GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. A Casa de Montezuma - A Historiografia e A Corporação Dos Bacharéis.

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A Casa de Montezuma: a historiografia e a corporação dos bacharéis

Lucia Maria Paschoal Guimarães 1


Universidade do Estado do Rio de Janeiro

A criação do Instituto dos Advogados Brasileiros - IAB - vem sendo percebida


pelos estudiosos como um desdobramento quase natural, por assim dizer, dos cursos de
direito, inaugurados no Brasil em 18272. É inquestionável que os fundadores da
entidade, desde a primeira hora, aspiravam à autonomia corporativa, inspirados na
cultura jurídica francesa, em especial na da Ordre des Avocats. Aliás, a idéia fascinava a
elite dos bacharéis brasileiros, desejosos de disciplinar e moralizar os usos e costumes
forenses. Consideravam a profissão “incompleta”, sem a existência de uma entidade de
classe3. Não é demais lembrar que, tal como ocorria na antiga metrópole, no Império
brasileiro o ofício não era exercido apenas pelos egressos das Faculdades de Direito.
Desempenhavam-na, ainda, os advogados provisionados e os solicitadores4. Tais
provisões podiam ser concedidas tanto por presidentes de tribunais de Relação, quanto
de Província, gerando uma série de desvios e abusos, pois, no fundo, a licença para a
prática da advocacia, inclusive na Corte, transformava-se em moeda de troca política5.

Entretanto, além da pretendida autonomia da classe, outras circunstâncias,


históricas sem dúvida, também concorreram para a fundação do Instituto. Uma boa pista
para compreender melhor o alcance do projeto do Instituto é acompanhar passo a passo
o seu estabelecimento e as primeiras iniciativas tomadas pelo grêmio. A proposta formal
partiu de um Ministro do Supremo Tribunal de Justiça do Império, o Conselheiro
Francisco Alberto Teixeira de Aragão (1799-1847). Enérgico e erudito, estudioso do
direito pátrio e do direito comparado, Teixeira de Aragão editava o jornal a Gazeta dos
Tribunais6, periódico especializado, direcionado para a divulgação dos atos da justiça,
cujo primeiro número foi lançado a 10 de janeiro de 1843 7. Nas páginas da Gazeta,
passou a postular a fundação de uma Associação de Advogados na Corte, nos moldes da
instituição similar, criada em Lisboa em 1837, cujos Estatutos fez questão de dar
publicidade. Justificava a pretensão, ponderando a necessidade urgente de oferecer
condições mais dignas à administração da justiça, serviço que reputava de importância
1
Doutora em História Social pela USP. Professora Titular da UERJ. Pesquisadora Principal do “Nação e
cidadania no Império: Novos horizontes” PRONEX CNPq/FAPERJ, coordenado pelo prof. José Murilo
de Carvalho. Pesquisadora do CNPq.
2
Cf. Alberto Venâncio Filho, Notícia histórica da Ordem dos Advogados do Brasil (1930-1980). Rio de
Janeiro: OAB, 1908, p.11. Ver, também, IAB, História dos 150 anos do Instituto dos Advogados
Brasileiros. Orientação: Alberto Venâncio Filho e José Motta Maia; pesquisa e texto básico, Laura
Fagundes. Rio de Janeiro: Destaque, 1995, p. 8-11.
3
Cf. Edmundo Soares Coelho, As profissões imperiais: medicina, engenharia e advocacia no Rio de
Janeiro (1822-1930). Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 191-192.
4
Tanto os advogados provisionados, quanto os solicitadores não possuíam grau acadêmico das faculdades
de direito. Os primeiros eram submetidos a exames teóricos e práticos de jurisprudência pelos presidentes
dos tribunais da Relação e podiam exercer o ofício nos tribunais de 1ª instância e em localidades onde não
houvesse advogado formado ou em número insuficiente para garantir o andamento dos trabalhos da
justiça Os solicitadores, por sua vez, prestavam exame apenas sobre a prática do processo, devendo
renovar a licença a cada dois anos.
5
Cf. Edmundo Soares Coelho, op.cit. p. 192.
6
A Gazeta dos Tribunais circulou no Rio de Janeiro, entre 1843 e 1846.
7
Ver, Gazeta dos Tribunais, Rio de Janeiro, de 10 de janeiro de 1843.
2

capital para a felicidade dos povos8. Para Aragão, portanto, o estabelecimento da


corporação proporcionaria a alavanca com a qual os bacharéis poderiam pressionar o
governo imperial para aperfeiçoar a organização judiciária do Estado recém instaurado.

Os argumentos do Conselheiro não eram infundados. Sobretudo quando se sabe


que a institucionalização do país pouco avançou nos anos subseqüentes à
Independência, devido às crises políticas que agitaram o primeiro reinado, e culminaram
com a abdicação de D. Pedro I. Isto sem falar nas inúmeras revoltas, sedições e motins
que se sucederam desde o período regencial até os primeiros anos do governo de D.
Pedro II. O enraizamento social da monarquia e legitimação da Coroa, não é demais
lembrar, foi um processo difícil e complexo e só se definiu na década de 1850, conforme
assinala José Murilo de Carvalho9. Reportando-se a essa fase conturbada da nossa
história, o Dr. João Evangelista Saião de Bulhões Carvalho, então presidente do IAB,
teceu as seguintes considerações, no discurso de abertura do I Congresso Jurídico
Americano, em 1900:

(...) A administração geral e particular continuava


péssima e portanto pesadíssima aos povos, não tanto pela
falta de leis que a regulassem, como mais pelos abusos
que seus agentes cometiam diariamente (...). A Justiça
entregue a juízes de fora, ouvidores, membros da Casa de
Suplicação e tribunais de relação, dependente do governo
para nomeações e promoções, sem nenhuma garantia
legal, que a tornasse estável nos cargos que ocupava, não
cumpria nem podia cumprir seus deveres com critério e
zelo, e menos oferecia ao país as seguranças de
moralidade e sabedoria, que a devem caracterizar10.

Do ponto de vista jurídico-institucional, o Estado que se constituiu em 1822


continuaria regendo-se pela jurisprudência portuguesa, enquanto não se modificasse a
legislação, ou não se cuidasse da organização de um novo Código, de acordo com o
disposto na Carta de Lei de 20 de outubro de 1823. Em outras palavras, isto significa
dizer que a Nação alvorecia envolvida pelo cipoal das Ordenações, Leis, Regimentos,
Alvarás, Decretos e Resoluções da antiga metrópole, inclusive as chamadas Leis
Extravagantes11. E, no correr dos anos seguintes, o quadro de desordem jurisprudencial
não sofreria alterações significativas, em que pesem a promulgação do Código Criminal
em 1830 e o do Processo em 1832, este último reformado em 1841.
8
Idem, Rio de Janeiro, 16 de maio de 1843.
9
Veja-se José Murilo de Carvalho, Teatro de sombras: a política imperial. São Paulo: Vértice; Rio de
Janeiro: IUPERJ, 1988, p. 11-12.
10
João Evangelista Saião de Bulhões Carvalho, “Discurso” proferido em 3 de maio de 1900 na sessão de
abertura do I Congresso Jurídico Americano.
11
A esse respeito, vale lembrar as observações do historiador Caio Prado Júnior, acerca da
desorganização jurídica Estado português, um amontoado de leis (...) quer nos parecerá inteiramente
desconexo, de determinações particulares e casuísticas, de regras que se acrescentam umas às outras
sem obedecerem a plano algum de conjunto.Cf. Caio Prado Júnior, Formação do Brasil contemporâneo.
São Paulo: Brasiliense, 1999, p. 300.
3

O certo é que, para dar andamento ao projeto de estabelecer uma Associação de


Advogados na Corte, o Conselheiro Aragão convocou os bacharéis Augusto Teixeira de
Freitas, Luiz Fortunato de Brito Abreu e Souza Menezes e Caetano Alberto Soares,
encarregando-os de elaborar os Estatutos12. O grupo redigiu um documento conciso, que
em linhas gerais estabelecia as bases da nova entidade, que recebeu o nome de Instituto
dos Advogados Brasileiros. Aliás, a historiografia costuma fazer uso indiscriminado das
denominações Instituto dos Advogados Brasileiros e Instituto da Ordem dos Advogados
Brasileiros para referir-se à Casa de Montezuma. É importante esclarecer que nos papéis
oficiais a primeira designação vigorou até 1888, quando o grêmio teve seus estatutos
reformados, passando a se chamar Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros. A
denominação, porém, já era utilizada com freqüência no âmbito do próprio Instituto,
antes mesmo de vir a ser formalizada em 1888. Tal prática, aparentemente, fazia parte
de uma estratégia, mal sucedida por sinal, para forçar o estabelecimento de um
organismo de classe13. Na presente obra os dois nomes serão utilizadas consoante os
respectivos marcos cronológicos.

