Experiencia Do Limite

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Experiência do limite:

Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath


entre escritos e vividos

Experiencia do limite.indb 1 17/2/2009 16:50:45


Anélia Montechiari Pietrani

Experiência do limite:
Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath
entre escritos e vividos

Editora da Universidade Federal Fluminense


Niterói, 2009

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Copyright © 2009 by Anélia Montechiari Pietrani
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Dados Internacionais de Catalogação-na-Fonte - CIP


P 626 Pietrani, Anélia Montechiari
Experiência do limite: Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath entre escritos
e vividos / Anélia Montechiari Pietrani — Niterói : EdUFF, 2009.
212 p. ; 23 cm. — (Coleção Biblioteca EdUFF, 2004)
Bibliografia. p. 195
ISBN 978-85-228-0469-60460-3
1. Literatura. 2. Cultura. I. Título. II. Série
CDD 800

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Vânia Glória Silami Lopes

Editora filiada à

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A meus pais, início de tudo,
e a minha filha Clara, fim de tudo,
dedico este trabalho,
com o amor sem limites.

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Agradecimentos

Este livro foi escrito, originalmente, como tese de Doutorado,


defendida no Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense,
em 2005. Foi submetido à avaliação da banca composta pelos profes-
sores Célia Pedrosa, Jorge Fernandes da Silveira, Maria Esther Maciel
e Regina Zilberman, aos quais sou sinceramente grata pela argüição
consistente e pelas sugestões valiosas que contribuíram para o apri-
moramento deste trabalho.
Agradeço também aos professores Ítalo Moriconi, Maria Lucia
de Barros Camargo e Matildes Demétrio dos Santos, pelas críticas e
sugestões pertinentes, ainda quando este estudo estava apenas em
seu início.
Um agradecimento especial devo à minha orientadora e amiga,
professora Lucia Helena, pela leitura atenta, crítica e eficiente de meus
textos e pela condução segura desta orientação. Também sou grata
aos colegas do grupo de estudos Nação e Narração, criado e liderado
por Lucia Helena, pela participação instigante na leitura e discussão
de partes deste texto, impedindo, assim, que ele se esquecesse em
meio à solidão do exercício acadêmico.
Devo gratidão à minha família, pela sempre presença, e aos meus
tão queridos: Zezé Vargas, pela revisão dos originais da tese; Anabelle
Considera, Isabella Lomelino, Marcelo Portugal, Rita Carvalho e Tereza
Carmona, pela amizade, atenção e preocupação; Fabrício Neves, pelo
cuidado; Clara, pelos beijos.
Finalmente, agradeço à EdUFF, pela iniciativa.

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Sumário

Agradecimentos, 7

Prefácio, 11

Palavras iniciais, 15

Uma modernidade (c)sem limites, 25


Anjos e demônios da modernidade, 25
Fantasmas do eu em solidão e em multidão, 32
Entre mundo e literatura, a ansiedade de ser outro, 38

Migração de gêneros e sentidos, 63


A ousadia de dizer-se, 63
Jogo de eus: a correspondência de Ana Cristina Cesar, 68
Entre cartas e diários, um eu e uma (outra) história, 86
Alterbiografia: o risco da autobiografia, 96
Ler o eu, escrever o outro, 110

Morrer na vida, viver na poesia, 121


(Não é só) uma questão de vida e morte, 121
Eros e Tanatos sob a figuração do feminino, 127
O gato e a fênix sob a estética da finitude, 143

Tra(u)mas de ana cristina cesar e sylvia plath, 159


O lugar e o fora-do-lugar da arte; o tempo
e o fora-do-tempo da arte, 159
Poesia e poder: por uma lírica social, 166
Em nome do pai: o filho-poeta, 175

Considerações finais, 191

Referências, 195

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O coração vibrátil do ensaio e da poesia
entre mulheres

Lucia Helena (UFF, UFRJ, CNPq)

Maria Gabriela Llansol, excelente escritora portuguesa com


sobrenome galego, trata das palavras com tal apuro, que sempre me
encanta a forma arrojada com que prova que o caminho mais curto
entre o brilho e o talento não é a linha reta. Já de batismo, Portugal
e Galícia nela se encontram, nomes próprios da poesia que vem de
um presente de casamento, no século XII, entre as culturas ibéricas
dominantes, a doação, por Castela, de um Condado Portucalense.
Diz a sagaz prosadora, poeta e pensadora Llansol que há
três coisas que lhe metem medo: a primeira, a segunda e a terceira.
Na poesia também, assim como na vida, assim como na escrita,
principalmente naquela escrita a que chamamos tese. Em primeiro
lugar, tem-se que preencher um quesito difícil, o da originalidade.
Em segundo, defender idéias que comprovem o ponto de partida,
tornando fechado o molde. Em terceiro, e terceiro, “o terceiro que
é?” – diria Laura, a personagem de Lispector, abrindo e fechando
gavetas, desarrumando-as para arrumá-las depois, esperando Ar-
mando chegar para irem à casa de Carlota, no conto “A imitação da
rosa”, texto potente de Laços de família.
Digamos que Llansol se faz aqui necessária porque não me posso
afastar de quem me ensinou que, ao se tirar o D de Deus, juntamo-nos
aos eus que fazem de nossa desoladora solidão a porta de entrada da
hipótese do convívio com os (nossos e de outros) (outros) eus. Li sua
obra por indicação de meu querido amigo Jorge Fernandes da Silveira,
no meado da década de 1980, preparando aulas em comum, em cursos
que dávamos e preparávamos a quatro mãos na Pós-Graduação em
Letras da UFRJ. Assim Llansol entrou em minha vida juntando-se a
Lispector, e esse convívio gerou o meu livro Nem musa, nem medusa:
itinerários da escrita em Clarice Lispector.
Esse exercício de memória vem para dizer, ao prefaciar a atual
versão da tese de Anélia Pietrani, que tive o prazer de orientar na
Pós-Graduação em Letras da UFF, que não é preciso escrever poesia
para ser poeta. Llansol é poeta em prosa e Lispector também. Aos
que conhecem a matéria, não digo com isso nada de novo. Mas Nelson

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Prefácio

Rodrigues, esse gênio da dramaturgia brasileira, como cronista sem-


pre me lembrava que é fundamental trazer à baila o “óbvio ululante”.
Até porque, em um mundo desmemoriado, cada um que nasce pensa
reinventar a roda.
Hannah Arendt fez poesia no ensaio filosófico quando, final-
mente, conseguiu redigir o seu magnífico Rahel, outro livro dos
meus quereres. Tratou do íntimo de Rahel, sua personagem, que
era, no entanto, uma personagem pública, tão pública que o mundo
privado de sua correspondência nasceu e viveu da convivência de
Rahel com os que freqüentavam os famosos saraus que ela (pobre,
mulher, feia e judia - schlemiel) oferecia no final do século XVIII.
Aquela Rahel era também uma outra Rahel, era de si e da outra que
sobre ela escreveu, a Hannah. Arendt fugira da Alemanha com as
cartas pesquisadas e levou muitos anos até escrever o belo livro em
que examina, com grandeza e argúcia, os prós e contra da razão ilu-
minista e do intrincado nó intimista romântico, tudo isso a partir de
uma intervenção ensaística, filosófica e ficcional, até, sobre as cartas
escritas e deixadas por Rahel, editadas por Hannah, em labirinto,
em seu livro intitulado Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã
na época do Romantismo.
Trabalhei esse material em cursos que ministrei na pós-gra-
duação do Instituto de Letras da UFF, entre os anos de 1998 e 2004,
quando estudava as relações entre o nacionalismo e a solidão, entre
o intimismo e o espaço público, buscando entender não só o Roman-
tismo e a fundação do estado-nação, mas o que disso resultou no hoje
da globalização, questões de que tratei amplamente no meu A solidão
tropical: o Brasil da modernidade e de Alencar.
A escritora Anélia Pietrani, que agora se reafirma, havia pu-
blicado um outro livro, O enigma mulher no universo masculino ma-
chadiano, surgido de sua dissertação de Mestrado e no qual estudou
Machado de Assis. Tive o prazer de orientar esses dois estudos e
de vê-los publicados pela EdUFF, cabendo-me a satisfação de pre-
faciar ambos. Creio que poucos orientadores tiveram a chance de
acompanhar a elaboração, por um só estudante, de dois trabalhos
que representam contribuição válida para os estudos da crítica de
textos literários entre nós. Qual não é minha alegria, ao encontrar,
neste livro, uma escrita rigorosa e inteligente, oblíqua, que surgiu
da pena daquela jovem, que veio de fora do Rio de Janeiro e conheci
em 1995.
Anélia Pietrani tem bom gosto e olhos agudos. Antes escolheu
Machado de Assis, esse bruxo da linguagem; agora, duas outras es-
critoras, que não ficam a dever ao casmurro do Cosme Velho o gosto

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Lúcia Helena
pela linguagem e pelo artesanato engenhoso do que se tem chamado
“a literatura”, como diz Lacou-Labarthe, ao falar acerca dos primeiros
românticos alemães. A autora abriga neste livro duas escritoras mag-
níficas – Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath – que pertencem à tribo dos
que compreendem a literatura como uma construção de linguagem
que produz mundo, sem necessitar (nem poder) reproduzi-lo.
É com sagacidade que, tendo se inspirado em práticas de es-
tudos sobre o Romantismo, a identidade, as estratégias da escrita,
remaneja-as rumo a uma outra direção, fazendo dessas práticas o
arcabouço que lhe permite penetrar teoricamente no mundo poético
das obras que escolheu focalizar. E, no que concerne ao tratamento
que até hoje haviam recebido Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath, en-
tre nós, essa é uma virada interessante. Se não é original a junção
Rousseau-Rahel, pois esta é fruto da criação da própria Rahel, que
se assinava, por vezes, J.J. Rahel (Jean-Jacques Rahel), nem o es-
tudo sobre o intimismo e a solidão, e entre estes e a escrita que lê
o eu, questões tratadas em obras recentes por outros estudiosos
que a antecederam, é perspicaz, no entanto, o aproveitamento que
faz dessas cogitações em proveito da leitura crítica de duas autoras
do “pós-moderno” que, pela mão de Anélia, se reencontram com as
questões da exegese sobre o Romantismo e outras, trazidas pelos
primeiros românticos alemães. Isso faz gerar um torcicolo na “igno-
rância culta” contemporânea que, por vezes, parece supor que acre-
dita que o mundo nasceu a partir do surgimento do “pós-moderno”,
tantas e tão díspares as versões sobre o entendimento deste termo
que Anélia busca amparar criticamente.
Ao leitor que chegar até este livro e que, porventura, ler este pre-
fácio, digo: não perderá tempo se for, agora mesmo, direto ao texto da
autora, no qual encontrará um trabalho que acrescenta qualidade à ampla
bibliografia atualmente dedicada a Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath.
Anélia Pietrani, versada na prosa machadiana, agora se dedicou
ao poema. Mas seja acerca da prosa, seja sobre a poesia, como os
que gostam da linguagem e têm um saber-sabor pela literatura, nos-
sa autora procura encontrar as chaves a que se referia Drummond,
quando incitava o leitor a penetrar surdamente no reino das palavras
e perguntava: “Trouxeste as chaves?”.
Tratar da questão dos limites e dos (c) sem limites da linguagem
não é coisa vã. Como nos diz Anélia Montechiari Pietrani, “o ato ensa-
ístico, incompleto por sua natureza, faz com que nos deparemos, com
freqüência, com uma pedra sobre o papel [...] Esse processo de atingir
o cerne da produção poética nos lembra a imagem surpreendente de
Schlegel que, ao falar da autonomia da obra de arte e, ao mesmo tempo,

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Prefácio

de seu caráter fragmentário, traz à baila o porco-espinho, como se, para


o poeta e seu crítico, houvesse, pulsando no ato de ler, reler e escrever,
um porco-espinho-pedra de artérias e veias num coração vibrátil.” No
coração vibrátil deste livro, dá-se um belo encontro das palavras da
poesia com as do ensaio em sua melhor (e sempre perigosa) versão.

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Palavras iniciais
“Parava, levantava os olhos um pouco, inventava:
‘go go go, said the bird: mankind cannot bear much
reality’”
(Cesar, 1998b, p. 105)

Há mais coisas entre a poesia de Ana Cristina Cesar e a de Sylvia


Plath do que pode sonhar nossa vã capacidade crítica. Os versos de T.
S. Eliot, reinventados por Ana Cristina e transcritos do poema “Burnt
Norton”, sugerem algumas delas: “Go, go, go, said the bird: human kind
\ Cannot bear very much reality” (ELIOT, 2004, p. 334). E remetem-
nos – via Ana – às seguintes palavras de Sylvia Plath, registradas em
seu diário: “Quero escrever por ter um ímpeto de me destacar num
meio de traduzir e expressar a vida. Não consigo me satisfazer com a
tarefa colossal de simplesmente viver” (PLATH, 2004, p. 216).
Não poder suportar tanta realidade, não se satisfazer com a sim-
ples tarefa de viver são palavras que, mais que um dobre melancólico de
finados, ressoam como perspectivas para se refletir sobre a complexi-
dade da questão que envolve o estatuto do literário. Perseguindo textos
em que o conceito de literatura é proposto a partir dos tênues limites
entre mundo da vida e mundo da obra, são merecedoras de atenção as
obras das poetas Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath. Duas autoras suicidas
que, por seu talento, tornaram-se expoentes da poesia lírica brasileira e
norte-americana do século XX e entrelaçaram em seus textos imagens
de loucura, morbidez, amor, morte, palavra-corpo. No entanto, como
é muito difícil esquivar-se da terrível morte das duas jovens poetas,
passemos – de antemão – a dados de sua vida e obra.
Sylvia Plath nasceu em 27 de outubro de 1932 em Boston, Massa-
chussetts, filha de imigrantes germano-americanos: pai alemão, culto
cientista e professor, de formação luterana; mãe austríaca de segunda
geração, que falava alemão em casa, lecionava línguas até casar-se e
tornar-se dona-de-casa, mãe e datilógrafa-secretária do marido.
Aos oito anos de Plath, falece seu pai, e ela tem um poema publi-
cado no Boston Herald. Torna-se, então, a moça inteligente, compelida à
perfeição, popular na escola, obtendo seus As, prêmios e bolsas: a ven-
cedora do concurso de ficção da Mademoiselle Magazine, com o conto
“Sunday at the Mintons”, em 1951; a redatora convidada para um estágio
na mesma revista, entrando em contato com a vida cultural de Nova

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Palavras iniciais

York, em 1952; a graduada em inglês com láurea acadêmica no Smith


College, apresentando a tese de graduação “The mirror – a study of the
double in two of Dostoievski’s novels”, em 1955; a ganhadora da bolsa
de estudos Fulbright, indo estudar em Cambridge também em 1955.
No ano de 1956, enquanto está estudando na Inglaterra, conhece
o poeta inglês Ted Hughes, com quem se casa no literário 16 de junho,
Bloomsday. Em 1957, após completar estudos no Newnham College,
muda-se com o marido para os Estados Unidos e é convidada para
lecionar no Smith College, enquanto Hughes dá aulas na Universidade
de Massachussetts.
A partir de dezembro de 1959, retorna definitivamente para a
Europa. Em 1960, nasce sua filha Frieda e seu primeiro livro, The Co-
lossus, é publicado na Inglaterra. Sylvia, o marido e a filha mudam-se
para uma casa de campo em Devon, onde nasce seu filho Nicholas.
Porém, menos de dois anos após o nascimento de seu primeiro bebê, o
casamento é rompido. O terrível inverno de 1962-63 encontrará Sylvia
Plath em um apartamento londrino, residência onde morara o poeta
Yeats, fervendo de gripe e palavras, compondo nas primeiras horas
da manhã, antes que as crianças acordassem, os poemas que viriam
a constituir mais tarde, em 1965, o livro Ariel. Em janeiro de 1963, é
publicado, sob o pseudônimo de Victoria Lucas, The bell jar. Em 11
de fevereiro de 1963, aos 30 anos de idade, suicida-se, não sem antes
deixar aos filhos, protegidos no quarto, pão e leite.
A poeta carioca Ana Cristina Cesar nasceu em 2 de junho de
1952, numa família de intelectuais, de religião protestante: pai ligado
à atividade editorial; mãe, professora de literatura. Menina (também)
precoce, bem pequena ditava os poemas à mãe, que os anotava. “Me-
nina prodígio”, escrevia um poema, que era publicado nas revistinhas
da Igreja, colocado no mural da escola, destacado por “alguém que co-
nhecia alguém na Tribuna da Imprensa”, conforme palavras da própria
Ana em depoimento a Carlos Alberto Messeder Pereira, publicado em
Retrato de época: poesia marginal anos 70 (PEREIRA, 1981, p. 190-1).
Em 1969, muito jovem, aos 17 anos, vai para a Inglaterra pela
primeira vez, por intermédio de um programa de intercâmbio. De volta
ao Brasil, em 1970, completa o clássico no Colégio de Aplicação da Fa-
culdade Nacional de Filosofia. Ingressa no curso de Letras da PUC-RJ,
onde conhece os jovens poetas que se organizavam para a produção
e veiculação “independente” de suas obras: Cacaso, Geraldo Carneiro,
João Carlos de Pádua, Eudoro Augusto, Luiz Olavo Fontes.
Anos 70: anos férteis. Crítica, tradução e muita poesia. Ensaios
e resenhas de sua autoria podiam ser lidos em revistas culturais como
Almanaque, em jornais “alternativos” como o Opinião e efêmeros

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Anélia Montechiari Pietrani


como o Beijo, bem como em grandes órgãos de imprensa como no
suplemento “Livro” do JB e no “Folhetim” da Folha de S. Paulo. Em
1976, integrou a antologia 26 poetas hoje, organizada por Heloisa
Buarque de Hollanda, que acabou se tornando um marco para a po-
esia dos anos 1970. A publicação é intensa em 1979: em junho/julho,
Cenas de abril; em agosto, a irônica “2a” edição de Correspondência
completa. Neste mesmo ano, conclui sua pesquisa sobre “A literatu-
ra brasileira no cinema documentário”, com que obteve o título de
mestre em Comunicação pela UFRJ, que é publicada no ano seguinte
com o título Literatura não é documento pela Funarte, financiadora
do projeto.
Ainda em 1979, retorna à Inglaterra para participar do “Curso
de Literatura – Teoria e Prática da Tradução Literária”, na Universi-
dade de Essex. Dedicando-se ao estudo e à prática da tradução, a
Ana Cristina crítica literária e ensaísta aproxima-se literariamente de
Sylvia Plath, dentre outros poetas, ao analisar e traduzir textos da
poeta norte-americana, e obtém, em 1980, o grau de Master of Arts,
with distinction, com uma tradução completa e comentada do conto
“Bliss”, da escritora neozelandesa Katherine Mansfield. Ainda lá fora,
publica Luvas de pelica, que ela chamaria de um “romance”.
No início de 1981, volta ao Brasil e se intensifica sua atividade
crítico-jornalística. No final de 1982, A teus pés é publicado por uma
editora comercial, incluindo os três outros livros publicados inde-
pendentemente. Em 29 de outubro de 1983, suicida-se aos 31 anos
de idade.
Não há dúvida de que a prematuridade e a aura de tragicidade
que envolveram a morte das poetas construíram mitos que correm
o risco de – infelizmente – ofuscar o intenso e importante trabalho
literário que empreenderam, se seus leitores não estiverem advertidos
de que, para elas, a construção literária se dá para além da esfera da
mera representação.
Portanto, vale a pena nos distanciarmos desse veio mitificador e
reducionista em que alguns insistem em mergulhar ao estudar os poe-
tas suicidas. Assim, o espaço do literário nos oferecerá não a certeza
de um limite, mas a transversalidade de caminhos que, ludicamente,
se aproximam e distanciam. Diante do texto literário, os limites já não
são estáveis, estão prontos à transgressão. A linguagem da conversão
de realidade em imaginário será – se houver algum – o ponto de fusão
(e confusão) entre o ser de palavras e o real, formando, de fato, uma
palavra-corpo que se (con)forma na produção1 (e não representação)
mimética, através de uma espécie de jogo com a aparência de certeza
de se estar revelando a verdade. Também as obras de Ana Cristina

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Palavras iniciais

Cesar e Sylvia Plath nos convidam a trilhar os “(des)caminhos da


dialética do imaginário, trajetória em que o próprio leitor assume a
função de descobrir, na aparência de real do texto ficcional, no mundo
do ‘como se’, a correlação crítica e sutil com a realidade” (PIETRANI,
2000, p. 24), ainda que tais palavras tenham sido dirigidas original-
mente ao texto de Machado de Assis.
De fato, o tema do limite e do sem-limite é contagiante. Penetra
nos escritos, no tempo e nos espaços com que nos defrontamos. Para
justificar esse contágio e deslocar-me, um pouco, do tom acadêmico
que sempre percorre dissertações e teses, farei referência a um fato
acontecido comigo, na ocasião em que eu e minha filha, na época com
dois anos, assistíamos à encenação da peça Branca de Neve e os Sete
Anões, no Teatro Abel, em Niterói.
Eis que o espelho responde à pergunta da madrasta. Ele é um
homem vestido com uma roupa branca e prateada que, lentamente,
se ergue atrás do espelho-real, atendendo ao chamado da bruxa.
Um menininho, sentado atrás de nós, dirige-se aflito a sua mãe: “O
que é isso, mãe?” Ao que ela responde: “É um homem fingindo que é
espelho”.
Provavelmente, o menino já conhecesse a história da Branca de
Neve e nunca houvesse estranhado o fato de o espelho falar. Mas ali,
naquele momento, quando a imagem una do espelho se desfaz e surge,
entre ele e o menino, um homem (real?), como um vulto verbal não
textualizado, talvez algo se tivesse rompido para a criança. Assumindo
a função de concretizar um imaginário, a figura do homem, ainda que
disfarçada por roupas de clown, interrompeu o fluxo da ficção: detrás
do espelho um homem de carne-e-osso irrompera. O encantamento
próprio do limite lábil entre a vida e a ficção, em que os lados do infi-
nito – um que parece tão próximo, outro tão distante – se bipartem,
não fora conseguido. E o menino, sensível, manifesta sua estranheza.
É possível acreditar na literatura. Mas, quando sua imagem se faz real,
de forma um tanto canhestra, algo de fundamental se perde: e tinha
sido exatamente a ausência do limite em latência – essa coisa difícil
de tratar – que se perdera ali.
Partindo da idéia de como é difícil se estabelecerem limites, ao
mesmo tempo que se acredita na sua existência e se insiste que, só
com eles, é criado “um outro”, este trabalho se propõe a estudar a ex-
periência (do) limite, a relação entre escrita, vida e morte, abrindo-se
para o estudo de um leque de oposições: fingimento e realidade, ficção
e história, solidão e multidão, eu lírico e eu social, silêncio e palavra,
loucura e lucidez, escrever e viver, culminando na mais trágica de
todas elas, por sua inexorabilidade: viver e morrer.

