O PECADO INDIGNO DE SER NOMEADO - DissertacaoFernandoLopes
O PECADO INDIGNO DE SER NOMEADO - DissertacaoFernandoLopes
O PECADO INDIGNO DE SER NOMEADO - DissertacaoFernandoLopes
Não foram dias fáceis os dias que transcorreram ao longo da escrita deste estudo.
Desde outubro de 2016, quando eu ainda estava no processo de criação do projeto, o país
passava por uma grave crise política. Estava em andamento o projeto de congelamento dos
investimentos na área de saúde e educação por vinte anos! Apesar disso, tive meu direito
garantido, ingressando no Programa de Pós-Graduação em História (PGHis) da Universidade
Federal de São João del-Rei (UFSJ) com o custeio fundamental da bolsa de estudos. Por isso,
expresso meu agradecimento à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES) que financiou esta pesquisa. Em especial, agradeço aos governos de Luís
Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, que ampliaram e valorizaram o acesso ao ensino
superior de qualidade para milhares de brasileiros. Convém ressaltar, ainda mais neste
momento de ataque descarado à educação pública – e às ciências, em geral – que não existe
mérito sem oportunidades! Agradeço assim aos governos anteriores que acreditaram na
educação como instrumento de transformação e desenvolvimento de nossa nação. Agradeço
aos meus queridíssimos professores da UFSJ, que desde a graduação foram grandes agentes
construtores e transformadores de meu senso crítico. Meus agradecimentos especiais à banca
de qualificação e defesa: Maria Leônia Chaves de Resende, que me deu o privilégio de sua
orientação, por ter sido a primeira a me apresentar os estudos e as fontes inquisitoriais e por
toda paciência e compreensão; Ronaldo Vainfas, por toda sua grandiosíssima inspiração
historiográfica, por toda generosidade em suas críticas e recomendações; Patrícia Mattos, que
me apresentou valiosas críticas quanto à questão teórica. Gratidão por aceitarem compor a
banca! Agradeço também ao professor Antônio Guimarães da Silva Pinto por me auxiliar na
tradução de alguns termos em latim. Expresso também meus agradecimentos aos amigos que
desde a graduação estiveram presentes em minha caminhada, deixando o caminho mais alegre
e leve: Cleudiza Souza; Gustavo Camilo; Mateus Carvalho; Laryce Santos; Simone Assis;
Juliana Leopoldino; Cathia Pereira, Fabi, Ester, Fernanda, Ragi e Zé Veloso Jr. Ao Ailton
que, para além dos serviços da secretaria de mestrado, sempre foi um grande amigo. Agradeço
também ao amigo Patrick Salomão por me auxiliar nas pesquisas documentais do Arquivo
Histórico da Santa Casa de São João del-Rei. Meu agradecimento especial ao amigo Flávio
Senra pela revisão cuidadosa e pelas palavras de conforto e confiança. Por fim, agradeço à
cidade de São João del-Rei, palco de encontros tão maravilhosos com pessoas inesquecíveis,
as quais levarei em meu coração aonde quer que eu vá. Imprimo nestas páginas minha mais
profunda gratidão a todas e a todos!
RESUMO
Este estudo teve como principal objetivo analisar a ação do Santo Ofício da Inquisição no
delito de sodomia em Minas Gerais, entre 1700 e 1821. A sodomia, apesar de considerada um
pecado indigno de ser nomeado, fora discutida exaustivamente ao longo da Idade Média pelos
sábios europeus da cristandade. Para a Santa Inquisição portuguesa, a partir do século XVI,
importava perscrutar os caminhos do sêmen, líquido seminal da vida, até o vaso prepóstero de
seus praticantes torpes, nefandos, fanchonos. Entretanto, a definição foi problemática e deu
margem para que os inculpados por sodomia forjassem estratégias que amenizassem suas
culpas. A perseguição ao delito também se estendeu até o Brasil com o projeto português de
colonização e moralização da sua colônia. Nas Minas Gerais, com a descoberta do ouro, o
processo de intensa ocupação territorial abrigara uma diversidade vasta de gentes: reinóis,
escravos negros, índios, colonos pobres. Assim, a capitania mineira despontara no número de
denúncias de sodomia praticada pelos transgressores daquela sociedade que então se formava.
Esse número mostra-se discrepante em relação às outras capitanias do Brasil. Para alcançar
essa estatística, foi realizada uma minuciosa pesquisa na documentação inquisitorial, da qual
resultou uma sistematização de todas as denúncias abarcadas no recorte espaço-temporal. Os
relatos das vivências sexuais – principalmente entre pessoas do sexo masculino – são aqui
trazidos à tona, atentando-se aos papéis sexuais relacionados ou não à hierarquização social
do mundo escravista das Minas, um objetivo secundário do trabalho. O aporte metodológico
utilizado apoia-se na abordagem micro-histórica que procura captar as diferentes vozes e
tramas dos sujeitos históricos num universo micro – debruçando-se preferencialmente sobre
as vivências dos “protagonistas anônimos da história” – sem perder de vista sua relação com o
contexto macro-histórico.
The purpose of this study was to analyze the action of the Holy Office of the Inquisition in
sodomy offense in Minas Gerais, between 1700 and 1821. Sodomy, although considered an
unworthy sin to be named, had been thoroughly discussed throughout the Middle Ages by
European Christendom sages. For the Portuguese Holy Inquisition, from the 16th century on,
it was important to scrutinize the semen, seminal liquid of life, paths to the preposterous
vessel of its practitioners considered as filthy, nefarious, fanchonos. However, the definition
was problematic and allowed the perpetrators of sodomy to forge strategies that mitigate their
guilt. The persecution of the crime also extended to Brazil with the Portuguese project of
colonization and moralization of its colony. In Minas, with the discovery of gold, the process
of intense territorial occupation had housed a vast diversity of people: kingdoms, black slaves,
Indians, poor settlers. Thus, the Minas Gerais captaincy had emerged on the number of
sodomy allegations practiced by transgressors of a society that had then been forming. This
number is discrepant in relation to the other captaincies of Brazil. In order to achieve the
statistic, an in-depth research was carried out in the inquisitorial documentation, which
resulted in a systematization of all complaints included in the space-time cut. The reports of
sexual experiences - especially among males - are brought here, drawing attention to the
sexual roles related or not to the social hierarchy of the slave world of Minas Gerais, a
secondary objective of this study. The methodological approach used is based on micro-
historical approach that seeks to capture the different voices and plots of historical subjects in
a micro universe - preferentially addressing the experiences of “anonymous protagonists of
history” - without losing sight of their relationship with macro-historical context.
INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 11
Capítulo 1
DE SODOMA ÀS MINAS GERAIS................................................................................ 18
1.1 Revisitando o passado condenatório: Igreja, Estado e Inquisição contra a sodomia no
mundo europeu ............................................................................................................... 18
1.1.1 Questões terminológicas: premissas para o entendimento da sodomia........................ 18
1.1.2 A sodomia nas sagradas escrituras............................................................................... 21
1.1.3 “Feito por fogo em pó”: o nefando nas Ordenações do Reino Português ................... 32
1.1.4 “Dos que cometem o nefando crime de sodomia” nos Regimentos inquisitoriais....... 36
1.1.5 Os sodomitas em números condenados pela Inquisição.............................................. 44
1.2 O combate ao nefando no Brasil e nas Minas Gerais...................................................... 47
Capítulo 2
AS DENÚNCIAS ARQUIVADAS.................................................................................... 57
2.1 Denúncias de sodomia em Minas Gerais ....................................................................... 63
2.1.1 Sodomia, heresia e masculinidades ............................................................................ 63
2.1.2 Sodomia imperfeita .................................................................................................... 73
2.1.3 Sodomia e escravidão.................................................................................................. 83
2.1.4 Sodomia e infância: casos envolvendo menores de idade........................................... 99
2.1.5 Dos padres sodomitas................................................................................................... 115
2.1.6 Sodomia e paixão: indícios de cumplicidade............................................................... 120
2.1.7 Sodomia feminina........................................................................................................ 123
2.2 Sodomitas pacientes: estigma da passividade? .............................................................. 125
Capítulo 3
OS HOMENS PROCESSADOS....................................................................................... 133
3.1 As fases do processo ..................................................................................................... 133
3.2 Os homens mineiros processados por sodomia ............................................................. 135
3.2.1 João Durão de Oliveira, useiro em acometer os escravos pelas “partes sinistras”...... 136
3.2.2 José Ribeiro Dias: o presbítero que praticava sodomia e ia dizer missa .................... 147
3.2.3 Lucas da Costa Pereira: o cirurgião que dava de comer e beber com largueza
aos escravos para fins sodomíticos........................................................................... 156
3.2.4 José Peixoto Sampaio: o homem que perseguia outro homem com
escritos amorosos...................................................................................................... 163
INTRODUÇÃO
Naquela ocasião, respondi: se uma pessoa é gay, procura o Senhor e tem boa
vontade, quem sou eu para julgá-la?
Papa Francisco,
O nome de Deus é misericórdia. (2016).
Quando o primeiro pontífice não europeu, Jorge Mario Bergoglio (Papa Francisco ),
pronunciou-se a respeito da homossexualidade, suas falas causaram grande impacto nas
mídias de todo o mundo, contribuindo para reforçar a imagem de uma Igreja misericordiosa.
Pela primeira vez na história, um Papa assumiu uma postura de acolhimento, ao contrário de
condenação, para com os homossexuais. Disse Francisco que “estava parafraseando de cor o
Catecismo da Igreja Católica, em que se explica que as pessoas devem ser tratadas
educadamente e não as devemos marginalizar. Além disso, gosto que se diga „pessoas
homossexuais‟: primeiro está a pessoa, no seu todo e dignidade”, continuou o pontífice, “e a
pessoa não é definida apenas pela sua tendência sexual: não podemos esquecer que todos
somos criaturas amadas por Deus, destinatárias do seu infinito amor”1. Os pronunciamentos
do Papa adquiriram tal potência pelo fato da homossexualidade ainda ser um tema polêmico e
controverso para a Igreja Católica que, embora acompanhe o caminhar da sociedade e da
história, ainda carrega, da sua cúpula ao seu rebanho, muitos resquícios de tempos pretéritos.
Neste caso, de quando as relações sexuais entre iguais eram perseguidas e condenadas das
mais diversas formas pela comunidade cristã.
No Brasil, o processo de colonização portuguesa, no século XVI, coincidiu com o
momento de criação do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, em 1536. Controlado pela
Igreja e pelo Estado português, o tribunal de fé objetivava descobrir e perseguir aqueles que
atentassem contra os dogmas católicos. O alvo maior era os cristãos-novos, judeus
convertidos forçadamente ao cristianismo, que praticassem em segredo o judaísmo. Porém,
tão logo, o rol de delitos inquisitoriais se ampliara, e o tribunal passou a investigar também os
praticantes da sodomia, um pecado abominável, “indigno de ser nomeado”, segundo as
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 17072. Este pecado se referia aos
amantes do mesmo sexo, mas não somente. O conceito era mais amplo e problemático, tendo
1
FRANCISCO, Papa. O nome de Deus é misericórdia. Papa Francisco; tradução de Catarina Mourão. -São
Paulo: Planeta do Brasil, 2016, p. 96.
2
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Senado Federal: Biblioteca
Digital. Livro V, título XVI, parágs. 958- 959. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/222291.
Acesso em: 21 de abril de 2018.
12
suas raízes construídas no mundo europeu pelos teólogos da cristandade, desde o período
medieval.
Na Idade Moderna, a sodomia alcançara uma definição mais cristalizada e foi utilizada
largamente pelos inquisidores do Santo Ofício enquanto: “coito anal com derramamento de
sêmen”. Sob esse eufemismo é que os inquisidores de Lisboa e seus representantes no além-
mar perscrutavam as denúncias, como o leitor verá ao longo deste estudo, valendo tanto para
casais homo quanto heterossexuais. Contra tamanho pecado, em sua legislação regimental de
1640, a Inquisição estabelecia que as penalidades mais rigorosas devessem incorrer sobre
aqueles considerados devassos, “escandalosos”, praticantes da sodomia durante muitos anos,
ou reincidentes após suas confissões com as devidas provas convincentes. Eram esses
culpados que estariam sob a alçada inquisitorial e que poderiam sofrer as mais variadas
punições: tortura, confisco de bens, açoites públicos, degredo, auto de fé e a temível pena
capital da fogueira3. E, apesar de Portugal não ter estabelecido uma sede do Santo Ofício em
sua colônia da América Portuguesa, sua ação se fez sentir por aqui através de uma ampla rede
de funcionários (familiares, comissários) que cumpriram muito bem suas funções4,
estimulando sempre a delação e a confissão entre a população colonial.
O interesse pela temática inquisitorial da sodomia foi logo de início, para o autor que
vos escreve, muito instigante. Das leituras que despertaram essa escolha, o primeiro texto foi
de Luiz Mott, Desventuras de um português no Brasil seiscentista5, em que o etno-historiador
desvenda o caso de Luiz Delgado, um tabaqueiro que frequentemente dava demonstrações de
seu homoerotismo com alguns rapazes pelas ruas públicas da Bahia e do Rio de Janeiro
seiscentista. Dentre eles estava um seu criado, com quem Delgado, numa sociedade
rigidamente desigual, fora acusado no Rio de “trazer debaixo de um chapéu de sol, com toda a
grandeza [...], passeando ombro a ombro pela cidade com o dito rapaz, andando amancebado
e sendo sodomita com ele”6 (uma postura intolerável naquela sociedade em que os mais
velhos e importantes mantinham-se, ao andar pelas ruas, alguns passos à frente dos criados,
escravos ou menores que vinham sempre atrás). Assim, o caso mostra a quebra das
hierarquias sociais que o sujeito histórico provocava em suas ações homoeróticas ao tratar
3
REGIMENTO DO SANTO OFÍCIO- 1640. In: Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Rio de
Janeiro, ano 157, n. 392, jul./set. 1996, p. 871. Disponível em: http://www.ihgb.org.br/rihgb.php?s=p. Acesso
em: 20 de maio de 2018.
4
Ver: CALAINHO, Daniela. Agentes da fé. São Paulo, Edusc, 2006, pp. 69-120 e; RODRIGUES, Aldair.
“Formação e atuação da rede de comissários do Santo Ofício em Minas colonial”. In: Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 29, nº 57.
5
MOTT, Luiz. Desventuras de um português no Brasil setecentista. In: O sexo proibido: escravos, gays e
virgens nas garras da Inquisição. Campinas, SP: Papirus, 1988, pp. 75-130.
6
Id. Ibid. p. 123.
13
7
ENZENSBERGER, Hans Magnus. O curto verão da anarquia: Buenaventura Durruti e a Guera Civil
Espanhola. Tradução Márcio Suzuki. – São Paulo: Companhia das Letras. 1987, p. 18.
8
MOTT, Luiz. O sexo cativo...op. cit., pp. 17-74.
9
VAINFAS, Ronaldo. Sodomia, amor e violência nas Minas Setecentistas. In: RESENDE, M. E. L. de,
VILLALTA, L. C. História de Minas Gerais: As Minas Setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica/Cia do Tempo,
2007, vol. 2, pp. 519-530.
10
MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro. As últimas horas do Santo Ofício. In: História da Inquisição
Portuguesa, 1536-1821. Lisboa: Esfera dos Livros, 2013, pp. 429-448.
11
VAINFAS, Ronaldo. História das mentalidades e história cultural. In: CARDOSO, C. & VAINFAS, R. (Org.).
Domínios da História: ensaios de metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, pp. 127-162.
12
PEREIRA, Ana Margarida Santos. A Inquisição em Portugal e no Brasil. In: A Inquisição no Brasil: aspectos
da sua actuação nas capitanias do sul de meados do séc. XVI ao início do séc. XVIII. FLUC: Coimbra, 2006, pp.
39-41.
14
13
SILVA, Sabrina Alves da. “Execrados ministros do demônio”: O delito de solicitação em Minas Gerais (1700-
1821). Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de São João del-Rei, 2016.
14
GOMES, Verônica de Jesus. Vício dos Clérigos: A Sodomia nas Malhas do Tribunal do Santo Ofício de
Lisboa. Dissertação Mestrado, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.
15
LIMA, Wallas Jefferson. O entremeio de uma vida: o pecado de sodomia à luz do processo inquisitorial de
Luís Gomes Godinho (1646-1650) /Dissertação de mestrado. Irati, PR: [s.n.], 2014.
16
ROCHA, Cássio Bruno de Araújo. Masculinidades e Inquisição: Gênero e Sexualidade na América
Portuguesa. Jundiaí, Paco Editorial: 2016.
17
PINTO, Matheus Rodrigues. Reconstruindo as muralhas de Sodoma: homossexualidade no mundo luso-
brasileiro no século XVII (dissertação de mestrado). Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, 2015.
18
SILVA, Ronaldo Manoel da. Seja declarado por convicto e confesso no crime de sodomia: uma microanálise
do processo inquisitorial do artesão Manoel Fernandes dos Santos (1740-1753). Dissertação de mestrado-
Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife, 130 f., 2018.
19
CONNELL, Robert W. ; MESSERSCHMIDT, James W. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito.
Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 424, janeiro-abril/2013, pp. 241-249.
15
principalmente para aqueles estudantes que não têm condições de se deslocarem até os
arquivos de Portugal. Dessa maneira, através desse recurso virtual, esta pesquisa investigou as
denúncias referentes ao delito de sodomia nos Cadernos do Promotor e Documentação
Dispersa de Lisboa, catalogadas por Maria Leônia C. de Resende e Rafael José de Sousa com
a cota exata que dá acesso a elas no site. Além de tais fontes, foi realizado um levantamento
completo das denúncias de Minas Gerais, fólio a fólio, contidas nos Cadernos do Nefando nº
16, livro 143; caderno nº 17, liv. 821; c. nº 19, liv. 144; c. nº 20, liv. 145; c. nº 21, liv. 146,
objetivando a sistematização não só das denúncias referente às Minas, mas também de todas
as demais capitanias do Brasil em que incorreram a ação do Santo Ofício no século XVIII.
Todos os cinco Cadernos de Nefandos dão em média 3.250 fólios. A estatística pode ser
ainda maior, tendo em vista que o caderno nº 18 não foi localizado no ANTT20.
O historiador Ronaldo Vainfas alerta quanto aos possíveis problemas inerentes à
documentação inquisitorial, pois esta pode espelhar não o que de fato ocorria nas relações
sexuais, “e sim o que os agentes do poder que produzia as fontes achavam por bem
registrar”21. Nos processos e denúncias de sodomia, apesar dos riquíssimos relatos, prevalece
narrativas acerca da quantidade de cópulas, ocorrência ou não de ejaculação e o número de
parceiros dos acusados. Tudo isso porque o que a Inquisição buscava comprovar era a
contumácia e pertinácia dos réus. Contudo, contornadas as armadilhas, as fontes inquisitoriais
têm muito a nos oferecer. “É frequente, em certos casos, a descrição de partes genitais, dos
gestos eróticos, dos atos sexuais [...]. Descuido dos notários, fortuna do historiador que, com
base nesses documentos, habilita-se a lançar um olhar indiscreto sobre o encontro dos
corpos”22.
Quanto à metodologia, a análise das fontes considerou os métodos qualitativos da
abordagem micro-histórica23. Essa análise leva em consideração os comportamentos por meio
dos quais as identidades coletivas se constituem e se deformam, com foco não somente nos
20
Em 1990 foi, pela primeira vez, registrado que não tinha sido localizado o caderno 18 de nefandos, que abarca
o recorte desta pesquisa, situação que se manteve de 2009 até o presente. Disponível em:
https://digitarq.arquivos.pt/details?id=2299846 . Acesso em: 10 de dezembro de 2017.
21
VAINFAS, Ronaldo. Moralidades Brasílicas: deleites sexuais e linguagem erótica na sociedade escravista. In:
SOUZA, Laura de Mello (org.). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1997,
vol.1, p. 242.
22
Id. Ibid. pp. 245-246.
23
“A micro-história italiana constituiu-se antes numa original e inovadora proposta para a redefinição radical da
prática contemporânea do ofício de historiador, a partir, sobretudo, da reivindicação de três paradigmas
metodológicos centrais, que em conjunto constituem o esqueleto epistemológico desta corrente historiográfica.
Em primeiro lugar, o paradigma da mudança da escala de observação; em segundo lugar, o paradigma da
análise exaustiva e intensiva do universo micro-histórico recortado para construir descrições densas dos fatos e
processos estudados; e finalmente o paradigma indiciário [...] baseado na decifração de certos indícios
históricos”. In: ROJAS, Carlos Antonio Aguirre. Micro-história italiana: modo de uso. Londrina: Eduel, 2012.
pp. 9 e 11.
16
comportamentos dos atores individuais ou coletivos que foram bem-sucedidos, mas também
na pluralidade de destinos particulares dos possíveis. Assim, o trabalho procura captar, através
da fonte inquisitorial, a rede de poderes do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, suas
diferentes vozes e tramas, assim como as incertezas, fracassos, estratégias e o campo de
possibilidades em que os sujeitos históricos fazem suas escolhas ou inventam um sentido do
qual tomam consciência24.
Carlo Ginzburg sugere algumas precauções a serem adotadas nas análises das fontes
inquisitoriais, por terem sido elas mediadas pelo crivo dos inquisidores. O autor confessa
certa identificação emocional que teve com os réus em alguns processos em que analisava25.
Nesse sentido, muitos historiadores não conseguem escapar da necessidade de se
posicionarem contra as ações do Santo Ofício e, consequentemente, a favor dos réus da
Inquisição, pois, o resultado do trabalho do historiador também é mediado por sua visão de
mundo, seus valores ideológicos, morais e éticos26. Porém, para não cair nos riscos dessas
implicações, Ginzburg assinala que os documentos inquisitoriais devem ser lidos como o
produto de uma inter-relação peculiar, claramente desequilibrada, pois não são neutros e
podem não fornecer informações objetivas ao historiador. E, para decifrá-los, “devemos
aprender a captar, por baixo da superfície uniforme do texto, uma interação sutil de ameaças e
temores, de ataques e recuos. Devemos aprender a desenredar os diferentes fios que formam o
tecido factual desses diálogos”27.
Posto isso, o trabalho apresenta-se dividido em três capítulos.
O capítulo 1 – DE SODOMA ÀS MINAS GERAIS – revisita a historiografia da
temática inquisitorial no delito de sodomia, passando pela condenação da Igreja Católica,
desde a Idade Média, até o contexto de ocupação inicial das Minas Gerais. Discute os
principais momentos de formulação e definição do conceito que servira para embasar as
legislações tanto do Estado português quanto dos Regimentos do Santo Ofício nas
perseguições aos praticantes do nefando. Mostra ainda como tais condenações se fizeram
sentir nas Constituições Eclesiásticas do Brasil.
24
REVEL, Jacques. Microanálise e construção do social. In: REVEL, Jacques (Org). Jogos de escalas: a
experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998, pp. 25- 38.
25
GINZBURG, Carlo. O Inquisidor como Antropólogo. Tradução de Jônatas Neto. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 1, nº21, p. 09-20, set 90/ fev. 91.
26
FERNANDES, Alécio Nunes. Da historiografia sobre o Santo Ofício Português. História da Historiografia:
International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 5, n. 8, p. 22-48, ago. 2011. ISSN
1983-9928. Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/259/235 . Acesso
em: 23 set. 2017, p. 23.
27
GINZBURG, Carlo. O Inquisidor como Antropólogo...op. cit., p. 15.
17
CAPÍTULO 1
DE SODOMA ÀS MINAS GERAIS
Nefando, nefandus: coisa indigna de se exprimir com palavras: coisa da qual não se
pode falar sem vergonha. Pecado nefando. Chama-se o demônio Íncubo, ou Súcubo,
de servir hora de homem, hora de mulher no ato carnal. Torpeza tão enorme, que
até o demônio a aborrece.
[...]Sodomia: pecado, por antonomásia, nefando, e por consequência indigno de
definição da sua torpeza.
Raphael Bluteau,
Vocabulário Português e latino (1716-1720).
28
Há controvérsias quanto a essa expressão, como veremos melhor adiante. O doutor Pedro Damião (1007-
1072), crítico feroz dos pecados da carne, fazia a associação direta entre o diabo e a sodomia, que para ele
ultrapassava em gravidade todos os demais pecados e introduzia o demônio, instigador da luxúria, nos corpos e
mentes. Já Santa Catarina de Siena (1347-1380), escritora e pregadora, declarou que os sodomitas tinham como
professores os demônios. No entanto, “não podem eles mesmos suportar este pecado, pois tiveram uma natureza
angelical, em razão da qual viram as costas para não ver cometer tão enorme pecado”. In: MOTT, Luiz. Del
malo pecado al pecado intrínsecamente malo: la radicalización fundamentalista de la homofobia católica desde
los tiempos de la Inquisición hasta Benedicto XVI. História, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 4-23, 2010, p. 8. A
expressão da sodomia como sendo um pecado feio até mesmo ao Demônio, porém, aparecerá na Constituição
Eclesiástica da Bahia, em 1707. Voltaremos a comentar sobre isso.
29
Scientia sexualis (ciência sexual) é um conceito utilizado por Foucault para caracterizar os procedimentos
históricos para se produzir uma “verdade sobre o sexo”. O autor observou que no Ocidente as práticas sexuais
foram, ao longo dos séculos, sendo controladas por “aparelhos de reclusão”, como a Igreja que através da
confissão produzia uma “verdade sobre o sexo”. Mas foi, sobretudo, a partir do desenvolvimento das ciências
médicas que o “sexo” tornou-se objeto científico: “o confessionário foi substituído pelo divã”. E, “a psicanálise
pode ser vista como a última de uma série de práticas discursivas que não buscou silenciar ou reprimir a
sexualidade, e sim fazer com que as pessoas falassem sobre ela (logo, sobre si mesmas) de modo particular. A
„scientia sexualis’ do Ocidente, como Foucault a chamava (em contraste com a „ars erotica’ da cultura de países
como China, Japão e Índia, e do Império Romano, cuja base era a multiplicação dos prazeres), obstinava-se em
encontrar a (vergonhosa) verdade sobre a sexualidade e, para isso, utilizava o processo de confissão como
método-chave”. In: SPARGO, Tamsin. Foucault e a teoria queer: seguido de ágape e êxtase: orientações pós-
seculares/tradução Heci Regina Candini. -1. ed.- Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017, p. 16.
19
ser vista como categoria construída do saber, e não como identidade descoberta”30. Foucault
priorizava o papel das instituições e dos discursos na construção das sexualidades. Em sua
perspectiva, o saber sobre nossa sexualidade seria fruto de uma produção cultural e não
natural, e ligado a uma relação complexa de poder. Foucault estabeleceu uma distinção entre
sodomia e homossexualidade, ao analisar o sodomita como mero praticante de atos jurídicos
condenáveis pela Igreja e pelo Estado, enquanto que o homossexual era tido como uma
“espécie”, um doente, anormal, “um tipo de ser humano anômalo definido por uma
sexualidade perversa”31, não apenas sujeito jurídico de um ato criminoso. Dessa forma:
30
SPARGO, Tamsin. Foucault e a teoria queer...op. cit., p. 18.
31
Id. Ibid.
32
Id. Ibid., pp. 18 e 19.
33
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber, tradução de Maria Tereza da Costa
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1988, pp. 43 e 44.
34
ARIÈS, Philippe. Reflexões sobre a história da homossexualidade. In: ARIÈS, Philippe; BÉJIN, André (orgs.).
Sexualidades ocidentais. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, 3ª ed., p. 80.
20
incertezas”35. As incertezas que o autor nos fala surgiram de acordo com a prática jurídica do
Tribunal do Santo Ofício da Inquisição que ora poderia considerar os denunciados como meros
praticantes de molícies, ora enquanto sodomitas contumazes, “pois no entender dos
inquisidores nem todo fanchono era isento de culpa, mesmo não praticando a cópula anal, e
nem todo indivíduo que a cometesse era culpado de sodomia, a exemplo dos violentados, dos
episódicos e dos sinceramente arrependidos”36. E continua:
Michel Foucault tem razão, até certo ponto, quando vislumbra no antigo sodomita um
criminoso acusado de certo ato sexual; a cópula anal era, com efeito, a principal
referência para a decifração da sodomia, abominável pecado. Mas, no domínio da
Inquisição, o sodomita podia ser menos ou mais do que o simples praticante daquele
coito: podia sê-lo menos, se fosse apenas culpado de molícies; podia sê-lo mais, se
praticasse a sodomia com devassidão, contumácia, indiferente aos castigos do Céu e
da Terra, irredutível a qualquer emenda. Uns e outros eram, contudo, passíveis da
punição inquisitorial, punição que inúmeras vezes deixava de lado a prova dos
atos e debruçava-se sobre as intenções e o caráter dos indivíduos, como aliás
convinha a um tribunal de fé37.
35
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. – 3ª ed. – Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p. 194.
36
Id. Ibid., p. 339.
37
Id. Ibid. (grifos nossos).
38
MOTT, Luiz. Cripto-sodomitas em Pernambuco colonial. Revista Anthropológicas, ano 6, volume 13(2):
2002, p. 7.
39
MOTT, Luiz. Pagode português: a subcultura gay nos tempos inquisitoriais. Ciência e cultura, vol. 40, 1988,
pp. 120-139.
40
BOSWELL, John. Cristianismo, Tolerancia Social y Homosexualidad: los gays en Europa occidental desde el
comienzo de la Era Cristiana hasta el siglo XIV. Editores SA, Barcelona, 1998.
21
desde sempre, pois “existem essências humanas universais ou naturais subjacentes a qualquer
análise das expressões sexuais de qualquer cultura em diferentes tempos e espaços,
identidades que seriam dadas pela natureza”41. Tal corrente recebe duas críticas principais. A
primeira diz respeito a ela tecer uma história marcada pela linearidade e pela teleologia. A
segunda crítica refere-se à construção de mitos, heróis e mártires do passado movida por
causas homossexuais do presente. Já a corrente construcionista segue de perto o pensamento
foucaultiano de que a homossexualidade seria mesmo uma construção do século XIX, burguês
e industrial. Ronaldo Vainfas leva em consideração a posição construcionista, mas, como já
visto, rejeita que o sujeito sodomita tenha sido apenas praticante de atos que não
caracterizavam o cerne da identidade de seus praticantes. Segundo Cássio Bruno Rocha:
No entanto, ainda que a sodomia não se resumisse a certos atos eróticos proibidos
(mais ou menos graves se praticados com determinados parceiros) e envolvesse
também comportamentos de gênero diversos que pudessem estar em desacordo com
os padrões esperados de masculinidade e feminilidade, a hipótese de Foucault não
ficaria invalidada. A diferença profunda entre homossexualidade e sodomia persiste,
qual seja, de que a prática homoerótica experimentada por inúmeros homens e
mulheres, antes do final do século XIX, não era percebida, sentida e experimentada
como a verdade mais interna da identidade daqueles indivíduos como sujeitos42
Seja como for, a palavra sodomia era sinônimo do algo nocivo. Seu uso constante
manteve sua função cultural: dignificar de modo específico as relações ditas “naturais”,
atualmente denominadas heterossexuais, cabendo ao sodomita o papel de impuro, pecador,
marginal. “O uso da palavra era uma forma de inferiorização do praticante de atos
homoeróticos [...]. Essas palavras não buscavam outra coisa senão a supressão das diferenças,
pela imposição de um único modelo sexual considerado legítimo”43.
41
ROCHA, Cássio Bruno de Araújo. Masculinidades e Inquisição... op. cit., p. 156.
42
Id. Ibid. 164.
43
LIMA, Wallas Jefferson de; SILVA, Edson Santos. “Homo eroticus: considerações acerca do conceito de
Sodomia nos processos da Inquisição Portuguesa”. Revista Esboços, Florianópolis, v. 23, n. 35, p. 265-284, set.
2016, pp. 269 e 270.
22
turba irada de homens moradores de Sodoma tentou invadir a casa de Ló com a intenção de
violentar os hóspedes angélicos. Ló saíra para defendê-los, oferecendo suas duas filhas que
ainda “não conheciam homens”, mas o grupo lançou-se contra ele, ao passo que os anjos o
puxaram rapidamente para dentro da casa e feriram os agressores, milagrosamente, com a
perda da visão. No dia seguinte, depois dos anjos apressarem a saída de Ló, sua esposa e suas
duas filhas da cidade por atestarem sua bondade e integridade, Sodoma teria sido destruída
com uma chuva de fogo e enxofre44.
A turba enfurecida de moradores atacara os hóspedes angélicos com o intuito de
estuprá-los, dando prova cabal de quão costumeiros eram em praticar o coito homossexual, o
que causou a condenação impiedosa por parte de Deus. Essa interpretação emergiu através
dos teólogos da Igreja Católica, sobretudo a partir do final do século IV, e serviu para
justificar a perseguição aos amantes do mesmo sexo no ocidente cristão ao longo da história.
Entretanto, a associação da destruição de Sodoma com o sexo entre homens é contestada por
recentes exegeses bíblicas45. Estas dizem que a reprovação divina era fruto da violação do
importantíssimo código de hospitalidade vigente à época e não das supostas atividades
sexuais inapropriadas daquela população. A importância da hospitalidade, caridade e
compaixão para com os estrangeiros ou viajantes é registrada em vários relatos bíblicos. Isso
num contexto de extrema insegurança e dificuldades pelo caminho, em que eram raros os
números de pousadas e estalagens46. Portanto, segundo os estudos exegéticos, a causa da ira
divina – que já era anterior ao episódio com Ló, o qual foi só o estopim – estaria mais
relacionada com a inospitalidade do povo sodomita do que com sua suposta depravação
sexual. “Seja como for, o Antigo Testamento continha reprovações explícitas às relações
masculinas, a começar pelo Levítico, que considerava „abomináveis‟ as relações sexuais entre
dois homens, como se um deles „fosse mulher‟”47.
Porém, este mesmo livro nos revela, em vez de cenas de apedrejamento, um caso de
forte teor homoerótico entre Davi e Jônatas. Para alguns biblistas a relação de amor entre eles
era meramente espiritual, a que rotulam de ágape, mas exegetas como Tom Horner 48 revelam
44
BÍBLIA SAGRADA ONLINE. Antigo Testamento: Gênesis, 18; 19. Disponível em:
https://www.bibliaon.com/genesis_19/ . Acesso em: 13 de março de 2018.
45
BOSWELL, John. Cristianismo, Tolerancia Social y Homosexualidad: los gays en Europa occidental desde el
comienzo de la Era Cristiana hasta el siglo XIV. Editores SA, Barcelona, 1998.
46
PINTO, Matheus Rodrigues. Reconstruindo as muralhas de Sodoma: homossexualidade no mundo luso-
brasileiro no século XVII (dissertação de mestrado). Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, 2015, pp.
33-53.
47
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados...op. cit., p. 195.
48
HORNER, Tom. O sexo na bíblia. Lisboa, Futura, 1980 apud MOTT, Luiz. A revolução homossexual: o
poder de um mito. In: Revista USP, São Paulo, n.49, pp. 40-59, março/maio 2001, p. 48.
23
que se tratava mesmo de um amor inspirado em “eros”. Quando Jônatas morre, Davi lamenta:
“meu coração chora por tua causa, meu irmão Jônatas; quão agradável me eras: mais delicioso
me era o teu amor do que o amor das mulheres”. De acordo com Horner, “tais homens não
eram de forma alguma efeminados: eram guerreiros amigos, essencialmente bissexuais” 49.
Algumas outras passagens bíblicas serviram de embasamento para a condenação das
sexualidades, em geral, ao longo dos séculos. Na Bíblia, existem duas histórias gráficas que
tratam de como o mal entrou no mundo e ambas estão relacionadas ao sexo e à sedução 50. A
mais conhecida delas refere-se à alegoria da criação, quando Deus expulsa Adão e Eva do
paraíso por comerem, induzidos por uma serpente, do fruto do conhecimento do bem e do
mal: e “os olhos dos dois se abriram, e perceberam que estavam nus; então juntaram folhas de
figueira para cobrir-se” 51. Para o teólogo J. Harold Ellens, tal episódio “levou por séculos os
crentes na Bíblia a se sentir ambivalentes e preocupados sobre a sexualidade, pois eles
acreditavam que esta história indicava que Deus tinha uma visão negativa do ato sexual
52
humano” . Embora essa passagem não seja explicitamente sexual, deu margem para que
assim fosse interpretada. Por outro lado, uma passagem como o Cântico dos Cânticos ou
Cânticos de Salomão, claramente de celebração sexual, fora discutida para encobrir seu teor
erótico e luxurioso. Para tamanha façanha, alguns homens da Igreja, idealizadores do celibato
– principalmente depois de São Jerônimo e Santo Agostinho – tiveram que se desdobrar.
Assim, foi estabelecido por toda cristandade que o Cântico dos Cânticos falava sobre o amor
de Deus pela Igreja e vice-versa53.
De volta ao mito de Sodoma, John Boswell54 defende, através de exegeses bíblicas,
certa tolerância inicial do cristianismo para com os sodomitas, que, porém, ficou mais hostil
por razões externas não relacionadas aos ensinamentos cristãos. Entretanto, Jeffrey Richards
discorda do autor afirmando que: “no período inicial da Idade Média, a punição era a
penitência; no período posterior, a fogueira. Mas nunca foi questão de permitir aos
homossexuais prosseguir em sua atividade homossexual sem punição” 55.
Matheus Rodrigues Pinto, baseado principalmente nos estudos de Boswell, busca
49
Id. Ibid., p. 48.
50
Gênesis 3: 1-24; Gênesis 6: 1-8. Ver: ELLENS, J. Harold. O sexo na Bíblia: novas considerações. Fonte
Editorial. São Paulo. 2011, p. 117.
51
BÍBLIA SAGRADA ONLINE. Antigo Testamento: Gênesis 3: 1-24. Disponível em:
https://www.suabiblia.com/genesis_3/. Acesso em: 13 de março de 2018.
52
ELLENS, J. Harold. O sexo na Bíblia...op. cit., p. 124.
53
Id. Ibid., p. 95-96.
54
BOSWELL, John. Cristianismo, Tolerancia Social y Homosexualidad...op. cit.
55
RICHARDS, Jeffrey. In: Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1993, p. 152.
24
[...] ultrapassa a sordidez de todos os vícios. É a morte dos corpos, a destruição das
almas. Este vício possui a carne, extingue a luz da mente. Expulsa o Espírito Santo
do templo do coração humano, introduz o Diabo, que incita à luxúria. Induz ao erro,
remove completamente a verdade da mente que foi ludibriada, estende ciladas no
caminho de um homem e, quando ele cai na armadilha, a bloqueia de modo que ele
não possa escapar; abre o inferno, fecha a porta do paraíso; converte o cidadão da
Jerusalém celestial em um herdeiro da Babilônia infernal. Este vício tenta derrubar
as paredes da casa celestial e trabalha na restauração das muralhas reconstruídas de
Sodoma, pois viola a sobriedade, mata a modéstia, sufoca a castidade e extirpa a
irreparável virgindade com a adaga do contágio impuro. Conspurca tudo,
56
PINTO, Matheus R. Reconstruindo as muralhas de Sodoma... op., cit., pp. 69-71.
57
Id. Ibid., pp. 72-73.
58
Id. Ibid., p. 75.
25
desonrando tudo com sua nódoa, poluindo tudo. Não permite nada puro, nada limpo,
nada permite no mundo, pois, como diz o Apóstolo, “Para os puros, todas as coisas
são puras, mas para os impuros e descrentes, nada é puro” 59.
O opúsculo fervoroso de Damião, entretanto, não explica claramente do que se trata tal
crime tão abominável e avança pouco na definição que até então se entendia sobre os atos
contra natura. A condenação é mais forte do que a própria definição. Apesar disso, não se
restringe a delinear apenas o conceito de sodomia. Pedro Damião expressa a gradação de erros
sexuais relacionados às práticas “homossexuais”: a masturbação consigo próprio; a
masturbação mútua; a fornicação interfemoral (coxeta); e o completo ato contra a natureza,
considerado o erro mais grave e, por isso, julgado de maneira mais severa. Assim, continua o
autor, “a ardilosa fraude do Demônio inventa esses degraus de ruína de tal forma que
quanto mais a alma infeliz avança sobre eles, mais profundamente ela submerge nas
profundezas do poço do inferno”60.
No contexto do processo de sacramentalização do casamento e da cópula conjugal, a
partir dos séculos XI e XII, “a moral sexual cristã unificar-se-ia por meio da noção sintética
da luxúria”61, estabelecendo uma ampla gama de transgressões morais, contrárias a cópula
legítima entre esposos que visava tão somente à procriação. O célebre Santo Tomás de
Aquino, no século XIII, em sua grandiosa obra Suma Teológica, procura classificar os vícios
do pecado da luxúria que “consiste no gozo do prazer sexual em desacordo com à razão
reta”62. Aquino elabora a divisão da luxúria em seis espécies: a fornicação simples; o
adultério; o incesto; o estupro; o rapto; e o vício contra a natureza. O Doutor Angélico
empreende ainda um esforço analítico para esquematizar os vícios contra a natureza em
quatro categorias, a saber: a molície ou masturbação63; a bestialidade; a sodomia; e o sexo
heterossexual não reprodutivo. Não só por afetar a reta razão, o pecado contra a natureza é
caracterizado por impedir a geração da prole, o que eleva o grau de sua torpeza:
Há sempre uma espécie determinada de luxúria onde houver uma razão especial de
deformidades, que torne o ato sexual indecente. Isso pode ocorrer de dois modos:
primeiro, quando choca com a reta razão, como é o caso de todos os vícios de
luxúria; depois, quando, além disso, se opõe à própria ordem natural do ato sexual
59
DAMIÃO, Pedro. “Liber Gomorrhianus, ad Leonem IX”. In: Patrologia Latina, vol. 145, p. 175 apud PINTO,
Matheus. Reconstruindo as muralhas de Sodoma... op. cit., pp. 75-76.
60
PINTO, Matheus R. Reconstruindo as muralhas de Sodoma... op. cit., p. 77.
61
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados... op. cit., p. 196.
62
AQUINO, Santo Tomás de. Suma Teológica: II seção da II parte - questões 123-189: volume 7/ Santo Tomás
de Aquino. -2 ed.- São Paulo: Edições Loyola, 2013, p. 307.
63
Em vista dos casos de sodomia perfeita: “mais documentados são os casos de masturbação recíproca, chamada
pelos teólogos antigos de „molice ad invicem‟ e popularmente de „fazer as sacanas‟ ou simplesmente
„sacanagem‟”. In: MOTT, Luiz. O sexo proibido... op. cit., p. 37.
26
próprio da espécie humana, o que constitui o chamado vício contra a natureza. Isso
pode se dar de muitas formas. Primeiramente, se se procura a ejaculação, sem
conjunção carnal, só pelo prazer sexual, o que constitui o pecado da impureza, que
outros chamam de masturbação. – Em segundo lugar, se se realiza o coito com um
ser que não é da espécie humana; e se chama de bestialidade. – Em terceiro lugar,
se se mantém relação com o sexo indevido, por exemplo, homem com homem,
ou mulher com mulher, como lembra o Apóstolo e se chama sodomia. – Em
quarto lugar, quando não se respeita o jeito natural da cópula, seja utilizando um
instrumento não devido, seja empregando outras formas monstruosas e bestiais de
relacionamento carnal64.
64
AQUINO, Santo Tomás de. Suma Teológica... op. cit., pp. 331- 332, grifos nossos.
65
Id. Ibid., p. 334.
66
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados...op. cit., p. 196.
67
PINTO, Matheus R. Reconstruindo as muralhas de Sodoma... op. cit., p. 82.
68
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados...op. cit., p. 197.
