Corte Seco
Corte Seco
Corte Seco
Corte Seco é uma peça editada ao vivo a cada apresentação. A ordem de algumas
cenas e os cortes das cenas são feitos pela direção diante do público. O texto que
vocês vão ler é a versão de uma das apresentações da peça, na cidade do Rio de
Janeiro, em 2010.
Cenário.
Nove cadeiras empilhadas em um canto. Cinco delas com etiquetas de discursos narrativos.
Narrar, descrever, caracterizar, dialogar e interiorizar.
Uma grande mesa onde está sentada a equipe técnica. Direção. Diretor musical.
O publico entra. Os atores estão em cena, alguns são vistos pelas câmeras, circulam, falam
com o público e com a técnica. Cada um deles fala para uma parte específica do público, até
termos várias vozes simultâneas. Os textos estão relacionados com alguns personagens da
peça e com histórias da cidade.
Contagem. Eles param de falar. Apenas uma pessoa continua. Alguém pega a cadeira do
narrar e coloca para a Branca.
BRANCA (narrar) A minha avó e meu avô eles foram passar o carnaval em Cabo Frio com
minha mãe e o meu tio ainda crianças. No primeiro dia de baile estava aquela loucura... as
crianças estavam excitadas com carnaval, se fantasiando, se maquiando e o meu avô disse
assim pra minha avó: Vocês vão indo na frente que eu vou depois. Minha avó foi com as
crianças, curtiu o baile...
No final da festa uma mulher chegou perto da minha avó e disse assim: Vem cá.
Você quer saber onde é que está o seu marido? Ele está do outro lado da rua em outro baile.
A minha avó ficou muito irritada, claro, saiu de onde ela estava, atravessou a rua, entrou no
outro baile e viu o meu avô no meio de uma rodinha de mulheres dançando super feliz.
Naquela hora minha avó só conseguiu pensar na camiseta branca que meu avô estava
vestindo, cheia de marca de batom das mulheres em volta. Ela só conseguiu pensar que ia
ter que lavar aquela camiseta, tirar aquelas manchas com água sanitária. Sei lá! Qualquer
coisa da época.
Ela ficou tão louca com aquilo, tão nervosa que deu um soco nas costas do meu avô com
muita raiva. Ele virou, olhou para ela e não disse absolutamente nada.
Os dois saíram dali, entraram no carro e seguiram para o Rio de Janeiro, um do lado do
outro sem tocar mais nesse assunto, com as duas crianças no banco de trás.
RICARDO- O carro era um fusca verde-água e tinha um friso prateado em volta do carro.
CRIS – Criança,né?
CRIS - Ahhh, tinha um volantinho também. Sabe aqueles pequenininhos, anos 60 de couro.
FELIPE – Desgastado.
STELLA – (sentada na cadeira do diaogar) Vem cá! Eu já falei pra você que eu te amo! Não
falei?
RICARDO – Tava com o cano de descarga com defeito e fazia um barulho insuportável
Tatatatata.
FELIPE - Horrível!
BRANCA – (narrar) O meu avô, ele gostava de provocar a minha avó. Sabe quando a pessoa
está irritada e a outra fica cantarolando uma musiquinha só pra te irritar mais um
pouquinho? Pois é, o meu avô fazia isso com a minha avó. Ela do lado calada, irritada e as
crianças atrás gritando; Mas o carnaval não acabou, eu não quero ir embora, não vamos
embora pra casa! O carnaval não acabou!
STELLA – (dialogar) O negócio é o seguinte; eu vou parar o carro aqui na Ponte Rio Niterói,
eu vou descer e vou fazer uma coisa que só eu posso fazer por mim: Xixi!
MARJORIE – (narrar) Ele sai do carro e, logo em seguida, ele ouve uma freada e depois um
estrondo. Ele fica paralisado um momento de costas, vira e vê que um carro tinha batido na
traseira do fusca onde estavam a mulher e as crianças.
CRIS - O coração dela está disparado, estou sentindo na minha mão o coração dela bater
forte. Sabe quando o coração quer sair pela boca?
FELIPE – ( pegando a cadeira do caracterizar) A avó da Branca era uma mulher linda,
incrível, tinha 40 anos, usava um cachecol bonito que ela colocava assim.
BRANCA - Felipe! Eles morreram! A avó da Branca, a mãe e o tio morreram. Os três que
estavam no fusca morreram agora.
Silêncio.
DU - A Branca é uma mulher moderna. (pega a cadeira do caracterizar) Ela trabalha como
advogada, ou então, administra uma empresa. A Branca paga as contas dela desde os 17
anos. Ela sempre foi brilhante. Fez faculdade de administração, ou então de economia. Quer
dizer, a Branca é o tipo de mulher que todo cara gostaria de ter desde que não seja
inseguro. Branca!
Ele entrega a cadeira do caracterizar para ela.
BRANCA –Ela mede um 1,74m. Tem o cabelo preto muito cheio, pele branca, calça 37, 38...
DU – (junto com ela na cadeira do caracterizar) Quase 39, mas ela é bacana.
BRANCA - Ela está com sapatinho baixo com tirinhas e com uma calça jeans cinza.
DU - Ela foi uma boa filha. Ela tentou ser uma boa namorada....
DU - A Branca está andando na rua. Assim de longe você olha pra ela e fala: Cara, aquela
mulher é bacana, ela é legal.
BRANCA – (na cadeira do narrar) Ela chega em casa, coloca a chave na fechadura, abre a
porta. Ela tira os sapatos. Mas eu não vou tirar o meu agora, tá? E ela relaxa...
BRANCA – (narrar) Ai ela vai até a cozinha pega um copo d'água. Ela bebe esse copo d'água.
BRANCA – (narrar) Ela dá uma olhada rápida no jornal porque tem muita, muita coisa
triste... Ai ela vai até o quarto se olha no espelho.
BRANCA - ( sentando na cadeira do dialogar) Ok, ela diz. Ela diz bem alto pra ela mesma
ouvir: Nossa! Como sexo faz bem pra pele! Uma loucura isso!
DU - (na cadeira descrever) Na casa da Branca tem uma fechadura. Quer dizer, toda casa
tem. Só que na casa dela a fechadura é grande, de bronze, toda trabalhada.
BRANCA - (ela senta no narrar) Nesse exato minuto ela ouve um barulhinho de chave na
fechadura...
DU – (na cadeira do dialogar) E de lá. De onde ela está, ela fala: É você amor?
BRANCA - Oi Amor! Sou eu. (Du olha a cadeira da Branca, Branca olha também) Vou fazer
ele porque eu estou na cadeira do narrar, tá?
DU – (com a cadeira do dialogar) Eu continuo fazendo ela, então. Aconteceu alguma coisa?
Não era pra você ter chegado assim tão cedo.
BRANCA - Não! Ele diz pra ela: Não, não meu amor, eu tenho simplesmente a melhor notícia
do mundo pra te contar.
DU – Faz ela.