De acordo com o ante-projeto dos Estatutos, a matrícula no Instituto dos


Advogados Brasileiros estava aberta a todos os bacharéis formados em Direito, desde
que se filiassem dentro de um prazo determinado, a ser definido, futuramente, por
Regimento Interno14. A nova agremiação propunha-se a congregar os cultores e
agitadores do Direito, a fim de (...) organizar a ordem dos advogados, em proveito
geral da ciência da jurisprudência15, o que, aliás, que só viria a se concretizar quase um
século mais tarde.

Submetidos à apreciação do governo imperial, os diplomas legais do IAB


receberam a chancela do Ministro da Justiça em 7 de agosto de 1843, após brevíssima
tramitação 16. Duas semanas mais tarde, na residência do Conselheiro Aragão, que foi
aclamado por unanimidade presidente honorário da entidade, vinte e seis advogados
reuniram-se para eleger o primeiro Conselho Diretor. Apurados os votos, a presidência
do Conselho coube ao bacharel e político Francisco Gê de Acaiaba e Montezuma. Para
os cargos de Secretário e de Tesoureiro foram escolhidos Josino Nascimento Silva e
Nicolau Rodrigues dos Santos França Leite, respectivamente. Quanto aos demais
membros do Conselho, a preferência recaiu sobre os bacharéis Luiz Fortunato de Brito
Abreu e Souza Menezes, Francisco Inácio de Carvalho Moreira, Francisco Tomás de
Figueiredo Neves, José Maria Frederico de Souza Pinto, Augusto Teixeira de Freitas,
Caetano Alberto Soares, José de Siqueira Queiroz, Dias da Motta e Luiz Antonio da
Silva Nazareth.

A exceção de Teixeira de Aragão, de Montezuma e de Caetano Alberto Soares,


que completaram seus estudos na Universidade de Coimbra, os outros dirigentes recém
12
A comissão tomou como modelo os diplomas legais da associação congênere de Lisboa.
13
Cf. Edmundo Soares Coelho, op. cit., p. 187.
14
“Estatutos”. Revista do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros Rio de Janeiro, Ano I Tomo I,
janeiro, fevereiro, março de 1862, p. 8-9.
15
Idem. IAB, “Estatutos”.
16
Na administração imperial o Aviso tinha a mesma força que Decreto. Cf. “Aviso de 7 de agosto de
1843”. IAB, “Estatutos”. Revista do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros Rio de Janeiro, Ano
I Tomo I, janeiro, fevereiro, março de 1862, p. 8-9.
4

eleitos graduaram-se nas primeiras turmas dos cursos de direito de São Paulo e de
Olinda (depois Recife), os grandes celeiros formadores da burocracia imperial. Além do
exercício da advocacia, os membros do primeiro Conselho Diretor do IAB também
serviam à magistratura, ou atuavam no Legislativo e no Executivo. Alguns desses vultos
faziam parte também dos quadros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(IHGB), reduto intelectual, instituído em 1838 e patrocinado por D. Pedro II, voltado
para a construção da memória nacional17. Tratava-se, portanto, de um elenco com perfil
bastante homogêneo, formado por homens empenhados com o processo político de
construção do Estado imperial, indivíduos que pertenciam à geração da Independência,
a exemplo de Montezuma (1794-1870), mais tarde agraciado por D. Pedro II com o
título de Visconde de Jequitinhonha e autor, dentre outras obras, de um panfleto
intitulado A liberdade das repúblicas, onde fazia a defesa intransigente do centralismo
monárquico, em oposição à propaganda federalista.

Outra evidência do comprometimento dos fundadores do Instituto com a Coroa


pode ser percebida na sessão solene de instalação da corporação, realizada a 7 de
setembro de 1843, no salão nobre do Imperial Colégio de Pedro II, no Rio de Janeiro.
Muito concorrido, o evento contou com a presença de vultos dos mais altos escalões do
aparato de Estado, destacando-se os titulares das pastas da Justiça, dos Estrangeiros e da
Marinha, respectivamente, Honório Hermeto Carneiro Leão, Paulino José Soares de
Sousa e Joaquim José Rodrigues Torres, da Marinha.

Embora os três ministros supracitados fossem advogados 18, o seu


comparecimento à cerimônia merece um breve comentário, pois constitui uma pista
significativa de que o novo órgão nascia sob o beneplácito do governo. Em especial, do
Gabinete Conservador, que havia ascendido ao poder em janeiro daquele mesmo ano,
logo após as mal sucedidas revoltas promovidas pelos liberais de Minas e de São Paulo
(1842), insatisfeitos com as reformas centralizadoras empreendidas pela Coroa. Vale
acrescentar que outro indício expressivo, de que o grêmio desfrutava de certa intimidade
com o poder, diz respeito à rapidez com que o processo dos seus Estatutos tramitou nos
longos e sinuosos caminhos da administração imperial, obtendo aprovação em menos de
duas semanas.

De qualquer modo, não cabe aqui entrar em maiores detalhes sobre a


performance desse Gabinete, que administrou o país entre 1843 e 1844. No momento,
interessa pontuar que Rodrigues Torres e Paulino, ao lado de Euzébio de Queiroz,
formavam a chamada trindade saquarema, designação dada aos três políticos
fluminenses que comandavam os destinos do Partido Conservador, sob o domínio do
qual consolidou-se a vida política e partidária do Segundo Reinado19.
17
Ver a esse respeito, Lucia Maria P. Guimarães, “Debaixo da imediata proteção de Sua Majestade
Imperial: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, nº 388, p.459-
613, jul./set. 1995. Ver, ainda, IAB, História dos 150 anos do Instituto dos Advogados Brasileiros.
Orientação: Alberto Venâncio Filho e José Motta Maia; pesquisa e texto básico, Laura Fagundes. Rio de
Janeiro: Destaque, 1995, p. 8-11.
18
Honório Hermeto Carneiro Leão e Joaquim José Rodrigues Torres eram bacharéis em Leis pela
Universidade de Coimbra. Paulino José Soares de Souza iniciou o curso de direito em Coimbra, mas
formou-se em São Paulo, no ano de 1831.
19
Ver, Ilmar R. de Mattos O tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec; Brasília: INL, 1987, e Joaquim
Nabuco, Um estadista do Império. 5ª edição. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, v.1.
5

Paulino José de Souza, mais tarde visconde de Uruguai, integrou, inclusive, a


Comissão que em 1840 redigiu a lei de interpretação do Ato Adicional de 1834.
Ocupava a pasta da justiça, em 1841, quando foi promulgada a reforma do Código do
Processo, medidas estas que foram o marco inicial da centralização monárquica acima
referida, a qual culminou com a reestruturação do Conselho de Estado 20, onde Paulino
também tomou assento. Além disso, é de sua autoria o conhecido mote (...) o Imperador
reina, governa e administra, máxima que orientou a atuação do Partido Conservador ao
longo do Segundo Reinado. Quanto ao ministro Honório Hermeto Carneiro Leão,
futuro Marquês de Paraná e outro expressivo chefe conservador, basta dizer que dez
anos mais tarde ele se tornaria o principal líder político do país, responsável pelo
advento da chamada política da Conciliação, programa de governo que reuniu
conservadores e liberais num mesmo Gabinete.

Nesse sentido, sem querer minimizar o idealismo jurídico dos seus fundadores, é
viável supor que a criação do Instituto dos Advogados Brasileiros esteve intimamente
articulada com o projeto político de consolidação do Estado monárquico. A premissa
aqui levantada adquire maior sustentação, quando se analisa a fala de Francisco Gê de
Acaiaba e Montezuma na inauguração do Instituto, à luz do contexto histórico de época.

Político carismático, que mereceu da pena de Machado de Assis destaque


especial na crônica O velho Senado21, ele procurou definir o papel a ser desempenhado
pelo IAB. Orador de amplos recursos, para começar, agradeceu o apoio e enalteceu o
tratamento que o jovem monarca costumava dispensar às Letras e às Ciências ao se
aproximarem do Excelso Trono Imperial22, sublinhando assim o caráter acadêmico do
Instituto. Logo em seguida, dispôs-se a enumerar as virtudes da (...) Ordem que vai ser
organizada em proveito geral do Estado e da Ciência da Jurisprudência 23, destacando-
lhe a dimensão de “utilidade pública”, isto é, (...) o melhor auxiliar do governo, e da
Assembléia Geral, na dificílima tarefa do melhoramento da Pátria legislação, civil,
administrativa, comercial e Política24.