27
tinha a menor população do mundo por esse motivo. Bernardino e outros pregadores
atribuíram o início da peste negra, que assolara a Europa e levara ao declínio populacional, à
sodomia69. Os sodomitas são apontados, mais uma vez, como motivadores da cólera divina
que caíra sobre a terra. Vemos assim, ao longo dos séculos, que as práticas homoeróticas
foram marcadas por intensas associações às calamidades (guerras, fome, pestes) que
devastaram os povos ocidentais, interpretadas como retaliações da natureza divina contra atos
tão abomináveis. O desperdício de sêmen pelos sodomitas passaria ser ainda mais ameaçador
dado o contexto europeu de queda populacional70. Desperdiçar esperma era tido como um
atentado à reprodução da vida, um atentado à sobrevivência do Homo sapiens.
Assim, os teólogos medievais e, mais tarde, os inquisidores da época moderna,
dedicaram-se excessivamente ao tema da cópula anal com derramamento de sêmen enquanto
ato definidor da sodomia, tanto nas relações homo quanto heterossexuais. Segundo Ronaldo
Vainfas: “os saberes eruditos não limitaram sua concepção de sodomia à cópula anal, mas
prisioneiros desta última, ficaram a meio caminho da posterior noção de
homossexualidade”71. Desta forma, a partir do século XVI, em Portugal, o Tribunal do Santo
Ofício da Inquisição encarregou-se de perscrutar nas denúncias e processos exclusivamente a
sodomia perfeita, isto é:
Neste trecho, Luiz Mott nos mostra a maioria dos atos englobados pela Inquisição à
noção sintética de molície, tais como: a masturbação solitária ou recíproca73, a cópula
interfemoral (coxeta)74 e a felação75, além do conatus76 e da cunilíngua77. Mas estes atos de
69
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação...op. cit., pp. 149 e 150.
70
MOTT, Luiz. A revolução homossexual: o poder de um mito. In: Revista USP... op. cit., p. 52.
71
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados...op. cit., p. 198.
72
MOTT, Luiz. Os Filhos da dissidência: o pecado da sodomia e sua nefanda matéria. In: Revista Tempo,
Universidade Federal Fluminense, v. 6, nº 11, p. 189-204, jul. 2001, p. 191.
73
“Desde o século XVI a masturbação já era popularmente chamada de punheta. Nos processos inquisitoriais,
essa prática é cognominada de pulsão ou fazer pulsão ou polução (do verbo „poluçar‟), e, quando realizada
mutuamente, referiam-na como pulsão ad invicem, isto é, „um para o outro‟[...]. O povo, além do termo punheta,
referia-se a esse vício com a expressão „fazer as sacanas‟, ou simplesmente sacanagem, também referido como
maganagem ou velhacaria”. In: MOTT, Luiz. Os Filhos da dissidência...op. cit., pp. 202-203.
74
“Termo corrente desde o século XVI, e que os Inquisidores e, depois, os sexólogos denominaram de actus
intra femura, ou sodomia per crura, isto é, cópula interfemoral ou simplesmente „nas coxas‟”. In: MOTT, Luiz.
Os Filhos da dissidência...op. cit., p. 193.
28
molícies não seriam incluídos no Regimento de 1613, que analisaremos em pormenores mais
adiante, o que comprovava certo desinteresse da Inquisição sobre tais práticas sexuais, ainda
que fossem contrárias a natureza. Entretanto, conforme Ronaldo Vainfas: “prova sintomática
de sua hesitação, o Santo Ofício não a excluiria totalmente: que os inquisidores continuassem
a tratar de molícies se, julgando casos de sodomia viesse à baila a ocorrência daqueles atos e
poluções”78. No cerne da questão estava, portanto, o desperdício do esperma, líquido seminal
e matéria-prima do crime de sodomia, segundo Mott: “licor diabólico para os iracundos
Inquisidores”, porém “néctar dos deuses para os amantes do mesmo sexo”79.
Conforme Wallas Jefferson de Lima, “ao insistir no sexo anal com emissão de sêmen
intra vas como autêntico ato sodomítico, a Inquisição acabou prisioneira de uma anatomia dos
atos sexuais, da mecânica ejaculatória, tomando por base o modelo heterossexual de cópula”.
Com isso, prossegue o autor: “talvez sem se dar conta, criou um álibi para que muitos homens
escapassem da pena máxima, ou seja, a fogueira. A Inquisição tornou-se vítima de sua própria
armadilha, dado que, por vezes, os sodomitas burlavam sua casuística por meio de
estratagemas”80, como por exemplo, evitando dizer que haviam derramado sêmen no vaso
traseiro do parceiro, ou que não se lembravam da quantidade de vezes que praticaram o
75
A felação se referia ao sexo oral, também conhecida “como effusio seminis in ore furonis (efusão de sêmen na
boca do ladrão)”. Para Luiz Mott “por incrível que possa parecer, introduzir o pênis e derramar esperma dentro
da boca de outro homem foi considerado pelos inquisidores como „invenção diabólica‟, mas não verdadeiro
crime de sodomia”. In: MOTT, Luiz. Os Filhos da dissidência...op. cit., p. 198. No entanto, segundo Gregório
Saldarriaga, baseado em Bartolomé Bennassar, durante muito tempo a felação foi associada à sodomia, inclusive
para Santo Agostinho que considerava qualquer penetração extra vas natura como pecado de sodomia. In:
SALDARRIAGA, Gregório. Sujeitos sem história, prática calada e marcas apagadas: a sodomia imperfeita ante
o Santo Ofício do México. Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 5, n. 9, p. 9-32, Dec. 2004, p. 29.
76
Connatus ou conatus: no latim, conatus -us subst. m. “I- 1) esforço (físico ou moral) 2) Empenho, tentativa,
empresa, impulso. II- Sent. figurado: 3) Inclinação, tendência” . A palavra tem sua origem no verbo conor -ari, -
atus sum v. dep. tr. “II- Sent. figurado: 2) Empreender, tentar, ensaiar”. In: FARIA, Ernesto. Dicionário escolar
latino português. 17 ed. Belo Horizonte: 2003, p. 218-233. Daí, no latim medieval, tenha sido empregado em
documentos da inquisição com o sentido de “tentativa de penetração e ejaculação fora do vaso prepóstero”. In:
MOTT, Luiz. A inquisição nas minas do Cuyabá. Ñanduty, Dourados, v. 2, n. 2, p.8-17, jan. 2014, p. 12. Para
Mott, “connatus era o nome dado pelos inquisidores a essas tentativas malsucedidas de penetração e que mesmo
ocorrendo „derramamento de sêmen às bordas do vaso traseiro, é considerado crime distinto do de sodomia‟”. In:
MOTT, Luiz. Os Filhos da dissidência...op. cit., p. 193. Mais referências são encontradas na obra Vota Io, de
Joannes Dominicus Raynaldus (1628- 1713): “conatus cum acto exteriori habetur in consideratione in vitio
sodomitico, quando actus non est perfectus ob aliquod impedimentum facti” (“conatus” com ato exterior é tido
em consideração no crime sodomítico, visto que o ato não é completado por algum impedimento do feito).
“Conatus in atrocissimis non punitur aeque ac si actus fuisset perfectus, licet fuerit deuentum ad actum
proximum” (A tentativa não é punida como nos casos mais graves, em que o ato se consumou, ainda que se
tenha chegado perto dele). In: RAYNALDUS, Joannes Dominicus. Vota Io. Roma: Typographia Reverendae
Camerae Apostolicae, 1714, p. 172.
77
Ato de buscar e dar prazer sexual com a boca e a língua na vulva da mulher. Cunilíngua: do latim, cunnilingus
-i, substantivo masculino. O dicionário Thesaurus informa como origem a junção das palavras cunnus (vulva), e
lingo -ere (v. tr. lamber, sugar, chupar). In: FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino português...op. cit., p.
566.
78
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados...op. cit., p. 267.
79
MOTT, Luiz. Os Filhos da dissidência... op. cit., p. 192.
80
LIMA, Wallas Jefferson. O entremeio de uma vida...op. cit., p. 66.
29
Considerada também uma união torpe, a sodomia feminina (sodomia foeminarum) foi
motivo de dilemas entre os sábios da cristandade, pois a mulher não possuía o falo masculino,
sendo assim incapaz de desperdiçar sêmen no “vaso natural” ou “traseiro” de sua parceira,
logo não se encaixava na definição do delito. Por outro lado, no âmbito social e popular, a
concepção da sodomia e identificação dos nefandos era menos problemática. Fossem homens
ou mulheres que cultivassem uma amizade excessiva ou buscassem prazer, carícias, afagos e
abraços com indivíduos do próprio gênero, eram recriminados e hostilizados pela sociedade,
que era ainda mais hostil contra os machos que, através dos hábitos ou vestimentas, se faziam
de fêmeas e vice-versa82.
Ligia Bellini, em suas pesquisas relacionadas à sodomia feminina, mostra como o
corpo da mulher foi abordado de forma enigmática e monstruosa nas elaborações de teólogos,
juristas e inquisidores. A autora analisa o extenso tratado do clérigo italiano Luigi Maria
Sinistrari, escrito no final do século XVII, quase um século depois da primeira visitação do
Santo Ofício português ao Brasil, em que definia que a sodomia entre duas mulheres era
cometida quando aquela que tivesse o clitóris mais desenvolvido penetrasse o vaso feminino
de sua parceira, mesmo sem ejaculação seminal. Assim, o clérigo abandonara a questão
teológica do vaso impróprio e desperdício de sêmen enquanto objetivo central da discussão83.
Dessa forma, o tratado de Sinistrari sobre a sodomia foeminarum tinha como paradigma a
anatomia masculina, desconsiderando completamente as especificidades do corpo da mulher:
81
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados...op. cit., p. 333.
82
Id. Ibid.., p. 198.
83
BELLINI, Ligia. A coisa obscura: mulher, sodomia e inquisição no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense,
1989, pp. 45 e 69.
30
84
SINISTRARI, Luigi-Maria. De sodomia (Tratactus in quo exponitur doctrina nova de sodomia faeminarum a
tribadismo distincta), Paris, Bibliotheque des Curieux, s/d, pp. 35-41 apud BELINNI, Lígia. A coisa obscura...
op. cit., p. 43.
85
Na Antiguidade Clássica havia certa aceitação das relações sexuais entre homens com o propósito de
disciplina e treinamento militar em algumas cidades da Grécia Antiga. A tolerância, porém, estava restrita aos
círculos aristocráticos apenas ao sexo masculino. Cabia, obrigatoriamente, ao homem mais velho (erastés) o
papel ativo na relação sexual e ao homem mais jovem (erómenos) o papel passivo. Essas categorias hierárquicas
expressavam as relações de poder que esses homens exerciam na pólis e tinham um caráter pedagógico
necessário para que o jovem adquirisse sua cidadania, por volta dos vinte anos, mas, no tempo certo, este mesmo
jovem deveria se casar com uma mulher e ter filho. Sobre o período ver: DOVER, K. A Homossexualidade na
Grécia Antiga. São Paulo, Nova Alexandria, 1994; FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 2: o uso dos
prazeres. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984, p. 187.
86
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados, op. cit., p. 202.
87
Id. Ibid.
88
BOSWELL, John. Cristianismo, Tolerancia Social y Homosexualidad... op. cit.
89
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação... op. cit., p. 146.
31
também tratou da questão e ordenou sua aplicação estrita90. Ambos trouxeram uma série de
medidas para cercear a liberdade dos judeus europeus91. Já os muçulmanos foram ainda mais
perseguidos e vítimas da campanha difamatória cristã, embora a religião islã também
condenasse a sodomia92:
90
Id. Ibid.
91
PINTO, Mateus R. Reconstruindo as muralhas de Sodoma... op. cit., p. 92.
92
“Mesmo considerando a destruição de Sodoma uma punição para a homossexualidade masculina, o Alcorão
preconiza sanções bem mais modestas para o sexo entre homens que a centena de chibatadas que o livro
prescreve para a infidelidade heterossexual”. In: ENDJSO, Dag Oistein. Sexo e religião: do baile de virgens ao
sexo sagrado homossexual/Dag Oistein Endjso; tradução Leonardo Pinto. – São Paulo: Geração Editorial, 2014,
p. 196.
93
PINTO, Mateus R. Reconstruindo as muralhas de Sodoma... op. cit., pp. 93-94.
94
Concílio Ecumênico de Trento, Sessão VI (13-01-1547). Decreto Sobre a Justificação. Cap. 15 – A graça, e
não a fé, se perde com qualquer pecado mortal. Disponível em:
http://www.montfort.org.br/bra/documentos/concilios/trento/#sessao6. Acesso em 12 de jan. de 2019.
95
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados... op. cit., p. 36.
96
Id. Ibid., p. 37.
32
1.1.3 “Feito por fogo em pó”: o nefando nas Ordenações do Reino Português
Portanto, a relação entre pessoas do mesmo sexo foi criminalizada não só pela Igreja
Católica, como também pelos Estados da Europa moderna, tanto cristãos quanto protestantes.
Na Inglaterra do século XVI (nação das mais tolerantes aos sodomitas), uma lei estabelecia
que todo aquele que dormisse carnalmente com judeus, animais ou pessoas do mesmo sexo
seria condenado a pena de morte por meio de “sepultamento vivo”99. Mas o exemplo mais
bárbaro e chocante dessa intolerância vem da Holanda calvinista que só entre 1730 e 1732 –
ou seja, num ínterim de apenas dois anos – prendeu 300 sodomitas, dos quais 70 deles tiveram
o fim trágico da pena de morte100.
Em Portugal, as Ordenações do Reino, compêndios de leis, demonstraram o
recrudescimento na perseguição aos sodomitas. As Ordenações Afonsinas (1446) diziam que
de todos os pecados, “bem parece ser mais torpe, sujo e desonesto o pecado da Sodomia”,
condenando à fogueira todo homem praticante de tal pecado, independentemente da posição
social, “feito por fogo em pó, por tal que já nunca de seu corpo e sepultura possa ser ouvida
memória” 101. Eis que tais Ordenações reiteravam o discurso da tradição cristã ao associar o
pecado nefando aos castigos divinos, entendido como um atentado contra a natureza e contra
a Lei de Deus, seu criador.
97
PINTO, Mateus R. Reconstruindo as muralhas de Sodoma... op. cit., p. 99.
98
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados... op. cit., p. 204.
99
Id. Ibid., p. 203.
100
MOTT, Luiz. Justitia et Misericordia: a Inquisição portuguesa e a repressão ao nefando pecado de sodomia.
In: CARNEIRO, M. Luiza Tucci; NOVINSKY, Anita (orgs.). Inquisição: ensaios sobre mentalidade, heresias e
arte. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: EDUSP, 1992, p. 704.
101
ORDENAÇÕES AFONSINAS (1446). In: Instituto de História e Teoria das Ideias da Faculdade de Letras
de Coimbra. Livro V, título XVII, pp. 53-54. Disponível em:
http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/afonsinas/l5pg53.htm. Acesso em: 20 de maio de 2018.
33
102
ORDENAÇÕES MANUELINAS (1521). In: Instituto de História e Teoria das Ideias da Faculdade de
Letras de Coimbra. Livro V, Título XII, pp. 47-49. Disponível em:
http://www.ci.uc.pt/ihti/proj/manuelinas/l5p47.htm. Acesso em: 20 de maio de 2018.
103
Segundo o Vocabulário Português e Latino de Raphael Bluteau, de 1720, peão era um verbete que
significava: “homem do povo. Homem plebeu, que não tem ofício algum militar, nem civil, nem chegou a ser (se
quer) Vereador da Câmara da Cidade, ou Vila”. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez e Latino. Lisboa:
Officina de Pascoal da Sylva, Impressor de Sua Magestade; vol. 6. 1720, p. 492. Disponível em:
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm-ext/2252. Acesso em: 28 de maio de 2018.
34
Para que tais delitos fossem provados, era exigida a apresentação de pelo menos duas
testemunhas, mesmo que de diferentes atos, assim como a confissão do réu obtida através do
tormento. O Código agora se preocupava em garantir o sigilo das testemunhas, sem a
publicação de seus nomes, para que assim pudessem testemunhar livremente. Porém, isto
ficaria ao arbítrio do julgador. Outra inovação das Ordenações Filipinas foi a aplicação da
tortura, segundo previsto no Direito, em todo caso que houvesse culpados ou indícios de
culpas com demais cúmplices. Dessa forma, seria “o culpado metido a tormento, e perguntado
pelos companheiros e por outras quaisquer pessoas que o dito pecado cometeram, ou sabem
104
ORDENAÇÕES MANUELINAS (1521). In: Instituto de História e Teoria das Ideias da Faculdade de
Letras de Coimbra. Livro V, Título XXXI, p. 90. Disponível em:
http://www.ci.uc.pt/ihti/proj/manuelinas/l5p47.htm. Acesso em: 20 de maio de 2018.
105
ORDENAÇÕES FILIPINAS (1603). In: Instituto de História e Teoria das Ideias da Faculdade de Letras de
Coimbra. Livro V, Título XIII, pp. 1162-1164. Disponível em:
http://www.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1162.htm. Acesso em: 20 de maio de 2018.
106
Id. Ibid., pp. 1163-1164.
35
dele”107.
Doravante, ainda no Livro V, no Título XXXIV, o Código Filipino reiterava as
condenações das Ordenações Manuelinas: “do homem que se vestir em trajos de mulher, ou
mulher em trajos de homem, e dos que trazem máscaras”108. Aos transgressores, salvo em
caso de festas ou jogos, se fosse peão seria açoitado publicamente, se fosse escudeiro, ou “dali
para cima”, seria degredado por dois anos para África. E sendo mulher de qualidade seria
degredada três anos para Castro-Marim. E todos culpados pagariam dois mil réis para seus
acusadores.
Vemos claramente, analisando as Ordenações do Reino, como Portugal foi
recrudescendo as penalidades ao pecado nefando. Entretanto, apesar da rigidez das leis,
nenhum processo referente ao âmbito da justiça secular foi encontrado para comprovar a
severidade da pena de morte na fogueira contra sodomitas. Luiz Mott109 apresenta duas
hipóteses para explicar a ausência de tal documentação: a primeira seria a de que os processos
foram queimados juntos com os condenados, prática comum em outros países, para que
nenhuma memória, de fato, restasse de réus tão infames, ou; a segunda hipótese de que a lei
em Portugal, embora severa, não passou de “letra morta”, diferentemente da Espanha que
executara uma centena de sodomitas por meio da justiça civil.
Além dessas três Ordenações, as chamadas Leis Extravagantes também tiveram o
objetivo de perscrutar e punir os praticantes de sodomia e molícies. Em 1606, por exemplo,
Felipe II publicara uma lei que punia com prisão os culpados por molície:
Sendo peões, deveriam ser publicamente açoitados com baraço, pregão e degredados
por sete anos para as galés; sendo, porém, de melhor qualidade social, teriam
degredo sem remissão para Angola, poupando-os, porém, da pena vil dos açoites.
Aos reincidentes mais devassos e escandalosos na prática da sacanagem – termo
utilizado desde o século XVII como sinônimo de masturbação – poder-se-ia até
condenar à morte, perdendo as famílias nobres sua dignidade e privilégios 110.
107
Id. Ibid., p. 1164.
108
Id. Ibid.
109
MOTT, Luiz. Justitia et Misericordia...op. cit., p. 705.
110
Id. Ibid., p. 706.
36
111
NOVINSKY, Anita. Inquisição: Prisioneiros do Brasil (séc. XVI-XIX). 2. Ed. rev.- São Paulo: Perspectiva,
2009, pp. 21-24.
112
BETHENCOURT, Francisco. A Inquisição. In: AZEVEDO, Carlos Moreira (ed.). História religiosa de
Portugal. Lisboa: Círculo de leitores, 2000, vol. II.
113
Id. Ibid., p. 96.
37
eclesiástica, porém, o Santo Ofício revelou-se muito mais autônomo do que desejariam os
autores do projeto. Como bem afirma Ana Margarida Santos Pereira: “ligada simultaneamente
ao Estado à Igreja, a Inquisição servia a ambos e de ambos se servia, aproximando-se de um
ou de outro de acordo com as suas conveniências e interesses particulares” 114. Anita
Novinsky115 assinala que o Tribunal constituiu a maior burocracia de Portugal e para manter
sua sobrevivência dependia do confisco dos réus. Por isso, para encontrar novas vítimas,
quando uma heresia diminuía era recriada e reinventada.
Ao contrário da América Espanhola e da colônia portuguesa em Goa que tiveram seus
próprios tribunais, na América Portuguesa as denúncias estavam sob a égide do Tribunal de
Lisboa. E, apesar das malsucedidas tentativas de criação de uma sede do Tribunal no Brasil116,
a fiscalização da Inquisição portuguesa conseguia estender seus tentáculos até a colônia com a
colaboração da justiça eclesiástica, dos bispos, da ampla rede de oficiais, familiares,
comissários, notários e os raros qualificados visitadores117.
Nas visitações, o Inquisidor apresentava seus poderes às justiças locais, proclamava o
“sermão da fé” e ordenava a publicação do “édito de graça”, o qual estabelecia um período
médio de trinta dias para aqueles que quisessem confessar suas culpas voluntariamente para
que tivessem suas penas abrandadas. O réu que, em tese, fizesse uma boa confissão, mesmo
que de um crime grave, mostrando sinais de arrependimento e pedindo perdão de suas culpas,
seria perdoado e alcançaria a misericórdia do tribunal118. Porém, em certas ocasiões o tribunal
não foi tão misericordioso assim, a exemplo da primeira visitação 119. Em relação aos
delatores, o sermão estimulava-os a denunciar as heresias e demais crimes da alçada
inquisitorial sob pena de excomunhão120. A delação era, assim, um dos pilares fundamentais
para a própria existência do Tribunal: “em qualquer dos casos, duas condições eram
necessárias para que os processos fossem instaurados: as culpas deveriam ser de „qualidade‟ e
114
PEREIRA, Ana Margarida Santos. A Inquisição em Portugal e no Brasil... op. cit., p. 54.
115
NOVINSKY, Anita. Inquisição... op. cit., p. 24.
116
PEREIRA, Ana Margarida Santos. A Inquisição em Portugal e no Brasil... op. cit., pp. 63-75
117
Ver: CALAINHO, Daniela. Agentes da fé. São Paulo, Edusc, 2006, pp. 69-120; MARCOCCI, Giuseppe;
PAIVA, José Pedro. História da Inquisição Portuguesa, 1536-1821. Lisboa: Esfera dos Livros, 2013;
RODRIGUES, Aldair. Formação e atuação da rede de comissários do Santo Ofício em Minas colonial. In:
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 29, nº 57.
118
FERNANDES, Alécio Nunes. A construção da verdade jurídica no processo inquisitorial do Santo Ofício
Português, à luz de seus regimentos. In: História e Perspectivas, Uberlândia (49): 491-535, jul./dez. 2013, p.
497.
119
A tolerância na primeira visitação do licenciado Heitor Furtado de Mendonça não foi tão grande quanto possa
parecer. Ver: VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados... op. cit., p. 368.
120
FERNANDES, Alécio Nunes. A construção da verdade jurídica no processo inquisitorial do Santo Ofício
Português, à luz de seus regimentos... op. cit., pp. 496-498.
38
121
Id. Ibid., p. 501.
122
Id. Ibid., p. 495.
123
Id. Ibid., p. 504.
124
MOTT, Luiz. A Inquisição no Maranhão. São Luís, Editora da Universidade Federal do Maranhão, 1994, p.
64.
125
O cardeal, irmão de D. João III, assumiria o reinado português em agosto de 1578 até a sua morte em 31 de
janeiro de 1580.
126
MOTT, Luiz. Justitia et Misericordia...op. cit., p. 707.
127
GOMES, Veronica de Jesus. Vício dos Clérigos... op. cit., pp. 64-65.
128
VAINFAS, Ronaldo. Confissões da Bahia: Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997, p. 21.
129
MOTT, Luiz. Justitia et Misericordia... op. cit., p. 707.
130
Id. Ibid., p. 736.
39
Por sua vez, o Regimento de 1640, que vigorou até 1774, o mais longo da história do
tribunal, apresentou-se mais bem sistematizado e aperfeiçoado. Organizado harmoniosamente
em três livros, será o livro III – no título XXV, dividido em treze parágrafos – que tratará
“dos que cometem o nefando crime da sodomia”134. Ratificava o modo de se proceder com os
culpados de qualquer estado, grau, qualidade, preeminência e condição, conforme previsto no
Regimento anterior.
131
GOMES, Veronica de Jesus. Vício dos Clérigos... op. cit., p. 65.
132
PINTO, Mateus R. Reconstruindo as muralhas de Sodoma... op. cit., p. 114.
133
REGIMENTO DO SANTO OFÍCIO- 1613. In: Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Rio de
Janeiro, ano 157, n. 392, jul./set. 1996, p. 659. Disponível em: http://www.ihgb.org.br/rihgb.php?s=p. Acesso
em: 20 de maio de 2018.
134
REGIMENTO DO SANTO OFÍCIO- 1640. In: Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro...op. cit.,
p. 871.
40
Aos que pela primeira vez confessassem voluntariamente suas culpas perante a Mesa
do Santo Ofício, sem testemunhas antes ou depois da confissão, não teriam condenação
alguma, apenas seriam admoestados para que nunca mais cometessem o tal pecado
inominável, sob pena de serem “castigados com grande rigor”. Para os “apresentados”135
depois de serem delatados, ou depois da apresentação delatados, não seriam castigados com
pena pública, porém teriam “alguma pena” e penitência secreta.
Já aos apresentados pela primeira vez que fossem “diminutos”136 ou fraudulentos em
suas confissões, de maneira que se provasse presunção grave e maliciosa, seriam castigados
conforme a gravidade de suas culpas nos moldes dos confitentes “diminutos, fictos e
simulados no crime de heresia”137, previsto que se empregasse a tortura a fim de arrancar dos
réus aquilo que escondiam138. E se os apresentados pela primeira vez fossem devassos no
nefando, seriam condenados secretamente em pena de degredo, para que assim ficasse
“cessado o escândalo, que podia haver entre os que tivessem notícia de suas culpas e se evita
o dano, que de seu trato, e comunicação se causaria a outros”139. Quanto aos sodomitas
publicamente escandalosos e devassos, o Regimento estabelecia que se houvesse perseverado
no pecado durante muitos anos, “cometendo-o em toda a parte”, seria condenado com pena
pública arbitrária, sem o embargo de terem sido apresentados.
Para aqueles que confessassem pela segunda vez, mas não tivessem testemunhas
contra si ao tempo da segunda apresentação, nem depois dela, seriam condenados
secretamente com pena de degredo para longe do lugar que haviam cometido as culpas de
sodomia. Porém, aos confitentes que tivessem testemunhas do segundo lapso, ou depois da
segunda confissão, mas com provas insuficientes para serem os inquisidores convencidos,
sendo pessoas qualificadas, seriam castigados secretamente com o degredo. Sendo de outras
qualidades, caberia a pena pública arbitrária. No entanto, com provas convincentes, os
condenados teriam a maior pena pública extraordinária: se fossem pessoas qualificadas
ouviriam suas sentenças na sala do Santo Ofício e teriam a pena de desterro; fossem pessoas
135
Com medo de serem delatadas, muitas pessoas se “apresentavam” voluntariamente à Mesa do Santo Ofício,
confessavam e pediam perdão, procurando assim diminuir o rigor dos procedimentos inquisitoriais.
136
O acusado poderia ser considerado diminuto quando sua confissão estivesse incompleta ante as declarações
dos denunciantes ou das testemunhas. Estabelecia o Regimento de 1640: “aos confidentes, que forem dilutos
[diminutos] em parte substancial de sua culpa, ou em cerimônias notáveis, ou ao tempo, em que perseveram em
seus erros; salvo quando se presumir, conforme a direito, que a diminuição nestas coisas não procede de malícia,
se não só esquecimento”. In: FERNANDES, Alécio Nunes. A construção da verdade jurídica no processo
inquisitorial do Santo Ofício Português, à luz de seus regimentos. In: História e Perspectivas... op. cit., p. 516.
137
REGIMENTO DO SANTO OFÍCIO- 1640. In: Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro... op. cit.,
pp. 871-872.
138
MOTT, Luiz. Justitia et Misericordia...op. cit., p. 711.
139
REGIMENTO DO SANTO OFÍCIO- 1640. In: Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro... op. cit.,
p. 872.
41
Qualquer pessoa que for convencida neste crime, ou seja pela prova da justiça, ou
por sua própria confissão, e com tudo não há de ser entregue a justiça secular, mas
140
Sentença de morte na fogueira pronunciada pela Inquisição, mas executado pelos funcionários da Coroa
portuguesa. A Inquisição condenava e julgava, mas quem executava a pena de morte era o Estado.
141
REGIMENTO DO SANTO OFÍCIO- 1640. In: Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro... op. cit.,
p. 873, grifos nossos.
42
Segundo Ligia Bellini144, estudiosos parecem concordar que o parágrafo diz respeito
não só a sodomia homossexual entre mulheres, mas também heterossexual, entre homem e
mulher. Naquela sociedade demasiadamente misógina, em que o corpo e as sexualidades
femininas eram tratados de forma obscura, os inquisidores ainda discutiam se a mulher
poderia ou não perpetrar a “penetração anal com derramamento de sêmen”. Após muita
discussão, o Conselho Geral, em 1646, retiraria a sodomia foeminarum de sua alçada
inquisitorial. Desse modo, não caberia ao tribunal tomar conhecimento do último parágrafo
regimental de 1640 sobre o delito de sodomia. Contudo, paradoxalmente o parágrafo aparece
quase que inalterado no Regimento de 1774145.
O quarto e último Regimento da Inquisição ratifica, praticamente, toda legislação de
1640 referente ao delito de sodomia146. Convém ressaltar que ainda que as “testemunhas
singulares” tenham sido abolidas da disposição regimental, no delito de sodomia – assim
142
Id. Ibid., p. 873.
143
Id. Ibid., pp. 873- 874.
144
BELLINI, Lígia. A coisa obscura... op. cit., p. 76.
145
Id. Ibid., pp. 61- 62.
146
REGIMENTO DO SANTO OFÍCIO- 1774. In: Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro... op. cit.,
pp. 965-967.
43
147
Id. Ibid., p. 967.
148
FRANCO, José Eduardo; ASSUNÇÃO, Paulo de. As metamorfoses de um polvo: religião e política nos
Regimentos da Inquisição portuguesa (séc. XVI-XIX). Lisboa: Prefácio, 2004, p. 69.
149
Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, transformou-se num personagem dominante da
vida política de Portugal quando ocupava a Secretaria dos Negócios do Reino, de 1756 até 1777, no reinado de
D. José I.
150
MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro. Sob a tutela do Marquês de Pombal. In: História da Inquisição
Portuguesa, 1536-1821. Lisboa: Esfera dos Livros, 2013, pp. 354-355.
151
CAMPOS, Pedro Marcelo. Política pombalina e inquisição. In: Inquisição, magia e sociedade: Belém (1763-
1769). Niterói: UFF, 1995, pp. 44-78
152
MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro. Sob a tutela do Marquês de Pombal. In: História da Inquisição
Portuguesa... op. cit., pp. 333-357.
44
1536 e 1821, graças a sua capacidade de adaptação aos diferentes contextos políticos, sociais
e culturais153. Por sua vez, sobre o pecado nefando da sodomia, cabia aos inquisidores
perscrutar cada denúncia ou confissão a fim de descobrir a consumação ou não do ato
sodomítico perpetrado, sobretudo, entre dois homens.
153
BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália - séculos XV-XIX. São
Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 315.
154
MOTT, Luiz. Justitia et Misericordia: a Inquisição portuguesa e a repressão ao nefando pecado de sodomia.
In: CARNEIRO, M. Luiza Tucci; NOVINSKY, Anita (orgs.). Inquisição... op. cit., p. 703.
155
Id. Ibid., pp. 704 e 709.
156
Id. Ibid., p. 709.
157
GOMES, Veronica. Vício dos Clérigos... op. cit., p. 66.
158
MOTT, Luiz. Justitia et Misericordia...op. cit., p. 736.
45
159
Id. Ibid., p. 738.
160
PINTO, Matheus R. Reconstruindo as muralhas de Sodoma... op. cit., pp. 129-130.
161
O autor também alerta sobre a existência de outros tribunais: do Porto, Lamego e Tomar, criados em 1541 e
extintos muito rapidamente em 1547. Além do tribunal de Goa que teve grande parte da documentação
incinerada, a qual o pesquisador não encontrou nenhum processo contra sodomitas.
162
PINTO, Matheus R. Reconstruindo as muralhas de Sodoma... op. cit., p. 130.
163
Id. Ibid., p. 129.
46
tentar analisar esse aumento da repressão, Matheus R. Pinto discorda da explicação de Mott de
que a maior ousadia e descuido dos sodomitas teria motivado o endurecimento inquisitorial. O
autor se aproxima mais do pensamento de Ronaldo Vainfas, buscando a natureza desse
recrudescimento nas decisões do Concílio de Trento que se espalharam por toda Europa a
partir do século XVI e foram aplicadas, sobretudo, no século XVII. Entretanto, a partir do
século XVIII, a ação inquisitorial contra os sodomitas iria se abrandar, fato que pode ser
justificado pelo momento de consolidação da contrarreforma da Igreja, “graças à ação enérgica
do catecismo sistematizado e cada vez mais institucionalizado”164.
Ao fazer uma pesquisa simples165 online no ANTT, localizamos os números do gráfico
a seguir que são mais próximos daqueles levantados por Matheus R. Pinto. Inicialmente
encontramos o mesmo resultado do autor sobredito, mas ao excluirmos aqueles nomes que se
tratam apenas de sumários, sem desfecho processual, o número reduziu para 32 processados
pelo Tribunal de Lisboa. Destes processos, 15 se referem ao Brasil colônia, os quais 4 são
pertencentes à região de Minas Gerais:
25
20
15
15
10
5 4
0
Total Brasil Minas Gerais
Fontes: ANTT. IL. Proc. 10006, 209, 1486, 2664, 938, 590, 14016, 11716, 11699, 11484, 11204, 11200, 10533,
2666, 5106, 5385, 5869, 2694, 45, 2695, 2707, 8900, 8760, 8434, 7035, 6478, 12894, 11607, 2805, 5708, 205,
10426.
164
Id. Ibid., p. 131.
165
Digitamos em “pesquisar documentos” as palavras-chave: processo, sodomia e Lisboa, e marcamos na opção
“entre as datas” o recorte temporal de 1700-1821. Dessa forma, apareceram 37 nomes, mas excluindo aqueles
que se tratam de sumários o número caiu para 32.
47
166
SIQUEIRA, Sônia. A Colônia. In: A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial. São Paulo: Ática, 1978,
p. 17.
167
Id. Ibid., p. 19.
168
Ver: CAMINHA, Pero Vaz de. A carta de Pero Vaz de Caminha. Ministério da Cultura: Fundação Biblioteca
Nacional; Departamento Nacional do Livro. Disponível em:
http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/carta.pdf. Acesso em: 21 de abril de 2018.
169
SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descriptivo do Brasil em 1587. Senado Federal: Biblioteca Digital.
Capítulo CLVI, pp. 286-287. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/242787. Acesso em: 21
de abril de 2018.
170
MOTT, Luiz. A Inquisição no Maranhão...op. cit., p. 62.
48
que Trento chegasse ao Brasil. Segundo Ronaldo Vainfas, logo no século XVI o espírito
tridentino se fez sentir nas colônias ibéricas, sobretudo, através das missões jesuíticas:
Ao Brasil chegou pela voz dos jesuítas liderados por Nóbrega, ansiosos para iniciar
a conversão das gentes do trópico [...]. A missão integrava já uma estratégia
ofensiva da Igreja, reunindo o que de mais caro havia no projeto tridentino: a
acumulação massiva, popular e rural, e não mais a pregação limitada aos centros
urbanos, como faziam os franciscanos nos séculos XIV e XV. “Deculturação” e
catequese das massas, demonização e aculturação dos campos, nisso residiu em
grande medida, o essencial da Reforma Católica em sua ambição mundial.
Pois essa “milícia papal”, como a chamou Herculano, que trouxe a Contrarreforma
ao Brasil; trouxe-a antes de Trento, antes mesmo de instalar-se o primeiro bispado
na Colônia171.
Para Lana Lage, em sua pesquisa sobre os padres solicitantes, o cumprimento das
normas tridentinas foi um processo lento que passou a vigorar sistematicamente no Brasil
somente no século XVIII, passando pela ação, sobretudo, dos bispos e da multiplicação de
bispados. A inexistência de constituições eclesiásticas próprias seria marcante na dificuldade
de aplicação dos preceitos de Trento, e só fora tratada em 1707 com a promulgação das
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Para Bruno Feitler, as perspectivas
distintas dos autores podem ser cruzadas “já que Trento teve realmente essas duas vertentes (a
disciplinar, posta em evidência por Lage, e a doutrinal, salientada por Vainfas)”172. Feitler
mostra que as reformas tridentinas rapidamente vingaram no Brasil, mas que não tiveram uma
implementação perfeita, assim como em Portugal, dependendo não apenas “da realidade
colonial e missionária, mas também da vontade e do empenho (ou a falta destes) de prelados
locais ou do rei. Ou seja, as reformas, a moralidade, a piedade tridentina tiveram que ser não
só aplicadas, mas sobretudo cultivadas e mantidas geração após geração”173.
Pode-se caracterizar a colônia brasileira, no seu período inicial, como um contexto
complexo, em que coexistiam elementos conflitantes: “licenciosidade e um certo espírito
religioso, caráter paradisíaco e infernal aos olhos do colonizador, entrechoque de autonomia e
dependência em relação à metrópole, presença de espiritualidades diversas”174. Nesse espaço
fluido, em convergência com as resoluções do Concílio de Trento, a Inquisição prometia, na
chegada com as visitações, “a conquista dos céus com suas fogueiras”175. Assim, o
171
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados... op. cit., p. 41.
172
FEITLER, Bruno. Quando chegou Trento ao Brasil? In: GOUVEIA, Antônio Camões, BARBOSA, David
Sampaio, PAIVA, José Pedro (coord.). O Concílio de Trento em Portugal e nas suas Conquistas: Olhares
Novos. 1 ed. Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosa, pp. 159-173, 2014, p. 160.
173
Id. Ibid., p. 162.
174
BELLINI, Lígia. A coisa obscura... op. cit., p. 14.
175
A expressão “conquistar o céu com as fogueiras da Inquisição” é de Herculano. In: HERCULANO,
Alexandre. História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal. Coedição Livrarias Aillaud e
49
Bertrand (Paris/Lisboa) e Francisco Alves (Rio de Janeiro), s/d, vol. 3, pp. 48 apud BELLINI, Lígia. A coisa
obscura... op. cit., p. 14.
176
Dos indivíduos denunciados e confitentes na primeira visitação por Heitor Furtado de Mendonça, 101 foram
incriminados na sodomia entre homens, 29 por cometerem sodomia entre mulheres e 12 por sodomia
heterossexual. Ver: VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados... op. cit., p. 423. As visitações ocorreram em fins
do século XVI e início do XVII, inseridas num contexto maior em que outras regiões do Império português
também foram visitadas. São confirmadas não só as três visitações mais conhecidas no nordeste e norte, hoje
nomeadas, das terras brasileiras, como outra visitação que percorreu o Sudeste, além da grande inquirição em
1646. A primeira visitação foi realizada pelo inquisidor Heitor Furtado de Mendonça e atingiu as capitanias da
Bahia, Pernambuco e Paraíba, entre 1591 e 1595. A Bahia seria novamente visitada entre 1618 e 1621 pelo
licenciado Marcos Teixeira. Ainda na década de 1620, outra visitação percorreu o Brasil, passando pelo Espírito
Santo, Rio de Janeiro, Santos e São Paulo. E, em 1646, a “Grande Inquirição” no estado da Bahia, realizada pelo
então governador Teles da Silva, um agente “implacável na perseguição e denúncia de vários importantes
mercadores cristãos-novos”. A partir de meados do século XVII, as visitações inquisitoriais foram interrompidas
nas colônias, assim como no próprio Reino, tendo em vista a difícil conjuntura financeira que Portugal
enfrentava. Exceção a esse quadro foi a visita ao Pará, Maranhão e Rio Negro, levada a cabo por Giraldo José
de Abranches, entre 1763 e 1769. Em suma, os estudos indicam cerca de cinco visitações que percorreram o
território da América portuguesa. Ver: RODRIGUES, Aldair. Formação e atuação da rede de comissários do
Santo Ofício em Minas colonial, in: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 29, nº 57, p. 146; CALAINHO,
Daniela. Agentes da fé. São Paulo, Edusc, 2006, p. 70.
177
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Senado Federal: Biblioteca
Digital. Livro V, título XVI, parágs. 958- 959, (grifos nossos). Disponível em:
http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/222291. Acesso em: 21 de abril de 2018.
50
Percebe-se assim como o mito de Sodoma atinge a colônia, exercendo seu completo
furor nas legislações eclesiásticas. Desta forma, as Constituições reiteravam a passagem
bíblica que associava a condenação dos amantes do mesmo sexo com a ira de Deus. Desastres
e calamidades divinas poderiam assolar aquela sociedade colonial caso houvesse algum sinal
de tolerância com “tão péssimo e horrendo pecado”, “indigno de ser nomeado”, “feio até ao
mesmo demônio”. Reiteravam a ausência de razão dos sodomitas, a rapidez e o segredo das
diligências, assim como a prisão dos delinquentes e a competência do Santo Ofício frente às
investigações. Quanto à expressão que relaciona a sodomia enquanto um pecado ou crime
“feio até mesmo ao Demônio”, trata-se de um exagero linguístico que objetivava aumentar
ainda mais o grau de torpeza do delito e daqueles que ousassem praticá-lo. A expressão
aparece também em Bluteau, quando este define o que é nefando179. No entanto, muitos
processos do Santo Ofício deixam entrever o entendimento deste tribunal acerca daqueles que
praticavam o nefando, incorrendo nele “sem temor de Deus, nem da Justiça e induzido pelo
Demônio”180. A relação entre sodomia e demônio é bem marcante na documentação
inquisitorial. Isso pode ser muito bem percebido também no entendimento de alguns que
foram seus praticantes. Em Vila Rica (Minas Gerais), 1763, por exemplo, o reinol Manuel da
Cunha de Souto Maior confessou que praticara a sodomia com alguns escravos, o que
justificou ter lhe ocorrido por tentação do demônio181. Nas documentações inquisitoriais, pelo
contrário, não há referências tão constantes de que o pecado nefando seria execrável e
aborrecedor até mesmo o maligno Satanás. Fica claro, portanto, que para a Inquisição,
sodomia era coisa do diabo.
178
Id. Ibid.
179
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez e Latino. Lisboa: Officina de Pascoal da Sylva, Impressor de
Sua Majestade; vol. vol. 5. 1716, p. 698. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm-ext/2252. Acesso
em: 01 de maio de 2018.
180
ANTT. IL. Proc. 2.805, fl. 67 (processo de 1751 contra José Peixoto de Sampaio).
181
ANTT. IL. CN, liv. 145, nº 20, fl. 363 (Vila Rica/1763).
51
É também gravíssimo pecado o da molície, por ser contra a ordem da natureza, posto
que não seja tão grave como o da Sodomia, e bestialidade. Por tanto ordenamos, que
as mulheres, que uma com outra cometerem este pecado, sendo-lhes provado, sejam
degredadas por três anos para fora do Arcebispado, e em pena pecuniária; as quais
penas se devem moderar, conforme a qualidade da prova, e mais circunstâncias.
E sendo homens, que com outros cometerem o dito pecado da molície, serão
castigados gravemente com as penas de degredo, prisão, galés e pecuniária. E sendo
Clérigos, além das ditas penas, serão depostos do oficio, e Beneficio. E os que forem
convencidos de cometerem pecado contra, ou prater naturam por qualquer outro
modo, serão gravissimamente castigados a nosso arbítrio182.
182
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia... op. cit., título XVIII,
parágs. 964-965.
