Trabalho - Drummond e A Maquina Do Mundo

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
LITERATURA BRASILEIRA VI

Só resiste quem sabe que existe: Drummond e A Máquina do mundo

Nome: Jéssica de Abreu Trinca


n°usp:6835670

SÃO PAULO
2018
Em um mundo sitiado, o homem respira as poeiras levantadas pelo período
do pós-Segunda Guerra Mundial, ainda que alguns denominem essa época como a
Era de Ouro do capitalismo, devido a grande expansão econômica adquirida com os
lucros advindos da disputa da técnica e dos meios de produção entre as grandes
potências. A inimizade declarada e a luta armada entre países também tinha cunho
ideológico, e para alguns intelectuais as negociatas militares não trouxeram a vitória
para nenhum dos lados, ao contrário, transformaram também em ruína a verdade
que proporcionou um dia o entusiasmo para um engajamento político.
O horizonte do pós-guerra mantém-se negro, e um enigma, diante do homem
que encontra inalterado apenas o céu. ​Claro enigma​, livro de 1951, posterior ao
lirismo engajado do poeta Carlos Drummond de Andrade, é um desdobramento dos
efeitos do período belicista que marcou o século XX. Diante da sociedade
pós-industrial, em que a máxima do lucro continua sendo o modo predominante de
produção, fazendo valer o lado obscuro da grande potência soviética em sua avidez
pelo poder em si mesmo, Drummond escreve uma obra que representa a recusa de
um discurso participante desse “novo mundo”, numa oposição negativa diante de
uma realidade insondável à razão, à ação humana e à poesia (Camilo, 2001).
Esta obra traz em sua antologia o poema ​A máquina do mundo​, o qual pinta
um quadro trágico do destino do homem desenganado com as verdades, as ciências
e os nexos da vida oferecida pelo “mundo-máquina”. O presente trabalho pretende
analisar como poeta faz uso do quadro trágico para rejeitar ascensão do herói,
metáfora do “eu” engajado, ao narrar a tragédia do mundo técnico e pondo em causa
o destino do homem submetido aos processos desse novo e reacionário mundo.
O presente trabalho tem o objetivo de analisar o tédio presente no estado de
existência do “eu” como resposta à uma frustração anti-heróica. Por meio das
colorações do poema apresentaremos uma hipótese de compreensão poética
acerca do negativismo positivo do “eu”, entendendo os conceitos de positivo e
negativo não como dinâmicas opostas, mas complementares. Dessa forma, este
negativismo, que ultrapassa a esfera do interior e contamina sua realidade com tons
de chumbo, é entendido como uma afirmação de resistência do “eu” culminando na
recusa à “máquina do mundo”. Pretende-se demonstrar através do poema a adoção
de uma perspectiva metafísica, que compõe o enredo trágico, como também
demonstrar a semelhança existente entre os pontos conceituais do poema e os
traços conceituais da filosofia taoísta, individualista por natureza, que procura na
introspecção do sujeito a verdade como um acontecimento do ““eu” ele mesmo”.
Esse pensamento oriental sintetiza o conceito de dualidade na descrição do universo
em duas polaridades fundamentais: negativo e positivo como dinâmicas opostas e
complementares. A partir dessa premissa, o trabalho procurará demonstrar como a
recusa do “eu” é uma afirmação de existência, similar também à perspectiva taoísta,
ao fazer uso da observação dos fenômenos do mundo e rejeitar as ofertas
mundanas como estratégia de resistência do “eu”, contrapondo dessa maneira o
sentido de destino trágico presente na perspectiva do homem ocidental.