Somente depois de frisar que a fundação do Instituto era apenas o passo inicial
para a constituição de uma entidade de classe, Montezuma trouxe à baila as pretendidas
aspirações corporativas25. Assim, após uma longa narrativa sobre a evolução histórica
do ofício de advogado, passou a exortar a importância da formação de um organismo de
classe, estribado nos exemplos da França, da Inglaterra e, mais recentemente, de
Portugal. Entretanto, ao cabo da erudita dissertação, ele voltaria a bater na tecla da
“utilidade pública”, para acentuar a relevância da atuação do IAB junto ao governo.
Desta feita, traçando um retrato sem retoque da organização jurídica do país:
20
Sobre o Conselho de Estado, ver Hamilton Leal, História das instituições políticas do Brasil. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1962, p. 329-331.
2117
Machado de Assis, “O velho Senado”. In: ______, Obra completa , Rio de Janeiro: Editora Nova
Aguilar, 1994, v. II, p.636-645. (Coleção Biblioteca Luso-Brasileira).
22
Francisco Ge de Acaiaba e Montezuma, “Discurso proferido em 7 de setembro de 1843”, Revista do
Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros Rio de Janeiro, Ano I Tomo I, janeiro, fevereiro, março de
1862, p. 68.
23
Idem, p. 69.
24
Idem, p.70.
25
6

(...) Senhores, se é preciso alguma prova mais da


utilidade do Instituto que hoje instalamos, que se atente
para o estado de confusão em que se acha toda a nossa
legislação, civil, criminal, mercantil e administrativa, e
sobretudo a Praxe do nosso Foro, na qual se tem
introduzido mil abusos, que o tornam disforme. Oriundo o
nosso Direito Pátrio da Nação de quem nos separamos, e
obrigados a fazer nele as alterações que a ocasião tem
reclamado, sem a conveniente oportunidade para o rever
inteiramente, e formar dele um corpo legislativo
consoante em todas as suas Partes, e digno das luzes em
que vivemos, de acordo com os melhoramentos hoje
adotados pelas nações mais adiantadas na escala da
civilização, o país, Senhores, pode dizer-se que não tem
legislação própria, tudo está por fazer. Em si mesmo
despido de unidade, pelo que respeita à doutrina, e de
uniformidade relativamente aos diversos pontos do
Império Português, (os grifos são nossos)26.

A transcrição é longa, porém necessária. Face à situação calamitosa acima


descrita, o futuro Visconde de Jequitinhonha deixava entrever que o momento ainda não
se mostrava propício para a consecução da grande missão a que o Instituto estava
destinado - a formação de uma entidade de classe, tal como seria desejável 27. Para
Montezuma, a construção da nova nação passava obrigatoriamente por uma operação
fundamental: a regulamentação do Direito, cujo primeiro passo era a codificação do
direito civil. O Direito deveria ser a porta de entrada para a civilização, e esta não podia
continuar contaminada por antigos elementos coloniais28.

Por outro lado, as demandas por ele levantadas sugerem grande afinidade com o
ideário defendido pelo saquarema Paulino Soares de Sousa, futuro Visconde de
Uruguai, o principal mentor da centralização monárquica. Este sustentava a tese de que
(...) se a liberdade política é essencial para a felicidade de uma Nação, boas
instituições administrativas apropriadas às suas circunstâncias e convenientemente

26
Ver a esse respeito as observações de Manoel Álvaro de Souza Sá Vianna. Segundo Sá Vianna, nas
discussões preliminares para a criação do IAB, Montezuma manifestara-se contrário a idéia se fundar de
imediato a Ordem, em virtude da falta de organização jurídico institucional do país. Cf. Manoel Álvaro de
Souza Sá Vianna Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros – 50 anos de existência. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1894, p. 17.
27
Francisco Gê de Acaiaba e Montezuma, “Discurso proferido em 7 de setembro de 1843”, op. cit.,
p.111.
28
Cf. Keila Grinberg, O fiador dos brasileiros. Cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio
Pereira Rebouças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 28.
7

desenvolvidas não o são menos. Aquela sem estas não pode produzir bons resultados 29,
a propósito da necessidade da organização e do funcionamento do Estado.

Deduz-se, assim, que numa primeira fase competia ao Instituto oferecer


sustentação às instituições monárquicas, contribuindo para o ordenamento jurídico-
administrativo de um Estado recém emancipado, carente de unidade política e herdeiro
de um legado colonial desagregador. O que, aliás, está implícito, nas considerações
finais com que Montezuma arrematou o emblemático discurso:

(...) Senhores, aberto está ao nosso Instituto o


vasto campo dos melhoramentos de nossa Legislação. É
tempo de encetar o Brasil essas grandes questões.
Contando hoje 21 anos de existência, como Povo livre e
Independente, seria desairoso, que entrando, por assim
dizer, em sua Política Maioridade, ainda espaçasse o
cumprimento da rigorosa obrigação em que está de
promulgar as Leis indispensáveis à sua felicidade, e que
formam sem contradita o complemento de sua majestosa,
e mil vezes gloriosa Independência Política30.

Na semana seguinte à instalação do IAB, iniciaram-se os trabalhos de


preparação do Regimento Interno. As primeiras reuniões, ao que tudo indica,
realizaram-se ainda nas dependências da residência do Conselheiro Aragão, na rua do
Andaraí. A preocupação doravante era fixar competências, determinar a composição do
quadro social, bem como detalhar a estrutura e funcionamento do órgão. Para tanto,
instituiu-se uma comissão que ficou encarregada redigir o ante-projeto do Regimento. O
relator, Caetano Alberto Soares, apresentou-o em quinze dias. Porém, as atas das
sessões, embora sumárias, revelam que a proposta suscitou muita discussão. Houve
diversas emendas e sucessivas revisões. Tanto assim, que somente em novembro
daquele ano a assembléia geral do Instituto votou a redação final e remeteu o
documento para a apreciação do ministério da Justiça.

Aprovado pela Portaria imperial de 15 de maio de 1844, o Regimento do IAB


determinava que a administração do grêmio passaria a ser exercida por um conselho
diretor, composto do presidente, do secretário, do tesoureiro e de mais doze integrantes,
todos oriundos do quadro efetivo. A exceção do secretário, cujo mandato fixou-se em
quatro anos, as eleições para a renovação do conselho eram bienais. Os trabalhos
distribuíam-se por quatro comissões permanentes, cada qual formada por três
associados, escolhidos entre os membros do Conselho Diretor, a saber: de estatutos e
regimento, de fundos, de jurisprudência, e de disciplina.

29
Cf. Visconde do Uruguai, Ensaio sobre o Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 1862, t.1, p. IV
30
Revista do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros Rio de Janeiro, Ano I Tomo I, janeiro,
fevereiro, março de 1862, p. 113.
8

O quadro social não possuía número limitado de vagas e dividia-se em três


categorias de filiados: efetivos, supranumerários e honorários. A primeira destinava-se
aos advogados que solicitassem o ingresso no Instituto, no período de sessenta dias, a
contar da data da aprovação do Regimento. Deveriam ser cidadãos brasileiros e
condecorados com os graus acadêmicos, no exercício pleno da profissão, qualquer que
fosse o tempo de prática, e ficavam obrigados ao pagamento de jóia de entrada no valor
de 20$000. Por ocasião da matrícula inaugural no Instituto, os membros efetivos seriam
classificados por ordem de antiguidade, de acordo com a data das respectivas
formaturas.

A classe dos supranumerários seria formada pelos bacharéis que viessem a ser
admitidos após aquele prazo estipulado no Regimento, ou ainda por aqueles que não
possuíssem dois anos de prática forense. Seu acesso ao quadro efetivo ficava
condicionado à morte ou ao afastamento de um titular. A admissão ao quadro dos
honorários restringia-se apenas aos advogados residentes nas províncias e aos
jurisconsultos nacionais e estrangeiros, que não exercessem o ofício. Contudo, o
Estatuto previa a promoção automática à categoria de honorário do membro efetivo que
entrasse para a magistratura.

A proposta de ingresso, para qualquer das três classes, deveria ser apresentada
por escrito, acompanhada da chancela de três membros do Conselho Diretor. A seguir,
submetida à aprovação da assembléia geral por escrutínio. Aos candidatos, além dos
requisitos já mencionados, requeria-se probidade, bons costumes e conhecimentos
profissionais, embora não houvesse exigência de prova de suficiência acadêmica. No
ato da posse, os advogados firmavam diante dos Evangelhos e do presidente da Casa a
seguinte promessa: (...) Juro ser fiel à Constituição, ao Imperador, e aos deveres do
meu ministério31. Após proferir o solene juramento, o bacharel estava habilitado a
assinar o termo do Livro de Matrícula. No início de cada ano, o Conselho Diretor
deveria fazer o inventário dos advogados matriculados, guardadas as alterações
ocorridas no exercício anterior, e providenciar sua publicação, a fim de que o mesmo
fosse colocado nas salas de audiência dos tribunais da Corte, na secretaria do Ministério
da Justiça e demais repartições afins.

O Regimento Interno do IAB não contemplava questões corporativas


propriamente ditas. Contudo, exigia dos advogados filiados o cumprimento rigoroso de
preceitos éticos, ou seja, o exercício da profissão com honra, civilidade e aptidão.
Prevendo, inclusive, o enquadramento disciplinar, tanto no âmbito da Casa, quanto nos
tribunais, e estipulando punições para os casos de mau procedimento, sobretudo quando
se tratasse de injúrias e insultos aos colegas na defesa de causas.