183
BELLINI, Ligia. A coisa obscura... op. cit., p. 68 e p. 80.
184
HOLANDA, Sergio Buarque de. Metais e pedras preciosas. In: A época colonial, v. 2: administração,
economia, sociedade/ por Aziz N Ab‟Saber ...[et al.] introdução geral de Sérgio Buarque de Holanda 10ª ed. –
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. 576 p:il. – (História geral da civilização brasileira: tomo 1; v. 2), pp. 295-
297.
52
instituições políticas e o aparato administrativo, e ainda, de fundação das paróquias que iriam
regulamentar a vida religiosa dos mineiros185.
Nesse contexto, a Igreja Católica procurava atuar rigorosamente no combate às
relações extraconjugais que obstruíam o modelo de família legítima, representada pelo
sacramento do matrimônio tão defendido no Concílio de Trento. Assim, a Igreja criava vários
mecanismos coercitivos para controlar a vida da população mineira. As visitas diocesanas
seriam o instrumento mais eficiente da ação disciplinadora e se encontravam reguladas pelas
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Procediam na forma de uma devassa:
“cuidavam nessas visitas de conferir a situação das igrejas e o comportamento dos clérigos
locais. Além dessas atribuições, procuravam também organizar um pequeno tribunal, no qual
denúncias contra criminosos eram recebidas, compiladas e punidas”186. A documentação
dessas visitas serviu de base para pesquisas sobre os comportamentos transgressores e a vida
familiar da sociedade de Minas, a exemplo dos trabalhos brilhantes de Laura de Mello e
Souza187 e Luciano Figueiredo188.
Em relação aos homens e mulheres processados pela Inquisição, a historiadora Anita
Novinsky189 realizou um levantamento sistemático – o mais completo referente aos
prisioneiros brasileiros –, sendo suas pesquisas de extrema importância para qualquer tema de
estudo sobre a atuação da Inquisição na América portuguesa. Mas, a historiadora já alertava
que os 40.000 processos arquivados dos tribunais inquisitoriais de Portugal não estavam
completamente classificados de acordo com o lugar de origem dos réus, e que, “para
chegarmos a um resultado absoluto dos brasileiros presos, seria necessário percorrer um a um
todos esses processos, o que até hoje ainda não foi feito”190. Conforme sua pesquisa, foram
1076 indivíduos presos, entre homens e mulheres no Brasil colonial. Destes, a maioria foi
acusada de judaísmo, sobretudo na primeira metade do século XVIII: 268 homens e 202
mulheres, enquanto no pecado nefando, no período setecentista, totalizam cerca de 10 pessoas
processadas. À pena capital, 29 indivíduos foram condenados, todos por judaísmo191.
No delito de sodomia, registrou-se um total de 44 (5,66%) homens e 6 mulheres
(2,01%) presos. Os maiores números de processos são referentes ao século XVI: 19 homens e
185
FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Barrocas famílias: vida familiar em Minas Gerais no século
XVIII. São Paulo: Editora Hucitec, 1997, pp. 16-17.
186
Id. Ibid., p. 47.
187
SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro:
Graal, 1982.
188
FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Barrocas famílias... op. cit.
189
NOVINSKY, Anita. Inquisição...op. cit.
190
Id. Ibid., p. 28.
191
Id. Ibid., p. 47.
53
5 mulheres, curiosamente quando o delito ainda não constava no rol das transgressões
regimentais, convém sublinhar, mas já previsto nas Ordenações do Reino desde o século XV.
No século XVII temos 12 processos envolvendo homens. Já no século XVIII, 9 homens e
uma mulher. Por fim, constam 4 processos de presos homens sem data. A repressão às
moralidades no Brasil colonial, sem dúvida, não atingiu o patamar da atuação inquisitorial
ibérica entre os séculos XVI e XVIII. No período setecentista, os índices localizados por
Novinsky no pecado de sodomia registra o menor índice, de acordo com a tabela 4.
Homens 19 12 9 - 4 44
Mulheres 5 - 1 - - 6
Total 24 12 10 - 4 50
192
Id. Ibid., p. 46.
54
4 4
3 3
Fontes: ANTT. IL. Proc. 2694, 45, 2695, 2707, 8900, 8760, 8434, 7035, 6478, 12894, 11607, 2805, 5708, 205,
10426.
Com relação à metrópole, Luiz Mott reconstruiu os locais de encontros dos fanchonos
lisboetas. O autor defende a existência de uma “subcultura gay”, organização em nichos entre
os amantes do mesmo sexo, entendida enquanto um subgrupo minoritário que compartilhava
certa identidade entre si, distinguível da sociedade geral. Num dos locais próprios para os
encontros sodomíticos, a casa de Manuel Figueiredo destacou-se (na primeira metade dos
seiscentos) por ter sido onde se reuniam os homossexuais mais afeminados. Alguns dos
sodomitas que frequentavam o lugar vestiam trajes de mulher, se apresentavam com nomes de
mulher, usavam maquiagem, andavam de salto alto, assentavam-se com as pernas cruzadas,
dançavam e cantavam de maneira bem característica do universo feminino. Assim, nesses
“nichos privativos”, os fanchonos portugueses adotavam uma série de traços materiais e
comportamentais peculiares. Outro sujeito que também se destacou entre os denunciado foi o
padre Santos de Almeida, 66 anos, capelão de uma igreja em Lisboa. Os inquisidores, em
1644, descobriram que sua casa era “frequentada por uma miríade de sodomitas” morada
referida como “pagode, escola e alcouce de fanchonos”193.
193
MOTT, Luiz. Pagode português: a subcultura gay nos tempos inquisitoriais. Ciência e cultura, vol. 40, 1988,
pp. 120-139.
55
***
O pecado que, em tese, deveria ser indigno de ser nomeado, fora amplamente
debatido, desde a Idade Média, entre os teólogos da cristandade. Esses homens da Igreja,
empenhados na busca de uma definição apropriada para a gravidade das relações sexuais entre
pessoas do mesmo sexo, debateram excessivamente algo que sequer poderia ser dito. Da
passagem bíblica de Sodoma veio o embasamento ideal para justificar a intolerância contra o
nefando, assim como sua culpabilização sobre as calamidades e catástrofes que assolavam a
terra. Desse modo, chegada a Idade Moderna, mais precisamente no século XVII, as
estatísticas da perseguição atingem seu ápice no mundo europeu. Igreja, Estado e Inquisição
estariam unidos, mais do que nunca, para extirpar da terra qualquer rastro dos amantes
homossexuais, tudo em nome de Deus. Foi o tempo de colocação do sexo em discurso.
194
VAINFAS, Ronaldo. Moralidades Brasílicas... op. cit., p. 226.
195
Id. Sodomia, amor e violência nas Minas Setecentistas... op. cit., p. 524.
196
Id. Moralidades Brasílicas... op. cit., p. 228.
197
Id. Sodomia, amor e violência nas Minas Setecentistas... op. cit., p. 524.
56
Com a chegada dos portugueses às terras brasílicas – que coincidiu com a fundação do
Tribunal do Santo Ofício da Inquisição –, os pecados da luxúria, principalmente dos povos
nativos, seriam colonizados e constantemente controlados pela moralidade cristã. Dessa
forma, as legislações portuguesas – bem como os Regimentos inquisitoriais – lograram êxito
na colônia ao longo do tempo, inculcando nas mentes mineiras os valores morais mais
preciosos ao cristianismo. A Inquisição cuidou de incitar os mais variados tipos de denúncias
e confissões, inclusive contra os sodomitas, fossem eles praticantes de atos efêmeros, fossem
escandalosos convictos e pertinentes que consumavam o ato com desperdiço de sêmen no
vaso traseiro de seus parceiros.
Nas Minas Gerais do século XVIII, a ocupação inicial coincidiu com as Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia, as primeiras legislações eclesiásticas próprias da
colônia, criadas num momento de afirmação da Igreja Católica. A atração pelas minas
auríferas trouxe vasta diversidade de gentes para a região, onde as relações sodomíticas foram
marcadas, sobretudo, por cópulas episódicas, aventuras efêmeras e a violência sexual típica do
mundo da escravidão. Não houve, portanto, nas terras mineiras, a existência de uma
“subcultura gay”, isto é, uma identidade “homossexual” comungada entre os praticantes de
sodomia, ao contrário do que ocorrera nas metrópoles europeias. De todo modo, a perseguição
aos amantes do mesmo sexo se fez sentir, de Sodoma às Minas Gerais.
57
CAPÍTULO 2
AS DENÚNCIAS ARQUIVADAS198
Antonil,
Cultura e opulência do Brasil (1711).
Desde o início de ocupação, Minas Gerais abrigou uma diversidade vasta de gentes,
atraída pela sede insaciável do ouro. Em 1711, André João Antonil relatou o processo das
primeiras ocupações em torno das jazidas auríferas: “dizem que mais de trinta mil almas se
ocupam, umas em catar, e outras em mandar catar nos ribeiros do ouro, e outras em negociar,
vendendo e comprando o que se há mister não só para a vida, mas para o regalo, mais que nos
portos do mar”199. Relatava ainda a heterogeneidade daquela sociedade que então se formava:
198
O cômputo geral considerou cada denunciado como uma denúncia mesmo que seja num documento quando
aparece um único denunciante para vários denunciados. Outras vezes, na mesma denúncia, aparecem várias
pessoas denunciando somente uma pessoa. Neste caso, contabilizamos apenas uma denúncia. Às vezes ocorre de
um mesmo indivíduo ser denunciado duas vezes em tempos distintos. Contabilizamos as duas denúncias,
considerando o período diferente. Quando se tratou de confissão seguida de denúncia de outro indivíduo que
indicasse cumplicidade contabilizamos as duas pessoas envolvidas. Por fim, levamos em consideração o local
onde ocorrera o delito de sodomia e não necessariamente onde a denúncia fora realizada, vide o caso de
Francisco Xavier (ANTT, IL, CN., liv. 146 , fólio 57) denunciado em Paracatu, mas por praticar sodomia na
capitania do Rio de Janeiro, assim desconsideramos essa denúncia como sendo de Minas Gerais.
199
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. 3ª ed. Belo horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo, 1982
(1ª ed. 1711), p. 167.
200
Id. Ibid.
58
Courano, mas não conseguiu fazer o mesmo com o escravo agente “por ele fugir com
velocidade”201.
Assim, a documentação inquisitorial faz emergir riquíssimos relatos das vivências
mais íntimas dos moradores de Minas Gerais setecentista. Através dela podemos conhecer e
interpretar as mentalidades e moralidades cristãs que levavam aquelas pessoas até os
funcionários do Santo Ofício para denunciar ou confessar as culpas que transgrediam as
doutrinas católicas.
A respeito do número de denúncias inquisitoriais, o trabalho hercúleo de Maria Leônia
Chaves de Resende e Rafael José de Sousa, na forma de um inventário onomástico dos
denunciados, identificou um total de 989 denúncias em Minas Gerais, através de análises
exaustivas nos Cadernos do Promotor (CP)202 e Documentação Dispersa (DD)203, entre os
anos de 1692 e 1820. Ressaltamos a intensa pesquisa dos autores ao vasculharem
minuciosamente essa vasta documentação do Tribunal de Lisboa, para só então selecionarem
o material referente às Minas Gerais. Nele aparece o delito de feitiçaria, adivinhação e
curandeirismo como o mais denunciado, liderando numericamente com 294 denúncias. No
delito de sodomia, foram localizadas 40 denúncias – incluindo aqui aquelas que terminaram
em processos.
Para além dessa documentação, nos Cadernos de Nefandos – livros específicos para as
denúncias de sodomia, assim como os Cadernos dos Solicitantes que eram específicos
somente ao delito de solicitação, isto é, não integravam os outros mais generalistas como os
Cadernos do Promotor, a denotar a gravidade que era atribuída a ambos os delitos204 –
localizamos 56 denúncias por sodomia relativas à região mineira. Entretanto, esse número
pode ser ainda maior, pois o Caderno de Nefandos nº 18 – que também abarcaria o recorte
temporal desta pesquisa – não foi localizado desde 1990, conforme consta no site do ANTT.
Desse modo, totalizam 96 denúncias por sodomia em Minas Gerais. Dessas, apenas 4 se
201
ANTT. IL. DD, cx. 1634/ 16921, fl. 2v.
202
“Os CP englobam uma volumosa série documental dos quais em 37 códices constam 384 denúncias de Minas
Gerais referentes ao período de 1692-1802. Trata-se de fato de manuscritos avulsos organizados
cronologicamente na forma de livros, com a média de 300 a 600 fólios, em que se encontram denúncias, mas
também sumários, diligências e fragmentos de processos”. In: RESENDE, Maria Leônia Chaves de. ; SOUSA,
Rafael José de. Em nome do Santo Oficio: cartografia da inquisição nas Minas Gerais. Belo Horizonte: Fino
Traço 2015, p. 12.
203
Já acervo da DD: “é composto por 74 caixas, contendo peças avulsas que foram inventariadas separadamente
a critério do ANTT, compostas por 4004 resultados para o Brasil dos quais 605 são relativos a Minas Gerais. São
em sua maioria denúncias, mas da mesma maneira também podem aparecer sumários e confissões, concentrados
em grande parte no período compreendido entre 1780-1820. Por algum motivo que desconhecemos, essas
denúncias não foram indexadas nos CP como usualmente deveria se proceder tendo em vista ser da mesma
natureza e tipologia”. In: RESENDE, Maria Leônia Chaves de. ; SOUSA, Rafael José de. Em nome do Santo
Oficio...op. cit., p. 12.
204
Disponível em: https://digitarq.arquivos.pt/details?id=2299846.
59
tornaram processos, número que contrasta com a maioria esmagadora de denúncias que foram
arquivadas.
Fontes: ANTT. IL. C.P., caderno 109, liv. 301; c. 110, liv. 302; c. 120, liv. 312; c. 130, liv. 319; c. 134, liv.
322. D.D., Cxs. 1578, 1591, 1594, 1605, 1607, 1615, 1618, 1625, 1629, 1634, 1640, 1642, 1644, 1649, 1650. C.
N., liv. 143, 144, 145, 146, 821. Procs., 205, 2826, 2805, 5627, 5708, 10426.
Fontes: ANTT. IL. C.P., caderno 109, liv. 301; c. 110, liv. 302; c. 120, liv. 312; c. 130, liv. 319; c. 134, liv.
322. D.D., Cxs. 1578, 1591, 1594, 1605, 1607, 1615, 1618, 1625, 1629, 1634, 1640, 1642, 1644, 1649, 1650.
C. N., liv. 143, 144, 145, 146, 821. Procs., 205, 2826, 2805, 5627, 5708, 10426.
* Utilizamos como critério a separação geográfica das denúncias pelos termos administrativos. Convém ressaltar
que esses marcos se alteraram durante o século XVIII.
30 29
24
20
10
3 3
0
Vila Rica Rio das Rio das Serro Frio Não Total
Velhas Mortes especificada
Fontes: ANTT. IL. C.P., caderno 109, liv. 301; c. 110, liv. 302; c. 120, liv. 312; c. 130, liv. 319; c. 134, liv.
322. D.D., Cxs. 1578, 1591, 1594, 1605, 1607, 1615, 1618, 1625, 1629, 1634, 1640, 1642, 1644, 1649, 1650.
C. N., liv. 143, 144, 145, 146, 821. Procs., 205, 2826, 2805, 5627, 5708, 10426.
De acordo com o gráfico 5 e a figura 1, verificamos que Vila Rica foi a comarca com
maior número (37) de denunciados. O fato de ter sido o território onde estava situada a sede
do bispado pode ser um dos motivos para esse índice elevado. Em seguida vem a comarca do
Rio das Velhas que, segundo Laird W. Bergad, era a comarca mais povoada da capitania de
Minas no ano de 1776, com 99.576 habitantes205.
O Alvará de 1714 decretou o início de criação das primeiras comarcas da capitania. A
legislação regulava a divisão da capitania em três comarcas, que tinham como sede as
principais vilas ou cidades, a saber: Vila Rica (Ouro Preto), Rio das Velhas (Sabará) e Rio das
Mortes (São João del-Rei), e para as quais o governo metropolitano já havia nomeado e
enviado ouvidores. Mas há controvérsias quanto à data de criação das primeiras comarcas,
205
BERGAD, Lair W. Escravidão e história econômica: demografia de Minas Gerais, 1720-1888. Bauru:
EDUSC, 2004, p. 165.
62
alterando entre os anos de 1709 e 1714. Em 1720, seria criada a Comarca de Serro Frio (Vila
do Príncipe) e, em 1815, a Comarca de Paracatu206.
Fonte: adaptado de BERGAD, Lair W. Escravidão e história econômica: demografia de Minas Gerais, 1720-
1888. Bauru: EDUSC, 2004, p. 37.
206
COSTA, Andréa Vanessa da; ROSÁRIO, Val e Rayane Soares. Histórico da Comarca do Rio das Mortes.
Revista Jurisprudência Mineira, Belo Horizonte, a. 65, n° 208, p. 13-26, jan./mar. 2014, p. 17.
63
Na vila de São José del-Rei (atual Tiradentes), em 1795, Manuel José Correa, homem
solteiro, capitão, de cinquenta e tantos anos de idade, natural da cidade do Porto, vivia sua
vida dedicada fervorosamente à religião cristã. Suas ações de católico foram consideradas
“edificantes”, tendo feito várias festas na Matriz daquela Vila “com todo zelo ao Culto
Divino”207, além de manter em sua casa um santuário, considerado o melhor de toda comarca
do Rio das Mortes. Porém, nada disso lhe evitara do infortúnio de ser denunciado por cometer
o abominável pecado de sodomia, quando, em 7 de março daquele ano, Manoel Rodrigues
Pacheco o denunciou ao comissário Nicolau Gomes Xavier, em Vila Rica, “por culpa tão
pública e escandalosa”.
A denúncia é levada adiante, vindo a ordem dos inquisidores de Lisboa, em novembro
de 1797, para que houvesse a abertura das investigações. E assim são determinadas três
diligências, porém em nenhuma delas houve o comparecimento das testemunhas, inclusive do
denunciante Manoel Rodrigues Pacheco. Este alegara sua ausência devido ao sofrimento de
uma febre reumática que o colocou numa cama de onde não podia levantar “por tantas dores
nas juntas”. No entanto, numa explicação valiosa, datada de julho de 1801, no mesmo fólio da
ordem vinda dos inquisidores, descobrimos informações fornecidas pelo vigário Antônio de
Salas Mattos da vila. Segundo o clérigo, havia um conflito entre o capitão denunciado e o
irmão do denunciante em torno de uma demanda de nove mil e tantos cruzados, e desta ação é
que procedeu denunciarem o capitão, em Vila Rica, não só por sodomia, como também por
“hermafrodito”208.
Logo, Manuel José Correa foi conduzido para a Justiça da Câmara, onde na presença
do Juiz Ordinário e uma junta de cirurgiões lhe fizeram “vistorias” para averiguar suas partes
íntimas a fim de apurar seu estado de “homem perfeito”. Podemos notar assim que a denúncia
tramitava também com o apoio da Justiça secular. Não bastasse todo constrangimento causado
207
ANTT. IL. CP 134, liv. 322, fl. 329.
208
No dicionário de Bluteau: “hermaphordito deriva-se do grego, Ermis, Mercúrio, e de Aphroditi, que é um dos
nomes de Venus. Deu-se este nome ao homem ou mulher, que tem ambos os sexos”. In: BLUTEAU. Raphael.
Vocabulário Portuguez e Latino... op. cit., 1713, p. 22. Em Ouro Preto, Francisco Xavier Braga também foi
acusado de “hermafrodita em razão de nele prevalecer o sexo feminino”. O denunciado também é acusado de
viver amigado com um homem em sua casa. In: FIGUEIREDO, Luciano R. A. Peccata mundi, p.124. Ainda que
se associe aos casos de sodomia, de fato, em muitos casos tratava-se de anomalia física como o caso célebre
inquisitorial de Helena de Céspedes. GARCIA, Francisco et alli. Um solo sexo: Invención da monosexualidad y
expulsión del hermafroditismo (Espana siglos XV- XIX). Revista de Filosofia, n.11, p. 95-112, 1995.
64
209
ANTT. IL. CP 134, liv. 322, fl. 329.
210
MOTT, Luiz. Sodomia não é heresia: dissidência moral e contracultura. In: VAINFAS, Ronaldo; FEITLER,
Bruno; LIMA, Lana Lage da Gama (org.). A Inquisição em Xeque. Rio de Janeiro: UERJ, 2006, pp. 253-266.
211
NOVINSKY, Anita. Inquisição... op. cit., p. 44.
212
No Brasil, foram processados 15 homens por luteranismo (1,93%), em contraste com 544 homens e mulheres
condenados por judaísmo (mais de 50% de todos os processos). In: NOVINSKY, Anita. Inquisição... op. cit., p.
46.
213
VAINFAS, Ronaldo. Inquisição como fábrica de hereges: os sodomitas foram exceção? In: VAINFAS
Ronaldo; FEITLER, Bruno; LIMA, Lana Lage da Gama. (orgs.). A Inquisição em Xeque: temas, controvérsias,
estudos de caso. Rio de Janeiro: Ed UERJ, pp. 267- 280, 2006, p. 268.
65
morte na fogueira214. Tal constatação, defendida por Vainfas, estimulou uma polêmica
discussão na historiografia brasileira. Para o historiador, “tratando-se de heresias, tão ou mais
importante que os atos criminosos era a consciência do transgressor ao cometê-las”215. Até
mesmo mais importante que a consumação dos atos sodomíticos era “a frequência das
relações, o gosto pelo sexo nefando e a consciência do praticante em face desses prazeres”216.
Portanto, o autor defende que quando o ato sodomítico era consumado com contumácia,
havia, por parte dos inquisidores, uma assimilação da sodomia à heresia, embora jamais tenha
se confundido com esta. A assimilação “possuía um significado fluido na cultura escrita, no
saber jurídico e, consequentemente, na prática judiciária inquisitorial”217.
Heresia, nos explicará Luiz Mott, “do grego aíresis, significa escolha, preferência. Em
estilo eclesiástico, entende-se por heresia um erro fundamental em matéria de religião, no qual
se persiste com pertinácia”218. Mott rebate que o delito de sodomia tivesse caráter herético,
argumentando que a perseguição aos sodomitas estava mais ligada a uma tentativa de acabar
com uma contracultura, considerada revolucionária e imoral para a Igreja católica, bem como
para a Inquisição e toda sociedade ocidental. Faz isso distinguindo os conceitos de sodomia e
heresia e analisando as opiniões dos inquisidores e dos próprios acusados para desqualificar a
sodomia entendida como heresia219. Segundo Mott, a associação da sodomia à heresia carece
de evidências bibliográficas, além de se tratar de “um equívoco interpretativo”, um “abusão
teológico e histórico”220.
Ronaldo Vainfas, em sua tréplica, assinala ser mais importante considerar no debate a
análise conceitual numa perspectiva histórica e contextualizada, que estimule o exame dos
significados possíveis que o conceito de heresia adquiriu ao longo do tempo, e menos uma
discussão do ponto de vista teológico. Ressalta que procurou demonstrar os vários desvios em
relação à moral católica, não somente a sodomia, metamorfoseados em heresias, ainda que os
desviantes não tivessem a intenção de questionar a fé católica. Dessa forma, a Inquisição é
enxergada como uma fábrica de hereges na qual os sodomitas não foram exceção221.
Quanto à possível assimilação da sodomia à heresia, a historiadora Verônica Gomes
diz não ter dados suficientes para se posicionar, mas destaca o processo do cônego Vicente
Nogueira que escreveu vinte duas páginas e meia, distinguindo o crime de heresia e sodomia,
214
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados... op. cit., pp. 327-351.
215
Id. Ibid., p. 309.
216
Id. Ibid., p. 327.
217
Id. Ibid.
218
MOTT, Luiz. Sodomia não é heresia... op. cit., p. 254.
219
Id. Ibid., p. 253.
220
Id. Ibid., p 265.
221
VAINFAS, Ronaldo. Inquisição como fábrica de hereges...op. cit., pp. 267- 280.
66
afirmando que a heresia era muito mais grave, o maior de todos os crimes, do que a sodomia.
O padre foi condenado ao degredo e, no mesmo processo, os inquisidores assinalaram que
mesmo sendo gravíssimo o crime por ele cometido, ainda estava “abaixo do de heresia”222.
Todavia, Ronaldo Vainfas considera esse caso como uma contraprova do argumento de Mott,
pois o acusado com formação eclesiástica poderia dispensar todo seu esforço em argumentar a
distinção entre sodomia e heresia, caso não fosse o Santo Ofício um tribunal de fé empenhado
em punir heresias223.
Para Matheus R. Pinto, ambas as interpretações não se inviabilizam: “trata-se muito
mais de regular as cores de cada uma, ajustar os prismas pelos quais se focaliza a questão do
que dispensar essa ou aquela consideração por inválida”224. De acordo com o autor, é
importante observar que, para além da assimilação, a perseguição ao nefando deveu-se à
conjuntura política de cada local e de cada época, ao longo da Idade Moderna, seguindo “um
ritmo ditado pelas contingências históricas e não somente por essa ou aquela conceituação
teológica ou puramente jurídica”225. Matheus R. Pinto não duvida que a época Moderna
representou o ápice da intolerância aos amantes do mesmo sexo, principalmente no século
XVII, enquanto um grupo minoritário perseguido pela sua diferença que poderia ser lida
como “imoral e revolucionária”, o que aproxima o autor da defesa de Luiz Mott. Tampouco
duvida da assimilação da sodomia à heresia, pois esta associação pode muito bem ser
entendida como um dos dispositivos discursivos “que intentaram justificar o protagonismo
dos tribunais inquisitoriais nesse tipo de repressão quando e aonde ele foi exercido por essas
instituições”226.
Não é nosso objetivo, neste momento, aprofundar na questão, nem mesmo apresentar
em detalhes a brilhante argumentação dos autores citados. No entanto, de acordo com Maria
Leônia C. de Resende, Mayara A. Januária e Natália G. Turchetti227, a denúncia excepcional
contra o capitão Manuel José Correa poderia abrir novas perspectivas acerca do caráter
herético da sodomia. As historiadoras localizaram o testamento e inventário do denunciado,
datados de 1811, que indicou um caminho não muito convencional seguido pelo capitão, pois
ele não se casou e deixou boa parte de seus bens para seus familiares e irmandades da vila, em
vez de legar sua fortuna para seus prováveis amantes “homossexuais”. A investigação das
222
GOMES, Veronica de Jesus. Vício dos clérigos... op. cit., pp. 80 e 81.
223
VAINFAS, Ronaldo. Inquisição como fábrica de hereges...op. cit., p. 278.
224
PINTO, Matheus Rodrigues. Reconstruindo as muralhas de Sodoma...op. cit., p. 144.
225
Id. Ibid. p. 146.
226
Id. Ibid., p. 148.
227
RESENDE, Maria Leônia Chaves de; JANUÁRIO, Mayara Amanda; TURCHETTI, Natália Gomes. De jure
sacro: a Inquisição nas vilas d‟El Rei. Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 27, nº 45: jan/jun 2011, p. 350.
67
autoras leva a crer que o denunciado comungava muito mais de uma cultura religiosa mineira
dos setecentos do que de uma “subcultura gay”, isto é, não seria o capitão, ao que tudo indica,
nem um herege nem um fanchono contumaz. Conforme as autoras:
228
Id. Ibid.
229
ALMEIDA, Miguel Vale de. Senhores de si: uma interpretação antropológica da masculinidade. 2. ed. Lisboa:
Fim de Século, 2000. 264p. (Colecção antropológica; 2), p. 128.
230
Id. Masculinidade. In: MACEDO, Ana Gabriela; AMARAL, Ana Luísa. (Orgs.). Dicionário da crítica
feminista. Porto: Afrontamento, 2005, p.122-123.
68
representante universal de toda a espécie humana. Porém, entendido a partir daí enquanto uma
identidade masculina, tão somente, o homem começou a perder o privilégio da
universalidade: “a masculinidade começa a ser então mais claramente percebida como
culturalmente específica, variando segundo as sociedades ou, no âmbito de uma mesma
sociedade, segundo diferentes períodos de sua história”231. A desconstrução da masculinidade
como universal fez com que ela perdesse seu caráter a-histórico, possuindo agora não só uma
história, como uma antropologia e uma sociologia232. A criação do conceito surge, portanto, a
partir da tensão social dos movimentos de gênero e sexualidade que questionaram as formas
de poder dominante do sexo masculino, colocando em xeque sua dominação concebida como
“natural”. Para alguns, o movimento feminino foi acusado de desestabilizar “oposições
regulamentadas” e de desestabilizar “pontos de referências estáveis”. Para outros, o
feminismo mostrou a “nudez do rei”233. “Ao pôr fim à distinção entre os papéis e firmar pé
sistematicamente em todos os domínios antes reservados aos homens, as mulheres fizeram
evaporar-se a característica universal masculina: a superioridade do homem sobre a
mulher”234.
A partir da década de 1980, a corrente de estudos sobre masculinidade hegemônica,
tomada de empréstimo do filósofo Antonio Gramsci235, utilizou como principal referencial
teórico as pesquisas da cientista social australiana Raewyn Connell. A formulação da autora
permitiu que o conceito de masculinidades – desenvolvido no plural, pois são vários modelos
convivendo socialmente através de relações de poder – fosse aplicado em diversas áreas do
saber: estudos da educação; criminologia; representação do homem na mídia, em esportes
comerciais; na área da saúde, principalmente em comportamentos que envolvem situações de
risco; discussões de práticas profissionais; políticas de gênero e as relações destes com o
feminismo236.
Masculinidades, assim como feminilidades – uma vez que são conceitos relacionais –
“são projetos de gênero, processos de configuração de práticas sociais no tempo e que
transformam seus pontos de partida em estruturas de gênero”237. Connell definiu o gênero
231
HEILBORN, Maria Luiza; CARRARA, Sérgio. Em cena, os homens... Revista Estudos Feministas,
Florianópolis, v. 6, n. 2, p. 370-375, 1998, p. 372.
232
Id. Ibid.
233
BADINTER, Elisabeth. XY. Sobre a identidade masculina. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993, p. 6.
234
Id. Ibid.
235
Este, obviamente, não utilizou o conceito para analisar questões de gênero, mas sim as relações de classe na
Itália sua contemporânea. ALMEIDA, Miguel Vale de. Senhores de si... op. cit., p. 155.
236
CONNELL, Robert W.; MESSERSCHMIDT, James W. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito.
Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 424, janeiro-abril/2013, pp. 241-249; ROCHA, Cássio Bruno de
Araújo. Masculinidades e Inquisição... op. cit., p. 49.
237
ROCHA, Cássio Bruno de Araújo. Masculinidades e Inquisição... op. cit., p. 51.
69
como um modo pelo qual as práticas sociais são ordenadas, e constantemente referem-se aos
corpos e às suas ações, sem, entretanto, se reduzir ao corpo e à biologia. “Enquanto
configurações de práticas, masculinidades e feminilidades posicionam-se, ao mesmo tempo,
em várias estruturas relacionais, que podem decorrer de diferentes trajetórias históricas. São,
por conseguinte, sujeitas a contradições internas e a rupturas”238.
O antropólogo Miguel Vale de Almeida, em sua pesquisa realizada na aldeia de
Pardais, no Alentejo (Portugal), utilizou do conceito de Connell, contribuindo assim para sua
divulgação nos países de língua portuguesa. Conforme o autor: “baseada na distinção que a
antropologia sempre promoveu entre biologia e cultura, e elaborada a partir dos anos sessenta
pela teoria crítica feminista, a separação conceitual entre sexo e gênero dá a entender que o
segundo é a elaboração cultural do primeiro”239. Neste sentido, existem requisitos culturais
para que um indivíduo do sexo masculino seja considerado homem. Prossegue o antropólogo
nos dizendo que esses requisitos “não se localizam ao nível estrito do corpo [...], eles
espalham-se por todos os níveis do social, desde a família ao trabalho, do prestígio ao status,
da classe social à idade, passando pela linguagem verbal e gestual, enfim, a lista seria tão
vasta quanto a totalidade do social”240.
Miguel Vale de Almeida utilizará também do conceito de “masculinidade
hegemônica” que se refere à capacidade de imposição de um modelo de masculinidade sobre
outros tipos. A hegemonia reporta-se a uma forma de exaltação e dominação de um modelo
sobre outros tipos de masculinidades. Uma dominação em que o dominado é sujeito partícipe.
Importante lembrar que a “masculinidade hegemônica” é sempre heterossexual e
correspondente às características de poucos homens, sendo assim apenas almejada por muitos.
No entanto, o conceito “permite uma concepção mais dinâmica de masculinidade, entendida
assim como estrutura de relações sociais, em que várias masculinidades não hegemônicas
subsistem, ainda que reprimidas e auto-reprimidas por esse consenso e senso comum
hegemônico”241.
Cassio Bruno de Araújo Rocha, em estudo inédito, mostrou como ser possível indagar
as fontes inquisitoriais sob a perspectiva conceitual das masculinidades, utilizando os autores
acima mencionados. O autor vai além e trabalha com os conceitos de gênero e
performatividade de gênero a partir, principalmente, dos estudos de Joan W. Scott e de Judith
Butler. A performatividade, explica o historiador, “tem o sentido principal de restringir e
238
Id. Ibid.
239
ALMEIDA, Miguel Vale de Almeida. Senhores de si... op. cit., p. 128.
240
Id. Ibid., pp. 128-129.
241
Id. Ibid., p. 155.
70
normatizar as construções de gênero; o que faz por meio das repetições contínuas dos ideais e
das normas que são protagonizadas pelos e nos corpos”242. A necessidade da repetição sem
fim proporciona a eclosão de modos diferentes de experimentar os gêneros. Cássio Bruno
Rocha investiga como os gêneros foram construídos por homens e mulheres no norte da
América portuguesa entre meados do século XVI e XVII. Para isso, se debruça na
documentação das duas primeiras visitações do Santo Ofício na região. Portanto, as fontes por
ele utilizadas não são inéditas, mas o ineditismo do seu trabalho está nas perguntas que são
dirigidas ao seu objeto. Dessa forma, o historiador investiga “os modos como diferentes
formas de masculinidades puderam ser construídas pelos colonos de modo a reforçar o poder
patriarcal, ainda que em conflito com dogmas da Igreja Católica”243. Por outro lado, analisa as
feminilidades pela perspectiva de uma potencial subversão ao papel subserviente e oprimido
consagrado às mulheres na ordem patriarcal.
Perguntamo-nos, afinal, o que significava ser homem no século XVIII? Utilizando
apenas as fontes inquisitoriais fica difícil responder, pois aos inquisidores mais interessavam
investigar a consumação do ato de sodomia do que os comportamentos morais e sentimentais
dos culpados. Diante disso, é preciso recorrer a alguns estudos que nos dê maior
embasamento. O clássico autor Gilberto Freyre mostra como o sistema patriarcal estabeleceu
extrema especialização moral ou diferenciação dos sexos nos tempos da casa grande e, mais
tarde, dos sobrados. Dentro do patriarcalismo, o homem teria as qualidades de um ser forte,
dominador, viril. A mulher seria sexo frágil, doce, neurótica, romântica, caseira, religiosa,
bela, ainda que “uma beleza meio mórbida”, que ajustava sua figura aos interesses do sexo
dominante e da sociedade organizada sobre o domínio exclusivo de uma classe, de uma raça e
de um sexo244. Ambos carregavam em suas performatividades um conjunto de caracteres
muito além daqueles restritos aos seus corpos, conforme a questão conceitual nos elucida.
Ao homem, por via de regra, era permitido todo tipo de circulação, de iniciativa,
interação social ou “de contatos diversos, limitando as oportunidades da mulher ao serviço e
às artes domésticas, ao contato com os filhos, a parentela, as amas, as velhas, os escravos. E
uma vez por outra, num tipo de sociedade Católica como a brasileira, ao contato com o
confessor”245. O gênero masculino também se definia através das modas, fosse de vestuário,
calçado, tipo de penteado, fosse a moda dos bigodes ou das barbas grandes. Homens sem
242
ROCHA, Cássio Bruno de Araújo. Masculinidades e Inquisição... op. cit., p. 95.
243
Id. Ibid. p. 48.
244
FREYRE, Gilberto. A mulher e o homem. In: Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e
desenvolvimento urbano. – 10ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 1998, pp. 93 e 96.
245
Id. Ibid. p. 93.
71
barbas ou sem bigodes poderiam ser considerados “maricas de face cor-de-rosa, bem
barbeada, lisa, como a de uma moça ou mulher bonita”246. Por outro lado, a mulher patriarcal,
aparecendo na igreja e nas festas, destacava-se do outro sexo e também de mulheres de outras
classes e raças “pelo excesso ou exagero de enfeite, de ornamentação, de babado, de renda, de
pluma, de fita, de ouro fino, de joias, de anel nos dedos, de bichas nas orelhas” 247, apesar de
andar dentro de casa de “cabeção e chileno sem meia”. Convém destacar que Gilberto Freyre
elucida mais as características próprias de homens e mulheres brancas (os), as quais se
encaixariam aqui nos padrões da hegemonia. E, a “masculinidade hegemônica” do senhor de
engenho ou do sobrado, aspirada por muitos, permitia a ele andar de chambre em casa e nas
ruas ostentar suas “condecorações e insígnias de mando”. Um homem “superornamenteado”,
senhor e dono de outros homens, que também em público ostentava suas “esporas, espadas,
bengalas revestidas de ouro” 248.
Enquanto isso, aos negros (negras) e aos escravos (escravas), proibia-se “o uso de
joias e de teteias de ouro que era para ficar bem marcada no trajo a diferença de raça e de
classe. As mucamas bem-vestidas e cheias de joias, estas representavam um prolongamento
das suas iaiás brancas quando se exibiam em festas de igreja ou de rua”249. Quanto aos negros
forros, caboclos ou mulatos livres, Freyre vai mostrar que estes “se esmeravam quase tanto
quanto os brancos em trazê-los bem penteados e luzindo de óleo de coco, os homens
caprichando quase tanto no penteado quanto as mulheres; os adolescentes de colégio quase
tanto quanto os desembargadores”, e, continua o autor, “até negros fugidos surgem
excepcional e escandalosamente dos anúncios de jornais com „cabelo cortado à francesa‟ e
„barbas à nazarena‟. Deviam ser escravos privilegiados”250. Novamente sobre os homens da
casa grande e sobrados, Gilberto Freyre afirma que:
246
Id. Ibid. p. 98.
247
Id. Ibid. pp. 98-99.
248
Id. Ibid. p. 100.
249
Id. Ibid. p. 101.
250
Id. Ibid.
72
o mesmo ser franzino que a mulher, debilitado quase tanto quanto ela pela inércia e
pela vida lânguida, porém em situação privilegiada de dominar e de mandar do
alto251.
A mulher ainda estaria totalmente de fora do mundo e até dos assuntos políticos, ou
qualquer assunto “que fosse de menos doméstico, de menos gracioso, de menos gentil; quase
nunca metendo-se em assuntos de homem”. Padre Lopes Gama, na primeira metade do século
XIX, bradava contra as mulheres dos sobrados como se elas fossem pecadoras, certamente
saudosista de tempos pretéritos, do século passado:
Para o padre-mestre, a boa mãe de família não devia preocupar-se senão com a
administração de sua casa, levantando-se cedo a fim de dar andamento aos serviços,
ver se partir a lenha, se fazer o fogo na cozinha, se matar a galinha mais gorda para a
canja; a fim de dar ordem ao jantar, que era às quatro horas, e dirigir as costuras das
mucamas e mulecas, que também remendavam, cerziam, remontavam, alinhavam a
roupa da casa, fabricavam sabão, vela, vinho, licor, doce, geleia. Mas tudo devia ser
fiscalizado pela iaiá branca, que às vezes não tirava o chicote da mão 252 .
Diante do exposto, retomamos ao caso de Manuel José Correa que deixara indícios
bem marcantes quanto à quebra dos códigos de uma “masculinidade hegemônica”. De uma
religiosidade exacerbada, o capitão nunca era visto na companhia amorosa de mulheres, do
que surgiu a fama de impotente. Era ainda afamado de ter “gênio de mulher” com posturas
caracterizadas como “extravagantes”, o que só pode nos indicar condutas efeminadas. Foram
essas características reservadas ao sexo feminino fundamentais para que fosse enquadrado
enquanto sodomita, e até mesmo “hermafrodita”. Embora fosse um homem poderoso, e,
provavelmente, bem visto socialmente por suas ações cristãs “edificantes”, havia evidências
mais fortes que permitiram a dúvida quanto a sua natureza “masculina”, caso contrário não
seria necessário que uma equipe médica fiscalizasse seu corpo com o intuito de atestar sua
“normalidade”. Talvez o capitão nunca tivesse vivenciado uma experiência “homossexual”,
talvez nem sequer tivesse desejos sexuais por pessoas do mesmo sexo. O fato é que seus
comportamentos do dia a dia – ou suas performatividades de gênero – não parecem ter sido
socialmente aceitos enquanto comportamentos inerentes a um homem, o que expressa a
transgressão dos modelos de masculinidades permitidos nos setecentos, ou que ainda indique
vivências de outras masculinidades possíveis, mais próximas de uma feminilidade.
251
Id. Ibid.
252
Id. Ibid. p. 109.
73
Sodomia
perfeita e
imperfeita
9,4 %
Sodomia
imperfeita
17,7 % Sodomia
perfeita
72,9%
Fontes: ANTT. IL. C.P., c. 109, liv. 301; c. 110, liv. 302; c. 120, liv. 312; c. 130, liv. 319; c. 134, liv. 322.
D.D., Cxs. 1578, 1591, 1594, 1605, 1607, 1615, 1618, 1625, 1629, 1634, 1640, 1642, 1644, 1649, 1650. C. N.,
liv. 143, 144, 145, 146, 821. Procs., 205, 2826, 2805, 5627, 5708, 10426.
253
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados... op. cit., p. 339.
254
Id. Ibid., p. 341.
255
Id. Ibid., p. 342.
74
Muitos dos casos vieram à tona através de confissões, pois, apesar da misericórdia do
tribunal para com os pecadores praticantes da cópula anal heterossexual, o medo da punição
por sodomia aterrorizava a todos. Na região das Minas, vemos os mais variados tipos de
desfechos nas relações, fossem das esposas que denunciavam seus maridos, fossem dos
escravos e escravas confessando as violências de seus senhores. Mas, em geral, segundo
Vainfas, esses infelizes se apavoravam à toa256, porque a justiça inquisitorial no máximo
admoestava-os a não pecar mais no nefando. Ao decidir que competia ao Santo Ofício o
combate à sodomia imperfeita, embora teoricamente fosse mantida a coerência com a
repugnância ao sexo anal, na prática a lei só sentiu seu efeito sobre os amantes do mesmo
sexo, sobretudo, masculino, pois:
256
Id. Ibid., p. 341.
257
Id. Ibid., p. 344.
258
ANTT. IL. DD., cx., 1607/15361.
259
ANTT. IL. DD., cx., 1644/17582.
260
Oficial municipal encarregado da fiscalização das medidas e dos pesos, da taxação dos preços dos alimentos e
de distribuir ou regular a distribuição dos mesmos em tempos de maior escassez.
75
Quase um mês depois, Manoel da Silva Rabelo confessou que ele e Catarina Rocha
disseram por paixão “várias asneiras”: “aonde ela disse que eu tinha tido cópula com ela tanto
por diante como pela via detrás, o que tal não houve, só sim pequei pelo vaso natural três ou
quatro vezes com a dita, e como estas palavras desonestas foram públicas me acuso”261.