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Anélia Montechiari Pietrani


A relação entre vida e arte, implantada pela poesia de Ana Cris-
tina Cesar e Sylvia Plath, implica enfrentar a questão da duplicidade,
do paradoxo, da ambigüidade como signos que marcam a moderni-
dade e a pós-modernidade. Por conseguinte, são esses também os
elementos que formam os jogos de linguagem dos textos modernos
e pós-modernos e que serão destacados para estudo na poesia lírica
das autoras.
A perspectiva dualista é aqui entendida a partir de vários
aspectos: a mediação tão tênue entre vida e arte, confissão e ficção,
objetividade e subjetividade, sociedade e lírica, vida e morte, como
vimos afirmando. Inclusive, a própria Ana Cristina já havia demons-
trado essa preocupação em muitos de seus ensaios críticos sobre
literatura e tradução, que foram compilados em Crítica e tradução,
pela Editora Ática, em 1999. Como ilustração, vale a pena destacar
uma citação em que Ana C. analisa o poema “Words” de Sylvia Plath,
após ter feito a sua tradução:

No poema de Plath a linguagem é algo com valor absoluto.


A poeta encontra as palavras no caminho. As palavras são
o outro lado da realidade, ingovernáveis, ásperas. Será por
isso que elas não designam, não colaboram com o autor nem
obedecem a ele? A linguagem não está ligada à emoção e há
algo de mortífero nela. Não haverá nesta separação um ele-
mento que faz sofrer? Ao contrário de Mallarmé, Sylvia Plath
constata que a linguagem é um “signo puro, que deixou de
designar as coisas”, afirmação essa que sugere um certo tipo
de loucura. E a modernidade sofre, no final de tudo. Não há
margem para qualquer tipo de brinde. (CESAR, 1999b, p. 418,
grifos do autor)

A citação é elucidativa. Ana Cristina explicita bem o (des)limite


entre linguagem e realidade, o ato criador e a criatura, a escrita e a
morte, a escrita e a loucura, a escrita e o sofrimento: questões estas
fundamentais que serão exploradas no decorrer deste trabalho.
O material aqui apresentado divide-se em quatro capítulos. O
primeiro, intitulado “Uma modernidade (c)sem limites”, reúne o re-
sultado da pesquisa sobre as bases teóricas da modernidade e seus
(sem) limites, principalmente a partir dos estudos de Walter Benjamin,
e apresenta a análise de textos das autoras que possam corroborar
a imagem da “literatura de abismos” que o tortuoso caminho benja-
miniano parece sugerir e instigar, em conjunto com os estudos de
Hannah Arendt e Jean Starobinski.

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Palavras iniciais

Benjamin, Arendt e Starobinski tratam, grosso modo, de ques-


tões importantes que tocam na condição fragmentária e deslizante de
um eu que transita entre sentimentos e expressões, recuperando na/
pela arte a complexidade do ser e da linguagem. Citemos, a título de
ilustração, os autores com que trabalharam esses teóricos nas obras
a que, neste trabalho, se faz referência: Charles Baudelaire, Rahel
Varnhagen, Jean-Jacques Rousseau, Friedrich Schlegel. No mesmo
patamar desses artistas, podemos posicionar Ana Cristina Cesar e
Sylvia Plath.
A expressão de um rosto e de uma história marcados pelas
alegorias da ruína, do cadáver, da caveira – de que fala Walter Benja-
min em Origem do drama barroco alemão – torna significativo iniciar
com esse autor o estudo teórico sobre as condições paradoxais dessa
modernidade pós-moderna,2 que vive ou revive o impasse entre as
enormes possibilidades abertas pelo progresso e pela modernização,
mas convive sem solução com as discrepâncias provocadas por um
mundo “moderno” e “modernizado”, que não ficou nada melhor; ao
contrário, criaram-se abismos entre homens, entre sociedades, entre
culturas.
Assim como Charles Baudelaire chama a atenção de Walter
Benjamin por ter-se debatido com as fantasmagorias da Modernidade
e da metrópole parisiense do século XIX, transitando poeticamen-
te entre o eu interior e o eu social, criando e recriando a imagem
consciente (apesar da construção em fragmentos e em ruínas) do
pessimismo e da melancolia, também as poetas aqui estudadas fla-
gram um momento em que o sujeito se inteira dos fragmentos (que
valha o paradoxo) que circundam a vida, a escrita, a loucura, a morte.
São elas criadoras de textos que desmistificam limites e certezas. O
benefício é exclusivo do vazio, da lacuna, da falta que faz o si mesmo
e o outro: o outro ficcional, que só a escrita – em sua solidão – pode
completar; ou o outro real – o leitor, possivelmente aquele mesmo
hipócrita, irmão de Baudelaire.
O segundo capítulo, com o título “Migração de gêneros e senti-
dos”, complementa a idéia que persegue este trabalho, a da modernida-
de que se (des)faz no eu em pedaços, no outro que aparece ao eu, no
limite que se experimenta, ao tratar das cartas e diários escritos por
Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath. Por se tratar de textos que comumen-
te se aproximam do texto-documento e por apresentarem momentos
de reflexão acerca do fazer literário e de referências crítico-teóricas,
torna-se bastante interessante cotejá-los com os textos ficcionais por
elas produzidos, principalmente com Luvas de pelica, de Ana Cristina,
e The bell jar, de Plath.

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Anélia Montechiari Pietrani


Tanto as cartas quanto os diários orientam e avançam o estudo
das inter-relações e das oposições até aqui apontadas, uma vez que se
pretende sempre ressaltar que não estamos diante de um epistolário
ou diário “leigos”, mas de um produto de uma (ou duas) “escritora[s]
por vocação e profissão”, conforme expressão de Italo Moriconi, que
aparece em seu ensaio biográfico sobre Ana Cristina Cesar, e que aqui
gostaríamos de estender a Sylvia Plath (Cf. MORICONI, 1996, p. 11).
Somente isso já bastaria para pensarmos no caráter de literaridade
que ronda tais textos.
Fugindo à argumentação da mera análise biográfica, ainda mais
à especulação em torno da figuração mítica que assumiu o suicídio
de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath, buscamos no terceiro capítulo,
“Morrer na vida, viver na poesia”, a evocação, através das imagens
da morte suscitadas pela leitura dos seus textos, dos elos entre es-
crita e vida, entre corpo de escrita e corpo de realidade, que se faz
morto para viver na poesia. Trata-se, ainda, das reflexões em torno
dos limites da produção textual. Nesse aspecto, o texto de Maurice
Blanchot, O espaço literário, será importante para que reflitamos sobre
essas questões.
Ainda se espera analisar aqui as relações entre gênero, identida-
de e subjetividade e mostrar a figuração de uma temática do feminino
extremamente dessacralizadora e distanciada dos limites impostos à
poeta-mulher por uma concepção de poesia voltada ao etéreo, doce e
singelo. Rompendo esses elos conservadores, a poesia de violência de
Ana Cristina e Sylvia Plath trabalha a erotização que o texto literário
provoca como uma espécie de “frenesi da escritura”, ao mesmo tempo
que a condição fragmentária da modernidade e do seu eu vem sugerida
no tom de morte e melancolia que perpassa seus textos.
Sobre a reflexão acerca da presença de uma subjetividade e iden-
tidade femininas no texto literário, vale-nos citar as obras Reflections
on Gender and Science, de Evelyn Fox Keller, e Technology of gender:
essays on theory, film and fiction, de Teresa de Lauretis, que estudam
e põem em questionamento o sistema de “generização da cultura”
e a articulação mítico-ideológica da “tecnologia dos gêneros”. Os
termos entre aspas foram utilizados, respectivamente, pelas autoras
citadas e, grosso modo, fazem referência ao aparato sociocultural de
implicação ideológica que constrói a diferenciação sexual. Além dos
já referidos textos de Keller e Lauretis, complementam este estudo os
significativos livros Beyond feminist aesthetic: feminist literature and
social change, de Rita Felski, e Nem musa, nem medusa: itinerários
da escrita em Clarice Lispector, de Lucia Helena. O primeiro procura
questionar estudos teóricos de feministas ortodoxos que trabalham

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Palavras iniciais

sem mediação a conexão entre literatura e realidade, estabelecendo


relações diretas entre “o ser das palavras” e “o ser da existência”. O
segundo, apesar de tratar da análise da narrativa de Clarice Lispector,
é um texto que elucida muitas das questões a respeito da figuração do
feminino como transgressão de modelos dominantes.
Há um aspecto que deve ser considerado imprescindível em
um trabalho que pretende estudar a produção literária lírica moder-
na e pós-moderna: a reflexão sobre o papel e o lugar da arte neste
momento em que – diz-se – está derrotada a utopia, fragmentou-se o
mundo multifuncionalizado, as fronteiras se esvaíram, perderam-se
as grandes narrativas, as luzes iluministas apagaram-se em meio
à escuridão que se insufla na pós-modernidade. Este será o pano de
fundo para as questões desenvolvidas no quarto capítulo: “Tra(u)mas
de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath”.
No que diz respeito ao “mal-estar” que ronda a modernidade,
será retomado o seminal estudo de Freud em O mal-estar na civiliza-
ção. Em continuidade às reflexões sobre as instabilidades do mundo
moderno e o sentimento de desencantamento que nele se manifesta,
consideramos relevante a análise de Michael Löwy, em Redenção e
utopia, sobre o caráter pregnante da reflexão dos pensadores judeus
da Europa Central – dentre eles, Benjamin – acerca dos veios neo-
românticos e melancólicos da modernidade.
Cientes de que estamos em um mundo tão pouco reflexivo e que
é a reflexão a única possibilidade de se atingirem as “luzes elucidativas”
(valendo o pleonasmo) refletidas sobre a escuridão da melancolia,
convém pensar acerca da questão da cultura pós-moderna associada
ao discurso sobre a sociedade pós-industrial, no que diz respeito ao
conceito de “saber”. Na sociedade informatizada, da proliferação dos
“pós”, estabelece-se uma relação mercantilizada entre saber e poder.
Conseqüentemente, isso pode ser estendido para um questionamento
estético-político sobre o fazer poesia hoje, nesta contemporaneidade
desumana e bárbara, em que o saber perde o “valor de uso” e assume
um “valor de troca”.
Assim, neste último capítulo, ao retomarmos algumas das idéias
expostas no primeiro, os livros As ilusões do pós-modernismo, de Terry
Eagleton, e As origens do pós-modernismo, de Perry Anderson, não
contribuirão apenas para trabalhar o conceito de uma era e de um
estilo chamados pós-modernos, considerando aqui que modernida-
de e pós-modernidade são termos polêmicos que, para uns críticos,
representariam estilos de época diferentes enquanto, para outros,
apesar das especificidades de cada um, o pós-moderno representaria
um capítulo do moderno. Mas contribuirão principalmente para se

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Anélia Montechiari Pietrani


pensar a relação entre arte e história, correlacionar as dimensões
universal, social e individual na obra de arte e encarar o fenômeno
da arte, da poesia como reflexão. Sem dúvida, é importante abrir-nos
ao questionamento acerca do significado do fazer poético e do poder
da arte/da poesia nessa sociedade dita pós-moderna, que prima pela
desmemoriação e pela aceitação quase passiva da fragmentação. Há
lugar para a arte nesse meio infernal?

Notas
1
As expressões “mímesis da representação” e “mímesis da produção” são de Luis
Costa Lima e foram analisadas pelo ensaísta em Mímesis e modernidade: formas
das sombras (Rio de Janeiro: Graal, 1980), ao defender a idéia de que a linguagem
literária é criadora de mundo e não mera transparência deste.
2
E, por falar em (des)limites, convém destacar a dificuldade de se estabelecer dife­
rença entre modernidade e pós-modernidade, principalmente quando se observa
que, se há diferenças estéticas entre um e outro movimento a ponto de alguns
críticos incluírem certas obras em um ou outro estilo, as bases históricas que
fundamentaram a modernidade permanecem atuantes na pós-modernidade (isso
se quisermos usar os termos para marcar a diferença temporal e de gerações en-
tre um e outro); por isso, acaba por ser mais provocativo usar o termo moder­
nidade pós-moderna. A inteligente analogia que Terry Eagleton faz com a fábula
da crian­ça e do rei nu é elucidativa nesse sentido: “O pós-modernismo [...] não
pode mesmo chegar a um termo, tanto quanto não poderia haver um fim para a
pós-Maria Antonieta. Ele não é, aos próprios olhos, uma ‘etapa da história’, mas a
ruína de todo esse pensamento etapista. Ele não vem depois do modernismo no
mesmo sentido que o positivismo vem depois do idealismo, mas no sentido de que
o reconhecimento de que o rei está nu vem depois de se olhar para ele. E assim,
da mesma forma como era verdade que o imperador esteve nu o tempo todo, sob
certo aspecto o pós-modernismo existia mesmo antes de começar. Num determi-
nado nível pelo menos, ele não passa da verdade negativa da modernidade, um
desmascaramento de suas pretensões míticas e, portanto, presume-se que fosse
tão legítimo em 1786 quanto o é hoje” (EAGLETON, 1998, p. 37).

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Uma modernidade (c)sem limites
Anjos e demônios da modernidade

“O duplo caráter do progresso, que sempre desenvolveu o


potencial da liberdade ao mesmo tempo que a realidade efe-
tiva da opressão, acarretou uma situação em que os povos
ficavam cada vez mais integrados no processo de dominação
da natureza e na organização social, tornando-se porém, em
virtude da coerção infligida pela cultura, ao mesmo tempo
incapazes de compreender em que sentido a cultura ia além
dessa integração.”
(ADORNO, 1993, p. 129)

A história não é linear, mas marcada por rupturas e contradições.


Nada, no entanto, do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido,
desde que se compreenda o quanto essa história passada está carregada
de possibilidades futuras que ficaram escondidas e, momentaneamente,
esquecidas, porque se constituíram de significações profundas e, quase que
literalmente, soterradas. Sob essas ruínas, também se oculta a fala do outro
reprimido pela história.
A par disso, Walter Benjamin, considerando também sua a tarefa
do materialista histórico, a de escovar a história a contrapelo, exempli-
fica com as referências ao quadro Angelus Novus, de Paul Klee, de 1920,
as contradições advindas com uma certa concepção de modernidade. Se
para alguns a modernidade é a representatividade da clareza racionalista
permitida pelas utopias do Iluminismo, para outros – nestes, inclui-se o
próprio Benjamin – é um terreno caudaloso, em claro-escuro, que gera,
sim, luz, mas a perigosa luz que alucina, com a diferença de que, com o
uso de um alucinógeno, a manifestação é momentânea, apenas ocorre
durante o período em que é consumido, enquanto os fatos da vida coti-
diana capitalista nos entorpecem de tal forma inconscientemente, que nos
fazem acostumar a conviver duradouramente com fantasmagorias que se
apresentam como realidade.

Há um quadro de Klee que se chama “Angelus Novus”. Representa um


anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente.
Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas.

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Uma modernidade (c) sem limites

O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido
para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimen-
tos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente
ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de
deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas
uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas
com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempes-
tade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira
as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu.
Essa tempestade é o que chamamos progresso. (BENJAMIN,
1994b, p. 226)

Este anjo, assim descrito, apresenta as mesmas características


das angélicas entidades intemporais e sem vontade própria. O tom
melancólico que advém dessa leitura benjaminiana está no fato de que
a tempestade letal vem do paraíso, portanto, tristemente, do próprio
Deus. Apesar de ter consciência de dever resistir a Ele, o anjo está
impotente para juntar os fragmentos e auxiliar os vencidos. É, pois,
um anjo caído.
Pode esse novo anjo ser considerado uma metáfora do artista
moderno?
Assim como o anjo da história, que tem os olhos voltados para
trás a perscrutar as verdades de catástrofes e de ruínas sob ruínas, as
mais antigas e recônditas, o novo artista não se volta para um futuro
radiante e promissor para onde a tempestade do progresso “divino”
o deseja empurrar; volta-se para a tragédia do passado – do passado
instantâneo cujo caminho a rajada tempestuosa acabou de construir
ou destruir. Ele está só, fraco, impotente diante desse “espírito” moder-
no e, por isso mesmo, nunca desejou tanto o pacto fáustico, que passa
a assumir uma aura, até, de agradabilidade, a ponto de desenvolver
o comportamento de uma escarnecedora revolta contra o sagrado.
Observemos a marca dessa literatura (mal)dita moderna em Charles
Baudelaire, aquele que Walter Benjamin, em Charles Baudelaire: um
lírico no auge do capitalismo,1 consagra como o poeta que inaugura a
teoria moderna da literatura:

Quanto a mim, isto é certo, eu saio satisfeito


Deste mundo onde o sonho e a ação vivem a sós;
Possa eu usar a espada e a espada ser-me o algoz!
São Pedro renegou Jesus... Pois foi bem-feito! (BAUDELAIRE,
1985, p. 419)

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Anélia Montechiari Pietrani


Acerca disso, as opiniões de Michael Löwy e Robert Sayre, em
Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da modernidade,
são elucidativas para se estudar a concepção de literatura moderna
como a que carrega uma força crítica diante dos pactos previstos e
promovidos pela modernidade. Nesse livro, os autores ampliam o
conceito de romantismo para além de uma concepção basicamente
estilístico-literária e, como visão de mundo, o definem como uma
forma de crítica à modernidade e à civilização capitalista moderna.
Para eles, este é o papel do romântico:

[O] romantismo é, queiramos ou não, uma crítica moderna da


modernidade. O mesmo é dizer que, embora se revoltem contra
ele, os românticos não poderiam deixar de ser profundamente
formados por seu tempo. Assim, ao reagirem afetivamente,
ao refletirem, ao escreverem contra a modernidade, estão
reagindo, refletindo e escrevendo em termos modernos. Em
vez de lançar um olhar do exterior, de ser uma crítica oriunda
de um “alhures” qualquer, a visão romântica constitui uma
“autocrítica” da modernidade. (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 39, grifos
do autores)

Cabe aqui uma comparação com Charles Baudelaire, que, nos


moldes da concepção de romantismo de Löwy e Sayre, representa,
com extrema força e lucidez, o olhar crítico e moderno que hostiliza
o progresso, a cegueira das ideologias por ele promovidas e a catás-
trofe do inferno da modernidade numa proximidade fatidicamente
temporal e espacial:

Deve-se fundar o conceito de progresso na idéia de catástrofe.


Que tudo “continue assim”, isto é a catástrofe. Ela não é o sempre
iminente, mas sim o sempre dado. O pensamento de Strindberg:
o inferno não é nada a nos acontecer; mas sim esta vida aqui.
(BENJAMIN, 1989, p. 174, grifos do autor)

Na esteira de um romantismo maldito, Baudelaire figura entre os


que repudiam a modernidade impregnada pelo mal-estar vivenciado
pelos românticos na vida moderna, ainda que a reflexão e a forma de
escritura sejam feitas, propriamente, em termos modernos. O que é
por ele amaldiçoado é visto e vivido por um flâneur, estrategicamente
posicionado, que se move lentamente em meio à multidão a perscrutar
minuciosamente calçadas, ruas, lixos, em busca dos vestígios perdidos
dos indivíduos na cidade grande, em busca das pistas que possam

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Uma modernidade (c) sem limites

sondar os mistérios que rondam a alma humana. Ali na multidão, en-


torpecido, também o artista pode se esgueirar entre os objetos para
captar-lhes, com o olhar alegórico da desconfiança – que atravessa
véus –, as imagens do sentido e do sem-sentido do mundo e alcançar
o terrível vazio da catástrofe e da melancolia.

É precisamente esta imagem da multidão que se tornou de-


terminante para Baudelaire. Se sucumbia à violência com que
ela o atraía para si, convertendo-o, enquanto flâneur, em um
dos seus, mesmo assim não o abandonava a sensação de sua
natureza inumana. Ele se faz cúmplice para, quase no mesmo
instante, isolar-se dela. Mistura-se a ela intimamente, para, ino-
pinadamente, arremessá-la no vazio com um olhar de desprezo.
(BENJAMIN, 1989, p. 121)

Nesse processo de ultrapassagem de limites entre solidão e


multidão, pode ser que o objeto se perca, mas a imagem fica perpetua­
da pelo artista ou, talvez melhor ainda, permanece o subterrâneo, a
ruína do “objeto”, pois, para que a imagem se torne uma obra de arte,
é preciso antes que ela tenha se inscrito na memória do artista, “esse
solitário dotado de uma imaginação ativa, sempre viajando através do
grande deserto de homens” (BAUDELAIRE, 1996, p. 24), esse ser que é
capaz “de tirar da moda o que esta pode conter de poético no histórico,
de extrair o eterno do transitório” (BAUDELAIRE, 1996, p. 24).
Como lembra Benjamin, citando Joubert, “os poetas são mais
inspirados pelas imagens do que pela própria presença dos objetos”
(BENJAMIN, 1989, p. 87). Por isso, o flâneur pode, mesmo na contramão
da modernidade, mesmo reconhecendo o progresso como o responsá-
vel pelo decaimento da alma, tomá-lo de seu lado negativo, miserável,
torpe e noturno, e torná-lo matéria a ser apreendida poeticamente, de
modo que a poesia passa a ser guiada a novos caminhos.
Se a cidade está modernizada, se a alma dos seus cidadãos tam-
bém se moderniza, Walter Benjamin nos mostra, sempre respaldando-
se na poesia de Baudelaire, que também a figura do herói deve aparecer
modernizada. Apoiando-se no fato de que, para viver a modernidade,
é preciso ter uma constituição heróica, Baudelaire lança os novos
parâmetros do herói: o (mal)dito que está fadado à decadência; como
o “anjo novo”, não se entrega, mas queda impotente. Entram, pois,
nessa lista, o trabalhador assalariado, que luta escravizado em seu
labor diário; os habitantes dos subterrâneos das cidades grandes; as
lésbicas, sua dureza e seu ideal erótico; os trapeiros em busca do lixo
nas ruas; os poetas à cata de imagens e rimas nesse mesmo lixo.