Outro aspecto que merece registro, na parte relativa aos direitos e obrigações dos
associados, era o caráter assistencial do grêmio, uma vez que permitia aos associados
(...) requisitar do Instituto socorros de beneficência caso venham a cair em desgraça. E
caso morra neste estado de desgraça, à sua viúva e filhos legítimos menores poderá o
Instituto fazer extensivo este mesmo direito 32. A propósito dessa prerrogativa, a
31
IAB, “Regimento Interno”. Revista do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros Rio de Janeiro,
Ano I Tomo I, nº 1, janeiro, fevereiro, março de 1862, p. 11.
32
Idem, p.14.
9

pesquisa nas atas disponíveis revela apenas um caso de associado que recorreu à
assistência ao IAB, o do juiz de direito Luiz Paulino da Costa Lobo, por motivo de
cegueira e pobreza. Porém, ao invés de adotar uma solução institucional, de acordo com
o disposto no Regimento, o Conselho Diretor decidiu, por caridade, abrir uma
subscrição pública para minimizar os sofrimentos do juiz Costa Lobo33.

No que diz respeito ao funcionamento do grêmio, as sessões, também


denominadas de conferências, realizavam-se uma vez por semana. O comparecimento
era obrigatório e havia sanções aos membros que faltassem a três reuniões consecutivas.
Tudo leva a crer que tal dispositivo não viria a ser tomado ao pé da letra, pois de um
modo geral os registros demonstram baixa assiduidade às sessões, inclusive no que se
refere ao comparecimento dos membros do Conselho Diretor.

As sessões ordinárias, via de regra, principiavam com a aprovação da ata da


sessão anterior e leitura do “expediente”, isto é, o exame de cartas, publicações,
documentos e outros papéis afins. Passava-se, então, à primeira parte da “ordem do
dia”, quando eram dirigidos à mesa administrativa requerimentos, pareceres,
proposições e processos de admissão de novos filiados. Reservava-se a segunda parte da
“ordem do dia” para a apresentação e discussão de dissertações sobre temas e questões
de direito ou de praxe. Á guisa de comparação, é interessante acrescentar que a
organização das conferências do IAB guardava grande semelhança com os encontros
acadêmicos do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Em ambas as
instituições, respeitadas as devidas especificidades, percebe-se forte herança de certas
práticas desenvolvidas pelas chamadas societés savantes do século XVIII. Sobretudo no
que diz respeito à programação de uma pauta de temas ou pontos para dissertação, a
serem desenvolvidos pelos associados e debatidos durante as sessões, no correr do ano
acadêmico. Enquanto no IHGB os temas eram chamados de programas históricos, na
Casa de Montezuma denominavam-se questões científicas.

Idealizado por um ministro do Supremo Tribunal de Justiça do Império, com a


anuência de um grupo expressivo de bacharéis e políticos da Corte do Rio de Janeiro,
contando com o beneplácito imperial, o Instituto dos Advogados Brasileiros
representou, sem dúvida, um projeto grandioso. No âmbito nacional, previa-se a sua
ramificação nas capitais das províncias onde houvesse tribunais de relação, por meio da
abertura de filiais. Para divulgar suas atividades, decisões sobre questões de direito e de
jurisprudência, bem como outros documentos de interesse dos associados, o Regimento
determinava que deveria ser editada uma revista mensal, o que só veio a se concretizar
em 1862.

Poucos meses depois da publicação do Regimento Interno, os altos escalões


imperiais já demonstravam reconhecer a competência do IAB como auxiliar do governo
na organização do Estado. O Ministro da Justiça Manoel Antonio Galvão baixou
portaria ordenando que o IAB preparasse um estudo para a revisão do Código de
Processo Criminal, identificando omissões e incoerências na sua aplicação. Outra prova
de apreço da Coroa foi dada por meio do decreto nº 393, de 23 de novembro de 1844,
quando o Imperador concedeu aos membros efetivos o uso de veste talar e a faculdade
33
IAB, “Ata da sessão de 12 de abril de 1851”. Revista do Instituto da Ordem dos Advogados
Brasileiros. Rio de Janeiro, ano II, tomo II, nº 3, janeiro, fevereiro e março de 1863, p. 12.
10

de terem assento dentro dos cancelos dos tribunais, desde que no exercício de seu
ofício.

O Instituto, por sua vez, também evidenciava a intenção de estreitar ainda mais
os laços de cooperação com os poderes constituídos. O presidente Montezuma, a
propósito da passagem do primeiro aniversário do grêmio, apresentou proposta para a
criação de cursos livres de Direito, a serem oferecidos graciosamente aos funcionários
administrativos do Fórum, a fim de aperfeiçoar seus conhecimentos e melhorar os
serviços ali prestados. As aulas, ministradas por associados, contemplariam as seguintes
disciplinas Prática Civil e Criminal, Direito Comercial e Direito Administrativo. O
projeto foi aceito pelo governo imperial e começou a ser posto em prática em 1845.
Ao lado dessas iniciativas, retomou-se a discussão a respeito das reformas do
ordenamento jurídico nacional. Na sessão comemorativa do segundo aniversário do
Instituto, houve, inclusive, uma conferência sobre o tema, pronunciada por Francisco
Inácio Carvalho Moreira, mais tarde Barão de Penedo. Erudito e fluente, utilizando
sólida argumentação jurídica, justificou a urgência da revisão geral e da codificação das
leis civis e do Processo. Porém, ao concluir, chamou a atenção para um impasse, cuja
solução estava fora da alçada do IAB. No seu entender, se por um lado não havia
dúvida de que a entidade era o locus ideal para levar a cabo a tarefa de preparar o ante-
projeto das reformas, por outro, uma iniciativa dessa natureza só poderia (...) partir de
mais alto34. No fundo, Carvalho Moreira passara um recado às autoridades presentes,
ou seja, de que promover as pretendidas reformas implicava sobretudo em uma questão
de vontade política.

Se Carvalho Moreira, com muita elegância, chamara aos brios os homens do


governo, cobrando-lhes maior empenho na codificação das leis civis, o orador seguinte
deve ter causado grande impacto na seleta platéia. Tratava-se do bacharel e religioso
Caetano Alberto Soares, que apresentou a dissertação “Melhoramento da sorte dos
escravos no Brasil”. Texto, por sinal, até hoje muito citado pela historiografia
abolicionista35, cujo conteúdo será comentado mais adiante, no quarto capítulo deste
livro.

No período compreendido entre 1844 e 1847 há poucos registros detalhados


sobre as atividades do IAB, exceto as notícias das duas conferências citadas, de alguns
informes a respeito de obras recebidas e de indicações para ingresso de sócios. A
coleção de atas, que foi publicada anos mais tarde por iniciativa de Perdigão Malheiro,
no primeiro número da Revista, apresenta sucessivas lacunas naquele lapso de tempo.
Sabe-se, entretanto, que em 1847 algumas sessões tiveram de ser suspensas, por
carência de local adequado. Tudo leva a crer que a dificuldade fosse decorrente do
falecimento do Conselheiro Teixeira de Aragão, em 1846, em cuja casa os trabalhos
vinham ocorrendo desde a fundação grêmio, conforme já foi dito. O obstáculo foi

34
Francisco Inácio de Carvalho Moreira, “Da revisão geral e codificação das leis civis do Processo no
Brasil”. Memória lida em sessão geral do Instituto dos Advogados Brasileiros a 7 de setembro de 1845.
Revista do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros Rio de Janeiro, Ano I Tomo I, nº 1, janeiro,
fevereiro, março de 1862, p. 147-169. (Edição fac-similar).
35
Ver, por exemplo, Eduardo Spiller Pena, Pajens da casa imperial.Jurisconsultos, escravidão e a lei de
1871. Campinas (SP): Editora da UNICAMP, 2001.
11

contornado, provisoriamente, graças aos ofícios de um sócio, o Dr. Fausto de Aguiar,


que colocou sua residência à disposição dos confrades.

De qualquer modo, em 1848, o Instituto já se constituía em um espaço


privilegiado de formação da cultura jurídica nacional. A promulgação da Lei de 2 de
setembro de 1847, que tratava da sucessão e da filiação natural paterna, por exemplo,
suscitou debates no grêmio, tendo o associado Teixeira de Freitas levantado questão se
a referida lei poderia ser aplicada no que se refere à exclusão da prova testemunhal
acerca da maternidade À guisa de curiosidade, deve-se acrescentar que o assunto foi
alvo das reflexões de Agostinho Marques Perdigão, cujo parecer foi aprovado pela
Assembléia do Instituto, ficando decidido que (...) a maternidade não necessita de
alguma disposição legislativa que restrinja sua prova.36.

