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A ARTE NO TEMPO: POR UMA PERSPECTIVA SÓCIO-

CULTURAL DOS OBJETOS ARTÍSTICOS

Giselle Martins Venâncio*


Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG
[email protected]

RESUMO: O objetivo deste texto é, situando-se na vertente da história cultural francesa, investigar as
relações entre arte, história e história da arte, considerando-se os objetos culturais como um rico e
sofisticado instrumento de produção de representações, que contribui para a elaboração de sentidos, de
formas de olhar e ver a realidade e sobre o qual é necessário refletir.

ABSTRACT: Aligned with the French cultural history, this paper intends to investigate the relationship
between art, history and art history, considering cultural objects as a rich and sophisticated instrument to
create representations, that contribute to form senses, or in other words, ways to look and see the reality
and about which discussion is necessary.

PALAVRAS-CHAVE: História Cultural – Arte e História.

KEYWORDS: Cultural history – Art and History.

HISTÓRIA E CULTURA: BUSCANDO DEFINIÇÕES PARA UM


OBJETO COMPLEXO

Num texto publicado no Brasil em 2000, Carl Schorske colocava em discussão,


uma vez mais, a relação entre história e cultura ao perguntar: qual tem sido a orientação
da história em relação ao estudo da cultura?1 A velha questão voltava à tona e ganhava
ainda mais força na medida em que se podia perceber que o lançamento do livro de
Schorske vinha acompanhado do aparecimento quase simultâneo – nos últimos cinco
anos – de diversos títulos preocupados com a temática. Para ficarmos apenas nos

*
Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1987). Mestre em
História pela Universidade Federal Fluminense (1996) e doutora em História Social pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (2003), com bolsa de doutorado sanduíche na École des Hautes Etudes en
Sciences Sociales (2000/2001). Atualmente, é bolsista de pós-doutorado Junior/CNPq junto ao
Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais.
1
Cf. SCHORSKE, Carl. A história e o estudo da cultura. Pensando com a história: indagações na
passagem para o modernismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
Fênix – Revista de História e Estudos Culturais 2
Outubro/ Novembro/ Dezembro de 2006 Vol. 3 Ano III nº 4
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autores nacionais, poderíamos lembrar os livros de Francisco Falcon, História


Cultural: uma nova visão sobre a sociedade e a cultura e o de Sandra Pesavento,
História & História Cultural, lançados respectivamente pelas editoras Campus (Rio
de Janeiro) e Autêntica (Belo Horizonte) nos anos de 2002 e 2003. Se incluirmos ainda
as traduções, poderíamos destacar o livro de Peter Burke, recém-lançado pela Jorge
Zahar (Rio de Janeiro), em 2005, O que é História Cultural?, no qual o historiador
afirma que o propósito do livro é “[...] explicar não apenas a redescoberta, mas também
o que é história cultural, ou melhor, o que os historiadores culturais fazem”.2 Embora
estes últimos textos tenham sido escritos com vistas a atingir um público mais ampliado
extrapolando os limites exclusivos dos especialistas na área – pois suas propostas
editoriais buscavam a sistematização e condensação das informações sobre o tema –, a
sucessão de textos nesta área de estudo demonstra um interesse do público leitor. Se
acrescentarmos ainda a essa breve lista, não sem correr o rico do esquecimento, os
inúmeros livros e textos de historiadores como Roger Chartier, Robert Darnton, Lynn
Hunt, Raymond Williams, Thompson, Stuart Hall, Hoogart, traduzidos, editados e/ou
vendidos no Brasil nos últimos anos – todos eles, historiadores preocupados com a
abordagem cultural ou com a historicidade dos objetos culturais – compreenderíamos
que esse interesse tem sido realmente crescente.
Esta convergência de programas editoriais indica, certamente, uma nítida
expectativa do leitor brasileiro de se atualizar e informar sobre as discussões que
envolvem a questão levantada por Schorske: o tratamento dado pelos historiadores às
questões culturais. Uma análise realizada por Sandra Pesavento chega a afirmar que
[...] a História Cultural corresponde, hoje, a cerca de 80% da produção
historiográfica nacional, expressa não só nas publicações
especializadas, sob a forma de livros e artigos científicos, como nas
apresentações de trabalhos, em congressos e simpósios ou ainda nas
dissertações e teses, defendidas e em andamento nas universidades
brasileiras. Segundo esta mesma autora, essa constatação, dada a partir
dos anos 90 do último século no Brasil, marca uma verdadeira virada
nos domínios de Clio.3

