Experiencia Do Limite
Experiencia Do Limite
Experiencia Do Limite
Experiência do limite:
Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath
entre escritos e vividos
Editora filiada à
Agradecimentos, 7
Prefácio, 11
Palavras iniciais, 15
Referências, 195
Lúcia Helena
pela linguagem e pelo artesanato engenhoso do que se tem chamado
“a literatura”, como diz Lacou-Labarthe, ao falar acerca dos primeiros
românticos alemães. A autora abriga neste livro duas escritoras mag-
níficas – Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath – que pertencem à tribo dos
que compreendem a literatura como uma construção de linguagem
que produz mundo, sem necessitar (nem poder) reproduzi-lo.
É com sagacidade que, tendo se inspirado em práticas de es-
tudos sobre o Romantismo, a identidade, as estratégias da escrita,
remaneja-as rumo a uma outra direção, fazendo dessas práticas o
arcabouço que lhe permite penetrar teoricamente no mundo poético
das obras que escolheu focalizar. E, no que concerne ao tratamento
que até hoje haviam recebido Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath, en-
tre nós, essa é uma virada interessante. Se não é original a junção
Rousseau-Rahel, pois esta é fruto da criação da própria Rahel, que
se assinava, por vezes, J.J. Rahel (Jean-Jacques Rahel), nem o es-
tudo sobre o intimismo e a solidão, e entre estes e a escrita que lê
o eu, questões tratadas em obras recentes por outros estudiosos
que a antecederam, é perspicaz, no entanto, o aproveitamento que
faz dessas cogitações em proveito da leitura crítica de duas autoras
do “pós-moderno” que, pela mão de Anélia, se reencontram com as
questões da exegese sobre o Romantismo e outras, trazidas pelos
primeiros românticos alemães. Isso faz gerar um torcicolo na “igno-
rância culta” contemporânea que, por vezes, parece supor que acre-
dita que o mundo nasceu a partir do surgimento do “pós-moderno”,
tantas e tão díspares as versões sobre o entendimento deste termo
que Anélia busca amparar criticamente.
Ao leitor que chegar até este livro e que, porventura, ler este pre-
fácio, digo: não perderá tempo se for, agora mesmo, direto ao texto da
autora, no qual encontrará um trabalho que acrescenta qualidade à ampla
bibliografia atualmente dedicada a Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath.
Anélia Pietrani, versada na prosa machadiana, agora se dedicou
ao poema. Mas seja acerca da prosa, seja sobre a poesia, como os
que gostam da linguagem e têm um saber-sabor pela literatura, nos-
sa autora procura encontrar as chaves a que se referia Drummond,
quando incitava o leitor a penetrar surdamente no reino das palavras
e perguntava: “Trouxeste as chaves?”.
Tratar da questão dos limites e dos (c) sem limites da linguagem
não é coisa vã. Como nos diz Anélia Montechiari Pietrani, “o ato ensa-
ístico, incompleto por sua natureza, faz com que nos deparemos, com
freqüência, com uma pedra sobre o papel [...] Esse processo de atingir
o cerne da produção poética nos lembra a imagem surpreendente de
Schlegel que, ao falar da autonomia da obra de arte e, ao mesmo tempo,
Notas
1
As expressões “mímesis da representação” e “mímesis da produção” são de Luis
Costa Lima e foram analisadas pelo ensaísta em Mímesis e modernidade: formas
das sombras (Rio de Janeiro: Graal, 1980), ao defender a idéia de que a linguagem
literária é criadora de mundo e não mera transparência deste.