BRANCA - Sabe a lista, meu amor? A lista de adoção? Ela andou...Chegou a nossa vez.
Amanhã eu estou indo pra Porto Alegre, meu amor. E a gente vai ser papai e mamãe! A
gente vai ter o nosso bebê!
DU – (coloca a mão na cadeira do interiorizar) Puta que pariu. (Vai rápido para a cadeira do
dialogar) O que você tá pensando em fazer agora?
BRANCA – (santada na cadeira do narrar) Ele diz a ela: Eu.... eu já reservei a nossa
passagem. O nosso vôo sai amanhã às 7:30.
DU – (com a mão na cadeira do dialogar) Eu não tava esperando essa notícia assim.
BRANCA- Eu também não tava esperando. Eu recebi a ligação, eu fiquei tão maluco....
BRANCA – (para o público) Desculpa, eu não sei continuar esse cena porque eu não sei o
que ele poderia dizer agora quando ela diz que trabalha amanhã. O que ela diz? O que ele
responde a isso?
Ela dá um beijo na boca dele, ele se desvencilha, senta na cadeira do narrar e fala para o
público.
DU - A gente está no começo da peça. Essa deveria ser uma cena de amor, de paixão! Só que
não vai ser assim. Não vai ser assim. Ela fica um pouco desorientada, anda pela casa,
empurra uma cadeira, (descreve o que ela está fazendo) ele também não entende muito
bem a reação dela, porque afinal de contas essa deveria ser a melhor notícia que eles
receberam nos últimos anos...porque faz muito tempo que eles estão esperando essa
notícia. (ela senta ao lado dele na cadeira do dialogar) Eles estão há muito tempo
esperando esse filho. (ele fala para ela) Então ela olha pra ele e diz:
Pausa longa
BRANCA – Eu...eu tinha esquecido, eu tinha esquecido dessa lista, não tava contando com
isso agora, eu... me apaixonei por outra pessoa. Eu não estou preparada, não quero mais
adotar uma criança. Eu nem quero mais ser casada com você, sabe? Eu...eu preciso viver
outras histórias, eu preciso sentir que eu estou viva...
Ele a beija.
DU – (sentando a cadeira do narrar) Bom vocês podem achar que depois desse segundo
beijo, um pouco rápido, mas um segundo beijo, a coisa vai ficar um pouco mais leve, vai
ficar um pouco melhor, só que não vai... Não vai! Vai ficar cada vez mais barra pesada,
porque ela diz que não quer ter filho, e ele diz que ela não pode querer agora!
DU – (falando o tempo todo com a cadeira do narrar) Ela diz que está apaixonada por outra
pessoa. Ele não entende a atitude dela, ele fica decepcionado com ela.
Porque afinal de contas esse é o projeto de vida deles! Então, ele fala pra ela que ele vai
ficar com esse filho, sim! E aí, ele tem vontade de falar mais uma porção de coisas pra ela!
Tem vontade de falar que ela é insensível, tem vontade de falar que ela é volúvel...
DU - Ele tem vontade de falar, mas ele não fala! A única coisa que fala realmente é que ele
vai ficar com esse filho sim!
BRANCA - Você ta ultrapassando um limite. Você não tem o direito de julgar uma pessoa!
BRANCA - A gente está falando do acaso, sabe? Do acaso! De pessoas que se propõem a
alguma coisa, aí a vida interrompe e outra coisa acontece, sabe?! De coisas que a gente não
consegue controlar, que são cortadas....
DU – (segurando as duas cadeiras) Ela começa a perder o controle emocional, ela começa a
ficar perigosa! Ela começa falar muito alto, a falar atrás dele!
BRANCA - Estou.
DU – (pegando todas as outras cadeiras) Ah, você ta falando comigo? Então eu vou fazer
uma pergunta pra você. Agora! Eu gostaria que você respondesse com toda sinceridade.
Como você tá falando comigo se você não cadeira pra falar?
BRANCA – Larga essas merdas dessas cadeiras. Porque eu, Branca, estou tentando falar
com você, Eduardo!
Larga as cadeiras.
DU – Desculpa. Ele pede desculpa pra ela. Desculpa. Você pode falar porque eu estou te
ouvindo.
Ele olha as cadeiras decidindo qual discurso narrativo vai usar. Senta na cadeira do
descrever.
DU – (muda de cadeira) Todas as roupas femininas estão sendo colocadas dentro de uma
mala
DU - todas as saias...
Ele está com todas as cadeiras. Ela pega a cadeira do interiorizar e senta no fundo do palco.
DU – E essa mulher vai embora! Essa mulher que sonhava em ter um FILHO com esse cara,
mas que se apaixonou por uma outra pessoa, como todo mundo aqui ouviu! Ela vai embora!
E ele fica lá....recebe a ligação da lista de adoção... só que agora infelizmente...
DU – É ele vai ter que ser um pai solteiro. Bom, essa aqui é uma história real...
DU - Eu estou falando que eu e você, a gente não pode ter uma história!
DU - Não!
BRANCA - Que bom! Porque eu vou embora. E de todas as vezes que já fiz essa cena, é
primeira vez que eu, Branca, não me arrependo de ir embora! Então eu vou entrar no
camarim, eu vou pegar todas as minhas coisas! Não vou deixar nada aqui!
Vemos pelos monitores das Tv’s, ela entrando no camarim. Acompanhamos todas as ações
dela.
DU - É isso que ela faz! Ela vai embora. Ela vai até o camarim, pega todas as coisas dela e ela
vai embora.Só que ela volta! Depois de um tempo ela volta.
Depois de uns 2 ou 3 meses, ela volta, ela chega aqui nessa casa e e ele não está aqui, e ela
fica com uma sensação de familiaridade com esse lugar. Sabe? Porque lá, na casa do cara
que ela está apaixonada não está dando muito certo.
Então, ela fica com uma sensação de lugar nenhum. Uma sensação muito desagradável de
lugar nenhum. Bom, essa aqui é uma história de uma pessoa que ainda ama outra pessoa,
só que ela percebe que não tem mais volta. Aí o que ela faz?
BRANCA - Ela vai embora.
DU - Ela vai mesmo? Vem cá? Ela vai mesmo? Ela vai embora mesmo? Então tá! Só que essa
cara vai encontrar uma mulher madura que não vai sair assim não. Uma mulher madura
que vai bancar essa história de ter um filho com ele.
Ela vai para a rua. Vemos pelas câmeras de segurança, ela passando pelo foyer do teatro,
ele segue ela, ela chega na rua, ele também, eles discutem, ela chama um táxi, ele tenta
impedir, mas ela entra no táxi e vai embora. Em cena, todos os atores estão sentados nas
cadeiras formando uma fila em frente ao monitores das tv’s de frente para o público. O ator,
Paulo, vai ficar todo o tempo sentado na mesma cadeira até a metade da peça.