A máquina do mundo

E como eu palmilhasse vagamente


uma estrada de Minas pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos


que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo


na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu


para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,


sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção


contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende


a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando


quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,


se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,


a se aplicarem ao pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma


ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,


em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,


mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza


sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente


em que te consumiste...vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,


o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,


os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo o que define o ser terrestre


ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,


dá volta ao mundo e volta a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,


suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade;

e as memórias dos deuses, e o solene


sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance


e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.
Mas como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima – esse anelo


de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios de sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas


presto e fremente não se produzissem
e de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,


e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade


que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;


como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,


desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara


sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida

se foi miudamente recompondo,


enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas
O poema é ​in media res​, sua tonalidade narrativa cria um quadro trágico. Os
decassílabos são toantes e compostos em terza rima. O tempo verbal no imperfeito
dá conta do passado prolongado na experiência vivenciada (Rufinoni, 2013). A
conjunção “​e” começa o poema e nos dá a ideia de que a narrativa surge em meio
às outras já existentes. Os noves primeiros versos do poema caracterizam o
percurso do sujeito, compostos por orações subordinadas que criam um
alongamento da linha lógico-sintática que parece imitar o conteúdo do texto marcado
pela obscuridade (Quadros, 2008) de um sujeito melancólico que caminha em um
mundo desértico, escuro e pedregoso. No poema esta presente a figura de
linguagem da retórica clássica, o oxímoro “os mesmos sem roteiro tristes périplos”,
seu sentido literal absurdo força o leitor a procurar o seu sentido metafórico, como
também o hipérbato “a outro alguém, noturno e miserável / em colóquio se estava
dirigindo”. Além desses traços neoclassicisantes, há também a presença de figuras
de construção tal como a assonância “mente cansada de mentar” e o assíndeto
“olha, repara, ausculta: essa riqueza”, “vê, contempla, abre teu peito para
agasalhá-lo.” Já a metáfora é figura na qual se inscreve o poema como um todo,
descritas no decorrer desta análise.
O poema começa com a escuridão como metáfora do mundo interior do “eu” e
se expande para o mundo exterior por meio da imagem de aves pairando com “suas
formas pretas” no céu chumbo “vinda dos montes e de meu próprio ser
desenganado”. O passado representado pela “estrada de Minas pedregosa”
conecta-se com o presente triste e solitário de horizonte escurecido.
No decorrer no poema testemunhamos o negativismo do “eu” diante do
potencial destruidor dos artefatos ou do controle sobre os processos que escapam
ao controle de exploração da natureza oferecidos pela máquina:

“olha, repara, ausculta: essa riqueza


sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,


esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste...vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”
[...]
Mas como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima – esse anelo


de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios de sol inda se filtra;”

A dimensão técnica do eu-lírico evidencia uma afinidade com a metafísica e a


tragédia. Aqui, observamos a técnica à luz de seu caráter trágico. O humanismo se
encontra em crise, o que torna interessante o poema compor uma obra que
constitui-se em forma e retórica neoclássica, trazendo à tona o paradigma
reacionário do contexto social da obra. A máquina oferece ao “eu” a perspectiva do
homem como herói ao convidá-lo a adentrar “[...] ao pasto inédito da natureza mítica
das coisas”. Mas, o reconhecimento dos passos em falso da humanidade, ao invés
de conduzir o “eu” ao cumprimento do destino trágico, o leva à uma atitude infausta,
concebida no tédio e que o liberta de qualquer reconciliação com o entusiasmo das
obras humanas e concretiza uma postura anti-heróica. tragédia da técnica tem o
seu fundo metafísico (Prado, 2015), o desenvolvimento pela técnica o desmotiva:

“como se um dom tardio já não fora


apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,


desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho”

Este é um sinal de conscientização do capitalismo, a trajetória do “eu”


concentrou-se em um exercício mental para alcançar o conhecimento. A máquina é
um objeto de disputa entre o que é ideológico e material. Segundo Prado (2015) a
técnica compõe uma ambivalência de um evento que traz simultaneamente a
ameaça e a esperança. O “eu” presente no poema já tem consciência da tragédia da
técnica, pois tem uma perspectiva metafísica da máquina do mundo:

“e o absurdo original e seus enigmas,


suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade;

e as memórias dos deuses, e o solene


sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance


e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.”