2
E, por falar em (des)limites, convém destacar a dificuldade de se estabelecer dife
rença entre modernidade e pós-modernidade, principalmente quando se observa
que, se há diferenças estéticas entre um e outro movimento a ponto de alguns
críticos incluírem certas obras em um ou outro estilo, as bases históricas que
fundamentaram a modernidade permanecem atuantes na pós-modernidade (isso
se quisermos usar os termos para marcar a diferença temporal e de gerações en-
tre um e outro); por isso, acaba por ser mais provocativo usar o termo moder
nidade pós-moderna. A inteligente analogia que Terry Eagleton faz com a fábula
da criança e do rei nu é elucidativa nesse sentido: “O pós-modernismo [...] não
pode mesmo chegar a um termo, tanto quanto não poderia haver um fim para a
pós-Maria Antonieta. Ele não é, aos próprios olhos, uma ‘etapa da história’, mas a
ruína de todo esse pensamento etapista. Ele não vem depois do modernismo no
mesmo sentido que o positivismo vem depois do idealismo, mas no sentido de que
o reconhecimento de que o rei está nu vem depois de se olhar para ele. E assim,
da mesma forma como era verdade que o imperador esteve nu o tempo todo, sob
certo aspecto o pós-modernismo existia mesmo antes de começar. Num determi-
nado nível pelo menos, ele não passa da verdade negativa da modernidade, um
desmascaramento de suas pretensões míticas e, portanto, presume-se que fosse
tão legítimo em 1786 quanto o é hoje” (EAGLETON, 1998, p. 37).
O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido
para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimen-
tos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente
ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de
deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas
uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas
com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempes-
tade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira
as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu.
Essa tempestade é o que chamamos progresso. (BENJAMIN,
1994b, p. 226)
You smile.
No it is not fatal. (PLATH, 1992b, p. 202)
Axes
After whose stroke the wood rings,
And the echoes!
Echoes traveling
Off from the center like horses.
The sap
Wells like tears, like the
Water striving
To re-estabilish its mirror
Over the rock
Seria interessante pensar até que ponto esta Rahel, assim a nós
apresentada, não seria uma invenção, portanto, narração de Hannah
Arendt, de Varnhagen (o marido de Rahel), dos interlocutores de suas
cartas e, até mesmo, da própria Rahel, formando construções em
rede de subjetividades. Concorrem para a criação deste corpo escrito
P.S. Será que isso funciona como literatura? Alguém que não sou-
besse quem eu sou, não me conhecesse, acharia interessante?
Esquisito. A lit. parece ser um lugar de dizer COM OUSADIA que
eu não teria “na vida real”. O foco em 3ª. e o discurso indireto
livre aparecessem (sic) como perigosos artifícios. Não sei, isso
me confunde. Mas por outro lado é tão mais interessante que o
“belo em si” de certos poemas... A solução que vejo: é uma forma
ainda híbrida.(CESAR, 1999a, p. 186, grifos do autor)
rachou
a chave
calou
a chuva
barrou
a chama
Amor, isto não é um livro, sou eu, sou eu que você segura e sou
eu que te seguro (é de noite? estivemos juntos e sozinhos?), caio
das páginas nos teus braços [...] Te amo, e parto, eu incorpóreo,
triunfante, morto. (apud CESAR, 1998a, p. 141-2)
Notas
1 Trata-se de escritos sobre Baudelaire dos anos 1936-1939, que se constituem, na
verdade, de fragmentos de um livro que Benjamin pretendia consagrar ao poeta
francês. É curioso também (e devemos destacar o fato) que esses ensaios tenham
ficado indisponíveis nos Estados Unidos até 1981, conforme nos informa Marshall
Berman em Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade (Cf.
BERMAN, 1986, p. 339).
2 Para melhor elucidar, conceitualmente, as duas modalidades de conhecimento que
Walter Benjamin distinguiu – Erfahrung e Erlebnis – convém conferir as definições
de Leandro Konder: “Erfahrung é o conhecimento obtido através de uma experiên-
cia que se acumula, que se prolonga, que se desdobra como numa viagem (e viajar,
em alemão, é fahren); o sujeito integrado numa comunidade dispõe de critérios
que lhe permitem ir sedimentando as coisas, com o tempo. Erlebnis é a vivência
do indivíduo privado, isolado; é a impressão forte, que precisa ser assimilada às
pressas, que produz efeitos imediatos. ‘Erfahrung é o produto do trabalho’ – esque-
matizaria Benjamin no Trabalho das Passagens –, ‘e Erlebnis é a fantasmagoria do
ocioso’” (KONDER, 1988, p. 72).
3 Confronte-se também a esse respeito Max Weber, que analisa o desencantamento
do mundo em relação ao advento do capitalismo.