Embora possamos identificar talvez um certo otimismo nestes números, é certo


que a história cultural, a história social da cultura e a história dos objetos culturais vêm
mobilizando a atenção dos historiadores brasileiros nos últimos anos, explicitando, em

2
BURKE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 7.
3
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & história cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p. 7-8.
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versão tropical, uma tendência que se identifica também em países europeus e nos
Estados Unidos.
Mas será que os historiadores “falam da mesma coisa” quando se referem à
cultura? Será que eles se entendem quando afirmam estar “fazendo história cultural”?
Que conceito de cultura e de objetos culturais está por trás de cada uma das análises
propostas pelos historiadores? Esta é uma questão difícil de responder. E é Carl
Schorske que novamente pode nos dar uma “pista” para a elucidação da questão, ao
afirmar que os historiadores são singularmente estéreis na criação de conceitos, pois
são, segundo ele, dependentes conceituais. Assim, poderíamos afirmar que é justamente
nas múltiplas relações que os historiadores estabelecem com outras disciplinas como a
antropologia, a sociologia, a teoria literária, a lingüística, etc, que se estruturam e
organizam os conceitos de cultura e objetos culturais com os quais os historiadores
produzem suas narrativas. Essa afirmação poderia então nos fazer supor que haveria
tantas definições quantos fossem os encontros com outras disciplinas e tantas
abordagens quantos fossem os métodos tomados de empréstimo. Embora não considere
que essa última frase refira-se a uma situação de todo falsa, creio que há pontos de
encontro entre as múltiplas interpretações historiográficas elaboradas pelos historiadores
na última década, na qual se acredita, houve, justamente, uma (re)descoberta dos
estudos culturais.
Uma das questões postas pelos historiadores e que se tornou, na verdade, um
desafio a ser encarado, é a compreensão das representações do real elaboradas pelos
homens, ao longo do tempo, em sua experiência histórica. As imagens figurativas,
documentos, discursos poéticos, textos literários, lendas, se oferecem ao historiador
como as únicas possibilidades de acesso a um passado definitivamente perdido. Essas
representações são a porta de entrada para um país estrangeiro,4 um mundo outro que se
busca descobrir e conhecer.
Tradicionalmente, algumas correntes historiográficas consideraram, não sem
uma certa dose de ingenuidade, essas representações como reflexo da sociedade que as
produziu. A idéia era quase sempre a de que os objetos culturais funcionariam como um
certo “espelho do tempo” refletindo a sociedade e o pensamento dos homens que as
criaram.

4
Faço aqui uma referência direta ao título do livro de LOWENTHAL, David. The past is a foreing
country. Cambridge: Cambridge University Press, 1985.
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O objetivo deste texto é, situando-se na vertente da historiografia cultural


francesa, matizar essa afirmação. O que se pretende aqui é considerar que os objetos
culturais não são simples reflexos da sociedade, mas sim produtos sociais e, como tal,
parte necessariamente estruturante do mundo social, constituindo um rico e sofisticado
instrumento de produção de representações, que contribui para a elaboração de sentidos,
de formas de olhar e ver a realidade e sobre o qual é necessário refletir.
Como neste texto o foco recairá sobre as artes plásticas, buscarei, num primeiro
momento, examinar a nem sempre estável relação entre a história tout court e a história
da arte. Posteriormente, irei me debruçar sobre algumas das interpretações que, no
campo da história da arte, foram elaboradas sobre as representações plásticas. Por
último, buscarei sintetizar o que se pode considerar uma abordagem sócio-cultural - dos
objetos artísticos - elaborada na perspectiva teórica proposta por Roger Chartier.

ARTE, HISTÓRIA E HISTÓRIA DA ARTE: UMA RELAÇÃO “TÃO


DELICADA”

Pierre-Michel Menger e Jacques Revel afirmam, em um editorial da revista dos


Annales, no início dos anos 90, que a história e as ciências sociais “travaram
tradicionalmente com a história da arte relações penosas e instáveis”.5 Também Pierre
Francastel, num texto intitulado Problèmes de la sociologie de l´art, anota que, “no
imenso domínio das ciências sociais, o papel da arte não foi objeto de grande atenção” e
que quando se pensa em estabelecer uma bibliografia sobre o tema, percebe-se que os
melhores livros não figuram na rubrica da sociologia da arte. Segundo ele,
[...] os bons espíritos que se esforçaram em compreender a sociedade e
a sua via de relacionamento interno, tiveram que necessariamente
encontrar a arte em seu caminho [...] [mas], por outro lado, as obras de
sociologia da arte não fazem mais que aplicar grosseiramente as regras
de uma interpretação sociológica sumária a um conteúdo artístico
abordado sem preparação suficiente; ou [...] utilizam exemplos
rapidamente escolhidos com o objetivo de ilustrar e justificar teses
elaboradas a partir de outras fontes de informação.6