Catarina da Rocha também se apresentou, declarando que fora chamada naquela casa por uma
petição de levada a requerimento de Manoel Rabelo sobre oitava e meia de ouro, e por sua
paixão quis envergonhá-lo em presença das testemunhas, dizendo que o dito não só copulava
carnalmente como também pela via detrás, mas que não consumou porque ela sempre se
defendia262. Enfim, Catarina poderia ter dito publicamente aquilo realmente para macular a
imagem do seu parceiro, pois, segundo ela, o sobredito queria cobrá-la uma quantia que já
tinha quitado na forma das práticas sexuais que mantinham. Ou talvez, os dois realmente
tinham relações sodomíticas heterossexuais, isto é, pela via detrás, e só voltaram atrás devido
o escândalo que causaram, assim como pelo medo de serem punidos pela Inquisição.
A declaração condenatória de Deus para Eva: "multiplicarei grandemente o seu
sofrimento na gravidez; com sofrimento você dará à luz filhos. Seu desejo será para o seu
marido, e ele a dominará"263, parece ter sido um fado doloroso para muitas mulheres nas
Minas setecentistas, vitimadas sexualmente no dia a dia pela dominação de seus maridos. Em
Sabará, 1778, Manoel Alves Pinheiro, tenente, foi denunciado por sodomia, barbaridades e
judiarias. O denunciante que “assistia” em sua casa narra uma série de atrocidades que
Manoel Pinheiro cometia com os escravos e com a própria mulher, chegando a violentá-la
sexualmente certa vez com um cabo de martelo. A testemunha vira o tenente castigar um
escravo na “gonilha”264 por quatro dias. Em outra ocasião, obrigou o escravo a pegar no seu
membro “até ficar duro e depois rebolar”, e quando não fazia o açoitava. Feito isto, deu ordem
a dois escravos para capá-lo ao que o dito escravo castigado começou a gritar de dor e os
outros escravos seus parceiros rogaram para que o senhor não fizesse aquilo, pois “era criatura
humana”. Tudo isso porque tinha o costume de “judiar” dos escravos quando estes não
consentiam nos seus desejos sexuais. E, quando tinha raiva de qualquer escravo dava lhe de
comer “frago” (excremento) de gente, de cachorro ou porco. Numa outra ocasião, ouvindo
uns gemidos e choros, veio uma filha do tenente pedir para que ele testemunha acudisse sua
mãe que seu pai a estava matando. E, indo ele socorrer, viu a mulher deitada de costa e o dito
261
ANTT. IL. DD., cx., 1644/17582, fl. 3.
262
ANTT. IL. DD., cx., 1644/17582, fl. 4.
263
Disponível em: https://www.suabiblia.com/genesis_3/. Acesso em: 18 de agosto de 2019.
264
Instrumento que prendia o pescoço do escravo numa argola de ferro. Ver: SANTOS, Vilson Pereira dos.
Técnicas da tortura: punições e castigos de escravos no Brasil escravista. Enciclopédia Biosfera, Centro
Científico Conhecer - Goiânia, v.9, N.16; p. 2396, 2013.
76
Pinheiro com um martelo na mão, ao que saiu para a roça, deixando a mulher aos prantos, que
disse que queria ir embora daquela casa “pois já não podia com semelhantes judiarias” e que o
dito marido lhe tinha metido o cabo do martelo pelo vaso. A mulher ainda confessou que seu
esposo emprenhou desonestamente uma sua irmã e depois a botou para fora da casa, e que o
marido vivia amancebado com uma escrava e “de tudo poderia sofrer, mas fazer o matrimônio
pela via traseira isso (era) o que mais lhe custava e quando fazia não consentia que se
confessasse senão com clérigos de fora”265. Ou seja, o denunciado não permitia que a esposa
confessasse com padres locais, numa tentativa de abafar o que praticava com ela.
Não foram raros os casos de mulheres que denunciaram seus próprios maridos por
sofrerem deles o abominável pecado de sodomia. Na maioria das vezes, pela forte
repugnância da esposa, o marido demonstrou toda sua truculência. No arraial de Nossa
Senhora de Nazaré (Nazareno), 1751, Maria Alves (ou Álvares) Pimentel, mulher de João
Leite do Prado, denuncia que “com medo da morte e rigoroso castigo com que o seu marido a
maltratava, tinha consentido no pecado nefando da sodomia que o dito seu marido tinha
compelido por várias vezes”266. Naquelas noites do sertão mineiro de pouca luz, o marido
tirava suas roupas, estando ela a dormir, e cuspia-lhe nas suas “partes verendas”267,
esquecendo “totalmente das obrigações de católico”. Maria Pimentel já o tinha denunciado
por conselho do seu confessor, mas tornava a denunciá-lo, mesmo sob as ameaças de morte
que sofria. Após a denúncia, é aberto um auto sumário e sete testemunhas são inquiridas para
arguição. A maioria disse que o marido era bêbado e por isso estava perdendo o juízo. Uma
disse que sabia por ouvir dizer que o marido usava de sua mulher tanto pela via natural quanto
pela via contrária a natureza, e que quis desonrar sua própria filha. Outra testemunha, o irmão
da denunciante, alegou que cunhado já havia ferido a esposa e sua filha com pau e faca, e que
“estando ela na cama dormindo acordando-se achava ao dito seu marido Joao Leite do Prado
com uma luz aluminando lhe as partes verendas”.
O capitão Manuel Dias relatou que Maria Pimentel foi lhe pedir “pelo amor de Deus
lhe desse algum remédio”, ao que ele testemunha perguntou: “qual era a causa de sua
desconsolação”. Por sua vez, a esposa lhe disse que o padre a negara absolvição dos seus
pecados: “por ela haver confessado que havia três anos que o dito seu marido cometera com
ela o pecado nefando de sodomia e que algumas vezes lhe abria as pernas cuspindo-lhe no
vaso como por desprezo”. A negação do padre em absolver as culpas da confissão impunha a
265
ANTT. IL. CP. 130, liv. 319, fl. 47.
266
ANTT. IL. CN., caderno 20º, liv. 145, fl. 254.
267
Partes pudendas; expressão referente aos genitais femininos.
77
268
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 446.
269
ANTT. IL. DD., cx., 1642/17376.
270
ANTT. IL. DD., cx., 1642/17375, fl. 83.
271
Golpe de cutelo, faca, sabre, espada etc.
272
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 450.
78
vara de Vila Rica as causas da sua fuga. Porém, inconformado com a separação, o marido fez
alguns requerimentos para que ela voltasse à sua companhia. E mesmo ela reiterando, na
presença de seu marido, as causas porque não “fazia vida” com ele, o vigário a obrigou voltar
para casa. Tão logo o dito Jacinto da Costa Telles tornou a praticar o pecado de sodomia a
força com sua mulher, principalmente quando ela estava dormindo. Mais uma vez, Ana Maria
corajosamente fugiu de casa do que resultou segunda denúncia na cidade de Mariana em
1772273.
Muitos documentos são comprobatórios da violência dos homens brancos para com
seus escravos, tanto nas relações heterossexuais quanto homossexuais. Convém ressaltar que
ao denunciá-los, muitos escravos também atestaram que não eram meros objetos sexuais de
seus senhores274. Em Vila Rica, 1733, Manoel Oliveira Braga, minerador, era infamado de
cometer o pecado nefando com suas escravas, que se queixavam do seu senhor publicamente.
Procedera, assim, com uma preta chamada Mariana de nação Cobu que fora sua escrava,
vendida para uma parda forra chamada Inácia de Jesus. Segundo a escrava, o seu senhor tinha
usado dela sodomiticamente quando ainda era de poucos anos275. Tempos depois, em 1735,
outra denúncia surge contra Manoel de Oliveira Braga. Desta vez, sucedeu de ser acusado por
sodomizar não só a negra Mariana, como também sua escrava Isabel e uma negra forra Josefa
Mina. Esta fora ouvida pelos vizinhos: “gritando contra o mesmo denunciado porque usando
mal dela pela via natural a cometera pela transversa”276, ou seja, pela via anal. Um vizinho
ainda disse que o denunciado dormia com duas negras que eram suas mulheres no dito
pecado, e que entrando em sua casa na quaresma e: “vendo-o comer carne lhe advertira que
era pecado ao que ele respondeu que não era pecado e que não havia inferno. E que (vivia)
com escândalo em todas as suas ações, de tal sorte que a ele os mesmos negros dizem que
(deveria) ser judeu”277.
Na comarca do Rio das Mortes, 1755, a preta Clara, moradora atrás da Serra da
Ibituruna, disse que quando era escrava de Manuel Nunes Pelouro, homem casado, este
andava remetendo-a para atos sodomíticos: “levantando-lhe as roupas sem embargo dela o
recusar; e pretendendo meter-lhe a natura pela via detrás, por várias vezes, o veio a conseguir
273
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 437.
274
Sobre atuações escravas como formas de reivindicação e estratégias de sobrevivência ante os maus tratos e
castigos senhoriais nos setecentos, ver: LARA, Sílvia Hunold. Campos da violência. Escravos e senhores na
Capitania do Rio de Janeiro. 1750-1808. Paz e Terra, 1988; REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociações e
Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
275
ANTT. IL. DD., cx., 1618/15965.
276
ANTT. IL. DD., cx., 1649/17851, fl. 2v.
277
ANTT. IL. DD., cx., 1649/17851, fl. 2v.
79
por duas vezes”278. Em ambos os atos: “não só penetrara pela via detrás, mas dentro do
mesmo lançara o sêmen sem resistir do seu intento diabólico por mais que ela o repugnava
intimidando-a que se dissesse a alguma coisa as facadas o havia acabar, pois era sua cativa o
havia ser em tudo”279. O senhor ainda chegava a cheirar as partes vergonhosas da escrava, a
qual disse não ter falado nada para ninguém por medo que tinha dele. Só depois que saiu de
seu poder foi que a escrava Clara revelou os abusos que sofria.
A documentação inquisitorial também nos revela demonstrações de ciúmes vindas dos
senhores na forma mais violenta possível. Alexandre Ferreira, reinol, foi denunciar-se em Vila
Rica que – residindo na fazenda de seu irmão Manoel Ferreira na Paraopeba, termo da Vila de
Sabará, 1734 – havia tratado ilicitamente com uma negra por nome Rita Nação Mina, escrava
de outra negra forra. Ao descobrir que um escravo do seu irmão, um negro por nome Antônio,
também tivera cópula com a sobredita escrava, Alexandre o obrigou mostrar o sítio em que
tivera a relação sexual com a negra. No mesmo local, fez o escravo deitar-se para ter com ele
cópula sodomítica consumada. Alexandre Ferreira confessou que fizera todo o ato sodomítico
com o negro movido por sua fragilidade e vingança, e se acusava pedindo “humildemente
perdão e a absolvição da dita culpa por se livrar de todo o escrúpulo”280.
Em duas denúncias notamos relatos mais amenos por parte das mulheres negras
sodomizadas. Por um lado, isso pode indicar um medo maior por parte das denunciantes, por
outro lado, pode apontar para certo consentimento das parceiras. A primeira denúncia partiu
de Felícia Bárbara de Abreu – parda forra, moradora no Morro da Passagem da freguesia de
Vila do Carmo, 1745 – que confessou atos incompletos de cópula pelo vaso prepóstero que
tivera com Francisco da Silva Fajardo, reinol, homem casado na sua terra281. Aqui a
denunciante não expressa repugnância tão enfática como vemos na maioria dos casos, mas
isso pouco revela sobre certo consentimento na relação, pois o fato de não dizer de forma
mais incisiva que era violentada pode ter muitas razões, inclusive, o medo de uma retaliação.
O segundo caso envolve o reinol Jerônimo de Araújo Souza, homem solteiro que era
morador em Sabará, 1755, que sodomizou três ou quatro negras. Ao retornar para Lisboa,
apresentou-se voluntariamente dizendo que na fazenda em que morava conhecera uma preta
chamada Gertrudes, casada com um preto, e, em uma ocasião, teve acesso carnal com a dita
preta e ficou entendendo que a havia penetrado pelo “vaso prepóstero com seminação”.
Porém, apenas presumia porque a preta lhe deu depois algumas razões para duvidar da
278
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 149.
279
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 149.
280
ANTT. IL. DD., cx. 1625/16470, fl. 14.
281
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 39.
80
consumação do ato: “sendo certo que o seu ânimo era só consumar o ato de cópula pela vaso
natural, e não (sabia) depor com certeza se o engano foi dele declarante cego do apetite, ou da
dita preta”282. Ainda tinha copulado com mais três ou quatro pretas: “levantando-lhe as pernas
na forma que fez a sobredita”, mas novamente não sabia se sucedera a consumação dos atos.
O etno-historiador Luiz Mott, analisando tal denúncia num ensaio, sugeriu que havia
consentimento por parte das negras na cópula sodomítica com o reinol Jerônimo de Araújo283.
Entretanto, não compartilhamos de tal interpretação, pois o confitente poderia ter dito que as
negras negavam a consumação do ato para simplesmente amenizar a gravidade do pecado,
pois é difícil crer que tantas vezes o reinol não se lembrasse de ter ejaculado dentro do vaso
das parceiras. Ao contrário, se admitisse a consumação do ato, o confitente poderia se
autocondenar, dada a obsessão dos inquisidores em confirmar a ejaculação anal, o que pela
repetição dos atos poderia ser assimilado à heresia. Por isso, parece mais plausível a hipótese
de que o esquecimento do nosso reinol sobre suas ejaculações seria na verdade uma estratégia.
Pouquíssimas denúncias de sodomia imperfeita resultaram na prisão dos acusados,
aliás, localizamos dois casos nas terras mineiras, para sermos mais exatos. Um deles ocorreu
em 1757, na Vila do Príncipe, onde André Vieira Cardoso de Macedo, capitão e familiar do
Santo Ofício, foi denunciado por sodomia pela sua mulata, por nome Perpétua, ao Ouvidor
Geral e Corregedor que foi da Comarca do Serro Frio, José Pinto de Morais Barcelos. As
circunstâncias resultaram na devassa e prisão do capitão, metido de imediato na enxovia.
Entretanto, o capitão lançou a proposta de alforriar a dita mulata caso ela se desdissesse.
Assim sendo, diante da promessa de liberdade, e induzida por terceiros, a mulata se desdisse.
Diante disso, e também por ter sido acusado de blasfêmia e por ludibriar um homem com
bebidas, o comissário Lourenço José de Queirós Coimbra remeteu a denúncia aos
inquisidores, ressaltando o agravante de ser o denunciado familiar do Santo Oficio284.
Na cadeia da vila de Pitangui, Antônio de Moura de Carvalho sofreu algo único no que
diz respeito aos homens que cometiam práticas sexuais com mulheres pela via detrás. Nosso
acusado, ao que tudo indica, passou mais de dez anos preso. A denúncia que fora movida pelo
Promotor de Justiça, Sebastião de Paiva, teve como base o suposto abuso sodomítico que teria
sofrido a escrava Teresa de nação Mina por parte do seu senhor. Antônio de Moura de
Carvalho, de 37 anos de idade, solteiro, natural de Santo André de Molares, vivia de comprar
282
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 147.
283
MOTT, Luiz. O sexo cativo: alternativas eróticas dos africanos e seus descendentes no Brasil escravista. In: O
sexo proibido...op. cit., p. 56.
284
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 250.
81
negros no Rio de Janeiro e vendê-los nas Minas. Em Pitangui, residia há mais de um ano com
sua escrava em casa de uma negra, por nome Ana, casada com o preto Inácio, ambos forros.
Eis que tudo se inicia pelos idos de 1741. Numa madrugada adentro, certamente como
já de costume, o senhor fora ter tratos sodomíticos com sua escrava. Esta, no entanto, pela
forte repugnância que sentia, reagiu aos gritos, ao que fora socorrida por Inácio da Costa e sua
esposa, todos moradores na mesma casa. Quando os dois chegaram para acudir a escrava
Teresa, encontraram Antônio de Moura “decomposto”: “safando com a dita negra, a qual
tinha presa com uma corda”. Ao ser repreendido, o senhor respondeu que fossem governar
suas vidas “e que ele podia fazer do seu dinheiro o que quisesse”.
Na manhã seguinte, segundo os relatos da escrava Teresa, o denunciado a levou pela
rua até a casa de Francisco da Costa Ribeiro, capitão mor, para castigá-la. Ao ser questionada
pelo capitão sobre o porquê do castigo, a escrava respondeu que era por ter gritado quando o
seu senhor cometia com ela ato sodomítico. No entanto, ao depor, Francisco da Costa disse
que tudo o que a escrava se referia era falso. Ele alegou que a queixa da escrava contra seu
dono lhe parecia ser mentira. Disse ainda que: “viu uma vez presa por donde ele esteve, mas
que fora por ordem da intendência para ver se tinha seu senhor pago as capitações, e que
mostrou escrito em como tinha pago e logo largaram a negra, e que por outra coisa nunca a
vira algemada”.
A escrava Teresa ainda afirmou em seu interrogatório que em outras ocasiões seu
dono queria com ela cometer sodomia em casa de Antônio Veras, ao que ela lutou até que
conseguiu fugir para a casa de João Nunes, chorando, e dali seguiu que Antônio Veras “correu
com ele dizendo lhe que semelhantes desaforos não queria em sua casa”. Mas, em seu
testemunho, Antônio Veras negou ter expulsado Antônio de Moura de sua casa e que este se
retirou por vontade própria, e que sabia por ouvir dizer que a negra Teresa tinha dito aquilo
por induzimento da preta forra, Ana, e de seu marido forro, Inácio da Costa, tudo com o
intuito de adquirir sua liberdade. João Nunes e sua mulher Ana disseram que só ouviram a
acusação de sodomia contra Antônio de Moura partir da sua negra.
Duas testemunhas reiteraram que a denúncia não passava de um conluio do casal forro
com a escrava. Francisco Ribeiro de Araújo disse que somente ouvia dizer que a dita negra se
queixava que seu dono queria usar dela pelo vaso prepóstero, mas não tinha notícia que
Antônio de Moura cometia tão grave erro: “só sabia que a negra dizia isso de seu senhor por
conselho de uma negra forra”. Teresa de Jesus, mulata forra, também disse que a escrava de
Antônio Moura dizia aquilo por conselho do casal de forros, para que sendo aquilo público
haviam de prender o seu senhor e ela havia de ficar forra.
82
Embora essa denúncia tivesse fortes indícios de um complô urdido pelos pretos forros,
que, provavelmente, sabidos da gravidade do delito inventaram algo terrível contra o senhor
para que assim sua escrava adquirisse a tão almejada liberdade, o Promotor de Justiça,
Sebastião de Paiva, decretou que o acusado fosse preso. A prisão ocorreu muito antes da
abertura da inquirição das testemunhas, em 18 setembro de 1741, talvez motivada por alguma
desavença pessoal. Na ocasião da prisão e confisco de todos os bens, o representante da
justiça secular justificou que aquele delito de sodomia deveria “ser rigoroso e muito castigado
por ser contra o Direito Divino e humano e por ele (merecia) a supra dita pena de morte na
forma da lei citada”285.
Terminada a primeira parte do sumário, em 19 outubro de 1741, fora feito o mandado
de despacho ao reverendo João Soares Brandão, pároco da freguesia Rio das Pedras e
comissário do Santo Ofício, advertindo ser levada a documentação juntamente com o preso.
Entretanto, algo de inusitado ocorreu: o promotor de justiça, Bento dos Reis da Silva, notou
tardiamente que o despacho não tinha sido dado. Isso nada mais, nada menos do que aos 22
dias de fevereiro de 1752, isto é, depois de 10 anos e 5 meses.
Atravessando o oceano atlântico, o sumário é finalmente remetido a Lisboa, e de lá
vem o veredito dos inquisidores, em 23 de março de 1753, totalmente contrário ao argumento
fundamentado pelo Promotor de Justiça:
Foram vistos na mesa do Santo Ofício desta Inquisição de Lisboa os ditos das
testemunhas do sumário que o vigário da vara de Pitangui fez contra Antônio de
Moura de Carvalho conteúdo no requerimento do promotor e o mesmo
requerimento. E pareceu a todos os votos que aprova não era para se proceder contra
o delato, e que por tanto se avise algum comissário inteligente para dar a
providência (?) para ser posto o delato na sua liberdade, e se lhe sentar o sequestro
feito em seus bens por ordem do mesmo vigário da vara. E que outro sim nos
informe o dito comissário do motivo que houve para se demorar tanto tempo a
remessa deste sumário286.
285
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 161.
286
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 159v., grifos nossos.
287
MOTT, Luiz. Cupido na sala de aula: pedofilia e pederastia no Brasil Antigo. Cadernos de Pesquisa, São
Paulo (69), 32-9; maio 1989, p. 37.
83
liberdade, assim como uma investigação arbitrária por parte do promotor e do vigário da vila,
daí os inquisidores exigirem que “se avise algum comissário inteligente”, além dos
esclarecimentos quanto à demora da remessa da documentação. Os representantes da justiça
inquisitorial na colônia deixaram evidentes seus desconhecimentos quanto às leis regimentais
do Santo Ofício, agindo cada um a seu bel prazer.
Em Vila Rica, aos 16 dias de outubro de 1753, o comissário Lourenço José de Queirós
Coimbra recebe a ordem expressa vinda de Lisboa e intima que Antônio de Moura de
Carvalho fosse posto em liberdade, remetendo uma certidão jurada, além de que se levantasse
o sequestro feito em seus bens e explicado o motivo da demora de tanto tempo para remeter o
sumário. O vigário da vara de Pitangui, Antônio Correa Mayrinch, obedeceu todas às ordens,
menos a soltura, pois o denunciado não se encontrava mais preso naquela freguesia há muitos
anos, segundo sua alegação. Ressaltou ainda que a denúncia pela qual Antônio de Moura fora
preso não era de seu tempo, mas sim de Felipe de Lacontri. Diante disso, não sabia a causa do
atraso no despacho. Indagamo-nos quanto ao destino do denunciado, até quando ficara na
prisão, mas não conseguimos encontrar uma resposta plausível apenas pela documentação
inquisitorial, o que pode ser feito através de uma pesquisa mais aprofundada sobre outras
fontes.
O intenso fluxo migratório para as terras mineiras, causado pela busca incessante de
ouro e diamantes, resultou numa amálgama de etnias com enorme concentração de escravos
na região, que, de acordo com Ronaldo Vainfas, “nos meados do século XVIII, chegavam a
70% de uma população de 266.668 habitantes”288. Segundo Luiz Mott, “nas Minas Gerais, em
1719, no Morro de Vila Rica, os escravos do sexo masculino representavam 91% da
população”289. Para este autor, o número reduzido de mulheres teria sido um fator favorável
aos relacionamentos sexuais entre homens, que predominantemente, como veremos a seguir,
estiveram entrelaçados à violência da escravidão negra. Desta forma, “Minas foi palco
privilegiado do que ocorria nas regiões escravistas do período: violências inauditas contra os
negros, revoltas, sedições e abusos sexuais de variada sorte”290.
288
VAINFAS, Ronaldo. Sodomia, amor e violência nas Minas setecentistas...op. cit., p. 521.
289
MOTT, Luiz. O sexo cativo: alternativas eróticas dos africanos e seus descendentes no Brasil escravista. In: O
sexo proibido...op. cit., p. 34.
290
VAINFAS, Ronaldo. Sodomia, amor e violência nas Minas setecentistas...op. cit., p. 521.
84
291
ANTT. IL. CN., liv. 145, nº 20, fl. 360-a (Sabará- 1792).
292
ANTT. IL. CN., liv. 145, nº 20, fl. 357 (Congonhas do Campo/ S. Bartolomeu- 11 de julho de 1761).
85
senhor. Este ainda era concubinado há anos com um tal de Inácio de Oliveira Cabra, segundo
os relatos do escravo. E, quando o cúmplice não estava em casa, Bento Luiz de Mattos pegava
seu escravo Caetano de noite e o levava para a cama “e se punha nele, de sorte que arrombou
a via uma e muitas vezes de modo que esteve em termos de morrer, recomendando ao dito
crioulo que não dissesse nada a ninguém senão que o havia de castigar”293.
De passagem pelo arraial de Itabira, em 1769, o crioulo Raimundo, escravo de uma
preta por nome Ângela Teixeira Chaves, se hospedara na casa de um conhecido de sua
senhora, Simão Alves Pimenta Ramos. Este, durante o tempo que administrava o escravo,
metera-o numa corrente e usou dele “por detrás” no delito de sodomia por quatro vezes,
“fazendo dele mulher”, ou seja, usando dele enquanto o passivo do ato. O crioulo Raimundo,
por não querer ser cúmplice, sofreu ameaças de maiores castigos que a corrente do dito
Simão294.
Também denunciado enquanto o agente nas relações, o capitão João Leite Pinto,
morador na Vila do Príncipe, 1734, era infamado de praticar por muitos anos o pecado
nefando com muitos moleques e várias negras295. Segundo as testemunhas, os escravos e
algumas negras sempre se queixavam publicamente do capitão os cometer pela “parte
prepóstera”, inclusive, um seu escravo João Mina havia fugido de casa várias vezes pelos
tratos sodomíticos de seu senhor. Manoel da Fonseca, testemunha de 56 anos, disse que o
acusado era infamado também de cristão-novo, e que estando na casa do capitão presenciou
este pregar um seu escravo com uns pregos pelas mãos e o amarrar pelos pés com uma
corrente e numa corda em uma porteira. Com um bacamarte nas mãos, o capitão estava
prestes a atirar no escravo por este ter fugido, até que a testemunha ouviu os gritos e o acudiu.
Na cadeia da vila de São João del Rei, o preso Caetano Aques de Carvalho, oficial de
sapateiro, foi acusado de cometer o pecado de sodomia com outros presos. Em fevereiro de
1741, os inquisidores de Lisboa determinam que fosse feita diligência, a qual foi aberta em
julho daquele ano em São João del Rei. Foram ouvidos cinco testemunhos, todos de homens
que tinham sido presos naquela cadeia. Todos apresentaram, praticamente, a mesma narrativa:
Aques havia sodomizado, enquanto agente, um escravo preso chamado Manoel, sem
seminação intra vas preposterum (ânus) e intentado praticar o nefando, também enquanto
agente, com outro escravo preso por nome José, que não consentira. Os escravos relatam aos
outros presos as práticas sodomíticas sofridas e são aconselhados a darem um sinal, gritando,
293
ANTT. IL. CN., liv. 145, nº 20, fl. 357.
294
ANTT. IL. CN., liv. 145, nº 20, fl. 444 (Rio das Pedras/ Itaubira- 16 de maio de 1769).
295
ANTT. IL. DD, cx. 1650/17887, fl. 1-8 (Rio do Peixe Pequeno/Vila do Príncipe- 26 de junho de 1734).
86
caso o dito Aques tornasse a acometê-los. Poucos dias após esse aviso, numa noite qualquer
de fevereiro de 1740, os ditos negros gritaram, “e como não havia luz na cadeia lutaram entre
si”. Quando o carcereiro chegou com a luz, o denunciado já estava em sua cama, e disse “que
fora ter com eles não para o pecado de sodomia de que os pretos o acusavam, mas sim para o
pecado de molície, que com eles já tinha cometido”296. No dia seguinte, o Ouvidor Geral da
comarca, Cipriano Jose da Rocha, mandou lançar um grilhão no dito Caetano Aques de
Carvalho. Assim, a desculpa de que seriam atos de molícies não foram aceitas. Convém
ressaltar que as duas vítimas/cúmplices não testemunharam na diligência. O preto José se
encontrava solto e sua senhora o havia vendido na vila de Sabará. O negro Manoel Angola
faleceu aos 21 dias de julho de 1740, ou seja, cerca de quatro meses após os episódios
sodomíticos da prisão. Algumas testemunhas alegaram que o dito escravo Manoel se achava
doente, com “cursos de sangue” pela via detrás, e que assim padecia depois que o sapateiro
Aques cometera com ele o pecado de sodomia.
Também numa cadeia, desta vez na vila de São José do Rio das Mortes (Tiradentes),
1772, Francisco Xavier da Costa, crioulo forro, somitigou por várias vezes durante a noite,
dentro da prisão, o preto cativo Antônio, que ali também se achava preso. Outros presos
também denunciaram que Francisco Xavier cometia com eles o pecado de sodomia, entre
eles: José Benguela; Francisco Congo e Pedro Benguela297. A denúncia não deixa claro se o
denunciado praticava as somitigarias na posição de agente ou paciente. Isso ocorre em muitas
denúncias, em que a documentação não deixa explícita a posição dos envolvidos, conforme o
gráfico 7.
Muitos escravos, num ato de insurgência, denunciaram ao Santo Ofício os maus tratos
sexuais dos quais eram vítimas por muitos anos, enquanto passivos das relações. Na Vila do
Carmo, 1739, o escravo Francisco de nação Angola, de 20 anos de idade, denunciara seu
senhor Manoel Barbosa Sobral por cometer com ele o pecado de sodomia, sendo ele, cativo, o
passivo e seu proprietário o ativo: “o que fizera levado do temor de ser escravo e respeito ao
seu senhor, e não por sua vontade [...], e não sabia quantas vezes, nem quantos anos cometera
tal delito”298.
A preta escrava, Ana Maria, também incriminou seu senhor Manoel de Souza
Meirelles, em Paracatu299, por viver concubinado com ela pela “via posterior”, sendo ela
paciente. O seu senhor era acostumado manter atos sodomíticos enquanto agente também com
296
ANTT, IL. CN., liv. 145, nº 20, fl. 17v. (São João del-Rei/ fevereiro de 1740- 10 julho de 1741).
297
ANTT. IL. CN., liv. 145, nº 20, fl. 449 (São José do Rio das Mortes(Tiradentes)/Prados- 1772).
298
ANTT. IL. CN., liv. 144, nº 19, fl. 445 (Vila do Carmo- 1 de dezembro de 1749).
299
ANTT. IL. CN., liv. 145, nº 20, fl. 115 (Minas da Paracatu/freguesia da manga- 02 de abril de 1751).
87
um moleque seu escravo, por nome Antônio, e um negro seu ex-escravo, chamado Sebastião
de Angola, ambos sendo sodomizados pela via anal, ou seja, sendo eles passivos.
Inácio, crioulo escravo de Pedro Lopes Fiuza, acusou o seu senhor ao licenciado
Antônio de Pina que estava de visita em Vila Rica, 1723, por vê-lo cometer o pecado nefando
com um preto seu outro escravo, chamado José de nação Mina, e por solicitá-lo cinco vezes,
as quais ele denunciante não havia consentido, e por cuja causa fugira daquele lugar. Oito
testemunhas nomeadas pelo escravo são interrogadas. A maioria disse que era pública a
relação sodomítica do senhor com o escravo José Mina. Uma preta forra, chamada Inácia,
disse que na casa do dito senhor corria murmúrios entre todos que o senhor usava de seu
escravo no pecado nefando “pelo tratar com mimo particular” e que ouvira dizer na mesma
casa que o denunciado beijava o dito moleque escravo. Outra testemunha, Luiza do Rosário,
crioula forra, declarou ter visto o moleque José Mina virado para uma parece e o denunciado
em “fraldas de camisa”, e que quando a viram se viraram ambos, mas que ela nunca
testemunhara o senhor “fazê-lo por obra”. A crioula ainda disse que só sabia por indício que o
senhor tratava seu escravo José com particular amor e bom tratamento, e já o moleque, pelo
contrário, “por quanto sempre lhe rogava pragas e quando o via vir de alguma parte logo
começava a dizer mal dele” 300.
O visitador ordenou, em 20 julho de 1723, que o denunciado Pedro Lopes Fiuza e seu
ex-escravo, José Mina, fossem presos na cadeia de Vila Rica e remetidos ao Tribunal do
Santo Ofício de Lisboa “na forma das constituições para que se passem as ordens necessárias”
por cometerem o pecado de sodomia. Dois dias depois, Pedro Fiuza foi preso na dita vila com
o sequestro de todos os bens. Mas seu ex-escravo levou mais tempo até ser preso. Somente
em abril de 1724, uma nova ordem de prisão contra José Mina foi feita e encaminhada ao
senhor João Gomes que detinha sua posse. Ao que parece, o senhor não queria entregar seu
escravo, pois ao alegar para as autoridades de Vila Rica que não sabia do dito negro, nem dele
notícia tinha, o meirinho o levou preso para a cadeia, entregando-o ao carcereiro. Após três
dias preso, João Gomes entregou seu escravo José Mina. Desta forma, em 17 de abril de 1724,
o licenciado Antônio Pina fez remessa dos autos para entregá-los no Rio de Janeiro, sede do
bispado de Minas Gerais, para que assim fossem remetidos ao Tribunal de Lisboa, juntamente
com os presos. Tudo isso fora realizado.
300
ANTT. IL. DD, cx. 1618/15946, fl. 1-10 (Freguesia de São Antônio do Campo/ termo de Vila Rica- 12 de
julho de 1723).
88
301
ANTT. IL. CN., liv. 145, nº 20, fl. 366 (Vila Rica/ 23 de janeiro de 1758- 21 de janeiro 1762).
89
porrete, ao que ela testemunha respondeu que desse parte aos brancos, porque sabiam os
meios que havia para se castigar semelhante pecado”. Porém, ao testemunhar na diligência, o
cativo Ventura não fez menção a nada do que supostamente confessou à Vicência, disse
apenas que Jacinto Campos costumava ter tratos ilícitos com seus escravos pelas partes
traseiras. No encerramento do caso, 21 de janeiro de 1762, Theodoro Ferreira Jacome,
comissário do Santo Ofício e vigário geral do bispado de Mariana, declarou que as
testemunhas pareciam ser pessoas de verdade e de sangue limpo, e os escravos, mesmo sendo
“de alguma sorte rústicos”, pareciam falar a verdade. Porém, informando-se
extrajudicialmente sobre a culpa do denunciado, nada – argumentou – pôde descobrir mais do
que diziam as testemunhas. Entretanto, surge nova denúncia302 contra Jacinto Ferreira
Campos, em 1763, que usava do pecado de sodomia – novamente enquanto agente – com três
escravos que administrava na sua função de feitor. Essa última acusação, porém, não teve
desdobramento.
Se alguns presos abusavam enquanto agentes de outros dentro de suas enxovias,
também soldados aproveitavam de sua posição superior para abusar pela “via detrás” de
alguns presos. Foi o que ocorreu com o militar Miguel Inácio Geraldes, denunciado por
abusar sodomiticamente de um homem chamado Matheus, preso na cadeia de Vila Rica,
1754. O preso alegou que Geraldes o “quisera levar por força pela via traseira e que para
haver de se ver livre dele lhe satisfizera o seu apetite”, quando estava de guarda. Outros cinco
escravos de militares próximos ao denunciado relataram sofrer da mesma forma, enquanto
pacientes, das investidas sodomíticas do delinquente303.
Passados sete anos, o cabo de esquadra Miguel Inácio Geraldes é denunciado
novamente enquanto agente, por estar “amancebado” há muitos anos “pela via posterior” com
seu escravo Anselmo304. Mas, dessa vez, é aberta diligência e quatorze testemunhas são
ouvidas na região do arraial do Tijuco. Porém, consta numa ordem vinda de Mariana, em
dezembro de 1761, que só o testemunho do negro “cúmplice” não era prova legal contra o
delinquente, mas como havia mais cúmplices e testemunhas, consequentemente, havia mais
provas. Ou seja, somente a palavra do escravo Anselmo não era motivo para a abertura da
investigação, seguindo os trâmites de no mínimo duas testemunhas qualificadas exigidas pelo
tribunal inquisitorial.
302
ANTT. IL. CN., liv. 145, nº 20, fl. 413 (Mariana/ 23 de julho de 1763).
303
ANTT. IL. CN., liv. 145, nº 20, fl. 151 (Vila Rica/ 9 de agosto de 1754).
304
ANTT. IL. CN., liv. 145, nº 20, fl. 329 (Arraial do Tijuco/ Vila do Príncipe- 11 de dezembro de 1761 /31 de
Março de 1762).
90
O militar acusado chegara fugido no arraial do Tijuco, devido sua fama de sodomita,
segundo algumas testemunhas. Lá comprou o escravo Anselmo, cerca de um ano antes da
denúncia, e logo que o adquiriu começou a usá-lo “pela via detrás”. O escravo alegou que o
senhor lhe prometia a alforria, e que por isso, embora contra sua vontade, consentira tantas
vezes. Consta que Miguel Geraldes já havia, inclusive, alforriado uma escrava sua chamada
Michaela (?), com quem “se dizia publicamente pelos paisanos e pelos camaradas que ele
dormia pela via detrás como se fosse pela dianteira [...], e diziam que ela mesma o confessava
dizendo que lhe sofria este pecado nefando por lhe ter prometido alforria, a qual lhe deu, com
efeito,”305.
Entretanto, com Anselmo a relação foi mais profunda. Geraldes não cumpriu sua
promessa de alforriá-lo, e ainda passou a demonstrar ações violentas de ciúmes. Numa delas,
por vê-lo falar com outro soldado, o militar denunciado espancou e prendeu seu cativo em
correntes de ferro. Quando o soltara, o deixou fechado dentro de um quarto, que trancava por
fora. Dois soldados testemunharam ter visto, através da janela, o crioulo trancado no quarto.
Sendo perguntado pelos soldados o motivo de Geraldes tê-lo soltado, o cativo Anselmo
respondeu que: “seu senhor o convidara para a cama e – suposto que não queria – como
escravo, obedeceu. E lhe disse seu senhor que fosse fazer o gostinho, e se pôs em cima dele
pelas costas, e que, a modo de mulher – por detrás –, o fornicara muito bem, e que ainda lhe
doía a via do cu”306, isto é, “como ficou o seu senhor satisfeito, o soltara”307.
Outro soldado disse que o cativo Anselmo contara a ele testemunha “os grandes
ciúmes que seu senhor tinha dele, sem o querer deixar falar com pessoa alguma, e a razão que
deu era porque o dito seu senhor lhe metia o membro viril pela via detrás e também pela boca,
e que já não podia aturar com isto, e se não que havia de fugir”308. O soldado ainda relatou
“que o denunciado nunca deixava ir o crioulo nem levar o cavalo com grandes ciúmes de que
alguns camaradas usassem do tal crioulo para o fim de alguma torpeza”. Disse ainda que o
escravo Anselmo dormia no mesmo quarto que Geraldes, e que o vício da sodomia dele era
antigo, porque – havia cerca de oito anos – “estando preso no calabouço um soldado por
alcunha o caldeirão, chamara ao denunciado somítigo”. Declarou ainda que Miguel Geraldes
tratava tão bem o cativo Anselmo que lhe dava calções e fivelas de prata.
O crioulo Anselmo, ao que tudo indica, expôs bastante para os homens brancos a
situação conflituosa que passava com o seu senhor. Queixara-se a vários militares que
305
ANTT. IL. CN., liv. 145, nº 20, fl. 347v.
306
ANTT. IL. CN., liv. 145, nº 20, fl. 340v.
307
ANTT. IL. CN., liv. 145, nº 20, fl. 339.
308
ANTT. IL. CN., liv. 145, nº 20, fl. 352v.
91
Geraldes usava dele pela via sodomítica contra sua vontade, mostrando a um militar até
mesmo uma ceroula “com matéria e sinais da violência do ato horrendo” que sofria. O tal
crioulo fez questão de ressaltar ainda para os militares que o denunciado usava dele pela boca,
além da via anal, para saciar “o seu apetite e torpeza”309. Em seu depoimento, Anselmo, com
então 18 anos de idade, confessou detalhadamente todo o desenrolar da história:
E sendo perguntado pelo auto da denúncia disse que haverá um ano que o
denunciado seu senhor o comprara no Capivari [...], e logo que o comprou o
começou a tratar como filho e algumas noites o ia buscar na cozinha e trazia para a
sua cama e ali lhe começou a bulir nas suas partes pudendas o que ele depoente
repugnava, mas o denunciado seu senhor lhe dizia que deixasse fazer o gosto para ao
depois lhe meter por detrás, e nesta ocasião lhe prometeu carta de alforria e o
depoente consentiu e se deitou com a barriga para baixo e o denunciado cavalgou
em cima dele usando pela via detrás como de mulher e ele depoente vendo que o
denunciado continuava nesta mesma torpeza se aborreceu e lhe pediu a carta de
liberdade e ele lhe respondia que logo e por este motivo tinha ciúmes dele depoente
sem querer que falasse com os camaradas nem com pessoa alguma na rua [...]. Na
sua vontade nunca queria, às vezes repugnava e o denunciado lhe dava pancadas,
como sucedeu uma noite em que lhe quebrou um porrete em um braço, e na noite
seguinte o tornou a chamar para a cama e usou dele pela via detrás sodomiticamente
no que consentiu ele depoente por estar molestado do braço e ter medo da repetição
do castigo; e, por esta causa, agoniado ele depoente começou a falar aos soldados
nos desaforos do denunciado seu senhor, e, vindo a notícia do alferes ou
comandante, o repreenderam e por isso o denunciado pós o depoente em ferros e o
tirou da prisão deixando o fechado no quarto para lhe fazer o gosto de dormir por
detrás [...]. E que seu senhor uma vez lhe disse que lhe mamasse no membro viril, o
que vez várias vezes, e de uma teve polução e das mais não, porque ele depoente
repugnava, e algumas vezes ele depoente lhe serviu de instrumento com as mãos
para polução310.
Também uma preta forra, chamada Maria Caldeira, testemunhara afirmando que:
[...] há muitos anos assim que ela testemunha veio para o Tijuco com seu senhor
Felisberto Caldeira sendo ainda pequena, mas já desonrada indo ela testemunha
(lavar) uns pratos de estanho em uma fonte que está ao pé dos quarteis o denunciado
a chamou para dormir com ela e deitando-se ela de costas com a barriga para cima
como se costuma, o denunciado lhe disse que virasse com as costas para cima e a
barriga para baixo e ela testemunha não quis, antes teve como criança tanto medo
dele que nunca mais o pode ver, por ter ele má cara que parece assombrado 311 .
Já Gonçalo Soares Galvão, homem que vivia de sua lavoura, de 60 anos de idade,
disse que o denunciado era o demônio, e que fugiu do Tijuco porque alguém o havia avisado
da presença do vigário da vara que iria investigar seus casos de sodomia. Segundo Gonçalo, o
denunciado, em certa ocasião, levara um ex-escravo dele testemunha, por nome Miguel, para
o mato com o propósito de usá-lo “pela via detrás”, ao que o escravo, aos gritos, conseguiu
escapar. Disse também que tinha um escravo José que lhe dizia que não queria nem chegar
309
ANTT. IL. CN., liv. 145, nº 20, fl. 337.
310
ANTT. IL. CN., liv. 145, nº 20, fls. 345v - 346v.
311
ANTT. IL. CN., liv. 145, nº 20, fl. 349.
92
312
ANTT. IL. CN., liv. 145, nº 20, fls. 354v e 355.
313
ANTT. IL. Proc. nº 5627.
93
morada do reverendo senhor Nicolau Gomes Xavier, pároco da dita freguesia e comissário do
Santo Ofício, foi iniciada a diligência, interrogando quatro das onze testemunhas citadas, por
ordem de Lisboa.
Segundo as testemunhas, o denunciado João Francisco Ferreira tinha cerca de 50 anos
de idade, era homem casado com Quitéria Maria, mas ninguém sabia a morada da esposa.
