Maria Esther Maciel - Zoopoéticas Contemporâneas

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Remate de Males – 27(2) – jul./dez.

2007 197

Zoopoéticas contemporâneas
Maria Esther Maciel
FALE/UFMG

“Às vezes eletrizo-me ao ver bicho. Estou agora ouvindo o seu


grito ancestral dentro de mim: parece que não sei quem é mais a
criatura, se eu ou o bicho. E confundo-me toda.”
(Clarice Lispector)

No poema “Um boi vê os homens”, de Claro enigma, Drummond confere voz a


um “eu-bovino” que – no exercício de um pensamento fora de lugar, porque inscrito em
uma linguagem que não é necessariamente a do animal – rumina seu próprio saber sobre
a espécie humana. Numa dicção sem ênfase, mas firme nas conjeturas, esse “eu” lamen-
ta que os humanos, em seu “vazio interior que os torna tão pobres e carecidos de emitir
sons absurdos e agônicos”, “sons que se despedaçam e tombam no campo como pedras
aflitas”, não sejam capazes de ouvir “nem o canto do ar nem os segredos do feno”.
(DRUMMOND, 1979, 266) Em outras palavras, o boi – movido por uma percepção que
supostamente ultrapassa as divisas da razão legitimada pela sociedade dos homens – não
apenas põe em xeque a capacidade destes de entender outros mundos que não o ampara-
do por essa mesma razão, mas também revela uma visão própria das coisas que existem
e compõem o que chamamos de vida.
Vê-se que a persona bovina de Drummond busca encarnar ou encenar uma subje-
tividade possível (ainda que inventada), de um ser que, nos confins de si mesmo, é sem-
pre outro em relação ao que julgamos capturar pela força da imaginação. Isso, se conside-
rarmos que todo animal – tomado em sua singularidade, em seu it1 – sempre escapa às
tentativas humanas de apreendê-lo, visto que entre ele e os humanos predomina a ausên-
cia de uma linguagem comum, ausência esta que instaura uma distância mútua e uma
radical diferença de um em relação ao outro. No entanto, tal distância/diferença não
anula necessariamente aquilo que os aproxima e os coloca em relação também de afini-
dade. Falar sobre um animal ou assumir sua persona não deixa de ser também um gesto de
espelhamento, de identificação com ele. Em outras palavras, o exercício da animalidade
que nos habita.
Sabe-se que o esforço de entrar no espaço mais intrínseco da vida animal
nunca deixou de desafiar poetas e escritores de todos os tempos e tradições. Seja através
da sondagem (por vezes erudita) do comportamento e dos traços constitutivos dos bi-
chos de várias espécies, realidades e irrealidades, seja através da encenação de um víncu-
lo afetivo com eles, ou da tentativa de antropomorfizá-los e convertê-los em metáforas
do humano, muitos foram e são os autores voltados para a prática do que se nomeia hoje
de zooliteratura. Ao que se somam ainda aqueles escritores que, avessos à idéia de cir-
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cunscrever os bichos aos limites da mera representação, buscaram flagrá-los também
fora desses contornos, optando por uma espécie de compromisso ou de aliança com eles.
Neste caso, cada animal – tomado em sua insubstituível singularidade – passa a ser visto
como um sujeito dotado de inteligência, sensibilidade, competências e saberes diferenci-
ados sobre o mundo, como o boi de Drummond.

Um percurso diacrônico

Um olhar sobre a história da literatura ocidental permite-nos dela extrair também