Ainda que esta seja uma relação difícil, como se pode depreender dos textos
acima, a história e as ciências sociais interessadas na análise de produções culturais

5
MENGER, Pierre-Michel; REVEL, Jacques. Présentation. Annales ESC, n. 6 (Mondes de l´art), p.
1337-1345, nov./dec. 1993.
6
FRANCASTEL, Pierre. Problèmes de la sociologie de l´art. In: CHARTIER, Roger et al. La sensibilité
dans la histoire. Paris: Gérard Monfort, 1987, p. 141.
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partilham, necessariamente, com a história da arte, além de objetos, a certeza de que é


preciso refletir sobre a inscrição social das obras e das atividades artísticas. Estes
objetos e problemáticas comuns levaram a que, nos últimos anos, alguns temas – como
os contextos sociais de emergência e recepção das obras; os artistas, suas profissões e
suas carreiras; as formas sociais de reconhecimento; as instituições de arte; o mercado
de apreciação e as políticas culturais – passassem a interessar tanto a historiadores da
arte quanto a historiadores e sociólogos da cultura, buscando superar a tradicional
separação entre uma abordagem estética da obra, realizada por especialistas, e uma
abordagem mais, digamos, conjuntural, levada a efeito por outros estudiosos.7
Entretanto, se houve essa aproximação temática,8 o problema da relação entre
essas disciplinas não estava totalmente solucionado. As abordagens e métodos de
análise mantinham-se ainda muito distantes fazendo com que, muitas vezes, embora
falassem sobre o mesmo assunto, historiadores e historiadores da arte, estabelecessem
um diálogo de surdos. Isso porque, ainda que tratando de objetos comuns, eles se
mantinham arraigados a princípios e procedimentos de suas próprias disciplinas. A
história da arte, por um lado, reafirmando a noção de sucessão evolutiva de escolas e
estilos, e os historiadores, por outro, buscando ler nas imagens figurativas aquilo que já
sabiam ou que criam saber por outros meios e que pretendiam apenas demonstrar,
correndo o risco dos famigerados argumentos circulares,9 como afirma Carlo Ginzburg.
Os caminhos, embora muitas vezes próximos, seguiam de forma paralela e, por
isso, não se encontravam. No entanto, se analisarmos atentamente os procedimentos e
abordagens que esses estudiosos propunham, podemos identificar não apenas
distanciamento, mas também aproximações. Por isso, proponho, nas próximas linhas,
estabelecer uma breve leitura de algumas interpretações estabelecidas por historiadores

7
Ver a esse respeito: SALGUEIRO, Heliana Angotti. Introdução à edição brasileira. In: BAXANDALL,
Michel. Padrões de intenção: A explicação histórica dos quadros. São Paulo: Companhia das Letras,
2006.
8
É bom lembrar, como faz Heliana Angotti, que essa aproximação tão produtiva estava mesmo no
programa de renovação dos estudos históricos proposto pelo famoso editorial da revista dos Annales,
Histoire et sciences sociales: un tournant critique? publicado em 1988. Neste texto, a história da arte
constava entre as disciplinas que os historiadores destacavam como interessantes para a busca de
alianças que levassem a renovação de sua prática. Ver: SALGUEIRO, Heliana Angotti. Introdução à
edição brasileira. In: BAXANDALL, Michel. Padrões de intenção: A explicação histórica dos
quadros. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
9
GINZBURG, Carlo. De Warburg a E. H. Gombrich: notas sobre um problema de método. In: ______.
Mitos, emblemas e sinais. Morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 63.
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da arte, nos séculos XIX e XX, para que possamos, posteriormente, identificar
possibilidades de aproximação com os procedimentos dos historiadores da cultura.

