Bernardo - Penélope
Bernardo - Penélope
Abstract - According to the literary critic Gustavo Silveira Ribeiro, we live today an
important time for Brazilian poetry, with a growing interest of readers and publishers. It
is a diversified scene, crossed by intersections and tensions, in which the Greek and
Roman classic writers have a role as inspiration, paradigm for imitation and target for
contradiction. In this text, I'll analyze the reception of classic authors in the
contemporary Brazilian poetry through the image of Penelope and her odissey of
waiting in poems by Hugo Langone (Rio de Janeiro) and Ana Martins Marques (Belo
Horizonte).
Keywords - Classics’ reception, Homer, contemporary Brazilian poetry, Hugo
Langone, Ana Martins Marques.
1.Introdução
De acordo com o crítico literário Gustavo Silveira Ribeiro, em uma entrevista ao blog
Escamandro, publicada posteriormente como posfácio de sua coletânea de poesia
brasileira contemporânea A Extração dos dias,1 vivemos no Brasil de hoje um período
de vitalidade poética, no que diz respeito à qualidade do que se escreve, no crescente
interesse de leitores e editores, e no número cada vez maior de autores. Trata-se de uma
produção vasta, cuja divulgação foi facilitada pela internet (especialmente por blogs e
revistas online como a Modo de usar, Mallarmagens, Escamandro, Germina), que não
pode ser enquadrada em algumas poucas tendências estilísticas e temáticas. Nas
palavras de Guilherme Gontijo Flores, em sua entrevista ao blog Enfermaria 6,2 “arrisco
dizer que vivemos um momento impressionante, sobretudo na poesia brasileira, com
uma potência de poéticas muito diversas e, ao mesmo tempo, capazes de conviverem
como há muito tempo não víamos”.
Quanto à crítica literária, Ribeiro continua, ainda que persista em alguns casos a
tendência de julgar a produção poética nacional a partir dos valores artísticos do
modernismo de S. Paulo, o que explicaria parcialmente certa resistência à poesia
contemporânea, por outro lado, em geral, “a pluralidade de poéticas possíveis” e de
1
(2017) 208-9.
2
(2017). Disponível em http://www.enfermaria6.com/blog/2017/1/28/s-existe-cultura-plural-e-no-plural-
sergio-maciel-entrevista-guilherme-gontijo-flores
abordagens de leitura é bem aceita pela crítica. As mais variadas demandas e esperanças
acerca da poesia, Ribeiro afirma, hoje se misturam, sem que nenhuma delas possa
“circunscrever o que é ou deve ser um bom poema, um poema pelo qual se anseia, que
se faz necessário e comum, mesmo que surpreendente”.3
Em meio a essa pluralidade de vozes, tendências e influências, a recepção da
poesia clássica tem um lugar importante. Referências a mitos, obras e autores da
Antiguidade são recorrentes na produção de muitos de nossos poetas atuais, aparecendo
das mais diversas maneiras: como inspiração, alusão, paródia, contraposição, etc. Desde
a fundação da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos em 1985, a área passou por um
notável período de expansão na universidade brasileira, em uma “saudável contramão”,
para usar a expressão de Paulo Martins, 4 da tendência de encolhimento em diversas
partes do mundo. Além disso, nos últimos anos, tem se destacado um crescente interesse
pela tradução poética de textos antigos, alguns dos quais chegaram a ganhar importantes
prêmios literários, como a Odisseia de Trajano Vieira, vencedor do Jabuti de 2012, e os
Fragmentos Completos de Safo de Gontijo Flores, vencedor do prêmio da APCA de
2017, entre outros. Esse estado de coisas influenciou diretamente parte da produção
poética contemporânea: alguns poetas da nova geração são também classicistas, como
Érico Nogueira e Guilherme Gontijo Flores. No entanto, essa não é a única explicação:
deve haver, dizia Fernando Pessoa como Ricardo Reis 5, no mais pequeno poema de um
poeta, qualquer coisa por onde se note que existiu Homero. Isso é verdade também no
Brasil de hoje.
10
Em 29 de novembro de 2016. http://revistamododeusar.blogspot.com/2016/11/oswaldo-martins.html
11
3 de abril de 2014. http://revistamododeusar.blogspot.com/2014/04/jeanne-callegari.html
12
Eis alguns desses poemas:
as embarcações secas
o busto de peixes carcomido
a água silenciada no abismo
“Qual um historiador”
Não se sabe que é cruel o mar
Até que se prostrem Penélope
Dido, Mônica, às suas margens
Até que se prostrem onde o mar toca a costa
E azul nenhum vale a terra firme
Que talvez florirá hoje, amanhã
13
A respeito desse vasto tema, cf. por exemplo, Page (1955), 126; Kirk (1962); Austin (1975); Doherty
(1995), 32-54 e Zerba (2009).
