Maria Esther Maciel - Zoopoéticas Contemporâneas
Maria Esther Maciel - Zoopoéticas Contemporâneas
Maria Esther Maciel - Zoopoéticas Contemporâneas
2007 197
Zoopoéticas contemporâneas
Maria Esther Maciel
FALE/UFMG
Um percurso diacrônico
Se, no que tange à “zoologia dos sonhos”, os textos atuais ainda mantêm a di-
mensão alegórica dos bestiários tradicionais, ainda que os esvaziando da função moralis-
ta e da fixidez descritiva dos modelos antigos (vide o Manual de zoología fantástica de
Borges), os bestiários “realistas”, por sua vez, compõem-se de registros mais particulares
e de observações mais afetivas do escritor, entrando muitas vezes nos domínios do poé-
tico. O que não exclui desses escritos, obviamente, possíveis referências eruditas. Em
sua maioria, eles são tentativas de compreensão da “outridade” que os animais represen-
tam para a razão humana, buscando destes extrair um saber sobre o mundo e a humani-
dade.
Sob esse prisma, alguns autores adeptos dessa vertente zoológica enfocam o mundo
zôo com uma cumplicidade explícita, feita de respeito e nenhum moralismo, como se
pode ver na obra do poeta inglês Ted Hughes, composta de uma enorme quantidade de
poemas voltados para o tema5, e na de Guimarães Rosa, como se pode ver nas séries
“Zôo” e “Aquário” da miscelânea Ave palavra. Outros escritores – com propósitos
memorialistas – já convertem os animais em imagens de uma infância perdida, como é o
caso de Murilo Mendes, que faz na “Seção microzôo”, de Poliedro, um inventário de seus
bichos, aqueles que compõem sua enciclopédia particular, os seus arquivos de vida. Há
também os poetas que se empenham em salvá-los do extermínio, convertendo o texto
Remate de Males – 27(2) – jul./dez. 2007 201
em uma espécie de “arca de Noé” contemporânea, tal como se dá na zoopoética de
Roubaud em Les animaux de tout le monde – um bestiário no qual se encontra o que Deleuze
chamou de “verdadeiros mapas de afetos, os afetos dos quais um bicho é capaz”
(DELEUZE, 1978, s/p).
Dentro do repertório brasileiro, destaca-se ainda, num contexto bem mais con-
temporâneo, o escritor paranaense Wilson Bueno que, além de recriar os antigos bestiários
a partir de um enfoque cultural notadamente latino-americano, busca trazer para seus
escritos, à feição de Clarice Lispector, “o it dos animais”. Isso, por ele ser também um
escritor consciente de que, mais do que comparar os “mundos humanos” aos “mundos
animais”, cabe à literatura explorar a intensa complexidade de cada um deles. Principal-
mente em seus livros Jardim zoológico (1999) e Manual de zoofilia (1997), Bueno explora a
passagem das fronteiras entre o humano e o inumano, num processo de identificação do
sujeito poético com o que Derrida chama de “esse completamente outro” que é o animal.
(DERRIDA, 1999, 29)
Aliás, no que se refere a tais fronteiras, não há como não aproveitar as instigantes
reflexões que esse filósofo desenvolveu em O animal que logo sou, de 1999. Neste livro, ao
confrontar a assertiva de Heidegger segundo a qual “o animal é pobre de mundo” pelo
fato de ser privado de logos, Derrida realiza uma espécie de desconstrução do humanismo
logocêntrico do Ocidente, questionando também toda uma linhagem de filósofos como
Descartes, Kant, Levinas e Lacan, que como Heidegger, afirmaram que o animal é priva-
do de linguagem. Derrida, inclusive, critica a própria palavra animal, no singular, usada
por esses filósofos, como se “todos os viventes não-humanos pudessem ser agrupados
no sentido comum desse ‘lugar comum’” (DERRIDA, 1999, 64), como se não houvesse
diferenças entre as inúmeras espécies zoológicas. Em suas palavras:
Neste conceito que serve para qualquer coisa, no vasto campo do animal, no singular genérico,
no estrito fechamento deste artigo definido (“O animal “e não “animais”) seriam encerrados,
como em uma floresta virgem, um parque zoológico, um território de caça ou de pesca, um
viveiro ou um abatedouro, um espaço de domesticação, todos os viventes que o homem não
reconheceria como seus semelhantes, seus próximos ou seus irmãos. E isso apesar dos
espaços infinitos que separam o lagarto do cão, o protozoário do golfinho, o tubarão do
carneiro, o papagaio do chimpanzé, o camelo da águia, o esquilo do tigre ou o elefante do
gato, as formigas do bicho-da-seda ou o ouriço da eqüidna. (64-65)
Saberes animais
Notas
1
Clarice Lispector, em Água viva, fala do “it dos animais”, tomando o “it” como “o mistério do impessoal”,
esse “neutro” que resiste à subjetivação através da linguagem. Nas palavras da autora, “it é elemento puro. É
material do instante do tempo”. (Cf. LISPECTOR, 1980, pp. 30; 35 e 49).