HISTÓRIA DA ARTE: ENTRE INTENÇÕES E PRÁTICAS

A história da arte é uma disciplina autônoma e instituída que possui seus


saberes, suas técnicas e seus usos. Ela define suas próprias exigências em termos de
formação e de competência e se reconhece em maneiras de proceder – de olhar, de
analisar as obras – que lhe são particulares, mesmo que seus projetos e seus
procedimentos estejam longe de serem unificados.10
Segundo Henri Zerner, em linhas gerais, a disciplina se desenvolveu entre a
história – tomada na forma mais tradicional do termo e entendida como uma lista de
obras, artistas e eventos, cronologicamente organizada e isolada de qualquer abordagem
mais teórica – e a crítica, que, ao contrário, toma freqüentemente a obra de arte como
um objeto a-histórico, inserido numa noção universalizante do belo.11
Apesar dessa dicotômica divisão, a história tradicional da arte é uma disciplina
que, na opinião deste autor, tem alcançado, ao longo do tempo, importantes resultados.
Ela faz o inventário das obras, estabelece a biografia dos artistas, decifra a autoria e a
data das obras a partir de sinais exteriores (documentos, assinaturas, etc) ou interiores à
própria materialidade do objeto e, ainda, reconstitui a maneira pela qual as obras foram
vistas e compreendidas, o que o leva a afirmar que “são impressionantes os resultados
dessa história da arte: ela descobre, restaura, salva”.12
Porém, ainda seguindo a análise deste autor, o que se censura nesse tipo de
história é a sua aparente ingenuidade. Ao propor uma lista de autores e obras,
considerados os mais expressivos de cada tempo histórico, essa história tradicional da
arte, em nome de uma pseudo-imparcialidade, escolhe, inclui, canoniza algumas obras e
artistas e exclui, ignora outras. É justamente por isso que a principal forma de expressão
desse tipo de história da arte materializa-se no catálogo que permite relacionar aqueles
que merecem compor o panteão das artes plásticas universais. Poderíamos aqui lembrar
que os catálogos são, obviamente, uma elaboração voluntária de pessoas interessadas

10
Cf. MENGER, Pierre-Michel; REVEL, Jacques. Présentation. Annales ESC, n. 6 (Mondes de l´art),
nov./ dec. 1993.
11
Cf. ZERNER, Henri. A arte. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Orgs.). História: novas
abordagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 144-159.
12
Ibid., p. 145.
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em perpetuar e legar às gerações futuras um testemunho sobre o refinamento artístico de


um autor, uma obra ou uma escola. Eles constroem, assim, uma memória e uma
representação sobre os movimentos artísticos. Poderíamos ainda sugerir que os
catálogos podem ser lidos como guias que definem, por meio de seu sistema de
inscrição, o que deve prevalecer como importante, como centro, e o que deve ser
definido como periferia.13 Importa, pois, perceber que esse instrumento básico da
história da arte tradicional não é um objeto que se constitui à revelia de uma dada
seleção. Por isso, Zerner afirma que o que se critica na história da arte tradicional, que
aparentemente apenas relaciona escolas, obras e autores numa ordem sucessiva de ação,
é que este tipo de abordagem “traz, de maneira sub-repticia, uma interpretação, um
sistema de valores, uma ideologia”.14
Este tipo de abordagem considera que a história da arte é a história dos artistas
e que é a biografia de cada artista o que explica a sua produção. A idéia que claramente
se transmite neste tipo de interpretação é a de que arte é resultado da expressão
individual, de inspiração, de gênio, “é um mundo em si, com as suas leis bastante
flexíveis para permitir as mudanças de gosto e bastante precisas para separar, entre as
formas criadas, o que é arte e o que não é”.15 Mas, se as biografias ajudam a
compreender as obras daqueles que se definem como artistas, por outro lado, esse tipo
de abordagem não é capaz de investigar os significados das obras, a sua recepção, nem
o processo de legitimação dos artistas.
Além do mais, a partir do momento em que se começou a conceber a arte como
uma atividade própria da humanidade – o que faz supor que todo homem é naturalmente
produtor de arte – tornou-se necessário também compreender os critérios de designação
e reconhecimento daqueles que, entre todos os demais, podem e devem ser considerados
artistas.
Assim, era preciso que o historiador atentasse para além da relação artista/obra.
Era necessário que ele inscrevesse os objetos artísticos em seu tempo e espaço,
identificando além da genialidade do artista e a qualidade estética do objeto, o seu