CHRIS JATAHY - Um
LEO - Quando você está numa situação de stress emocional intenso como essa. Eu não sei
se tem uma formula, mas você tem técnicas pra se controlar, para não perder a cabeça, não
perder o prumo...Por exemplo, quando a gente fala que alguém morreu, geralmente a
pessoa pra quem a gente está dando a noticia, diz: O
que? Ela ouviu, mas esse “o que?” é o tempo que ela precisa para o cérebro decidir qual é a
reação que ela vai ter, porque varia, entendeu? Dependendo do grau de afeto pela pessoa
que morreu. No caso de noticia de morte você pode, por exemplo, contar até dez...
Os atores levantam, alguns mudam as tv’s de lugar e outros começam a traçar caminhos,
cortes, espaços topográficos, com fitas crepes no chão.
LEO – Dez foi o tempo estipulado pelos estudiosos. Marjorie não me contesta, só ouve. Já no
caso de um descontrole, quando a pessoa está a ponto de perder o controle, o bom mesmo
é você provocar em você mesma uma espécie de dor...Por exemplo: morde a língua. Bate
com o cotovelo no móvel. Porque a dor te puxa de novo pro real, entendeu?
MARJORIE - Onde você leu isso?
LEO – Seleções.
LEO - Você não está acreditando? Isso é cientificamente comprovado, Marjorie MARJORIE –
Tá bom!
LEO - Eu vou fazer o seguinte. Eu vou fazer um teste com você. Vou te dar uma noticia
horrível. Quero saber como é que você reage a ela, tá?
MARJORIE – Tá.
CRIS - Quando a gente é pega assim de surpresa... A gente tem que ser muito educada.
STELLA – Por que que você nunca olha pra mim quando fala comigo?
CRIS - Eu tô olhando pra você meu amor, eu sou toda sua Stel inha! Eu te amo tanto minha
filha! Tira esse negócio do braço! (apontando para a fita crepe) Isso é horrível! Você está
em público, meu amorzinho, e você está de costas para as pessoas. Stella!
STELLA – Oi.
CRIS- Uma mulher tem ser exuberante, fina. Que isso? Que mão na cadeira é essa, meu
bem? Que coisa vulgar! Olha de frente, sorridente, olha bem nos olhos...
CHRIS JATAHY – Agora sim. Seis.
FELIPE - Marjorie, agora assim.... Eu estou apaixonado por você, eu queria me aproximar de
você, mas você é muito Marjorie pra mim.
FELIPE - Pode me ajudar! Escolhe um lugar pra eu te apertar...Eu juro! Eu quero te apertar.
MARJORIE – Escolhe.
RICARDO – O que?
FELIPE – Não! Não tem mais espera aí! Eu matei uma pessoa ontem e eu não tenho
dinheiro!
RICARDO - Quantas?
RICARDO –Vai com a roupa do corpo. Não vou ajudar você FELIPE – Então pega minha
mochila...
RICARDO - Eu dou Mãezinha, eu dou! Agora repassa, porque na hora você vai fazer merda...
sai!
MARJORIE - Um teste?
FELIPE - Eu sou aquele cara que ajuda a fazer a parte técnica... Marjorie eu te amo, olha só!
FELIPE - Eu te amo
MARJORIE - Então me seduz, me seduz.
CHRIS JATAHY - Um
LEO - Não precisa ser noticia ruim, pode ser noticia boa....Você ganhou na Megasena
acumulada.
Eles colocam as fitas crepes no chão, sem texto, criando movimentos de resposta espacial.
CRIS – Que remédio? Para com esse negocio de remédio Stelinha. Você não precisa de
remédio!
STELLA - Oi!
LEO – Nossa, você fez agora igualzinho a Dona Ana. Lembra da Dona Ana? Que morava do
lado da gente naquela vila em Botafogo?
LEO - Não! Dona Ana era uma gorda que tinha dois filhos. Um menino e uma menina. O
menino chamava Eric.
STELLA - O Ruivo?
LEO - Pois é! Você fez igualzinho a ela. Eu te chamei você olhou pra mim, ergueu a
sobrancelha, pois a mão na boca... veio a Dona Ana inteira na cabeça.
Impressionante!
LEO - A Dona Ana tomava conta da gente quando a mamãe saía. Lembra? A gente ia pra
casa dela...
LEO – Era vila, né? A gente ficava ali na frente. Ela dava lanche pra gente, tinha um bolo que
ela fazia... suco de laranja com açúcar....
STELLA – Molhadinho.
LEO – Fiquei com água na boca. Tinha também o marido da Dona Ana, como era mesmo o
nome dele? Era...
STELLA – Jaime.
LEO - Que aflição! Eu vou lembrar é....Jairo! Jairo! Seu Jairo! Seu Jairo que era marido da
Dona Ana.
LEO - Lembra uma vez que Seu Jairo quis ficar com a gente pra tomar conta porque a Dona
Ana também tinha saído?
LEO – A gente ficou com Seu Jairo. Ele quis brincar de fotógrafo. Lembra? Falou pra gente
vestir umas roupas, fazer uns personagens. Ele ficava fotografando, tinha uma câmera
grande... lembra?
STELLA – Lembro...
LEO - A gente improvisou, a gente fez com lençol, toalha. A gente fez... Romeu e Julieta, fez
caubói e mocinha...aí teve uma hora que ele falou assim: Agora vocês vão fazer Adão e Eva.
Lembra? Falou pra gente tirar a roupa.
STELLA - A gente ficou pelado tirando foto com homem adulto com 6 ou 7 anos, fazendo
posições?
LEO - É Stel a!
STELLA - Você achava isso legal? Você achava legal um homem adulto tirar foto com duas
crianças peladas?
LEO – Stel a, eu tava junto qualquer coisa eu te defendia STELLA - É super legal, inclusive é
um crime, né? Pelo amor de Deus! Léo! O que é isso? Como é que você deixa isso acontecer
Léo? Você é meu irmão mais velho!
STELLA - Léo pelo Amor de Deus! Eu não lembrava disso, eu não lembrava de jeito nenhum
que eu tinha sido abusada quando era criança!
LEO – Não! Ninguém falou que você foi abusada, ninguém disse isso!
STELLA – Eu fui abusada e não sabia
LEO - A gente nunca morou em Botafogo, Stel a! Eu falei pra você; Você lembra de uma vila
que a gente morou em Botafogo, tinha uma vizinha chamada Dona Ana? A gente nunca
morou em Botafogo!
RICARDO – Pede mãezinha! Mas você vai repassar. Você vai entrar lá e botar a cara do
velho na reta e gravar tudo, depois a pega essa fita e chantageia ele e a gente vai entrar na
grana!
STELLA - Você criou uma Dona Ana, um Seu Jaime, um caso de pedofilia?
STELLA - Eu lembrei exatamente disso. Isso aconteceu comigo, exatamente isso que você
falou aconteceu comigo. Tinha uma pessoa que fazia isso. Quando a minha mãe saía me
chamava pra tirar foto. Quando eu chegava lá eu tinha fazer umas coisas pra essa pessoa.