2
Surgida no Oriente, a fábula foi da Índia à China e à Pérsia, chegando à Grécia, no séc. IV a.C., graças a Esopo,
que reinventou o gênero. Definida por La Fontaine como uma “pequena narrativa que, sob o véu da ficção,
guarda uma moralidade”, e dotada, segundo Fedro, da dupla finalidade de divertir e de aconselhar, ela atraves-
sou os séculos com suas estórias protagonizadas por animais e seu tom sentencioso, tendendo ora ao prover-
bial, ora ao satírico.
3
Segundo Nilda Guglielmi, organizadora da edição espanhola El Fisiólogo (Madrid: Ediciones Eneida, 2002) a
obra foi um “punto de arranque de una larga cadena de obras análogas”, tendo sido o livro mais difundido
depois da Bíblia até o século XIII e perdurando até o Renascimento. (Cf. GUGLIELMI, 26).
4
Ampliado consideravelmente em 1967, o Manual de zoología fantástica passou a se intitular El libro de los seres
imaginarios, sendo incluídos outros seres não-animais, como os elfos, os gnomos, as fadas e os anjos, e
eliminada a ordem alfabética dos verbetes da edição anterior.
5
Tais poemas se disseminam em diferentes livros, dentre os quais destacam-se: The hawk in the rain (1957),
Lupercal (1960), Wodwo (1967), Four Crow poems (1970), Crow: from de life and songs of the crow (1970), Crow wakes
(1971), Cave birds (1978), Adam and sacred nine (1979), Moortown diary (1979), A primer of birds (1981), River (1983),
What is the truth? (1984), e Wolfwatching (1989). Cf. HUGUES, 2003.
6
Segundo Derrida, são pouquíssimos os filósofos que assim procederam, sendo um deles Montaigne, que
dedica todo o cap. XII dos Ensaios II à reflexão sobre as relações entre homens e animais, criticando a presunção
humana de se julgar capaz de conferir ou recusar aos animais algumas faculdades.
7
O poema “O jaguar” guarda, sem dúvida, uma simetria inversa com o poema “A pantera”, de Rainer Maria
Rilke. Ambos tratam de feras enjauladas num zoológico, mas enquanto a pantera faz da jaula sua realidade e seu
limite, o jaguar ignora as barras da clausura, debatendo-se contra elas em estado de deslocamento. Pode-se dizer
que, onde o movimento da fera rilkeana esmorece, o da fera hugheana começa. Para uma, “há apenas grades para
olhar”; para a outra, “não há jaula”, mas “vastidões de liberdade”. Cf. RILKE in CAMPOS, 2001, 56-57 e
HUGUES, 2003, 19-20.
8
Hugues compôs, dez anos depois, um outro poema sobre o jaguar, intitulado “Second glance at a jaguar”, no
qual se concentra na descrição das partes do corpo do animal, flagrando em cada uma destas os movimentos que
as animam. Cf. HUGUES, 2003, 151-152.
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9
Esta posição se dá a ver, sobretudo, no livro L’ aperto, de 2002, no qual Agamben trata da relação entre o
homem e o animal, a partir da discussão das idéias de Jacob Von Uexküll, Heidegger, Benjamin e Kojève. Cf.
AGAMBEN, 2004.
10
Montaigne admitia a existência de um processo de raciocínio nos animais. Ele chega a mencionar o conheci-
mento que os atuns teriam dos três ramos da matemática: a astronomia, a geometria e a aritmética. Nas palavras
do filósofo, eles “revelam conhecer a geometria e a aritmética, porquanto se reúnem em cardumes da forma de
um cubo quadrado por todos os lados, de sorte que formam um batalhão sólido de seis faces iguais; nadam
nessa ordem de dimensões idênticas atrás e na frente, de modo que quem os encontra e conta uma fileira tem
idéia precisa do todo, já que a largura do cardume é igual à profundidade e ao comprimento”. (MONTAIGNE,
222)
11
Em tradução de Marcos Siscar e Paula Glenadel. No original: Pour parler, dit le cochon, / ce que j’aime c’est les mots
porqs: / glaviot grumeau gueule grommelle / chafouin pacha épluchure / mâchon moche miches chameau / empoté chouxgras
polisson. (ROUBAUD, 2003, 116).
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