O certo é que o Conselho Diretor sentiu necessidade de sistematizar a forma de


discussão e de divulgação dos resultados dos estudos realizados sobre as chamadas
“questões científicas”. A demanda mereceu uma atenção especial, pois em última
análise tratava-se da jurisprudência firmada pelo órgão. Conhecimentos que
interessavam não apenas aos membros as Casa, mas a todos os que militavam no Foro.
Decidiu-se, então, que os pareceres emitidos sobre “questões científicas” seriam objeto
de debate, seguido de votação, a fim de que a assembléia geral deliberasse sobre a
aprovação dos mesmos. Reservava-se, todavia, (...) a qualquer membro o direito de
fazer declarar em ata a opinião que prefere e pela qual votou37.

Quanto à divulgação, uma vez que o Instituto ainda não dispunha de um boletim
informativo ou de periódico especializado, o que só veio a se concretizar em 1862, com
a criação da Revista do Instituto da Ordem dos Advogados, na gestão de Agostinho
Marques Perdigão Malheiro38, resolveu-se que qualquer filiado poderia obter certidões
dos pareceres científicos, desde que o pedido recebesse a chancela do presidente do
Conselho. Além disso, adotou-se um selo para timbrar os documentos oficiais da
instituição, cujo modelo recebeu a anuência do Ministério da Justiça39.

Por essa mesma época, a corporação também iniciou gestões para ramificar-se
pelas províncias. Na sessão de 22 de março de 1848, Francisco Inácio Carvalho
Moreira, ao regressar de viagem de Alagoas, fez um relato aos confrades das sondagens
que empreendera para a abertura de filiais na Bahia e em Pernambuco40. De um modo
geral, a proposta recebera acolhida favorável. Entretanto, no Recife, os bacharéis
deram-lhe a entender que tencionavam estabelecer uma agremiação similar, desde que
sem vínculo com a matriz do Rio de Janeiro. Vale notar que a passagem de Carvalho

36
Cf. Revista do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros Rio de Janeiro, Ano I Tomo I, nº 2, abril,
maio, junho de 1862, p. 49-53. (Edição fac-similar).
37
IAB, Revista do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros Rio de Janeiro, Ano I Tomo I, nº 3,
julho, agosto, setembro de 1862, p. 127-128.
38
Integravam a primeira comissão de redação do periódico os associados Urbano Sabino, Joaquim J.osé
Teixeira, Nabuco de Araújo, Lafayette Rodrigues Pereira, Busch Varella, João da Rocha Miranda e Silva,
Caetano Alberto Soares e Joaquim Inácio Álvares de Azevedo.
39
Portaria de 29 de maio de 1849, assinada pelo Ministro da Justiça Euzébio de Queiroz Matoso.
40
IAB, “Ata da sessão de 22 de março de 1848. Revista do Instituto da Ordem dos Advogados
Brasileiros Rio de Janeiro, Ano I Tomo I, nº 3 , op. cit, p. 127.
12

Moreira por Pernambuco se dera meses antes de eclodir a revolução Praieira 41. A idéia
de instituir uma sucursal do IAB no Recife, por certo, deve ter sido identificada como
mais uma ação da política centralizadora da Corte, em detrimento das chamadas
franquias provinciais. A prova disto é que sufocada a revolta, a resistência do Leão do
Norte arrefeceu. Três anos mais tarde, na sessão de 2 de junho de 1851, chegava ao
grêmio uma participação oficial de que o (...) Instituto Filial de Pernambuco já se
encontrava instalado42.

Se, por um lado, ao final da década de 1840, já se pensava na expansão do


Instituto pelas províncias, por outro, na capital do Império, o ritmo do crescimento dos
quadros sociais mantinha-se estável. A média de admissões alcançava cerca de dez
bacharéis por ano. Porém, o corpo social começou a apresentar novas situações que
escapavam aos dispositivos regimentais. Sobretudo no que se refere à classe dos
efetivos. Havia dúvida se seus integrantes poderiam permanecer nessa categoria, caso
deixassem de advogar, e quais as possíveis situações de incompatibilidade. No fundo,
tratava-se de uma questão de ordem prática. Afinal, os bacharéis em Direito formavam a
nata da elite letrada da sociedade imperial. Homens que não só patrocinavam causas ou
atuavam na magistratura, como também circulavam com desenvoltura tanto no
parlamento, quanto nos altos escalões do Executivo43.

Resolveu-se, então, que os membros efetivos só seriam afastados do quadro se


por ventura abandonassem de vez a profissão de advogado, ou viessem a se dedicar a
outro ofício incompatível com ela. A ausência temporária da Corte ou exercício de
comissão no serviço publico não implicaria em exclusão naquela classe. Quanto aos
efetivos promovidos à classe dos honorários, por motivo de ingresso na magistratura,
caso a deixassem e voltassem a advogar, poderiam retornar à condição inicial,
independente de nova matrícula.

Em meados do século XIX, o Império começaria a experimentar grandes


transformações. Do ponto de vista econômico, a expansão cafeeira acelerava-se,
seguindo a direção do vale do rio Paraíba, tanto na província fluminense, quanto no
território paulista, gerando riqueza e provocando novas demandas. No âmbito das
instituições monárquicas, o Gabinete conservador, que governou do país entre 1848 e
1852, realizou opulenta obra administrativa44. Liderado por Araújo Lima e depois por
José da Costa Carvalho, na pasta do Império a partir de 1849, o ministério era integrado
pela própria trindade saquarema: Eusébio de Queiroz ocupava a pasta Justiça; Paulino
José Soares de Sousa, a dos Estrangeiros e Joaquim José Rodrigues Torres, a da
41
A revolução Praieira é considerada pela historiografia como o último movimento rebelde da seqüência
de insurreições que marcou o processo de construção do Estado imperial. Eclodiu em Pernambuco a 7 de
novembro de 1848. A esse respeito, ver Barbosa Lima Sobrinho, “A revolução praieira”. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 210: 102-119, 1948. Ver, também, Isabel
Marson, A rebelião praieira. São Paulo: Brasiliense, 1981.
42
IAB, “Ata da sessão de 2 de junho de 1851. Revista do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros
Rio de Janeiro, Ano II Tomo II, nº 1, janeiro, fevereiro, março de 1862, p. 13 e 14.
43
Veja-se, Alberto Venâncio Filho, Das Arcadas ao Bacharelismo. 2ª edição. São Paulo: Perspectiva,
1982. Ver, também, Nanci Leonzo e Rita Maria Cardoso Barbosa, “As ‘virtudes’ do bacharelismo”.
Anais da II Reunião da Sociedade Brasileira de Pesquisa História, São Paulo, 1983, p.125- 128.
44
Cf. Max Fleiüss, História administrativa do Brasil. 2ª edição. São Paulo: Melhoramentos, 1925, p.
257-263. Na obra citada, o autor enumera todas as iniciativas do Gabinete.
13

Fazenda45. Dentre outras realizações, foi responsável pela promulgação do Código


Comercial, da Lei de Terras e da Lei que extinguiu o tráfico de africanos para o Brasil -
mais conhecida como Lei Euzébio de Queiroz. Promoveu, também, a reorganização
bancária, a reforma do regulamento das classes armadas, do corpo diplomático, do
ensino e de muitos outros serviços públicos; a revisão de importantes tópicos da
legislação judiciária; a inauguração do telégrafo elétrico e a construção da primeira
estrada de ferro no Brasil. A historiografia, por sinal, ainda não se debruçou com o
devido cuidado sobre o conjunto da gestão administrativa e política desse Gabinete, que
governou o Império durante quase quatro anos, voltado, sobretudo, para a organização
do Estado, e que preparou terreno para o advento da política de conciliação do
Marquês de Paraná.

Atento à série de reformas que a Coroa vinha promovendo, o Instituto, por


iniciativa de Montezuma, sugeriu ao Ministério da Justiça a criação de uma cadeira de
Direito Público e Administrativo nos currículos das faculdades de Direito. Justificava a
medida, apontando a importância de promover o estudo sistemático dos princípios
constitutivos do governo e das regras que determinam as atribuições do funcionário
público, (...) qualquer que seja sua categoria, ou hierarquia administrativa46.

Seja como for, por volta de 1850, completou-se o processo de consolidação do


Estado, ancorado em uma aliança política onde, de um lado, estavam a Coroa e a alta
magistratura, na qual se incluíam os associados do Instituto dos Advogados Brasileiros,
e, de outro, o grande comércio e a grande propriedade, em especial a lavoura cafeeira
fluminense. A monarquia principiava a vivenciar a sua fase áurea, o momento
privilegiado do Segundo Reinado que o historiador Capistrano de Abreu denominou de
memorável decênio47.