STELLA - Era meu padrasto Léo. Meu padrasto fazia isso que você falou. Quando a minha
mãe saía, ele me sentava numa cadeirinha e falava assim” Fofinha, vamos fazer uma
brincadeira, vou tirar uma foto, agora levanta um pouquinho a sua saia..
agora tira a calcinha, mostra o peitinho” Eu nem tinha peitinho, Léo!
Um dia ele falou assim; Me dá aqui sua mãozinha ,ai ele pegou a minha mão...
LEO - Eu tava brincando com você! Brincando com você! Era uma brincadeira e você
transformou nisso.Por que você sempre faz isso? Por que você tem sempre quer
contaminar tudo com a tua maluquice? Sabe qual é o seu problema?
Seu problema é que você não consegue resolver as coisas do seu passado.
Seu problema é que você fica empurrando pra cima dos outros aquilo que só diz respeito a
você.
LEO - Eu ainda não acabei de falar! Seu problema é que tudo tem que ser do seu jeito! Seu
problema é que você não fica satisfeita enquanto você não consegue estragar tudo!
LEO – Você só vai ficar falando isso? Foi sem querer! Com essa mãozinha no peito?
Vitima! Seu problema é se fazer de vitima. Seu problema é essa sobrancelha arqueada, essa
carinha de “não sabe bem o que eu estou dizendo”. Seu problema é coçar a testa assim,
sabe? Com essa unha vermelha postiça que você usa, eu odeio essa unha postiça que você
usa! Seu problema é que você usa unha postiça praa parar de roer a unha e você rói a unha
postiça!Seu problema é que você é obsessiva compulsiva! Seu problema é essa mão na
cintura! Parece uma xícara! Seu problema é esse cabelinho pro lado, caindo na testa
assim.Você não está um pouco velha pra usar esse cabelinho na testa? Essa franjinha? Essa
carinha de raiva contida que você faz pra mim! Seu problema é olhar para a platéia para
buscar cumplicidade “Vai me deixar sozinha aqui, com a mãozinha no peito?” Seu problema
é que você é dissimulada. Seu problema é essa fita crepe no pulso como se fosse uma
pulseira.
STELLA – Desculpa...
LEO - Seu problema é pedir desculpa abrindo os braços. Seu problema é estar assim
coçando a testa de novo, repetindo de novo o mesmo! Agora é o açucareiro, assim!
Seu problema é rir, quando eu to falando pra você uma coisa séria!
STELLA - Foi você que inventou uma história de pedofilia! Um caso de absurdo que não...
FELIPE – Ótimo! Eu tinha um professor de inglês que adorava contar piada pra mim.
MARJORIE - Felipe!
FELIPE - Oi Majorie!
MARJORIE - Você conhece aquela piada? O português foi jogar tênis e voltou descalço.
Pausa
FELIPE - O pessoal não entendeu. Enfim..aí no inicio das aulas meu professor particular
pedia um beijo pra mim, falava assim; Felipe, cadê meu beijo?
MARJORIE - Felipe, cadê meu beijo?
FELIPE - De vez enquanto ele pedia um abraço pra mim, ele falava assim: Felipe, cadê meu
abraço?
Eles se abraçam.
FELIPE – Isso.
MARJORIE – Tá.
FELIPE - Paulinho, você pode fazer uma luz legal aqui? Esse aqui é o pátio, tá?
MARJORIE - Tá
FELIPE – Ele dizia pra eu olhar pra cima e falava assim: Felipe, vamos ver a lua?
Eles se abraçam. Felipe por trás, e Felipe faz um leve balanço para trás e para frente com o
corpo.
LEO – Felipe!
FELIPE - É a gente ficava assim abraçado uns 10 ou 12 minutos... Bom, essa não é uma
historia minha, essa é a historia de uma amigo meu, eu estou só reproduzindo aqui no
espetáculo....
MARJORIE - Felipe, você já reparou ali na lua? Tem coelhinho desenhado ali na lua, olha!
Rabbit...
LEO – Que história é essa de professor de inglês? Da onde você tirou isso?
LEO – Ninguém ta entendendo. Não é só você. Isso não vai dar certo! (para o Du) Fala
alguma coisa, você ia fazer com a gente....
LEO - Paulo você não fez nada até agora. Vem aqui fazer com a gente, por favor!
DU - Ele vai fazer. O que a gente está tentando fazer aqui é sistema que tem que obedecer
algumas regras. Somos três atores, A, B e C. O Felipe é o A. Ele só pode falar se ele estiver
executando uma partitura. O que é a partitura?
DU - Isso, eu sou o C, eu tento ajudar no discurso dele, mas eu não consigo. E eu posso falar
de coisas que estão acontecendo do lado de fora ou então através das telas das TVs.
LEO - E nós, eu e ele, podemos interferir no discurso dele através de alguns códigos.
Se a gente fizer assim com na boca ele tem que se repetir. Se a gente passar a mão na
cabeça, ele tem que se contradizer.
DU - Vira de costas, ele cala! A gente tá tentando explicar que você só pode falar se você
estiver executando a partitura.
LEO - Ele não pode falar assim com você porque no sistema o C também é superior ao A.
Mas essa é mais uma regra que o Felipe está desrespeitado porque ele faz o que ele quer. O
Felipe é random, ele funciona no modo aleatório.
DU – Caraca!
DU - Por acaso isso é a sua partitura? Porque se isso for a sua partitura agora você pode
falar.
FELIPE – O B é você! Você quem tem o discurso autoritário. Você que é hierarquicamente
superior. Você tem que utilizar os códigos pra interferir no meu discurso. Porque sempre....
LEO – Melhor.
DU - Melhorou um pouco.
DU – Mas, ele tem razão quando diz que é você que tem que começar.
FELIPE - Eu não vou fazer essa palhaça dessa partitura sozinho não, porque vocês falam de
mim, mas vocês não fazem, vocês não fazem o que tem que fazer. O que tem que fazer.O que
tem que fazer. Não, o que deveriam fazer, não são obrigados a fazer mas deveriam.... porque
eu sempre sou excluído...o excluído, o oprimido nessa peça....
Du tira o Felipe da cadeira e o segurando com força tenta colocar ele deitado.
LEO - Não, não vai interiorizar não. É pra botar para fora.
Du consegue deitar o Felipe deitando por trás dele. Felipe canta uma musica em inglês.
DU - Falando em professor de inglês. Aquela historinha que você tava contando ali.
Que você falou que era de um amigo seu. Era você, não era? Era você que gostava de ficar
abraçadinho assim com professor de inglês que nem a gente está agora. O
Paulo levanta da cadeira que está sentado desde o início da peça e se inclina para ouvir o
que o Felipe quer falar com ele.
LEO - A saia?
PAULO – Não sei. Ele falou: pode pegar a saia pra mim?
FELIPE - Quero. Quero uma trilha sonora. Rodrigo, por favor, bota uma trilha em inglês.