O processo de desenvolvimento, ainda que transforma o espaço vazio em um


espaço ocupado e sofisticado, recria um outro espaço vazio dentro do “eu” que o
fomenta, funcionando dessa maneira a tragédia moderna. Entretanto, dentro desse
movimento paradoxal, o “eu” do poema não concebe apenas como uma oposição o
duplo movimento da técnica sobre o destino do homem. Diante de um ser cansado,
caminhando a esmo em mundo chumbo e pedregoso, o “eu” se afirma perante esse
destino por meio da negatividade. O poema compõe a imagem desse contraste de
forças opostas atuantes dentro da realidade: “a esperança mais mínima – esse
anelo/de ver desvanecida a treva espessa /que entre os raios de sol inda se filtra;”.
O poeta ao tornar visível o escuro do mundo recusa a luz absoluta das utopias que
seduzem o “eu” a um engajamento que reconciliaria a poesia com um mundo
esfacelado. O “eu” não se permite aceitar mais esta ilusão ofertada pela máquina
com o vislumbrar de uma luminosidade fácil (Quadros, 2008).
O I Ching - O livro das mutações, é uma obra clássica chinesa que concentra
toda a base da filosofia taoísta, nele estão inscritas dinâmicas de absoluta escuridão
experimentadas também por um “eu”, elas estão determinadas como pertencentes à
polaridade yin, ou seja negativa, como por exemplo a dinâmica trazida pelo
hexagrama ​Obscurecimento da luz,​ a descrição desse processo indica que durante a
“luz escondida, é favorável manter-se perseverante durante a adversidade”, pois
quando a opressão externa inibe a própria luz, sem que nada se possa fazer para
evitá-la, a solução é preservá-la escondida. O importante é a luz que subsista.
(MUTZENBECHER, 2010, p.184). A relação que se dá entre a escuridão do mundo
e a luz da máquina criam uma dualidade da qual sua complementaridade formará a
síntese proposta pela poema, que consiste em uma recusa a iluminação da máquina
e de seus recursos de dominação, uma resposta negativa ao totalitarismo, que
também constituía uma ligação com o engajamento da época de criação de ​Claro
Enigma​, a ver a situação da União Soviética no contexto político-social da época. O
“eu” Rejeita a verdade condicionada pelo olhar, representada pela máquina,
significada como cerne das “verdade opressiva, e por isso escolhe a verdade
inefável. A racionalidade é a via de acesso à totalidade e, como tal, seu meio de
re-existência diante da máquina do mundo.

BIBLIOGRAFIA
CAMILO, Vagner (2001) Drummond: da Rosa do Povo à Rosa das Trevas,
São Paulo, Ateliê Editorial

ANDRADE, Carlos Drummond de. Claro enigma. Companhia das Letras. São
Paulo, 2012.

MUTZENBECHER, Alayde. I Ching: o livro das mutações: sua dinâmica


energética. 2.ed. Rio de Janeiro: Gryphus, 2010.

PRADO, Tomás Mendonça da Silva. Técnica, metafísica e totalitarismo à luz


da tragédia. doispontos:, Curitiba, São Carlos, volume 12, número 01, p. 139-149,
abril de 2015

QUADROS, Mariana. Literatura e sociedade em Claro enigma: uma leitura de


razão da recusa, de Betina Bischof. Revista Garrafa, [S.l.], v. 6, n. 18, abr. 2008.
ISSN 1809-2586. Disponível em:
<​https://revistas.ufrj.br/index.php/garrafa/article/view/8556/7016​>. Acesso em: 11
dez. 2018.
RUFINONI, Simone. A Imagem da Melancolia: Carlos Drummond de Andrade
e Albrecht Dürer. Revista da Rede Internacional Lyracompoetics. , 2, 12/2013: 57-71
– ISSN 2182-8954

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