13
A esse respeito ver: DUTRA, Eliana de Freitas. A tela imortal. O catálogo da exposição de História do
Brasil de 1881. Anais do Museu Histórico Nacional, v. 37, 2005; e VENANCIO, Giselle. As flores
raras do jardim do poeta. O catálogo da coleção Eurico Facó. Fortaleza: Secult/Museu do Ceará,
2006.
14
ZERNER, Henri. A arte. In: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre (Orgs.). História: novas abordagens.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 145.
15
Ibid., p. 146.
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processo de validação como obra de arte. Assim é que, aos esforços de organizar
imagens artísticas e decodificar simbolicamente seus significados que vinham sendo
realizados, pelo menos desde o século XVI, somaram-se os de tomar a arte e suas
imagens para refletir sobre aspectos mais gerais da cultura de uma sociedade,
desembocando, no século XIX, na iconografia como prática científica.16
Dessa forma, os autores ligados ao Instituto Warburg destacam-se por suas
reflexões que, a despeito das diferenças de abordagem, buscavam considerar um
problema de método central e circunscrito: a utilização de testemunhos figurativos
como fontes históricas.17
Comecemos analisando a produção do próprio Warburg fundador, em
Hamburgo, da famosa biblioteca depois transferida para Londres e consolidada no
Warburg Institute.
Warburg iniciou seus trabalhos observando que os artistas do Renascimento
remontavam, invariavelmente, para as representações do movimento dos corpos, às
obras da antiguidade clássica. A partir dessa questão pontual, Warburg decidiu buscar
compreender o significado que a arte da antiguidade possuía para os pintores e deu
início a uma pesquisa que incluiu uma documentação bastante variada e heterogênea:
testamentos, cartas de mercadores, tapeçarias, etc. Por meio dessa investigação e
partindo de uma questão tão pontual quanto à representação do movimento das vestes e
das cabeleiras, Warburg remontou as atitudes fundamentais da civilização renascentista,
vista – seguindo os passos de Burckhardt a quem ele reconhecia filiação intelectual –,
na sua oposição radical à Idade Média.18
Os estudos de Warburg desenvolveram-se então articulando dois princípios
básicos: de um lado, uma tentativa de identificar e sistematizar características das
expressões figurativas renascentistas e, de outro, baseando-se numa rica “imaginação
histórica” e num conceito quase antropológico de cultura (que incluía além das artes, da

16
É importante salientar que Francis Haskell, em seu livro History and its images. Art and the
interpretation of the past. (New Haven: Yale University Press, 1993) chama a atenção para o fato de
que, desde os séculos XVI e XVII, os antiquários tenham utilizado moedas, esculturas, pinturas de
catacumbas, etc, como forma de obter informações sobre sociedades do passado.
17
GINZBURG, Carlo. De Warburg a E. H. Gombrich: notas sobre um problema de método. In: ______.
Mitos, emblemas e sinais. Morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
18
No tratamento da escola warburguiana, seguimos os passos da explicação apresentada por Carlo
Ginzburg em texto já anteriormente referido.
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literatura e da filosofia, as superstições e crenças populares),19 compreender as


características mais gerais da cultura renascentista.
Embora não se possa falar propriamente de um método warburguiano, dadas as
diferenças de procedimentos adotados pelos seguidores de Warburg, podemos afirmar
que a questão de fundo que anima estes estudos manteve-se entre seus seguidores, qual
seja, a relação entre arte e cultura, em oposição a um tipo de história da arte defendida,
por exemplo, por Wölfflin – um dos maiores expoentes da escola formalista de Viena –
que propunha anular qualquer relação entre história da arte e história da cultura.
Entre os mais importantes seguidores da “escola warburguiana”, poderíamos
destacar Panofsky e Gombrich, autores que influenciaram uma série de reflexões
ulteriores no campo da história da arte.
Para Panofsky, “a obra de arte é um testemunho do estado de uma civilização,
o que exige do historiador das formas um método comparável ao do lingüista e o
convida a constituir uma ciência geral dos signos”.20 Desse modo, Panofsky
desenvolveu um método de abordagem e interpretação das obras, partindo de uma
descrição minuciosa que define um estilo, alçando-se em seguida ao nível da análise das
fontes e conceitos iconográficos e apreendendo, por fim, o sentido essencial da obra,
isto é, a auto-revelação de uma atitude de fundo em relação ao mundo que é
característica, em igual medida, do criador enquanto indivíduo, de cada época, de cada
povo e de cada comunidade. Panofsky propõe que em cada um desses níveis, a
descrição pressupõe interpretação, o que torna a conclusão dependente, em grande
medida, das condições e referências acumuladas pelo observador. Ao perceber dessa
forma as imagens, pinturas e alegorias, Panofsky propõe a interpretação de todos esses
elementos como sendo o que Cassirer21 definiu como valores simbólicos. E é justamente
a interpretação desses valores simbólicos o objetivo mais fundamental de seu método, a
iconologia:
[...] o objeto da iconologia, escreveu ele, é representado por aqueles
princípios de fundo que revelam a atitude fundamental de uma nação,
um período, uma classe, uma concepção religiosa ou filosófica
19
No texto de Ginzburg, essa questão aparece assim referida: “[...] a concepção de cultura como entidade
unitária derivada que Warburg derivara de Burckhardt: uma cultura entendida em sentido quase
antropológico, onde, ao lado da arte, da literatura, filosofia, ciência, cabem as superstições e atividades
manuais”. GINZBURG, 1989, op. cit., p. 47.
20
BRAUSTEIN, P. Panofsky. In: BURGUIÈRE, André (Org.). Dicionário das ciências históricas. Rio
de Janeiro: Imago, 1993, p. 588-589.
21
CASSIRER, Ernst. Essência e efeito do conceito de simbólico. México: Fondo de Cultura Econômica,
1989.
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inconscientemente classificada por uma personalidade e condensada