4 A discriminação das disciplinas nessas duas perspectivas se deve ao professor
Roberto Acízelo de Souza. No entanto, ele mesmo destaca no livro Formação da
teoria da literatura que os termos “humanística” e “científica” são uma sugestão do
professor Benedito Nunes (Cf. SOUZA, 1987, p. 14).
feita por André Cardoso e publicada na edição bilíngüe citada na bibliografia: “Walt
Whitman, um cosmos, de Manhattan o filho,/ Turbulento, corpulento, sensual, co-
mendo, bebendo e reproduzindo,/ Sem sentimentalismo, sem se colocar acima de
outros homens e mulheres nem se/ afastando deles,/ Sem modéstia nem imodés-
tia./ Arrancai os ferrolhos das portas!/ Quem quer que degrade um outro degrada
a mim,/ E tudo o que é dito ou feito acaba voltando a mim./ Através de mim a
inspiração irrompe sempre, através de mim a corrente e o/ direcionamento.”
A ousadia de dizer-se
the varied stages in her own development and taste again the
moments of joy and triumph and more clearly evaluate those of
sorrow and fear. (PLATH, Aurelia apud PLATH, 1992a, p. 3)
de matar o que não consegue (ou não deseja) esquecer, podendo ser
o “si mesmo”, que morre pela boca.
Outro traço desconcertante da palavra (que, especialmente por
isso, se torna poetizada) de Ana, também apontado por Heloisa, é a
escrita que visa a um outro, seja este o seu interlocutor ou o produto
de ficcionalização de Ana Cristina Cesar travestida em remetentes
diferentes. Em uma pequena carta, sem data, endereçada à própria
Heloisa, ela assina: Júlio. É curioso que, no corpo da carta, apareça a
informação sobre a instabilidade deste eu: “me visto de mim quando
preciso e quando não preciso” (CESAR, 1999a, p. 88). “Júlio” está na
Grécia, aproveitando um pouco do sol e do mar que restam na Europa
e dançando samba nesse baile absurdo. Depois de citar um trecho de
canção de Roberto Carlos, “ele” dispara: “Acho enfim que é provisório
ser da condição dos avessos” (CESAR, 1999a, p. 88).
Mas o que é o avesso, senão também o avesso? Nessa tauto-
logia, reside a instabilidade de eus e outros e abre-se, ludicamente,
a discussão sobre a identidade. Tal jogo de avessos parece encon-
trar origem em poema de 1968, intitulado “Fagulha”, quinto texto
pertencente ao grupo de poemas a que nos referimos no capítulo
anterior, que aparecem marcados ao pé com a nota “inconfissões”:
“Eu não sabia/que virar pelo avesso/era uma experiência mortal”
(CESAR, 1998b, p. 41). Além disso, remete-nos ao deslocamento de
sentidos que é renitente na obra de Ana Cristina. Não há direitistas
ou esquerdistas, música brega ou MPB; não há verdade ou avesso,
Brasil ou Grécia, feminino ou masculino, eu ou outro. O avesso – se-
xual, pátrio, literário – pode até ser o canhoto demoníaco; por isso,
talvez, um certo brasileiro sambando na Grécia (ou a bela mulher
da PUC Zona Sul carioca, Ana traduzida, Ana exilada, Ana brasileira,
Ana mulher) deseje – como o rei – que “tudo mais vá pro inferno,
meu bem!” (CESAR, 1999a, p. 88). Tanto a vida quanto seu avesso
andam juntos numa condição provisória, como fagulhas do porvir
e da morte inexorável.
Seja carta seja diário, gêneros usualmente considerados literatura
menor, eles são atualizados pela autora e resgatados, literariamente,
por seu coloquialismo de linguagem e pela forma de profunda interação
entre o sujeito e o seu leitor. Isto se verifica nas tantas cartas em que ela
cobra do outro uma resposta. Às vezes, a cobrança surge de forma bas-
tante direta: “Escreve, louquinha do coração, and TAKE CARE” (CESAR,
1999a, p. 38, grifos do autor); outras, indireta, mas ainda persuasiva,
20.12.79
Bebendo muito vinho branco.