Uma letra americana.
Rodrigo coloca a musica Blue Moon. Du e Felipe voltam para a mesma posição que estavam
antes. Paulo que foi no camarim pegar a saia e é visto pelos monitores em todo o seu
percurso, volta com a saia para o palco.
PAULO – Desculpa. Eu sei que vocês vão fazer, mas é que entrou essa musica, e essa musica,
essa musica me lembra um historia minha. Eu vou contar, tá?
Uma vez, eu levei um amigo meu pra dormir lá em casa. Eu tinha, mais ou menos, uns 16
anos. Ai, no dia seguinte, na mesa do café de manha a gente tava sentado; eu, ele, meu pai e
minha mãe. E eu... eu tava feliz. Meus pais não repararam, principalmente meu pai. Mas eu
tava feliz, porque no dia anterior, a noite no meu quarto, eu tinha sido pedido em
casamento.. Meu pai tava na sala, ele tava vendo um filme. Ah, não vou lembrar era.....Viva
Las Vegas com Elvis Presley, sabe? Tava tocando essa musica, e essa musica nunca mais
saiu da minha cabeça...No dia seguinte no café da manhã, na mesa do café, eu tava usando
uma aliança e a minha olhou pra aliança e ela olhou pra mim e a gente trocou um segredo,
mas meu pai nunca reparou....
Durante esse texto do Paulo. Cada ator pegou uma cadeira e espalhados pelo palco,
sentaram e começaram a fazer partituras físicas de pequenas ações cotidianas, enquanto
contam histórias de quando ouviram a mesma musica. Nos monitores vemos Branca
voltando pela rua para o teatro, ela entra no teatro e passa direto pelo palco para dentro
dos bastidores.Du sai atrás dela.
Ricardo ocupa o mesmo lugar do Du, voltando a deitar atrás do Felipe para continuarem a
cena.
RICARDO – Vamos Felipe. É o ultimo dia e você não pode contar uma piadinha sem cumprir
o que tava combinado. Era você, não era? Era você que gostava de ficar abraçadinho assim
com professor de inglês quem nem a gente tá agora? O que você quer? O que você quer?
FELIPE - Eu matei uma pessoa e eu pedi a sua ajuda. Vem cá. Por favor, Ricardo.
O abraço vai ficando cada vez mais violento. Felipe o abraça cada vez mais forte e Ricardo
tenta se livrar dele.
Ricardo o empurra. Ele cai no chão. Silêncio. Ele olha em volta e sai correndo do teatro.
Ricardo e Marjorie saem atrás dele. Pelos monitores vemos ele correndo e deitando no
meio da rua. Reação deles e das pessoas na rua. Ele continua correndo, Ricardo e Marjorie
atrás.Paulo puxa uma das tvs bem para perto do público.
PAULO - Eu não posso dizer o que está acontecendo porque eles saíram de quadro.
Pausa.
Silêncio.
CHRIS JATAHY – Vamos fazer o sistema, A B e C que a gente estava tentando fazer...vamos
fazer agora em uma situação familiar. O Felipe não vai voltar, então, Paulo vai fazer o A, o
filho, Leo segue fazendo o B, faz o pai e o Du já estava fazendo o C, faz a mãe ...
LEO - Qual é a graça Paulo? Essa risadinha Paulo, eu considero uma provocação comigo.
Sabia? Uma provocação pessoal.
DU - Provocação?
DU - Não acho que seja equivocada. É o jeito dele, ele fica, um pouco nervoso, e nem sabe
que solta essa risadinha
PAULO - Posso falar? Você sabe que eu...quando era pequeno, eu achava que você era linda.
LEO - Monstra? Que bom! Que bom que a culpa agora é toda sua, né? Graças a Deus, eu me
livrei do peso dessa culpa. A culpa não é minha! A culpa é toda dela.
DU - Acho que ele está falando monstra num outro sentido, monstra “de grande”.
Não, é? De protetora.
LEO - Acho que não foi bem isso que ele quis dizer.
PAULO – Foi sim. Foi de super mãe. De protetora. Eu te admirava muito. Sabe, eu achava
que a beleza do mundo era você...(Léo faz o código para ele contradizer) quer dizer a
estranheza do mundo era você. Eu, eu tinha orgulho. (Du faz código para ele repetir) Eu
tinha, eu tinha orgulho de você. Tinha um orgulho.
PAULO – Você ta me sacaneando? Eu tô aqui pra você ficar brincando com a minha cara. É
isso?
Os três monitores das tv’s estão em volta deles. Vemos o Felipe pelos monitores entrando
no teatro por uma porta lateral.
PAULO – Hein?
DU – Não.
DU - Você não pode sentir falta dele. Ele está sempre aqui. Ele está aqui o tempo todo.
LEO – Eu queria que você soubesse, eu queria que você soubesse. Você ta brincando
comigo?
PAULO - Desde criança tudo que eu fiz foi em relação a você. Eu não sei se você entende
isso.... eu não sei se quando você conversa comigo se você me ouve...se você me olha de
verdade.
DU – Fala!
LEO - Isso é uma pergunta ou uma afirmação? Primeiro você diz preciso me explicar.
DU - A primeira foi uma afirmativa. Eu preciso me explicar. Ai, você olha para ele e ele fica
confuso e pergunta....
LEO - Se você quer falar nós estamos aqui pra te ouvir. Esperando uma explicação.
Esperando qualquer coisa.
PAULO - Eu não queria ser que nem você. Eu preferia ser que nem ela. (Leo faz o código
para ele contradizer) Quer dizer...Não é quem ela... Não é que eu não queria ser que nem
você... É que eu não posso.
LEO - Você quer ser ela por causa dela? Ou você quer ser ela por minha causa?
DU - Olha lá o Felipe olhando! Olha lá! Tá olhando! Vai fazer alguma coisa... ta fumando no
camarim. Ele sabe que isso não pode...
PAULO - Eu queria ser ela.
LEO - Eu queria ser ela. Eu queria ser ela. Eu queria ser ela!
PAULO - Eu não entendo porque você faz isso! Eu tento falar sério com você...
LEO – Eu também tento falar serio com você e você não me responde! Eu perguntei se era
por causa dela ou se era por minha causa e você não me responde! Você foge!
PAULO - Os dois.
PAULO - O que você não tá entendendo então? Estou perguntando se ele me ama.
Só! Agora!
PAULO - Eu tô tentando explicar pra vocês dois que eu não me sinto bem comigo mesmo.
Que eu nunca me senti bem comigo mesmo. Eu nunca me senti bem com vocês. Eu tô
tentando fazer com que vocês ouçam! Agora. Eu estou...O que foi?
DU – Desculpa. Eu me perdi. Isso aqui que você está falando é sobre nós? (aponta para ele e
o Paulo) Sobre nós? (aponta para ele, Paulo e Leo) Ou sobre nós?
LEO – Paulo! Todo mundo aqui vai embora no meio, deixa a gente falando sozinho.