numa obra.22

Outro importante autor dessa tradição é E. H. Gombrich. É preciso considerar,


como faz Carlo Ginzburg, que Gombrich mantinha uma estreita relação com a história
formalista da arte da escola de Viena, o que talvez explique algumas de suas tomadas de
posição em relação aos métodos aplicados pelos seus colegas warburguianos. Gombrich
defende o exame específico de cada obra de arte, evitando assim explicações muito
fáceis e genéricas. Dessa maneira, a polêmica levantada por ele atuava em dois sentidos
básicos: em primeiro lugar, discutir a idéia de concepção de um estilo artístico
predominante em um período histórico e, ainda, criticar a concepção do estilo como um
sistema integralmente expressivo. Na concepção de Gombrich, a obra de arte não deve
ser identificada ao contexto de convenções estilísticas de uma determinada época, nem
como “sintoma” ou “expressão” da personalidade do artista, mas o veículo de uma
mensagem particular, a qual pode ser entendida pelo espectador na medida em que este
conhece as alternativas possíveis, o contexto lingüístico em que se situa a mensagem.23
Existe, na proposta de Gombrich, uma clara desconfiança em relação aos nexos
entre obras de arte e a situação histórica em que nascem, uma vez que o estilo artístico
é, segundo ele, um índice problemático das transformações sociais ou culturais. Assim,
ele considera que é, justamente, na capacidade de romper e renovar as interpretações
históricas assumidas acriticamente, e não na inclusão das obras de arte num contexto
histórico geral, que consiste o método warburguiano.
De todo modo, as análises dos warburguianos, guardadas as suas diferenças,
levantaram uma questão que se tornou uma condição necessária à história da arte: a
questão da interpretação das obras. Tanto do ponto de vista de uma história da arte mais
próxima da lingüística, a qual se supunha a arte como uma linguagem e se buscava
identificar os sinais artísticos sustentados por analogias, quanto do ponto de vista de
uma análise associada à psicanálise, na qual se pretendia observar as obras de arte como
expressões de desejos e sentimentos inconscientes, a questão da interpretação se

22
PANOFSKY Apud GINZBURG, Carlo. De Warburg a E. H. Gombrich: notas sobre um problema de
método. In: ______. Mitos, emblemas e sinais. Morfologia e História. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989, p. 65. Ginzburg, no entanto, faz questão de ressaltar que na reedição [deste texto], “foi
suprimida a palavra ‘inconsciente’”. Isso, segundo ele, faz parte da revalorização que Panofsky passou
a reconhecer na intervenção de programas racionais e conscientes da atividade artística.
23
GINZBURG, Carlo. De Warburg a E. H. Gombrich: notas sobre um problema de método. In: ______.
Mitos, emblemas e sinais. Morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 41-90.
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impunha. E esta interpretação só se poderia realizar num contexto histórico específico.


Se se desejava fazer uma história do sentido, o sentido só aparecia na história,24 o que
tornava totalmente infrutíferas as tentativas de separar a arte do tempo.
Numa análise histórica da arte, os objetos se inseriam num campo de
significações no qual se encontravam o produtor e o intérprete e ambos se aproximavam
deles não apenas com seu psiquismo, mas também com um equipamento mental de
decifração interiorizado e apreendido. É, justamente, neste ponto que considero que a
história cultural na sua vertente francesa pode nos ser útil para esboçarmos uma
abordagem histórica das artes plásticas.