As circunstâncias históricas, por conseguinte, também se mostravam propícias


para trazer à baila, finalmente, o projeto da organização da Ordem dos Advogados. De
fato: coerente com as idéias que defendera na cerimônia de instalação do Instituto,
Montezuma resolveu convocar uma assembléia extraordinária, em 28 de fevereiro de
1850, e submeter ao Conselho Diretor (...) uma proposta para que se peça ao Corpo
Legislativo a organização definitiva da Ordem48.

Para agilizar os trabalhos, ele mesmo redigiu as bases que deveriam orientar a
representação à Assembléia Geral do Império, a saber: instituição de matrícula
obrigatória de todos os advogados do Império, precedida do cumprimento de
formalidades, a começar pela exigência da prática do ofício em escritório de advogado
conceituado no período mínimo de um ano; incompatibilidade da profissão com o
exercício dos cargos de polícia, de secretários de tribunais, de juízes, procuradores,
45
Faziam parte também deste Gabinete Manuel Felizardo de Sousa e Melo e Manuel Vieira Tosta
titulares respectivamente dos ministérios da Guerra e da Marinha.
46
Cf. Francisco Gê de Acaiaba e Montezuma, “Discurso”. Revista do Instituto da Ordem dos Advogados
Brasileiros Rio de Janeiro, Ano I Tomo I, nº 3 julho, agosto, setembro de 1862, p. 182-183.
47
J. Capistrano de Abreu, Ensaios e estudos: crítica e história. 2ª série, nota preliminar de José Honório
Rodrigues. 2ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1976, p. 17.
48
Cf. IAB, “Ata da sessão extraordinária de 28 de fevereiro de 1850”. Revista do Instituto da Ordem dos
Advogados Brasileiros Rio de Janeiro, Ano I Tomo I, nº 3 julho, agosto, setembro de 1862, p. 182-183.
(Edição fac-similar).
14

agentes de feitos, escrivões e outros; criação de Conselhos Disciplinares, com


autoridade para fiscalizar o desempenho profissional dos filiados e impor-lhes as
sanções previstas em Regulamento; estabelecimento de sucursais do IAB em todos os
Distritos onde houvesse tribunal de Relação; realização dos exames para advogados
provisionados sob a responsabilidade das ditas sucursais, que também ficariam
incumbidas de determinar os casos de localidades onde se justificasse o exercício da
profissão por práticos, cabendo aos presidentes dos tribunais de Relação apenas
referendar os concursos e assinar os termos de concessão de licenças.

Conquanto todos concordassem que chegara o momento de instituir a Ordem dos


Advogados, o ante-projeto de Montezuma não obteve repercussão favorável junto aos
seus pares. Segundo os registros, o Conselho Diretor deliberou apenas que a petição
fosse (...) pura e simples, sem oferecimento de bases da reforma ou organização 49. Esta
resolução do Conselho Diretor merece uma breve reflexão. Afinal, o elenco de diretrizes
sugerido pelo futuro Visconde de Jequitinhonha contemplava tanto as aspirações de
autonomia de classe, quanto os problemas inerentes à prática da profissão. Temas que
vinham sendo debatidos desde a primeira hora do Instituto.

É possível imaginar que o Conselho do IAB, ao suprimir da petição as tais bases,


estivesse agindo de modo estratégico, visando garantir a aprovação do projeto na
Câmara dos Deputados sem maiores embates. Evitava-se, assim, submeter ao legislativo
algumas questões que, sem dúvida, provocariam polêmica. A começar pelo item que
dispunha sobre a incompatibilidade da prática da profissão de advogado com o
exercício concomitante de determinados cargos públicos na esfera do poder judiciário.
Outro ponto que também haveria de suscitar discussão, devido às implicações de
natureza política, dizia respeito às prerrogativas da futura Ordem, em relação ao
processo de outorga de licenças para advogados provisionados. Não é demais recordar,
que as provisões podiam ser concedidas tanto por presidentes de tribunais de Relação,
quanto por presidentes de Província, o que gerava uma série de desvios e abusos, pois,
no fundo, a licença para a prática da advocacia servia de moeda de troca política.

De qualquer modo, percebe-se que a decisão da mesa diretora não agradou a


Montezuma, que a partir daí começou a se distanciar das atividades do Instituto.
Frustrado ou desgostoso com a atitude dos confrades, não se sabe ao certo. Finalmente,
em 12 de dezembro de 1850, ele apresentou um pedido formal de demissão da
presidência, para tomar assento no Conselho de Estado, na qualidade de membro
extraordinário 50. Justificou o afastamento, alegando incompatibilidade do novo cargo
com o exercício da profissão de advogado e, por conseguinte, com o cargo que ocupava
no grêmio. Dentre outras homenagens, recebeu o título de Presidente Honorário do
Instituto dos Advogados Brasileiros 51.

Cabe aqui abrir um breve parênteses, tomando como caso exemplar a


argumentação de Montezuma, para destacar a falta de consenso entre os próprios
49
Idem, p. 185.
50
Cf . IAB, “Ata da sessão de 12 de dezembro de 1850”. Idem, op. cit., p. 187.
51
Cf. IAB, “Ata da sessão de 23 de fevereiro de 1851”. Revista do Instituto da Ordem dos Advogados
Brasileiros Rio de Janeiro, Ano II Tomo II, nº 1, janeiro, fevereiro, março de 1863, p. 11. (Edição fac-
similar).
15

jurisconsultos sobre as situações em que o desempenho de funções públicas era


incompatível com o ofício de advogado. Quando assumiu a presidência do Instituto, em
1866, o Dr José Tomás Nabuco de Araújo já era Conselheiro de Estado extraordinário,
portanto estava na mesma condição de Montezuma. No entanto, no discurso de posse
Nabuco de Araújo firmou posição contrária a do seu antecessor, declarando
textualmente:

Nomeado Conselheiro d’Estado extraordinário


(...) eu não deixei o exercício da nossa profissão, mas
continuei nela com o ânimo de não encarregar-me de
causas e negócios que tivessem alguma relação com a
administração pública. (....) Não me pareceu incompatível
com o exercício da advocacia (...) 1º Porque a pequena
retribuição do cargo (...) não é senão um acessório de
outras profissões. 2º Porque os membros da magistratura,
do magistério, do exército, da armada (...) tem continuado
no exercício (...) Porque razão a profissão de advogado,
a mais independente de todas as profissões, e tão nobre e
digna como as outras, há de ser incompatível?52

Mas, recuemos novamente à década de 1850, e voltemos à estratégia intentada


para o estabelecimento da Ordem dos Advogados, pela via do Legislativo. Examinando
os Anais do Senado, em especial os registros da sessão de 5 de junho de 1851 53, quando
da segunda discussão daquela matéria, constata-se que o ante-projeto da Comissão de
Legislação do Senado havia incorporado boa parte da pauta elaborada por Montezuma.
Sobretudo no que se refere à definição de funções e empregos públicos que deveriam
ser considerados incompatíveis com o exercício da advocacia, a saber: (...) todos os
cargos da ordem judiciária, exceto “ad ínterim”; os ofícios de escrivão, tabelião,
secretário de tribunal, distribuidor, solicitador, procurador e agentes comerciais; os
cargos amovíveis vencendo salário público; o ministério sagrado de Curas d’almas;
todos empregos de polícia. Da mesma maneira, privilegiava o item que exigia a
comprovação de prática forense, por pelo menos dois anos, para que os bacharéis
pudessem requerer a licença para advogar, além do respectivo diploma de conclusão de
curso.

Porém, logo no artigo 1º do ante-projeto desferia um golpe mortal na pretensão


do IAB de converter-se na Ordem dos Advogados, ao determinar: (...) Fica criado nas
capitais das províncias um instituto com o título de Instituto da Ordem dos Advogados,
- do qual serão membros todos os que na província exercem legalmente a advocacia. O
Instituto da capital do Império compreenderá também a província do Rio de Janeiro 54.
Esses organismos deveriam reportar-se às autoridades judiciárias locais, e sua direção
52
José Thomas Nabuco de Araújo, “Discurso de posse, 8 de novembro de 1866”. IAB, Revista do
Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros Rio de Janeiro, Tomo VIII, nº 1, 1871 p. 141. (Edição fac-
similar).
53
BRASIL, Anais do Senado, Sessão de 5 de junho de 1851, p. 67-80.
54
Idem.
16

seria confiada a um colegiado, denominado de Conselho Disciplinar e Administrativo,


com as seguintes atribuições:

1º Fazer anualmente a matrícula da Ordem,


alistando todos os advogados residentes e em exercício
legal na respectiva província, e igualmente a dos
procuradores e solicitadores da mesma, remetendo-as
com as necessárias observações à relação do distrito, às
câmaras municipais, aos juízes de direito, e aos juízes
municipais da mesma província.

2º Informar, em virtude de portaria do presidente


da relação do distrito, sobre a falta de bacharéis
formados, exigida pelo § 4º do art. 7º do regulamento das
relações do Império de 3 de janeiro de 1833 para se
conceder licença para que advogue quem não é formado.