Alguns disseram não saber se ela estava viva ou morta. Outros disseram que ela havia
separado do marido por ele querer ter atos sodomíticos com ela. Por este motivo escapou de
ser morto pelos próprios cunhados e também de ser ofendido por Vicente Francisco Pereira,
que se lançara contra o denunciado com um facão, pois este queria aliciá-lo para a mesma
torpeza de sodomia, ao que acudiu o capitão José Telles de Anchieta. Durante cerca de quatro
anos, o agregado usava sodomiticamente dos escravos do capitão, assim como de outros. Um
preto, escravo de Lourenço Justiniano, disse para muitas pessoas que não queria estar com o
delato, por querer ele fazer dele mulher com os referidos atos sodomíticos. José de Moraes,
homem branco, disse que João Francisco Ferreira, de visita em sua casa, metia-se, à noite,
pelas senzalas, solicitando os pretos para suas costumadas torpezas de sodomia, e querendo os
mover para este fim em troca de lombos ou pedaços de toucinho, asseverando lhes por
singularidade ser “toucinho do reinol”. Francisco Ferreira também cometia o nefando com
mulheres. Uma crioula chamada Ana, escrava do dito, queixou-se com outras mulheres que
sua irmã Joana, também escrava, tinha sido usada sodomiticamente por João Francisco
Ferreira num “festim” em terras do referido Anchieta. Temos que destacar que o delato era
sempre o agente nas relações. Mas, segundo o testemunho de Vicente Francisco Pereira – 56
anos, havia vinte anos, quando ainda era solteiro – numa noite em que dormia na casa do
capitão Anchieta, acordara sobre “impulsos da diligência” que o denunciado fazia para que
fosse ele testemunha o agente no nefando e depois paciente, ou seja, o delato tentava aliciá-lo
para que depois de ser ativo fosse também passivo. Vicente Pereira alegou que não quis
consentir aos “atos tão abomináveis” e depois se queixou do ocorrido para várias pessoas,
passando por “galhofas” entre os que ouviram.
Após a inquirição das testemunhas, nenhuma delas suspeita de faltar com a verdade ou
crédito, foi feito o termo de encerramento. O comissário Nicolau Gomes Xavier, no dia 6 de
setembro de 1783, escreve uma carta em que conclui ser o delato João Francisco Ferreira
culpado por ser tão notória e remete a documentação a Lisboa. Ao que consta no sumário, não
houve prisão nem confisco de bens do denunciado, e nem foram as testemunhas inquiridas
94
novamente. Em 1792, surge outra denúncia de José Teles Bernardino contra João Francisco
Ferreira por sodomia, alegando que ele cometia o pecado de sodomia com um negro314.
Outros homens, talvez instigados pelo remorso do “pecado demoníaco” em que
incorriam, talvez por estratégia, se confessaram ao tribunal do Santo Ofício. Em Vila Rica,
1763, o já citado reinol Manuel da Cunha de Souto Maior se auto acusou, numa carta, por
dormir com dois mulatos “por detrás” por seis vezes e com um crioulo por três vezes “da
mesma forma”, defendendo que tudo havia sido tentação do demônio315. A expressão “por
detrás” é muito vaga, o que não nos permitiu saber se Souto Maior dormiu enquanto agente
ou paciente.
Lourenço Ferreira Esteves, homem casado, confessou em Vila Rica, 1735, que
cometera uma vez o pecado de sodomia, enquanto agente, com um escravo seu por nome José
Mina316. O confitente tentou amenizar o delito, argumentando tinha usado água ardente e que
não estava certo se chegou a penetrá-lo completamente, só se lembrava de que teve polução, o
que havia ocorrido no passado, uns doze anos antes da confissão. Confessou ainda que tivera
com sua escrava Thereza atos de cópula sodomítica por cerca de doze vezes, e com outra
escrava Mariana, por três vezes. E que, há cerca de dois anos antes daquela confissão, caíra
por três vezes no mesmo delito com outro escravo, por nome Inácio, e outras três vezes com
um moleque cativo seu, chamado Antônio. Em todos os atos o senhor fora o agente da relação
sodomítica.
Anastácio Vilaça de Carvalho, natural de Braga, 39 anos, que vivia de minerar,
também procurou as autoridades inquisitoriais na Vila do Carmo, em 1739, para confessar que
cometera o pecado de sodomia algumas vezes com um moleque seu, chamado Ventura. O
confitente ainda disse, estrategicamente, que fora “vencido por sua fragilidade e miséria [...],
e, detestando o grande erro em que brutalmente caíra, se denunciava ao Santo Ofício e pedia
humildemente que impusessem a penitência”317. O confitente não deixa explícito se sua
posição na relação era de agente ou paciente, mas quando um homem adulto se relacionava
com um “moleque”, mantinha, geralmente, a posição de agente, o que apenas podemos supor
nesse caso.
Também na Vila do Carmo, no mesmo ano de 1739, Manuel Alves (ou Álvares)
Cabral foi se confessar “das misérias em que cegamente se arrojou, esquecido da Lei da
natureza e Divina e Eclesiástica”, pecara sodomiticamente, desde dez ou oito anos, com seus
314
ANTT. IL. DD., cx. 1615/15816 (Jaboticatubas/freguesia de Sabará - 3 de dezembro de 1792).
315
ANTT. IL. CN., liv. 145, nº 20, fl. 363 (Vila Rica/1763).
316
ANTT. IL. CN., liv. 821, nº 17, fl. 517 (Vila Rica/ 1 de agosto de 1735).
317
ANTT. IL. CN., liv. 144, nº 19, fl. 440 (Vila do Carmo/ 16 de fevereiro de 1739).
95
escravos: José Courá; João Gago; Antônio Cobu; João Ladano; Luís Mina; Antônio Jorge e
Francisco Angola. Manuel Cabral ainda confessou que fora paciente somente uma vez com
seu cativo João Gago, “constrangido pelo respeito e mais razões de ser seu escravo [...], e que
examinando sua consciência não podia averiguar quantas vezes nos ditos anos caíra na tal
abominável miséria sendo agente, mas que se lembrava que sendo paciente só o fora uma
vez”318. Alguns dias após a confissão, a maioria dos escravos mencionados também foram se
apresentar perante o tribunal, certamente por ordem de Manuel Cabral. Todos alegaram terem
sido pacientes, e que não reagiam ou resistiam às práticas do senhor, sobretudo, por medo de
sofrerem violências mais severas. O cativo Luís Mina – de 15 anos de idade, o mais jovem de
todos, que deveria ter uns 10 anos quando sodomizado pela primeira vez – declarou que “na
tal miséria não fora levado de apetite ou complacência, mas vencido do temor e respeito que
como escravo tinha ao seu senhor que o intentara”319.
Três anos depois, 1742, em Olinda, o nome do nosso mineiro Manoel Alves (Alvares)
Cabral aparece em outra denúncia inquisitorial, porém desta vez contra o vigário-geral do
bispado de Pernambuco, padre Francisco Antunes Moreira da Silva. Este é acusado de receber
propina para desaparecer com alguns autos de denúncias do nosso mineiro, novamente
acusado de sodomia com seu escravo Luís. O vigário é destituído do cargo e, aos 29 dias de
dezembro de 1742, é apresentada ao escrivão a petição de denúncia que fez o promotor fiscal
Antônio de Siqueira Varejão contra ele. Poucos dias depois, 2 de janeiro de 1743, quatro
testemunhas são ouvidas. Uma delas (Manoel Soares Lima), um homem de negócios, disse
que levara, as ordens de Cabral, 150 mil réis para o padre Francisco Antunes em pagamento
para que ocultasse a denúncia nefanda. A testemunha relata a mudança de humor do vigário-
geral ao lhe mostrar o dinheiro: “falando-lhe na denúncia para que quisesse favorecer ao
denunciado se lhe mostrara com o semblante carregado e as para reportar, e replicando lhe ele
testemunha que levava consigo 150 mil réis para (?), logo lhe falara com semblante alegre,
320
facilitando o negócio” . As outras testemunhas também confirmaram a acusação, sendo
lavrado o termo de culpas e remetido ao Tribunal de Lisboa, porém o caso permaneceu sem
desdobramentos.
Homens poderosos, homens casados, o desejo nefando não fazia distinção de classe
social nem de estado civil. Em Furquim, 1791, João dos Reis do Nascimento, homem casado
com Ana Maria, foi incriminado por seu próprio sogro, Luís Manuel Oliveira, de praticar o
318
ANTT. IL. CN., liv. 144, nº 19, fl. 439v (Vila do Carmo/ 12 de novembro de 1739).
319
ANTT. IL. CN., liv. 144, nº 19, fl. 443 (Vila do Carmo/ 23 de novembro de 1739).
320
ANTT. IL/28/Cx. 1640/17105, fl. 3.
96
pecado nefando de sodomia com “perfeita penetração”, não só com um cativo chamado
Inocêncio como também com três dos filhos dele denunciante, ou seja, cunhados do
denunciado. Todos os rapazes eram pacientes, e o denunciado sempre agente321.
Dentre todas as denúncias por sodomia, envolvendo senhores e escravos, uma delas se
destaca pela duração. Ocorreu na vila de São João del Rei, em 1778, quando um moleque por
nome Antônio, de nação Angola, queixou-se a vários homens livres que seu senhor, o capitão
José de Lima de Noronha Lobo, abusava dele, fazendo-o violentamente paciente no
“abominável pecado da sodomia”. Surpreende-nos nessa denúncia o período em que o capitão
mantém as relações sexuais com seu escravo: dezoito anos. Isso mesmo, dezoito anos! O
lugar destinado àquelas relações nada mais era que um bananal no quintal de Noronha Lobo.
Ao saber da denúncia, o agente inquisitorial duvidou ser verdade aquilo que o escravo
Antônio declarava. E, perguntando a ele se a esposa do capitão era sabedora daquilo no tempo
em que era viva, o negro disse que ela não sabia “por ser velha” e por “não poder livrá-lo”
daquilo, mas que havia se queixado do seu senhor para Antônio Gonçalves Cardoso e
Veríssimo Antunes de Souto. O escravo pedira a esses homens alguma ajuda para que seu
senhor não cometesse mais as torpezas de sodomia para com ele, porém nenhum dos dois lhe
prestou ajuda.
Depois disso, ainda pediu ajuda aos capitães Jerônimo de Sousa Pereira e José de
Sousa Gonçalves. O primeiro recebeu o escravo por três dias em sua casa, mas não solucionou
seu problema. O segundo o levou de volta ao seu capitão José de Lima Noronha Lobo.
Duvidando do moleque Antônio, a autoridade inquisitorial fora conversar sobre a matéria da
denúncia com o capitão Jerônimo Pereira, dizendo que lhe parecia falso o que o escravo lhe
dizia, ao que a testemunha lhe disse que acreditava ser verdadeiro “porque o negro lhe tinha
expressado com lágrimas nos olhos”322. Pela durabilidade da relação, Ronaldo Vainfas retrata
o caso como sendo uma ligação amorosa323. Não podemos descartar tal hipótese, porém não
podemos descartar também a possibilidade de que o escravo tenha sido forçado por anos a fio
a manter relações sexuais com o seu senhor e que assim falava com a verdade. Da mesma
forma, podemos nos indagar se tudo que o escravo Antônio falava não passava de uma farsa,
pois, como vimos anteriormente, alguns escravos denunciam estrategicamente seus senhores
no grave delito de sodomia para se livrarem dos maus tratos e até mesmo por almejar sua
alforria.
321
ANTT. IL. Proc. 2826, fl. 2 (Freguesia do Bom Jesus do Monte de Furquim termo e bispado de Mariana/5 de
outubro de 1791).
322
ANTT. IL. CN., liv. 145, nº 20, fl. 457 (São João del Rei/ 30 de junho de 1778).
323
VAINFAS, Ronaldo. Sodomia, amor e violência nas Minas setecentistas... op. cit., pp. 524-525.
97
Entretanto, 36 anos antes, em 1742, José de Lima de Noronha Lobo já havia sido
denunciado ao familiar do Santo Ofício, Domingos Carvalho, por solicitar muitas vezes dois
homens para com eles cometer a prática da “punheta”. Segundo um dos homens, numa
ocasião, em casa do porteiro da Igreja Matriz da vila de São João del Rei, “entrou o
denunciado acometer a ele denunciante para que com suas mãos lhe pegasse em sua natura e
lhe fizesse a punheta”324. Aqui o denunciado aparece tentando ser paciente com o
denunciante, que declarou que Noronha Lobo “o acometera [...] para que este lhe metesse a
sua natura entre as pernas”, e que ainda “se pusera sentado na cama do denunciante e indo-se
deitando de costas”325. O denunciante ainda asseverou que Noronha Lobo sodomizava seu
escravo Domingos que se pôs uma vez “de joelhos, pedindo-lhe pelo amor de Deus o
comprasse do seu senhor porque este o tinha posto de tal sorte que já não podia andar pelas
muitas vezes que o tinha ofendido contra naturam usando do negro como se fosse mulher”.
Com esse mesmo negro ele denunciante alegou que, quando estava uma vez em sua casa, o
acusado também havia sido paciente.
Duas denúncias, envolvendo quatro denunciados, revelam a relação sexual entre
escravos. Uma já foi mencionada anteriormente, ocorreu entre o escravo Antônio Courano e
um escravo não nomeado. Os dois foram flagrados praticando sodomia entre as pedras de uma
cachoeira de Mata Cavalos. Antônio Courano era o paciente e o outro escravo agente 326.
Outra diz respeito ao Joaquim Francisco, cabra327 exposto em casa de Manuel Francisco
Bolina, que foi pego fazendo o pecado de sodomia “pela via reta”, ou seja, enquanto passivo,
com um negro escravo chamado João328.
Os reduzidos, ou ausentes, casos de relações sexuais entre os próprios escravos na
documentação inquisitorial não significa que tais práticas não ocorriam, pois vários sodomitas
africanos tinham seus parceiros dentro do próprio subgrupo de cor. Segundo Luiz Mott, a
aparição rara nos documentos inquisitoriais pode ser explicada pela “menor visibilidade e
insignificância social dos amantes não-brancos, que nos recônditos das palhoças ou no
segredo do mato, mantiveram secretos seus amores unissexuais”329. Em apenas um caso, o
escravo é quem tenta sodomizar o senhor. Já no início do século XIX, 1805, em Queluz, um
324
ANTT. IL. CN., liv. 821, nº 17, fl. 519v (São João del Rei/17 de agosto de 1742).
325
ANTT. IL. CN., liv. 821, nº 17, fl. 520.
326
ANTT. IL. DD, cx. 1634/ 16921, fl. 2 (Ribeirão do Carmo/Mata Cavalos- 9 de novembro de 1733).
327
Segundo Karasch, o termo „cabra‟ designava os cativos de raça mista, provenientes de outras misturas.
KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000,
p. 39.
328
ANTT. IL. DD, cx. 1594/14721, m0001 a m0002 (Congonhas- 1790).
329
MOTT, Luiz. O sexo cativo: alternativas eróticas dos africanos e seus descendentes no Brasil escravista. In: O
sexo proibido... op. cit., p. 41.
98
preto Julião fora denunciado por solicitar o seu senhor Antônio José Pereira a praticar o
pecado de sodomia. O denunciante ainda adverte que havia dito palavra indecente, mas tinha
que dizer ao denunciar330.
Alguns, além de alegarem estar atentados pelo demônio, recorreram ao uso de vinho
como causador da confusão dos juízos. Bernardo Gomes da Costa confessou que num dia de
1750, em Paracatu, fizera uso demasiado de vinho, e, ficando “privado de juízo”, para as dez
ou onze horas da noite chamou um escravo por nome Francisco e com ele cometeu o pecado
de sodomia, sendo ele solicitante paciente331. Temos aqui uma inversão hierárquica, quando o
escravo desempenha a posição de ativo. Esse é um dos raros casos em que notamos tal
inversão dos papéis sexuais entre senhor e escravo.
Como vimos até aqui, as relações sodomíticas nas Minas foram marcadas pela
exploração, miséria e violência, entrelaçadas com o mundo da escravidão, assim como em
outras partes do Brasil. Homens que se viam numa camada social superior, pareciam não
hesitar no aliciamento de escravos, utilizando as mais diversas estratégias para executar seus
intentos sodomíticos com troca de comidas; “pedaços de toucinhos”; calções e fivelas de
prata; além de promessas da tão almejada liberdade, através da carta de alforria. E, apesar de
muitas denunciações em terras mineiras, poucos foram os homens processados pelo Santo
Ofício.
De acordo com Ronaldo Vainfas, a baixa quantidade de processados não significa um
desleixo do Santo Ofício em sua “cruzada moralizante” na colônia, pois os bígamos nunca
foram tão perseguidos como foram no século XVIII no Brasil que registrou 74 processos de
bigamia332. Para o autor, o enfraquecimento da perseguição à sodomia nas terras brasílicas
acompanhou um declínio geral das perseguições, tanto no Império português quanto nos
demais países europeus, num processo de “dessacralização” do nefando, embora a
intolerância aos sodomitas no Brasil jamais tenha atingido a mesma intensidade ocorrida no
Reino português333. Ainda para Vainfas:
330
ANTT. IL. DD, cx. 1640/17095, fl. 1 (Queluz/14 de setembro de 1805).
331
Bernardo Gomes da Costa fora levado preso para o Rio de Janeiro, e em 1753 confessara suas culpas de anos
atrás. ANTT. IL. CN., nº 20, liv. 145, fl. 138 (Minas do Paracatu/Rio de Janeiro- 1750/1753).
332
VAINFAS, Ronaldo. Sodomia, amor e violência nas Minas setecentistas... op. cit., p. 529.
333
Id. Ibid.
99
334
Id. Ibid.
335
“Além de ser atualmente caracterizada como perversão no campo da psicologia e da psicanálise, a pedofilia
tem sua punição prevista no Código Penal (1940), embora não apareça com esse nome. Nos casos envolvendo
meninos, a pedofilia se enquadra no art. 214, referente à prática de atentado violento ao pudor, definido como
constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato
libidinoso diverso da conjunção carnal. Também nesses casos, o art. 263 da Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990,
que dispôs sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, acrescentou parágrafo único, agravando a pena quando
o crime é cometido contra menor de 14 anos. Já a Lei n. 8.072, que classificou e disciplinou crimes hediondos,
além de agravar a pena em seu art. 6º, a aumenta em seu art. 9º se o delito for praticado contra quem se encontrar
nas condições do art. 224 do Código Penal, pelo qual se presume violência quando a vítima não é maior de 14
anos, ou é alienada, ou é débil mental ou não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência – e o agente
conhece essas circunstâncias. Para alguns juristas, essa lei revoga o parágrafo da Lei do Estatuto da Criança e do
Adolescente, já que atentado violento ao pudor seria sempre crime hediondo. No caso de menores de 14 anos,
cai-se sempre no art. 224, que presume violência, sendo inválido o consentimento da vítima”. In: LIMA, Lana
Lage da Gama. Sodomia e pedofilia no século XVII: o processo de João da Costa. In: VAINFAS Ronaldo;
FEITLER, Bruno; LIMA, Lana Lage da Gama. (orgs.). A Inquisição em Xeque: temas, controvérsias, estudos de
caso. Rio de Janeiro: Ed UERJ, 2006, p. 238.
100
história ocidental. Por isso, o surgimento do conceito de infância foi importante objeto de
pesquisas. Na historiografia das mentalidades, a obra de Philippe Ariès, lançada em 1962, foi
pioneira ao demonstrar como o sentimento de infância foi socialmente construído durante os
Tempos Modernos. Ariès afirma que:
Na Idade Média, no início dos tempos modernos, e por muito tempo ainda nas
classes populares, as crianças misturavam-se com os adultos assim que eram
consideradas capazes de dispensar a ajuda das mães ou das amas, poucos anos
depois de um desmame tardio – ou seja, aproximadamente, aos sete anos de idade. A
partir desse momento, ingressavam imediatamente na grande comunidade dos
homens336.
Neste trecho, o autor afirma que a criança ingressava precocemente no mundo adulto,
do período medieval até o limiar da modernidade. Ariès historiciza, assim, o conceito de
infância, demonstrando como é fruto de determinada sociedade em determinada
temporalidade, portanto, histórico. Para tanto, o autor utilizou fontes iconográficas, analisando
nelas como a partir da modernidade as crianças se tornaram o centro da composição das
imagens, pinturas de família, por exemplo. Em sua obra, o autor elabora duas teses. Na
primeira, afirma que a sociedade medieval via de forma indiferente e insensível a criança, e
pior ainda o adolescente. A transmissão de conhecimentos e a socialização não eram
controladas pelo núcleo familiar, pois:
A criança se afastava logo de seus pais, e pode-se dizer que durante séculos a
educação foi garantida pela aprendizagem, graças à convivência da criança ou do
jovem com os adultos. A criança aprendia as coisas que devia saber ajudando os
adultos a fazê-las. A passagem da criança pela família e pela sociedade era muito
breve e muito insignificante para que tivesse tempo ou razão de forçar a memória e
tocar a sensibilidade. Contudo, um sentimento superficial da criança – a que chamei
de “paparicação” – era reservado à criancinha em seus primeiros anos de vida,
enquanto ela ainda era uma coisinha engraçadinha. As pessoas se divertiam com a
criança pequena como com um animalzinho, um macaquinho impudico. Se ela
morresse então, como muitas vezes acontecia, alguns podiam ficar desolados, mas a
regra geral era não fazer muito caso, pois uma outra criança logo a substituiria. A
criança não chegava a sair de uma espécie de anonimato. Quando ela conseguia
superar os primeiros perigos e sobreviver ao tempo da “paparicação”, era comum
que passasse a viver em outra casa que não a de sua família [...]. As trocas afetivas e
as comunicações sociais eram realizadas portanto fora da família, num “meio” muito
denso e quente, composto de vizinhos, amigos, amos e criados, crianças e velhos,
mulheres e homens, em que a inclinação se podia manifestar mais livremente. As
famílias conjugais se diluíam nesse meio 337.
Em sua segunda tese, Ariès defende que em finais do século XVII um grande
movimento de moralização, articulado por eclesiásticos e protestantes ligados à Igreja ou ao
Estado, alterou o processo de socialização e educação da criança que ficou sob a
336
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2 ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981, p. 275.
337
Id. Ibid., pp. 10-11.
101
A escola substituiu a aprendizagem como meio de educação. Isso quer dizer que a
criança deixou de ser misturada aos adultos e de aprender a vida diretamente, através
do contato com eles. A despeito das muitas reticências e retardamentos, a criança foi
separada dos adultos e mantida à distância numa espécie de quarentena, antes de ser
solta no mundo. Essa quarentena foi a escola, o colégio 338.
338
Id. Ibid., p. 11.
339
MONTEIRO, Alex Silva. A heresia dos anjos: a infância na Inquisição portuguesa nos séculos XVI, XVII e
XVIII. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal Fluminense, 2005.
340
FREYRE, Gilberto. O pai e o filho. In: Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e
desenvolvimento do urbano. 5.ed. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio; Brasília, INL, 1977, pp. 67-92.
341
Id. Ibid., p. 67.
342
Id. Ibid., p. 68.
343
Id. Ibid., p. 70.
102
frente ao patriarcalismo dos seus pais nas casas-grandes. Os colégios de padres, a exemplo de
Caraça, procuraram subordinar os meninos à Igreja, retirando da casa-grande suas funções
mais prestigiosas: a de escola e a de igreja. Entretanto, a educação jesuítica “foi a mesma que
a doméstica e patriarcal nos seus métodos de dominação, embora visando fins diversos dos
patriarcais. A mesma no empenho de quebrar a individualidade da criança, visando adultos
passivos e subservientes”344.
Portanto, Gilberto Freyre já mencionava, em 1936, aspectos da visão da Idade
Moderna sobre as duas infâncias que Philippe Ariès identificou somente na década de 1960.
Segundo Alex Silva Monteiro, “se Freyre não se preocupou em conceituar, deixou bem claro
que a passagem da criança pelos sete anos era bem identificada na vida familiar, como um
momento de mudanças nas atitudes em relação a ela, já que estaria numa fase de maior
agitação”345, além de identificar o papel importantíssimo da educação para com as crianças
naquela sociedade colonial.
Ainda na historiografia brasileira, Luiz Mott346, em 1989, através da análise dos
Cadernos do Nefando, foi pioneiro ao abordar a questão da criança relacionada ao pecado de
sodomia. Em sua pesquisa, Mott explorou uma acusação envolvendo menores de idade
ocorrida na freguesia de São João del Rei, em 1752. Revisitaremos esse caso mais adiante.
Segundo o autor, o abuso sexual contra crianças nunca foi considerado um crime específico
por parte da Inquisição, e em diversas denúncias, inclusive com a fácil identificação dos
estupradores, os inquisidores não deram a mínima atenção a esta cruel violência347.
A temática só foi retomada mais de uma década depois com Lana Lage da Gama
Lima348, num artigo em que analisa o caso do padre João da Costa, processado no século
XVII, pela Inquisição de Goa, por manter relações sexuais com meninos de idade entre 7 e 14
anos, totalizando 49 casos de sodomia. Segundo a historiadora, os jovens com quem o padre
cometera sodomia foram considerados cúmplices perante o Santo Ofício, não importando a
menor idade ou a submissão à violência dos envolvidos no agravamento da culpa do acusado:
344
Id. Ibid., p. 71.
345
MONTEIRO, Alex Silva. A heresia dos anjos...op. cit., p. 19.
346
MOTT, Luiz. Cupido na sala de aula...op. cit., pp. 32-39.
347
Id. Ibid., p. 33.
348
LIMA, Lana Lage da Gama. Sodomia e pedofilia no século XVII...op. cit., pp. 237-252.
103
349
Id. ibid., p. 246.
350
SILVA, Marco Antônio Nunes da. A infância vigiada: crianças na Inquisição portuguesa. In: SILVA, Marco
Antônio Nunes da et alii. (Orgs.). Práticas e vivências religiosas: temas da história colonial à
contemporaneidade luso-brasileira. Salvador: EDUFBA, 2016, p. 169-193 apud DIAS, Cássia da Silva. Um
pequeno sodomita: a ação da Inquisição na vida de “crianças”. In: Revista Eletrônica Discente
História.com/Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, vol. 3, n. 6, 2016, p. 173.
351
MONTEIRO, Alex Silva. A heresia dos anjos...op. cit. p. 100.
104
E sendo maiores dos ditos anos abjurarão os heréticos erros que cometerem na
menor idade, sendo “doli capaces”352.
352
Regimento do Santo Ofício de 1552, capítulo XVI apud MONTEIRO, Alex Silva. A heresia dos anjos...op.
cit. p. 96.
353
MONTEIRO, Alex Silva. A heresia dos anjos...op. cit., p. 99.
354
Id. Ibid., p. 102.
355
Id. Ibid., p. 103.
356
Id. Ibid., pp. 108-110.
105
intelectuais da Época Moderna, foram absorvidos em parte pelo Santo Ofício português,
sendo incorporados aos seus trabalhos”357.
Na vila de Sabará, em 1753, um mulato por nome Antônio Fogaça, oficial de ferreiro,
casado com uma crioula forra, chamada Maria, é denunciado por ter cometido o pecado de
sodomia várias vezes com três negros cativos: um por nome João Angola, moleque que era
seu escravo e que fugiu, buscando refúgio junto à sogra do mesmo denunciado; Afonso,
moleque de nação Angola; e preto Amaro, igualmente moleque de nação Angola. Todos os
três escravos alegaram que o senhor Antônio Fogaça também havia praticado a mesma culpa
com um crioulo seu escravo, chamado Antônio, menor de quinze anos359. Já no início do
século XIX, em 1806, Francisco de Paula Barbosa, tenente pago da Praça de Vila Rica, é
denunciado ao comissário Nicolau Gomes Xavier por cometer o pecado de sodomia perfeita
com um menino chamado Manoel, de nove anos de idade, enjeitado de Ana Maria, no tempo
que se achava cobrando dízimos em Santa Luzia360.
As denúncias referidas não foram alvos de maiores investigações inquisitoriais, como
os dois sumários principais que analisaremos doravante. O primeiro trata-se de um sumário361
contra João Guilherme de Melo, soldado dos dragões, acusado – quando fora morador em
Congonhas do Campo – de cometer repetidos atos de sodomia com dois escravos e um
menino branco chamado Francisco Rodrigues (de dez ou doze anos de idade), amarrando e
violentando as vítimas que esperava no caminho.
357
Id. Ibid., p. 113.
358
Id. Ibid., p. 110.
359
ANTT, IL, CN., c. 20º, liv. 145, fl. 156.
360
ANTT. IL. DD., cx. 1578, fl. 36.
361
ANTT. IL. CP., c. 120, liv. 312, fl. 274.
106
Eis que a denúncia é movida pelo pai do menino Francisco, Antônio Rodrigues Paiva,
que encaminha uma carta para as autoridades da Comarca de Vila Rica. Segundo o relato de
algumas testemunhas, Antônio Rodrigues já havia denunciado o dito João Guilherme de Melo
à justiça secular, mas, como o delito era de competência privativa da Inquisição, logo a
denúncia foi transferida à alçada inquisitorial. Na carta, datada em 3 de fevereiro de 1747, o
pai diz que seu filho Francisco estava indo à missa num domingo e antes de sua chegada:
[...] um homem por nome João Guilherme que veio para aqui lá da banda de Sabará,
filho de uma mulata, somítico já conhecido, botou o Francisco do cavalo abaixo,
(acometeu) em uma capoeira362, e o fornicou pelo cu, e tal intrusão lhe fez que isso
quem viu pode nisso falar, e o depois de o fazer o quis matar de que diz que o não
fazia por ele ser pequenino, e o fez ir apanhar o cavalo e que fosse para a missa
porque ele donde estava o estava vigiando, rompeu-lhe as carnes do cu e quando se
viu estava com a serventia toda de fora mais negra que um chapéu, esvaindo-se em
sangue. Vim da Paraopeba e subi esta embaixada no caminho e tenho estado
banzando como um “negror” que se o homem se não (pague?) pelo Santo Ofício não
tenho mais remédio que matá-lo. Assim peço a v. m. que tal e com o comissário
geral do Santo Ofício o informe/ Que pela festa do natal fornicou um negro na
estrada que vai para a cidade o qual o negror esteve no arraial das Congonhas
confessado e sacramentado banzando do que o somítico lhe fez. O negro é de
Damião Francisco, e tem corrido o dito homem atrás de vários negros [...] 363.
Nessa carta, o pai deixa explícito seu ódio pelo denunciado, alegando que seria capaz
de matá-lo se não pagasse pelo que causou ao seu filho. Podemos supor os males que causara,
inclusive, a sua própria honra enquanto patriarca da família. Cabe lembrar que o tribunal não
aceitava testemunhos conduzidos por ódio ou paixão, no entanto, o relato do pai parece ser
suficiente o bastante para a abertura das diligências. Assim, aos 25 dias do mês de abril de
1747 é iniciada a diligência das testemunhas na casa do comissário João Soares Brandão,
freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Rio das Pedras, Comarca de Sabará. Nesse
mesmo dia, foram ouvidos os depoimentos de um familiar do Santo Ofício, André de
Figueiredo Silveira, do menino Francisco Rodrigues e de seu pai Antônio Rodrigues. Após a
retirada do pai, o menino disse que em dezembro de 1746, próximo ao Natal:
[...] mandando-o sua mãe para a missa a cavalo com dois escravos negros que o
acompanhavam, os quais se adiantaram, e ficando o dito menino atrás com alguma
distância lhe saíra ao encontro um homem a pé com uma espingarda, e que este
homem o chamara e não dando o menino pelos brados do homem este lhe metera a
espingarda a cara para lhe atirar e que ele com o medo que o dito homem lhe atirar-
se o esperou, e chegando o dito homem a ele lhe pegara nas rédeas do cavalo e o
metera em uma capoeira de mato e dentro do dito mato lhe pegara por um braço, e o
desceu do cavalo abaixo, e dando lhe uns puxões o despira pegando lhe com uma
mão na garganta sufocando-o para não gritar se pôs encima dele, e usou com toda a
violência da via posterior rasgando lhe enchendo lhe toda a roupa de sangue. E que o
dito menino disse muito bem sentira ficando quase sem sentidos que o dito homem
362
Capoeira seria mato fino que cresce onde foi derrubada a mata virgem.
363
ANTT. IL. CP., c. 120, liv. 312, fl. 275.
107
fizera dele mulher, e depois de fazer o gosto depravado (de) “sodomitice” o mandara
para a missa, e que não fosse logo para casa, e que o dito ficara vigiando para donde
ia. Disse mais o dito menino que ocultara o que lhe tinha sucedido, e só o disse a sua
mãe pelo ver desmaiado, e a roupa cheia de sangue. [...] E que também ouvira dizer
que o dito homem tinha feito o mesmo a varias pessoas, amarrando-as, sendo
pacientes como ele o foi, e tinha sido364.
Chamado a depor logo após o filho, Antônio Rodrigues Paiva, natural da Ilha de São
Miguel, de quarenta e tantos anos de idade, disse que o delato João Guilherme de Melo
morava algum tempo em Congonhas numa rocinha que tinha comprado, mas de lá se ausentou
depois de cometer os vários delitos. Antônio, estando em outra fazenda distante de sua casa,
fora avisado do ocorrido pelo feitor a mando de sua mulher, sendo informado de que seu filho
tinha sido violentado pela via posterior “como se fosse mulher” e que o acusado “para isso o
levara a uma capoeira de mato e lhe dera muita pancada, segurando com uma mão pela
garganta para não gritar, deixando-o banhado em sangue de que a mãe o curou”. Podemos
imaginar a volta desesperadora do pai ao saber do acontecido. Antônio Rodrigues ainda disse
que:
364
ANTT. IL. CP., c. 120, liv. 312, fl. 280.
365
ANTT. IL. CP., c. 120, liv. 312, fl. 281.
108
mesma via”366. Sem sentidos, após a violência sofrida, o escravo ainda montou a cavalo para
retornar à casa de seu senhor, ficando tão enfermo que fora necessário sacramentá-lo.
Dias depois, José de nação Benguela, escravo do capitão Francisco da Rocha, de
dezoito para vinte anos, relata que mandando o seu senhor à casa de um alfaiate na freguesia
dos Carijós, apareceu no meio do caminho um homem branco pedindo ajuda para amarrar um
cavalo dentro de uma casa velha, e, indo lhe ajudar, “o pegara e amarrara com as mãos para
trás, e o botou no chão, e se pôs encima dele, e lhe meteu uma ponta de boi pela via, e o
depois fizera dele mulher, e o deixou muito mal tratado no melo do campo donde seus
parceiros o vieram buscar”367. Depois dessa abrupta violência, o escravo José passou muito
tempo doente, devido ao “ruim trato e devassidão que lhe fez na via”.
O sumário das testemunhas é enviado ao Tribunal de Lisboa, e de lá – aos seis dias do
mês de agosto de 1748, ou seja, há mais de um ano depois da primeira denúncia – os
inquisidores ordenam que fosse feito, como de praxe, outra diligência. Desta forma, em
fevereiro de 1749, é aberta nova investigação para minuciosamente apurar a denúncia. O réu
João Guilherme de Melo, que era tido como foragido nos primeiros testemunhos, agora
aparece preso de Vila Rica para a casa Forte da Ilha das Cobras, fortaleza da barra da cidade
do Rio de Janeiro, segundo as testemunhas. Sem grandes incongruências, a mesa inquisitorial
encerra o caso dando crédito aos oito testemunhos, com algumas ressalvas quanto aos dois
escravos “porque estes pela sua rusticidade são variáveis, porém quando a queixa e violência
da torpeza a quem o violentaram persuado-me dizerem verdade e mereciam crédito”368. O
sumário é novamente enviado para Lisboa, onde concluem que:
No entanto, o caso se encerra aí, sem maiores investigações. Talvez o réu tenha sido
devidamente processado e a documentação extraviada. Ou talvez essa tenha sido a única
documentação existente, ainda que inconclusa. O fato é que o parecer final indicou que o
366
ANTT. IL. CP., c. 120, liv. 312, fl. 282v.
367
ANTT. IL. CP., c. 120, liv. 312, fl. 284.
368
ANTT. IL. CP., c. 120, liv. 312, fl. 302.
369
ANTT. IL. CP., c. 120, liv. 312, fl. 304.
109
370
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 192.
371
MOTT, Luiz. Cupido na sala de aula...op. cit. pp. 32-39
372
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 196.
373
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 198.
110
vidinha, vira para o bananal que eu para lá vou com a garrafinha de água ardente”374. A
terceira testemunha, Francisco Xavier Ferreira, 43 anos, natural de Lisboa, disse que estava
presente na casa de Francisco Moreira quando este lhe mostrou o dito bilhete, este estava
escrito: “Luiz, minha vida, vinde para o bananal que lá temos que comer e beber” 375. Essa
última testemunha ainda alegou que João Pereira “enrabara por detrás” outros dois
“crioulinhos”.
O alvoroço parece ter sido despertado nas Lavras da Lagoa quando a preta forra
Bernarda de Jesus, mulher de Inácio (escravo de Francisco Moreira), ouviu do escravo
Manoel, de 10 ou 11 anos de idade, que “o dito João Pereira de Carvalho para mestre não
prestava, porque andava fazendo coisa má” com ele e com outros meninos “por detrás”. Ao
ser questionado pela forra sobre “que coisa má era aquela”, o crioulinho foi-se embora sem
dar maiores explicações. Algum tempo depois, indo banhar o menino Luiz, Bernarda notou
um ferimento na sua “via traseira”, ao que o menino confessou que seu mestre era quem tinha
feito aquilo “com sua vergonha por detrás”, e que ainda “lhe dava pancadas, ameaçando se
falasse”. A preta forra logo disse para a mãe do menino. Queixosa pelo silêncio do filho, a
mãe deu-lhe leves bofetadas, ao que o menino se pôs a chorar dizendo não ter dito antes por
medo que tinha de seu mestre. Bernarda depõe ainda, por ouvir dizer, que apanharam um
escrito do professor para Luiz, porém só sabia que esse escrito não era bom. Este final do
depoimento contraria o depoimento anterior de José da Rosa Ferreira, 59 anos, que disse ter
sido o escrito entregue a preta forra Bernarda pelo próprio menino Luiz.
Francisco Moreira de Carvalho, ao descobrir a sordidez da boataria contra seus filhos,
amarrou e repreendeu o professor em sua casa e, segundo uma testemunha, disse ao
denunciado: “venha cá velhaco! Esse é o ensino que da a meus filhos, andando somitigando
com eles?”. Para outras duas testemunhas, Francisco Moreira teria dito naquela ocasião:
“Velhaco, eu pago lhe para ensinar meus filhos ou para lhe ensinar velhacarias?”376. E
chamando seus filhos Antônio e Luiz, perguntou ao dito Antônio o que fizera o mestre, ao que
o filho respondeu que o acometera para molícies, mas que não havia consentido, se retirando
com os calções nas mãos. E perguntando ao segundo filho, Luiz, este respondeu que “o dito
mestre, fazendo lhe botar abaixo os calções, se pusera encima dele por detrás, e por três vezes,
duas no sítio das Lavras da Lagoa e outra no bananal”377. Enfurecido, o dito Moreira ali
374
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 200v.
375
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 204.
376
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 202v.
377
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 203.
111
mesmo o quis matar, mas as testemunhas acudiram o professor. Este somente pedia que lhe
perdoasse o crime, que não negou: “valha-me a sua prudência e perdoe-me”378.
Em 10 de abril de 1752, o vigário da vara José Sobral e Souza enviou ao comissário
Antônio Leite Coimbra uma ordem de prisão contra João Pereira de Carvalho. Um dia depois,
o denunciado já estava preso na vila de São João del-Rei. Os autos do sumário foram
encerrados em agosto de 1752 e remetidos ao Tribunal de Lisboa, de onde veio a ordem dos
inquisidores, em 9 de fevereiro de 1753 – isto é, seis meses depois – para a abertura de uma
nova diligência. Nos interrogatórios, os inquisidores deixam claro a forma que as testemunhas
nomeadas deveriam ser investigadas, assim como as mais que elas referissem ou soubessem
do que se pretendia averiguar. De lá pra cá, levaram mais oito meses, recomeçando a nova
inquirição das testemunhas no dia 6 de outubro de 1753.
Nesta segunda parte do sumário, chama atenção o maior detalhamento das
testemunhas, assim como suas contradições, em comparação com os primeiros depoimentos.
Vale destacar o depoimento do crioulinho Manoel, agora com 12 anos de idade, que,
contrariando o primeiro relato da preta forra Bernarda, declara nunca ter sido cúmplice do
delato João Pereira de Carvalho no pecado de sodomia, e que este nunca nem o solicitara para
“o fim de dormir por detrás”379. O pesquisador Luiz Mott, analisando esta documentação,
interpreta que o menino Manoel minimiza a situação dizendo apenas ter visto Luiz agachado
no chão junto com o professor, isto é, de vítima o crioulo passou tão somente para testemunha
ocular380. Entretanto, reanalisando o testemunho do crioulinho, percebemos que não fica claro
o dizer de Manoel que fora ele quem flagrou Luiz com o professor, mas sim outro crioulo
escravo, por nome José. No trecho a seguir, ele relatou:
E do terceiro disse que em certa e dia que a ele testemunha lhe não lembra estando
em casa de Bernarda de Jesus preta forra moradora na dita paragem da Ibituruna, ali
fora José crioulo, escravo segundo a ele testemunha parece de Sebastiao Dias, e
disse para ele e a dita negra Bernarda que indo a casa donde morava o dito João
Pereira de Carvalho vira a este estar abaixado para o chão junto com Luiz, filho de
Francisco Moreira de Carvalho, e que o dito Luiz ficava assustado pelo ver assim
estar abaixado o dito crioulo Jose, ao que respondeu a dita Bernarda: “cala boca!
Não fala isso que se seu pai o saber é crime não está bem” 381.
Desta forma, percebe-se que fora o escravo José quem vira professor e aluno em atos
sodomíticos e quem, em seguida, contou ao crioulinho Manoel na presença da preta forra
378
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 204.
379
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 231v.
380
MOTT, Luiz. Cupido na sala de aula...op. cit., p. 36.
381
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 231, grifos nossos.
112
Bernarda. Ou seja, contrariando a primeira diligência, o menino Manoel não fora nem
cúmplice, nem mesmo testemunha ocular dos crimes sexuais do mestre.
As contradições não param por aí. Bernarda de Jesus, que primeiramente havia dito ter
ouvido dizer sobre a existência de um bilhetinho amoroso, agora alega que quando ela estava
curando e tratando do menino Luiz, doente – lançando sangue pela via detrás – viu entrar um
crioulinho pequeno, certamente Manoel, com um papelzinho na mão, indo entregar ao dito
Luiz. Nisto, a mãe também viu e perguntou ao crioulinho quem mandava tal papel, ao que
respondeu que era o mestre João Pereira de Carvalho. Logo, Bernarda viu a mãe pegar o
papelzinho “e, depois de ler, deu muitos bofetões no seu filho”382. A testemunha ainda detalha
que nas duas vezes que curou Luiz meteu-lhe “pírulas” na via traseira, e que “a mesma via na
entrada estava ferida com algumas rachaduras e algumas bostelas secas de forma que lhe
ardiam ou faziam ardores as pírulas que lhe meteu”383. Prossegue relatando que o menino
“tinha a via muito larga, tanto que lhe metia dois dedos, e caberiam três se lhes metesse, e
quando lhe metia os dedos, saíam estes com sangue”384.
Os inquisidores, sempre vigilantes e atentos, obviamente perceberam todas essas
incongruências. Segundo Luiz Mott:
382
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 224.
383
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 224v.
384
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 224v.
385
MOTT, Luiz. Cupido na sala de aula...op. cit., p. 37.
386
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 245.
113
ainda estranharam uma ordem dada ao comissário para que enviasse a certidão de idade de
Luiz. Foram enviadas duas cópias, no entanto, ambas tiradas pelo próprio pai do menino, o
que os levou indagarem como teria se dado o procedimento sem que o comissário revelasse o
segredo da diligência. Por fim, trataram Luiz como cúmplice do tal professor acusado e, após
dois anos e três meses de prisão, ordenaram que este fosse posto em liberdade:
Luiz Mott levanta algumas das principais falhas processuais deste sumário, que
certamente influenciaram a decisão favorável ao réu: 1) os depoimentos contraditórios de
Manoel, um moleque de 12 anos, entre uma diligência e outra; 2) as versões diferentes em
torno do suposto bilhete amoroso, que não foi incluído no processo como peça comprovatória,
levando a crer que nunca existira; 3) a variação de relatos sobre o filho mais novo a quem ora
o professor também o obrigava fazer “sacanas”, ora nada lhe fazia; 4) sobre testemunho da
preta Bernarda, esta poderia saber da gravidade do crime de sodomia e por isso inventou toda
a história para vingar-se de algo contra o professor, ou realmente o menino estivera com
alguma doença no ânus, talvez o famigerado “mal-de-culo”388, recorrendo assim aos cuidados
da ex-escrava.