uma história literária dos animais. De Esopo (620—560 a.C.), Aristóteles (384- 322
a.C.) e Plínio o Velho (23-79 d.C.), passando por Isidoro de Sevilha (560-636 d.C.) e os
bestiários medievais, até os relatos de viajantes do século XVI e os inúmeros bestiários
modernos e contemporâneos, de distintas nacionalidades e tradições, os animais nunca
deixaram de se inscrever de maneira incisiva no imaginário poético e ficcional do Oci-
dente. Tomados ora como o estranho por excelência, ora como um “possível ilimitado”
(FOCILLON, apud MALAXECHEVERRÍA, 2002, 15), os animais sofreram, ao longo
dos séculos e milênios, múltiplas representações e interpretações, convertendo-se em
signos vivos daquilo que aos homens escapa e do que estes conquistam, ou seja, de sua
limitação e de seu domínio, simultaneamente. (cf. MALAXECHEVERRÍA, 14).
Se, na Antigüidade clássica, coube a Esopo, com suas fábulas moralizantes2, a
tarefa de levar os animais (convertidos em metáforas do humano) para o campo exclusi-
vo da ficção, inaugurando uma vertente zooliterária que atravessará os séculos com seu
tom sentencioso e proverbial, foi A história dos animais, de Aristóteles, o primeiro grande
compêndio científico-literário sobre o reino zoológico, no qual os animais são tratados
como animais, a partir de uma abordagem minuciosa que conjuga pesquisa, esforço
taxonômico e imaginação criadora. Aristóteles inaugura, assim, não apenas a tradição
enciclopédica, de feição científica, a que se filiarão Plínio o Velho, Santo Isidoro e Lineu,
como também a dos catálogos descritivos de animais reais e fantásticos, conhecidos
como bestiários, que proliferarão na Europa a partir da Idade Média. Nesse sentido, A
história dos animais apresenta um duplo caráter: o taxonômico e o ficcional. Resultado de
uma minuciosa investigação bibliográfica, conjugada a observações empíricas, informa-
ções recolhidas de outras pessoas, referências mitológicas, lendas e conjeturas do pró-
prio autor, a enciclopédia aristotélica esquadrinha o mundo animal por vias distintas,
tangenciando, muitas vezes, o fantasioso, como se vê sobretudo no livro IX, onde o
filósofo se detém no comportamento e costumes dos bichos, nas virtudes e habilidades
que eles possuem, bem como nas relações que eles mantêm entre si. Ele trata, inclusive,
das inimizades entre vários deles, como entre a águia e a serpente, o lobo e o asno, o
touro e a zebra, a salamandra e a aranha, valendo-se de descrições bastante literárias e,
por vezes, insólitas. (cf. ARISTÓTELES, 1990, 477-483) Para não mencionar a inclusão
que ele faz do dragão e da mantícora – seres fabulosos – no rol das bestas investigadas no
compêndio.
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Tal mistura de ciência, erudição e imaginação é também uma marca explícita da
História Natural de Plínio, das Etimologias, de Santo Isidoro (obra que inclui a análise
etimológica dos nomes dos animais, por vias eruditas e não menos inventivas), e do
famoso Physiologus. Este, um livro de autoria incerta, que teria sido escrito no séc. II, na
Alexandria, e se transformado no modelo por excelência dos bestiários medievais, por
representar todos os saberes acumulados pelos naturalistas do mundo antigo, a partir da
reconstituição alegórica do mundo natural em termos cristãos.3
Já o bestiário enquanto gênero afirma-se nos séculos XII e XIII, desdobrando-se
em modalidades diversas, que vão do texto moralizante ao erótico, do religioso ao satíri-
co. Nesse sentido, sua abrangência ultrapassa os limites da definição tradicional do gêne-
ro, ou seja, a de que o bestiário é um livro ilustrado, pseudocientífico e de caráter edificante,
composto de descrições de animais reais ou fantásticos. Como afirma Virginia Naughton:

O bestiário constitui um dos tópicos alegóricos fundamentais da Idade Média, e a partir de


sua leitura é possível reconstruir as relações que o homem medieval mantinha com a natureza,
e ao mesmo tempo nos permite localizar sua posição no esquema geral das coisas criadas.
Junto a esta zoologia simbólica, deve ser colocada também aquela medicina imaginária, cuja
base de sua credibilidade e ampla aceitação surgia, assim como nos bestiários, da combinação
de algumas observações empíricas com propósitos morais e religiosos, totalmente dentro de
uma profusa e abundante “imagería”. (NAUGHTON, 2005, 18)