14
Renaux (2009) 139 fala do “lugar e autoridade da posição masculina, tão aparente na natureza patriarcal
da mitologia grega e concretizada na poesia homérica”, em especial no episódio do enforcamento de doze
escravas a mando de Odisseu.
15
Sobre Penélope nos dois romances, cf. Dumith (2012).
16
“Penélope”, publicado em Poesia Reunida, 2008 e, anteriormente, em As purificações ou o sinal de
Talião, 1981.
17
Com um brevíssimo poema, “Penélope”, publicado na Modo de usar
(http://revistamododeusar.blogspot.com/2014/04/jeanne-callegari.html ): a mão direita escreve / a
esquerda apaga.
Em mil anos.
“Penélope” (I)
De dia, malhas,
de noite, falhas
20
É claro que a Penélope de Homero é também o fruto de uma tradição, a multissecular tradição oral dos
aedos gregos. No entanto, é uma figura fundadora da tradição literária escrita do Ocidente e, de qualquer
forma, a primeira a ser nomeada na série das três mulheres citadas no poema de Langone.
O poema, que se inspira na trama concebida por Penélope para adiar o seu
segundo casamento, a trama da mortalha de Laertes, que ela tecia durante o dia e
desfazia durante a noite, estrutura-se justamente nessa oposição entre dia e noite. Como
observa Pietrani,21 enquanto as palavras ligadas ao dia fazem parte do campo semântico
do tecer, as palavras da noite se encontram no campo semântico da “desconstrução, do
destecido, do destexto”. A alternância entre dias e noites sugere a passagem dos dias,
consumidos na espera por Odisseu, enquanto o verso final, que fala das falhas da noite,
manifesta o quão precária é a sua situação.
Mas, além do jogo de oposições, o poema é também marcado por ambiguidades.
Tanto as palavras do par tramas / traças quanto de malhas / falhas podem ser lidas
como verbos ou substantivos. Além disso, a palavra tramas, tomada como substantivo,
pode indicar a trama do tecido, mas também trama enquanto enredo ou, ainda, enquanto
maquinação, expressão da métis. Por sua vez, traças significaria tanto riscas,
delineados, bem como o inseto que desgasta tecidos e papeis, e que é o símbolo por
excelência do poder corrosivo do tempo. Do mesmo modo, a palavra malhas, tomada
como verbo, encontra-se tanto ao redor do campo semântico do tecer, fazer malhas,
quanto do dizer: malhar enquanto falar mal de alguém.22
A partir dessas ambiguidades, o poema se abre à multiplicidade de leituras.
Pensando as tramas e traças, malhas e falhas como palavras que se encontram na esfera
semântica do lógos, o poema, seguindo uma tradição interpretativa da Odisseia, torna-
se um texto sobre a própria atividade literária, da leitura, da escrita e da crítica, que,
entre dias e noites, se compõe de falhas e tentativas. Por outro lado, devemos notar que
o nome de Penélope aparece apenas no título, o que pode sinalizar tanto que o poema
fala sobre ela quanto que ela não é mais que uma figura inspiradora que, no entanto, por
uma astúcia da mimese, para falar como José Guilherme Merquior, na qual “a
representação do singular logra significação universal”,23 sua condição passa a
representar a própria condição humana, marcada por tramas e traças, sedas e perdas,
malhas e falhas.
Formalmente, essas ambiguidades são também significativas. Se lemos essas
palavras como substantivos, o poema aparece como uma descrição poética de um estado
de coisas, em terceira pessoa. Mas, se as entendemos como verbos de segunda pessoa, o
poema se torna uma interpelação: é o poeta que fala a um interlocutor, que lhe conta a
21
(2015) 306.
22
(2015) 306.
23
Merquior (1997) 8.
respeito de suas tramas e traçados, críticas e falhas. A identidade do interlocutor
também é aberta: será uma figura anônima, o próprio poeta a falar para si mesmo, o
leitor ou, ainda, Penélope? Considerando a última opção, o poema de Marques faria o
movimento contrário ao de Langone. Enquanto neste estamos a ouvir Homero, naquele,
somos nós, no presente, que nos dirigimos a ele, que contamos a Penélope, personagem
sua, o que ela está a fazer.
“Penélope” (II)
A trama do dia
na urdidura da noite
enquanto teço:
a fidelidade por um fio.
“Penélope” (III)
24
(2015) 105.
25
(2018) 62.
De dia dedais.
Na noite ninguém (Marques (2009) 125).