Paulo entra no camarim. A luz está baixa, Felipe ajuda ele a trocar de roupa. Ele se despe.
Coloca uma calcinha de mulher. Veste uma saia, sem camisa. Coloca sapatos bem altos.
Volta para o palco. Anda até o Léo, se aproxima devagar dele. Volta a musica Blue Moon.
Paulo abraça o Leo. Aos poucos, Leo começa a empurra-lo. O
abraço fica violento. Paulo agarra Léo, eles caem no chão. Leo o empurra violentamente.
Paulo fica deitado. Leo volta a se sentar. Paulo levanta devagar, tira os sapatos e senta
olhando para o publico.
(para os outros atores) Alguém quer entrar no meu lugar? Alguém quer entrar no meu
lugar? (para o publico)
LEO – Ninguém vai entrar no seu lugar. Você vai continuar sozinho.
CRIS - Meu amorzinho, saí do escuro, meu amor! Isso! Se ajeita, uma mulher tem estar
sempre linda. Sempre arrumada, perfumada, exuberante, não se apóia não.
Ajeita o cabelinho na testa, não está muito bom. (pega uma garrafa de uísque) Trouxe pra
você Stelinha, pra você se animar.
STELLA – Nossa!
CRIS - Pra você ficar assim espontânea. Pra dar um ar assim engraçado....
CRIS – Verdade.
CRIS – 48....
STELLA – Linda!
STELLA- Linda.
CRIS – Obrigada.
STELLA - Você é uma pessoa que consegue economizar seu choro para os momentos mais
interessantes! Você é uma pessoa que gosta mais dos seus cachorros do que das pessoas.
STELLA - Seus dois lulus da pomerânia que você leva pra todas as viagens internacionais.
Josef e ...?
CRIS – Scarlatt.
STELLA – Scarlatt! Você manda um homem que eu nunca vi na vida pra me pegar na escola!
Você é uma pessoa que fica deitada uma semana só de calçinha e sutiã, sem nada pra fazer.
Você é uma pessoa que expõem seus filhos, você é uma bêbada!
Stella arranca da cadeira a etiqueta do caracterizar e coloca no peito da Cris. Fala com ela
apertado os peitos dela cobertos pela etiqueta.
STELLA - Você é uma mulher Rivotril, uma mulher Olcadil, uma mulher Lexotan, uma
mulher silicone! Ela é uma pessoa que desde que eu me lembro de mim ela vai todo final de
semana para Araras, e fica lá! Ela é uma pessoa que consegue controlar cada musculozinho
do rosto dela, embora ela tenha colocado botox nele inteiro.
STELLA – E eu? Eu não! Inclusive eu não gosto disso, sabia? Eu tenho vergonha de você! Eu
não gosto de bebida, eu não gosto de chegar na minha casa e ver a minha mãe com uma
calcinha enfiada na bunda, dormindo até meio dia com a porra da porta aberta! Essa sou eu,
não sei porque, não tem explicação: eu sou assim! Me desculpa! Mas você não, não é? Você
gosta de tudo! Sabe por que?
Porque você tem tudo! Você compra tudo! Você tem o que? Dez cartões de crédito, são dez?
Você tem um Volvo mamãe!
STELLA - E você tem um marido, você tem uma marido patético, ridículo...
STELLA - Idiota, careca tatuado que se acha uma garotão, que fica chorando no quarto do
lado e chama você de Mãezinha!
STELLA – Ele chama você de mãezinha! Você é uma mulherzinha que dá...
CRIS – Chega!
STELLA - ...dá pra te escutar sabia? Dá pra te escutar!
DU – Que direito?
RICARDO – De fazer o que você fez!
DU – O que eu fiz?
DU - Eu não te esperei? A única coisa que eu fiz desde criança...Aliás a única coisa que eu
faço é ficar te esperando! Você queria que eu esperasse mais o que? Que
ninguém sabia onde você estava! Tudo bem que você é um cara do mundo! Muito bem
sucedido, ganha dinheiro ninguém sabe como... Agora vai chegar aqui falando que eu não
tenho direito? De que direito você tá falando?
Quem é que ficou aqui esse tempo todo? Com ele. Cuidando dele? Acalmando ele?
Trocando as fraldas dele quando ele já tava muito velho e fudido pra ir ao banheiro
sozinho? Quem foi? Foi você? Não, não foi você. Não foi você! Ninguém sabia onde você
tava. Acha que foi fácil pra mim? Acha? Acha que foi fácil pra mim quando eu tive que
assumir que eu não dava mais conta sozinho? Acha que foi fácil quando eu tive que
conversar com ele? Falar pra ele? Deixar ele lá sozinho...Você acha que foi fácil? Não!
Porque trocar as fraldas dele, isso não importa! Não importa! Não importa se eu tinha que
ficar fazendo cafuné, se eu tinha ficar sussurrando no ouvido dele até ele adormecer
enquanto o remédio não fazia efeito. Isso não importa!
Importa é que você vai chegar aqui agora na minha casa, na minha cara pra me falar que eu
não tenho de direito! Eu quero saber de que direito que você tá falando? E que direito você
tem de fazer isso? Você acha que é muito fácil pra mim ter que assumir que a gente nunca
se entendeu? Eu e você! Que a gente nunca deu um abraço? Que nosso Feliz Natal é um
aperto de mão? Por que você voltou?
STELLA - Você não ajuda ninguém, você nunca me ajuda. Você gosta de cachorrinho mãe,
de filhinho você não gosta.
STELLA - Ela não ama ninguém, ela não olha ninguém, ela não fala com ninguém.
STELLA – Fala!
STELLA – De outro jeito. Quero aproveitar esse momento, eu queria fazer um brinde!
Queria propor um brinde a uma pessoa maravilhosa, a uma pessoa muito importante na
minha vida. Uma pessoa que, enfim, que me transformou no que eu sou, uma pessoa que
me formou, uma pessoa que dançou valsa na minha festa de debutante. Enfim! Queria
brindar a você! Meu querido! Maravilhoso padrasto amado! Saúde!
STELLA – Você não tá entendendo? Você não tá lembrando? Você quer uma mãozinha? Pra
lembrar? Quer? Vou te ajudar, vou te dar uma pista. Gente eu queria propor um brinde ao
abuso! Um brinde a você meu.. ao abuso! Aos anos de abuso que eu vivi...
CHRIS JATAHY – 8
DU – Ótimo! Por que você voltou? Hoje você finalmente vai falar porque que você voltou. O
que você veio fazer aqui?
DU - Você não conseguiu? O que você consegue? O que você conseguiu até hoje?
RICARDO - ....eu me escondi atrás de banca de jornal e fiquei te olhando passar. Eu fiquei
escondido igual a um idiota... Porque eu não consegui...
CRIS – Ricardo!
Ricardo sai de cena, Cris vai atrás, eles entram no banheiro. Ele chora, ela coloca a cabeça
dele debaixo do chuveiro. Branca entra em cena arrumando as cadeiras para recomeçar a
primeira cena.