Se o gênero bestiário constitui, dessa forma, um vastíssimo campo de imagens e


simbologias na era medieval, a sua presença nos séculos subseqüentes não foi menos
variada e ostensiva. Seria praticamente impossível fazer aqui um inventário dos inúme-
ros textos teratológicos do período renascentista e dos compêndios zoológicos dos sécu-
los XV, XVI e XVII. Seria suficiente, como exemplo, mencionar os relatos dos viajantes
europeus sobre a fauna do chamado Novo Mundo, verdadeiros catálogos de híbridos e
seres prodigiosos. Todos eles atravessados pela experiência de assombro do colonizador
diante da diferença, da alteridade radical representada pelos animais exóticos que, na-
quele momento, desafiavam o ainda precário sistema taxonômico existente e, portanto,
se inscreviam na ordem do excêntrico e do extraordinário. Como explica Michel Foucault,
os conhecimentos do período eram constituídos de um amálgama instável entre “saber
racional, noções derivadas de práticas de magia e de toda uma herança cultural, cujos
poderes de autoridade a redescoberta de textos antigos havia multiplicado” (FOUCAULT,
1987, 48). Daí a insuficiência do pensamento científico do tempo: se, por um lado, nele
já se configurava a soberana racionalidade na qual o mundo moderno ocidental passou a
se reconhecer a partir do século XVIII, por outro, tal racionalidade não abdicava do
gosto pelo maravilhoso e do respeito pelo saber antigo. Assim, pode-se dizer que os
cronistas europeus do século XVI encontravam subsídios fantásticos e princípios de
organização para suas descrições da natureza tropical nos próprios clássicos da zoologia
ocidental, acrescidos de toda uma carga supersticiosa que os textos medievais legaram
para o imaginário renascentista.
No século XVIII, uma outra relação da ciência e da literatura com a esfera zooló-
gica se instaurou. Esvaziados de seus enigmas e sortilégios, os animais passaram a ser
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esquadrinhados a partir de critérios científicos bem definidos, sob os imperativos de uma
taxonomia rigorosa, como a de Lineu, que já não mais acolhia os excessos fantasiosos e
supersticiosos da tradição enciclopédica anterior. Impõe-se, dessa maneira, uma visão
objetiva e naturalista do reino animal, a qual contaminará, inevitavelmente, a produção
simbólica em torno da natureza e, mais especificamente, dos entes inumanos. Isso não
significa, entretanto, que o apreço pelo fantástico tenha se extinguido definitivamente no
âmbito da zooliteratura. Se, como afirma Borges no seu Manual de zoología fantástica, de
1957 4, existem dois tipos de “zoologias”, a dos sonhos e a da realidade (BORGES,
2003, 7-9), pode-se dizer que a literatura moderna se coloca como o espaço ficcional por
excelência para a prática de ambas, separadamente ou mescladas. De bestiários fantásti-
cos, como o próprio livro de Borges e de outros muitos escritores de língua espanhola, às
inúmeras coleções de textos de várias nacionalidades sobre animais existentes, a
zooliteratura ocidental dos dois últimos séculos se apresenta sob novas configurações.
Sobretudo com relação às zoopoéticas do século XX, pode-se afirmar que, longe
de serem meras restaurações eruditas do gênero, elas se colocam também como espaços
de reflexão crítica sobre aspectos literários, culturais e políticos dos modelos anteriores.
Além disso, muitos desses novos bestiários não deixam de problematizar, de forma con-
tundente, este nosso tempo em que as espécies entraram em estado de irremediável
extinção, tempo em que reflexões de ordem ética sobre as práticas de assujeitamento e
crueldade contra os animais tornam-se, cada vez, mais vivas e prementes no mundo
contemporâneo.

Animalários contemporâneos: exercícios de “outridade”

