens e representações presentes ou ancoradas
na cidade, comparada ao que se observa no campo.

O segundo ponto, articulado ao primeiro, pode oferecer alguma pista para tratar do nosso
tema. Trata-se da constatação de que, em função dessa densidade de objetos técnicos, de
capitais fixos e circulantes, de experiências objetivas e subjetivos, de pessoas que se
relacionam, expressando vivências de todo tipo, grande parte delas conflituosas, a cidade é,
por excelência, um ambiente que sugere o compartilhamento, a convivência e a
proximidade.

Esses elementos por sua vez, ensejam um repertório de possibilidades de constituição


daquilo que se poderia chamar de “memória das cidades” como expressão da relação entre
“história urbana e história da cidade” (SANTOS, 1994), nos termos propostos por Abreu
(1998, p. 14):

A cidade é uma das aderências que ligam indivíduos, famílias e grupos sociais entre si. Uma
dessas resistências que não permitem que suas memórias fiquem perdidas no tempo, que lhes
dão ancoragem no espaço.

Mas a cidade não é um coletivo de vivências homogêneas. [...] O que faz com que surja uma
memória grupal ou social, referida a algum lugar, é o fato de que aquele grupo ou classe social
estabeleceu ali relações sociais. Essas relações, entretanto, podem ser de dominação, de
cooperação ou de conflito, e variam tanto no tempo como no espaço. Consequentemente, a
vivência da cidade dá origem a inúmeras memórias coletivas, que podem ser bastante distintas
umas das outras, mas que têm como ponto comum a aderência a essa mesma cidade.

As novas formas de assentamento humano disperso, acompanhadas de dinâmicas de


segregação e auto-segregação socioespacial, podendo ser essas dinâmicas, em muitas
cidades, parte constitutiva dos processos de fragmentação urbana, têm diminuído ou
modificado as bases, segundo as quais se efetiva o compartilhamento da experiência
urbana, mesmo se reconhecendo que nunca houve harmonia e que não há uma memória
coletiva sobre a cidade, como destacou Abreu, mas tantas memórias coletivas quanto
grupos ou extratos sociais, econômicos, culturais, políticos, etários etc, podemos nela
reconhecer.
A diluição da importância e, até mesmo, a diminuição efetiva da existência de espaços
citadinos em que a experiência urbana possa, numa dada cidade, ser compartilhada por
todos é o elemento novo que a multi(poli)centralidade urbana gerou e que tem sido
acentuado pela extensão dos tecidos urbanos combinada às enormes disparidades
econômicas que caracterizam a formação social brasileira.

Haveria que se considerar, ainda, que a memória sobre as cidades vem sendo valorizada,
como aspecto importante às “novas estratégias culturais da cidade-empreendimento”
(ARANTES, 2000, p. 16). Pelas características do urbanismo de intervenção que se pratica,
essa valorização é instável, tanto quanto pode ser artificial, uma vez que expressão dos
interesses de mercantilização da imagem das cidades.

Sechi (2005, p. 31), analisando a cidade do século X, chama atenção para o fato de que:

Continuidade e descontinuidade parecem ir se sucedendo ao longo de todo o século


construindo temas que vão sendo obsessivamente declinantes: a obsessão, por exemplo, da
memória, do fim da história, de um eterno presente. (tradução nossa)

O reconhecimento da coexistência e/ou sucessão de temas tão contraditórios entre si –


memória, eterno presente, fim da história – já refletem as incertezas, conscientes ou não,
sobre as possibilidades de se elaborar um projeto urbano, que contenha quaisquer utopias
que não sejam, exclusivamente, a de extratos socioeconômicos, de grupos culturais ou de
faixas etárias, que expressam diferentes nichos de mercado.

Nas cidades brasileiras, tratando aqui do particular, sem deixar de considerar o que se
poderia avaliar como universal e singular nessa tendência, diminuem os ambientes públicos
em que a acessibilidade espacial e o interesse de convivência social garantam o diálogo
entre as diferenças. Partindo dessa constatação, podemos nos preocupar com a hipótese de
que as diferentes memórias coletivas sobre uma dada cidade, encontram, cada vez menos,
pontos ou interfaces de superposição ou identidade.

Assim, de um lado, as mudanças são muitas e são pequenas as possibilidades de uma


utopia urbana desenhada pela sociedade e não pelos grupos. De outro, os modos como nos
localizamos e nos deslocamos na cidade atual, segundo nosso poder aquisitivo, o que
implica na maior ou menor possibilidade de escolher onde se fixar e como se locomover,
não são modos que favorecem o encontro entre os diferentes e a formação de memórias
coletivas que possam ter pontos em comum.

Se os “passados” recentes, resultantes das experiências e práticas socioespaciais que


vivemos, não têm pontos em comum, como acalentar a idéia de um projeto de cidade, que
não seja efêmero, parcial e transitório?