3º Examinar e atestar em virtude de portaria do


presidente da relação do distrito, sobre a suficiência e
moralidade dos que querem ser na província
procuradores, solicitadores e advogados, não sendo
graduados no Império.

4º Velar pela fiel execução das leis e das


deliberações do Instituto, pelo que concerne ao exercício
e dignidade da advocacia e da procuradoria judicial,
manutenção e defesa de suas prerrogativas, em proveito
geral do país e da ciência da jurisprudência.

5º Aplicar as medidas disciplinares autorizadas


pela lei e regulamentos do governo, a saber: além de
quaisquer outras, a advertência, a repreensão, e bem
assim o interdito geral ou local, e a expulsão da ordem ou
da classe dos procuradores judiciais, precedendo nestes
dois últimos casos deliberação do Instituto em sessão
para esse fim convocada, e dando recurso suspensivo
para a relação do distrito55.

A transcrição é extensa mas pertinente, já que hoje em dia, nas fontes


disponíveis no IAB, não há qualquer menção a esse documento, que recebeu a
aprovação do Senado e chegou ser examinado na Assembléia Geral do Império (Projeto
nº 45, de 1851). Da sua leitura depreende-se que os senadores, ardilosamente, haviam
inviabilizado qualquer tentativa de fortalecimento da corporação, pulverizando o seu

55
Idem.
17

poder associativo, por meio da criação de pequenos institutos, organizados de forma


autônoma, sem qualquer vínculo com a Casa de Montezuma.

O texto aprovado pelos senadores estava longe de contemplar as pretensões da


associação do Rio de Janeiro. Tanto assim, que as atas das sessões do IAB, relativas aos
exercícios de 1852 e de 1853, dão notícia diversas vezes dos trabalhos realizados por
sucessivas comissões de associados, na tentativa de retomar a proposta pendente na
Câmara, (...) oferecendo o que parecer aproveitável em harmonia com a Constituição 56.
Mas, ao que parece, tais iniciativas não foram bem sucedidas. Tudo leva a crer que o
próprio Instituto deva ter exercido forte pressão no parlamento, no sentido de bloquear a
tramitação do Projeto, que finalmente acabou relegado a um providencial esquecimento.

Em 1865, na gestão de Agostinho Marques Perdigão Malheiro, o Instituto dos


Advogados Brasileiros resolveu submeter ao governo imperial uma nova
Representação, com o objetivo de alterar seus Estatutos e transformar-se na Ordem dos
Advogados. Apresentavam como justificativa a necessidade de regulamentar a
profissão, tendo em vista que (...) a desordem do foro, a desmoralização do mesmo e
outros males nele enraizados ( o que tudo é público e notório), tem importado a
decadência, e que cumpre, a bem da justiça, extirpar esses cancros, e elevar a
profissão à altura que lhe compete57

Desta feita, todavia, os dirigentes do IAB resolveram adotar uma outra estratégia
de ação. Ao invés de dirigirem o pleito ao Legislativo, serviram-se de um atalho que
lhes pareceu mais conveniente. Melhor dizendo, menos arriscado do que as sinuosas
vias parlamentares. Assim, o documento foi encaminhado diretamente ao Conselho de
Estado - o cérebro da monarquia na expressão de Joaquim Nabuco, o órgão de
aconselhamento do monarca, encarregado de elaborar e formar pareceres a respeito de
questões técnicas, sobre as quais o governo devia decidir e atuar como tribunal
administrativo.

A petição, acompanhada das respectivas bases para o estabelecimento da Ordem


dos Advogados, deveria ser objeto de exame da Seção de Justiça do Conselho de
Estado, onde tinham assento diversos membros do Instituto, inclusive o ex-presidente
Montezuma. Para relatar o processo, foi designado o conselheiro extraordinário José
Martiniano de Alencar, outro associado da Casa.

A demanda parecia bem encaminhada, por assim dizer. Sobretudo porque já se


conhecia, de longa data, a opinião do Conselheiro relator. Em 24 de outubro de 1857, na
primeira página do Diário do Rio de Janeiro, Alencar manifestara-se a respeito das
intenções do Instituto: (...) há mais de oito anos ou dez anos que essa associação espera
uma lei que constitua aquela corporação em uma ordem como existe na França; e até
hoje não se deu nenhum passo nesse sentido. Mais adiante, no mesmo artigo,
reivindicaria o mecenato do Imperador D. Pedro II para o grêmio dos advogados, a

56
Ver dentre outras, IAB, “Ata da sessão de 13 de maio de 1852”. Revista do Instituto da Ordem dos
Advogados Brasileiros Rio de Janeiro, Ano I Tomo I, nº 3 julho, agosto, setembro de 1862, p. 182-183. p.
62-63.
57
Idem, sessão de 18 de maio de 1865, p. 191-192.
18

exemplo do patrocínio que Sua Majestade costumava dispensar a um outro importante


reduto intelectual da Corte, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro58.

No dia seguinte, no mesmo jornal, Alencar retomaria o assunto, explicando as


razões da veemente defesa que apresentara em favor do IAB:

(...) Tratamos ontem do Instituto dos Advogados e


fizemos algumas considerações a respeito da pouca
proteção que lhe tem dado o governo. (...) O primeiro
que colheria as vantagens dessa instituição seria o
próprio governo, que teria um corpo de homens práticos
e entendidos a quem consultasse nas reformas
importantes da legislação, dispensando essas comissões
onerosas para o tesouro público, e que não senão
verdadeiras sinecuras59.

A justificativa de Alencar constitui uma pista importante para compreender o seu


parecer no Conselho de Estado, emitido em 20 de outubro de 1865:

(...) Sem dúvida é de urgente necessidade a


organização da Ordem dos Advogados no Brasil. Mas eu
entendo que esta matéria não se resume unicamente na
criação de um conselho administrativo, e em algumas
disposições relativas às pessoas que podem exercer a
advocacia e procuradoria judicial. Em minha opinião,
(...), é preciso escrever de uma vez o capítulo da nossa
Organização Judiciária, relativo a procuradores e
advogados, convém compreender o que existe, reviver o
bom que caducou sem razão, e revogar o mau que ainda
subsiste pela rotina. Em uma palavra devem-se consignar
os direitos e obrigações dos advogados e procuradores
em relação às partes e aos juízes; deve-se regular o
exercício desses misteres de conformidade com as idéias
atuais. Este projeto é que devia elaborar o Instituto dos
Advogados para sobre ele fazer obra o Governo;
solicitando ao Legislativo as medidas que não estivessem
em sua competência60(o grifo é nosso).

58
Diário do Rio de Janeiro, nº290. Rio de Janeiro, de 24 de outubro de 1957, p.1.
59
Diário do Rio de Janeiro, nº291. Rio de Janeiro, de 25 de outubro de 1957, p.1.
60
Brasil, Imperiais Resoluções, v. II, p. 1259.
19

O bacharel, político e escritor José Martiniano de Alencar sinalizava para um


outro modo de encaminhar a questão. No seu ponto de vista, o primeiro passo a ser dado
era promover a Organização Judiciária, uma vez que percebia a regulamentação do
exercício da profissão de advogado como um desdobramento natural da matéria.
Entretanto, deixava claro que qualquer iniciativa dessa envergadura era de competência
exclusiva do Estado e não do Instituto. Este, enquanto associação de classe, quando
muito, poderia colaborar com o governo, oferecendo subsídios para tal.

Num primeiro momento, poder-se-ía aventar a hipótese de que Alencar caíra em


contradição. Afinal, a pena do conselheiro extraordinário parecia chocar-se com a do
combativo jornalista, que alguns anos antes reclamava do governo imperial maior
atenção para o grêmio dos bacharéis. Todavia, a premissa não se sustenta, à medida em
que se analisa a performance de homem público do consagrado romancista.

Bacharel em Direito, após concluir o curso na cidade de São Paulo (1850), José
Martiniano de Alencar transferiu-se para o Rio de Janeiro, exerceu a advocacia e
também se dedicou ao magistério, dando aulas de direito comercial. Graças à sua
amizade com importantes lideranças do Partido Conservador, como Euzébio de Queiroz
e Nabuco de Araújo, alcançou o posto de chefe e consultor da Secretaria de Estado dos
Negócios da Justiça. Em 1860, elegeu-se deputado pela província do Ceará, sua terra
natal, tendo o mandato renovado por sucessivas vezes. Na política, além da atuação
parlamentar, publicou diversos ensaios, a exemplo das Cartas de Erasmo, onde discutia
de modo irônico a questão da representatividade e o sistema eleitoral do Império.

Integrante da bancada do partido Conservador na Câmara, Alencar mostrava-se


afinado com as diretrizes da política centralizadora defendida e posta em prática pelos
representantes daquele partido nos gabinetes ministeriais. A prova disto é que no
período em que esteve à frente da pasta da Justiça (1868-1870), promoveu diversas
alterações na estrutura e funcionamento da Polícia e do Judiciário, coerente com os
argumentos expostos no parecer apresentado ao Conselho de Estado61.