Se, no que tange à “zoologia dos sonhos”, os textos atuais ainda mantêm a di-
mensão alegórica dos bestiários tradicionais, ainda que os esvaziando da função moralis-
ta e da fixidez descritiva dos modelos antigos (vide o Manual de zoología fantástica de
Borges), os bestiários “realistas”, por sua vez, compõem-se de registros mais particulares
e de observações mais afetivas do escritor, entrando muitas vezes nos domínios do poé-
tico. O que não exclui desses escritos, obviamente, possíveis referências eruditas. Em
sua maioria, eles são tentativas de compreensão da “outridade” que os animais represen-
tam para a razão humana, buscando destes extrair um saber sobre o mundo e a humani-
dade.
Sob esse prisma, alguns autores adeptos dessa vertente zoológica enfocam o mundo
zôo com uma cumplicidade explícita, feita de respeito e nenhum moralismo, como se
pode ver na obra do poeta inglês Ted Hughes, composta de uma enorme quantidade de
poemas voltados para o tema5, e na de Guimarães Rosa, como se pode ver nas séries
“Zôo” e “Aquário” da miscelânea Ave palavra. Outros escritores – com propósitos
memorialistas – já convertem os animais em imagens de uma infância perdida, como é o
caso de Murilo Mendes, que faz na “Seção microzôo”, de Poliedro, um inventário de seus
bichos, aqueles que compõem sua enciclopédia particular, os seus arquivos de vida. Há
também os poetas que se empenham em salvá-los do extermínio, convertendo o texto
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em uma espécie de “arca de Noé” contemporânea, tal como se dá na zoopoética de
Roubaud em Les animaux de tout le monde – um bestiário no qual se encontra o que Deleuze
chamou de “verdadeiros mapas de afetos, os afetos dos quais um bicho é capaz”
(DELEUZE, 1978, s/p).
Dentro do repertório brasileiro, destaca-se ainda, num contexto bem mais con-
temporâneo, o escritor paranaense Wilson Bueno que, além de recriar os antigos bestiários
a partir de um enfoque cultural notadamente latino-americano, busca trazer para seus
escritos, à feição de Clarice Lispector, “o it dos animais”. Isso, por ele ser também um
escritor consciente de que, mais do que comparar os “mundos humanos” aos “mundos
animais”, cabe à literatura explorar a intensa complexidade de cada um deles. Principal-
mente em seus livros Jardim zoológico (1999) e Manual de zoofilia (1997), Bueno explora a
passagem das fronteiras entre o humano e o inumano, num processo de identificação do
sujeito poético com o que Derrida chama de “esse completamente outro” que é o animal.
(DERRIDA, 1999, 29)
Aliás, no que se refere a tais fronteiras, não há como não aproveitar as instigantes
reflexões que esse filósofo desenvolveu em O animal que logo sou, de 1999. Neste livro, ao
confrontar a assertiva de Heidegger segundo a qual “o animal é pobre de mundo” pelo
fato de ser privado de logos, Derrida realiza uma espécie de desconstrução do humanismo
logocêntrico do Ocidente, questionando também toda uma linhagem de filósofos como
Descartes, Kant, Levinas e Lacan, que como Heidegger, afirmaram que o animal é priva-
do de linguagem. Derrida, inclusive, critica a própria palavra animal, no singular, usada
por esses filósofos, como se “todos os viventes não-humanos pudessem ser agrupados
no sentido comum desse ‘lugar comum’” (DERRIDA, 1999, 64), como se não houvesse
diferenças entre as inúmeras espécies zoológicas. Em suas palavras:

Neste conceito que serve para qualquer coisa, no vasto campo do animal, no singular genérico,
no estrito fechamento deste artigo definido (“O animal “e não “animais”) seriam encerrados,
como em uma floresta virgem, um parque zoológico, um território de caça ou de pesca, um
viveiro ou um abatedouro, um espaço de domesticação, todos os viventes que o homem não
reconheceria como seus semelhantes, seus próximos ou seus irmãos. E isso apesar dos
espaços infinitos que separam o lagarto do cão, o protozoário do golfinho, o tubarão do
carneiro, o papagaio do chimpanzé, o camelo da águia, o esquilo do tigre ou o elefante do
gato, as formigas do bicho-da-seda ou o ouriço da eqüidna. (64-65)