POR UMA HISTÓRIA CULTURAL DA ARTE: DA PRODUÇÃO DA


OBRA À SUA APROPRIAÇÃO

Num texto escrito no início dos anos 80 intitulado Por uma sociologia
histórica das práticas culturais,25 Roger Chartier define o que se pode considerar, em
linhas gerais, um programa de renovação dos métodos e estudos históricos que ficaria,
posteriormente, conhecido como história cultural. Declarando inicialmente uma
insatisfação com a história que se praticava na França naquele momento – tanto a que se
intitulava história das mentalidades quanto à história quantitativa –, Chartier destaca o
fato de que ambas haviam se originado da resposta dada pelos historiadores aos desafios
lançados por disciplinas como, entre outras, a lingüística ou a psicologia. Segundo ele, a
resposta dos historiadores havia sido de dois tipos: por um lado, buscaram constituir
novos territórios, objetos e abordagens a partir da anexação de métodos de outras
disciplinas o que levou a um retorno a noção de utensilagem mental, proposta muitos
anos antes por Lucien Febvre, o que acabou por originar a chamada história das
mentalidades ou uma certa psicologia histórica; mas, por outro lado, os historiadores
constituíram essa história aplicando a novos objetos os princípios de inteligibilidade já
utilizados nas histórias econômicas e das sociedades, campo privilegiado do trabalho
dos historiadores. Dessa forma, os historiadores estabeleceram, em seus estudos, uma
divisão, naquele momento, aparentemente insuperável: ou se fazia uma história baseada

24
Cf. ZERNER, Henri. A arte. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Orgs.). História: novas
abordagens. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 144-159.
25
CHARTIER, Roger. Por uma sociologia histórica das práticas culturais. In: ______. História Cultural:
entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 13-28.
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na objetividade das estruturas ou outra centrada preferencialmente na subjetividade das


representações.
O objetivo então da proposta elaborada por Chartier, no texto citado, era a
constituição de uma história que superasse esta divisão na medida em que ele sugeria
que a história cultural tinha como principal objeto identificar o modo como em
diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada
e dada a ler. Em outras palavras, se o papel do historiador é investigar uma realidade
que não pode ser acessada senão pela mediação das representações construídas sobre o
real, a primeira medida do pesquisador deve, necessariamente, ser compreender os
modos de classificação, divisão e delimitação por meio dos quais os agentes sociais
organizam e categorizam a apreensão do mundo, considerando-se que as percepções do
social não são discursos neutros, mas, ao contrário, espaços de lutas de representação.
A partir dessas observações, Chartier propôs, então, o conceito representação,
tomado a Luc Boltanski, e que, segundo ele, articula três ordens de fatores: o trabalho
de classificação e de delimitação que produz as configurações intelectuais múltiplas
através das quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos
sociais, as práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma
maneira própria de estar no mundo e significar simbolicamente um estatuto ou uma
posição, e, as formas institucionalizadas e objetivadas graças as quais uns representantes
marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo.
Dessa forma, na visão de Chartier, as modalidades do agir e do pensar devem
ser remetidas para os laços de interdependência que regulam as relações entre os
indivíduos e que são moldados, de diferentes maneiras em diferentes situações
históricas. As estruturas do mundo social não são assim, um dado objetivo previamente
estabelecido, mas sim, historicamente construídas num espaço de lutas de representação
entre os grupos sociais.
Dessa maneira, segundo ele:
[...] pode pensar-se uma história cultural do social que tome por objeto
a compreensão das formas e dos motivos – ou, por outras palavras, das
representações do mundo social – que, à revelia dos atores sociais,
traduzem as suas posições e interesses objetivamente confrontados e
que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela é
ou como gostariam que ela fosse.26

26
CHARTIER, Roger. Por uma sociologia histórica das práticas culturais. In: ______. História Cultural:
entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 19.
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Essas idéias, desenvolvidas por Chartier, podem, a meu ver, ser bastante úteis
para uma interpretação das imagens pensadas como representações, isto é, como uma
das formas de uma dada sociedade se dar a ler. Nesse sentido o trabalho dos
historiadores tem alguns traços que o distingue do tradicionalmente realizado pelos
historiadores da arte tout court, ao mesmo tempo, que se caracteriza por formas de
aproximação com o trabalho desenvolvido pelos últimos.
No que se refere aos traços que particularizam o trabalho dos historiadores,
alguns aspectos são ressaltados por Chartier. Em primeiro lugar, os historiadores
preocupam-se com uma ampla diversidade de objetos – cerâmicas gregas, imagens de
propaganda, fotografias, etc. -, destacando materiais tradicionalmente negligenciados
pela história tradicional da arte, “seja porque suas formas repetitivas não sejam em
absoluto portadoras de invenção estética, seja porque não se enquadram em uma visão
clássica e restritiva do que foi designado como produção artística”.27 A abordagem
histórica da imagem não é tributária, segundo Chartier, da categoria do belo, “porque
ela leva em conta objetos que pertencem a gêneros considerados sem finalidade ou
qualidade estética ou que, num gênero com dignidade artística, são obras médias e não
[necessariamente] obras primas”.28 Em segundo lugar, os historiadores trabalham,
preferencialmente, com a análise em série das coleções apreendidas em um local dado,
unificadas pelo gênero, pela localização ou pelo tema.29
Para o historiador, a obra de arte não é apenas resultado do trabalho de um
artista iluminado e genial, mas ela resulta também dos constrangimentos e
condicionamentos sociais que possibilitam a sua produção. Daí se deduz que, para a
história cultural, a imagem é, ao mesmo tempo, transmissora de mensagens enunciadas
claramente, que visam a seduzir e a convencer, e tradutora, a despeito de si mesma, de
convenções partilhadas que permitem que ela seja compreendida, recebida e decifrável.
Assim, não basta identificar as intenções do artista ou o “significado por trás da obra”, é
preciso também investigar as formas de apropriação e uso das imagens para se