BRANCA – Du, eu preciso refazer a cena da adoção. Eu preciso tentar. Aquela mulher,
aquela mulher do início,da peça, ela.. ela está confusa... ela está perdida...ela
BRANCA – Não. ela não sai. (para Stel a) Você não faz essa cena.
STELLA Eu tô te incomodando?
BRANCA – Não, você não está me incomodando. Mas eu falei; Du, eu quero refazer a cena da
adoção é importante pra mim. Eu quero retomar essa cena e..
Ricardo que voltou do banheiro também entra em cena BRANCA - Vocês não fazem essa
cena. Você também não faz essa cena.
RICARDO - Você está bem?
BRANCA – É...
BRANCA – Oi?
Pausa
BRANCA - Eu estou parada na sua frente, eu estou com as minhas mãos tensas. Eu relaxo a
minha mão, eu fecho os meus olhos, eu aponto pra eles. Abaixo a minha mão direita. Eu me
sinto sufocada, não é nada pessoal tá? Eu preciso me afastar, eu olho pra você e vejo o Du
ao seu lado. Eu caminho com perna, direita esquerda, direita, esquerda. Viro. Vejo o Du.
Vejo você. Agora eu penso apontando a mão pra minha cabeça o que eu vou falar, porque eu
não sei por onde começar...
RICARDO- Ele está de calça jeans, cinto amarelo. Ele está com anel no dedo e outro
machucado. Ele tem 44 anos.
BRANCA - Como é seu nome?
RICARDO - Ricardo
RICARDO - Oi mãe.
BRANCA - Sabe porque eu quis refazer a cena da adoção? Eu queria dar um outro final pra
aquela história, sabe? Queria tentar, quem sabe, um final feliz. Mas talvez ela não tenha um
final feliz. Porque é assim, né? Mas eu te agradeço, obrigado por ter entrado em
cena....Obrigado! Na verdade, eu adoraria que alguém me encontrasse na rua e dissesse: Oi,
eu acho que você é minha mãe e eu pudesse acolher esse alguém e dizer: Que bom.. Que
bom que eu sou sua mãe. Vem pra minha casa, tem um quartinho lindo pra você lá. Você
precisa de afeto?
Afeto todos os dias. Eu vou estar sempre aqui, sempre! Eu vou estar sempre do seu lado,
todos os dias. Você pode contar comigo. Você vai se sentir seguro. Você vai se sentir amado,
porque agora eu sou sua mãe. Eu sou sua mãe, e é isso que importa.
DU – Não vai ter mais passeio de mão dada. Não vai ter mais nana neném. Não vai ter mais
acordar a noite para ver se está tudo bem. Não vai ter mais fralda diurna, noturna, não vai
ter mais assadura, Hipoglós, cólica. Não vai ter mais parquinho, nem primeira papinha. Não
vai ter mais....
MARJORIE - Vamos?
FELIPE - Vamos?
MARJORIE – Jantar?
FELIPE - Sair?
MARJORIE - Isso
FELIPE - Ótimo
MARJORIE- Japonês?
FELIPE – Não.
MARJORIE – Não?
FELIPE – É caro!
MARJORIE – Eu pago.
MARJORIE - Eu sei.
MARJORIE – Então.
MARJORIE – Felipe.
MARJORIE – Desculpa.
MARJORIE - Desculpa
FELIPE - Um beijo.
MARJORIE – Cafona.
FELIPE – Cafona?
MARJORIE – Achei.
MARJORIE – Não.
FELIPE – Maravilha
MARJORIE – Velejar.
FELIPE – Navegar.
MARJORIE – Isso.
FELIPE – Arrasar.
MARJORIE – Aceita.
FELIPE - Lá no japonês?
MARJORIE – O seu.
FELIPE - Qual é?
FELIPE - Ridícula
MARJORIE – Dá sim.
MARJORIE - Eu te amo.
FELIPE - Jura?
MARJORIE – Juro.
FELIPE – Um galetinho?
FELIPE – O japonês?
MARJORIE – é.
MARJORIE – E daí?
MARJORIE – Dez?
FELIPE – É...
Ele não consegue responder.
Música. Plot. Improviso a partir de uma matéria de jornal do dia, usando as cadeiras.
BRANCA – (descrever) Caixa econômica. Niterói. Icaraí RICARDO (narrar) Tem uma
senhora vestida de freira se encaminhando para a fila BRANCA (descrever)– Filas. Filas.
Muitas pessoas, pessoas nervosas.
PAULO (caracterizar) Ela deve ter uns 77 anos, mais ou menos, uma senhora baixinha. Está
tensa.
BRANCA (descrever) É a fila dos idosos, a fila que anda mais rápido.
1.800.000,00.
RICARDO ( narrar) O caixa pede para ela esperar um pouco, e some. Ela fica sozinha.
RICARDO (narrar) Ela levanta a saia e sai correndo. É agarrada pelos policiais. Cai uma
arma que estava escondida na roupa no chão.
STELLA – Hein?
PAULO – Desmaia.
RICARDO (narrar) – No dia seguinte sai nos principais jornais. Uma senhora de 77
anos se disfarça de freira e vai na agencia em Niterói para sacar 1.800.000,00 se passando
por uma outra freira, verdadeira, de Campina Grande.
BRANCA – (descrever) Uma foto em preto e branco de uma freira na capa do jornal.
CHRIS JATAHY - 4
CRIS - Eles são um casal, sensacional. Ela é do lar, uma dona de casa. Ela tem uma filha que
ela ama muito. Ela dois tem cachorros que ela adora.
RICARDO - Ele é que é um marido dedicado, porque ele da a ela tudo que ela pede.
Porque com ele é assim: pediu, ganhou na hora, não tem conversa CRIS - Verdade, ele é
businessman. É um homem rico.
RICARDO - Ele tem uma boate, eles gravam trechos dos clientes fazendo sexo pra
chantagear depois.
CRIS – É uma boate, uma boate bacanérrima em São Paulo, no bairro de Moema, uma boate
grande, chique. Tem uns quartos com umas câmeras de segurança que ninguém vê....
CRIS – Quando faz assim e bota a mão pra alto. Eu fico louca!
CRIS - É eu quero dinheiro! Ações da Dow Jones. Eu quero ser rainha da bateria.
RICARDO - Eu pago!
CRIS- Você paga? Quando você diz que paga eu fico louca.Ah eu quero Lacroix, Channel,
Dior... Ah! tem uma bolsinha, uma bolsinha na Louis Vuitton, é baratinha.
RICARDO- Eu dou.
Não! Mas peraí! Que papo de carinho é esse? Você vai me fazer carinho?
RICARDO - Bota a cara na reta. Não tira a cara da reta. Não é pra ser amoral?
Cospe de novo.
RICARDO - Acabou, eu não te dou mais! Vai dizer que me ama? Vai? Quer? Pede.
CRIS – Esquece.