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Anélia Montechiari Pietrani


Este último – o poeta moderno – deve ser glorificado, principal-
mente porque se sabe que sua atividade se desenvolve numa atmosfera
e num terreno hostis. No poema “O sol”, por exemplo, Baudelaire utiliza
a metáfora do esgrimista para exprimir que o processo de criação exige
um tal esforço físico que, ao final do duelo, vencido, o poeta solta um
grito de terror (Cf. BENJAMIN, 1989, p. 69).
Tropeçar em palavras, topar imagens sonhadas são atitudes do
artista-herói que, sob a experiência do choque, trabalha literariamente.
Tal como um poeta, o sol que vai às cidades “redime até a coisa mais
abjeta,/ E adentra como rei, sem bulha ou serviçais,/ Quer os palácios,
quer os tristes hospitais” (BAUDELAIRE, 1985, p. 319). Cabe ao poeta
dar dignidade ao que não tem mais nada disso; cabe ao poeta, como
o sol, “clarear” essa situação abjeta, redimi-la do subterrâneo, trazê-la
à luz, trazer-lhe a luz. Tornando-se matéria de poesia, talvez encontre
a única fulguração que lhe é permitida, já que a felicidade prometida
pelo iluminismo esvaiu-se em sombras.
Assim como o novo herói, também a concepção da arte deve
ser revista:

Quem dentre nós já não terá sonhado, em dias de ambição, com


a maravilha de uma prosa poética? Deveria ser musical, mas sem
ritmo ou rima; bastante flexível e resistente para se adaptar às
emoções líricas da alma, às ondulações do devaneio, aos cho-
ques da consciência. Esse ideal, que se pode tornar idéia fixa,
se apossará sobretudo daquele que, nas cidades gigantescas,
está afeito à trama de suas inúmeras relações entrecortantes.
(BAUDELAIRE apud BENJAMIN, 1989, p. 69)

A partir da citação acima, constata-se que a poesia de Baudelaire


se faz impregnada pela imagem de choque e pelo contato com a massa
urbana, representando o novo modo de sentir que se instaura com a
teoria moderna da arte. A multidão amorfa de passantes (em que se
perdem os vestígios do indivíduo, daí o nome massa) está impressa
como imagem oculta em seu processo de criação. Insistamos, ainda um
pouco mais, na metáfora da esgrima, com cujos golpes o poeta abre
caminho na multidão e encontra “a multidão fantasma das palavras, dos
fragmentos, dos inícios de versos com que [...], nas ruas abandonadas,
trava o combate pela presa poética” (BENJAMIN, 1989, p. 113).
Este combate evita que as imagens lhe fujam. Estas, talvez,
fiquem nas palavras, mas escapa-lhe o objeto que, resultado da vi-
vência de choque, é fugaz e efêmero. O sublime amor à primeira vista
é substituído, na modernidade, pelo “amor à última vista”, como na

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Uma modernidade (c) sem limites

estrofe final do poema “A uma passante”, de Baudelaire: “Longe daqui!


tarde demais! nunca talvez!/ Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,/
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!” (BAUDELAIRE, 1985, p.
345, grifo do autor).
O novo modo de sentir que passa a prevalecer relaciona-se com
a substituição da antiga forma narrativa pela informação, em que se
percebe a atrofia da experiência. Esta, conforme define Benjamin, é
“matéria da tradição, tanto na vida privada quanto na coletiva. Forma-
se menos com dados isolados e rigorosamente fixados na memória,
do que com dados acumulados, e com freqüência inconscientes, que
afluem à memória” (BENJAMIN, 1989, p. 105). A informação apenas
pretende transmitir um acontecimento objetivamente, enquanto a
narrativa prima pela assimilação da experiência humana em que “fi-
cam impressas as marcas do narrador como os vestígios das mãos do
oleiro no vaso de argila” (BENJAMIN, 1989, p. 107). Como, nesse mo-
mento, perdem-se as marcas da tradição e dispersam-se os vestígios
do ser em meio à secura e ao vazio da vida burguesa, não há como
nos esquivar ao fato de que nossa vida se modula sob os auspícios
da vivência, que tudo assimila às pressas e produz efeitos imediatos,
e não da experiência, que, paulatinamente, vai sedimentando, cons-
truindo, se desdobrando. A atividade da experiência é associada a
uma viagem, como afirma Leandro Konder lembrando que o termo
correspondente em alemão para experiência – Erfahrung – é cognato
de fahren, que significa viajar.2
A grande questão a que Walter Benjamin deseja chegar é a
decorrente do efeito negativo da tecnologia capitalista moderna que
transforma os seres humanos em autômatos. Na produção capitalista,
não é o trabalhador que faz uso dos meios de trabalho, mas são os
novos meios de trabalho que utilizam o trabalhador. Citando Marx
e corroborando a sua preocupação, Benjamin afirma que “o homem
que não possui outra propriedade que a sua força de trabalho está
condenado a ser ‘o escravo de outros homens, que se tornaram...
proprietários’” (BENJAMIN, 1994b, p. 227).
O processo do trabalho industrial isola-se da experiência.
Trata-se, pois, de um processo degradado pela disciplina das máqui-
nas, uma operação automática, isenta de conteúdo. Dessa forma, a
atividade dos operários é marcada pela inutilidade, pelo vazio, pelo
não poder concluir. Explicando que o tempo que se espera para a
realização de um desejo é marcado pela longevidade – daí o desejo
realizado ser simbolizado pela estrela cadente, já que se precipita na
infinita distância do espaço –, Benjamin compara o tempo industrial
e o tempo no jogo de azar com o “tempo infernal”, “em que transcorre

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Anélia Montechiari Pietrani


a existência daqueles a quem nunca é permitido concluir o que foi co-
meçado” (BENJAMIN, 1989, p. 129). Operário e jogador, novos Sísifos,
são símiles sempre regulados pelo recomeçar. Com a mecanização,
a uniformidade dos movimentos, não se valoriza mais a experiência,
que corresponde a uma espécie de aperfeiçoamento lento, conforme
dissemos acima, citando Benjamin. Passa-se, então, a valorizar a
vivência, o produto do choque, o momentâneo, o riscar do fósforo, o
arranque da máquina, o lance no jogo de azar.
Comparada ao artesanato, em que a conexão entre as etapas
do trabalho é contínua, a atividade do operário aparece reificada e
marcada pelo movimento uniforme, constante. Seguindo a cadeia asso-
ciativa de Benjamin, tal como o operário é adestrado previamente para
trabalhar com a máquina, também a indumentária, o comportamento,
os gestos dos seres nas multidões são uniformizados, e a conse­qüência
é a inevitável perda da individualidade de um eu que, atrofiado da
experiência, é destruído e reconstruído com novos movimentos, no-
vos ritmos de existência, novos estados de espírito, novos sentidos
e sentimentos, novos medos, novas formas de comportamento, de
solidão e de expressão.
Talvez, para captar a essência da multidão, o flâneur tivesse
como seu desejo mais íntimo emprestar-lhe uma alma. Mas isso é
também uma ilusão, já que o preço para se adquirir a sensação do
moderno já havia sido pago: a desintegração da aura3 na vivência do
choque, que aparece inscrita por Baudelaire em sua obra poética,
acentuando-lhe o tom melancólico sob o signo da alegoria:

São as sólidas razões sociais da impotência masculina que, de


fato, fazem da via-crucis seguida por Baudelaire um caminho
socialmente traçado. Só assim se pode compreender que,
no caminho, tenha recebido como viático uma antiga moeda
preciosa oriunda do tesouro acumulado dessa sociedade eu-
ropéia. A cara dessa moeda exibia um esqueleto e o reverso, a
melancolia, imersa em meditação. Essa moeda era a alegoria.
(BENJAMIN, 1989, p. 175)

Como a alegoria se fixa às ruínas, restam apenas imagens so-


terradas de um quadro infernal: alucinado pela marcha inexorável do
progresso, o homem só consegue vislumbrar de si mesmo um falsea-
mento de vida, que só existe como esqueleto, de um lado, enquanto,
de outro, formam-se sombras produzidas por uma luz enganosa que,
fantasmagoricamente, escondem o que se poderia ver além, marcando
tudo com o sentimento da melancolia.

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Uma modernidade (c) sem limites

Também o livro Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura


da modernidade, de Marshall Berman, é elucidativo nesses aspectos,
por observar (pela leitura inteligente que faz de Baudelaire) as con-
tradições que marcam – tanto na sociedade quanto na literatura – as
“flores do mal” de nosso século, em que um desejo incessante de
acumulação (capitalista) potencializa uma leitura da história como
telos e requer a força da negatividade e do ceticismo como forma de
desconstruir a marcha inexorável do “progresso”.
Pode ser que a máxima do velho Marx esteja (sempre) em ação:
“Tudo que é sólido derrete-se no ar; tudo que é sagrado é profanado
e os homens são por fim compelidos a enfrentar de modo sensato
suas condições reais de vida e suas relações com seus semelhantes”
(MARX, 1998, p. 14). Se estiver, teremos a certeza de que a catástrofe
está aqui mesmo, entre o eu e seus semelhantes, e é contra ela que
pulsa a revolta dos anjos que desejariam tornar a ascender, guiados
pelas mãos da mais profunda melancolia, numa época que não tem
nenhuma espécie de dignidade a conceder, a não ser a do único resgate
possível: o efetuado pela árdua tarefa do poeta ao tentar recuperar a
beleza no espetáculo da vida moderna.

Fantasmas do eu em solidão e em multidão

“Baudelaire amava a solidão, mas a queria na multidão.”


(BENJAMIN, 1989, p. 47)

O pacto de um eu que flana à espreita de um outro pode parecer,


à primeira vista, um produto da errância da modernidade. Porém, se se
apresenta entre o eu e seus semelhantes ou dessemelhantes, buscando
transgredir limites e recuperar na palavra do mundo a palavra da arte,
sua figuração já terá aparecido, na verdade, no centro de discussões
sobre a arte desde a Antigüidade Clássica. Atingir o âmago do real
para compreendê-lo, que parece ser a força da estratégia crítica da
flânerie baudelairiana, remete-nos à sempiterna discussão entre o ser e
o parecer em meio a uma – agora – modernidade que se contagia com
uma pluralidade efêmera de imagens, cuja complexidade intelectuais
e artistas são forçados a enfrentar.
Citemos, por exemplo, Platão, em Sofista, que, em sua época, já
se ocupava da difícil questão entre o ser e o parecer e previa a intem-
poralidade do problema:

É que, realmente, jovem feliz, nos vemos frente a uma questão


extremamente difícil; pois, mostrar e parecer sem ser, dizer algo

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Anélia Montechiari Pietrani


sem, entretanto, dizer com verdade, são maneiras que trazem
grandes dificuldades, tanto hoje, como ontem e sempre. Que
modo encontrar, na realidade, para dizer ou pensar que o fato
é real sem que, já ao proferi-lo, nos encontremos enredados na
contradição? Na verdade, Teeteto, a questão é de uma dificul-
dade extrema. (PLATÃO, [19--], p. 128)

Avançando, propositalmente, quase três milênios, tomamos


as palavras de Beatriz Sarlo – para corroborar as de Platão – do
ensaio Cenas da vida pós-moderna, em que ela faz interessantes
questionamentos sobre o lugar da arte, a sua guetificação e a sua
dessacralização:

A questão da arte – não como debate restrito a especialistas, e sim


como debate intelectual público – não figura em qualquer agenda.
Não obstante, muitos sabem que este foi um tema central para
os dois séculos que estamos deixando para trás. Provavelmente,
essa centralidade desvaneceu-se para sempre. Ainda assim, não
existe outra atividade humana que nos possa colocar diante de
nossa condição subjetiva e social com a mesma intensidade e
riqueza de sentidos que a arte. (SARLO, 2000, p. 8-9)

A ensaísta argentina aponta, com pesar, a perda da centralidade


da discussão sobre o tema do lugar da arte e da cultura na vida social
neste momento, dito pós-moderno, em que talvez a única palavra de
ordem seja, de fato, o ex-cêntrico. Ao mesmo tempo, porém, defende
que a arte é a única possibilidade que temos de nos defrontar com
nossa condição subjetiva e social. O “conhece-te a ti mesmo”, da
inscrição do oráculo pagão, não pode mais estar a sós de uma cap-
tação do sentido e do sem-sentido da realidade, em que se instaura
uma desconfiança profunda com relação às aparências. É condição
da modernidade tornar-se um flâneur: enfrentar a mim, enfrentar a
multidão, e estabelecer, por meio desse conflito dilemático, o outro
como o novo objeto da poesia lírica, não mais tendo o eu (ou, talvez,
nunca tivesse tido) como o centro de si mesma:

O poeta goza do incomparável privilégio de ser, à sua vontade,


ele mesmo e outrem. Como as almas errantes que procuram
corpo, ele entra, quando lhe apraz, na personalidade de cada
um. Para ele, e só para ele, tudo está vago; e se alguns lugares
parecem vedados ao poeta, é que a seus olhos tais lugares não
valem a pena de uma visita. (BAUDELAIRE, 1980, p. 39)

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Uma modernidade (c) sem limites

Deve-se insistir, portanto, que o prefixo pós, antes de marcar


um momento posterior ao moderno e, sendo assim, interpelado
por algo “novo”, aprofunda a perda do sagrado, do homogêneo, das
identidades, dos centros, como dissemos anteriormente a partir da
leitura da citação de Sarlo e reafirmamos abaixo com as palavras de
Linda Hutcheon:

O centro já não é totalmente válido. E, a partir da perspectiva


descentralizada, o “marginal” e aquilo que vou chamar de “ex-
cêntrico” (seja em termos de classe, raça, gênero, orientação
sexual ou etnia) assumem uma nova importância à luz do
reconhecimento implícito de que na verdade nossa cultura
não é o monolito homogêneo (isto é, masculina, classe média,
heterossexual, branca e ocidental) que podemos ter presumido.
O conceito de não-identidade alienada (que se baseia nas oposi-
ções binárias que camuflam as hierarquias) dá lugar, conforme
já disse, ao conceito de diferenças, ou seja, à afirmação não da
uniformidade centralizada, mas da comunidade descentralizada
– mais um paradoxo pós-moderno. (HUTCHEON, 1991, p. 29)

Quando Walter Benjamin aponta, em Victor Hugo, Edgar Allan


Poe, E.T.A. Hoffman, Charles Baudelaire – ainda que observando as
particularidades estilísticas e temáticas de cada um –, o fascínio
e o desprezo, o prazer e o tédio, a superfície e o subterrâneo, pre-
sentes na multidão, está ressaltando a diferenciação, os abismos
da(s) identidade(s) do eu e do outro, a ex-centricidade, que são
condições arraigadas à vida pós-moderna, que afugenta territó-
rios, deslimita o público e o privado, traz a necessidade da opção
da solidão, produzindo um sujeito não-eu, mas desfacelado em
fragmentos-outros, dando continuidade, desse modo, ao caminho
aberto pelos modernos.
Podemos, assim, insistir com Beatriz Sarlo na função da litera-
tura e da arte como forma (das mais densas) de expressão humana
capaz de instrumentalizar a investigação lúcida e crítica das esperan-
ças e dos infortúnios, despertando-nos de situações adormecidas e
anemizadas. Pode ser então que, ao perceber a dissimulação do olhar
literário, tinha razão Platão ao banir o perigoso poeta – sedutor e
fabricante de simulacros – de sua República ideal.
Em artigo publicado no jornal alternativo Opinião em 25 de
março de 1977, “O poeta fora da República”, escrito com a contribuição
de Italo Moriconi, Ana Cristina Cesar expõe lúcida e ironicamente a
razão, digamos, “coerente” da atitude de Platão:

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Anélia Montechiari Pietrani


Platão expulsou o poeta da República. O poeta é inútil: não
governa, não legisla, não guerreia, não fabrica utensílios para a
felicidade cotidiana, não faz serviços de interesse público nem
dá aulas de virtude. O poeta é arredio ao pensamento racional
e à verdade. O poeta é um sedutor. Um homem que fabrica
simulacros. Prove-se a utilidade da poesia e ela será admitida
na ordem e no progresso do Estado. Até prova em contrário, o
expurgo será consumado. (CESAR, 1999b, p. 196)

É somente com a mediação da literatura que existe a possibi-


lidade de fantasia-palavra e de fantasia-mundo se intermediarem,
passeando livremente entre superfícies sem que se percebam seus
limites. Platão percebeu muito bem isso e renegou o poeta e a poesia
ao seu limite, o da inutilidade.
Tal qual uma faixa de Möebius, não há eu, não há outro, há a
sensação, nem quente nem fria, nem feliz nem triste, da magia e do
encantamento apenas, que conquista e extasia com seu canto doce e
suave, apesar de terrível. Nesse sentido, “[c]ontraposta à realidade,
a beleza fornece o que nos falta para verbalizar uma insatisfação.
Quando grassa a mentira e a mitificação, traz a verdade, o futuro, a
utopia” (LINS, 1993, p. 20, grifo do autor).
Decerto que não estamos falando da utopia dos messianismos,
que requer a intervenção de Deus ou o sacrifício dos heróis. Referimo-
nos à utopia de ter a coragem de mostrar e dizer que o rei está nu.
Só a palavra em dissimulação, via arte, nos possibilita isso e, assim,
com Ronaldo Lima Lins, poderemos chegar à conclusão de que é só
na permanência da arte que permanece a utopia:

Com efeito, enquanto houver arte, não há como admitir, na


modernidade, o fim das utopias. Por isso, mostra-se válida
uma investigação que, para pôr a existência em xeque, parta
do que lhe revolve a essência, a crosta menos armadura do
que pele, desenvolvida justo para conservá-la em discussão.
(LINS, 1993, p. 21)

É nesse ambiente que podemos localizar a forma de escrita de


Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath: o momento de “permanência” da
discussão em torno da “permanência” da arte e da literatura, enquanto
se discutem os aparatos que as (con)fundem nos limites entre o espaço
literário e o extraliterário. O próprio Ronaldo Lima Lins, no mesmo
texto a que vimos fazendo referência, aborda a sutileza de direções
a que se encaminham – ou desencaminham – as questões entre a

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Uma modernidade (c) sem limites

literatura e a sociedade, com o objetivo de mostrar em que sentido a


literatura não é ultrapassada:

acompanhamos o roteiro inverso ao dos grandes sectários


e revolucionários da época, ao acreditarem que, repetindo a
ficção, manchando a folha de papel ou dando forma ao már-
more, ou, em seu lugar, à ordem social, era possível permitir
que a justiça, a fraternidade e a liberdade andassem com seus
próprios pés, criados pelos homens mas, acima de tudo, seus
criadores. Se não se revelou exeqüível estetizar a sociedade e
nos mostramos simplistas, pretensiosos, maus conhecedores
da estética, tentando a simetria onde prevalece a diversidade
e rejeitando a assimetria na sua esfera autêntica, a direção in-
versa, a que surge dos fatos e vai atrás de aventura, essência,
confirmação, riqueza, ética, esta não caducou. (LINS, 1993, p.
21, grifos do autor)

Nesse sentido, subsiste a situação – por vezes, considerada


paradoxal, conforme pontua Lins – de se revelar a manifestação da
subjetividade do artista e a objetividade de um mundo não mais mero
mundo, mas agora corpo escrito e, portanto, palavra:

Escrever é quebrar o vínculo que une a palavra ao eu, quebrar


a relação que, fazendo-me falar para “ti”, dá-me a palavra no
entendimento que essa palavra recebe de ti, porquanto ela te
interpela, é a interpelação que começa em mim porque termi-
na em ti. Escrever é romper esse elo. E, além disso, retirar a
palavra do curso do mundo, desinvesti-la do que faz dela um
poder pelo qual, se eu falo, é o mundo que se fala, é o dia que
se identifica pelo trabalho, a ação e o tempo. (BLANCHOT,
1987, p. 16-7)

Podemos insistir, portanto, no fato de que a mediação entre


um eu e um outro, entre a palavra do mundo e a palavra da arte é
assunto que é dominante, filosoficamente, desde a Antigüidade Clás-
sica e vem seguindo o percurso da história da filosofia e da cultura
ocidentais, passando a fazer parte de um variado corpus de discipli-
nas que trabalham no campo de observação, investigação e estudo
da arte, seja em sua perspectiva humanística (que compreende a
retórica, a poética e a estética), seja científica (através da história
da literatura, da crítica literária, da ciência da literatura e da teoria
da literatura).4

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Anélia Montechiari Pietrani


Porém, já que se estabelece a inauguração da modernidade na
poesia lírica como forma de reflexão sobre a própria poesia apenas
com o romantismo (mais especificamente o romantismo de Jena,
através da preocupação dos primeiros românticos alemães em se es-
tabelecer uma nova teoria dos gêneros e em se cristalizar a arte como
autônoma), podemos considerar a poesia de Ana Cristina e a de Plath
“realizadoras” dessa intenção romântica, no sentido em que, nelas,
a desestabilização do sujeito se faz de tal forma que a palavra se vê
em uma solidão agônica: se a arte é agora autônoma, também existe
um eu singularizado em escrita, em meio a uma multidão de abismos.
Walter Benjamin já havia advertido que “um abismo separa os seres
humanos de seus semelhantes” (BENJAMIN, 1989, p. 170).
Pensando na relação que se estabelece entre a “solidão” do ar-
tista e a figuração de uma “multidão” por ele interpelada em sua obra,
vejamos como o “Poema óbvio”, de Ana Cristina, pode exemplificar e
elucidar essa questão:

Não sou idêntica a mim mesmo


Sou e não sou ao mesmo tempo, no mesmo lugar e sob o mes-
mo ponto de vista
Não sou divina, não tenho causa
Não tenho razão de ser nem finalidade própria:
Sou a própria lógica circundante. (CESAR, 1998b, p. 59)

A partir da dúvida e da condecoração dos “nãos”, a única ob-


viedade que resta é o retalho que se forma de “eus” esfacelados, no
lugar, no tempo e na ideologia, cujos ideais da divindade e dos projetos
futuros se fraturaram e se perderam. Está aí o eu a deslizar no abis-
mo destinado ao herói moderno, a tornar-se sujeito à instabilidade.
Enfim, falamos agora de um eu lírico que, em fragmentos, capta uma
“nova sensibilidade” pós-moderna e marginal. “Sou a própria lógica
circundante”, mas se a lógica está em mim, o que é “eu”? E o que é a
lógica, nessa época de descrenças, dessacralizações, desconstruções,
desideologizações, pós-era de nãos e des? Sei o que não sou, mas o
que sou? A certeza é só a da dificuldade de ter/assumir uma identida-
de, já que até o gênero oscila nesse caminho em torno, sem princípio
nem meta limitados.
Se pode parecer irônica a referência a Camões que, no renas-
cimento histórico, via o nascimento da modernidade e já observava
a veracidade da ausência de fronteiras, perseguiremos – por meio do
poema de Sylvia Plath citado a seguir – a imagem de um eu em frag-
mentos na contemporaneidade dita pós-moderna.