27
CHARTIER, Roger. Imagem. In: BURGUIÈRE, André (Org.). Dicionário de ciências históricas. Rio
de Janeiro: Imago, 1993, p. 406.
28
Ibid., p. 406.
29
Ibid.
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compreender as relações que estas mantém com as convenções sociais30. Nas palavras
de Chartier,
[...] a atenção se desloca da análise serial ou não, dos materiais
iconográficos, para a apreensão dos usos e das compreensões
possíveis destes. É assim esboçada uma história (difícil) das
interpretações da imagem situada numa encruzilhada de uma
sociologia histórica dos sistemas de percepção e de uma explicitação
das convenções inscritas na obra e conhecidas (mais ou menos) por
aquele que a produz e por aqueles que a vêem.31

E é aí que se encontra, pelo menos, um dos pontos de aproximação entre a


história cultural francesa – aqui representada pelas idéias de um de seus principais
expoentes – e a história da arte, na versão elaborada pelos warburguianos: a idéia da
necessária interpretação das imagens.32 Se as representações figurativas podem ser
apreendidas como documentos históricos cujas propriedades ligam-se a uma maneira
particular de perceber, moldada pela experiência social, então é essa maneira de ver que
se torna o objeto primeiro da pesquisa e que deve ser compreendido na confrontação
entre os códigos e convenções da representação figurada e os traços outros de um
sistema de percepção próprios a uma época dada.33
Talvez a diferença que se mantenha seja que a história cultural tenha uma
pretensão mais ampla que a história da arte stritu sensu. Ela não se propõe a ser apenas
uma história setorial – uma história entre as outras –, preocupada em elucidar seu
próprio território sem grandes relações com a história geral. Ao contrário, ela se
pretende uma história total das representações sociais, meio exclusivo de compreensão
de um passado findo. A história cultural busca transpor os limites do próprio tempo de
elaboração das representações – textuais ou imagéticas – analisando-as sincronicamente,
isto é, segundo as categorias e os preceitos de seu próprio tempo, e diacronicamente,
segundo suas apropriações e valores de uso.34 Assim, ao buscar investigar as diversas
formas pelas quais uma dada sociedade se representa e se “dá a ler”, a história cultural

30
CHARTIER, Roger. Imagem. In: BURGUIÈRE, André (Org.). Dicionário de ciências históricas. Rio
de Janeiro: Imago, 1993, p. 407.
31
Ibid.
32
Poderia-se pensar aqui também uma possível genealogia dos conceitos utilizados nas abordagens da
história cultural francesa. Alguns deles têm origem em trabalhos de membros do Warburg Institut. Um
dos exemplos possíveis seria tomar o conceito de habitus, desenvolvido por Bourdieu (e apropriado
por Chartier), que foi parcialmente inspirado nos trabalhos de Panofsky.
33
CHARTIER, 1993, op. cit., p. 405-408.
34
A esse respeito, ver: HANSEN, João Adolfo. Ler & ver: pressupostos da repesentação colonial.
Veredas, 3-1, Porto, 2000 e SCHORSKE, Carl. Introdução. In: ______. Viena: fin de siècle. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
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ultrapassa os estreitos limites de uma história dos objetos culturais e estabelece-se como
uma história “cultural e social indissociavelmente”.35

35
Faço, aqui, referência direta ao título do texto de Antoine Prost, Sociale et culturelle indissociablement,
publicado no livro organizado por Jean-Pierre Rioux e Jean-François Sirinelli, Pour une histoire
culturelle. Paris: Éditions du Seuil, 1997.

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