Os desdobramentos reflexivos dessa crítica à filosofia heideggeriana o levam a


considerar duas grandes formas de tratado teórico ou filosófico do animal, duas “situa-
ções de saber” sobre o animal: a que faz do animal um teorema, a partir da observação e da
análise, e a de quem leva em conta o olhar do animal, ou seja, o ponto de vista deste. Derrida
parte de um dado particular para trabalhar esses discursos: a experiência de ter-se surpre-
endido, nu e em silêncio, diante do olhar de uma gata - um animal em sua insubstituível
singularidade. Segundo o filósofo, essa consciência de se ver observado por um “olhar
animal” deu-lhe a ver “o limite abissal do humano”, “os confins do homem”, levando-o
à passagem das fronteiras entre o humano e o inumano até chegar ao “animal em si, ao
animal em mim e ao animal na falta de si-mesmo”. (DERRIDA, 15)
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Essa inserção na esfera exclusiva do inumano marcaria, assim, a diferença entre
os textos de quem evita pensar o animal como um teorema6 e os das pessoas que o
observam enquanto um todo genérico, mas que “jamais cruzaram o olhar de um animal
pousado sobre elas” (DERRIDA, 32), sendo, portanto, incapazes de admitir que o ani-
mal possa ter um mundo específico, não necessariamente mais pobre que o humano.
Nesse sentido é que, para o filósofo, “o pensamento do animal, se pensamento
houver, cabe à poesia” (22). Com tal suposição (ou tese), Derrida reforça, assim, os
equívocos dessa última categoria filosófica que, ao reduzir o animal a uma coisa, “uma
coisa vista mas que não vê”, e negar-lhe a experiência do “Aberto” (como fez Heidegger),
revelaria as próprias limitações do entendimento meramente racional. Do que se pode
apreender que o que tais filósofos julgam saber sobre a alteridade animal é, paradoxal-
mente, o que os afasta dessa mesma alteridade. Como diz John Berger: “O que sabemos
sobre os animais é um índice de nosso poder, e assim é um índice que nos separa deles.
Quando mais julgamos saber, mais distantes eles ficam.” (BERGER, 1980, 22).
Talvez por isso é que o escritor sul-africano J.M.Coetzee, sob a pele da persona-
gem Elisabeth Costello, tenha afirmado, no romance-ensaio A vida dos animais, de 1999,
que os escritores “ensinam mais do que sabem” (COETZEE, 2002, 63). Para tanto, ele
toma como referência o poema de Ted Hughes sobre um jaguar enjaulado e em estado de
raivoso desassossego diante dos visitantes de um jardim zoológico. 7 Segundo Coetzee, o
jaguar é flagrado pelo olhar de um poeta perplexo, cujo “poder de compreensão é levado
além do seu limite” (60). Daí que, ao invés de um poema sobre o jaguar, que busca achar
uma idéia no animal, Hughes nos ofereça um poema que nos pede para habitar aquele
corpo que se move febrilmente entre as barras da jaula, alheio à realidade da clausura. E
se o jaguar de Hughes encontra-se alhures é porque, segundo Coetzee, “sua consciência
é mais cinética que abstrata: a força dos músculos o leva a um espaço de natureza muito
diferente da caixa tridimensional de Newton” (60). A sensação que temos ao chegar ao
final do poema é precisamente o que o último verso diz: Over the cage floor the horizons come.
(HUGHES, 2003, 20)8
De fato, são muitos os poemas de Hughes que, pela força da cinestesia (entendi-
da como “sentido da percepção de movimento, peso, resistência e posição dos corpos”),
exploram a subjetividade animal a partir de um pacto com ela. O poeta a encarna por um
processo que não é propriamente o da imitação e da metáfora, mas que está na ordem da
aliança, da comunicação transversal entre indivíduos inteiramente diferentes. Seria mais
ou menos o que Clarice Lispector descreveu ao falar do quão terrível é segurar um passa-
rinho na concha da mão meio fechada: “é como se tivesse os instantes trêmulos na mão”
(LISPECTOR, 1980, 51). Como escrever esse tremor, fazê-lo vibrar na pele das pala-
vras, senão deixando-se possuir pelo passarinho que estremece, metamorfoseando-se
momentaneamente nele?
Nos poemas de Hughes, podemos ouvir os guinchos agudos e sentir as contor-
ções de um rato capturado em uma ratoeira, como se o bicho tomasse posse de nosso
corpo; somos também assaltados pelo torpor e pelos passos cambaleantes de um potro
que acaba de nascer e, com os olhos ainda turvos diante do escuro, se pergunta: Isso é o
mundo?; podemos ainda sentir nos músculos o peso insuportável de um porco “too dead”,
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“morto demais” para nos inspirar pena; ou nos arrepiar com a viscosidade fria e lenta de
um caramujo que escala uma flor.
Algo similar, mas distinto (uma vez que o cinético dá lugar ao sinestésico) se
passa nos poemas em prosa de Wilson Bueno, reunidos no livro Manual de zoofilia. To-
mando, por vias transversas, a assertiva de Deleuze e Guattari de que “todo animal é
antes um bando, uma matilha” (DELEUZE e GUATTARI, 1997, 20), e ao mesmo tem-
po afirmando, paradoxalmente, a individualidade de cada bicho, Bueno descreve o esta-
do de abandono de um lobo excluído de seu grupo. Cito um fragmento:

Há o desamparo recurvo do lobo se o líder da alcatéia o expulsa, além-matilha. É um animal


quebrado sem o seu bando. Não se fie contudo em seus caninos. Moram neles, nos lobos, os
acidentes da fome e os do pânico. (BUENO, 1997, 35)

O escritor, aí, parece colocar-se na “hora do mundo” desse lobo desgarrado, e


compor com ele uma imagem. Mas mesmo sem a força cinética dos bichos de Hughes,
que – como vimos – se manifesta através de ondas de excitação e de velocidades, o
animal de Bueno concentra, em seu “desamparo curvo”, uma energia em pânico, pronta
para se revigorar a qualquer momento nos caninos da fera. Dessa forma, Bueno não
deixa de explorar poeticamente, como faz Hugues de maneira ostensiva, a inquietante
complexidade da existência animal e dos saberes que a acompanham.

Saberes animais

Montaigne já chamava a atenção para essa complexidade ao mostrar que os bi-


chos, dotados de variadas faculdades, “fazem coisas que ultrapassam de muito aquilo de
que somos capazes, coisas que não conseguimos imitar e que nossa imaginação não nos
permite sequer conceber” (MONTAIGNE, 1980, 118). Interessante que tais considera-
ções só muito recentemente encontraram amparo científico graças, sobretudo, às desco-
bertas da etologia contemporânea. Dominique Lestel, em As origens animais da cultura,
aponta a extraordinária diversidade de comportamentos e competências dos bichos, que
vão da habilidade estética até formas elaboradas de comunicação. No que se refere à
habilidade das aves na construção de ninhos, por exemplo, o estudioso lembra que para
fazê-los, “as aves tecem, colam, sobrepõem, entrecruzam, empilham, escavam, enlaçam,
enrolam, assentam, cosem e atapetam”, valendo-se não apenas de folhas e ramos, como
também de “musgo, erva, terra, excrementos, saliva, pêlos, filamentos de teias de ara-
nha, fibras de algodão, pedaços de lã, ramos espinhosos e sementes” (LESTEL, 2002,
59), cuidadosamente separados e combinados. Já no que tange à comunicação, ele expli-
ca que uma ave canora dos pântanos europeus “revela-se capaz de imitar setenta e oito
outras espécies de aves” (108), que a vocalização de certos animais apresenta distinções
individuais ou regionais, e que os gritos de um sagüi podem obedecer a uma semântica
bastante precisa. Para não mencionar o rico repertório de silvos dos golfinhos, que inclui
alguns capazes de caracterizar o indivíduo que os produz, como se fosse uma espécie de
“assinatura capaz de declinar a identidade do golfinho do grupo” (156). Ou as peculiari-
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dades do canto das baleias, visto que elas empregam ritmos musicais e seqüências emo-
cionais, utilizando “frases cujo comprimento se aproxima das frases humanas” (183).
Giorgio Agamben, na descrição que faz, no ensaio “O fim do pensamento”, de
uma paisagem cheia de “inauditas vozes animais” (silvos, trilos, chilros, assobios, cochi-
chos, cicios, etc.), diz que, enquanto cada animal tem seu som, nascido imediatamente
de si, nós (os humanos) – os únicos “sem voz no coro infinito das vozes animais” –
“provamos do falar, do pensar” (AGAMBEN, 2004,156). Colocando em contraponto
voz e fala, phoné e logos, por considerar que “o pensamento é a pendência da voz na
linguagem” ele lança uma frase quase-verso: “Em seu trilo, é claro: o grilo não pensa”
(56). Por vias oblíquas, o filósofo confirma com tal imagem a já referida assertiva
heideggeriana de que o animal é desprovido de linguagem e, portanto, “pobre de mun-
do”, situando-se fora do ser, numa zona de não-conhecimento. 9
Porém, diante dos estudos da etologia contemporâneos, quem garante que os
animais estão impedidos de pensar, ainda que de uma forma muito diferente da nossa, e
ter uma voz que se inscreve na linguagem? Estará, como indaga Lestel, a nossa
racionalidade suficientemente desenvolvida para explicar uma “racionalidade” que lhe é
estranha, caso esta realmente exista? 10
Emblemática, neste contexto, é a célebre frase de Wittgenstein: “se o leão pudes-
se falar, nós não o entenderíamos” (apud WOLFE, 2003, 44) – variação do dizer de
Ovídio, segundo o qual, “se o animal falasse, nada diria”. Isso porque, como o filósofo
sugere, a lógica que nortearia essa fala seria radicalmente outra e, certamente, nos des-
pertaria para o conhecimento imediato de nossa própria ignorância. Do que se pode
depreender que a linguagem não é suficiente para responder a questão da diferença entre
humano e não-humano. Ao contrário, como afirma Wolfe, “ela mantém a questão viva e
aberta” (WOLFE, 47).
Vale, neste contexto, evocar um divertido poema de Jacques Roubaud, no qual o
autor de Les animaux de tout le monde parece brincar com a frase de Wittgenstein, ao dar
voz a um porco falante. Cito um fragmento:

Quando falo, disse o porco,


eu gosto é de dizer porqarias:
graxa goela gripe grunhido
paspalho paxá luxação
resmungo munheca migalho camelo
chuchu brejo chiqueiro (ROUBAUD, 2006, 51)11

No poema, organizado parataticamente com palavras sem aparente conexão umas


com as outras, mas plenas de sonoridade e humor, Roubaud esvazia a fala de seu porco
da sintaxe que se espera de um dizer inteligível. No jogo da linguagem, o porco encena
uma lógica que, embora estando a serviço de vocábulos identificáveis (na verdade, “pa-
lavras porcas”, contaminadas pela carga semântica que o senso comum atribuiu à exis-
tência suína), não se confina inteiramente nos limites do entendimento imediato e previ-
sível. Vê-se que o saber que o porco detém sobre si mesmo se manifesta através de um
“eu” desajeitado dentro de uma língua que não lhe pertence. O desafio que essa brinca-
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deira representa para o leitor se repete em outros momentos do livro e se radicaliza nas
últimas páginas, através do poema “O asno”, cuja autoria é atribuída ao próprio animal.
É um soneto feito totalmente de zurros, em que o asno fala no registro onomatopéico
que imaginamos ser o dele. (cf. ROUBAUD, 90) Ao contrário de “Um boi vê homens”,
de Drummond, o poema encena uma voz animal sem palavras, mas que também não
passa de um exercício de criatividade do poeta que o cria.
Assim, no esforço de sondar – pelos poderes da imaginação – a subjetividade
desse “completamente outro” que é o animal, e estabelecer com ela uma relação de
cumplicidade ou de devir, cada um dos poetas mencionados constrói o seu bestiário
particular. Sejam as feras enjauladas nos zoológicos do mundo, sejam os bichos domésti-
cos, as espécies em extinção, os animais que nos alimentam ou os que fomentam as
experiências acadêmicas no campo da biologia e da genética, todos – ao entrarem na
esfera do poético – acabam por nos ensinar muito mais do que os escritores sabem sobre
eles.