De qualquer modo, o voto de Alencar foi acompanhado por seus pares sem
qualquer objeção. A Sessão de Justiça do Conselho de Estado julgou o projeto do
Instituto deficiente. No veredicto final, os conselheiros ainda aproveitaram a
oportunidade para passar uma reprimenda no Instituto, assinalando que quaisquer outras
petições do gênero não deveriam ser submetidas ao Conselho, mas sim à apreciação da
Assembléia Geral do Império62.

A decisão do Conselho de Estado, entretanto, não parece ter esmorecido as


aspirações do IAB. Decorridos alguns meses, em 1866, por iniciativa do associado, o
senador José Thomaz Nabuco de Araújo, então ministro da Justiça, mais uma proposta
para a criação da Ordem foi encaminhada ao Legislativo.

O projeto do ministro fundamentava-se nas recomendações do parecer de José


de Alencar. Tencionava promover a organização da entidade de classe como
61
Cf. Max Fleiüss, História administrativa do Brasil, op. cit., p.301-303.
62
Brasil, Imperiais Resoluções, v. II, p. 1259.
20

providência conexa à reforma judiciária. Retomava, também, a idéia da descentralizar a


atuação da Ordem, por meio do estabelecimento de filiais nas cidades onde existissem
tribunais de Relação. Contudo, Nabuco de Araújo não foi bem sucedido em ambos os
pleitos, como registra seu filho e biógrafo Joaquim Nabuco63.

A bandeira do estabelecimento da Ordem só voltaria a ser agitada no Instituto no


início da década de 1880. Nesta ocasião, dois associados, os deputados Saldanha
Marinho e Batista Pereira apresentaram ao Legislativo o Projeto nº 95, de 1880. O
primeiro, inclusive, vinha exercendo a presidência do IAB desde 1873. Porém, apesar
dos esforços que empreendeu junto à Assembléia Geral do Império, a tentativa também
não logrou êxito.

Ainda na gestão de Saldanha Marinho, houve duas alterações nos diplomas do


IAB. A primeira, aprovada pelo Decreto nº 7836, de 28 de setembro de 1880, dava
novos Estatutos ao grêmio. Em linhas gerais, os objetivos foram mantidos (...) o fim do
Instituo é organizar a ordem dos advogados e o estudo do direito e da jurisprudência
em geral, ampliando-se a parte relativa à estrutura e funcionamento, sobretudo no que
diz respeito ao conselho disciplinar.

A grande novidade consistia nas condições de admissão ao grêmio, doravante,


os candidatos além dos bons costumes e de comprovar prática forense por no mínimo
três anos consecutivos, submetendo-se também a uma espécie de exame de proficiência
acadêmica, já que deveria (...) escrever e apresentar memória ou monografia sobre
qualquer ponto de jurisprudência, compreendido no programa para tal fim
previamente organizado pela comissão de jurisprudência, e aprovado pelo conselho
disciplinar 64. Voltaremos ao assunto, mais adiante no quarto capítulo deste trabalho.

A segunda modificação ocorreu, em 27 de setembro de 1888, quando o


Conselho Diretor promoveu a reforma do Regulamento Interno. A partir daí o grêmio
passou a se chamar oficialmente Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros (IOAB).
Apesar de alterada a denominação, logo no artigo 1º, do capítulo I, daquele documento,
onde estão dispostas as finalidades do órgão, paradoxalmente, lê-se que:

(...) O Instituto da Ordem dos Advogados


Brasileiros, definitivamente constituído em 7 de agosto de
1843 e instalado um mês depois nesta Corte, é uma
associação de advogados legalmente graduados em
direito (...) e tem por objeto: 1) O estudo do direito, na
sua história, no seu mais amplo desenvolvimento, nas
suas aplicações práticas e comparação com os diversos
ramos da legislação estrangeira. 2). A assistência
judiciária 65.

63
Cf. Joaquim Nabuco, op. cit., v.1, p. 642.
64
Brasil, Actos do poder executivo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1880, p. 591-599.
65
IOAB, Regulamento do Instituto da Ordem dos Advogados, 1888, art. 1º.
21

O novo Regulamento, portanto, era omisso no que se refere às aspirações


corporativas do órgão. Nem fazia qualquer referência à auto-regulamentação do
exercício da profissão. O que pode até parecer um retrocesso, quando se compara com
disposto nos Estatutos de 1843 e mesmo com os de 1880 66. Sobretudo se atentarmos
para o fato de que meses antes da sua aprovação pela assembléia dos sócios, mais uma
denúncia chegara com estrépito à assembléia dos sócios, na sessão de 13 de maio de
1888, incriminando alguns advogados que estariam assinando petições para supostos
procuradores, indivíduos quase analfabetos que infestam o foro67.

Não cabe no momento aprofundar a discussão a respeito das causas do malogro


das sucessivas gestões intentadas pelo Instituto a propósito de estabelecer a Ordem dos
Advogados durante o período imperial. Todavia, convém assinalar que as opiniões dos
estudiosos divergem sobre essa questão. Joaquim Nabuco, na obra Um estadista do
Império, justificando o insucesso do projeto preparado por seu pai – o senador Nabuco
de Araújo, afirma que teria prevalecido no grêmio (...) o espírito de inércia, desânimo e
apatia, que inutiliza as nossas associações todas e não consente às que duram senão
uma vida intermitente68. O que em outras palavras significa dizer que o corpo social do
Instituto carecia de força e de coesão interna, para atuar como um grupo de pressão e
exigir do governo o estabelecimento da Ordem.

Já Edmundo Campos Coelho, em livro recente, As profissões imperiais:


medicina, engenharia e advocacia no Rio de Janeiro, examina o problema sob outro
ângulo. No seu entender, é razoável supor que a existência da Ordem não interessava
justamente aos sócios mais eminentes, aqueles cujas carreiras foram menos dedicadas
ao exercício da advocacia:

Vindos da magistratura ou da presidência de


províncias, no Senado ou em trânsito para o Senado, no
Conselho de Estado ou em trânsito para o Conselho,
cumprindo uma trajetória na qual o escritório de
advocacia freqüentemente era apenas o ponto de partida
ou a estação onde trocavam de destino, quando não era a
fonte de renda que os sustentava na alta administração,
não haveriam de ter forte identificação com ela. Em
outros, o espírito liberal censuraria o caráter
compulsório de filiação a uma Ordem, e aos mais
versados na história da matriz francesa desgostaria a
perspectiva de reproduzir no Brasil a tirania do
“bâtonnier”.

66
Como já se viu, anteriormente, os Estatutos de 1843 dispunham que a finalidade do Instituto era (...)
organizar a ordem dos advogados, em proveito da ciência da jurisprudência. Cotejando ainda os dois
diplomas legais, percebe-se que também fora suprimido o caráter beneficente do Instituto.
67
IAB, “Ata da sessão de 13 de maio de 1888”. Revista do Instituto da Ordem dos Advogados
Brasileiros, op. cit., tomo IX, p. 167.
68
Cf. Joaquim Nabuco, op. cit., p. 1017.
22

Seguindo essta linha de raciocínio, Campos Coelho deduz, ainda, que o governo
imperial dificilmente estaria disposto (...) a conceder aos advogados a autonomia
corporativa que reivindicavam, vencendo a desconfiança que sempre nutrira pelas
associações civis e abdicando da paternal autoridade que mantinha todas elas
dependentes de suas graças69.

A essas premissas poderíamos acrescentar mais um complicador, de natureza


política. A política centralizadora dos gabinetes imperiais, dominante durante quase
todo o Segundo Reinado, não aceitaria abrir mão de certas prerrogativas do Estado,
delegando a uma entidade de classe poderes para auto-regulamentar o exercício da
profissão. O que explica o emblemático voto de José de Alencar, a propósito da
competência para definir dos direitos e das obrigações dos advogados e procuradores:
ao Instituto dos Advogados caberia preparar um projeto (...) para sobre ele fazer obra o
Governo70.

Na prática, os altos escalões da monarquia percebiam a entidade tal qual um


órgão de assessoramento semi-oficial, por assim dizer. Viam-no como uma espécie de
interlocutor privilegiado, um corpo de homens práticos e entendidos, capazes subsidiar
o governo no âmbito da organização judiciária e em matéria de jurisprudência. Com
mais uma vantagem, trabalhando graciosamente. Ou seja, dispensando as comissões (...)
onerosas para o tesouro público, e que são senão verdadeiras sinecuras, como desejava
José de Alencar 71.

69
Edmundo Campos Coelho, op. cit., p. 189-190.
70
Brasil, Imperiais Resoluções, op. cit, p. 1259.
71
Diário do Rio de Janeiro, nº291. Rio de Janeiro, de 25 de outubro de 1957, p.1.

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