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Uma modernidade (c) sem limites

Where are you going


That you suck breath like mileage?

Sulfurous adulteries grieve in a dream.


Cold glass, how you insert yourself

Between myself and myself.


I scratch like a cat.

The blood that runs is dark fruit –


An effect, a cosmetic.

You smile.
No it is not fatal. (PLATH, 1992b, p. 202)

O excerto do poema citado, cujo sugestivo título é “The other”,


versa sobre a tensão entre “myself” e “other” que aqui aparece, inicial-
mente, como um “you-glass”. Se há possibilidade de a visão transpor o
vidro em sua transparência, a opacidade de imagem se evidencia neste
outro “other” que é “myself”. Dividem-se o eu e eu mesmo por uma
fria parede de vidro que enclausura, redomas que limitam, de onde
tenta(m) sair desesperadamente. O sangue que se forma impressiona
o outro, que sorri. Só que não é sangue coisa nenhuma. Maquiagem
do eu, maquiagem do resultado desta luta, está presente o velho jogo
de aparências do eu submetido à dúvida da(s) identidade(s) revelada
pela linguagem, do eu submetido ao processo de ficcionalização. Vai
Carlos, vai, Ana, vai, Sylvia, ser gauche na vida.
Ser o eu, estar (com o) outro: duas instâncias que podem ser
derradeiras e extremas (até porque pode-se ler o poema “The other”
como anúncio da traição cometida pelo marido de Plath, como destacam
alguns críticos). Ao se prenderem ao eu, autopunem-se em solidão; se
correm ao outro, abismam-se e correm o risco de dessensibilizar-se.
(Estar com o outro é sempre lançar-se a uma corrida de riscos. Mesmo
que este outro seja eu mesmo.) Mas nem por isso deixam de “dizer-se”. E
isto, assim, gramaticalmente colocado numa forma verbal pronominal,
decerto que pressupõe o si mesmo e o outro, que se cindem e se inven-
tam complexamente: tornam-se a palavra-arte do ser e da linguagem.

Entre mundo e literatura, a ansiedade de ser outro

“Aquilo que acontece na poesia, ou não acontece nunca,


ou acontece sempre. Do contrário, não é verdadeira

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Anélia Montechiari Pietrani


poesia. Não se pode ser obrigado a acreditar que
esteja efetivamente acontecendo agora.” (SCHLEGEL,
1997, p. 62)

“Por que seria preciso dizer-se tão longamente a fim de ser-se?”


(STAROBINSKI, 1991, p. 206). Com esse questionamento, Jean Staro-
binski planta as sementes da confissão no seio da literatura. A palavra
move o ser, tornando-o corpo escrito de uma fala que transita entre o
eu da verdade relativa e o eu do absoluto literário:

A poesia é uma mentira, mora.


Pelo menos me tira da verdade relativa
E ativa a circulação consangüínea. (CESAR, 1998b, p. 35)

Como a problemática em torno do conceito de sujeito lírico


e das relações entre ficção e real parece ser uma preocupação que
ecoa com evidência nos textos de Ana Cristina Cesar, conforme se
verifica no excerto do poema “Mancha”, citado acima, buscamos
na poesia e na prosa da autora formas de lançar novas luzes sobre
a questão levantada por Starobinsky, que possibilitem acirrar tal
discussão.
Também a escrita de Sylvia Plath deixa rastros iluminadores
para se pensar essa questão. Insistentemente, o legado plathiano
tem sido lido como reflexo de uma vida atormentada pela perda do
pai quando ela era tão jovem, pela presença da mãe sempre forte e
moduladora, pela recorrência do marido assassino, pela cobrança,
de si mesma, de se superar poeticamente cada vez mais e mais,
pela voz que sub-repticiamente convoca para o suicídio. Trata-se
do “fascínio simplista”, de que fala Maurício Arruda Mendonça, que
Plath exerceu e exerce sobre seus leitores (Cf. MENDONÇA, 1994,
p. 127).
No entanto, esta mesma poesia tão autobiográfica pode des-
mistificar as concordâncias e as agregações entre vida e arte, sempre
tão improdutivas porque extremistas, sempre tão arriscadas porque
generalizadoras. Observemos, por exemplo, o poema “Words”:

Axes
After whose stroke the wood rings,
And the echoes!
Echoes traveling
Off from the center like horses.

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Uma modernidade (c) sem limites

The sap
Wells like tears, like the
Water striving
To re-estabilish its mirror
Over the rock

That drops and turns,


A white skull,
Eaten by weedy greens.
Years later I
Encounter them on the road –

Words dry and riderless,


The indefatigable hoof-taps.
While
From the bottom of the pool, fixed stars
Govern a life. (PLATH, 1992b, p. 270)

Machados retinindo, ecos galopando, seiva minando como


lágrimas, água se espelhando na rocha, crânio de onde brotam er-
vas daninhas. Um eu encontra essas imagens no caminho, imagens
que são agora palavras secas e desgovernadas, trotes incansáveis,
enquanto estrelas, que deveriam estar fixas no céu, governam a vida
do fundo do poço. O poema encontra lugar no próprio poema e, dele
mesmo, fala da vida que gera e que é gerada, uma árdua tarefa tanto
para o texto quanto para a vida: a de nascer, a de ser resgatado por
um “eu”, a de deixar de ser mundo e tornar-se problema da lingua-
gem e do ser.
Em ensaio sobre a tradução de poemas curtos,5 Ana Cristina
Cesar fala sobre as “soluções poéticas” que encontrou para traduzir
“Words” que, para ela, é um poema de imagens e não de raciocínio.
São imagens que sintetizam e tornam mais densa ainda a decifração
interna do poema, porque se apresentam complexas e contraditórias,
produzindo oposições tais como ação/reação, ativo/passivo, morto/
vivo, animado/inanimado, móvel/fixo, linguagem/vida. Segundo
Ana, neste poema de Plath, “a linguagem é algo com valor absoluto.
A poeta encontra as palavras no caminho. As palavras são o outro
lado da realidade, ingovernáveis, ásperas” (CESAR, 1999b, p. 418,
grifo do autor).
Podemos nos valer também da opinião de Marjorie Perloff, no
ensaio The two Ariels: the (re)making of the Sylvia Plath canon, em que
estuda as duas publicações do livro Ariel, de Sylvia Plath: a idealizada

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Anélia Montechiari Pietrani


por Plath e a aplicada por Ted Hughes, ex-marido da poeta. Segundo
ela, o poema Words, escrito em 1o de fevereiro de 1963, dez dias antes
da morte da poeta, teria sido utilizado propositalmente por Hughes
para encerrar o livro e, assim, reforçar o mito Sylvia-suicida. O que
nos interessa do ensaio de Perloff, neste momento, é mostrar que, de
certa forma, a professora norte-americana corrobora as palavras da
tradutora e ensaísta Ana Cristina Cesar, ao destacar a aguda crítica
estética empreendida por Plath. As palavras estão “dry and riderless”
porque não mais se unem ao poeta que lhes deu vida. Desse modo,
acentua-se a discussão entre as oposições de que fala Ana Cristina,
principalmente as que concernem ao ser e à linguagem: “The connec-
tion between self and language has been severed: there is only fate in
the form of the ‘fixed stars’ that ‘From the bottom of the pool... Govern
a life’.” (PERLOFF, 1990, p. 196).
Palavras secas, por um lado, estrelas no fundo do poço, por
outro, tornam-se uma forma de reforçar o absoluto de que trata a
literatura, mesmo que lidando com fragmentos da vida e da verdade,
mesmo sendo a “mentira” de que fala a poeta Ana em Mancha. E, en-
tre mentiras e verdades, palavras ingovernáveis, postas sob tensão
e relativizando o domínio de quem as criou, podemos cair no estudo
da produção artística de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath, textos
que podem ser lidos como um manancial de questões que provocam
sugestivas discussões.
Recorrente ao longo das obras das autoras, seja diário, seja
carta, seja poesia, a forma de “dizer-se”, criando reflexividades e su-
gerindo a interlocução, abre a perspectiva de se estudar o campo do
literário sob o viés da representação além do referencial, modulando
as formas de conceber a literatura como linguagem criadora de mundo
e não mera transparência deste.
O “ser” garantido pelo “dizer” revela que, na obra literária,
“[n]ão estamos mais no domínio da verdade (da história verídica),
estamos agora no da autenticidade (do discurso autêntico)” (STARO-
BINSKI, 1991, p. 205, grifos do autor). De toda sorte, são estas as formas
de se conceber, mediada pela linguagem, a duplicidade da verdade e/
ou do engano na alteridade da literatura, que faz confundir e fundir
o ser e a palavra.
Meditar sobre o caráter de autenticidade e, exatamente por isso,
de alteridade da literatura possibilita-nos fazer este estudo interagir
com as idéias desenvolvidas por Hannah Arendt no livro Rahel Var-
nhagen: a vida de uma judia alemã na época do Romantismo. Grosso
modo, essa obra trata da biografia de Rahel Varnhagen, feita a partir
de cartas e entradas de diário organizadas por seu marido e aqui

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Uma modernidade (c) sem limites

recortadas e comentadas por Arendt, o que vem corroborar, ainda


mais, a importância de se estudar as cartas escritas por Ana Cristina
Cesar e Sylvia Plath.
Sobre os traços biográficos de Rahel, em linhas bem gerais, po-
demos dizer, apoiando-nos na autora do livro citado, que ela foi uma
judia alemã, num momento em que, sob as luzes do final do século
XVIII, parecia ter sido assimilada, mas que, todavia, se sabia proscrita;
encantadora de tantos homens, mas descrita (vista por Arendt?) como
feia; sem a cultura aristocrática, porém promotora de um importante
salão cultural na fervilhante Alemanha daquele período, o que lhe
permitiu desenvolver estratégias de sobrevivência ditadas por pro-
digiosos talento, sensibilidade e inteligência.
Foi este o primeiro livro de Hannah Arendt, manuscrito em
1933, mas que só veio a público em 1957, depois da Segunda Grande
Guerra, portanto, e após a formação do estado de Israel: “a presente
biografia foi escrita já com consciência da destruição do judaísmo
alemão” (ARENDT, 1994, p. 12). Nele, Arendt toma Rahel como texto
e pretexto para analisar a dialética entre o ser humano e sua história
pessoal, inserida na História social. Seu livro, dessa forma, extrapola
o limite perceptível da análise biográfica dessa pessoa/desse indiví-
duo6 e constrói um painel sociocultural, político e filosófico da época
(histórica e literária) abordada.
É preciso destacar, no entanto, que a pretensão da filósofa,
conforme nos informa em seu prefácio, é “narrar a história da vida
de Rahel como ela própria poderia ter feito [...]. O retrato, portanto,
segue o mais de perto possível o curso das reflexões de Rahel sobre
si mesma” (ARENDT, 1994, p. 11-12). E, quando é feita alguma análise
crítica de seu retrato, “a crítica corresponde à autocrítica de Rahel”
(ARENDT, 1994, p. 12). A própria Arendt, porém, nos adverte:

naturalmente, é apenas de minhas intenções que posso falar


aqui; posso nem sempre realizá-las com sucesso e, nessas
ocasiões, posso parecer estar julgando Rahel a partir de algum
ponto de observação mais alto; nesse caso simplesmente terei
falhado no que me propus a fazer. (ARENDT, 1994, p. 12)

Seria interessante pensar até que ponto esta Rahel, assim a nós
apresentada, não seria uma invenção, portanto, narração de Hannah
Arendt, de Varnhagen (o marido de Rahel), dos interlocutores de suas
cartas e, até mesmo, da própria Rahel, formando construções em
rede de subjetividades. Concorrem para a criação deste corpo escrito

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a subjetividade de cada um e os vários impasses de construção deste
texto, os quais procuramos apontar a seguir:
1) A história de Rahel começa antes de seu nascimento. Este é
um ponto sobre o qual Arendt insiste muito, apesar de afirmar que toda
a problemática analisada é “vista inteiramente do ponto de vista dela
(Rahel)”: “o mesmo princípio foi aplicado, embora aqui com maiores
dificuldades, à questão judaica que, na própria opinião de Rahel, exer-
ceu uma crucial influência sobre seu destino” (ARENDT, 1994, p. 12);
2) Rahel reescreve o seu mundo por meio das cartas. Nelas, verifica-
se que, segundo Hannah Arendt, sua vida se promoveria pelo acaso,7
pela constatação de sua infelicidade, 8 pelo “jogo imaginário do
romantismo”,9 pela assimilação através do desenraizamento e, poste-
riormente, do enraizamento;10 3) Rahel é construída pelo mundo em
que ela se situa. Isto nos faz pensar que o indivíduo é uma invenção
dentro do equilíbrio e desequilíbrio dialético de duas forças: a sobe-
rania do eu e o mundo em que se estabelece, ou melhor, cindem-se
numa “complexa elaboração da identidade” o “eu interior (o moi)”e o
“eu social (o je)”;11 4) Para a publicação das cartas da esposa, Varnha-
gen copiou as que lhe interessavam “em sua caligrafia extremamente
legível”, fazendo “interpolações, mutilações e adulterações” (ARENDT,
1994, p. 10). Segundo Arendt, o objetivo do marido era “tornar as
associações e o círculo de amigos de Rahel menos judaicos e mais
aristocráticos, além de mostrar a própria Rahel sob uma luz mais
convencional, mais coerente com o gosto da época” (ARENDT, 1994,
p. 10). A maior perda é a correspondência entre ela e Pauline Wiesel,
amante do príncipe Louis Ferdinand, da qual, por Varnhagen, foram
publicadas apenas 17 cartas. Os que editaram mais tarde esse material
usaram pouco destes documentos, pois a caligrafia tornou-os difíceis
de serem lidos; 5) Finalmente, destaque-se que a narrativa de/sobre
Rahel é construída por fragmentos escolhidos por Arendt, a partir dos
quais a filósofa reescreve a vida/o texto de Rahel Varnhagen.
Esta escrita sobre outra(s) põe-nos frente a uma construção
em palimpsesto que, como tal, precisa ser escavada para ser lida.
Antes de alimentarmos o nosso desejo, por vezes insaciável, de inter-
pretação, reportemo-nos ao fragmento 25 da Athenäum:12 “Não raro,
interpretar é inserir aquilo que se deseja ou que é conforme a um fim,
e muitas deduções são propriamente desvios” (SCHLEGEL, 1997, p.
51). Este processo de escavação, de inserir deduções, é uma maneira
de digressionarmos sobre este eu que contracena entre a verdade e
o engano: a dialética do ser e do dever ser, do ser e do parecer ser.
Como afirma Schlegel, agora no fragmento 27 da já referida revista, “os
homens são em sua maioria apenas igualmente legítimos pretendentes

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Uma modernidade (c) sem limites

à existência. Há poucos existentes” (SCHLEGEL, 1997, p. 51). Como


ilustração (histórica) dessa “pretensão à existência”, lembremo-nos
de que mesmo a Alemanha de então não existe, ou seja, não é nada
mais que um aglomerado de fragmentos (Estados).
O encaminhamento ao leitor da potente reflexão acerca da dia-
lética do ser e do dever ser e a investigação do difícil desempenho
entre ser e parecer constituem o ponto de confluência entre o livro de
Hannah Arendt e o de Jean Starobinski, que estamos propondo para
cotejo, com a intuição luminosa de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath:
o de escrever no intervalo, com a consciência da tensão entre verdade
e mentira quando se opera no campo do ficcional.
O mesmo se pode dizer sobre a tenuidade dos limites da ver-
dade no “campo da vida”, de onde brotam as fantasmagorias benja-
minianas. Para Rahel, a vida e o ser se traduzem pela representação
teatral e narrativa de papéis, de discursos, de articulações jamais
estáveis. Esta vida como narrativa exige dela “não dizer a mesma
coisa a todos, mas a cada um o que lhe era apropriado” (ARENDT,
1994, p. 102). Nesse modus vivendi, associam-se ser e parecer, ver-
dade e imprecisão, a que se entrelaçam versões e visões: como o
fato depende da opinião do outro, constata-se que o eu interior as-
sim como o eu social tornam-se construções discursivas. Por outro
lado, o eu, construído, expande-se de tal forma que, imageticamen-
te, forma-se um eu-vulcão em erupção, a ponto “de não ser apenas
um eu, mas também ter uma qualidade social específica, e de não
existir em apenas uma única pessoa, mas em muitas, naturalmente
entrelaçadas nas implicações da vida social” (ARENDT, 1994, p. 102).
Ou seja, a identidade do eu constrói-se sob fragmentos do discurso
e sobre eles a vida é dilacerada em uma “massa de fragmentos sem
conexão”, na definição de Hannah Arendt, que retoma as palavras
de Friedrich Schlegel.
“Sem um cenário não se pode viver” (ARENDT, 1994, p. 180),
enfatiza Arendt sobre a Rahel que teria sido mestra na arte de repre-
sentar a própria vida, e, para tanto, não deveria contar a verdade,
mas exibir a si mesma. Hannah Arendt destaca, citando Rahel, que as
cartas serão um elemento importante para o revelar-se13 e construir-se.
Este é o ponto a partir do qual passa a fazer referência à indiscrição
romântica, enfatizando que tanto esta quanto a ausência de vergonha
foram fenômenos da época, do romantismo.
Como veio recessivo que ilustra a permanência desse traço
em pleno século XX, podemos nos remeter a uma das cartas de Ana
Cristina Cesar a Maria Cecília Londres Fonseca, publicada em Ana
C. - Correspondência incompleta. Em um trecho dessa carta, encon-

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tramos uma Ana missivista que, assim como Rahel, compreende o
enlaçamento que a letra faz da verdade e da mentira, da revelação e
da falsificação, de que dá conta o caráter “indiscreto” da literatura:

É engraçado como a correspondência (não a ausência!!!) dá


nostalgias (reparei que me atropelo e gaguejo um pouco e corto
palavras e anacolutos pintam quando falo). É como se eu pudes-
se dizer melhor, mais limpo, mais completo, MAIS OUSADO ao
escrever. Talvez seja engano. Não adianta, sou fascinada pelas
letras. (CESAR, 1999a, p. 184, grifos do autor)

A ousadia no e do ato da escrita persegue a Ana Cristina ensaísta


e preocupada com as questões filosóficas e estéticas que envolvem
a literatura, como se constata na carta acima, já que se pode afirmar
que muito de sua crítica se encontra em sua epistolografia. Talvez esse
comportamento íntimo e (ansioso de ser) ousado seja próprio da ge-
nialidade, como diz Schlegel no fragmento 283 da Athenäum: “O gênio
porém diz tão atrevida e seguramente o que vê passar-se dentro de si
porque não está embaraçado em sua exposição e, portanto, tampouco
a exposição embaraçada nele” (SCHLEGEL, 1997, p. 97).
Como exemplo de “desembaraço expositivo”, Hannah Arendt
cita as Confissões,14 de Jean-Jacques Rousseau, que, para ela, teriam
sido o primeiro grande modelo de indiscrição em relação a si mesmo,
e Lucinde,15 de Friedrich Schlegel, com o intuito de estabelecer a distin-
ção entre as emoções e as emoções narradas. Sobre Rousseau, ressalta
Arendt que ele “não relatou a história de sua vida nem suas experiências.
Meramente confessou o que havia pensado, desejado, querido, sentido
no curso de sua vida” (ARENDT, 1994, p. 28). Dessa forma, corrobora-se o
que apontamos anteriormente acerca de a ficcionalidade ser vista como
um “outro” em relação ao real, enquanto participam de estreita articu-
lação o narrar/o poetizar/ o dizer e o ser. Podemos, então, retomar aqui
a ilação de Starobinski do dizer como garantia do ser e a constatação
que faz sobre Rousseau, segundo a qual teria sido ele o que primeiro, na
literatura moderna, viveu a experiência do “perigoso pacto do eu com
a linguagem” (STAROBINSKI, 1991, p. 207). A própria Rahel percebe e
persegue esta concepção da arte ao assinar uma de suas cartas a David
Veit como “Confessions de J. J. Rahel” (Cf. ARENDT, 1994, p. 21).
Essa questão também aparece em destaque em outro momento
da mesma carta de Ana Cristina, a que nos referimos páginas atrás.
Trata-se de uma observação que faz em um post-scriptum apenso,
acerca de um texto que inclui na carta, o qual nem mesmo ela sabe se
pode ser considerado literatura ou não:

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Uma modernidade (c) sem limites

P.S. Será que isso funciona como literatura? Alguém que não sou-
besse quem eu sou, não me conhecesse, acharia interessante?
Esquisito. A lit. parece ser um lugar de dizer COM OUSADIA que
eu não teria “na vida real”. O foco em 3ª. e o discurso indireto
livre aparecessem (sic) como perigosos artifícios. Não sei, isso
me confunde. Mas por outro lado é tão mais interessante que o
“belo em si” de certos poemas... A solução que vejo: é uma forma
ainda híbrida.(CESAR, 1999a, p. 186, grifos do autor)

Mais uma vez, aparece a referência à associação da literatura


com a ousadia, como forma de revelação e de indiscrição, como mo-
mento e espaço de trabalhar o perigoso artifício lingüístico, como
num jogo indiscreto e, simultaneamente, ambíguo: “[t]odos os jogos
sagrados da arte são apenas simulacros distantes do jogo infinito do
mundo, da eterna obra de arte que se forma a si mesma” (SCHLEGEL,
1994, p. 58). Isto é característico da dicção poética de Ana Cristina
Cesar: o trabalho com a distinção e articulação entre o ficcional e
o real. A Ana Cristina ensaísta, autora de “O poeta é um fingidor”,16
opinará a respeito:

A limpidez da sinceridade nos engana, como engana a superfície


tranqüila do eu.
A literatura mexe com essa contradição: desconfia da sinceri-
dade da pena e do cristalino das superfícies; entra a fingir para
poder dizer; nega a crença na palavra como espelho sincero
– mesmo que a afirme explicitamente. Finge o que deveras
sente, já se disse. O Romantismo, por sua vez, põe em cena essa
discussão: quem é esse eu lírico que se derrama em versos?
Será sincero? Reflete o Autor? Mascara? (CESAR, 1999b, p. 202,
grifos do autor)

O trecho citado nos aponta a perspicácia de Ana Cristina não só


nos aspectos que viemos destacando mas também, e principalmente,
no fato de perceber a importância do romantismo como primeiro
movimento estético que trouxe à tona tais questões, assim como já
observara Walter Benjamin (de forma inaugural e, obviamente, mui-
to mais consistente e sistemática) em sua tese de doutoramento O
conceito de crítica de arte no romantismo alemão, de que tomaremos
alguns pontos para discussão mais adiante.
Trazendo à baila questões intrincadas como a crítica a um
modelo tradicional de verdade e razão e respaldando-se nos textos
dos românticos de Jena, especialmente, Schlegel e Novalis, Benjamin

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parte do pressuposto de que, com esses autores, a arte foi coloca-
da no ponto central da reflexão (Cf. BENJAMIN, 1999, p. 48). Isso é
um fato importante, na medida em que a arte assume autonomia e
passa a ser compreendida em si e para si como uma unidade. Sobre
esse aspecto, podemos citar o antológico (porém, ainda obscuro,
apesar das tantas referências a ele) fragmento 206 da Athenäum,
aliás referido pela própria Hannah Arendt, após concluir que nem
as Confissões nem Lucinde são histórias de uma vida: “Um fragmento
tem de ser como uma pequena obra de arte, totalmente separado
do mundo circundante e perfeito e acabado em si mesmo como
um porco-espinho” (SCHLEGEL, 1997, p. 82). Esse texto é marcado
pela peculiar obscuridade do discurso de Schlegel, conforme já fora
apontado por Benjamin em relação aos pensamentos fundamentais
e sistemáticos do primeiro romantismo (Cf. BENJAMIN, 1999, p. 49),
se é que se pode falar de sistema entre os que fizeram do fragmento
a forma de exposição de sua filosofia.
Na citação, extasia-nos a presença do porco-espinho compara-
do ao fragmento e, em instância ulterior, à obra de arte. Esse animal
traduz em si uma imagem dupla: daquilo que aponta para todas as
direções e daquilo sobre o qual tudo incide. Tanto remete-se a um
outro como recebe dele, metaforizando, dessa forma, a completude
em si mesmo. Nessa potencialidade de revelar-se e reconverter-se
em um ser íntimo, estaria o principal pressuposto da concepção de
arte romântica.
Parece incongruente, no entanto, com o que viemos apontan-
do neste trabalho, pensar o fragmento (e a obra de arte) separado
(separada) do mundo circundante. Porém, essa assertiva de Schlegel
não é tão paradoxal assim. Vejamos por quê. Se é único e completo, o
porco-espinho impede a presença do outro. Como fragmento, como
indivíduo, é a própria (ou única) totalidade ou a unidade mesma. Pode
ser que se justifique, dessa forma, o distanciado do mundo circundante
de que fala Schlegel, ainda que tenhamos produzido uma imagem um
tanto terrível...
Podemos, ainda, nos apoiar na interpretação de Hannah Arendt.
Segundo ela, a separação do mundo circundante reforça a tese de que
o todo e a parte advêm do sujeito cujo estado de alma

supostamente possui o poder de reconverter a realidade em


potencialidade e conferir, por um momento, a aparência de rea-
lidade a meras potencialidades. Na disposição de ânimo reside
a “terrível onipotência da fantasia” (Schlegel), que não precisa
obedecer a nenhum limite sagrado, uma vez que é ilimitada em

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si mesma. Sob o encantamento da disposição de ânimo, que


expande um detalhe até o infinito, o infinito aparece como o
aspecto mais precioso da intimidade. (ARENDT, 1994, p. 29)

O despudor romântico alia-se à fantasia, porque assim as reve-


lações tornam-se ilimitadas, ainda que isto só seja possível dentro de
uma solidão absoluta: “alguns preferem contemplar quadros de olhos
fechados, para que a fantasia não seja perturbada” (SCHLEGEL, 1997,
p. 76). Nesse caso, sim, compreende-se o “totalmente separado do
mundo circundante”; aqui, sim, a literatura funciona como “simulacro
distante do jogo infinito do mundo”.17 É na dialética entre a expansão
infinita da fantasia e a constatação de sua especificidade que a Lite-
ratura cria seu espaço e seu momento.
Cabe aqui uma digressão feita por Hannah Arendt sobre o senti-
do de indivíduo. O Iluminismo “elevou a razão ao status de autoridade,
[...] declarou como capacidades supremas do homem o pensamento
e o que Lessing chamava o ‘pensar por si próprio’” (ARENDT, 1994,
p. 20). Por outro lado, a razão iluminista não se basta, e uma questão
se abre: como libertar-se individualmente?
Por meio do isolamento, do entrincheirar-se sobre o seu
próprio eu, do pensar a partir da reflexão. Esta seria uma possível
resposta. Arendt trabalha com a idéia de que a reflexão aniquila a
situação existente no momento, dissolvendo-a em “disposição de
ânimo”, o estado de alma – a que nos referimos anteriormente – que
potencializa a realidade.
Pensar por si próprio, pensar sobre si próprio, fantasiar(-se),
confessar(-se), imaginar(-se) fazem parte do processo da “infinitude
da reflexão como infinitude realizada do conectar: nela tudo devia
se conectar de uma infinita multiplicidade de maneiras” (BENJAMIN,
1999, p. 36). Para o desencadeamento do processo de formação do
“pensar do pensar” e do “pensar do pensar do pensar” numa “conexão
uniforme e constante no absoluto e no sistema”, concorre o que Walter
Benjamin chamou de “medium-de-reflexão”:

Com este termo é designado de maneira resumida o todo da


filosofia teórica de Schlegel [...]. A reflexão constitui o absoluto e
ela o constitui como um medium. Schlegel em suas exposições,
por mais que não tenha usado a própria expressão “médium”,
depositou uma grande importância na conexão uniforme e cons-
tante no absoluto ou no sistema, ambos interpretados conforme
a conexão do real não na sua substância (que é em toda parte a
mesma), mas nos graus do seu desdobrar manifesto. Assim ele

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diz: “A vontade [...] é a faculdade do Eu de multiplicar-se ou de
reduzir-se a si mesmo até um máximo ou um mínimo absolutos;
uma vez que esta é livre, ela não tem nenhum limite”. Ele dá
uma imagem clara para esta relação: “O voltar para si, o Eu do
Eu, é a potenciação; o sair de si, a extração da raiz quadrada
na matemática”. (BENJAMIN, 1999, p. 45-6)

A citação acende a discussão em torno das questões sobre o


(não) limite entre arte e real como desdobramento de forças que tanto
se multiplicam quanto se reduzem ao mínimo. Sylvia Plath, em ensaio
de 1962, intitulado “Contex”, também dá contas dessa atividade de “po-
tenciação” e “radiciação” no processo de transfiguração para a poesia
dos assuntos que ela considera preocupantes e que influenciam o tipo
de texto que escreve. Ela considera que poemas assim são “desvios”
(deflections) e não “uma fuga” (escape):

My poems do not turn out to be about Hiroshima, but about a


child forming itself finger by finger in the dark. They are not
about the terrors of mass extinction, but about the bleakness
of the moon over a yew tree in a neighboring graveyard. Not
about the testaments of tortured algerians, but about the night
thoughts of a tired surgeon. (PLATH, 2000a, p. 65)

A leitura de Benjamin sobre os primeiros românticos alemães e


a referência lúcida de Sylvia Plath acerca do (seu) fazer poético fazem-
nos retomar e ampliar, plurissignificativamente, a imagem romântica
(referida por Hannah Arendt) do estado íntimo que potencializa a reali-
dade, como se esta, sendo o grau primeiro do pensamento, se tornasse
a poesia, por meio do progressivo conectar, da “conexão-da-reflexão”,
termo este utilizado pelo próprio Walter Benjamin para marcar o caráter
uniforme e progressivo da reflexão (Cf. BENJAMIN, 1999, p. 37).
A partir da constatação de que a arte poética moderna não pos-
sui uma mitologia, por isso, “é chegado o momento em que devemos
colaborar seriamente para produzi-la” (SCHLEGEL, 1994, p. 51), os
alemães de Jena passam a buscar novas formulações acerca da divi-
são tradicional dos gêneros literários e, por extensão, uma definição
da poesia mesma. Cientes de que o gênero poético romântico estava
em constante devir, tornam matéria da crítica “uma teoria poética da
faculdade criadora”, acrescentando outros elementos à “poesia cujo
um e tudo é a proporção entre ideal e real e que, portanto, por ana-
logia com a linguagem técnica filosófica, teria que se chamar poesia
transcendental” (SCHLEGEL, 1997, p. 88):

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assim também aquela poesia deveria unir [...] a reflexão artística


e o belo auto-espelhamento que se encontram em Píndaro, nos
fragmentos líricos dos gregos e na elegia antiga, mas, entre os
modernos, em Goethe, e expor também a si mesma em cada
uma de suas exposições e em toda parte ser, ao mesmo tempo,
poesia e poesia da poesia. (SCHLEGEL, 1997, p. 89)

As considerações precedentes nos fazem insistir na difícil ques-


tão que envolve o conceito de sujeito lírico e as relações entre a ficção
e a biografia no que diz respeito ao problema da referencialidade da
obra literária. Para tanto, é preciso persistir, uma vez mais, com as
palavras de Friedrich Schlegel que, consistentemente, esclarecem
como a arte (no caso, a poesia romântica) complexifica o diálogo com
o real de forma que tem por objetivo “tornar viva e sociável a poesia,
e poéticas a vida e a sociedade”:

Somente ela (a poesia romântica) pode se tornar, como a epo-


péia, um espelho de todo o mundo circundante, uma imagem
da época. E, no entanto, é também a que mais pode oscilar,
livre de todo interesse real e ideal, no meio entre o exposto
e aquele que expõe, multiplicando essa reflexão, como numa
série infinita de espelhos. (SCHLEGEL, 1997, p. 64)

Esse fragmento (o 116 da Athenäum) nos remete a Walter Benja-


min que, apoiando-se nos escritos do Primeiro Romantismo, observa
que eles retiram do âmbito exclusivo da filosofia o estatuto da reflexão
e transportam-no para o da literatura, colocando, dessa forma, “em
xeque as fronteiras entre a ficção e o (meta)discurso sobre a ficção”
(SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 59). Isso aponta o teor do texto literário
para um “certo” realismo, não o determinista e biografista, mas o que
compreende a sociedade por sua complexidade e a literatura como
“instrumento de identidade social” (LIMA, 1980, p. 21), de tal forma
que potencia e multiplica a própria reflexão, infinitamente.
Ainda que a literatura vista como o espelho da sociedade seja
uma definição redutora e, por assim dizer, complicadora, insistire-
mos – pelo menos por algumas linhas – no termo empregado por
Schlegel, pensando nele quase que denotativamente. Tomando-se por
base a idéia de que a imagem refletida pelo espelho não é a mesma,
já que invertida, a literatura, portanto, pode ser compreendida como
a sociedade refletida “invertidamente” por meio de um processo de
linguagem, pois assim como o sujeito lírico não existe mas se cria,
também se pode afirmar, com Costa Lima, que “o poeta não cria do

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que não existe, mas cria o que antes dele não existia”(LIMA, 1995,
p. 36). Confirma-se, dessa forma, uma vez mais, o caráter “outro” da
literatura, tanto no que tange ao aspecto de construção de um sujeito
ficcional, quanto ao de criação de um processo de significação em que
o mundo é referido por alusão e de uma forma, excepcionalmente,
única e original. O poema “Mirror”, de Sylvia Plath, é elucidativo para
estudar o que apontamos:

I am silver and exact. I have no preconceptions.


Whatever I see I swallow immediately
Just as it is, unmisted by love or dislike.
I am not cruel, only truthful –
The eye of a little god, four cornered.
Most of the time I meditate on the oposite wall.
It is pink, with speckles. I have looked at it so long
I think it is a part of my heart. But it flickers.
Faces and darkness separate us over and over.

Now I am a lake. A woman bends over me,


Searching my reaches for what she really is.
Then she turns to those liars, the candles or the moon.
I see her back, and reflect it faithfully.
She rewards me with tears and an agitation of hands.
I am important to her. She comes and goes.
Each morning it is her face that replaces the darkness.
In me she has drowned a young girl, and in me an old woman
Rises toward her day after day, like a terrible fish. (PLATH,
1992a, p. 173)

O poema trata da difícil busca da identidade como mulher e


como poeta em meio à tensão entre verdade e falsidade. O espelho e
o lago se apresentam como a imagem verdadeira, exatamente como é,
não enevoada nem pelo amor nem pelo ódio, transparente, portanto,
apesar de o espelho e a água produzirem imagens que seriam apenas
simulacros. Mas esta imagem é/está sempre (d)o outro lado da parede.
Em contraste a ela, estão as faces e a escuridão, as velas e a lua, esse
falso eu do lado de fora, de um mundo de fantasmagorias, um mundo
de sombras produzidas pela luminosidade artificial (ou reflexa, ou
dependente) da vela ou da lua.
A idéia de que o espelho associa-se também ao refletir como
forma de pensar sobre si mesmo está evidente na preocupação com o
crescimento/envelhecimento dessa busca identitária feminina, repre-

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sentada no texto pelas figuras da menina afogada e, por isso, perdida, e


da velha, que emerge do lago em direção àquela mulher que ali se olha
e procura o que realmente é. É interessante observar, a partir desta
imagem final, que o ego narcísico não aparece tão bem embelezado
assim: olha-se no espelho para entregar-se em busca da verdade, mas
esta – quase sempre tão dura – também pode causar lágrimas e um
aceno de mãos ou, então, a presença de um terrível peixe a persegui-
la. Lembremo-nos, também, de que mesmo Narciso é morto, por essa
verdade de procurar-se no espelho-alma de si mesmo.
A referência ao espelho e à água ainda revela a aguda percepção
de Plath em sugerir o diálogo do real literário com o real do mundo.
Numa sacada genial, confundem-se essas duas instâncias, pois, se não
se pode assegurar a reduplicação do real pela linguagem literária, tam-
bém não se podem criar imagens alheias ao mundo. Estas, na verdade,
terríveis ou não, perseguem esse mesmo real, “day after day”.
Tomemos, agora, como base o poema “Sete chaves”, de Ana
Cristina Cesar:

Vamos tomar chá das cinco e eu te conto minha grande/


história
passional, que guardei a sete chaves, e meu coração bate
incompassado entre gaufrettes. Conta mais essa história, me
aconselhas como um marechal-do-ar fazendo alegoria. Estou
tocada pelo fogo. Mais um roman à clé?
Eu nem respondo. Não sou dama nem mulher moderna.
Nem te conheço.
Então:
É daqui que eu tiro versos, desta festa – com arbítrio
silencioso e origem que não confesso – como quem apaga
seus pecados de seda, seus três monumentos pátrios,
/e passa o
ponto e as luvas. (CESAR, 1998a, p. 40)

O poema-diálogo ambienta-se em um requintado chá das cinco,


onde e quando acontecerá a revelação da “grande história passional”
do sujeito poético, que fora guardada a sete chaves. Da ousada indis-
crição do “eu te conto”, o coração do eu lírico atravessa, simultane-
amente, a ansiedade do revelar, que é aconselhado pelo outro, “um
marechal-do-ar”, e a docilidade dos biscoitinhos, ou a pausa do comer,
do pensar e ficar nas bordas: as evasivas estão evidentes na pergunta
retórica “Mais um roman à clé?”, cujas respostas “Eu nem respondo”
ou “Nem te conheço” trancam, novamente, a boca e o coração.

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A culminância ocorre na revelação do eu lírico, que se cria “na
festa” de onde tira os versos, para entregar-se e apagar-se, confessar-
se e não se confessar. Se a poesia é o terreno da festa – o momento
de elaboração literária e de criação de um eu e uma história –, é tam-
bém (e talvez por isso mesmo) o do apagamento, por um lado, e o da
entrega, por outro: apaga-se a intimidade que ressoa nos “pecados”,
apaga-se o ranço dos “monumentos pátrios” trancados a sete chaves
nas Academias, entrega-se o ponto e as luvas. Nesta comercialização
do produto estético, anjo caído de sua torre de marfim, fica ao novo
usuário (ou usurário) tudo que foi recolhido, guardado, apagado e
confessado fingidamente, num processo continuum.
Literatura é reinvenção e não confissão. Afirma-se, assim, o tipo
de relação com o real que Ana Cristina estabelece, não o que é indicado
direta e concretamente, mas o que obliquamente se revela através de
um eu que anseia por ser criado dentro do texto. Não é fortuito que as
primeiras palavras do poema “Este livro” são “Meu filho.”, com ponto
final mesmo (Cf. CESAR, 1998a, p. 55).
As sete chaves servem para trancafiar – e bem – a sua história,
mas são também as mesmas sete chaves que destrancam os versos
e os fazem pulular festivamente no chá das cinco, a partir de um
apagar-se e entregar-se, de uma fala que é silêncio, de uma confissão
que não se confessa. Essa forma de dizer desdizendo, que é, em última
instância, uma forma de manipular a linguagem, nos chama a atenção
nos textos de Ana Cristina, como neste que abre A teus pés:

Trilha sonora ao fundo [...]