“Penélope” (IV)
Neste poema, “Penélope tem voz, enfim, para contar o que experienciou durante
sua longa espera de vinte anos”,30 mas uma voz que se constrói em negativo: o poema
não fala tanto do que ela disse, mas do que ela deixou de dizer. Para falar com Santos e
Brandão, ele “deixa claro o silenciamento pelo qual a mãe de Telêmaco passou”, sendo
“sobre o silêncio, sobre a fala que Penélope não tem na Odisseia”.31 Encontramos aqui
um outro contraste a estruturar a primeira parte do texto, aquele que existe entre as
viagens de Odisseu e a espera de Penélope, sugerindo, a princípio, uma falta de sintonia
entre os dois: enquanto o coração de Penélope estaria entregue ao sossego, o de Odisseu
balançava em viagem; enquanto ela se consumia na noite, ele atravessava distâncias;
enquanto ela enfrentava noites à só, ele percorria corpos encantados de mulheres de
línguas estranhas, mortalhas da língua comum que unira os esposos.
Esse distanciamento, Penélope não diz, seria causa do amortecimento da
memória. Seria isso, não a pressão dos pretendentes, a causa da fidelidade por um fio?
A memória de Odisseu, que por primeiro ardia, transforma-se em lembrança remota e,
por fim, em esquecimento. No entanto, apesar de tudo, eles se encontram no final. Em
um revés inesperado, é a solidão, experimentada de muitas formas, mas sempre
hospitaleira, que acaba por os unir.
“Penélope” (V)
30
Santos e Brandão (2017) 6019.
31
(2017) 6020.
No poema V,32 Penélope finalmente ganha sua voz. Se entendemos que é ela que
ali fala, percebemos que, tomando os poemas em conjunto, temos um crescendo: a
tímida primeira pessoa do segundo poema é seguido pelos não-ditos do quarto até que,
enfim, ela é capaz de se expressar. E o que ela nos conta é que também sua espera é
viagem, mas, ao contrário da jornada de Odisseu, uma viagem sem retorno. A
permanência do espaço – Penélope não sai de Ítaca – faz contraste com a diferenciação
do tempo. Os dias de solidão não serão recuperados. Quantas vezes a mortalha foi tecida
e destecida? Quantas vezes a expectativa da espera, manifesta no rito dos risos, em
cabelos trançados no coração veloz, não foi frustrada? A única flor nesta jornada, para
ela, é a própria espera, uma espera que tinge com a sua melancolia todas as coisas,
pondo em um mesmo copo o vinho tinto e a água do mar.
“Penélope” (VI)
E então se sentam
lado a lado
para que ela lhe narre
a odisseia da espera (Marques (2009) 142).
Penélope aqui não apenas expressa o que viveu em sua odisseia da espera, mas o
narra a um outro que a ouve, o próprio Odisseu, objeto de suas expectativas, que
finalmente está de volta e que se senta ao seu lado, como um igual e um próximo, para
que ela possa falar. Poderíamos, a primeira vista, pensar que Marques está a inverter a
lógica da Odisseia. Afinal, seria Odisseu o personagem a relatar suas aventuras.
Entretanto, como nota Manzoni33, “mais que uma criação em sentido estrito, os versos
de Penélope VI são, antes, uma paráfrase quase direta da cena que se dá ao final do
vigésimo terceiro livro da Odisseia. Lemos, assim, no texto homérico, no final do
tricentésimo primeiro verso, “prós allílous enéponte”, “narraram um ao outro”(...) as
aventuras e os dissabores do tempo decorrido”. Não se trata, assim, de uma resposta a
Homero, mas de uma escuta atenta. O que Penélope, entretanto diz ao marido? O poema
não nos diz, mas não porque Marques prefira omitir o que foi dito: não seria toda a série
poética o relato, tímido a princípio, acusatório em certo momento e, por fim, efusivo, de
Penélope a Odisseu a respeito de sua jornada da espera?
5.Conclusão
32
(2009) 140.
33
(2018) 64.
Considerando em conjunto os poemas de Langone e Marques, vemos que estamos
diante de duas Penélopes: da primeira, recebemos nossa voz para que possamos nomear
a experiência; por sua vez, à segunda, emprestamos nossa voz para que ela nos narre a
odisseia da espera. Estamos diante de duas atitudes diante de Homero que acredito ser
possível generalizar, de modo a entender parte de nossa recepção dos clássicos:
ouvimos os poetas antigos e, como Virgílio e Agostinho, aprendemos a falar de lugares
distantes e próximos por meio deles. Mas também os interpelamos, nos dirigimos a eles,
os julgamos e emprestamos a eles a nossa voz, de maneira que suas lacunas e silêncios
sejam preenchidos. Ouvindo os antigos poetas, aprendemos, enfim, fazer de nossa
recepção um diálogo.
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