Helô, querida:
20/12/79
Cecil, querida,
Acabei de passar uns dias com meu pai. Hoje ele embarcou pro
Rio, carregado de presentes para a família. Chove sem parar.
Estou hospedada com umas dominicanas, e vou passar o Natal
no Vaticano, com o papa, ou então em Firenze, com o Giovanni.
Queria mudar tudo na minha vida, enjoei da minha cara, me
sinto desconectada. Roma é mais bonito. (Dou um palpite e
mando o cartão pro Rio.) Sobreviva às festas, Feliz Natal, Ano
Novo, etc. Beijo no umbiguinho. E no Gelson, e no João Luís.
Mil Beijos, Ana (CESAR, 1999a, p. 193)
Dessa vez sou eu que estou passando dos limites. Pra dizer
a verdade eu não fiquei puta, eu fiquei rindo à toa com o seu
bilhete; quando eu te liguei a % de aflição estava alta e quando
eu me propus a te escrever e contar “tudo” (?) também. (CESAR,
1999a, p. 56)
Fica difícil fazer literatura tendo Gil como leitor. Ele lê para
desvendar mistérios e faz perguntas capciosas, pensando que
cada verso oculta sintomas, segredos biográficos. Não perdoa o
hermetismo. Não se confessa os próprios sentimentos. Já Mary
me lê toda como literatura pura, e não entende as referências
diretas. (CESAR, 1998a, p. 120)
Hoje que Mary está indo para Paris retomo o caderno terapêuti-
co depois de ter dito que a minha cura era “falar tudo”, que me
desse e viesse, e assim, angustiada com a partida que me cala ou
um flanco de mim, escrevo como quem fala tudo, querendo dizer
que hoje, com o Patinho, senti que o meu compromisso primeiro
era com a mãe, com as mulheres, com o colo delas, e só secun-
Esta luta com seus eus (ou dos outros sobre os eus de Plath)
também se verifica nas cartas compiladas por sua mãe. O texto que
Aurelia Plath elabora para compor o Letters home é uma espécie de
biografia de si mesma e uma oportunidade de contra-razão de recurso,
partindo das correspondências de Sylvia Plath, ao enfocar elemen-
tos referentes a seu casamento e seu relacionamento com os filhos,
principalmente, é claro, com a filha. A parte maior deste texto – a que
apresenta também a função de introdução à publicação das cartas
– traz dados apenas até 1949. Subseqüentemente, as cartas, distri-
buídas em sete blocos que, no todo, atravessam os anos 1950 a 1963,
parecem completar a narrativa iniciada com as informações prestadas
pela mãe. Esta, a partir de então, apenas faz rápidas introduções em
cada bloco, insere no próprio corpo das cartas informações sobre
alguns personagens que nelas aparecem, inclui dados elucidativos
acerca da contemporalização da missiva a que deseja se referir. Este
comportamento, digamos, seqüencial reforça a relação osmótica que
se estabeleceu (ou que a senhora Plath desejou que tivesse sido esta-
Never, never, never will I reach the perfection I long for with all
my soul – my paintings, my poems, my stories – all poor, poor
reflections... [...]
I am continually more aware of the power which chance plays
in my life. ... There will come a time when I must face myself
at last. [...]
I am strong. I long for a cause to devote my energies to... �����
(PLA-
TH, 1992a, p. 40)
It turned out that not only was I totally unable to learn one
squiggle of shorthand, but I also had not a damn thing to say in
the literary world; because I was sterile, empty, unlived, unwise,
and UNREAD. And the more I tried to remedy the situation, the
more I become unable to comprehend ONE WORD of our fair
old language. (PLATH, 1992a, p. 130, grifos do autor)
A idéia que Plath nos traz ressoa sobre a mulher tolhida, im-
pedida de escrever, porque necessitaria, para tanto, da liberdade
“masculina”, por isso o desejo intenso pelos homens e suas vidas.
Por isso, talvez, o homem tenha se destacado mais na escrita. É duro
perder o lampejo de sensibilidade, “fazendo ovo mexido para um
homem... ouvindo falar da vida em segunda mão” (PLATH, 2004, p.