Agora silêncio
[...]
Eu tenho uma idéia.
Eu não tenho a menor idéia.
[...]
Muito sentimental.
Agora pouco sentimental.
[...]
Esta é a minha vida.
Atravessa a ponte.
É sempre um pouco tarde. (CESAR, 1998a, p. 35)

Esse vacilar de situações e estados de alma evidencia a lacuna


que permanece no texto de Ana Cristina, o uso que faz do silêncio, na
decepção provocada em quem espera a revelação de um segredo ou
do devassar de uma intimidade e... é levado ao nada, já que “é sempre

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um pouco tarde”. Pena de quem atravessou a ponte! A resposta (se


ela existe) está nela, não antes ou depois. A exata ponte que liga a
arte à vida, a vida à arte, o ponto nevrálgico do atravessar que não
atravessa, pois, se alguém o fizer, já terá sido tarde.
Se, como vimos na sutileza do poema “Sete chaves”, a dessa-
cralização das pátrias vozes literárias está evidente, outras formas
de ruptura com a sacralidade do texto e com o convencionalismo dos
gêneros literários também se apresentarão. O diário não diário, as
confissões inconfissões, o dito desdito abrem-nos também a possibi-
lidade de estudar, sob uma perspectiva mais abrangente, os textos
de Ana Cristina Cesar.
No que concerne à sua produção poética, esta se bifurcaria em
duas linhas, apontadas por Carlos Alberto Messeder Pereira, conforme
o depoimento da própria autora que, por sua vez, apóia-se na opinião
“graduada” do poeta Cacaso:

Me lembro de uma frase típica do Cacaso [...] (ele) era o “bom


leitor”, o “classificador” e, uma vez, eu li (pra ele) um poema
meu que eu tinha adorado fazer [...] e o Cacaso olhou com olho
comprido [...] leu esse poema e disse assim: “É muito bonito,
mas não se entende [...] o leitor está excluído”. [...] Aí eu mostrei
também o meu livro pro Cacaso e (ele) imediatamente... quer
dizer aqueles “diários” da antologia eram dois textos de um
livro de cinqüenta poemas... (e ele disse): “Legal, mas o melhor
são os diários, porque se entende... são de comunicação fácil,
falam do cotidiano”. (apud PEREIRA, 1981, p. 229)

Por um lado, constituir-se-ia em “uma literatura mais ‘torturada’,


de compreensão menos direta, menos imediata, uma literatura mais
‘difícil’”; por outro, em “textos construídos com base em montagens
de coisas reais, de ‘brincadeiras’ com correspondência, biografias,
diários, documentos, enfim, anotações em geral, todos estes textos
profundamente marcados pelos fatos e situações do dia-a-dia” (PE-
REIRA, 1981, p. 222, grifos do autor). Esta seria a literatura fácil, bem
mais ao gosto de sua geração, poderiam dizer.
É elucidativa, nesse sentido, a leitura do grupo de poemas inti-
tulado “Do Diário não diário ‘Inconfissões’”. Trata-se de um conjunto
de textos, todos datados, presentes no livro Inéditos e dispersos, pu-
blicado originalmente em 1985 e relançado em 1998, a partir da orga-
nização de Armando Freitas Filho. Descartando-se o primeiro texto,
que poderia ser definido como uma espécie de prefácio aos demais
(conforme apontaremos mais adiante) e excetuando-se o penúltimo,

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intitulado, curiosamente, “Nó”, há oito que apresentam ao pé a palavra
“inconfissões”. As datas remontam a outubro, novembro e dezembro
de 1968; algumas são o mesmo dia. Chama-nos a atenção, ainda, o
fato de que estes poemas foram escritos quando Ana Cristina contava
apenas 16 anos. Isto só vem corroborar as palavras de Armando Frei-
tas Filho sobre a poeta, em prefácio a Escritos do Rio, um dos livros
que aparece na compilação de seus textos críticos Crítica e tradução:
“por ter sido precoce foi bastante, talvez intuindo o pouco tempo que
teria para registrar o esplendor da sua inteligência e da sua vocação”
(em CESAR, 1999b, p. 139). A alusão a esse grupo de poemas neste
trabalho ainda nos ajuda a repensar se, realmente, a fase adulta (se é
que existe esse “negócio” de fase adulta) de produção de Ana Cristina
teve início com os poemas “gatográficos” de 1972, conforme defende
Italo Moriconi no livro Ana Cristina Cesar: o sangue de uma poeta (Cf.
MORICONI, 1996, p. 22).
Consoante à dúvida que paira sobre os críticos acerca da dupla
diferenciação na obra de Ana Cristina Cesar,18 os textos aos quais nos
referimos neste momento ferem essa divisão por apontarem uma
articulação entre as duas linhas: os dez poemas apresentam conteú-
do bastante obscuro, em uma linguagem trabalhada com riqueza de
detalhe. Até mesmo a titulação dos textos é sugestiva. Repassemos
brevemente os títulos: “Rompimento”, “Soneto”, “Véspera”, “Fagulha”,
“Toalha branca”, “Ante-sonho”, “Sonho”, “Nó”, “Água virgem”. Lidos em
seqüência, apontam vários caminhos.
“Nas instâncias do momento zero”, o primeiro verso do arre-
medo de soneto “Rompimento”, metaforiza o desbravar da escrita:
um sopro que sai, a súbita nesga que vi, o terremoto que entreouvi,
pedra/dor que ressurge, a fagulha que reabre, o silêncio que neva em
mim. Tudo isso costurado: fio e agulha no começo, um nome só – fim.
Continuam aparecendo fingidos sonetos, como “Soneto” e “Véspera”,
até que, em “Fagulha”, com o abrir das cortinas, deslancha o eco do
“Eu queria” em fogo que abrasa e só vai atenuar-se na última estrofe:
racional, “Eu não sabia/que virar pelo avesso/era uma experiência
mortal” (CESAR, 1998b, p. 41). Mantém-se o eco cheio de concessões
no poema “Toalha branca”. Esta esvoaça, de início, para decompor-
se, finalmente.
É impossível não fazer uma referência mais detalhada à ri-
queza gramatical do poema “Ante-sonho”, que apresenta um belo
e sugestivo jogo com os prefixos indicativos de anterioridade: ante
e pre. Se atentarmos para o fato de que o poema seguinte recebeu
o título de “Sonho”, é possível afirmar a intencionalidade da autora
no que diz respeito às relações e inter-relações dos poemas. A mar-

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Uma modernidade (c) sem limites

ca disso são também as palavras “preamar”, “prelúdio”, “anuncia”,


“inesperadas”, pertencentes ao mesmo campo semântico. É bastante
sugestiva também a utilização ambígua da palavra “preamar” nesse
texto. Esta palavra – feminina – que significa maré alta não poderia
ser uma derivada prefixal. Porém, se a considerarmos segundo a
analogia dos prefixos sugerida pelo título e pelo (con)texto e de
acordo com a anteposição do artigo masculino, ela também pode
ser lida pré-amar. Relacionam-se, portanto, a repentina força do
mar e a do amar.
“Nó” apresenta como palavras-chave, em letras garrafais: feto
e ermo. O renascimento está em “Água virgem”:

Perdi-me no entrelaçar-se de malhas.


Entreguei-me no manchar-se de sonhos.
Marquei-me no soluçar-se de perdas.

Sob o peso deste som


um flautim
Sob o som deste peso
uma queda

rachou
a chave
calou
a chuva
barrou
a chama

(chuvisca no centro meu – nenhum grito)


inconfissões – dezembro/68. (CESAR, 1998b, p. 46)

Fluxo incessante na perda, na entrega e na marca. Último poema


de um diário em que não há confissões e que não foi escrito diaria-
mente. Última parada da trajetória da escrita: romper (o clássico),
acender (o avesso), pensar (o sonho), desatar (o nó), desvirginar-se
na perda.
Voltemos, então, ao prólogo dos textos e ali encontraremos, pela
metalinguagem, a discussão sobre o parti pris de “ar de confissões ínti-
mas” da poesia de Ana Cristina. Esse primeiro texto parece encaixar-se
bem em uma espécie de prefácio explicativo para os parâmetros de
sua produção poética:

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Anélia Montechiari Pietrani


17.10.68
Forma sem norma
Defesa cotidiana
Conteúdo tudo
Abranges uma ana. (CESAR, 1998b, p. 36)

Confrontando-o com o estatuto da poesia romântica descrito


por Schlegel no fragmento 116 da Athenäum, é possível tecer consi-
derações pertinentes à forma de escrita de Ana Cristina Cesar, que
recupera muitas das indagações do romantismo:

Abrange tudo o que seja poético, desde o sistema supremo


da arte, que por sua vez contém em si muitos sistemas, até o
suspiro, o beijo que a criança poetizante exala em canção sem
artifício. Pode se perder de tal maneira naquilo que expõe, que
se poderia crer que caracterizar indivíduos de toda espécie é
um e tudo para ela; e no entanto ainda não há uma forma tão
feita para exprimir completamente o espírito do autor: foi as-
sim que muitos artistas, que também só queriam escrever um
romance, expuseram por acaso a si mesmos. (SCHLEGEL, 1997,
p. 64, grifos nossos)

A normatividade do fazer literário será substituída pela liber-


dade criadora: que norma há para a forma da poesia? Isto é o que se
percebe nos três arremedos de soneto que Ana Cristina compõe e que
fazem parte dessa seqüência de textos: apesar de aparentarem uma
regularidade métrica, esta só é, visualmente, semelhante à do soneto.
Assim, revela, a partir da ausência de forma, a diversidade de sistemas
que compreende a poesia, que é preciso ser defendida cotidiana e
diariamente (está aí a explicação para o diário não diário?).
Ou que gênero de escrita é suficiente para exprimir o ponto de
travessia poetizante-poetizado? Sua voz poética entrará em “defesa
cotidiana” de um “tudo”, que “por acaso” exporá “uma ana”, seja em
grau menor e comum pela inadequação de um uso próprio do nome
poetizante, seja pela condição “humana” de que se origina o nome
poetizado e a que se reduz sonoramente. Por isso, o tudo pode ser
incluir uma ana como personagem, ainda que, à Fernando Pessoa,
o eu poético insista: “finjo fingir que finjo /Adorar o fingimento /
Fingindo que sou fingida” (CESAR, 1998b, p. 38). O eu lírico que,
nesse mesmo poema, havia perguntado “se sou eu”, questiona nos
dois últimos tercetos:

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Uma modernidade (c) sem limites

Pergunto aqui meus senhores


Quem é a loura donzela
Que se chama Ana Cristina

E que se diz ser alguém


É um fenômeno mor
Ou é um lapso sutil? (CESAR, 1998b, p. 38)

Distanciando a ana de Ana Cristina ou, pelo menos, pondo sob


tensão a relação e a diferença entre o sujeito da e na poesia – uma
ana e a humana – a poeta ratifica o fato de que, mesmo que a exposi-
ção de si mesmo seja uma constante no texto (romântico, moderno,
pós-moderno), ainda assim, este não será mais si mesmo, mas “por
acaso” o “outro” da literatura por meio da figura do sujeito ficcional. A
própria Ana, em depoimento a estudantes e professores participantes
do curso “Literatura de Mulheres no Brasil”,19 ressalta que “se você
conseguir contar a tua história pessoal e virar literatura, não é mais a
tua história pessoal, já mudou” (CESAR, 1999b, p. 262). Essas palavras
são referendadas por Flora Süssekind no estudo que faz sobre alguns
rascunhos e textos traduzidos de Ana Cristina Cesar:

É, pois, em meio a um burburinho, e como burburinho, que se


apresenta esse “eu” – num primeiro olhar com traços marca-
dos, tão pessoal, tão confessional – que fala, e se deixa invadir
por outras falas, nos seus poemas e nas formas breves da
sua prosa. Numa segunda mirada, até que nem tão figurativo
assim, crescem as zonas de sombra, despersonalizam-se falas,
descentram-se os “eus”, convertidos em conjuntos de tonalida-
des, vozes, modulações. (SÜSSEKIND, 1995, p. 10)

É exatamente isso o que se pode dizer a respeito de entradas


de diário e dos chamados textos do dia-a-dia como correspondências,
jornais e guias semanais escritos por Ana Cristina. Neles, a fusão
e a confusão entre vida e obra os fazem aproximar-se da poesia
de circunstância, enquanto reiteradas vezes a voz poética põe em
discussão o caráter de fingimento do texto literário. Se há a marca
da subjetividade inerente aos textos, há, também, por impasse,
uma reflexão acerca do fazer poético. Como “escrita do impasse”,
define Lucia Helena a marca insólita de escrita de Ana Cristina, em
resenha a Inéditos e dispersos: “uma forma renovadora de flagrar a
cotidianeidade – mesclada de lirismo, absurdo, e impasses” (HELENA,
1986, p. 22).

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Em Luvas de pelica, por exemplo, referindo-se a uma “anticarta,
antídoto do pathos” (CESAR, 1998a, p. 132), adverte o seu interlocutor
que só escreve para ela alusões, em que elide fatos e fatos e, portanto,
precisaria de uma injeção de neo-realismo nas veias. Essa advertência,
no entanto, não funcionaria para ela (o eu lírico feminino é indubitável)
mesma, pois, pensando em que rumo dar à correspondência – se deve
“em vez dos rasgos de Verdade embarcar no olhar estetizante” ou se
deve “ser repentina e exclamar do avião” (CESAR, 1998a, p. 141) –, diz
optar pelo olhar estetizante, recitando um certo WW e demarcando
uma linha híbrida e confusa do que é a literatura, do que é o eu:

Amor, isto não é um livro, sou eu, sou eu que você segura e sou
eu que te seguro (é de noite? estivemos juntos e sozinhos?), caio
das páginas nos teus braços [...] Te amo, e parto, eu incorpóreo,
triunfante, morto. (apud CESAR, 1998a, p. 141-2)

Na verdade, o aparentemente incógnito WW é esclarecido por


Ana Cristina, em depoimento. O WW da página 111 da primeira edição
do livro seria a abreviatura do poeta norte-americano Walt Whitman
(1819-1892), um dos nomes que aparece no índice onomástico que,
segundo ela, “é cheio de chaves”: “uma referência, assim como no
texto vai ter uma série de referências a autores e a textos [de] que
eu gosto” (CESAR, 1999b, p. 265). De fato, um dos mais belos poemas
de Whitman traz o recurso que Ana Cristina recupera: a inclusão de
seu nome no texto é uma forma de recriar-se em outro, através da
referência a si mesmo em terceira pessoa. Citemos, para exemplificar,
um fragmento de “Song of myself”:

Walt Whitman, a kosmos, of Manhattan the son,


Turbulent, fleshy, sensual, eating, drinking and breeding,
No sentimentalist, no stander above men and women or apart
from them,
No more modest than immodest.

Unscrew the locks from the doors!


Unscrew the doors themselves from their jambs!

Whoever degrades another degrades me,


And whatever is done or said returns at last to me.

Through me the afflatus surging and surging, through me the


current and index.20 (WHITMAN, 2000, p. 45)

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Uma modernidade (c) sem limites

A continuação do poema de Whitman tomará uma intensidade


tal que o poeta se dirá não só outro mas voz do outro: a escrita e sua
força, a escrita e seu poder. Tudo isto a partir de um “eu incorpóreo”
que se presentifica na literatura, mas também na correspondência, no
diário que se torna um “jornal íntimo” (como em um texto intitulado
exatamente assim por Ana Cristina), nos textos de cunho mais técnico
e denotativo, anúncios, instruções de bordo, verbetes de dicionário,
lições de literatura, apontamentos de aula. Todos são trabalhados
de tal forma que, nas mãos de Ana Cristina Cesar, são entrevistos
pelo “olhar estetizante” de uma “forma híbrida” que ela chama de
literatura.
“Não quero mais a fúria da verdade”. É assim que Ana Cristina
entra na página de diário “21 de fevereiro”. Ela não precisa mais da ver-
dade ao dizer-se e, na desleitura de Manuel Bandeira, completa: “Belo
belo. Tenho tudo que fere.” (CESAR, 1998a, p. 106). Nesse momento-
outro, o ser passa a pertencer a um lugar-outro em que anseia por
criar-se em corpo escrito, enquanto fornece pistas (apenas pistas) de
vida, muito mais ferinas decerto – mas talvez por isso mesmo mais
belas e sublimes – que qualquer fonte documental, já que literatura
não é documento, palavra de Ana Cristina Cesar.

Notas
1 Trata-se de escritos sobre Baudelaire dos anos 1936-1939, que se constituem, na
verdade, de fragmentos de um livro que Benjamin pretendia consagrar ao poeta
francês. É curioso também (e devemos destacar o fato) que esses ensaios tenham
ficado indisponíveis nos Estados Unidos até 1981, conforme nos informa Marshall
Berman em Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade (Cf.
BERMAN, 1986, p. 339).
2 Para melhor elucidar, conceitualmente, as duas modalidades de conhecimento que
Walter Benjamin distinguiu – Erfahrung e Erlebnis – convém conferir as definições
de Leandro Konder: “Erfahrung é o conhecimento obtido através de uma experiên-
cia que se acumula, que se prolonga, que se desdobra como numa viagem (e viajar,
em alemão, é fahren); o sujeito integrado numa comunidade dispõe de critérios
que lhe permitem ir sedimentando as coisas, com o tempo. Erlebnis é a vivência
do indivíduo privado, isolado; é a impressão forte, que precisa ser assimilada às
pressas, que produz efeitos imediatos. ‘Erfahrung é o produto do trabalho’ – esque-
matizaria Benjamin no Trabalho das Passagens –, ‘e Erlebnis é a fantasmagoria do
ocioso’” (KONDER, 1988, p. 72).
3 Confronte-se também a esse respeito Max Weber, que analisa o desencantamento
do mundo em relação ao advento do capitalismo.
4 A discriminação das disciplinas nessas duas perspectivas se deve ao professor
Roberto Acízelo de Souza. No entanto, ele mesmo destaca no livro Formação da
teoria da literatura que os termos “humanística” e “científica” são uma sugestão do
professor Benedito Nunes (Cf. SOUZA, 1987, p. 14).

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5 Referimo-nos ao ensaio “Traduzindo o poema curto”, escrito originalmente em in-

Anélia Montechiari Pietrani


glês por Ana Cristina e traduzido por sua mãe Maria Luiza Cesar, para integrar o
livro Escritos da Inglaterra, que reúne estudos e reflexões da autora sobre prosa
e poesia moderna traduzidas, expostos em seminários, no decorrer do Curso de
Literatura realizado na Universidade de Essex, na Inglaterra, durante os anos de
1979 e 1981.
6 Ao fundir as categorias de “pessoa” e de “indivíduo”, pensamos abrir conside­
rações acerca da construção dialética de um eu compreendido tanto ontológica
quanto socialmente. A própria Hannah Arendt, neste mesmo livro aqui citado,
elabora uma digressão sobre o sentido de pessoa e de indivíduo dentro da no-
breza, em que o eu “cessa inteiramente de ser uma pessoa individual existindo
por si mesma e realmente não possui mais vontade própria”, citando Burgsdorff
(ARENDT, 1994, p. 39). À idéia de que a pessoa diz respeito ao que é inerente ao
ser, à essência, ao absoluto, a um todo, contrapõe-se a de que o indivíduo é uma
construção e remete-se à aparência, ao relativo, a um fragmento, portanto. “O in-
divíduo é só o momento, ao qual se contrapõem a memória do grupo familiar e
a preocupação com sua continuidade futura. O indivíduo é, portanto, apenas o
representante do ‘interesse duradouro e imutável de uma classe como ser moral
e conseqüentemente imortal’ (Marwitz). [...] Assim, a pessoa é tudo, mas o indiví-
duo nada” (ARENDT, 1994, p. 40).
7 “De que outra maneira o mundo lhe viria, exceto sob a forma de acaso?” (ARENDT,
1994, p. 45).
8 “Não se morre de pesar, de infelicidade”(ARENDT, 1994, p. 53).
9 “[R]ealmente participava do jogo imaginário do romantismo, disfarçando-se, fin­
gindo emoções, sempre na expectativa de que iria se tornar realmente o que acre­
ditava apenas poder parecer ser”(ARENDT, 1994, p. 60).
10 “Amar a vida é fácil quando se está no exterior. Em nenhuma outra época se é mais
dono de si mesmo do que onde não se é conhecido por ninguém e se a vida está
somente em suas próprias mãos”(ARENDT, 1994, p. 67).
11 As expressões entre aspas foram usadas por Lucia Helena no artigo “A solidão
tropical e os pares à deriva: reflexões em torno de Alencar”, em referência à escrita
de Os devaneios do caminhante solitário, de Rousseau: “Nela se anuncia que o eu
social e o eu individual se debateram numa complexa elaboração da identidade.
Apresentavam-se cindidos o ‘eu social’ (o je) e o ‘eu interior’ (o moi)” (HELENA,
2000, p. 141, grifos do autor).
12 A Athenäum foi uma revista finissecular, editada pelos irmãos Schlegel, em três
volumes entre 1798 e 1800 (cada um deles dividido em duas partes), cujo conteúdo
englobava textos de Novalis (Pólen e Hinos à noite), os fragmentos de Schlegel, seu
ensaio Sobre o W. Meister de Goethe e sua Conversa sobre a poesia, uma espécie de
paródia aos diálogos platônicos.
13 Em carta a David Veit, Rahel lhe pergunta: “Por que não mostra a alguém uma
carta minha por inteiro? Isso não iria me incomodar; nada que escrevi precisa ser
escondido. Se apenas eu pudesse me mostrar aberta às pessoas como se abre um
armário e, num gesto, se mostra as coisas arrumadas em seus compartimentos...
Elas certamente ficariam satisfeitas e, vendo-o, também compreenderiam”(apud
ARENDT, 1994, p. 27). Esse é o modo que utiliza para associar a escrita a uma forma
de revelação e indiscrição.
14 As Confissões, livro em que Rousseau procura explicar aspectos de sua vida e obra,
começaram a ser escritas em 1764 e somente foram concluídas em 1771. Acome-
tido por delírios de perseguição e na tentativa de justificar-se diante do mundo,
ele passa a ler alguns excertos de seu texto nos salões parisienses, mas, logo, as
leituras públicas são proibidas pela polícia.
15 O romance Lucinde foi publicado em 1799. Nesta obra, Schlegel tenta conciliar a
ficção com a reflexão filosófica e estética, rompendo, dessa forma, com os gêneros
convencionais.
16 Este texto foi publicado, originalmente, em 30 de abril de 1977, no Jornal do Brasil,
na seção “Livros”. Faz parte, atualmente, da compilação de seus textos ensaísticos
Crítica e tradução.
17 Estamos reunindo expressões-chave do fragmento 206 da Revista Athenäum e do
trecho da página 58 do livro Conversa sobre a poesia e outros fragmentos, a que
aludimos linhas anteriores neste trabalho.

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18 Maria Lucia de Barros Camargo, em Atrás dos olhos pardos: uma leitura da poesia
Uma modernidade (c) sem limites

de Ana Cristina Cesar, discute a caracterização da poesia de Ana Cristina a partir


das duas linhas: o “difícil” e o “fácil”. Ao analisar a intensa carga de intertextualida-
de e desdobramento textual da entrada de diário “21 de fevereiro”, texto publicado
em A teus pés que poderia ser um dos que incluiria Cacaso no grupo dos fáceis, a
ensaísta conclui: “Intertextualidade que reforça a complexidade do texto ao mes-
mo tempo que desmonta a idéia do diário como ‘texto fácil’, bem ao gosto de sua
geração, seja de poetas, seja de leitores, como o demonstrou Cacaso” (CAMARGO,
2003, p. 201).
19 Este depoimento foi dado no curso ministrado pela professora Beatriz Rezende, na

Faculdade da Cidade, no Rio de Janeiro, em 6 de abril de 1983.