RICARDO - Você vai vir de quatro e vai pedir. Vem de quatro e pede!
CRIS – O Paulo!
RICARDO – Volta! Sustenta! Você não ta sozinha! Vai pedir com o prato na mão.
Paulo entrega um prato para ele. Ele joga no chão perto dela.
CRIS – De verdade! Abaixa! Filho da puta! Abaixa...quero ver pedir daquele jeitinho que eu
gosto.
CRIS - Assim...
Eles sentam e ela enfia o dedo machucado dele nela. Eles não tem mais para onde ir na
cena. Ela olha para o público
CRIS - Eu tô constrangida...
Só tem um camarim e está muito apertado! Eu preciso ir lá para fora. Tem 6 milhões de
pessoas lá fora, tem muita gente nessa cidade, tem muito teatro, muito cinema, muita faixa
de pedestre, muito sinal de trânsito, muito radar, muito túnel, viaduto, muito orelhão
quebrado, muita operadora de celular, muito restaurante, muito restaurante de fastfood ,
muita Kone, muito Yogo, Yogoberry, YogoFrut, muita coisa, muita coisa, muita gente, muita
manchete jornal, muito fenômeno climático, muito alagamento. Oi Leo! Muito desabamento,
muito alagamento, muito terremoto, muita nevasca, calor, homem bomba, guerra, muito
trânsito, muita gente dirigindo seus carros sozinha, ninguém me dá carona, muita gente
conectada, muita gente trancafiada nos apartamentos conectada nos seus computadores,
muito e-mail, muito gmail, orkut, facebook, blackberry, muito walkman, discman, google,
google google wearth, google maps, google street view, I pod, I phone, I book, I movie, I
treack, ai, ai, ai
FELIPE – Tô.
LEO – É melhor apagar, ambiente fechado pode incomodar as pessoas. Sabe qual é o seu
problema Felipe? O seu problema é que você não consegue se controlar. O
seu problema é que você tem muita coisa a dizer mas você não consegue dar um
encaminhamento lógico pra isso, entendeu?
Alguém quer entrar no meu lugar? Quer entrar no meu lugar? (para o público) Alguém quer
entrar no meu lugar?
Silencio. As vezes alguém do público entra....quando não, Felipe levanta, Paulo se senta na
cadeira que está ao lado do Leo, repetindo a formação da cena do pai e do fil ho. Entra a
musica Blue Moon.
DU - Essa musica lembra o dia em que ela voltou lá pra casa. Porque ela voltou.
Ela voltou diferente, voltou com mais facilidade pra ser feliz. Depois de um tempo que a
gente estava junto, umas duas ou três semanas depois, ela acabou dormindo lá em casa e
perdeu a hora, e ai eu fico pensando que se ela não tivesse voltado pra me dar mais um
beijo antes de ir embora, e se nessa hora eu não tivesse abraçado ela e tivesse pedido pra
ela ficar só mais um pouquinho, e se ela tivesse ficado, e se a luz do sol não tivesse batido
tão forte no sinal exatamente na hora em que o táxi avançou... ela podia estar aqui ainda... E
eu fico lembrando o telefone tocando, e a pessoa do outro lado dando a noticia do
acidente... e dizendo que ela tinha morrido... E a partir daí, eu não lembro bem, só uns
flashes... e eu fico esperando que passe, mas não passa...não passa! Não passa....
Eu sabia o que tinha acontecido. Eu não queria falar, mas quando eu vi eu tava falando....era
como se uma outra pessoa estivesse falando por mim...
Os atores começam a retirar as etiquetas das cadeiras e sentar em fila na frente do público.
MARJORIE - Eu vou ter que aprender uma cantiga de ninar. Eu acho que eu não sei
nenhuma, minha mãe nunca cantou nada pra mim. Na verdade, eu lembro de uma que era:
(canta) Mas tem letra isso?
STELLA - As pessoas ficam falando o tempo inteiro pra mim que elas acham que eu devia
tomar um remédio. Antidepressivo. Acontece que eu tenho preconceito com remédio,
então, nesse momento da minha vida a única coisa que eu estou fazendo por mim é terapia
Freudiana. Quer dizer, eu também faço fisioterapia mas é pro meu ombro direito, eu tenho
uma dor crônica aqui no meu ombro direito.
CHRIS JATAHY – Dez.
PAULO - Eu, eu queria falar sobre a solidão. Mas eu não sei o que dizer.
DU - Tem uma coisa que eu me arrependo, que eu queria ter dito e não disse... é que ela tava
linda, e que eu amava ela.
STELLA - A minha fisioterapeuta acha que deveria fazer uma terapia Reichiana, que é mais
corporal, e aí a gente descobriu a causa dessa minha dor. Eu e minha fisioterapeuta, que é
exatamente a tensão, energia negativa, baixo auto estima que eu jogo tudo pra cá, pra
região do meu ombro direito. Ela disse assim: Stella você deve tomar uma medicina
ortomolecular, eu tomo um floral, que é mais light. Ai eu considerei essa hipótese, fui olhar
na minha agenda, e eu descobri um coisa incrível sobre mim mesma. Eu descobri que eu
gasto todo o meu tempo com terapia.
RICARDO – Só queria voltar e encontrar tudo no mesmo lugar. Sabe quando você quer
voltar e encontrar tudo no lugar onde você deixou?
CHRIS JATAHY – Treze.
DU - Eu queria voltar e encontrar tudo no mesmo lugar. Sabe quando a gente deixa as
coisas e quer encontrar as coisas no mesmo lugar?
Não dá mais pra descobrir onde foi o ponto. Sabe o ponto onde tudo muda?
Tem um ponto em que vira a chave, assim, e muda para uma outra coisa. Achar esse ponto é
o mais difícil.
PAULO - Hoje em dia eu moro sozinho, e eu faço tudo sozinho. Eu vou ao restaurante
sozinho. AS vezes eu estou no restaurante...
Nos monitores das tv’s, Felipe aparece em close com um fundo azul, cheio de flores e folhas.
MARJORIE - Oi Felipe!
FELIPE - Oi Marjorie.
MARJORIE - Tudo bem?
MARJORIE - É lindo.
FELIPE - Ta lindo!
MARJORIE – Muita.
FELIPE – Azul! Eu sou apaixonado pela cor azul MARJORIE – É minha cor preferida.
MARJORIE – Tô.
FELIPE - Eu vi um terreninho aqui pra vender, a gente podia comprar. O que você acha?
Ele balança o fundo que parecia fixo. E revela a rua em frente ao teatro.
FELIPE – Marjorie.
MARJORIE – Eu vou.
MARJORIE - O que?
FELIPE - Um presente lindo
MARJORIE - O que é?
MARJORIE - Quero
Ele coloca na frente da câmera. As tv’s ficam azul. Ela pega um outro balão, como se fosse o
mesmo. Coloca na frente da barriga, como se estivesse grávida. Anda até o público,
confirma comigo se pode finalizar e fala para o público.