Nesses termos, é possível, para nós, supor que a cidade dispersa e o processo de
urbanização difusa, nos temos como se constituem, sobretudo no âmbito de formações
sociais caracterizadas por amplo gradiente de disparidades, são a face da vida urbana que
nega a própria memória da cidade como espaço de vida coletiva e continente das
diferenças.

A cidade dispersa é o ambiente de novas práticas socioespaciais, marcadas pela


fragmentação, pela seletividade socioespacial e justificadas pelo espectro da (in)segurança
urbana9, a urbanização difusa é, ela mesma, um atalho para a negação da própria cidade,
compreendida nos termos em que, na longa duração, podemos percebê-la como espaço
das diferenças.
F. Urbanização difusa e flexibilidade

Por fim, na introdução de seu livro, Bauman (2007, p. 10) frisa que:

[...] a responsabilidade em resolver os dilemas gerados por circunstâncias voláteis e


constantemente instáveis é jogada sobre os ombros dos indivíduos – dos quais se espera que
sejam “free-choosers” e suportem plenamente as conseqüências de suas escolhas. [...] A
virtude que se proclama servir melhor aos interesses do indivíduo não é a conformidade às
regras (as quais, em todo caso, são poucas e contraditórias) mas a flexibilidade: a prontidão
em mudar repentinamente de táticas e de estilo, abandonar compromissos e lealdades sem
arrependimentos – e buscar oportunidades mais de acordo com sua disponibilidade atual do
que com as própria preferências.

Tanto quanto na passagem do século XIX para o século XX, conhecemos os ajustes
promovidos pelo movimento do modo capitalista de produção, neste período reconhecido
como 2ª Revolução Industrial ou Revolução Fordista, vive-se, atualmente, de modo intenso,
os ajustes decorrentes da Revolução Informacional10, que cria as condições à instauração
de um Pós-Fordismo. No âmbito do conjunto de transformações que marcam o período atual
está o regime de acumulação flexível, segundo o qual, em função dos interesses de
diminuição de custos, a demanda é que orienta o ritmo e natureza do que se produz, sejam
bens, sejam serviços.

Do mesmo modo como a Revolução Fordista teve seu rebatimento nas formas de
estruturação do espaço urbano, entre as quais, pode-se destacar a tendência ao
zoneamento funcional, a revolução atual transfere à vida social e, por conseguinte, ao
espaço urbano, seus princípios de fundamento, entre eles a flexibilidade, do mesmo modo
como os espaços mais flexíveis são também determinantes do processo, na medida em que
propiciam as condições que o sistema de acumulação requer. A maleabilidade e a ligeireza
se instalam reordenando as decisões que orientam as escolhas locacionais e as práticas
socioespaciais urbanas.

Esses novos elementos da vida urbana aparecem sob diferentes formas nas cidades, mas
têm relação direta com o fato de que há possibilidades tecnológicas de uma

“...crescente dissociação entre a proximidade espacial e o desempenho de funções rotineiras:


trabalho, compras, entretenimento, assistência à saúde, educação, serviços públicos, governo
e assim por diante”.

Assim, a circulação ganha tanta importância quanto a localização ou, até mesmo, mais que
ela. A imponderabilidade dos trajetos que poderão ser realizados, numa cidade reordenada
para ser flexível reflete e sustenta, por sua vez, a tendência à individualização, uma vez que
grande parte dos deslocamentos, quando nos referimos às cidades brasileiras e aos
extratos de médio e alto poder aquisitivo, é efetuada por transporte automotivo individual.

Essa constatação pressupõe o total domínio do indivíduo sobre os trajetos que vai
desenhar, os horários em que eles ocorrerão, bem como os dias da semana em que
deverão se dar. Os deslocamentos casa-trabalho, no começo do dia, e trabalho-casa, ao
final da jornada, não são mais exclusivos na definição do tráfego urbano, pois a eles se
sobrepõem de modo crescente os deslocamentos realizados pelos novos “trabalhadores” –
os pós-fordistas – aqueles que vivem de teletrabalho, os que são remunerados por serviços
terceirizados, os que efetuam em suas motocicletas o delivery, os que sobrevivem do
sistema de encomendas montado pelas indústrias para baixar custos, os que abastecem
esse sistema em suas múltiplas etapas, os que realizam comércio ambulante e ilegal, os
que estão sub-empregados ou desempregados. São novos “atores” urbanos cujos horários
e percursos são imponderáveis, reforçando a tendência à individualização da vida urbana.

Tais tendências, relativas aos ajustes do modo capitalista de produção, acompanham-se da


constituição de novos modos de morar, estabelecidos cada vez mais distantes, nas grandes
e metropolitanas cidades, o que amplia muito os deslocamentos necessários para a
realização da vida econômica e social, reforçando o predomínio da lógica da circulação
sobre a da localização ou as tornando inexoravelmente articuladas entre si e complexas.