Mott não descarta a hipótese de que o mestre teria de fato mantido relações
sodomíticas com o seu aluno, e “o pai ultrajado pela infâmia de ter em casa um filho velhaco,
aumentou a história para vingar-se do indecente mestre e atemorizar o filho para sempre”389.
Lendo somente o processo, somos levados a crer que o réu se trata de um homem adulto,
posto que em momento algum seja mencionado qualquer informação sobre a idade do mesmo.
No entanto, pesquisando nas Efemérides de São João del-Rei, de autoria de Sebastião de
Oliveira Cintra, Luiz Mott nos revela, ao final, com a erudição própria de sua escrita, a
identidade dos pais do réu, cujo pai tinha o mesmo nome: João Pereira de Carvalho. Já pelo
registro de batizado é descoberto pelo autor que o professor teria 13 anos de idade quando
fora denunciado em 1752. Assim, o autor conclui que a omissão da idade no sumário foi
387
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 245v.
388
“Doença muito corrente no Brasil de antanho, hoje diagnosticada como retite ulcerante consecutiva à
disenteria e que já em fins do século XVI Fernão Cardim incluiu entre as doenças mais frequentes na América
Portuguesa, causando „ardor e corrupção do ânus com ulceração corrosiva, sem ou com fluxo doloroso de
sangue, corroendo o músculo esfíncter e a boca das veias hemorroidais, ficando o ânus largamente destendido a
moda de cloaca‟”. In: MOTT, Luiz. Cupido na sala de aula... op. cit., p. 37.
389
MOTT, Luiz. Cupido na sala de aula... op. cit., p. 37.
114
proposital, “tendo como finalidade tornar ainda mais hedionda a acusação de violência
sexual”390. Mott localizou ainda o processo de genere et moribus, exigido obrigatoriamente
para admissão ao estado sacerdotal, datado de 1761, de João Pereira de Carvalho. E, nessa
habilitação, “nenhuma das testemunhas inquiridas a respeito da moral e costumes do
habilitando refere-se ao episódio das Lavras da Lagoa, nem a qualquer outra conduta
desabonadora de sua retidão e honestidade”391.
No período das denúncias aqui tratadas, o Regimento em vigor de 1640 estabelecia a
idade mínima para abjuração em público de 12 anos para meninas e 14 para rapazes, e
abjuração em secreto na mesa para as meninas de 9 anos e meio e 10 anos e meio para os
rapazes – isso se fossem avaliados como doli capaces. No entanto, os menores aqui
apresentados não fizeram nenhum tipo de abjuração. Já o adulto João Guilherme de Melo que
violentou o menino Francisco Rodrigues, de 10 ou 12 anos, foi considerado culpado, porém
não fora processado. João Pereira de Carvalho que abusava de seus alunos – principalmente
de Luiz, de 9 para 10 anos de idade – foi absolvido, visto que as incongruências das
testemunhas levaram os inquisidores a concluírem que se tratava de um maquinação contra o
professor, que depois descobrimos ser um menino de apenas 13 anos. Em comum, ambos
sumários tem início a partir de denúncia movida pelos pais dos meninos, que tiveram seus
filhos tratados “como se fossem mulher”, enquanto passivos, uma infâmia que afetava a honra
dos patriarcas.
A indignação com os abusos que seus filhos sofreram, enquanto pacientes, no entanto,
não fora levada em conta pela Inquisição, que se importava mais em saber das duas matérias-
primas do delito: 1) a penetração anal com derramamento de sêmen (intra vas), e; 2) a
repetição dos atos. Óbvio que a coerência das testemunhas ao serem perscrutadas nas
diligências também era detidamente analisada, contribuindo no último caso para a absolvição
do professor. Desse modo, os homens mais velhos eram sempre os ativos, e os menores de
idade eram sempre os passivos das relações sexuais – até mesmo na curta diferença de idade
do professor João Pereira de Carvalho com seu aluno Luiz – devido suas fragilidades e
vulnerabilidades enquanto menores de idade.
390
Id. Ibid.
391
Id. Ibid., p. 38.
115
392
GOUVEIA, Jaime Ricardo Teixeira. A Quarta Porta do Inferno. A vigilância e disciplinamento da luxúria
clerical no espaço luso-americano (1640-1750). Lisboa, Chiado, 2015, p. 191 apud SILVA, Sabrina Alves da.
“Execrados ministros do demônio”...op. cit., p. 31.
393
SILVA, Sabrina Alves da.“Execrados ministros do demônio”... op. cit.
394
Id, Ibid., pp. 56- 57.
395
Id. Ibid., p. 118.
396
Id. Ibid.
116
procurou o comissário Lourenço José de Queirós e lhe informou que o padre, no ato da
confissão, pegara em sua “natura”397, ou seja, nas suas partes genitais. Relatou que queria:
Portanto, as práticas sexuais contrárias a moral cristã não estavam restritas somente
aos povos indígenas, ou aos escravos negros, tidos pelos colonizadores como “depravados”,
“selvagens” ou “incivilizados”. Verônica Gomes399 analisa as relações sodomíticas de
eclesiásticos luso-brasileiros que se relacionaram ou abusaram sexualmente de indivíduos
oriundos dos mais diversos grupos étnicos e estamentos sociais no Brasil. Investiga as
diferentes estratégias de convencimento utilizadas pelos clérigos para conseguirem seus
intentos “homossexuais” com seus parceiros e como, ao fazê-los, demonstravam não serem
submissos ao discurso moral homogeneizante da Igreja Católica. Mostra, ainda, como que
esses relacionamentos, muitas das vezes, envolveram crianças e adolescentes que sofreram o
que hoje referimos como pedofilia e abusos sexuais, ainda que na Época Moderna, quando
havia outra concepção de infância, essa prática sexual não era considerada um crime pela
Inquisição.
Nas Minas Gerais, localizamos 9 casos de clérigos denunciados ou confessados por
sodomia ao tribunal inquisitorial. O envolvimento de menores de idade é marcante nas
relações dos padres, só com grande dificuldade conseguiríamos separar exatamente os casos
equivalentes ao que hoje entendemos como pedofilia, pois ressaltamos que para além da
inexistência desse conceito no período colonial, muitos padres e senhores mantinham relações
sodomíticas tanto com adultos quanto com crianças. Separamos aqui os padres por se tratarem
397
Natura significava as partes naturais, genitais. In: BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez e Latino.
Lisboa: Officina de Pascoal da Sylva, Impressor de Sua Magestade; vol. 5. 1716, p. 683. Disponível em:
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5449. Acesso em: 28 de maio de 2018.
398
ANTT. IL. Caderno dos Solicitantes, liv.768, fl. 30 apud SILVA, Sabrina Alves da. “Execrados ministros do
demônio”...op. cit., p. 120.
399
GOMES, Veronica de Jesus. Vício dos Clérigos...op. cit.
117
400
ANTT. IL. CN, c. 20º, liv. 145, fl. 104.
401
ANTT, IL, CN, c. 20º, liv. 145, fl. 440.
402
ANTT. IL. DD, cx. 1591/14584, fl. 25.
403
A expressão boçal era usada para designar os escravos negros, ainda não ladinos (nome dado aos escravos
que já sabiam falar o português, tinham noções de religião e trabalhavam em algum ofício), recém chegados da
África e desconhecedor da língua do país. O sentido generalizou-se para o indivíduo sem instrução, sem cultura,
ignorante.
118
sodomia, não corriam grandes riscos os senhores ao copularem com os boçais”404. Porém, não
foi o caso do escravo João, que mesmo sendo boçal foi se confessar, sendo advertido pelo
confessor a não consentir novamente no nefando. Ao saber daquilo, o padre André Ribeiro lhe
disse que não importava, pois toda vez que se confessava não era mais pecado, mas que não
se confessasse mais com o mesmo confessor. Assim continuaram, até que se achando na
mesma casa com um preto forro por nome Antônio dos Santos e outros escravos, foi o padre à
porta da sua camarinha405 e o chamava: “vem cá, dá-me o cu, dá-me o cu, que quero foder”.
Os demais escravos ouviram por estarem junto à camarinha e disseram: “arre com o padre,
arre com o padre, tu és mulher do padre, tu és mulher do padre, arre com o padre”. Uma moça
carijó por nome Rosa disse também ter visto o que o dito reverendo fazia com o escravo de
dia, por um buraco da casa. O padre que era sempre agente na relação, “depois que o dito
preto forro Antônio dos Santos lhe pediu, por quantos santos há no céu, que não tornasse a
fazer isso, porque havia de morrer queimado, se emendara”406.
Dos nove padres sodomitas, apenas dois foram até a mesa inquisitorial para se
confessarem. Indubitavelmente a maioria deles era sabedora que o sacramento da confissão
amenizava a punição de sodomia, mesmo assim aguardou a descoberta bater a porta, na
esperança que seus atos nefandos permanecessem ocultados.
Antes que alguém o denunciasse, ao regressar para Lisboa, Francisco José N. S. de
Penha de França – religioso leigo de São Francisco da Província de Portugal, 44 anos de
idade, em 1763 – apresentou-se nos Estaus, confessando vários atos sodomíticos que tivera no
convento de São Francisco daquela cidade com no mínimo seis rapazes, há mais de 17 anos.
Confessou mais, que, havia nove anos, quando foi mandado pelos seus prelados para tirar
esmolas nas Minas do Sabará, achando-se na freguesia de Caeté, comarca de Sabará, numa
casa onde pernoitava cometeu a culpa de sodomia com um rapaz crioulo que servia para lhe
conduzir as esmolas que tirava, e “dormindo ambos na mesma cama o somitigou
perfeitamente penetrando-o pelo vaso prepóstero e seminando dentro dele”407. Também teve,
na mesma freguesia, ações desonestas, penetrando seu membro viril no vaso traseiro de dois
rapazes (um preto e outro branco). Disse mais, que na freguesia de Santo Antônio da Roça
Grande do Rio das Velhas, estando ele confitente na casa de um homem desconhecido, travou
amizade com os filhos do mesmo e convidou um deles, de 15 anos de idade, para que
404
MOTT, Luiz. O sexo proibido... op. cit., p. 44.
405
Quarto pequeno, geralmente de dormir.
406
ANTT. IL. CN, c. 20º, liv. 145, fl. 139.
407
ANTT. IL. CN, c. 20º, liv. 145, fl. 322.
119
dormissem juntos. Com esse menino menor de idade, teve um ato de sodomia completa,
penetrando e seminando dentro de sua via posterior.
Padre Baltazar Pereira de Meireles408 – 35 anos, capelão na freguesia de Nossa
Senhora da Conceição da Vila do Carmo, em 1727 – também confessou que cometera o
pecado nefando várias vezes com seus escravos: Paulo de Nação Courano, da Costa da Mina
(por dois anos e meio); Francisco de Nação Ladano da Costa da Mina e; João de Nação
Courano. Na maioria das vezes relatou ter sido agente e outras também paciente, com
seminação intra vas e extra vas. Certamente conhecedor da gravidade do ato consumado, o
padre alegou que por uma vez, pela fragilidade da memória, não lembrava se houvera
consumação. Confessou ainda que tivera outras relações sodomíticas com mais nove homens:
1) Manuel Gonçalves, a quem havia solicitado para o mesmo pecado, mas que não teve o
consentimento do dito moço; 2) um estudante, natural de Lisboa, com quem pecara duas
vezes, sendo agente e paciente com consumação intra vas; 3) Pedro Bela, natural da freguesia
de São Cristóvão de Mondira, arcebispado de Braga, pecando uma ou duas vezes, enquanto
paciente; 4) João Gonçalves, que fora seu criado em Lisboa e viera com o clérigo para a
colônia, cometendo a sodomia tanto no reino quanto nas Minas Gerais, enquanto agente e
paciente, mas que não se lembrava, novamente, se tivera consumação dos atos; 5) Jerônimo
Pires, criado do seu pai, com quem fora muitas vezes agente e paciente, desde 1708, por um
espaço de cinco anos, muitas delas com seminação intra vas; 6) Manuel Teixeira, criado por
três anos do dito padre, pecando no espaço desses anos na cidade de Braga, sendo agente em
todas as vezes e seminando intra e extra vas; 7) um moço seu criado, sendo ele padre agente,
e algumas vezes não se lembrava se tivera seminação intra vas; 8) Pedro da Silva, sendo
agente, seminando intra vas, e uma vez paciente, há mais de 18 anos; 9) Mathias Fernandes,
com quem foi agente e paciente com consumação dos atos. Em dezembro de 1728, o padre
foi para o Rio de Janeiro na presença do comissário do Santo Ofício.
Padre Antônio Lopes Pacheco, capelão da capela de Nossa Senhora da Conceição de
Santa Bárbara, aparece, em fevereiro de 1732, enviando vários requerimentos ao Rei de
Portugal D. João V. Num deles409, informava certas violências das quais tinha sido vítima –
injúrias de vários moradores daquele distrito, “seus fregueses e inimigos declarados” – e
solicitava ao Rei provisão para que o ouvidor de Ouro Preto tirasse devassa daquilo e ainda de
uma referida assoada (desordem). Mais de uma década depois, padre Antônio Lopes Pacheco
aparece preso na cadeia da vila de Sabará por cometer sodomia com seus escravos. O padre
408
ANTT. IL. CN, c. 19º, liv. 144, fl. 277.
409
AHU, caixa 20, doc. 71.
120
escreve uma carta à mesa inquisitorial, em 1745, contra comissário João Soares Brandão por
acusação falsa e por mandar matá-lo na prisão. A carta não fornece maiores informações
acerca da denúncia, apenas das moléstias que o padre alegou está sofrendo pelo comissário,
que, segundo Pacheco, teria induzido seus escravos a forjarem a denúncia devido aos castigos
que sofriam do denunciado410. Pesquisamos nos arquivos da cidade de Sabará411 com o intuito
de desvendar um perfil e destino do padre Antônio Lopes Pacheco, mas infelizmente não
localizamos nenhuma documentação que pudesse nos revelar o mistério de sua trajetória
contra seus denunciantes.
Em outras denunciações, os escravos serão os grandes protagonistas contra seus
senhores. José, moleque cativo de Inácio de Souza – na freguesia de Camargos, em 1737 –
denunciou um religioso franciscano, frei Antônio de Santa Maria, por violentá-lo
sodomiticamente quando foi a mando de seu senhor acompanhar o dito frei na freguesia de
Carijós412. Mas nenhum denunciado por seus escravos padeceu por cometer o abominável
pecado de sodomia como o padre a seguir, também denunciado por seu escravo.
Não só preso com todos os bens confiscados, José Ribeiro Dias413 foi o único dos
padres apresentados aqui processado pela Inquisição, e um dos únicos a ser duramente
castigado por sofrer uma denúncia de seu próprio escravo. Era assistente nas Minas de
Paracatu, onde conseguira acumular considerável fortuna. Nas relações, era não só agente,
mas também paciente com seus parceiros sexuais, sendo denunciado por sodomia numa visita
do bispo do Rio de Janeiro à região mineira, em 1744, na Vila de Sabará (aprofundaremos
nesse caso no próximo capítulo).
410
ANTT. IL. CP, c. 109, liv. 301, fl. 37; ANTT. IL. CP., c. 110, liv. 302, fl. 379.
411
Os arquivos pesquisados foram: Arquivo Histórico Casa Borba Gato (AHCBG) e a Câmara Municipal de
Sabará.
412
ANTT. IL. CN, c. 17º, liv. 821, fl. 509.
413
ANTT. IL. Proc. 10496; ANTT. IL. DD., CX1629/16758, fl. 1.
121
havia sido paciente pecado de sodomia, tendo cópula consumada, com Domingos Vieira,
homem branco, o qual viveu junto com o confitente cerca de quinze dias. E, sucedendo ambos
dormirem em uma mesma cama, trocaram tocamentos em suas partes pudendas um com
outro. O denunciante ainda relatou que voluntariamente se deitou de bruços e ofereceu a sua
via prepóstera para Domingos Vieira, fazendo-se paciente no dito pecado, o que sucedera em
vários dias do mês de maio de 1753. Depois não tornara mais a ver o dito agente. Agostinho
de Azevedo disse ainda que cometera o nefando em Portugal por duas vezes, sendo também
paciente, e que oferecia a denúncia de si próprio temeroso de que algum inimigo seu o
fizesse414.
Tempo maior de duração das relações sodomíticas voluntárias, vemos no caso a
seguir. Em março de 1772, no arraial de Nossa Senhora da Conceição das Raposas, Manoel
Vieira Franco (homem solteiro e morador na freguesia do Curral del Rei) foi acusar-se ao
comissário que: morando com José Ribeiro de Souza (homem pardo, natural e morador na
mesma freguesia) “pela grande comunicação e familiaridade se facilitaram ambos para atos
sodomíticos”, em que continuaram por espaço de três anos, sendo ora agente, ora paciente,
ainda que não continuadamente nos três anos por algumas vezes interromperem 415. Oito dias
depois (aos seis de abril de 1772, no arraial das Raposas), seu cúmplice José Ribeiro de Souza
também fora confessar que: tendo amizade com o dito Manoel – num período de três anos –,
se comunicava com ele desonestamente com atos sodomíticos, cuja gravidade do pecado
conhecia através de seus confessores416. Aqui o papel sexual dos cúmplices aparece versátil:
ora eram agentes, ora pacientes.
A versatilidade dos papéis também aparece na confissão de Manoel Dias da Conceição
(de 17 anos de idade, morador em São João del-Rei) que, em 1771, apareceu perante o
comissário Nicolau Gomes Xavier confessando que um moço – chamado Miguel de Sousa
Montenegro, de vinte e poucos anos – solicitara ele denunciante para atos sodomíticos. Com
efeito, o solicitante o induziu para que primeiro fosse paciente para depois ser agente,
declarando que seria mais um ensinamento. E assim o foi, o que ocorreu por anos com
“inteira derramação no vaso prepóstero”. Delatou também que depois de ensinado, “por
algumas cinco vezes ele (se) fizera paciente a dois rapazes para efeito do mesmo pecado”417,
porém não sabia da gravidade dos seus atos, e de tudo se arrependia.
414
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 190.
415
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 442.
416
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 441.
417
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 451 (Freguesia de Raposos- São João del Rei/08-04-1771).
122
O mais infiel dos casos de cumplicidade, no entanto, foi o músico Antônio do Carmo
que tivera relações sodomíticas com Valentim Ferreira por cerca de um ano e seis meses, um
rapaz pardo que morava em sua casa, porém revelou muitos outros tratos sexuais que
mantinha com outros parceiros distintos. Antônio do Carmo confessa, em Vila Rica, 1749,
que com o dito Valentim caíra no pecado três ou quatro vezes, sendo ele confitente agente,
mas tenta amenizar suas culpas alegando que lhe parecia nunca penetrar o vaso. Diz também
que com o mesmo fora paciente, o que sucedeu por um período de um ano e seis meses.
Antônio ainda revelou que tivera outras relações com diversos rapazes na freguesia de
Congonhas do Campo. Um deles, um moleque que não lembrava o nome (na dita freguesia
em uma festa de São José), fora ele confitente agente e paciente, justificando que havia
“abusado de água ardente”. E disse mais:
[...] que com outros músicos rapazes por muitas vezes se deitava na cama e com
eles tivera brincos desonestos, fazendo pulsões aos ditos enquanto atos de sodomia
sendo agente de que finalizava e (dava) cumprimento com pulsões com as mãos dos
ditos rapazes, e outras vezes por entre as pernas dos ditos418.
Disse também que principiava a ser paciente com todos os rapazes, mas que não
consumara os atos, e em todas as vezes se achava “esquentado com água ardente e com pitar,
por cuja causa ele, arrependido, se emendara do dito vício e não tornara a beber água ardente
nem a usar de pito”419. Vemos aqui que o confitente utiliza como atenuante de seus atos
pecaminosos a alegação de estar sob efeito de bebida alcoólica420.
Na própria mesa inquisitorial era perguntado se o réu estava em seu perfeito juízo.
Assim, o Santo Ofício reconhecia que seria menor a gravidade do delito, ou este deveria ser
relevado, caso houvesse fortes indícios do uso de bebidas alcoólicas por parte dos acusados.
Segundo o etno-historiador Luiz Mott, as referências ao consumo de vinho e aguardente
presente na documentação inquisitorial sobre os sodomitas luso-brasileiros:
418
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 89.
419
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 89v.
420
Para as Minas Gerais, encontramos 6 casos de relações sodomíticas em que aparece o uso de bebidas
alcoólicas (vinho ou água ardente) pelos confitentes ou denunciados. São eles: 1) Lourenço Ferreira Esteves
(Vila Rica-1735); 2) Lucas da Costa Pereira (Paracatu-1740-46); 3) Antônio do Carmo (Vila Rica-1749); 4)
Bernardo Gomes da Costa (Paracatu-1750); 5) João Leite do Prado (Arraial de N. S. de Nazaré- 1751); 6) João
Pereira de Carvalho (São João del Rei-1752);.
123
Seja como for, nas Minas Gerais também encontramos algumas relações marcadas por
carinho e paixão, apesar da predominância de casos entrelaçados ao mundo violento da
escravidão. Conforme Ronaldo Vainfas, as relações sodomíticas mais afetivas “pouco se
diferenciavam de certos concubinatos heterossexuais, fruto de amores impossíveis ou
proibidos”422. Ainda para o autor, se tais casos aparecem em número bem reduzido, “se o
amor aparecia pouco nos registros do Santo Ofício, tal se deve, em grande medida, a que à
Inquisição interessava averiguar, para a formação de juízo, não a existência de afetos e
paixões, mas a ocorrência do coito anal consumado”423.
421
MOTT, Luiz. “In vino veritas”: vinho e aguardente no cotidiano dos sodomitas luso-brasileiros à época da
Inquisição. TOPOI, v. 6, n. 10, jan.-jun. 2005, pp. 9 e 15.
422
VAINFAS, Ronaldo. Sodomia, amor e violência nas Minas setecentistas... op. cit., p. 525.
423
Id. Ibid., p. 526.
424
BELLINI, Lígia. A coisa obscura...op. cit., pp. 54-55.
425
Id. Ibid., p. 55.
426
Id. Ibid., p. 62.
124
Nas fontes aqui pesquisadas para as Minas Gerais, não localizamos nenhuma denúncia
que tratasse da sodomia cometida entre mulheres. Para o século XVIII, a única mulher
processada em matéria nefanda, Feliciana de Lyra e Barros 428, foi acusada no Pará por
sodomia heterossexual (sodomia imperfeita), ou seja, sobre sodomia feminina não existe
nenhum processo dos setecentos. Lígia Bellini apresenta uma denúncia nas terras mineiras de
sodomia feminina, a única de todo século XVIII429. Porém não a incluímos no total das
denúncias arquivadas e examinadas neste capítulo por não ter sido localizado a fonte indicada.
Tal denúncia fora feita pelo cônego e tesoureiro da Sé do Bispado de Mariana, João Luís de
Souza Saião430, contra Ana Rosa que, segundo ele, cometia o pecado de sodomia com moças
da cidade.
Segundo Bellini, o clérigo agia nessa denúncia como se não tivesse nenhuma
informação acerca do delito, isso quase cento e cinquenta anos após o Conselho Geral decidir
que a Inquisição não deveria tomar conhecimento das relações sodomíticas entre mulheres.
Mas como vimos, a confusão – fruto da dúvida, inexatidão e ignorância – pairava também
entre teólogos e inquisidores. Bellini indaga se as atitudes imprecisas e a ausência de
definição nas leis devem ser tomadas como sintomas de misoginia e negligência para com as
427
Id. Ibid., pp. 66-67.
428
ANTT. IL. Proc. 2 707.
429
BELLINI, Lígia. A coisa obscura... op. cit., p. 63.
430
Nos finais do século XVIII e início do XIX, o padre João Luiz de Souza Saião foi responsável pelo envio de
157 denúncias para o Tribunal da Inquisição de Lisboa. Dessas denúncias contra os moradores de Minas Gerais,
4 foram pelo pecado de sodomia. Em suas pesquisas, Juliana Leopoldino Lúcio identificou apenas duas mulheres
sendo delatadas pelo padre Saião, foram elas: Tomásia Cândida por posse de livro proibido e Francisca de Ávila
e Silva por blasfêmia e proposição herética. In: LÚCIO, Juliana Aparecida Leopoldino. “Não me levo de paixão
em dar estas denúncias”: o vigilante padre Saião a serviço do Tribunal do Santo Ofício nas Minas. Universidade
Federal de São João del-Rei – UFSJ. 2019 (pesquisa em curso).
431
BELLINI, Lígia. A coisa obscura...op. cit., p. 63.
125
432
Id. Ibid., p. 68.
433
Id. Ibid., p. 87.
434
JUNIOR, Atílio Butturi. A passividade e o fantasma: o discurso monossexual no Brasil. Tese (doutorado) -
Universidade Federal de Santa Catarina- Florianópolis, SC, 2012, pp. 117-137.
435
Id. Ibid.
436
Id. Os discursos sobre a homossexualidade brasileira no período colonial. Acta Scientiarum. Language and
Culture. Maringá, v. 35, n. 1, p. 143-152, Apr.-June, 2013, p. 148.
126
alguma, que haja cometido pecado bestial ou de molícies, salvo quando, tratando do pecado
nefando, incidentemente lhe for denunciado dos tais delitos”437. O linguista ainda afirma as
gradações no pecado de sodomia, inclusive, do papel de paciente que seria mais grave que o
papel de agente, e é aí que entra em confronto com Luiz Mott e Verônica Gomes438 por estes
defenderem a tese de “reciprocidade equilibrada”439, isto é, a igualdade sexual dos envolvidos
no ato de sodomia, sem a rígida definição dos papéis de passivo e ativo.
Luiz Mott defende que “no domínio da sexualidade, as fantasias eróticas nem sempre
reproduziam mecanicamente a hierarquia social dominante fora da cama, pois não
observamos nas relações homossexuais de brancos com negros correlação necessária entre
senhor-ativo e escravo-passivo”440. Desse modo, conclui o autor:
Apesar da ocorrência de graves violências sexuais por parte dos donos do poder ou
de seus prepostos, que usavam e abusavam impunemente dos corpos de seus cativos
e cativas, foi através da sexualidade que brancos e negros de ambos os sexos
alcançaram o maior nível de intimidade e igualdade sócio-racial, invertendo-se
muitas vezes as relações de poder dentro do microuniverso erótico- sentimental,
sendo através do sexo que muitos escravos e escravas conseguiram a tão cobiçada
liberdade, além de muitos momentos de prazer441.
Atílio B. Junior expõe certa incongruência de Mott ao assumir que o grande número
de denúncias envolve violência sexual para com negros escravos por parte de homens brancos
que desempenhavam o papel de agente, ao passo que nega a mecânica repetição da hierarquia
senhor-escravo na sexualidade ativo-passivo.
Verônica Gomes conseguiu apurar, através das fontes inquisitoriais, um número de
quarenta e dois eclesiásticos luso-brasileiros envolvidos em relações de sodomia, dos quais
“onze foram ativos e passivos, seis foram ativos e cinco, passivos”442. A autora afirma a
mesma ideia de reciprocidade equilibrada, porém, para Atílio B. Junior, ela descreve uma
situação diferente, ao traçar um perfil dos clérigos que na maior parte das vezes eram os
agentes das relações de sodomia que mantinham – e ainda utilizavam as mais diversas
437
REGIMENTO DO SANTO OFÍCIO- 1613. In: Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro... op. cit.
438
JUNIOR, Atílio Butturi. Os discursos sobre a homossexualidade brasileira no período colonial... op. cit., pp.
149-150.
439
MOTT, Luiz. Meu menino lindo: cartas de amor de um frade sodomita, Lisboa (1690). Luso-Brazilian
Review, vol. 38, No. 2, Special Issue: 500 Years of Brazil: Global and Cultural Perspectives (Winter, 2001), p.
108.
440
MOTT, Luiz. O sexo proibido... op. cit., p. 47.
441
Id. Ibid., p. 73.
442
GOMES, Verônica. Vício dos clérigos... op. cit., p. 140.
127
Sem informação
20%
Ativo
Ativo e passivo 51%
14%
Passivo
15%
Fontes: ANTT. IL. C.P., c. 109, liv. 301; c. 110, liv. 302; c. 120, liv. 312; c. 130, liv. 319; c. 134, liv. 322.
D.D., Cxs. 1578, 1591, 1594, 1605, 1607, 1615, 1618, 1625, 1629, 1634, 1640, 1642, 1644, 1649, 1650. C. N.,
liv. 143, 144, 145, 146, 821. Procs.: 205, 2826, 2805, 5627, 5708, 10426.
Destes dados, indagamos sobre a condição social dos implicados (conforme o gráfico
8), e apuramos que, dos 40 homens que desempenhavam o papel sexual de ativo (51%), 38
deles eram homens livres444 (48%), em contraste com apenas 2 homens escravos denunciados
443
JUNIOR, Atílio Butturi. Os discursos sobre a homossexualidade brasileira no período colonial... op. cit., p.
150.
444
Por homens livres, entende-se aqui a condição social oposta de homens negros escravizados, incluindo alguns
egressos do cativeiro.
128
enquanto ativos. João da Silveira, oficial de ferreiro, fora um dos homens livres denunciados
na Vila do Carmo, 1745, por sodomizar dois de seus aprendizes pardos, sendo o mestre
sempre o agente. Um aprendiz, Antônio da Silva, pardo forro, relatou que João da Silveira
“teve com ele denunciante três atos de sodomia completas, usando dele pelo vaso prepóstero,
sendo o dito João da Silveira agente e ele denunciante paciente no que consentiu por ser seu
aprendiz”445. Para além dos traços sociorraciais, a denúncia ilustra bem o grau de hierarquia
estabelecido entre mestre-ativo e aprendiz-passivo. Poderíamos aqui elencar mais uma série
de denúncias, porém não vem ao caso, pois já vimos boa parte delas nas narrativas anteriores
que demonstram a permanente violência sexual de senhor para com seus escravos.
Homem livre -
ativo e passivo
14%
Homem livre -
ativo
48%
Fontes: ANTT. IL. C.P., c. 109, liv. 301; c. 110, liv. 302; c. 120, liv. 312; c. 130, liv. 319; c. 134, liv. 322. D.D.,
Cxs. 1578, 1591, 1594, 1605, 1607, 1615, 1618, 1625, 1629, 1634, 1640, 1642, 1644, 1649, 1650. C. N., liv.
143, 144, 145, 146, 821. Procs.: 205, 2826, 2805, 5627, 5708, 10426.
445
ANTT. IL. CN., nº 20, liv. 145, fl. 38.
129
induzido seus cativos a também se confessarem perante o Santo Ofício446. Outros dois,
Antônio Courano e Joaquim Francisco (cabra), eram passivos com os dois escravos
identificados enquanto ativos447. E um escravo não nomeado é denunciado, enquanto passivo,
por sodomia com um homem sem a identificação de sua condição social448. Dos 5 homens
livres passivos: somente Bernardo Gomes da Costa é que aparece invertendo a hierarquia
sociorracial ao ser plenamente paciente com seus escravos449; Agostinho Vieira de Azevedo
praticava com outros homens livres brancos, inclusive com fortes indícios de cumplicidade e
afeto por parte de um de seus parceiros450; José Pedro Fernandes, moço do coro da catedral
que tinha menos de 15 anos, sodomizado enquanto paciente pelo padre Manuel Joaquim
Ribeiro de Macedo451, novamente temos repetição da hierarquia social entre padre-ativo e
menor de idade-passivo; e José Peixoto de Sampaio, um reinol boticário que induzia vários
homens livres a pecar com ele no nefando, inclusive foi processado; e o militar capitão
Manuel José Correa, conhecido como o “carriola”, por ser passivo com vários homens, os
quais a documentação não explicita as condições sociais452.
Quanto aos que praticavam o papel de ativo e passivo, todas as denúncias e confissões
são de homens livres, isto é, 11 ocorrências (14%): seis acusados (Antônio do Carmo e
Valentim Ferreira, Miguel de Souza Monteiro e Manoel Dias da Conceição, José Ribeiro de
Souza e Manoel Vieira Franco), representantes da maioria, são referentes às relações de maior
cumplicidade e afetividade, em que os papéis são executados quase que espontaneamente;
Lucas da Costa Pereira, cirurgião processado, que aparece sendo mais agente do que paciente
com seus escravos453; o militar José de Lima de Noronha Lobo, a quem as testemunhas
relatam que fora paciente uma vez com um escravo454; padre Baltazar Pereira Meireles que
confessou diversos atos sodomíticos com escravos, criados e menores de idade, enquanto
agente e paciente, assim como o padre processado José Ribeiro Dias; e Inácio Pereira, casado,
que praticava sodomia com a esposa e vários rapazes que não são explicitados a condição
sociorracial. No caso dos padres, notamos a ideia de reciprocidade equilibrada das relações,
mas que vinha com uma “concessão”. Para o linguista Atílio B. Junior, a concessão:
446
ANTT. IL. CN., nº 19, liv. 144, fls.: 439; 441; 442; 443; 444.
447
ANTT. IL. DD, cx. 1634/ 16921, fl. 2 (Ribeirão do Carmo-1733); ANTT. IL. DD, cx. 1594/14721, m0001 a
m0002 (Congonhas- 1790).
448
ANTT. IL. DD, cx. 1591/14484, fl. 28 (Santa Bárbara- 1797).
449
ANTT. IL. CN., nº 20, liv. 145, fl. 138 (Paracatu/1750).
450
ANTT. IL. CN., nº 20, liv. 145, fl. 190 (Sabará-1755);
451
ANTT. IL. DD, cx. 1591/14584, fl. 25 (Mariana- 1778).
452
ANTT. IL. DD, cx.1640/17095, fl. 1 (Queluz/1805).
453
ANTT. IL. Proc. 205.
454
ANTT. IL. CN., nº 17, liv. 821, fl. 518 (São João del Rei- 1742).
130
Neste sentido, a confissão do padre Baltazar, que reiterou ter sido mais agente, o papel
de passivo sempre ocorria depois de já ter sido ativo, isto é, depois de garantida sua honra,
poderia o padre conceder nas trocas de papel. Manoel Dias da Conceição, de 17 anos de
idade, confessa que um moço, chamado Miguel, de vinte e poucos anos, o induzira ao pecado
de sodomia, para que ele confitente primeiro fosse paciente e que depois disso poderia ser
agente456. Nessa confissão, também podemos constatar o discurso hierarquizante, através da
concessão, de que nos fala Atílio Junior. Por fim, das 16 denúncias sem informações relativas
aos papéis sexuais, apenas uma se trata de homem escravo (1%), sendo 15 de homens livres
(19%) – conforme o gráfico 8.
Verificamos também os papéis sexuais exercidos pelos homens processados. Um deles
(25% dos processos), João Durão de Oliveira, sempre sodomizava seus escravos e de outros
senhores na posição de agente/ativo. Já José Peixoto de Sampaio (25%) era sempre
paciente/passivo com outros homens. Em dois casos, do padre José Ribeiro Dias e Lucas da
Costa Pereira (50%), os acusados foram ativos e também passivos, embora Ribeiro Dias tenha
sido passivo apenas uma vez e Lucas da Costa também passivo poucas vezes. Evidentemente,
os dados numéricos sobre os papéis sexuais entre processados e denunciados são
desproporcionais. Por isso, ao ser analisado apenas os poucos processos de Minas Gerais, as
ilações que fazemos aqui têm o risco de ser reducionistas.
455
JUNIOR, Atílio Butturi. Os discursos sobre a homossexualidade brasileira no período colonial...op. cit., p.
149.
456
ANTT. IL. CN., c. 20º, liv. 145, fl. 451 (São João del-Rei/1771).
131
Passivo e ativo
(José Ribeiro
Dias e Lucas da Passivo (José
Costa Pereira) Peixoto de
50% Sampaio)
25%
Diante do exposto até aqui, concordamos com Atílio B. Junior quando este diz que
havia uma função hierarquizante dos papéis sexuais nas relações homossexuais, o que nos
afasta da ideia de reciprocidade equilibrada apostada por Mott e Gomes. Porém, nos parece
que o linguista falha ao não se debruçar mais sobre o funcionamento regimental do Santo
Ofício, já que se propõe analisar as fontes inquisitoriais, pois, cabe realçar, não há nada que
comprove um ímpeto condenatório maior do tribunal inquisitorial sobre os sodomitas
pacientes. Luiz Mott constata até que na lógica inquisitorial “o mais culpado era sempre o
ativo, pois é o que penetra, e poderia ter violentado seu parceiro”457, tendo como base as
opiniões de alguns inquisidores num processo. Constatação esta também um tanto
problemática, em razão de acreditamos que os inquisidores indagavam o réu a respeito de suas
posições sexuais com o objetivo de perscrutar o desperdício de sêmen, assim como sua
reincidência e devassidão no delito. Tudo isso para que julgassem se o acusado era convicto,
pertinaz, escandaloso e incorrigível no erro nefando em que cometia, fosse agente ou
paciente.
Conclui-se aqui que a hierarquização sexual estava relacionada à hierarquização
social, presente na maioria das denúncias de homens livres (senhores fazendeiros,
mineradores ou adultos de alguma posição social mais elevada), predominantemente enquanto
agentes, que obrigavam homens menos poderosos (escravos, aprendizes, ou menores de
idade) a terem relações sodomíticas enquanto pacientes, isto é, o papel de passivo nas relações
457
MOTT, Luiz. O sexo proibido... op. cit.,p. 111.
132
sexuais estava ligado à questão da hierarquia social. Porém era sobre os homens que
violentavam sexualmente outros homens que caíam as penalidades do tribunal inquisitorial,
isso não pelos papéis sexuais perpetrados, mas sim pela contumácia e escândalo, não
existindo certo estigma de inferioridade do passivo por parte da Inquisição. O estigma estava
presente sobre os devassos e incorrigíveis, fossem ativos ou passivos. Entretanto, isso não
descarta que os homens solicitantes de outros homens vissem a passividade carregada de
estigmas vinculados à feminilidade e inferioridade. Defendemos, pois, que o papel de ativo
estava, na maioria das vezes, associado à questão de poder e de “masculinidade” por parte de
seus praticantes. Sobre masculinidade entende-se a busca por explicações acerca do que é ser
homem.
Dessa forma, é possível entrever como um homem acusado de violentar
sodomiticamente outro homem, socialmente tido como inferior, poderia se sentir mais homem
desempenhando o papel de ativo. Para a Inquisição pouco importava o exercício das posições
sexuais, porque não era prescrito na legislação regimental que o papel de passivo fosse mais
abominável. Porém, na sociedade mineira, o estigma da passividade sexual, desempenhada
por homens, parecia ser marcante. Algumas denúncias nos dão indícios disso. Quando o padre
André da Silva Ribeiro falara para seu escravo na porta de sua camarinha que o queria
“foder”, os demais escravos que ouviram logo disseram “tu és mulher do padre, tu és mulher
do padre, arre com o padre”458. Num tom de deboche, tais falas pareciam ecoar pela casa. O
escravo, além de ser violentado, parecia sofrer dos seus demais a chacota de ser a “mulher do
padre”. Outros casos também indicam certo estigma ainda maior sobre ser usado
sodomiticamente “como se fosse mulher”459. E, ser mulher nesse período era ser inferior ao
homem, ser submissa cotidianamente ao sexo dominante. Desde a alegoria bíblica da criação,
o sexo feminino, na figura de Eva, foi inferiorizado e menosprezado. Deveria ser dominado
pelo sexo forte, o sexo masculino. Esse machismo e misoginia se faz fortemente presente nas
terras mineiras setecentistas. Logo o homem que desenvolvesse o papel da mulher numa
relação sodomítica poderia ser visto como ainda mais inferior aos demais homens daquela
sociedade, mesmo que fosse senhor com poder de mando da relação. Pior do que um sodomita
contumaz parece ter sido um sodomita paciente contumaz.
458
ANTT. IL. CN, c. 20º, liv. 145, fl. 139.
459
Denúncia contra João Guilherme de Melo: ANTT. IL. CP., c. 120, liv. 312, fl. 280. Processo contra João
Durão de Oliveira: ANTT. IL. Proc. nº 5708, fl. 11.
133
CAPÍTULO 3
OS HOMENS PROCESSADOS
As Minas Gerais, ambiente que parecia propício ao pecando nefando, região onde o
clima era “contrário ao temperamento da inocência”460 nos setecentos, concentrou o maior
número de denúncias inquisitoriais no delito de sodomia, cuja maioria esmagadora estava
atrelada à violência do mundo escravista de então. Apesar disso, apenas quatro denunciados
homens foram de fato processados, julgados e condenados pelo Tribunal de Lisboa. Neste
capítulo, trataremos desses homens, perscrutando os detalhes, registrados pelos inquisidores,
que permitam inferir sobre seus desejos, suas intimidades e suas masculinidades.
A ação da Inquisição pode ser lida como um modo de tentar efetuar certa
disciplinarização dos corpos e sujeitificação (homogeneização cultural) de homens e mulheres
por meio da produção de discursos de si461. Nas fases do processo, o tribunal buscava sempre
estimular uma confissão que, “para a salvação do fiel e sua absolvição no processo, deveria
ser ampla e completa, arrolando todos os pecados, todos os pensamentos ou atos que
pudessem ser assimilados a erros de fé e concepções heréticas, antidogmáticas”462.
FASE PROCEDIMENTO
Confissão Às vezes ocorria no mesmo dia que o réu adentrava aos cárceres
secretos. Os inquisidores admoestavam o réu a fazer uma inteira e
verdadeira confissão. Ao longo da narrativa do acusado, os inquisidores
pouco intervinham, deixando que o réu falasse à vontade, exceto em
casos de teimosos negativos.
460
MOTT, Luiz. Modelos de Santidade para um clero devasso: a propósito das pinturas do Cabido de Mariana,
1760. Revista do Departamento de História. 9 (1989): 96-120.
461
ROCHA, Cássio Bruno de Araújo. Masculinidades e Inquisição... op. cit., 2016, p. 108.
462
Id. Ibid. p. 109.
463
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados... op. cit., pp.311-316 apud SILVA, Ronaldo Manoel da. Seja
declarado por convicto e confesso no crime de sodomia...op. cit., p. 72.
134
464
SILVA, Ronaldo Manoel da. Seja declarado por convicto e confesso no crime de sodomia...op. cit., pp. 72 -
73.
135
Entre nossos mineiros processados, encontra-se aqui uma análise de suas intimidades,
observando o perfil desses homens quanto: o conhecimento que tinham dos meandros do
mecanismo inquisitorial; quanto tempo levou para a decisão de se confessarem aos
inquisidores; a posição social desses sujeitos, assim como de seus parceiros (escravos ou
livres); a qualidade dos parceiros (negro, indígena ou branco); suas idades, e se isso os
livravam das penas mais graves e violentas e; a quantidade de cópulas consumadas. Toda
essa análise será necessária para que ao final seja feita uma síntese das possíveis
masculinidades vividas por esses homens processados.
465
MOTT, Luiz. Justitia et Misericordia...op. cit., p. 715.
466
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados... op. cit., p. 315.
467
MOTT, Luiz. Justitia et Misericordia...op. cit., p. 722.
468
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados... op. cit., p. 391.
469
MOTT, Luiz. Justitia et Misericordia...op. cit., p. 723.
136
470
ANTT. IL. Proc. nº 5708, fls. 6-14.