20 Transcrevemos, a seguir, a tradução do fragmento de “Canção de mim mesmo”,

feita por André Cardoso e publicada na edição bilíngüe citada na bibliografia: “Walt
Whitman, um cosmos, de Manhattan o filho,/ Turbulento, corpulento, sensual, co-
mendo, bebendo e reproduzindo,/ Sem sentimentalismo, sem se colocar acima de
outros homens e mulheres nem se/ afastando deles,/ Sem modéstia nem imodés-
tia./ Arrancai os ferrolhos das portas!/ Quem quer que degrade um outro degrada
a mim,/ E tudo o que é dito ou feito acaba voltando a mim./ Através de mim a
inspiração irrompe sempre, através de mim a corrente e o/ direcionamento.”

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Migração de gêneros e sentidos

A ousadia de dizer-se

“É falso dizer: eu penso; dever-se-ia dizer sou pensado.


Perdoe -me o jogo de palavras. Eu é um outro.”
(Arthur Rimbaud)1

Este trecho de uma carta de Arthur Rimbaud serve aqui não só


como epígrafe mas como mote a ser glosado neste trabalho que pre-
tende investigar a idéia de literatura como um risco: risco que separa o
difícil limite entre o dentro e o fora desse fazer em uma região discursiva
própria; risco onde se borda o eu que é outro; risco que se corre no
entrelugar da literatura, esse teatro de máscaras, máscaras de eus.
“Je est un autre.” Se, no original francês, é flagrante a similitude
gráfica e fonética entre as palavras eu e jogo, na tradução para o portu-
guês, as palavras de Rimbaud, “eu é um outro”, apontam ao leitor um
jogo complementar àquele: o que ocorre entre sujeito e predicativo,
nesta rua de mão dupla em que transitam o eu e o outro. Jogo este
que se configura ainda com mais força, tanto em uma quanto em outra
língua, pela migração de sentidos marcada na alteridade da linguagem
por conta da impropriedade gramatical (pronome na primeira pessoa,
verbo na terceira) verificada no trecho.
É esse efeito lúdico que buscamos na leitura dos textos de cará-
ter autobiográfico de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath. Ainda que as
cartas e os diários – segundo o tradicional conceito atribuído a esse
gênero – possam figurar nos tipos de textos que mais se aproximam
da literatura como documento experimental biográfico e histórico, eles
apontam-nos, por isso mesmo, uma concepção de escrita em que se
pode discutir a difícil relação entre o lugar literário e o extraliterário.
E mais: servem como ponto de referência para ser analisada a ques-
tão intrincada entre o eu e o outro, em que este “outro” pode ser aqui
compreendido não só como o interlocutor empírico ou imaginário
desses tipos de textos, como também a emoção narrada ou poetizada
que se encaminha para um “outro” espaço, o do ficcional.

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Migração de gêneros e sentidos

Isso porque o ser ali inscrito não é o objeto representado, mas


sim o sujeito que se produz. Ou seja, nos textos de cunho autobiográfi-
co, não se espera que a palavra reproduza um dado preexistente, mas
produza uma “verdade do eu” a partir de sua memória, um pensar-se ou
ser pensado, no momento em que narra a si mesmo, enquanto revive
a sua história e escreve-a. Como diz Jean Starobinski, em Jean-Jacques
Rousseau: a transparência e o obstáculo, ao mostrar-se, o eu abandona-
se ao sentimento e confia-lhe a palavra. “O que garantirá a verdade
da autobiografia é essa não-resistência ao sentimento e à lembrança”
(STAROBINSKI, 1991, p. 202). Ao escrever-se, o narrador, em vez de
imergir na verdade histórica, busca a emoção (aqui, sim, sincera) que
a sua relação com o passado manifesta. Acerca desse trânsito em
mão dupla, cujos transeuntes são a verdade e a sinceridade, também
refletiu, ironicamente, Hannah Arendt, em Rahel Varnhagen, ao tratar
da vida desta judia alemã, a quem tudo faltava – cidadania, dinheiro,
origem, beleza – apesar de sua inteligência e personalidade. Assim, a
mentira será a “verdade” construída sincera no mundo:

Talvez a realidade consista apenas na concordância de todos,


talvez seja apenas um fenômeno social, talvez sofresse um
colapso assim que alguém tivesse a coragem de negar direta
e consistentemente sua existência. Todo evento passa – quem
saberá amanhã se ele realmente ocorreu? Tudo que não é de-
monstrado pelo pensamento não é demonstrável; também ne-
gar, também falsificar por mentiras, deixar de lado a liberdade,
mudá-la e torná-la ineficaz. Apenas as verdades descobertas
pela razão são irrefutáveis; apenas essas podem sempre ser
explicadas a todos. Pobre realidade, dependente de seres hu-
manos que acreditam nela e a confirmam. Pois ela, assim como
sua confirmação, é transitória e nem sempre apresentável.
(ARENDT, 1994, p. 22)

Por isso, não importa a exatidão da reminiscência. Por isso, na


esteira da etimologia que une coração e recordação, podemos afirmar
com Starobinski: “[o] sentimento é o coração indestrutível da memó-
ria” (STAROBINSKI, 1991, p. 204).
Acrescente-se a isso que as narrativas de caráter autobiográ-
fico compõem-se da mesma carga de subjetividade que encerram os
romances, cuja forma interna – segundo Georg Lukács, em A teoria

Experiencia do limite.indb 64 17/2/2009 16:50:50


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Anélia Montechiari Pietrani


do romance – foi concebida conforme o processo da “peregrinação do
indivíduo problemático rumo a si mesmo, [d]o caminho desde o opaco
cativeiro na realidade simplesmente existente, em si heterogênea e
vazia de sentido para o indivíduo, rumo ao claro autoconhecimento”
(LUKÁCS, 2000, p. 82). Na medida em que tais textos também se
constroem a partir de uma necessidade imanente ao sujeito moderno
ocidental, a de “dizer-se a fim de ser”, é como se afirmássemos que o
próprio vazio da sociedade individualista provocasse, em contrapar-
tida, a criação de um sujeito “si-mesmo-em-outro” que deseja prover-
se de algum conteúdo. Tal qual o método psicanalítico, as formas do
romance, do journal, das cartas passam a ser exemplos do “dizer quem
é para chegar a ser outro”, muito mais numa produção de sentidos,
digamos, sinceros do que de verdades factuais.
Quando pensamos na factualidade temporal e espacial do texto
autobiográfico, não podemos deixar de insistir que a ela confluem as
idéias produzidas por um eu. Nesses termos, é pertinente a advertência
presente nas palavras de Lukács, extraídas da obra já citada, segundo
a qual mesmo a expressão puramente lírica não pode esbarrar no
que ele chama de “auto-suficiência da subjetividade”. Esta seria uma
postura de intensificação extrema do lírico, pois

também a subjetividade lírica conquista para seus símbolos o


mundo externo; ainda que este seja autocriado, ele é o único
possível, e ela, como interioridade, jamais se opõe de maneira
polêmico-repreensiva ao mundo exterior que lhe é designado,
jamais se refugia em si mesma para esquecê-lo, mas antes,
conquistando arbitrariamente, colhe os fragmentos desse caos
atomizado e os funde – fazendo esquecer todas as origens – no
recém-surgido cosmos lírico da pura interioridade. (LUKÁCS,
2000, p. 119-20)

Ainda que o autor, no decorrer de sua análise, saliente as especi-


ficidades concernentes aos gêneros lírico, épico e trágico, essa é uma
observação profundamente lúcida sobre o conceito de literatura em
geral, numa abordagem de deslimitação entre gêneros, já que insistir
na insularidade da alma é desmentir o vínculo entre a interioridade e
o mundo, justamente atingindo o ponto em que a alma “pé-no-chão”
depende da situação deste mundo num processo, como disse Lukács,
único de autocriação do mesmo mundo. Mundo, sim, caótico e, por

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Migração de gêneros e sentidos

isso, atomizado, mas formador de um sentido colhido nos seus frag-


mentos e fundido no “cosmos lírico da pura interioridade”, sem que
não seja demais repetir a perífrase que tão bem exprime a conjunção
de sentidos entre o eu e este outro autocriado na literatura.
O termo nesse caso engloba os textos comumente considerados
literários mas também aqueles em que esta tradicional concepção fica
na corda bamba à espreita da representação e dramatização do sujeito:
a autobiografia revelada ou desvelada pelas cartas e diários.

Na verdade, não somos nunca causa da nossa vida, mas po-


demos ter a ilusão de nos tornarmos seu autor, escrevendo-a,
com a condição de esquecermos que somos tão pouco causa
da escrita quanto da nossa vida. A forma autobiográfica dá a
cada um a oportunidade de ser um sujeito pleno e responsável.
Mas basta descobrir-se dois no interior do mesmo “eu” para que
a dúvida se manifeste e que as perspectivas se invertam. Nós
somos talvez, enquanto sujeitos plenos, apenas personagens
de um romance sem autor. A forma autobiográfica indubitavel-
mente não é o instrumento de expressão de um sujeito que lhe
preexiste, nem mesmo um “papel”, mas antes o que determina
a própria existência de “sujeitos”. (LEJEUNE apud MIRANDA,
1992, p. 40-41)

Seguindo o rastro dos sujeitos que se criam a partir da forma


autobiográfica, deparamo-nos com uma certa produção de Ana Cris-
tina Cesar, que apresenta por peculiaridade trabalhar o gênero-carta
e o gênero-diário, imiscuindo-os à própria arte: carta, diário, notícia
de jornal, diário de bordo, tudo pode ser arte e motivo de arte, como
ressaltamos no capítulo anterior. Certamente, pela veia artística que
trazia a carta para o coração da obra literária, jorrava o mesmo san-
gue que fluiu pelas de Rousseau e Goethe no processo de criação de
A nova Heloisa e Os sofrimentos do jovem Werther, raízes da tradição
romanesca que apresentavam a estrutura epistolar como constructo
literário, assim como, aqui no Brasil dos oitocentos, encontramos os
romances de José de Alencar seguindo um fluxo muito semelhante.
Não à toa, em carta endereçada a Ana Candida Perez, Ana Cris-
tina havia sugerido à amiga que publicassem suas correspondências
como um texto de ficção, fazendo apenas a ressalva de que os perso-
nagens deveriam ser aperfeiçoados. Como mais um exemplo do jogo

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Anélia Montechiari Pietrani


de escrita presente nas cartas de Ana Cristina, podemos citar um fato
curioso: as endereçadas a Ana Candida quase nunca aparecem com
a citação nominal inicial e a assinatura. Nesta a que nos referimos,
todavia, possivelmente escrita em 1980, não pode passar despercebi-
do ao leitor o efeito lúdico que a poeta obtém a partir dos nomes do
destinatário e do remetente: a carta é destinada a Ana, assim como
quem a assina é (também) Ana (Cf. CESAR, 1999a, p. 269).
Dessa forma, confrontar as cartas-em-si com os chamados
textos ficcionais por ela produzidos é uma boa “cartada” – cheia de
blefes, certamente – para participar desse “jogo de eus” em que uma
Ana Cristina, uma Ana C., uma Ana, um eu ou até mesmo um Júlio –
para citar algumas das diferentes formas como a autora assinava suas
cartas – trapaceiam o leitor e a realidade com os supostos textos que
deveriam ser considerados discursos sem máscaras.
Observemos, por exemplo, as palavras de Italo Moriconi, ao
referir-se às cartas escritas por Ana Cristina Cesar, publicadas por
Caio Fernando Abreu no jornal O Estado de S. Paulo em 1995, em que
o talento epistolar da autora é destacado:

Escritora por vocação e profissão, ela jamais escreveria cartas


inocentes. As que enviou a Caio são pura pose, pura malícia,
como convém à boa literatura. No entanto, delas é possível ex-
trair verdades fortes de vida, mais cruéis que qualquer intenção
documental. (MORICONI, 1996, p. 11)

Ainda que – segundo Moriconi – as cartas sejam exemplos de


textos cujo ponto de partida é a verdade de vida do autor, delas jamais
se pode esperar a inocência. Ao contrário, caracterizando-as como
“pura pose”, “pura malícia”, o crítico afasta-as do caráter meramente
documental.
É curioso também como as palavras de Aurélia Schober Plath,
mãe de Sylvia Plath e responsável pela compilação das cartas da poeta
que aparecem em Letters home by Sylvia Plath – correspondence 1950-
1963, conduzem ao mesmo ponto referido por Philippe Lejeune no
fragmento de Je est un autre, a que fizemos referência linhas atrás:

Throughout these years I had the dream of one day handing


Sylvia the huge packet of letters. I felt she could make use of
them in stories, in a novel, and through them meet herself at

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Migração de gêneros e sentidos

the varied stages in her own development and taste again the
moments of joy and triumph and more clearly evaluate those of
sorrow and fear. (PLATH, Aurelia apud PLATH, 1992a, p. 3)

Neste excerto do prefácio às cartas de Sylvia Plath, após


afastadas as palavras que denotam a aura de tristeza que persegue
esta mãe pela impossibilidade de reversão do destino cruel da filha,
permanecem – para o crítico – as que indicariam serem as cartas um
rico material para a criação de um sujeito novo, diferente, refeito, seja
lá o que for. Nelas, segundo a mãe-ensaísta, Sylvia encontraria a si
mesma ou àquela que, permeada pelas ilusões, Aurelia desejaria que
ela, de fato, encontrasse. Trata-se do conflito entre os “dois eus” que
se descobrem no interior do mesmo “eu”, de que fala Philippe Lejeune
no fragmento de Je est un autre, retomando Rimbaud. Trata-se, enfim,
do “jogo de eus” de que dá conta a carta: documento e literatura.

Jogo de eus: a correspondência de Ana Cristina Cesar

“A verdadeira carta é por sua natureza poética.”


(NOVALIS, 2001, p. 66)
“As cartas
não mentem
jamais.” (CESAR, 1998a, p. 68)

Perdido documento (do) literário: eis o que podemos considerar


as cartas dos escritores “de vocação e de profissão”, neste século XXI
de tecnologizações da escrita e de eletronização do efêmero. Este é,
portanto, um bom momento para pensar no seu papel. Se literatura é
o que permanece através dos tempos e do velho se faz novo, as velhas
cartas são o elo perdido e distante dessa permanência e renovação.
São, agora, substituídas pelas mensagens eletrônicas, que não se
perpetuam, apenas se esvaem na tecla do deletar: triste destino das
tantas mensagens perdidas.
Neste apagar-se de mensagens, se só vestígios de um nada
sobram nas mãos do escritor, os e-mails – que apenas fixam um dado
momento e se tornam, por isso, produtos da vivência de choque
nesta sociedade eletrônica – vão para a lixeira tão logo se perceba
a caixa de entrada abarrotada. Não, ainda há o vestígio de argila nas
mãos do oleiro, o da tinta nas do pintor, mas não há mais o nanquim

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Anélia Montechiari Pietrani


nas do escritor. Objetivos, secos, apressados, reproduções do ins-
tantâneo, os e-mails condizem mais à vida moderna que as cartas:
estas mofadas linhas em um mundo em que não se cheira (o outro),
não se toca (o outro), não se fala (com o outro), não se escreve (ao
outro), não se lê (o outro).
Comparando o século XXI com o XVIII que, segundo Jürgen Ha-
bermas, teria sido o “século das cartas” porque as pessoas desejavam
estabelecer relações “puramente humanas” e se desenvolver em sua
subjetividade,2 somos compelidos a fazer alguns questionamentos
acerca de nosso século. Perdeu-se o caráter de humanidade ou ela
reduziu-se a umas poucas linhas, a um resumo de si mesma? Ou tornou-
se também uma mera reprodução mecânica resultante da mensagem
que chega, via internet, e é encaminhada, antes de ser deletada, a outros
leitores pertencentes todos a uma pasta coletiva? Nessa “massa” de
mensagens, dispersaram-se, fragmentaram-se ou perderam-se por com-
pleto os vestígios do eu em meio ao progresso da vida tecnologizada
e ao destino do homem que se torna fatidicamente só?
Estas são apenas algumas perguntas que somos levados a
formular a respeito do assunto. Outras podem ser feitas. Apesar de
tudo, por que procuramos ainda ler as cartas dos escritores? Por
que insistimos em desentranhar delas (e aqui entram também em
cogitação os diários) a subjetividade de um autor, bem como a crítica
e a história de um ideário de uma época? Talvez existam os últimos
românticos a sorver os “derramamentos do coração”, a visitar os
“escritos da alma”,3 a embarcar na Erfahrung4 da correspondência.
E estes se tornam os cúmplices, as testemunhas de uma intimidade
e de uma história. Por isso, podemos insistir nesta leitura-viagem,
apesar de tão cheia de traças.
Estendendo o interesse sobre as cartas, partindo do leitor de-
vassador de intimidades para o leitor crítico literário, podemos encon-
trar a explicação para a compreensão do que representa o estudo do
gênero epistolar: a confluência entre vida e arte sem cair nas malhas
do biografismo do século XIX ou nas de sua contrapartida no século
XX através da metodologia formalista e estruturalista, que isolou o
texto literário, tornando-o único objeto de estudo. Em uma das cartas
de Ana Cristina, por exemplo, como muitas em que se debruça sobre
o destrinchar das categorias do literário e da teoria da literatura, ela
informa ao destinatário o quanto a fascinara a biografia de Virginia
Woolf que apresenta uma qualidade que ela vem desejando, mesmo

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Migração de gêneros e sentidos

contra suas “garras formalistas”: “a despretensão literária (que pode


acabar dando em literatura)” (CESAR, 1999a, p. 124).
Assim como o texto biográfico pode desgarrar-se tanto de um
pólo quanto de outro e acabar “dando em literatura”, também as car-
tas, de modo algum, podem ser lidas ou estudadas, única e friamente,
como resultado de um simples bate-papo descontraído e informativo.
São reveladoras, nesse sentido, as efusivas cartas de Ana Cristina
Cesar, publicadas, em 1999, em Ana C. – Correspondência incompleta,
livro organizado por Heloisa Buarque de Hollanda e Armando Frei-
tas Filho, que compilaram as correspondências de Ana remetidas,
entre 1976 e 1980, a quatro mulheres: Clara Alvim, sua professora
na PUC-RJ (quatro cartas de abril de 1976 a abril de 1977, durante a
permanência de Clara em Brasília); Maria Cecília Londres Fonseca,
também sua professora (cartas de fevereiro de 1976 a dezembro de
1980 e algumas sem data); Ana Candida Perez, sua amiga de infân-
cia (cartas de 1976 a 1977, por ocasião da mudança de Ana Candida
para Montréal, onde se especializou em literatura comparada, e de
1979 a 1980, quando Ana Cristina esteve na Inglaterra cursando seu
mestrado); e a própria Heloisa, sua orientadora de mestrado na UFRJ
(algumas cartas sem data ou com data ilegível e outras de outubro
de 1979 a novembro de 1980, escritas no mesmo período do segundo
conjunto de cartas endereçadas a Ana Candida).
Elas constituem revelação de sentimentos e emoções, de idéias
e teorias. Representam a palavra do silêncio, ou do riso oblíquo, ou
da instabilidade que insistiam em permanecer no encontro tête-à-tête.
Em posfácio à edição das cartas, Heloisa Buarque de Hollanda faz
referência a esse comportamento de Ana que, segundo a sua visão
muito pessoal – como frisa –, justificaria um traço bastante peculiar
a ela: o de escrever porque sabia, gostava, mas, sobretudo, porque
precisava escrever:

No ambiente agitado da rua Faro,5 era fácil perceber que Ana,


para usar um termo de hoje, não era uma pessoa “situada”.
Parecia sempre ansiosa, levemente genée, querendo chamar
atenção a qualquer custo mas ao mesmo tempo se sentindo
extremamente desconfortável quando notada, apreciada. Sua
enorme afetividade procurava mas parecia não encontrar a
direção certa. Era uma pessoa de relações e amizades intensas,
invasivas, possessivas. No fundo, basicamente oblíquas. Am-

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bivalentes. E sofria com isso, queria se livrar disso. E escrevia.
Escrevia poemas, diários, cartões, cartas, muitas cartas. Não
será à toa que a questão que a sua escrita ainda hoje levanta é
a questão do interlocutor, de seu destinatário. Para quem Ana
escrevia? Ou para ser mais correta: quem escrevia, quando Ana
C. escrevia? Uma pergunta que conseguiu manter em aberto
através de toda a sua obra. Essa, sua grande expertise (em
CESAR, 1999a, p. 300).