109). Está aí a explicação para a terrível inveja que sente dos homens,
“uma inveja nascida do desejo de ser ativa e agir, em oposição a ser
passiva e ouvir” (PLATH, 2004, p. 119-20). Prato cheio para Freud, os
pensamentos da mocinha revelam sua certeza de maturidade, frente
a estes que receberam tudo de mãos beijadas da sociedade e não es-
tão nem aí para a poesia e a sensibilidade. É praticamente impossível
não recordar aqui as palavras de Virginia Woolf, em Um teto todo seu,
ensaio literário de 1928, acerca do que a mulher necessita para torna-
se escritora, vindo a ser “irmã de Shakespeare”: dinheiro e um teto
todo seu, o que sempre foi prerrogativa do poeta-homem. Para ela, a
suposta irmã de Shakespeare, chamada Judith, “maravilhosamente
Não posso viver só pela vida: mas sim pelas palavras que detêm
a torrente. Minha vida, sinto, não será vivida até que haja livros
Notas
1 Este é um fragmento de carta de Rimbaud endereçada a Georges Izambard com
data de 13 de maio de 1871, citado e traduzido por Lucia Helena no ensaio “Ler
e reler Cecília Meireles: a escuridão e as águas de cristal”: “C´est faux de dire: Je
pense; on devrais dire on me pense. – Pardon du jeu de mots. Je est un autre” (apud
HELENA, 2001, p. 15).
2 “Na esfera da intimidade da pequena família, as pessoas privadas consideram-se
independentes também em relação à esfera privada de suas atividades econômi-
cas – exatamente como pessoas que podem estabelecer relações ‘puramente hu-
manas’: a forma literária disso foi, em certa época, a correspondência epistolar.
Não é por acaso que o século XVIII se torna um século das cartas: escrevendo car-
tas, o indivíduo se desenvolve em sua subjetividade” (HABERMAS, 1984, p. 65).
3 Os termos entre aspas foram utilizados por Habermas em Mudança estrutural na
esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa.
4 No primeiro capítulo, ao distinguirmos experiência e vivência, segundo Walter Ben-
jamin, mencionamos – e aqui reforçamos – a observação de Leandro Konder acer-
ca da relação semântica e mórfica, na língua alemã, entre experiência (erfahrung) e
viagem (fahren). Acerca disso, conferir principalmente a nota 4 do capítulo 1.
inclusive retomando este mesmo fragmento citado, que nos parece fundamental
para a compreensão desse processo.
21 Segundo as notas aos diários, a “House Dance”, traduzido por Baile da Casa, se
referia a “cada residência estudantil do Smith College [que] promovia seus pró
prios bailes de inverno e primavera, nos anos 1950” (Notas do editor, em PLATH,
2004, p. 778).
22 Em tradução de Celso Nogueira: “não há eu pois eu sou o que as outras pessoas
interpretam como ser e não sou nada se não houver outras pessoas” (PLATH, 2004,
p. 198-9).
celebrar a vida de sua mãe, a despeito dos protestos dos que ela
chama os “amigos de minha mãe”. Para estes, disse Frieda Hughes
terminando o artigo:
Dying
Is an art, like everything else.
I do it exceptionally well. (PLATH, 1992b, p. 245)
Quando eu morrer,
Anjos meus,
Fazei-me desaparecer, sumir, evaporar
Desta terra louca
Permiti que eu seja mais um desaparecido
Da lista de mortos de algum campo de batalha
Para que eu não fique exposto
Em algum necrotério branco
Para que não me cortem o ventre
Com propósitos autopsianos
Para que não jaza num caixão frio
Coberto de flores mornas
Para que não sinta mais os afagos
Desta gente tão longe. (CESAR, 1998b, p. 27)
Escuta, Judas.
Antes que você parta pro teu baile.
A morte nos absorve inteiramente.
Tudo é aconchego árido.
Cheiro eterno de Proderm.
Mesa posta, e as garras da vontade.
A gana de procurar um por um
e pronunciar o escândalo.
Falar sem ser ouvida.
Desfraldar pendengas: te desejo.
Indiferença fanática ao ainda não.