Notas

1
Clarice Lispector, em Água viva, fala do “it dos animais”, tomando o “it” como “o mistério do impessoal”,
esse “neutro” que resiste à subjetivação através da linguagem. Nas palavras da autora, “it é elemento puro. É
material do instante do tempo”. (Cf. LISPECTOR, 1980, pp. 30; 35 e 49).
2
Surgida no Oriente, a fábula foi da Índia à China e à Pérsia, chegando à Grécia, no séc. IV a.C., graças a Esopo,
que reinventou o gênero. Definida por La Fontaine como uma “pequena narrativa que, sob o véu da ficção,
guarda uma moralidade”, e dotada, segundo Fedro, da dupla finalidade de divertir e de aconselhar, ela atraves-
sou os séculos com suas estórias protagonizadas por animais e seu tom sentencioso, tendendo ora ao prover-
bial, ora ao satírico.
3
Segundo Nilda Guglielmi, organizadora da edição espanhola El Fisiólogo (Madrid: Ediciones Eneida, 2002) a
obra foi um “punto de arranque de una larga cadena de obras análogas”, tendo sido o livro mais difundido
depois da Bíblia até o século XIII e perdurando até o Renascimento. (Cf. GUGLIELMI, 26).
4
Ampliado consideravelmente em 1967, o Manual de zoología fantástica passou a se intitular El libro de los seres
imaginarios, sendo incluídos outros seres não-animais, como os elfos, os gnomos, as fadas e os anjos, e
eliminada a ordem alfabética dos verbetes da edição anterior.
5
Tais poemas se disseminam em diferentes livros, dentre os quais destacam-se: The hawk in the rain (1957),
Lupercal (1960), Wodwo (1967), Four Crow poems (1970), Crow: from de life and songs of the crow (1970), Crow wakes
(1971), Cave birds (1978), Adam and sacred nine (1979), Moortown diary (1979), A primer of birds (1981), River (1983),
What is the truth? (1984), e Wolfwatching (1989). Cf. HUGUES, 2003.
6
Segundo Derrida, são pouquíssimos os filósofos que assim procederam, sendo um deles Montaigne, que
dedica todo o cap. XII dos Ensaios II à reflexão sobre as relações entre homens e animais, criticando a presunção
humana de se julgar capaz de conferir ou recusar aos animais algumas faculdades.
7
O poema “O jaguar” guarda, sem dúvida, uma simetria inversa com o poema “A pantera”, de Rainer Maria
Rilke. Ambos tratam de feras enjauladas num zoológico, mas enquanto a pantera faz da jaula sua realidade e seu
limite, o jaguar ignora as barras da clausura, debatendo-se contra elas em estado de deslocamento. Pode-se dizer
que, onde o movimento da fera rilkeana esmorece, o da fera hugheana começa. Para uma, “há apenas grades para
olhar”; para a outra, “não há jaula”, mas “vastidões de liberdade”. Cf. RILKE in CAMPOS, 2001, 56-57 e
HUGUES, 2003, 19-20.
8
Hugues compôs, dez anos depois, um outro poema sobre o jaguar, intitulado “Second glance at a jaguar”, no
qual se concentra na descrição das partes do corpo do animal, flagrando em cada uma destas os movimentos que
as animam. Cf. HUGUES, 2003, 151-152.
206 MACIEL – Zoopoéticas contemporâneas
9
Esta posição se dá a ver, sobretudo, no livro L’ aperto, de 2002, no qual Agamben trata da relação entre o
homem e o animal, a partir da discussão das idéias de Jacob Von Uexküll, Heidegger, Benjamin e Kojève. Cf.
AGAMBEN, 2004.
10
Montaigne admitia a existência de um processo de raciocínio nos animais. Ele chega a mencionar o conheci-
mento que os atuns teriam dos três ramos da matemática: a astronomia, a geometria e a aritmética. Nas palavras
do filósofo, eles “revelam conhecer a geometria e a aritmética, porquanto se reúnem em cardumes da forma de
um cubo quadrado por todos os lados, de sorte que formam um batalhão sólido de seis faces iguais; nadam
nessa ordem de dimensões idênticas atrás e na frente, de modo que quem os encontra e conta uma fileira tem
idéia precisa do todo, já que a largura do cardume é igual à profundidade e ao comprimento”. (MONTAIGNE,
222)
11
Em tradução de Marcos Siscar e Paula Glenadel. No original: Pour parler, dit le cochon, / ce que j’aime c’est les mots
porqs: / glaviot grumeau gueule grommelle / chafouin pacha épluchure / mâchon moche miches chameau / empoté chouxgras
polisson. (ROUBAUD, 2003, 116).

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