As escolhas, de parte dos segmentos de médio e alto poder aquisitivo, pelos habitats
urbanos mais distantes das áreas centrais e pericentrais, parte deles murados e/ou
controlados por sistemas de vigilância dos mais modernos, são parte fundamental do
mesmo conjunto de dinâmicas que levam às novas escolhas locacionais, gerando uma
cidade dispersa. Elas se acompanham de reforço das necessidades de deslocamento,
dando nova densidade aos fluxos intra e interurbanos. De todo modo, em seus conteúdos,
essas escolhas podem ser interpretadas como expressão espacial da individualização da
sociedade.

A combinação de movimentos de (re)centralização das funções associadas ao consumo de


bens e serviços, e de desconcentração demográfica, quando se considera o número de
habitantes por quilômetro quadrado, em cidades de diferentes portes , parece contraditório,
mas faz parte do processo amplo de reestruturação da cidade que se articula ao de
reestruturação urbana (SPOSITO, 2007).

A individualização, a flexibilização, a recentralização e a desconcentração reorientam o


movimento de constituição da centralidade urbana, multiplicam-na, reforçam-na, ao recriá-lo,
em “novas periferias”, mas a diluem ao tornar os novos espaços de consumo de bens e
serviços, cada vez mais segmentados.

Não há conclusões possíveis, no momento, porque há muito mais perguntas. É preciso


realizar mais pesquisas. A produção bibliográfica sobre o tema tem sido crescente, mas
ainda é, em grande parte, européia ou estadunidense. É fundamental dialogar com ela, mas
isso é insuficiente, porque as especificidades da formação socioespacial brasileira, com
destaques para a nossa cidadania incompleta e para as grandes disparidades
socioeconômicas que temos, coloca o tema em outros patamares, exigindo de nós, ainda,
um esforço muito grande para enfrentar as incertezas terminológicas e, portanto, conceituais
que as novas formas de assentamento humano provocam.

Referências bibliográficas

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Paulo: Expressão Popular, 2007, p. 233- 253.

Notas:

1. Professora do Departamento de Geografia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de


Presidente Prudente. Pesquisadora do CNPq.

2. Projeto temático apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP),
coordenado por Nestor Goulart Reis Filho (FAU/USP).

3. Esse tema já foi desenvolvido por nós em SPOSITO (2006).

4. Ascher (1995, p. 24) destaca esse processo tomando como referência empírica a aglomeração metropolitana
parisiense, afirmando que: Os territórios metropolitanos se estendem progressivamente sobre suas periferias, a
densidade média das aglomerações diminui. [...] As metrópoles são assim, às vezes, mais diluídas e mais
compactas, mais integrantes e mais descontínuas.” (tradução nossa).
5. A partir de outros pontos de vista, o enfoque a partir do qual Bauman lê o mundo contemporâneo, aparece em
várias de suas obras, entre as quais destacamos algumas (2001, 2003 e 2008).

6. As organizações sociais são conceituadas como “estruturas que limitam as escolhas individuais, instituições
que asseguram a repetição de rotinas, padrões de comportamento aceitável” (BAUMAN, 2007, p. 7).

7. O autor retoma o tema em obras subseqüentes a esta (2001, 2005).

8. Afirmamos que se tratam de novos habitats urbanos, pois há uma transformação não apenas nas estratégias
locacionais dos novos empreendimentos imobiliários, mas também uma completa redefinição do par centro-
periferia e das práticas socioespaciais, que essa mudança provoca. Secchi (2005, p. 25) refere-se a “uma nova
forma de habitar” e a problematiza, afirmando que “a dispersão é um fenômeno embaraçante”.

9. A análise de novas práticas socioespaciais, que têm como determinante a idéia de “insegurança urbana”
mereceria um tópico neste texto. No entanto, ele demandaria um conjunto de novas relações a serem tratadas
que levariam a um desenvolvimento que poderia prejudicar o esforço de síntese que estamos fazendo, ao
observar os cinco pontos destacados por Bauman, vis-à-vis às dinâmicas de urbanização difusa. Estamos
realizando pesquisa sobre o tema “Urbanização difusa, espaço público e (in)segurança urbana”, em parceria com
os pesquisadores Eda Maria Goes (coordenadora) e Oscar Sobarzo, com apoio da FAPESP, cujos resultados ao
serem divulgados, poderão oferecer alguma contribuição à análise do tema.

10. Castells (1999, p. 36-37) afirma que: o fator histórico mais decisivo para a aceleração, encaminhamento e
formação do paradigma da tecnologia da informação e para indução de suas conseqüentes formas sociais foi/é o
processo de reestruturação capitalista, empreendido nos anos 80, de modo que o novo sistema econômico pode
ser adequadamente caracterizado como capitalismo informacional. [...] Portanto, o informacionalismo está ligado
à expansão e ao rejuvenescimento do capitalismo, como o industrialismo estava ligado a sua constituição como
modo de produção”.

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