(CESAR, 1998a, p. 78)
e livrando
castillo de alusiones
forest of mirrors
anjo
que extermina
a dor. (CESAR, 1998a, p. 60)
te livrando
castillo de alusiones
forest of mirrors
anjo
que extermina
a dor. (CESAR, 1998a, p. 60)
da cena descrita: a poesia, que não é silêncio nem pode ser gentileza,
porque é um jato de sangue incontido (embora possa revelar, pela
ironia, a impaciência diante de uma “doce” gentileza). A criança grita,
o coelho grita. Mas apenas aquela é real, porque este não tem alma.
E a poesia nessa história toda? Somos tentados a fundir num mesmo
plano semântico a criança, a rosa, a poesia: interruptoras, germina-
tivas, dessilenciadoras, sem nada que possa estacar seu desejo, seu
sangue, sua ferida aberta. Elas não querem uma compressinha de
açúcar. Elas querem crescer.
Continuando a análise com a retomada do texto de Ana Cristi-
na, em versos adiante, afirma-se a idéia da ausência de contenção e
limitação do espaço e tempo da poesia:
cachoeira
de repente alguém diz a palavra cachoeira
e ela se medusa
insolúvel
intimidade
piche insolúvel
negro
Your stooges
Plying their wild cells in my keel’s shadow,
Pushing by like hearts,
Red stigmata at the very center,
Riding the rip tide to the nearest point of departure,
Ghastly Vatican.
I am sick to death of hot salt.
Green as eunuchs, your wishes
Hiss at my sins.
Off, off, eely tentacle!
sutil sorriso, está o “verdadeiro a ser dito”: tem nas mãos tudo o que
fere. O “veredicto” é preciso que seja a absolvição do poeta. Seu crime
(se houve algum) foi apenas o de dar vida à morte, o de recolher as
cinzas e – tal fênix – criar e mostrar. Só mostrar: não há nada (nem
pode haver) entre aquilo que fere e aquele que mostra o que fere, como
diz Sylvia Plath, em “Medusa”.
Poderia ser o poeta a “mãe” de seus textos? Mas uma mãe que
os cria e os faz não existir para a vida? Nesse poema de Sylvia Plath,
intitulado “Stillborn”, convém ressaltar, ela ironiza o ato purista e
formal de escrever um texto que, no caso, já nasce morto, está preso
num vidro de picles, sorrindo para ela, mas sem bater o coração: “It
would be better if they were alive, and that’s what they were./But
they are dead.” Se, na rica ambigüidade da poética de Plath, eles de-
veriam estar vivos, mas pela má-formação tiveram um fim no início,
é de se pressupor que – para a sua travessia – um “algo a mais” deve
haver no texto. Texto que precisa receber da vida, renascer para a
vida, com a morte. Texto que cria, recria, renasce das cinzas de uma
mãe-fênix. Texto de garras afiadas que renasce quantas vezes forem
necessárias. Texto que merece ser louvado pela luta da vida que se
repete para não morrer.
Notas
1 A palavra ficção é aqui tomada em sentido amplo e não como sinônimo de nar-
rativa romanesca. Relembremos Wolfgang Iser que designa por ficção – e é nesse
sentido que tomamos o termo – o mundo do “como se” que caracteriza o texto
literário: “Assim se revela uma conseqüência importante do desnudamento da
ficção. Pelo reconhecimento do fingir, todo o mundo organizado no texto literário
se transforma em um como se” (ISER, 1983, p. 400, grifos do autor).
2 Em tradução de Paulo Henriques Britto: “Agora veja só quem/ Cai de quatro ali
na esquina/ E vem correndo em direção à sua mãe./ Disputando seus despojos,
com lábios/ Arreganhados, como os dos cães,/ Em posições inauditas. Se tentar
protegê-la/ Eles derrubam você também,/ Como se fosse um pedaço dela./ E vão
achá-la tão suculenta/ Quanto ela. Tarde demais/ Para salvar o que sua mãe era”
(HUGHES, 1999, p. 393).
3 “Aqui meus crimes não seriam de amor”, escreve Ana Cristina (CESAR, 1998b, p.
127).
4 A expressão foi utilizada por Lucia Helena no ensaio citado (Cf. HELENA, 1987, p. 84).
5 Consideramos aqui a distribuição temporal dos textos de Ana Cristina Cesar, ela
borada por Armando Freitas Filho, em Inéditos e dispersos.