137
Segundo a primeira testemunha, Antônio Correa Lima – que vivia de vistoriar negros
dos senhores de engenho – um crioulo de 10 anos de idade se queixara que João Durão de
Oliveira o acometeu e o quis levar a força para praticar o pecado de sodomia, “prometendo-
lhe várias coisas em pagamento”, mas o crioulo não consentiu. O denunciante ainda disse que,
no engenho em que era morador, muitos escravos testemunharam João Durão em “trato torpe”
com um escravo chamado José, por antonomásia “o cacunda”. Uma negra chamada
Gertrudes, ex-escrava de Durão, é mencionada por todas as testemunhas, porém estas dizem
que o acusado não chegou a ter atos desonestos com a escrava, pois ela sempre resistia.
Segundo o depoimento do alferes Francisco Martinho, a crioula se “queixava que o
denunciado acometia para o pecado pela parte sinistra”. O testemunho de Pedro Rodrigues
também reitera que Durão acometia Gertrudes pela “parte sinistra”, e ainda acrescentou o
seguinte: “mas que também parece que a negra era fabulosa”. A expressão “fabulosa” 471 pode
ser entendida enquanto falas exageradas imputadas a escrava. O que o homem testemunha
poderia estar querendo dizer aqui é que a escrava Gertrudes falava demais, exagerava, ou até
falseava a narrativa, ainda que sofresse os abusos de seu senhor. Vemos assim, uma tentativa
de desqualificação da testemunha mulher e negra, que carregava dois graus de descrédito. No
entanto, Gertrudes parecia não se curvar aos desmandos de Durão e, por ela não consentir às
constantes intenções de seu senhor, recebia dele mau cativeiro até que, com muita resistência,
ela conseguiu sair de seu poder.
As denúncias reiteram vários tipos de violências sexuais que tinham na cor de suas
vítimas uma definição muito precisa, ao serem corriqueiras no dia a dia da vida de muitos
escravos pretos. Victo Antônio de Castro traz em seu testemunho um maior detalhamento,
dizendo que: um escravo de um religioso que andava tirando esmola fora acometido por João
Durão; que com a crioula Gertrudes também intentou várias vezes ter atos sodomíticos, mas,
por ela não querer, não fizera o dito pecado; disse ainda que o denunciado teve “um moleque
de nação Angola, por nome Pedro, e que este lhe morrera pelos muitos e constantes atos que
com ele tivera”472; que perseguiu um negro por nome Antônio, escravo de Manoel Ferreira,
471
Segundo o dicionário de Bluteau, fábulas significam: “não só os mistérios da religião, mas também os
sucessos e moralidades ficaram misturados e envoltos com as fábulas [...] e que com as fábulas se intenta é
emendar os homens [...] que haja mulheres que se fazem varões não é fabula [...], aquele que conta fábulas,
narrador, fabulador. Fabulator elegantissimus, que se acha em Sêneca filósofo não significa isso, mas um
homem de agradável conversação. Porém em Aulo-Gellio se acha fabulator, por um homem que inventa e conta
coisas fabulosas e o mesmo chama Heródoto. Homo fabulator [...]. Fabular: compor fábulas. Componere,
narrare. Fabular: fingir. Fabulava gentilidade. Fabularam os gregos ou romanos [...]. Fabuloso: falsamente
narrado” (grifos nossos). In: BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez e Latino. Coimbra, no Colégio das
Artes da Companhia de Jesus; vol. 4 (letras F-J). 1713, pp. 4 e 5. Disponível em:
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5445 . Acesso: 10 de agosto de 2019.
472
ANTT. IL. Proc. nº 5708, fl. 8 v.
138
“no decurso de duas léguas [...] para com ele fazer o dito pecado da sodomia, e que por ele
não consentir o não fizera”473; que teve dois atos sodomíticos com Caetano, um escravo do
preto forro Francisco da Silva, e que “o mesmo negro lhe furtara uma véstia em pagamento de
tal torpeza”; com outro mulatinho, também chamado Caetano (dez ou doze anos de idade),
teve ato consumado por três vezes, e que este ainda sofreu de sua dona, Sebastiana Ribeira,
irmã dele testemunha, um “áspero castigo”.
Pelo medo de perder seus escravos para a Inquisição – afinal o nefando era um crime
punível também aos cativos sodomitas, ainda que raros – muitos senhores reagiam
violentamente, como nossa dona mineira da denúncia, dando um castigo exemplar, bastante
“áspero”. Quem nos fala isso é o etno-historiador Luiz Mott, trazendo um caso ocorrido na
capitania de Sergipe em 1670. Nesse caso, um fazendeiro descobriu que um escravo seu tivera
uma relação sodomítica com um capitão, ganhando deste um par de ceroulas. Ao descobrir
ainda o motivo do presente, o fazendeiro, injuriado, mandou castigar severamente seu
escravo, do que lhe levou a morte por tantos açoites. Mott conclui que “este senhor preferiu
perder seu capital a carregar a infâmia de ter em sua casa um escravo sodomita, revelando tal
episódio as primeiras raízes da intolerância machista no Nordeste brasileiro”474. No entanto, o
que a denúncia contra Durão nos traz é que mulheres donas de escravos também usavam dos
açoites para emendar seus escravos e aplacar a infâmia do nefando. Portanto, fosse senhor ou
senhora, a sodomia era repreendida por todos os gêneros e por todas as partes.
De volta ao sumário das testemunhas, (Victo?) de Castro ainda diz que João Durão
ocultou em sua casa por três dias um escravo de João Colaco. Por fim, a testemunha alegou
que o denunciado era “inimigo de se confessar”, nunca ouvia missa, o que era motivo
suficiente para se concluir que era ele muito mal católico, daí ter surgido outra fama sobre o
acusado: ser ele judeu.
O senhor de engenho e minerador Domingos Gonçalves Ferreira afirmou que uma
vizinha que fora sua, Ana Moreira, “lhe dissera que o denunciado andava atrás dos seus
moleques enganando-os com dádivas”475, e que isso causava grande escândalo a todos. Disse
ainda que Durão possuíra o escravo de alcunha “o cacunda” num rancho dos passageiros.
Neste local, fora flagrado pela mulata Catarina, testemunha inquirida no segundo sumário.
Domingos perguntara ao negro “cacunda” – já defunto no momento da denúncia – o que o
denunciado lhe fazia, e ouviu que “queria fazer dele mulher”. A testemunha ainda relatou que
473
ANTT. IL. Proc. nº 5708, fl. 8 v.
474
MOTT, Luiz. O sexo proibido... op. cit., p. 42.
475
ANTT. IL. Proc. nº 5708, fl. 11.
139
Durão teve trato com um moleque escravo do senhor Antônio Ferreira Basto “e que este tivera
uma descompostura com o denunciado, dizendo-lhe que o havia de queimar se lhe bulisse
com o moleque”476.
No entanto, Antônio Ferreira Basto deu outra versão do ocorrido com seu escravo,
chamado Antônio de quinze anos de idade. Em seu testemunho, disse que seu moleque
andava trabalhando a porta do denunciado, quando este lhe chamou para dentro da sua casa e
o lançou numa cama querendo forçadamente cometer atos sodomíticos, ao que lhe acudiu
uma escrava sua vizinha que tirara o moleque dali. Ao contrário da testemunha anterior, o
dono do menino alegou que o acusado não tivera sucesso em suas investidas, portanto, não
cometeram o pecado nefando. Porém, Antônio Basto fez questão de colocar seu escravo
perante Durão para confirmar o ocorrido e “para melhor o repreender, a ver se lhe servia de
castigo e vergonha para se apartar deste mau vício”. Ainda segundo ele, João Durão
sodomizara, por duas ou três vezes, um escravo Caetano de Sebastiana Ribeira, e “que a
senhora o andara curando pelo deixar muito molestado e que o dito mulatinho fizera este
absurdo por não entender, só sim levado pelo engano”477. Segundo outra testemunha, o
denunciado colocou o escravo Caetano em tão mau costume que o mulatinho acostumou
praticar a dita torpeza com outras crioulas, filhas de uma carijó, e que, segundo a mãe das
carijós, “as crianças andavam com feridas da diligência que faziam umas às outras”. João
Durão também foi acusado de prometer bens materiais como ceroulas aos moleques de Pedro
Ayres Batista para fazer com eles o pecado nefando.
Concluindo esse primeiro sumário de testemunhas, o padre Francisco da Costa de
Oliveira deu crédito aos testemunhos e enviou a documentação ao comissário da Vila do
Carmo, José Simões, em 20 de maio de 1741, que remeteu ao Tribunal do Santo Ofício. Em
16 de março de 1742, quase um ano depois, os senhores inquisidores de Lisboa emitiram
ordem aos comissários do Rio de Janeiro para que as testemunhas do sumário, e as mais que
constassem, fossem judicialmente inquiridas pelos seguintes interrogatórios:
476
ANTT. IL. Proc. nº 5708, fl. 11.
477
ANTT. IL. Proc. nº 5708, fl. 12.
140
478
ANTT. IL. Proc. nº 5708, fls. 4 e 5.
479
ANTT. IL. Proc. nº 5708, fls. 16-35.
141
Nessa segunda etapa das diligências, todas as oito testemunhas anteriores foram
ouvidas novamente e todas se reportaram ao que tinham dito antes, além de informarem que o
acusado era sempre o agente das relações sodomíticas. Nesse tempo, João Durão já tinha se
ausentado daquela freguesia, mas não sabiam se fora para Pitangui ou Itambé, provavelmente
fugindo das investigações. Os escravos vítimas, antes apenas mencionados, agora aparecem
também como testemunhas do sumário. Um deles, o crioulo preto Sebastião, de dezoito anos
de idade, disse que Durão, havia quatro anos – ou seja, tinha ele escravo quatorze anos de
idade – o chamara para trás de uma casa, em um dia de tarde, “e indo ele testemunha para ver
o que lhe queria, ali pegou dele e o conheceu carnalmente, tendo ato sodomítico em que ele
testemunha era paciente”480. Nisso, uma preta por nome Ana, escrava da dona da casa, flagrou
os dois metidos num mato, tendo aquele ato carnal, ao que o crioulo, que era o paciente,
conseguiu fugir. Depois desse episódio, o acusado ainda tornou a provocá-lo “para a mesma
torpeza”, porém o crioulo alegou que sempre fugia. Não tivera a mesma sorte de fugir o
mulatinho Caetano, escravo de Sebastiana, que afirmou ter praticado por três vezes atos
consumados per vaso preposterum (ânus), enquanto paciente. O mulatinho, que deveria ter
cerca de doze anos a época dos acontecidos, ainda sofreu castigo de açoites dos seus senhores
por aquelas práticas nefandas. Com o escravo Manoel, Durão o chamou para trás de sua casa
querendo usá-lo pela via detrás, prometendo lhe um canivete, mas o menino não quis
consentir e fugiu.
Quadro 5: Parceiros sexuais listados nos sumários contra João Durão de Oliveira
480
ANTT. IL. Proc. nº 5708, fl. 29.
142
Ribeira
7- Pedro Ex-escravo moleque de João - Vários atos Paciente
Durão
8- Um negro Escravo de um religioso - Uma tentativa -
(acometido)
9- Sebastião Escravo de João Nunes 15 anos Uma tentativa -
(acometido)
10- Antônio Escravo de Manoel Ferreira - Uma tentativa -
(acometido)
11- Felis Escravo moleque de Pedro - Uma tentativa -
Ayres Barbosa (acometido)
12- José Escravo moleque de Pedro - Uma tentativa -
Ayres Barbosa (acometido)
13- Manoel Escravo de João (Colaco?) 14 anos Uma tentativa -
(acometido)
14- Um negro Escravo de José Gomes de - - Paciente
Oliveira
15- Um negro Escravo de Miguel de Souza - Um ato Paciente
cachimbos e várias outras miudezas; uma porca com alguns leitões e; algumas galinhas. Para
alguns homens, moradores em Itaberaba, era credor de algumas dívidas que somadas dariam
cerca de 60 oitavas de ouro481, no entanto, era devedor de outras aproximadamente 220
oitavas para outros homens482.
Passados 23 dias após adentrar aos cárceres secretos da Inquisição, em 14 de
dezembro de 1744, João Durão de Oliveira decide confessar as culpas que o levara preso até
os temidos cárceres da Inquisição. Estava ele sendo esperado pelo inquisidor Manoel Varejão
e Távora. Após fazer o juramento dos Santos Evangelhos, “em que pôs a mão sob cargo do
qual lhe foi mandado dizer a verdade e ter segredo”, disse que se chamava João Durão de
Oliveira, de cinquenta anos de idade, solteiro, filho de Manoel Durão, oficial de barbeiro, e
Beatriz de Figueira, natural da cidade do Rio de Janeiro e morador na campanha do Rio
Jordão, distrito da vila de São João del-Rei. O inquisidor Manoel Varejão logo afirmou que o
preso tomava muito bom conselho ao ir confessar suas culpas e que lhe convinha “trazê-las
todas à memória, para delas fazer uma inteira e boa confissão, declarando toda a verdade e
todas as pessoas com quem cometeu, não impondo nem a si nem a outrem falso testemunho”,
pondo “sua alma no caminho da salvação”.
Apesar da pressão psicológica, que possivelmente era sentida pelos réus, João Durão
foi extremamente sucinto. Confessou ter sodomizado José escravo de João Colaco “estando
ambos sós num ato provocou ele confitente ao dito preto para cometer com ele o nefando
pecado de sodomia, e, com efeito, intentando penetrá-lo com o seu membro viril pelo vaso
prepóstero o não pode conseguir pela razão com que praticou o referido”, e prosseguiu,
“porém é certo que chegou a ter seminação junto ao mesmo vaso prepóstero, ainda que não
dentro dele”483. E confessou ainda que com um cativo de um preto forro que não lembrava o
nome, certamente Caetano escravo de Francisco da Silva: “estando ambos a sós em casa dele
confitente, o penetrou com o seu membro viril pelo vaso prepóstero do dito preto,
consumando dentro dele o abominável pecado de sodomia, sendo ele confitente agente e o
dito preto paciente”484, e por mais três vezes praticou com consumação o tal pecado com
aquele mesmo cativo. Por fim, revelou resumidamente que praticara o nefando “por vinte
vezes, pouco mais ou menos, com outros vários pretos a quem não (sabia) o nome nem outra
481
Oitava era uma medida de peso equivalente a 3,5 g de ouro, que passou por diversas oscilações de valor ao
longo do século XVIII. De 1º de julho de 1735 até 31 de julho de 1751, valeu 1.500 réis. Ver: ROMEIRO,
Adriana; BOTELHO, Ângela Vianna. Dicionário histórico das Minas Gerais: período colonial. – 3. ed. rev. e
ampl. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, p. 394.
482
ANTT. IL. Proc. nº 5708, fls. 44-46.
483
ANTT. IL. Proc. nº 5708, fls. 47 v. e 48.
484
ANTT. IL. Proc. nº 5708, fl. 48.
144
confrontação alguma, sendo em todos os ditos atos ele confitente agente e os ditos pretos
pacientes, havendo juntamente da sua parte seminação e ato consumado”.
A confissão resumida a respeito dos vinte atos sodomíticos perpetrados por ele réu,
sem especificar nomes nem maiores detalhes, pode ser interpretada como uma estratégia, pois
assim quaisquer denúncias anteriores, das quais ele acusado não tivera acesso, poderiam se
encaixar naquele número vago. Além disso, estaria evitando esmiuçar práticas tão torpes que
poderiam servir de agravante à sua pena. Por outro lado, corria o risco de ser julgado por não
ter confessado inteira e verdadeiramente. O inquisidor, cumprindo seu dever de trazer à tona a
verdade – ao menos aquela que já esperava ouvir – baseada, sobretudo, nos testemunhos
sigilosos da documentação que tinha em mãos, não se deu por satisfeito. Disse ao preso que
tomara muito bom conselho em se confessar, no entanto, deveria “examinar muito bem sua
consciência para dela fazer uma inteira e verdadeira confissão de suas culpas, não impondo
sobre si nem sobre outrem testemunho falso, por ser o que lhe convém para descargo de sua
consciência, salvação de sua alma”485. João Durão tornou a afirmar que não tinha mais o que
confessar, mas caso lembrasse voltaria a se manifestar ante a mesa inquisitorial. E assim foi
outra vez admoestado por Manoel Varejão que leu, como de praxe, toda sua confissão, ao que
o confitente reiterou que nela não tinha mais o que acrescentar, diminuir ou emendar, sendo
por fim mandado ao seu cárcere.
Entre os dias 16 e 23 de janeiro de 1745, nosso mineiro passou por três sessões típicas
da processualística inquisitorial: genealogia; exame in genere e exame in specie. Em todas
elas foi constante e exaustivamente admoestado pelo inquisidor para que revelasse
inteiramente suas culpas. Na sessão in specie, lhe disseram que era a última admoestação que
seria feita antes da leitura do libelo acusatório, e que seria melhor “para descargo de sua
consciência, dizer toda a verdade antes que depois de acusado”, sendo de novo admoestado
“com muita caridade da parte de Cristo Senhor Nosso”486. No entanto, se manteve irredutível.
Nenhum caso emendado, nenhum detalhe acrescentado. Manteve inalterada sua primeira e
única confissão mesmo diante de toda pressão exercida pelo inquisidor.
Dessa forma, em 27 de janeiro de 1745, o promotor fiscal foi chamado à mesa para a
leitura do libelo, mas, antes disso, o admoestaram novamente e, por declarar que não havia
mais o que confessar, foi mandado ficar de pé. Então o promotor começou a leitura:
Diz a Justiça Altíssima contra João Durão de Oliveira [...], réu preso nos cárceres do
Santo Ofício, conteúdo neste processo. Porque sendo o réu cristão batizado e como
485
ANTT. IL. Proc. nº 5708, fl. 48 v.
486
ANTT. IL. Proc. nº 5708, fl. 55 v.
145
tal obrigado a guardar os preceitos da lei de Deus e dar com sua vida bom exemplo,
vivendo honestamente e fugindo toda a ocasião de ruína espiritual de sua alma, ele o
fez pelo contrário e de certo tempo a esta parte esquecido da obrigação de católico e
induzido pelo demônio sem temor de Deus, nem da justiça cometeu e consumou
com diversas pessoas o horrendo nefando e abominável pecado de sodomia contra
naturam, provocando-as e induzindo-as para caírem nas ditas culpas. E que tanto é
verdade o sobredito que o mesmo réu tem confessado nesta mesa haver cometido
muitas vezes as referidas culpas com diversas pessoas as quais induziu e provocou
para o dito fim, e que sendo sempre agente consumara com elas o mesmo nefando e
abominável pecado de sodomia, a qual confissão aceita a Justiça em tudo o que faz
contra ele réu. Porque o réu não tem dito toda verdade de suas culpas, sendo nesta
mesa com muita caridade admoestado que lhe convinha para a salvação de sua alma
fazer uma inteira confissão, o que procede dele réu não estar emendado e
arrependido das culpas que cometeu, pelo que merece ser castigado com todo o rigor
da Justiça, [...] seja declarado por convicto e confesso no dito crime de sodomia,
e como tal incorreu em pena de infâmia de confiscação de todos seus bens para
o fisco e Câmara Real e nas mais por direito, Breves Apostólicos e Leis do
Reino contra semelhantes estabelecidas, e relaxado a Justiça secular seruatis
seruantis487 feito em todo inteiro cumprimento da Justiça omni meliori modo, via, et
forma juris cum expensis488.
487
Pode traduzir-se: “conservando-se o que deve ser conservado e pelo melhor modo, caminho e forma possível
do direito, com as despesas”.
488
ANTT. IL. Proc. nº 5708, fl. 58 (grifos nossos).
146
circunstância que faz mais agravante o seu delito e torpeza”489. Contudo – observando a
praxe prevalecida, os sinais de penitência e a confissão do preso assim que chegou à mesa – a
condenação foi moderada, retirando a terrível pena capital. Desse modo, as penalidades
estabelecidas pela mesa foram: o auto da fé; confisco dos bens; açoite pelas ruas públicas
citra sanguinis effusionem490 e degredo de dez anos para as galés. Mas essa ainda não era a
sentença final, pois cabia apenas ao Conselho Geral a determinação da pena definitiva, que
um dia depois, através da deliberação de seus deputados, concluiu o julgamento:
Terminava assim o processo de João Durão de Oliveira, após seis meses depois de sua
chegada aos cárceres do Santo Ofício em Lisboa. Entretanto, o mineiro sodomita ficaria mais
alguns meses preso até a publicação do acórdão, lido no Auto da Fé e realizado em 26 de
setembro de 1745492. Um dia depois, assinou o termo de segredo, e aos 2 dias de outubro
daquele ano passou pela sessão de ida, em que foi mandado cumprir sua pena de degredo.
Uma dura pena para um homem já aos cinquenta anos de idade.
A documentação inquisitorial não nos revela o destino de Durão, após o cumprimento
da pena de galés. Entretanto, alguns indícios podem nos dizer algo acerca de sua
personalidade ou de suas vivências enquanto homem. Não sabemos exatamente de sua
ocupação, mas o inventário de bens nos diz que era ele senhor de pelo menos três escravos no
momento de sua prisão. Antes disso, já tinha perdido alguns outros. Um cativo moleque – isto
é, menor de idade – morrera de tanto ser sodomizado pela via traseira. Outra escrava,
Gertrudes, fez de tudo para se livrar dos seus desmandos e investidas sodomíticas. Além das
constantes tentativas de sodomizar os vários cativos, as testemunhas relataram que o acusado
cometera no mínimo dez atos consumados enquanto agente. O réu confessou que tivera um
489
ANTT. IL. Proc. nº 5708, fl. 67.
490
Frase que expressa, literalmente, “aquém da efusão de sangue”. Indica que o açoitamento deveria aplicar-se
sem que provocasse derramamento de sangue no condenado. “Diferentemente do que ocorria nas Inquisições
espanholas, onde o mais comum era o réu [sodomita] receber 200 chibatadas, reduzindo-se para 100 nos casos
mais leves, em Portugal, as sentenças inquisitoriais sempre determinavam que os réus fossem açoitados citra
sanguinis effucionem, i.é, aquém do derramamento de sangue, o que equivalia aproximadamente a meia centena
de chicotadas”. In: LIMA, Wallas Jefferson de. O entremeio de uma vida...op.cit., p. 139, notas 423 e 424.
491
ANTT. IL. Proc. nº 5708, fl. 70.
492
ANTT. IL. Autos da Fé – Listas ou “Notícias” (1563-1750), fl. 279.
147
ato sem consumação e outro com consumação com dois escravos por ele nomeados. Outros
vinte atos sodomíticos consumados foram confessados genericamente, sem especificar nome
nem detalhe algum, sendo sempre o processado o agente, ou seja, aquele que penetrava. João
Durão deu mostras de ser um homem com poder de mando, prometendo ceroulas, canivete ou
outros objetos para conseguir cometer seus desejos sexuais. Quando não conseguia,
demonstrava toda sua masculinidade violenta. Deu mostras também de conhecer, de certa
forma, os meandros processualísticos do tribunal da Inquisição, ao confessar estrategicamente
que tivera apenas vinte atos sodomíticos, sem especificar nomes, tampouco os detalhes das
relações, ainda que houvesse consumação. E parecia não se abalar perante todas as sessões de
admoestação – que tinham como objetivo arrancar da memória as culpas mais profundas de
seus réus – mantendo inalterada sua primeira confissão.
A masculinidade de João Durão se faz perceber numa latente agressividade através de
seus atos perpetrados. Não houve indício algum de cumplicidade dos seus parceiros, sendo
assim mais adequado nomeá-los enquanto vítimas. Predominantemente foi o senhor que
possuía seus escravos, o mais velho, o dominador das relações brutais que mantinha com os
rapazes e moleques cativos. A hierarquia social é verificada também em suas relações sexuais.
Mas sua forma de ser homem não era sancionada socialmente. Assim, por ser divergente de
uma masculinidade hegemônica legitimada pela Inquisição, fora condenado ao confisco de
bens, auto de fé, açoite e degredo nas galés do Rei por dez anos.
3.2.2 José Ribeiro Dias: o presbítero que praticava sodomia e ia dizer missa
Diziam as más línguas, pela freguesia de São Caetano, que certo padre andava
cometendo o pecado abominável de sodomia com seus escravos. Era ele José Ribeiro Dias,
presbítero do Hábito de São Pedro, natural de Braga, formado em Cânones com um ano de
filosofia. Um homem abastado, proprietário de 27 escravos, sítios, entre outros bens
materiais, mas que estava com seus dias de sossego contados ante uma visita que estava por
vir. Tratava-se da visitação eclesiástica do bispo do Rio de Janeiro, frei João da Cruz, em
terras mineiras pelos idos de 1741. Tão logo chegaria até os ouvidos do bispo a luxúria em
que estava entregue o religioso Ribeiro Dias, esquecido da abstinência sexual, tão cara à
Igreja Católica, e pior, praticante do pecado nefando.
Dom Frei João da Cruz era membro da Ordem dos Carmelitas Descalços e fez curso
de Ciências em Coimbra. Eleito o 5º bispo do Rio de Janeiro em 1740, tomou posse solene no
dia 9 de maio de 1741. Era um pastor zeloso e de muita fibra, chegando mesmo a excomungar
148
o provedor da Fazenda Real, Francisco Cordovil. Em 1742, partiu para a capitania de Minas
Gerais, em visita pastoral, o que motivou sua transferência, em 1750, para o bispado de
Miranda, em Portugal493. Segundo Sergio Buarque de Holanda, “durante sua estada, cheia de
incidentes, em Minas, entrou em sérios conflitos com o clero local e expediu mandamentos
proibindo alguns abusos, com o que deixou tradição pouco simpática entre os mineiros”494.
Na visita eclesiástica, em 29 de novembro de 1743, na freguesia de São Miguel de
Piracicaba, o bispo recebeu a denúncia do escravo Felipe Santiago contra o religioso José
Ribeiro Dias. O cativo declarou ter cometido sodomia com seu senhor por várias vezes. Há
quatro anos antes daquela denúncia, o presbítero já era acostumado acometer seu escravo para
“atos desonestos” de molícies, assim como também de sodomia, “conhecendo carnalmente a
ele testemunha por cópula sodomítica consumadamente pelas partes posteriores e via
traseira”. Segundo o cativo, o denunciado o violentava “com poder e respeito de senhor, e ele
testemunha obedecia com o medo de escravo que (era)”495. Quando já estava na cama, à
noite, o padre mandava outro escravo chamar Felipe Santigo para ir dormir com ele. Assim,
tiveram contínuas práticas sodomíticas por muitas madrugadas adentro, sendo o cativo sempre
o paciente.
Santiago revela uma lista de moços acometidos pelo religioso: 1) Luís, aprendiz de
boticário; 2) Carlos, músico em São Caetano; 3) João da Costa, filho de Tomé da Costa, pardo
forro; 4) Alexandre, mulato forro, alfaiate em Mariana; 5) Manoel Ramos, artista; 6)
Francisco Maria e; 7) João Alves, pardos rabequistas em Vila Rica; 8) João boquinha, pardo
forro, rabequista e alfaiate no morro de Santana; 9) Fernando, filho de José de Almeida Costa,
assistente no Rio de Janeiro e; 10) Francisco Pereira, filho de Antônio Pereira do Lago da
freguesia de São Caetano.
O presbítero não parecia ter o menor pudor, tampouco discrição ao perpetrar suas
nefandices. Seu escravo denunciante presenciava muitas das suas “somitigarias” com aqueles
moços por ele nomeados. Tudo isso se dava “pela confidência que o denunciado fazia dele
testemunha, e juntamente pelo pouco recato que o mesmo denunciado tinha, pois muitas vezes
estava nos ditos atos com algumas das referidas pessoas declaradas metido [...] no seu quarto
com a porta aberta”496. Não bastasse todo esse despudor, o padre muitas das vezes em que
acabava de praticar seus atos sodomíticos, “no mesmo dia em que os cometia, ia dizer missa”.
493
CÂMARA, Fernando. A Arquidiocese do Rio de Janeiro e seus bispos. Revista do Instituto do Ceará. 2009,
pp. 27-28.
494
HOLANDA, Sergio Buarque de. A Igreja no Brasil colonial. In: A época colonial, v. 2 ... op. cit., p. 76.
495
ANTT. IL. Proc. nº 10426, fl. 13 v.
496
ANTT. IL. Proc. nº 10426, fl. 14.
149
497
ANTT. IL. Proc. nº 10426, fl. 4.
150
498
Entre 30 de junho de 1735 e 31 de julho de 1751, a oitava de ouro em pó valeu 1.500 réis. In: ROMEIRO,
Adriana. Dicionário histórico das Minas Gerais... op. cit., p. 162.
499
Considera-se aqui o preço da oitava entre 1º de julho de 1735 até 31 de julho de 1751, valendo cerca de 1.500
réis. Ver: ROMEIRO, Adriana; BOTELHO, Ângela Vianna. Dicionário histórico das Minas Gerais...op. cit., p.
394.
500
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados... op. cit., p. 389.
501
ANTT. IL. Proc. nº 10426, fls. 23-26.
151
CREDOR QUANTIA
Clemente Simões (capitão mor, assistente em Paracatu) Cerca de 1.100 oitavas de ouro
Francisco Alvares (comboieiro e morador em Paracatu) 700 oitavas de ouro
Antônio Gomes Diniz (em Paracatu) 140 oitavas de ouro
Um vendeiro (em Paracatu) 20 e tantas oitavas de ouro
Pedro Gomes (em Paracatu) Uma quantia de ouro
Um fuzileiro (em Paracatu) 8 ou 10 oitavas de ouro
José Pereira de Moura (juiz que foi em Vila do Carmo) 360 oitavas de ouro
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da Vila do Carmo 500 e tantos mil réis
Venâncio de Carvalho (na freguesia de São Caetano) 150 oitavas de ouro
Herdeiros de Francisco de Siqueira Dantas (termo de Braga) Mais de 400 mil réis
Herdeiros de Francisco João (da cidade de Braga) 60 mil réis
Antônio Francisco Dias (morador no Rio de Janeiro) 1 conto e 200 mil réis
José de Araújo Rocha (coronel na Bahia) 100 e tantos mil réis
Thomas (seu feitor em Paracatu) 100 oitavas de ouro
Jerônimo (em Caeté) 300 oitavas de ouro
Dias Lopes (em Vila Rica) 240 oitavas de ouro
Nunes Seixas (seu servo) 200 oitavas de ouro
Antônio Nunes Ribeiro (morador no Rio de Janeiro) 350 (?) réis
Inácio Elias da Costa (naquela corte de Lisboa) 36 (?) réis
Várias pessoas Várias parcelas
Um dia antes da sessão de inventário, aos 18 dias de maio de 1747, o clérigo José
Ribeiro Dias havia decidido fazer sua confissão perante o inquisidor Manoel Varejão e Távora
na Casa Terceira das Audiências. Após ser dito que tomava muito bom conselho em se
confessar, logo o réu começou a revelar seus delitos nefandos. Mencionou, porém, apenas os
nomes de três homens: 1) João Lopes, músico e rabequista, solteiro, com quem teve, em sua
casa, um ato de sodomia completa enquanto agente; 2) Luís Galvão, solteiro, oficial de
boticário, com quem praticou dois ou três atos de sodomia consumada, sendo ele confitente
também o agente, e; 3) com um pardo chamado Félix, oficial de carpinteiro, solteiro, num
engenho de fazer água ardente, por duas ou três vezes, consumou ele padre o pecado de
502
ANTT. IL. Proc. nº 10426, fls. 23-26.
152
sodomia “penetrando-o com seu membro viril pelo vaso prepóstero e seminando dentro dele”,
sempre enquanto agente.
Quase um mês depois, em 16 de junho – provavelmente após as pressões que passou
nas admoestações da sessão de genealogia, ocorrida um dia antes – o clérigo Ribeiro Dias
decidiu confessar mais culpas. Com José Rodrigues, oficial de ferrador, pardo forro – que não
tinha sido mencionado pelos denunciantes –, revelou ter cometido o pecado nefando com
consumação, por dez ou doze vezes. Em algumas vezes, era ele denunciado o agente, mas
“em algumas ocasiões que lhe nada (lembrava) ao certo quantas foram, foi ele confitente na
mesma forma paciente e o dito pardo agente”503. Em seguida, o padre confessa ter
sodomizado também seu escravo Felipe, aquele que o denunciara perante o bispo da visita
pastoral. Ao contrário do que alegou o seu cativo, Ribeiro Dias disse que praticaram a
sodomia somente em uma ocasião, em que, inclusive, era ele senhor o paciente, porém que
não foi ato consumado “porque o dito pardo não chegou a ter seminação”.
Importante pensar nas divergências das declarações entre o padre e escravo. Quem
estaria dando testemunho falso? Estaria Ribeiro Dias ocultando o número de atos consumados
para tentar amenizar suas culpas? Mas por que não disse ele que fora agente como confessara
seu escravo? Estaria o pardo Felipe Santiago alegando ter sido sodomizado diversas vezes
com consumação para aumentar a gravidade das penalidades de seu senhor? O papel sexual
de paciente acentuaria sua posição de escravo vítima da relação? A documentação
infelizmente responde mal essas questões, então, só nos resta conjecturar.
503
ANTT. IL. Proc. nº 10426, fl. 33 v.
153
(pardo forro)
10- Fernando Estudante - - Paciente
11- Francisco Pereira - - - Paciente
do Lago
12- Nicolau da Silva Estudante - -
Belo
13- Francisco Xavier Boticário - Um ato de -
polução
14- João Lopes (con- Músico e rabequista - Um ato Paciente
fessado pelo padre) consumado
15- Luís Galvão(con- Oficial de boticário - Dois ou três atos Paciente
fessado pelo padre ) consumados
16- Félix (confessado Oficial de carpinteiro - Dois ou três atos Paciente
pelo padre) (pardo) consumados
17- José Rodrigues Oficial de ferrador - 10 ou 12 atos Paciente e
(confessado pelo (pardo forro) consumados agente
padre)
Felipe (confessado Seu escravo (pardo) - Um ato sem Paciente e
pelo padre) consumação agente
Nas sessões que viriam a seguir, os inquisidores tornaram a insistir para que o clérigo
declarasse toda a verdade de suas culpas “para descargo de sua consciência e salvação de sua
alma”. Entretanto, de agora em diante, José Ribeiro Dias não iria confessar mais nada além do
que já tinha confessado. Na leitura do libelo, foi declarado pelo promotor como convicto e
confesso no crime de sodomia, e teve como condenação o confisco de todos seus bens,
suspensão de suas ordens e que fosse relaxado a Justiça secular. Ouvida sua sentença, o
condenado foi mandado de volta ao seu cárcere. Os inquisidores – Francisco Mendes Frigoso,
Simão José Silveira Lobo e Manoel Varejão e Távora – todavia, ainda tinham que analisar a
decisão proferida do promotor. Desse modo, decidiram abrandar as penalidades, conforme
praxe da justiça inquisitorial ao longo do século XVIII, observando os sinais de
arrependimento, pedidos de perdão e misericórdia do réu:
Foram vistos na mesa do Santo Oficio desta Inquisição de Lisboa, em 12de julho de
1747, estes autos, culpas e confissões do padre José Ribeiro Dias, sacerdote e
vigário que foi da freguesia de São Caetano nas Minas, natural da cidade de Braga
[...]. E pareceu em todos os votos que ele, pela prova da Justiça e sua confissão,
estava legitimamente convicto no crime de sodomia completa e consumada por
repetidas vezes e com diversas pessoas, sendo agente e também paciente. E que
suposto era culpa por disposição de Direito Civil, as Leis do Reino e Breves de Pio
5º, se mande castigar com pena ordinária. Contudo, vem prevalecido a praxe em
contrário, moderando essa pena no 2º lapso, não obstante quaisquer circunstâncias
agravantes, especialmente havendo como há no presente caso entendíveis sinais de
penitência, e haver feito a sua confissão logo que chegou a esta mesa. E que,
portanto, vá ao Auto público da Fé na forma costumada, nele ouça sua sentença,
seus bens sejam confiscados para quem de direito pertencerem, devendo ser havido
por convicto para esse efeito desde o mês de novembro de 1740 em diante; seja
154
Reiterando que o presbítero José Ribeiro Dias havia sido muito bem julgado pelos
Inquisidores, Ordinário e Deputados, o Conselho Geral promulgou o veredito final: Auto
público da Fé; confisco dos bens; suspenção para sempre de suas ordens e degredo de dez
anos para as galés do Rei. Conforme o Regimento de 1640, que previa a exceção do castigo
de açoites pelas ruas para os réus “convencidos” clérigos, Ribeiro Dias foi poupado de mais
essa penalidade violenta e infamante505. Após a celebração do Auto de Fé na igreja do
Convento de São Domingos, em 24 de setembro de 1747, nosso religioso mineiro condenado
assinou nos dias seguintes o termo de segredo e cumprimento da pena.
Tempos depois, prestes a completar sete anos de degredo e com mais de oito anos e
meio desde quando foi preso, padre Ribeiro Dias, já aos 62 anos de idade, suplicou sua saída
das galés aos deputados do Conselho Geral, alegando motivos de enfermidade e velhice, isso
em 6 de agosto de 1754. Seu registro sobre os tormentos das galés é um dos mais dramáticos
de toda documentação inquisitorial nas terras mineiras dos setecentos. Rogando e implorando
a misericórdia do Santo Ofício, o religioso relatou um pouco do que passava naquela
“horrorosa prisão”, a qual mais parecia uma “sepultura que habitação, passando horas do dia e
da noite atônito com o espetáculo dos seus infortúnios que roubando lhe até dos olhos o sono
lhe negam aquele descanso de que a natureza é tão liberal com os mortos”506. O presbítero
estava ali entregue, debilitado, abatido, humilhado perante o tribunal, assim como desejavam
que ele estivesse. A roupa com que chegou às galés já estava rota, e, “com limitado e
grosseiro sustento” que lhe davam, padecia de uma febre maligna. Padre José Ribeiro Dias
não mentia. Um familiar e médico do Santo Ofício, indo até as galés examiná-lo, atestou aos
inquisidores que ele tinha uma perna aleijada: “que lhe custa andar e não só pela pouca
firmeza que nela tem como pelos duros ferros com que a outro se acha ligada; além de que
padece de repetidos refluxos ao peito com que se vê a morte, ao que da ocasião o perverso ar
salino a que esta vizinho e hálitos podres”507.
Assim, esgotado fisicamente, o tribunal da Inquisição perdoou o tempo que lhe faltava
cumprir de penitência, sendo libertado das galés em 30 de agosto de 1754. No entanto, o
504
ANTT. IL. Proc. nº 10426, fl. 46, grifos nossos.
505
REGIMENTO DO SANTO OFÍCIO- 1640. In: Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro... op. cit.,
p. 873.
506
ANTT. IL. Proc. nº 10426, fl. 58.
507
ANTT. IL. Proc. nº 10426, fl. 59.
155
508
ANTT. IL. Proc. nº 10426, fl. 64.
156
3.2.3 Lucas da Costa Pereira: o cirurgião que dava de comer e beber com largueza aos
escravos para fins sodomíticos
Lucas da Costa Pereira, cirurgião, fora descrito como um homem branco, de baixa
estatura (ou quase mediana), corpulento e com alguns cabelos brancos 509, que frequentava
constantemente tabernas e vivia cometendo o pecado de sodomia por todas as partes em que
passava. A lista de parceiros escravos do cirurgião é vasta. Em Minas Gerais, no arraial de
Paracatu, a primeira denúncia ocorreu em abril de 1746, quando o comissário, Antônio
Mendes de Santiago, recebera em sua casa o primeiro denunciante. Este fora dizer que o
cirurgião Lucas da Costa andava tratando desonestamente, enquanto agente, os moleques da
região, levando-os para o mato. Em maio de 1746, um familiar do Santo Ofício, o coronel
Pedro Rodrigues F., apresenta-se em casa do mesmo comissário também para denunciar o
médico por sodomizar, enquanto agente, moleques de toda parte. E mais, o familiar o
denunciou por ter sido autor da fuga de padre José Ribeiro Dias – o presbítero sodomita
analisado anteriormente – que se achava preso na casa dele familiar510. Tudo indica que Lucas
da Costa Pereira e o padre José Ribeiro Dias eram cúmplices dos mesmos pecados. Talvez
houvesse até uma forte identificação entre ambos por serem praticantes contumazes no
nefando. A história do padre e do cirurgião ainda iria se cruzar mais tarde. Porém, dessas
denúncias, o comissário não dá muita atenção. E, no dia 4 de julho de 1746, uma nova vítima.
Desta vez, um mulatinho, a quem o médico nem imaginaria quantos problemas traria à sua
vida de nefandices. Seu nome era José, um mulato de 14 anos de idade.
Já fora de hora, estava o mulatinho deitado em seu rancho quando lhe apareceu,
entrando pela porta, Lucas da Costa Pereira. Este lhe convidou até a sua casa para cearem, e o
mulato, inocentemente, aceitou. Ledo engano. Já na casa, o cirurgião lhe deu de comer, e,
após a ceia, o verdadeiro objetivo do convite. O mulatinho observa que Lucas fechara por
dentro a porta, certamente prevenindo-se da atenção curiosa de algum vizinho, e, levando-o
para a cama, o ofereceu um vestido, porém, com uma condição... teria o mulato que aceitar
ser sodomizado pela via traseira. O menino recusou. Diante disso, o cirurgião pegou uma
faca, e, ameaçando-o, lhe disse que se não consentisse o haveria de matá-lo. Sem escapatória,
e “por ter medo da morte”, o mulatinho consente, cometendo assim o pecado nefando pela
parte posterior511.
509
ANTT. IL. CN. 144, nº 19, fl. 429.
510
ANTT. IL. Proc. nº 205, fl. 22.
511
ANTT. IL. Proc. nº 205, fls. 10 e 18.
157
Violentado, o moleque José foi queixar-se ao seu senhor, o capitão Felisberto Caldeira
Brantes. O militar, indignado, mandou pegar e prender Lucas da Costa, dando parte ao
comissário do Santo Ofício. Assim, o médico fora preso poucos dias depois, em 7 de julho de
1746, no arraial de Paracatu. Sete testemunhos, todos homens, foram ouvidos na inquirição
feita pelo vigário geral interino, Dionísio Rodrigues de Araújo, em 13 de julho de 1746. Duas
testemunhas sabiam muito bem da má fama do denunciado, e sabiam do seu episódio mais
recente por verem o mulatinho andar enfermo. A testemunha Germano Nunes, inclusive, lhe
fizera vistoria e lhe achou “a via maltratada do excesso que lhe tinha feito o dito”512 cirurgião.
Muitos diziam nas Minas Gerais que Lucas da Costa viera fugido com medo de que o
prendessem, pois havia cometido muitas culpas em outros distritos. Antes das denúncias de
Paracatu, o cirurgião já havia sido denunciado na vila de Itu, São Paulo, entre 1741 e 1743. O
sumário dessa época514, inclusive, fora aberto por ordem dos inquisidores de Lisboa,
comprovando que nosso médico já estava sob os olhos do tribunal inquisitorial há um bom
tempo.
Em São Paulo, diziam que Lucas da Costa Pereira vivia dando de comer com largueza
a vários negros boçais em troca de prazeres nefandos. Além disso, corriam mexericos de que
512
ANTT. IL. Proc. nº 205, fl. 11.
513
ANTT. IL. Proc. nº 205, fl. 8-12.
514
ANTT. IL. CN 144, nº 19.
158
o denunciado era judeu, pois comia carne em dias proibidos e sextas-feiras de todas as
semanas, além de não ouvir missa aos domingos e dias santos. Uma testemunha asseverou
que Lucas era culpado, pois “sempre o via robusto e com boa disposição pelas ruas”, mas
sempre omisso nas missas. Por lá, falava-se também que era o cirurgião devoto do vinho,
acostumado a beber em tavernas todos os dias, três ou quatro vezes no dia, e em bastante
quantidade, ainda que nunca fosse visto caído, porém sempre o viam esquentado515. As
testemunhas, entretanto, não acreditavam que ele fazia suas somitigarias “por ser louco ou
embriagado”.
Dos relatos paulistanos, o caso mais chocante ocorreu com João, um bastardinho
“administrado”, de 10 anos de idade. Segundo seu próprio testemunho:
disse que na casa de seu administrador, um cirurgião estava, e que o solicitou para
atos sodomíticos, e, por ele testemunha não querer consentir, o prendeu em ferros e
o maniatou com corda e logo lhe tirou o calção e violentamente lhe chegou com o
membro viril na via prepóstera, fazendo toda diligência por lhe seminar intra vas, o
que não pôde conseguir pelos gritos que deu ele testemunha, aos quais acudiu o dito
seu administrador [...]516.
515
ANTT. IL. CN 144, nº 19, fl. 423.
516
ANTT. IL. CN 144, nº 19, fl. 431.
517
RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Gentios Brasílicos: índios coloniais em Minas Gerais setecentista.
UNICAMP, fevereiro-2003, p. 157.
159
como: um almofariz de latão; uma escrivaninha de estanho; uma balança de pesar ouro; um
almofariz de latão; uma escrivaninha de estanho; uma balança de pesar ouro; uma colher e
garfo de prata; uma colher de ferro; uma candeia, o que tudo poderia valer quinze mil reis,
além de uma boceta de madrepérola e alguns instrumentos de cirurgia. E, embora tenha
afirmado que nunca apreendera ciência alguma, a não ser sua arte de cirurgia, Lucas da Costa
fora encontrado com três livros: dois de medicina e um de moral cujo autor era Larraga. O
perfil econômico de Lucas da Costa não era de um homem de riqueza para o século XVIII.
O médico chegara preso aos cárceres da Inquisição de Lisboa em 26 de janeiro de
1747. Confessou suas culpas um mês depois, em 27 de fevereiro, perante o inquisidor Simão
José Silveira Lobo. E, logo disse chamar-se Lucas da Costa Pereira, natural da Ilha da
Madeira da cidade do Funchal, cristão velho, com 54 anos de idade, filho de Manoel da Costa
Pereira, mercador, e de Joana Teixeira. O que viria a seguir era uma das mais largas
confissões. Lucas foi ao fundo de suas memórias. Lembrou-se de quando – há 38 anos antes
daquela data, por volta dos seus 16 anos – num convento dos religiosos carmelitas calçados da
cidade do Funchal, se achou com o padre Frei Miguel. E, estando ambos a sós na cela do
religioso, “depois de terem entre si algumas obscenas, teve com ele um ato de sodomia
consumado, metendo-lhe ele confitente o seu membro viril com efusão de sêmen dentro do
vaso prepóstero do dito padre, no qual ato foi ele somente agente”. E no mesmo tempo
também se achou, na mesma forma, na casa de padre Pedro de Miranda, por três ou quatro
vezes, consumando aquele abominável pecado. Já em terra brasílicas, na serra do Rio Grande,
bispado de Pernambuco, praticou a sodomia com o padre Manoel de Carvalho, religioso
professo da ordem do Carmo, sendo ele novamente agente com consumação do ato.
Confessou também que nas Minas do Paracatu, sodomizara aquele mulatinho chamado José,
escravo de Felisberto Caldeira, sendo ele o agente na consumação. O mesmo sucedeu com
seus escravos Ignácio e Matheus, com quem teve por várias vezes repetidos atos consumados
de sodomia. Há três anos, se achara também com um escravo chamado João, 16 anos, nas
Minas dos Goiazes. Na freguesia da Iritauba, anexa à cidade de São Paulo, se achou por
repetidas e diversas vezes com seis ou sete rapazes que eram ainda pagãos escravos de
diversos senhores com atos consumados. O mesmo sucedido quando passou por uma fortaleza
do morro, oito léguas da Bahia, com um escravo Sebastião. Com um frade franciscano
Antônio de Carmelo, na vila do Cairu, consumou um ato, novamente enquanto agente. E,
confessou, por último, que pelos sertões da América por donde continuamente mudava de
sítio e habitação, “por ser chamado de diferentes terras e freguesias por ocasião da sua arte de
cirurgia”, por muitas vezes, com diferentes pessoas, principalmente escravos, teve os mesmos
160
Na sessão de genealogia, um mês depois, disse que era cristão batizado, sabia ler e
escrever, mas não tinha aprendido ciência alguma, somente sua arte de cirurgia. E, logo que
atingiu os anos da discrição, ia as igrejas ouvir missas, em que confessava, comungava e fazia
as mais obras. Mas quando lhe pediram para, de joelhos, rezar o Padre Nosso, Ave Maria,
Salve Rainha, os mandamentos da lei de Deus e os da Santa Madre Igreja, mostrou-se estar
alguma coisa esquecido, ainda que de tudo repetisse a maior parte.
161
518
ANTT. IL. Proc. nº 205, fl. 53.
519
BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000, p. 227.
520
BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond. “Para triumpho da fé e mayor glória de Deos”: O cadafalso do auto
da fé de Lisboa de 1698 segundo o projeto do arquiteto Luís Nunes Tinoco. In: Artis. N. 4, Lisboa, pp. 191-204,
2005, p. 192.
521
Id. Ibid. p. 193.
522
Id. Ibid.
162
da fé aparece, então, como um instrumento de controle social que “visava persuadir de forma
veemente, ensinando e convencendo”523.
No convento de São Domingos, naquele auto de setembro de 1747, entre os
condenados ali presentes, um já nos é conhecido. Trata-se do presbítero José Ribeiro Dias, o
mesmo que havia fugido da casa de um familiar do Santo Ofício nas Minas do Paracatu com a
ajuda de Lucas da Costa. O padre chegou aos cárceres secretos da Inquisição no dia 24 de
janeiro de 1747. Já o cirurgião foi entregue aos 26 dias de janeiro. Provavelmente viajaram na
mesma embarcação. Assim, por cerca de 8 meses os dois réus aguardaram o desenrolar de
seus processos presos nos cárceres.
No tempo dos cárceres, ambos certamente permaneceram em celas diferentes, pois “ao
serem presos, os sodomitas eram sempre colocados em celas separadas de outros nefandistas,
geralmente reunidos com mais dois ou três réus de outros crimes, tentando-se assim evitar que
voltassem a cometer o mau pecado dentro dos cárceres”524. Estes eram lugares insalubres,
“onde ao frio, umidade, falta de luz, abafamento, mau cheiro de excrementos, comida ruim e
racionada e ao terrível desconforto geral, acrescia-se o rígido regulamento que previa golpes e
açoites às mínimas insubordinações, como por exemplo falar alto dentro da cela” 525.O
andamento do processo era lento e deprimente para aqueles que aguardavam, atormentados, a
sentença final de seus processos a ser chancelada pela Inquisição.
Saindo dos cárceres para o auto da fé, Lucas da Costa Pereira e o padre José Ribeiro
Dias ouviram a leitura dos nomes e das sentenças, de um e outro, pronunciada naquele “teatro
da reconciliação”. Na ocasião, foram reconciliados 24 homens e 22 mulheres. Dois cristãos-
novos foram relaxados em carne (por culpas de judaísmo). Dos 48 condenados, 8 vinham do
Brasil, e, somente Lucas da Costa e Ribeiro Dias foram por sodomia. A grande maioria estava
ali por culpas de judaísmo (18 homens e 20 mulheres)526. Possivelmente os olhares dos nossos
sodomitas mineiros se cruzaram no meio daquela multidão que acompanhava o espetáculo da
fé. Talvez, pela última vez. Dali em diante, ambos iriam cumprir suas penas nas galés da Sua
Majestade. Das Minas aos cárceres. Dos cárceres às galés. Homens já de idade avançada, os
dois com mais de cinquenta anos. O destino seria cruel e implacável para com eles.
E assim, aos 27 dias de setembro de 1747, Lucas da Costa assinou o termo de ida para
cumprir sua pena de degredo por dez anos. Cumprindo oito anos de galés e dois de prisão (em
cadeias e cárceres), o condenado rogou aos inquisidores “pela morte e paixão de Nosso
523
Id. Ibid.
524
MOTT, Luiz. Justitia et Misericordia...op. cit., p. 711.
525
Id. Ibid.
526
ANTT. IL. Autos da Fé – Listas ou “Notícias” (1563-1750), fl. 287-288.
163
Senhor Jesus Cristo” para que lhe fosse perdoado o tempo que faltava cumprir, pois já não
tinha mais idade para aguentar, já aos 62 anos, além da “falta de talento para poder resistir”.
Desse modo, o cirurgião obteve a misericórdia da mesa inquisitorial que comutou sua pena,
em outubro de 1755527.
O cirurgião que sodomizava moleques por todas as partes, enquanto agente, confessou
que desde jovem já praticava tal pecado com alguns religiosos do reino. Lucas da Costa, já no
Brasil, vivia se embebedando em tabernas, locais muito bem delimitados ao sexo masculino.
Sua masculinidade também expressa traços marcantes de agressividade. Os dois casos mais
bárbaros foram relatados por: um mulatinho de 14 anos de idade, a quem Lucas da Costa
convidara para cear, e que quando chegou em sua casa o forçara ser passivo no nefando,
ameaçando-o de matá-lo com uma faca se houvesse recusa; e por um “bastardinho
administrado”, ao que tudo indica um indiozinho, de 10 anos de idade. Apenas com um
religioso do bispado de Pernambuco é que o cirurgião fora passivo de um ato. A maioria dos
parceiros vitimados pelo médico foram escravos, inclusive menores de idade, os quais eram
sempre os passivos das relações, aqueles mais vulneráveis a sofrer de seus abusos
sodomíticos. Os papéis sexuais neste caso também se mostram ligados à hierarquização
social. Após oito anos de galés, já em idade bem avançada, aos 62 anos, o sexo forte e bruto
de Lucas da Costa já não conseguia mais resistir aos cruéis castigos do degredo. Então só lhe
restara rogar o perdão de sua pena ao Santo Ofício, que atendeu suas súplicas. A partir daí
certamente tornou-se um homem mendicante pelo Reino.
3.2.4 José Peixoto Sampaio: o homem que perseguia outro homem com escritos
amorosos
527
ANTT. IL. Proc. nº 205, fl. 64 e 65.
528
ANTT. IL. Proc. nº 2805, fl. 58.
164
Quando estava com aproximadamente vinte anos, em 1740, na vila de Caeté, comarca
de Sabará, José Peixoto Sampaio dava indícios performativos de uma masculinidade não
sancionada socialmente. Aparentemente muito gentil, sempre convidava alguns homens
desconhecidos para que fossem dormir com ele em seus aposentos. Francisco Vilela havia
apeado seu cavalo perto de sua casa, num fim de tarde. Vale lembrar aqui que andar a cavalo
era uma atividade reservada ao sexo masculino. O cavalo era o animal do sexo dominante. No
patriarcalismo brasileiro, segundo Gilberto Freyre, “a mulher quando saía de casa, era quase
sempre de serpentina, de palanquim, de liteira, de carro de boi. Raramente a cavalo. Já na
decadência do patriarcalismo rural é que foram aparecendo as amazonas de engenho”,
prossegue o autor, “as mulheres que montavam a cavalo sentadas de lado, quase nunca
escanchadas como homem” 529.
Assim, após apear seu cavalo, aquele homem chamado Francisco Vilela procurara
alguém para pedir informação sobre onde conseguir agasalho. Nisso, de fora de sua casa, o
boticário José Peixoto Sampaio, homem que ele então desconhecia, o convidou “com grandes
instâncias” para recolher-se em sua casa. Vilela duvidou de sua bondade por não ter com ele
amizade, “porém obrigado das suas razões, e de lhe dizer que tinha várias coisas do reino que
conversar, com ele veio aceitar a oferta da sua casa”. Certamente o boticário estava a lhe falar
de sua naturalidade. E, depois de acomodar o cavalo do convidado, Peixoto Sampaio fez boa
ceia, e, depois de cearem, o levou para uma camarinha sua, dizendo que ali ambos haveriam
de dormir. Como Francisco Vilela era o convidado, não contestou nada. Passado algum
tempo, noite adentro, o boticário começou a excitar o convidado para torpezas sodomíticas
“pegando-lhe nas partes pudendas” e “metendo-as na boca”. Depois disso, “de o assim o ter
bem excitado se deitou de bruços e começara dizer a ele testemunha que o dormisse pela via
prepóstera”. Francisco Vilela estranhou e se envergonhou, porque nunca aquilo tinha lhe
ocorrido. E, provocado, teve cópula com o Peixoto Sampaio, que fora o paciente. Após o ato,
Francisco “ficara totalmente alheio” e sem saber o que fazia de tão arrependido. Assustado,
repreendeu o denunciado “de semelhante absurdo, e levantando-se logo pela manhã, temendo
o castigo e a ira da divina justiça” foi dar parte ao vigário da vara 530. Mas em sua denúncia,
Francisco Vilela alegou que somente principiara seminar no via prepóstera de Peixoto, porque
por abominar aquilo tirou seu membro daquele lugar, “e por fora concluiu o derramamento”.
529
FREYRE, Gilberto. A mulher e o homem. In: Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e
desenvolvimento urbano. – 10ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 1998, p.102.
530
ANTT. IL. Proc. nº 2805, fl. 8, 9 e 35.
165
O denunciado Peixoto voltou a convidá-lo para que se hospedasse em sua casa, porém o
denunciante não mais aceitou531.
A casa do boticário Peixoto Sampaio foi frequentemente visitada por outros homens,
despertando constantes polêmicas na vila de Caeté. “Por morar parede meia com o
denunciado”, o porteiro Faustino da Costa relatou que numa certa noite, houve um grande
rumor na casa. O vizinho levantou-se de sua cama e pegou uma pistola, pensando que eram
alguns negros que tinham ido lhe furtar alguma coisa, “e olhando para uma varanda da casa
do denunciado que caía para o mesmo quintal, viu estar um vulto de homem, porém não
soube diferenciar quem era, tornando a recolher-se na sua cama”532. Sem ter descoberto o que
era aquilo, o porteiro levantou-se de madrugada e foi falar com o meirinho, ao que descobriu
o que de fato tinha ocorrido. Recebendo naquela noite um homem de negócios em sua casa,
Peixoto Sampaio, depois de cear com o mesmo, tirou as chaves das portas e “investiu” no seu
hóspede tentando praticar atos sodomíticos. O hóspede, provocado, fez um grande alvoroço
na casa “e foi para a rua fazendo queixas que o denunciado o tinha acometido para atos
torpes, o que foi ouvido por vários vizinhos”533. Possivelmente este hóspede tenha sido André
de Sousa Benevides, como veremos adiante.
Com um sócio da botica do denunciado, Antônio Machado Diniz, de 19 anos, as
mesmas investidas sexuais sucederam-se. Os dois vieram juntos na mesma embarcação de
Lisboa para a América. E, morando e dormindo juntos na mesma casa, Peixoto Sampaio, por
várias vezes, o acometia a fim de praticar com ele o nefando. Após várias “bulhas”, Machado
Diniz o desafiou com uma espada dizendo “que desta sorte se havia de defender dele ou
534
matando um a outro” . Depois disso, Peixoto Sampaio parou de acometê-lo, ao que seu
sócio se apartou, dormindo numa rede. O denunciante ainda disse que via muitos homens se
recolherem na cama de Peixoto Sampaio, “porém que não sabia o que faziam”. Em outro
sumário, Machado Diniz deu outra versão, dizendo que, após seu sócio excitar as suas partes
pudendas com as mãos, ele testemunha pegou “uma faca e lhe deu com ela em um ombro por
cima da roupa”535.
André de Sousa Benevides, 30 anos, asseverou que José Peixoto Sampaio era “homem
perverso e desaforado em provocar os homens a atos torpes luxuriosos e desonestos”, o que
era público naquela vila. Certa vez, a testemunha fora em sua casa chamar um tio seu que lá
531
ANTT. IL. Proc. nº 2805, fl. 35.
532
ANTT. IL. Proc. nº 2805, fl. 12.
533
ANTT. IL. Proc. nº 2805, fl. 10.
534
ANTT. IL. Proc. nº 2805, fl. 17 e 18.
535
ANTT. IL. Proc. nº 2805, fl. 42 e 43.
166
estava hospedado. Chegando lá, já à noite, Peixoto Sampaio dissera que seu tio estava
dormindo e também o convidou a dormir. Aceitando o convite, André Benevides foi
conduzido até a cama do boticário, e, por grandes persuasões, “despiu a casaca e descansou as
botas e assim se deitou na dita cama, e o dito denunciado se deitou com ele na outra banda”.
Tão logo:
o dito denunciado, estando assim deitado, lançou o braço por cima dele testemunha,
começando lhe apalpar os peitos, e pegando-lhe ele testemunha nela, lhe deitou para
fora, dizendo lhe acomodasse, e fazendo ele testemunha que dormia, tornou a sentir
a mão do denunciado na mesma parte dos peitos e dali lhe foi correndo até sua
virilha e o começou a apertar536.
O testemunho, assustado, se pôs daquela cama para fora e foi falar com seu tio,
acordando, indignado, os demais homens que ali estavam, e depois retornou para sua casa.
Passado três ou quatro dias, André Benevides voltara a casa, mais uma vez, para falar com seu
tio. Após as conversas, seu tio teve que se retirar para tratar de negócios ainda naquela tarde.
Então o denunciado fora falar com ele e tentou persuadi-lo a dormir ali na casa novamente. A
testemunha, ressentida, lhe disse que não podia, e tornando o denunciado a tentar lhe
persuadir, disse André Benevides que iria ao Arraial Velho a certo negócio e que retornaria se
desse, mas na verdade não tinha a intenção de voltar. Porém, ao acabar os negócios e por não
achar cômodo para seu cavalo, retornou à casa do denunciado para dormir. Estando a noite
ceando – com mais dois homens que lá estavam, além do denunciado – André Benevides
falou em alto e bom som que naquela noite na casa haveria muito sangue, porque numa noite
tinha sonhado que dava muita facada e matava quem com ele quisesse dormir. Nisso, um
primo de Peixoto Sampaio ali presente lhe ofereceu sua cama em uma camarinha. André
Benevides nela se recolheu, trancando a porta por dentro até acordar e sair pela manhã.
Antônio de Sousa Benevides, o tio procurado, disse que havia ido à vila de Caeté em
busca de um remédio para lhe curar uma enfermidade. O tio foi encontrar esse remédio só na
botica de Peixoto Sampaio. Lá, o boticário o convenceu a dormir naquela noite em sua casa.
E, após cearem juntos, o denunciado o levou a uma camarinha, dizendo que era lá que os dois
haviam de dormir. Depois de deitados, Peixoto Sampaio começou a abraçar e beijar Antônio
Benevides. Este ficara “surpreso com a novidade e entendeu queria brincar com ele
testemunha que não se achava capaz dos tais brincos”. Entre uma brincadeira e outra, o tio
teve dois atos sodomíticos com o boticário, este sempre paciente, conforme relatou
detalhadamente a testemunha:
536
ANTT. IL. Proc. nº 2805, fl. 14 v.
167
537
ANTT. IL. Proc. nº 2805, fl. 30.
538
ANTT. IL. Proc. nº 2805, fl. 11.
539
ANTT. IL. Proc. nº 2805, fl. 26 e 27.
540
ANTT. IL. Proc. nº 2805, fl. 28 e 36.
541
ANTT. IL. Proc. nº 2805, fl. 37.
168
mesmos carinhos e palavras, e também a convidá-lo para que dormissem juntos. O preso
acometido reprendeu o boticário daquele vício “dizendo lhe que temesse ser castigado pelo
Santo Ofício pela culpa de se deixar dormir pela via prepóstera de que estava infamado e se
dizia estar preso”. Ao que Peixoto Sampaio “lhe respondeu que nunca usara, não fizera tal
pecado, mas que só usava das mãos”542. O boticário ainda fez uma ameaça, disse que se fosse
enviado preso para Lisboa, “muitos mais haviam de ir com ele”543.
Analisando os sumários, em abril de 1744, os inquisidores do Santo Ofício ordenam
que o denunciado fosse enviado preso aos cárceres secretos da Inquisição, pois o boticário
tivera atos sodomíticos “com seminação intra vas completos com quatro testemunhas sendo o
delato paciente”, e as culpas eram bastante para ser preso544. No entanto, as autoridades do
além-mar não cumpriram a ordem inquisitorial.
542
ANTT. IL. Proc. nº 2805, fl. 37.
543
ANTT. IL. Proc. nº 2805, fl. 35.
544
ANTT. IL. Proc. nº 2805, fl. 45.
169
Ao que tudo indica, Peixoto Sampaio foi posto em liberdade da prisão de Caeté algum
tempo depois, cuja data exata a documentação não informa, pois, no ano de 1748 é registrada
mais uma denúncia contra ele, desta vez no arraial da Cachoeira. Segundo João Batista
Fernandes, que deveria ter 24 anos na época, filho de um sargento de infantaria, entrando na
loja de Antônio José Peixoto (o nome aparece alterado) foi chamado por ele para uma casa de
dispensa. Lá o boticário lhe deu de almoçar e, estando a testemunha comendo, o dito
denunciado:
metera a mão na barguilha, pegando lhe no membro viril e esfregando lhe com a
mão, e, dizendo que se calasse para que não fosse ouvido, lhe solicitou uma polução,
e no mesmo tempo despertara os calções, pegando no mesmo membro o fora
guiando para cometer o pecado nefando com ele denunciante, que não estava certo
se foi de tudo completo ou não, pois ficara alertado, e o mesmo lhe sucedera outra
vez no mesmo quarto. E terceira vez, estando ele denunciante em casa de Jacinto
Coelho chegara o sobredito Antônio José Peixoto e o chamara dizendo que tinha
com ele um particular e indo ele como era de noite, logo na rua, lhe pegara no dito
membro viril, e tanto que pusera com tratos de polução, despira também os calções e
com as próprias mãos o [?] para cometer o dito pecado nefando em pé, arrumado a
uma parede, que, com efeito, cometera sendo ele denunciante agente e o sobredito
paciente, assim nestas como nas mais vezes, mas ele denunciante não estava certo se
chegara a penetrar o vaso ou não; e também declarou que o mesmo denunciado, por
outras vezes, solicitara a ele denunciante para os mesmos atos e que ele não
consentira, antes lhe dissera que havia de denunciar-se a ele [...], e que lhe parecia
que o dito lhe dera também alguma bebida para o tirar de seus sentidos e perturbar
como o fazia outras pessoas 545.
Nesse relato, apesar de não explícito, é possível entrever que a testemunha teve atos
sodomíticos consumados com o boticário, pois, em pelo menos um, o parceiro ativo “não
estava certo se foi de tudo completo ou não”. O solicitante aqui, como nas outras vezes, era
sempre o passivo da relação. Desse modo, o depoimento deixa claro que nem sempre o ativo
das relações sodomíticas era o homem em situação privilegiada com poder de dominar, ainda
que não esteja a tratar de uma relação em que a hierarquia social fosse tão rígida quanto nas
relações sexuais entre senhor e escravo. Aqui quem tem poder de mando é o passivo, que
sempre estava no domínio dos atos sexuais. Mas será que o parceiro sexual estava sem o
direito de escolha? Fora de seus sentidos? Será que justificou o uso de bebidas para amenizar
545
ANTT. IL. Proc. nº 2805, fl. 49, (grifos nossos).
170
suas culpas? Difícil responder. Ou será que havia no fundo um desejo “homossexual” do
parceiro do boticário? Impossível saber.
José Peixoto Sampaio, possivelmente circulando livre pelas terras mineiras, tem contra
si mais um mandado de prisão aos cárceres secretos, em novembro de 1749, vindo dos
inquisidores de Lisboa. Sem o cumprimento da ordem, em outubro de 1750 a mesa
inquisitorial emite novo mandado. E só em abril de 1751, é que Peixoto de Sampaio foi
recolhido em Vila Rica. Perto de lá, em Mariana, é que o comissário do Santo Ofício, Giraldo
José Abranches, alegou que o denunciado estava “dissimulado com o suposto nome de
Antônio Jose Ribeiro”546. E assim, fizeram o sequestro dos bens e remeteram o preso ao Rio
de Janeiro com 70 mil reis para as custas de suas despesas, chegando aos cárceres secretos em
agosto de 1751.
Após cerca de cinco meses nos cárceres, em janeiro de 1752, José Peixoto Sampaio,
decidiu confessar suas culpas perante o inquisidor Luiz Barata Lima. E disse, logo de início,
chamar-se Antônio José Ribeiro – que a mudança no seu nome veio na crisma – mercador,
solteiro, filho de Jacinto Teixeira Lemos, lavrador, e de Maria de Sampaio, natural da
freguesia de Santa Maria de Pedroso, Conselho de Felgueiras, arcebispado de Braga e
morador na freguesia de Nossa Senhora de Nazaré da Cachoeira, bispado da cidade de
Mariana, de 30 anos de idade. Em sua confissão, o boticário reiterou muitos dos nomes dos
denunciantes. Porém, ocultou um deles, justamente aquele com quem tivera relações
sodomíticas no meio de uma rua, à noite: João Batista Fernandes. Com Francisco Vilela
acrescentou mais dois atos. Chama a atenção o que Peixoto Sampaio confessou entre ele e
Antônio Machado:
estando ambos a sós na cama, deitados, lhe pegou ele confitente no seu membro viril
e lhe disse algumas palavras desonestas e depois delas e de estar o dito Antônio
Machado com alguma alteração se voltou com as costas para o mesmo, dispondo-se
assim para cometerem o pecado de sodomia e ser o dito agente e ele confitente
paciente, mas não esta certo se nesta ocasião penetrou pela vaso prepóstero; porém
por mais três ou quatro vezes, pouco mais ou menos, na mesma casa e cama, em
diferentes ocasiões, cometeu com ele a dita culpa, consentindo e incitando ao
sobredito Antônio Machado para que penetrasse como fez e consumasse o dito
pecado intra vas preposterum, mas não sabe se com efeito dentro do mesmo vaso
houve ou não efusão de sêmen porque como dito tem foi sempre paciente porém fez
quando esteve de sua parte para que o referido seminasse 547.
Seria o mesmo Antônio Machado sócio do denunciado na botica? Se sim, um dos dois
estaria mentindo. Se fora o mesmo homem, trata-se justamente daquele que revelou ter sido
546
ANTT. IL. Proc. nº 2805, fl. 3.
547
ANTT. IL. Proc. nº 2805, fl. 54.
171
agressivo com uma faca ou espada contra Peixoto após suas investidas sodomíticas. Já sobre
aquele homem com quem ficara na dispensa de sua loja e depois no meio da rua, Peixoto
Sampaio nada confessou. Teria ele algum sentimento por aqueles que não resistiam aos seus
intentos sexuais? Estaria, por isso, tentando preservá-los das investigações inquisitoriais? São
plausíveis as indagações.
Nas próximas sessões, José Peixoto Sampaio não acrescentaria mais nada em suas
confissões, apesar de toda ritualística inquisitorial a respeito das admoestações. Na sua
genealogia declarou que sabia ler e escrever, porém não tinha aprendido ciência alguma. Em
fevereiro de 1752, na sessão de exame, foi perguntado pelos inquisidores se com todas as
pessoas que declarou ter sido paciente houvera a consumação do pecado, ao que disse que “se
houve ou não efusão de sêmen dentro do vaso prepóstero só o (podiam) dizer as pessoas que
foram agentes, por quanto ele réu só pode afirmar que fez quanto esteve de sua parte para se
completarem os atos”548. Ao fim do processo, em maio de 1752, os inquisidores julgaram que:
548
ANTT. IL. Proc. nº 2805, fl. 62.
172
contra semelhantes estabelecidas; seja açoitado pelas ruas públicas desta cidade citra
sanguinis effusionem, e degradado para as galés de Sua Majestade por tempo de dez
anos; mas que antes de se executar este assento fosse com os próprios autos levado
ao Conselho Geral na forma do Regimento549.
Todos os criminosos são acorrentados dois a dois pela distância de apenas um pé [...].
Estes forçados vão trabalhar todos os dias nos estaleiros d‟El-Rei: são empregados
para levar madeira aos carpinteiros; descarregam os navios; vão buscar pedras e
areias para servi-lhes de lastro, água e provisões para suas viagens; fabricam
estopa e finalmente fazem tudo de que se julga conveniente ocupá-los para o serviço
do Príncipe ou dos oficiais que os comandam, por mais rudes e vis que estes
trabalhos sejam [...]. A galé terrestre está construída na beira do rio e consiste em
duas enormes salas, uma alta e a outra baixa, ambas ordinariamente cheias, e os
forçados ali se deitam sobre estrados cobertos com esteiras [...]. Todos os dias
bem cedo, exceto em raríssimos dias santos, são levados ao estaleiro, que fica cerca
de meia légua das galés. Ali trabalham sem cessar até onze horas no que parecer
mais a propósito de empregá-los, o trabalho para então até a uma hora, e neste
ínterim podem comer ou descansar. Ao toque de uma hora, são postos novamente à
obra até a noite, quando os levam de volta às galés [...]. Além dos alimentos que
o Príncipe faz dar a estes infelizes, recebem ainda frequentes esmolas, de modo que
nenhum deles sofre de verdadeira privação. Quando adoecem, médicos e cirurgiões
os visitam frequentemente, e se suas enfermidades tornam-se perigosas,
administram-lhes pontualmente os sacramentos [...]. Quando algum destes forçados
comete uma falta grave, é açoitado com grande crueldade, pois o estendem por terra
sobre a barriga e enquanto dois homens assim o retêm, um terceiro o golpeia com
rudeza suas nádegas com uma espessa corda revestida de piche, que
ordinariamente arranca consideráveis porções de carne, e mais de uma vez
presenciei casos de pessoas que, após o castigo, tinham as partes tão mortificadas
que se fazia necessário executar profundas incisões, que degeneravam em terríveis e
difíceis úlceras, de modo que estes miseráveis ficavam por muito tempo incapazes
de efetuar qualquer trabalho552.
549
ANTT. IL. Proc. nº 2805, fl. 76.
550
ANTT. IL. Proc. nº 2805, 82.
551
SILVA, Ronaldo Manoel da. Seja declarado por convicto e confesso no crime de sodomia...op. cit., p. 94.
552
A INQUISIÇÃO DE GOA: descrita por Charles Dellon (1687). Estudo, edição e notas de Charles Amiel e
Anne Lima; tradução de Bruno Feitler. São Paulo: Phoebus, 2014, pp. 173-176 apud SILVA, Ronaldo Manoel da.
Seja declarado por convicto e confesso no crime de sodomia...op. cit., p. 95.
173
553
MOTT, Luiz. Justitia et Misericordia...op. cit., p. 724.
554
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados... op. cit., p. 392.
555
ANTT. IL. Proc. nº 2805, fl. 87.
556
ANTT. IL. Proc. nº 2805, fl. 88.
174
casos aqui analisados. Pelo contrário, se mostrou ser sentimental ao endereçar escritos
amorosos para um preso com quem chegou a dividir uma enxovia. Dócil, gentil, carinhoso, é
o processado por sodomia que mais nos revela performatividades masculinas com mais
características atribuídas ao sexo feminino. E assim, por afrontar outras masculinidades, sofria
na prisão muitas pancadas de outros presos. Curiosamente era ele sempre o passivo das
relações sexuais, estando no controle das ações, o que nos demonstra que os passivos também
poderiam ser os dominadores dos atos sodomíticos. Por outro lado, indica ter sido um homem
sagaz, conhecedor das leis regimentais da Inquisição, ao dizer que não usava da via
prepóstera, apenas das mãos, ou seja, só cometia molícies e não o delito de sodomia,
propriamente dito. Frente a frente com os inquisidores, ainda teve a ousadia de declarar que
não sabia se nas suas práticas sodomíticas houvera ou não “efusão de sêmen dentro do vaso
prepóstero”, porque disso só poderiam saber os homens que com ele foram ativos, mas que
ele réu fazia sua parte “para se completarem os atos”. O boticário também parece ter
preservado os nomes daqueles que realizaram seus intentos sexuais e falseado contra aqueles
que com ele reagiram de forma agressiva. Fora o processado mais jovem, tendo trinta anos
quando chegara aos cárceres secretos da Inquisição de Lisboa, porém o que menos aguentou
os sofrimentos das galés, principalmente por doenças venéreas que contraíra ao longo de sua
vida nefanda.
175
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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186
APÊNDICES
APÊNDICE A
Quadro: Denunciados por sodomia na comarca do Rio das Velhas ou de Sabará/ Minas
Gerais (1700-1821)
APÊNDICE B
Quadro: Denunciados por sodomia na comarca do Rio das Mortes/ Minas Gerais (1700-
1821)
APÊNDICE C
Quadro: Denunciados por sodomia na comarca de Vila Rica do Ouro Preto/ Minas
Gerais (1700-1821)
APÊNDICE D
Quadro: Denunciados por sodomia na comarca do Serro Frio/ Minas Gerais (1700-1821)
APÊNDICE E
Quadro: Denunciados por sodomia em Minas Gerais - sem comarca ou freguesia
especificada (1700-1821)
Nome Ano
1- João José Maria de Brito (ajudante de ordens) 1812
2- Alferes José Theodoro (ou Teotônio) de Sá e Silva 1812
3- Alferes Peçanha 1812
Fontes: ANTT. IL. C.P., c. 109, liv. 301; c. 110, liv. 302; c. 120, liv. 312; c. 130, liv. 319; c. 134, liv. 322.
D.D., Cxs. 1578, 1591, 1594, 1605, 1607, 1615, 1618, 1625, 1629, 1634, 1640, 1642, 1644, 1649, 1650. C. N.,
liv. 143, 144, 145, 146, 821. Procs., 205, 2826, 2805, 5627, 5708, 10426.
APÊNDICE F
Quadro: Denunciados por sodomia, Bahia (1700-1821)
APÊNDICE G
Quadro: Denunciados por sodomia, Pernambuco (1700-1821)
APÊNDICE H
Quadro: Denunciados por sodomia, Pará (1700-1821)
APÊNDICE I
Quadro: Denunciados por sodomia, São Paulo (1700-1821)
APÊNDICE J
Quadro: Denunciados por sodomia, Rio de janeiro (1700-1821)
APÊNDICE K
Quadro: Denunciados por sodomia, Maranhão (1700-1821)
APÊNDICE L
Quadro: Denunciados por sodomia, Mato Grosso (1700-1821)
APÊNDICE M
Quadro: Denunciados por sodomia, Ceará (1700-1821)
APÊNDICE N
Quadro: Processados por sodomia no Brasil (1700-1821)
APÊNDICE O
Quadro: Perfil dos denunciados/confessados por sodomia perfeita (Minas Gerais, 1700-
1821)
escravos)
31- João Pereira de 1752 13 anos Professor São João 2 meninos Ativo
Carvalho del-Rei seus alunos
32- Antônio José 1752 30 anos Boticário e Caeté 14 homens Passivo
Ribeiro ou José mercador
Peixoto de
Sampaio
33- André da Silva 1753 - Padre Lagoa 1 escravo Ativo
Ribeiro Dourada/ boçal
Prados
34- Antônio Fogaça 1753 - Oficial de Santa 4 escravos Ativo*
(mulato/casado) ferreiro Bárbara menores de
idade
35- Miguel Inácio 1754 Militar Vila Rica 6 (5 Ativo
Geraldes escravos e
um preso)
36- Manoel Moreira 1754 - Oficial de Paracatu 1 escrava e -
ferreiro 1 escravo
37- Urbano 1754 - - Prados 1 mascate Ativo
Gonçalves (homem
livre)
38- Agostinho 1755 - - Bento Pires/ 2 homens (1 Passivo
Vieira de (homem Curral del- foi (cópula
Azevedo livre) Rei Domingos consuma
(reinol/branco/s Vieira) -da)
olteiro)
39- Domingos 1755 - - Bento Pires/ Agostinho Ativo
Vieira (homem Curral del- Vieira
(branco/ livre) Rei
solteiro)
40- Jacinto Ferreira 1758 - Feitor de Vila Rica 5 escravos Ativo
Campos escravos
41- Miguel Inácio 1761 - Militar Arraial do 4 escravos Ativo
Geraldes (cabo de Tijuco
esquadra)
42- Bento Luiz de 1761 - - Congonhas 2 (um Ativo
Mattos (senhor de escravo, e
escravos) um homem
que vivia
amancebado
)
43- Manuel da 1763 - - Vila Rica 3 escravos -
Cunha de Souto (homem (9 vezes)
Maior livre/reino
l)
44- Jacinto Ferreira 1763 - Feitor de Mariana 3 escravos Ativo
Campos escravos
45- Francisco José 1763 44 anos Religioso Sabará Vários Ativo**
leigo rapazes (apenas
196
uma vez
foi
passivo)
46- Simão Alves 1769 - - Itabira 1 escravo Ativo
Pimenta Ramos (homem (quatro
livre) vezes)
47- Miguel de 1771 20 anos - São João 1 cúmplice Ativo e
Souza Monteiro (homem del-Rei (Manoel passivo
livre) Dias da (com
Conceição) consu-
mação)
48- Manoel Dias da 1771 17 anos - São João 1 cúmplice Ativo e
Conceição (homem del-Rei (Miguel de passivo
livre) Souza (com
Monteiro) consu-
2 rapazes mação)
49- Francisco 1772 - Preso Tiradentes 4 escravos -
Xavier da Costa (crioulo
forro)
50- José Ribeiro de 1772 - Vive de Curral del- 1 cúmplice Ativo e
Souza (pardo) sua roça Rei (Manoel passivo
Vieira
Franco)
51- Manoel Vieira 1772 - Vive de Curral del- 1 cúmplice Ativo e
Franco (reinol) sua roça Rei (José passivo
Ribeiro de
Souza)
52- Antônio Correa 1775 - Padre Prados 1 mulatinho Ativo*
de Azevedo
53- José de Lima 1778 - Militar São João 1 escravo Ativo
de Noronha (capitão) del Rei
Lobo (viúvo)
54- João Francisco 1779 50 anos Agregado Sabará Escravos e Ativo
Ferreira (casado de um escravas
ou viúvo) capitão
55- Antônio 1781 - - Bento Escravos Ativo
Martins Chaves (homem Rodrigues
(pardo/casado) livre)
56- Francisco 1781 - Feitor Bento Escravos Ativo
Barreto Rodrigues
57- Antônio 1781 - Feitor Bento Escravos Ativo
Machado Rodrigues
Leonardo
58- José Francisco 1785 - Capitão da Carijós 1 -
Baião ordenança (Molície)
59- Joaquim 1790 - Cabra Congonhas 1 (João Passivo
Francisco (escravo) escravo)
60- João 1790 - Escravo Congonhas 1 (Joaquim Ativo
Francisco)
197
Maria de
Brito
77- João José Maria 1812 - Militar Minas - -
de Brito (sargento Gerais
mor)
78- José Theodoro 1812 - Militar Minas - -
(Teotônio) de (Alferes) Gerais
Sá e Silva
79- Alferes 1812 - Militar Minas - -
Peçanha (Alferes) Gerais
Fontes: ANTT. IL. C.P., c. 109, liv. 301; c. 110, liv. 302; c. 120, liv. 312; c. 130, liv. 319; c. 134, liv. 322.
D.D., Cxs. 1578, 1591, 1594, 1605, 1607, 1615, 1618, 1625, 1629, 1634, 1640, 1642, 1644, 1649, 1650. C. N.,
liv. 143, 144, 145, 146, 821. Procs., 205, 2826, 2805, 5627, 5708, 10426.
* Nos casos de Anastácio Vilaça de Carvalho, Antônio Fogaça, Francisco de Paula Barbosa e Antônio Correa de
Azevedo, supomos que fossem ativos, neste último porque o menino estava chorando, e nesses casos,
geralmente, os menores de idade eram os passivos, devido suas vulnerabilidades e fragilidades.
**Nos casos de Francisco José e Manuel Alves (Álvares) Cabral que, em diversos atos sodomíticos, apenas uma
vez foram passivos, os consideramos na categoria de somente ativos.
199
ANEXOS
Imagem 1: The destruction of Sodom and Gomorrah. Autor: John Martin, c. 1852.
Laing Art Gallery, Newcastle upon Tyne.
Imagem 3: Dante and Virgile (Dante e Virgílio) . Autor: William-Adolphe Bouguereau, c. 1850. Disponível em:
https://artsandculture.google.com/asset/dante-and-virgile/-AF79SI4-gGMKA. Acesso em: 18 de agosto de 2019.
201
Imagem 5: Tormento dos luxuriosos. Fonte: PERIER, Alexandre. Desengano de Peccadores Necessario a todo
genero de Pessoas, Utilissimo aos Missionarios, e aos Pregadores desenganados, que sò desejão a salvação das
almas. Roma: Na Officina de Antonio Roffis na via do Seminario Romano, MDCCXXIV apud GOMES,
Veronica. Vício dos Clérigos...op. cit., p. 223.
203
Imagem 6: Gravura retratando padres sodomitas. Souper dans les orgues (Jantar nos órgãos). Autor: François-
Rolland Elluin (1745-1810) em Histoire de Dom B., portier des Chartreux.
204
Imagens 9 e 10: Cenas de tortura da Inquisição. Fonte: The mysteries of popery unveiled, in the unparalleled
sufferings of John Coustos, at the Inquisition of Lisbon. to which is added the origin of the inquisition, and its
establishment in various countries. and the master key to popery / by Anthony Gavin. Hartford : R. Storrs printer:
1820, p. 57 e 89. Disponível em: http://purl.pt/23395/3/#/1. Acesso em: 18 de agosto de 2019.
206
Imagem 11: Antigo palácio da Inquisição de Lisboa. LEGRAND, C., (1839-1847). BIBLIOTECA NACIONAL
DE PORTUGAL. Disponível em: http://purl.pt/13142. Acesso em: 18 de agosto de 2019.
Imagem 12: A faustíssima e memoravel reunião dos illustrissimos membros da Junta Provisional. António
Cândido Cordeiro Pinheiro Furtado, c. 1820. Museu de Lisboa (ML). In: RIJO, Delminda Maria Miguéns.
Palácio dos Estaus de Hospedaria Real a Palácio da Inquisição e Tribunal do Santo Ofício. Cadernos do Arquivo
Municipal. ISSN 2183-3176. 2ª Série Nº 5 (janeiro - junho 2016), p. 19 – 49.
207
Imagem 13 e 14: Dois homens se beijando na ilustração da abolição da Inquisição de Barcelona. H. Leconte, c.
1820.
208
Imagem 15: Vila de São João del Rey, Minas Gerais, em início do século XIX. Autor: Johann Moritz Rugendas
-Aquarela e nanquim - 25 x 35 – 1824.
209
Imagem 18: Índice dos Repertórios do Nefando. Cadernos de Nefandos. Disponível em:
https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4481991. Acesso em: 18 de agosto de 2019.
211
Imagem 19: Termo de prisão e sequestro de bens do padre José Ribeiro Dias. Fonte: PT/TT/TSO-IL/028/10426.
Disponível em: https://digitarq.arquivos.pt/details?id=2310588. Acesso em: 18 de agosto de 2019.
212
Imagem 20: Lista dos condenados ao Auto público da Fé, em setembro de 1745, em que aparece o nome do
mineiro João Durão de Oliveira. Fonte: ANTT. IL. Autos da Fé – Listas ou “Notícias” (1563-1750), fl. 279.
213
Imagem 21: Lista dos condenados ao Auto público da Fé, em setembro de 1747, em que aparece os nomes dos
mineiros José Ribeiro Dias (padre) e Lucas da Costa Pereira (cirurgião). Fonte: ANTT. IL. Autos da Fé – Listas
ou “Notícias” (1563-1750), fl. 287.
214
Imagem 22: Delação que fez o mulato José contra o cirurgião Lucas da Costa Pereira em 1746. Fonte:
PT/TT/TSO-IL/028/00205. Disponível em: https://digitarq.arquivos.pt/details?id=2300076. Acesso em: 18 de
agosto de 2019.