6 Desejamos aqui enfatizar que a morte não é o fim do existente e sim do vivente
e, assim, salientar que o que distingue o homem do animal é que este vive a vida
como vivente apenas; viver a vida como existente é pensar a morte. E esse caráter
é humano, exclusivamente humano.
dizer que ela aproveita a senda aberta pelo surrealismo na exploração da ima
ginação e do inconsciente para buscar comunicação entre a realidade visível e a
invisível. A poeta, nessa busca, pauta-se na desformalização e na espontaneidade
de dizer alternativamente a sensibilidade e executar livremente o exercício da imag-
inação, inclusive também por uma escrita que se faz tão necessária – ou automática
– pela rapidez com que são proferidas as sentenças, estão desarrumadas as frases
nos versos prosaicos, são confrontadas as imagens oníricas, alucinadas estadas em
espaços diferentes (casa, carro, festa, papel, tribunal), para citar como exemplo.
Eu penso
A face fraca do poema/ a metade na página
Partida
Mas calo a face dura
Flor apagada no sonho
Eu penso
A dor visível do poema/ a luz prévia
Dividida
Mas calo a superfície negra
Pânico iminente do nada. (CESAR, 1998b, p. 88)
Não creio em Deus como uma espécie de pai do céu. Não acre-
dito que os simples herdarão a terra. Os simples são ignorados
e espezinhados. Eles se decompõem no solo ensangüentado da
guerra, dos negócios e da arte; apodrecem sob a terra morna
após as chuvas da primavera. Os ousados, cruéis, cheios de
vida, revolucionários, poderosos de corpo e alma, estes mar-
cham sobre a carne mole pacata que jaz sob o tacão de suas
botas. (PLATH, 2004, p. 60)
Pode ser, ainda, que Sylvia Plath tenha desejado matar o seu
pai por outra razão, ou melhor, por ser outro o pai: o pai literário.
Impossibilitada de executar tal função, atribui aos demais o papel de
carrasco. De fato, sua poesia convive com a idéia do grande pai de
maneira bastante crítica: Ariel, de Shakespeare (ou de Eliot?), é um
deles. Essa questão também será trabalhada crítica e esteticamente
por Ana Cristina Cesar. A respeito da questão da influência, vejamos
o que nos diz Harold Bloom em página de seu já antológico e bastante
visitado e criticado texto intitulado A angústia da influência:
At the turn of the year, the posh papers were full of retrospec-
tive articles about the 70s – its trends, fads and fashions, but
nowhere did I see a mention of structuralism. BBC television
will carefully explain relativity and catastrophe theory to the
viewing million, but if there has ever been a programme about
structuralism.11 I missed it.
It looks as if structuralism may be the first such movement to
go through the complete life-cycle of innovation, orthodoxy and
obsolescence, without ever touching the popular conscious-
ness. (CESAR, 1999a, p. 47)
Stasis in darkness.
Then the substanceless blue
Pour of tor and distances.
God’s lioness,
How one we grow,
Pivot of heels and knees! – The furrow
Nigger-eye
Berries cast dark
Hooks –
White
Godiva, I unpeel –
Dead hands, dead stringencies.
And now I
Foam to wheat, a glitter of seas.
The child’s cry
e o poeta que se revela neste fragmento de diário. Daí, termos optado pela citação
no original, em inglês. Cf. a citação em português: “Ah, se me deixassem em paz,
que poeta desabrocharia em mim”(PLATH, 2004, p. 442).
13 Mais uma vez, o original é bem mais instigante que a tradução: “sea-father nep-
Tra(u)mas de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath
tuno” é traduzido por “netuno senhor dos mares” (Cf. PLATH, 2000a, p. 380, PLATH,
2004, p. 442).
14 “Sê sábia, ó minha Dor, e queda-te mais quieta” é o primeiro verso de “Recolhi-
______. Minima moralia. Tradução de Luiz Eduardo Bicca. São Paulo: Ática,
1993.
ASSIS, Machado de. Último capítulo. In: ______. Obras completas. Rio de
Janeiro: Aguilar, 1994. v, 2, p. 380-386.
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