A escrita como necessidade de evasão, de libertação da mera


observação que não lhe permitia estagnar-se como um basbaque nos
faz remontar à distinção apontada por Walter Benjamin entre o basba-
que e o flâneur, no já citado estudo que dedicou a Charles Baudelaire.
Segundo Benjamin, aquele estagna-se na estupefação e perde sua in-
dividualidade, já que o mundo exterior o inebria a tal ponto que o faz
esquecer-se de si mesmo. Este, ao contrário, está sempre em plena posse
de sua individualidade, uma vez que é capaz de flanar entre o eu e o
outro e perscrutar-lhes o sentido sem ser acometido de distração (Cf.
BENJAMIN, 1989, p. 69). Há muito, portanto, da flânerie em Ana Cristina
Cesar – pessoa e persona – que jamais se estagnaria: antes, escreve
como uma forma de expressar o conflito dilemático entre a subjetividade
fragmentada e a pluralidade “real” – mas efêmera – de imagens.
Esse primeiro traço fundamental apontado por Heloisa Buarque
de Hollanda a respeito do processo de escrita de Ana Cristina pode
ser corroborado pela própria Ana em trecho de carta dirigida a Clara
Alvim: “Desculpa o estilo – morro pela boca, por essa boca. Me sinto
triste e a palavra vilipendia minha tristeza” (CESAR, 1999a, p. 25). Se,
nessa carta, a escrita é tratada como forma de combate à tristeza, que
é vilipendiada por sua palavra, neste fragmento de uma outra, desti-
nada a Heloisa três anos depois, a escrita insurge-lhe como salvação
e necessidade: “Você tem que entender uma coisa, eu estou aqui, sem
muita ocupação, e tenho um ritmo na cabeça que fica falando e não me
deixa adormecer, então o jeito é escrever, estou completamente numa,
adoro papel e tinta, o que é que posso fazer?” (CESAR, 1999a, p. 56).
Permanece a idéia da palavra combativa, só que agora ela combate o
ritmo febricitante e vulcanizado que precisa atenuar-se e escapar-lhe
dos limites do pensamento do eu. A sua extrema sensibilidade é a
força motriz da escrita que rebate criticamente o que seu eu recebe.
Um meio de libertação interior, é como se escrever fosse uma forma

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Migração de gêneros e sentidos

de matar o que não consegue (ou não deseja) esquecer, podendo ser
o “si mesmo”, que morre pela boca.
Outro traço desconcertante da palavra (que, especialmente por
isso, se torna poetizada) de Ana, também apontado por Heloisa, é a
escrita que visa a um outro, seja este o seu interlocutor ou o produto
de ficcionalização de Ana Cristina Cesar travestida em remetentes
diferentes. Em uma pequena carta, sem data, endereçada à própria
Heloisa, ela assina: Júlio. É curioso que, no corpo da carta, apareça a
informação sobre a instabilidade deste eu: “me visto de mim quando
preciso e quando não preciso” (CESAR, 1999a, p. 88). “Júlio” está na
Grécia, aproveitando um pouco do sol e do mar que restam na Europa
e dançando samba nesse baile absurdo. Depois de citar um trecho de
canção de Roberto Carlos, “ele” dispara: “Acho enfim que é provisório
ser da condição dos avessos” (CESAR, 1999a, p. 88).
Mas o que é o avesso, senão também o avesso? Nessa tauto-
logia, reside a instabilidade de eus e outros e abre-se, ludicamente,
a discussão sobre a identidade. Tal jogo de avessos parece encon-
trar origem em poema de 1968, intitulado “Fagulha”, quinto texto
pertencente ao grupo de poemas a que nos referimos no capítulo
anterior, que aparecem marcados ao pé com a nota “inconfissões”:
“Eu não sabia/que virar pelo avesso/era uma experiência mortal”
(CESAR, 1998b, p. 41). Além disso, remete-nos ao deslocamento de
sentidos que é renitente na obra de Ana Cristina. Não há direitistas
ou esquerdistas, música brega ou MPB; não há verdade ou avesso,
Brasil ou Grécia, feminino ou masculino, eu ou outro. O avesso – se-
xual, pátrio, literário – pode até ser o canhoto demoníaco; por isso,
talvez, um certo brasileiro sambando na Grécia (ou a bela mulher
da PUC Zona Sul carioca, Ana traduzida, Ana exilada, Ana brasileira,
Ana mulher) deseje – como o rei – que “tudo mais vá pro inferno,
meu bem!” (CESAR, 1999a, p. 88). Tanto a vida quanto seu avesso
andam juntos numa condição provisória, como fagulhas do porvir
e da morte inexorável.
Seja carta seja diário, gêneros usualmente considerados literatura
menor, eles são atualizados pela autora e resgatados, literariamente,
por seu coloquialismo de linguagem e pela forma de profunda interação
entre o sujeito e o seu leitor. Isto se verifica nas tantas cartas em que ela
cobra do outro uma resposta. Às vezes, a cobrança surge de forma bas-
tante direta: “Escreve, louquinha do coração, and TAKE CARE” (CESAR,
1999a, p. 38, grifos do autor); outras, indireta, mas ainda persuasiva,

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apesar de carregada de sensibilização (ou talvez por isso mesmo): “P.S.
Manda um retrato? Com dedicatória” (CESAR, 1999a, p. 78).
Esse debruçar-se insistentemente sobre o outro para que res-
ponda suas cartas tem a ver, obviamente, com o desejo de diminuição
da ausência e com a criação de uma possibilidade de aproximação
com o ausente. A preocupação com o outro e a ansiedade provocada
pela demora em receber a resposta ou pelo temor da permanente
ausência são evidentes. Nessa tensa espera, espécie de solilóquio, o
remetente está só, lutando para que o destinatário diminua a distância.
Por isso, podemos insistir na idéia de que escrever cartas revela um
alto grau de dependência em que este que se mostra requisita a todo
momento a cumplicidade de seu interlocutor, com quem estabelece
uma espécie de vínculo, ainda que medido pelo tempo que durar a
correspondência. Como define Michel Foucault: “Ecrire, c’est donc ‘se
montrer’, se faire voir, faire apparaître son propre visage auprès de
l’autre” (FOUCAULT, 1983, p. 16).
O texto de Foucault a que fazemos referência é um dos poucos mate-
riais relevantes para se pensar sobre a carta, enquanto muitos são apenas
introduções – por vezes, brevíssimas – a compilações de correspondên-
cias. Além disso, constitui densa (apesar de breve) pesquisa arqueológica
acerca da “escrita de si” na cultura greco-romana e na cristã.
L’écriture de soi começa por apontar a importância, para a vida
ascética, das anotações escritas das ações e dos pensamentos, de
acordo com um dos mais antigos textos cristãos sobre o assunto da
escritura espiritual, La vita Antonii, de Atanásio. Escrever sobre si
mesmo alivia a solidão, e o caderno de notas acaba por desempenhar o
papel de companheiro, o que suscitaria, para o escrevente, a vergonha
e o conseqüente impedimento de incorrer em pecados, tanto em ações
quanto em pensamentos, haja vista que a escritura – como uma força
autocoercitiva – assume o papel de prova de verdade.
A seguir, Foucault retrocede à cultura greco-romana para infor-
mar-nos que lá já se encontravam esses elementos sobre o ato da escri-
tura de si mesmo, que se exteriorizavam, de acordo com documentos
da época, nas formas dos hypomnemata e da correspondência. Como
exemplo dos primeiros, há os livros de conta, os registros públicos,
as cadernetas individuais que serviam de lembrete e constituíam
memória material sobre o lido, percebido ou pensado, funcionando
como uma espécie de memória-arquivo para a releitura, a meditação
e a reescritura ulteriores.

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Migração de gêneros e sentidos

Os cadernos de notas – exercícios de escritura pessoal – podem


servir de matéria-prima aos textos que se enviam a outros. Também a
missiva – texto por definição destinado a outro – dá lugar ao exercício
pessoal. Nesta dupla função, a correspondência está bem próxima
dos hypomnemata.
A carta – escritura para um e leitura para outro – ajuda o des-
tinatário, arma o escritor e, eventualmente, os terceiros que a lêem.
Entretanto, não se deve considerá-la um simples prolongamento da
prática dos hypomnemata, apesar de apresentarem todos esses pontos
em comum. Segundo Foucault, “[l]a lettre rend le scripteur ‘présent’
à celui auquel il l’adresse” (FOUCAULT, 1983, p. 16). E este escritor
“presente” que é entregue a quem ele se dirige não o é simplesmente
pelas informações que dá sobre sua vida, seus sucessos e suas derro-
tas, suas felicidades e infelicidades; mas presente por uma espécie de
presença imediata e quase física: o traço de uma mão amiga impresso
nas páginas assegura o reencontrar.
É neste ponto que Michel Foucault define escrever como mos-
trar-se, fazer-se ver, fazer aparecer a própria face diante do outro, tre-
cho que citamos anteriormente no próprio idioma francês. Nas linhas
seguintes, o autor discorre sobre a intensa relação que se estabelece
entre o olhar que quem escreve debruça sobre o destinatário – uma
vez que, pela missiva que recebe, ele se sente olhado – e a maneira
de expor-se ao seu olhar por aquilo que o remetente diz de si. Na
instalação de um face a face, trabalham a subjetivação do discurso
verdadeiro e a objetivação da alma.
Seguindo esse caminho, o crítico francês reforça que, pela mis-
siva, a pessoa se expõe ao olhar do outro e coloca seu correspondente
no lugar do deus (escrito em minúscula por Foucault) interior. Nesse
sentido, o trabalho da carta implica uma “introspecção” que parece,
a princípio, paradoxal, mas é preciso ser compreendida como uma
abertura de si mesmo para o outro, a fim de que este o enxergue na
intimidade. Por isso, Foucault destaca que quem quiser procurar os
primeiros desdobramentos históricos do relato de si deve encontrá-los
na correspondência com o outro e na troca do serviço da alma.
A correspondência difere, pois, tanto dos hypomnemata quanto
das anotações monásticas das experiências pessoais. Enquanto a
escritura dos hypomnemata tratava de reconstituir-se como sujeito
de uma ação a partir da apropriação, unificação e subjetivação de
um já-dito fragmentário e escolhido, a das anotações monásticas tra-

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tará de desalojar do interior da alma os movimentos recônditos, de
modo a poder deles se libertar. Quanto à correspondência, esta trata
(destaquemos que Foucault usa o verbo no presente do indicativo) do
mostrar-se, simulando um face a face, que faz coincidir o olhar de um
com o do outro e um voltar-se para si mesmo, a partir do se escrever
e inscrever o eu. Um eu que é (o) outro.
É nessa “coincidência de olhares” – eu mesmo e o outro – que se
detém este estudo, a fim de ampliar o campo de forças que rege o caráter
do literário, tomando-se como ponto de partida um gênero textual que
funde e confunde os critérios que sedimentam a separação entre vida e
obra, entre um eu sujeito do discurso e outro eu objeto de representação:
nem determinismo biográfico, nem formalismo new criticism.
Se a carta é o lugar em que se mostra o rosto diante do outro
(ou que se mostra um outro rosto), num “face-a-face” trocado pelas
mãos que tocaram e que tocam o papel, este é o espaço da labilidade
(que poderíamos caracterizar como literária) simultânea de “subjeti-
vação do discurso verdadeiro” e “objetivação da alma”,6 já que, mesmo
que haja entrega de si ao outro, o missivista nunca se distancia de
si mesmo; mantém-se em diálogo consigo e com o outro, revelando
desejos que, permeados pela escritura, podem ser intensificados e
encorajados, os quais num encontro de fato face a face talvez fossem
ocultados ou, então, sequer admitidos: “[a] literatura parece ser um
lugar de dizer COM OUSADIA que eu não teria ‘na vida real’” (CESAR,
1999a, p. 186, grifos do autor). Nunca é demais insistir nesta definição
de literatura elaborada por Ana Cristina Cesar, apesar de a dificuldade
que envolve a questão aparecer revelada nos sinais: “com ousadia”
em letras garrafais e “na vida real” – essa coisa também difícil de
definir – entre aspas.
Insistindo na premissa de que a correspondência é uma forma
de exposição ao olhar do outro a respeito daquilo que se diz de si,
é interessante confrontar duas cartas de Ana Cristina que, apesar
de escritas no mesmo dia e retratarem assuntos idênticos, sugerem
versões diferentes a partir do que se espera como “resposta” dos des-
tinatários. Pode ser que, por serem destinadas a diferentes receptores,
a exposição de si torne-se também sutilmente diferente:

20.12.79
Bebendo muito vinho branco.
Helô, querida:

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Migração de gêneros e sentidos

Meu pai embarcou hoje. Fiquei sozinha e católica. Queria ver


missa do galo no Vaticano, mas acho que o Giovanni não deixa.
Como meu pai é complicado! Comprei livros do Guido Crepax.
Li no Zózimo que a Maria Scheneider vai filmar com a Carolina.
Queria mudar tudo na minha cara. Sonhei que você era minha
mãe. Há crises de identidade etc. Não ligo mais para os Grandes
Monumentos da História, nada me emociona, esqueci o frisson
europeu, bolas!
Feliz Natal. Conta tudo. Estou bem. SOS.
Beijos. Ana (CESAR, 1999a, p. 84)

20/12/79
Cecil, querida,
Acabei de passar uns dias com meu pai. Hoje ele embarcou pro
Rio, carregado de presentes para a família. Chove sem parar.
Estou hospedada com umas dominicanas, e vou passar o Natal
no Vaticano, com o papa, ou então em Firenze, com o Giovanni.
Queria mudar tudo na minha vida, enjoei da minha cara, me
sinto desconectada. Roma é mais bonito. (Dou um palpite e
mando o cartão pro Rio.) Sobreviva às festas, Feliz Natal, Ano
Novo, etc. Beijo no umbiguinho. E no Gelson, e no João Luís.
Mil Beijos, Ana (CESAR, 1999a, p. 193)

Se há em muitas de suas cartas um jogo de eus com o outro, que


se reveste de certezas e incertezas, convém também pôr em discussão
esse jogo do outro que está inscrito nestes dois exemplos. Sem querer
discutir o tipo de relação que Ana Cristina estabeleceu com uma ou
outra interlocutora em vida, o que não vem ao caso no momento, é
bem mais interessante refletir sobre a figuração do destinatário feita
pela escrita, o que implicará a forma diferenciada com que a autora
trabalha as mesmas informações.
Na primeira carta, verifica-se um indiscutível tom de ebrieda-
de, já revelado no próprio anúncio após a data, o que dá margem
a uma maior desinibição na exposição de si, ao mesmo tempo que
o jogo de certezas e incertezas se intensifica: “Estou bem. SOS.” Na
segunda, por outro lado, as revelações são feitas de tal forma, que
atendem a uma sutileza irônica. Porém, ao final da leitura de ambas,
as versões, aparentemente diferentes, se unem para ratificar a ma-
neira específica de Ana Cristina escrever: uma profunda melancolia

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à beira de uma crise de identidade, característica esta que perpassa
a sua obra como um todo, quer a que, canonicamente, é considerada
literária, quer não. Na verdade, poderíamos dizer que, aproximando-
se da linguagem cinematográfica, são feitas duas tomadas diferentes,
embora a cena seja a mesma. Aliás, a impossibilidade de repetir o
mesmo é reiterada pela própria Ana em um pedido que faz a Cecília,
em outra carta, com data de 4 de março: “Dê estas notícias pra Clara.
Vou escrever pra ela mas será impossível reeditar tudo” (CESAR,
1999a, p. 142).
Porém, essa preocupação insistente que relaciona o sujeito
(lírico) e o seu leitor (implícito) não aparece apenas em suas cartas.
Ela pode ser observada em muitos de seus poemas e prosas poéticas.
Segundo insinua Heloisa Buarque de Hollanda, este aspecto decorre
do caráter extremamente possessivo e invasivo de Ana e a intensidade
de sentimento que revela em suas amizades, o que teria feito com que
ela escrevesse um grande número de cartas e recheasse seus textos
da necessidade e permanência de um outro, ao mesmo tempo que
mascara a si mesma no eu literário.
Analisemos, por exemplo, o provocativo título A teus pés. Este
livro foi lançado primeiramente em 1982 e reeditado em 1998, assim
como na primeira edição, junto com mais três livros anteriormente
publicados de forma independente: Cenas de abril, Correspondência
completa e Luvas de pelica. A própria Ana Cristina, em depoimento
sobre sua obra, ressalta que tentou registrar nesse título a presença de
um outro, o interlocutor, a virtualidade de uma segunda pessoa. Isso
a retiraria do solipsismo, ao mesmo tempo que, ela pensa, sugeriria
devoção religiosa, humilhação, paixão e um toque de romantismo
(Cf. CESAR, 1999b, p. 264). Ela ainda acrescenta que, além de nos dar
um “drible”,7 ele abre a possibilidade de mobilização e referência ao
outro, no próprio tecer da textualidade. Drible que redobra o sentido
e remete tanto à “submissão do sujeito apaixonado ao objeto de sua
paixão” quanto à “submissão do poema ao trabalho de leitura do leitor”
(MORICONI, 1996, p. 132).
Estudando os textos de A teus pés, não pode passar despercebi-
da ao leitor a presença insistente de um destinatário. Há sempre um tu,
um você, um ausente, que é convocado a todo momento, interpelado
pelo sujeito poético que sente a necessidade de revelação, confissão,
beirando um discurso de até dependência, já que uma resposta do
outro é veementemente exigida pelo uso da segunda pessoa e dos

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verbos no imperativo. “Duas antigas”, um dos textos que compõem


esse livro, é bastante elucidativo para se pensar essa questão renitente
do interlocutor e também do campo semântico das cartas invadindo
o texto literário.
Convém, no entanto, começar pela difícil classificação desse
texto: poema? conto? carta? A seguir, resumimos o que pode ser dito
a respeito da forma do texto. A parte I – assim numerada por Ana Cris-
tina – é subdividida em duas. Inicia-se por um “poema” em que o eu
lírico faz um convite ao interlocutor, sugerindo-lhe que escreva cartas
doces e azedas. Em seguida, o tom prosaico assume a direção do texto,
inclusive sendo esta subparte marcada pela tabulação de parágrafo. A
parte II é, intencionalmente, uma carta. As últimas palavras são:

Me escreve mais, manda um postal do azul (eu não me espanto).


O lugar do passado? Na próxima te digo quem são os 3, mas os
outros grandes... eu resisto.
Não fica aborrecida: beijo político lábios de cada amor
que tenho. (CESAR, 1998a, p. 57) 8

É muito comum, nos textos da autora, a referência à falta que


faz o outro que é interpelado a todo momento e à tristeza pela espera
do ausente que não responde ou então não responde exatamente o
que deseja o remetente. Enquanto neste texto, “Duas antigas”, há uma
breve solicitação ao interlocutor (feminino, diga-se de passagem) – “Me
escreve mais, manda um postal do azul” –, em outro, páginas adiante
e sem título, a tristeza é funda, se não pela ausência, pelo vazio do
texto: “As cartas, quando chegavam, certos silêncios, nada mais”
(CESAR, 1998a, p. 80).
“Fogo do final”, que encerra o livro A teus pés, ilustra bem a
questão do leitor imaginário ou empírico das cartas-textos de Ana
Cristina. Elemento recorrente em sua obra, as referências ao universo
epistolar aqui também se repetem. Transcrevemos a seguir um frag-
mento deste longo “poema”:

Não precisa responder.


Envelopes de jasmim.
Amizade nova com o carteiro do Brasil.
Cartões-postais escolhidos dedo a dedo.
No verso: atenção, está falando para mim, sou eu que estou

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Anélia Montechiari Pietrani


aqui, deste lado, como um marinheiro na ponta escura do cais.
É para você que escrevo, hipócrita.
Para você – sou eu que te seguro os ombros e grito verdades
nos ouvidos, no último momento.
Me jogo aos teus pés inteiramente grata.
Bofetada de estalo – decolagem lancinante – baque de fuzil.
É só para você y que letra tán hermosa. Pratos limpos atirados
para o ar. Circo instantâneo, pano rápido mas exato descendo
sobre a tua cabeleira de um só golpe, e o teu espanto!
Não tenho pressa. (CESAR, 1998a, p. 81).9

Ana Cristina é criadora de um texto que desmistifica limites e


certezas. Só há o vazio nesta escrita no intervalo entre prosa e poesia,
entre poema e carta, entre o eu e o outro: seu irmão, seu igual, o leitor
hipócrita baudelairiano. O benefício é exclusivo do vazio, da lacuna,
da falta que “existe” entre o si mesmo e o outro: esta ausência sentida,
vivida e escrita na solidão e na intimidade do texto. A este hipócrita e
a seus pés, só é possível quedar-se grata, porque é ele que recebe as
verdades aos berros, as bofetadas, os pratos limpos – tudo é posto
em pratos limpos. Eis que – sem aplausos à cena final – desce o pano,
e o eu continua cá, só, deste lado, “um marinheiro na ponta escura do
cais”, submissamente aos pés do tu, que está lá, golpeado e espantado,
também no vazio, na ausência, sob esta única certeza melancólica: a
solidão do eu e do tu, “meu igual, meu irmão”.
Os traços apontados por Heloisa Buarque de Hollanda no trecho
anteriormente citado, na verdade, se intermedeiam e são bastante
significativos na leitura das cartas de Ana Cristina Cesar. Cartas em
que, sim, ela se confessa, mas – como diz Armando Freitas Filho –
“faz (fala de) literatura o tempo todo” (em CESAR, 1999a, p. 9). O viés
literarizado que assumem suas correspondências é, exatamente, o
resultado da junção dos aspectos salientados por Heloisa Buarque:
além do desejo de escrita como necessidade de erupção e da questão
do a quem se dirige o seu texto, muito importante é destacar o “quem
escrevia, quando Ana C. escrevia”. E isto persegue a sua obra como um
todo: esta difícil coisa a tratar que é a relação e a inter-relação entre
o eu que escreve e o outro eu ficcionalizado.

De resto: aulas no Souza Leão (hoje quase arranquei os cabelos


porque os alunos ficaram histéricos com as notas), outras aulas,

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Migração de gêneros e sentidos

a máquina de escrever. Dispersa, dispersada. Queria “ser” uma


coisa (o que é que você vai SER quando crescer?).
As rasuras no papel correspondem a atos falhos?
Vê então se me escreve, gostei tanto de te ler e ouvir.
Beijos muitos,
E saudades,
E venha cá,
E até
Ana. (CESAR, 1999a, p. 21, grifos do autor)

O sujeito Ana narra suas ações cotidianas como professora


e escritora: a presença de alunos histéricos a interferirem no seu
estado de espírito pode ser a única factualidade do texto. De resto,
dispersão desencadeada por este fato ou pela máquina de escrever
que, dispersa, teima em ser dispersada pela dificuldade da escrita,
corroborada pelas rasuras no papel que confirmam, também (se
forem atos falhos), a dispersão em que se encontra o sujeito. Há,
ainda, uma tentativa de buscar-se em “uma coisa” indefinida agora
e contrastada com o SER em maiúsculas na pergunta dirigida a um
possível interlocutor ou a si mesma. Existe, de fato, um interlocutor
a quem está direcionada a segunda pergunta ou, mais uma vez, na
dispersão dos sentidos e sentimentos, a pergunta é para “mim mes-
ma”? Um outro aparece, finalmente. A ele, o eu revela o saboroso
gosto de o ter lido e ouvido. Ler o outro é mais que decodificar os
frios signos lingüísticos, é captar-lhe o interior que a fachada das
letras tenta ocultar. As saudações finais encadeadas com a repeti-
ção do “e” iniciam-se nos beijos enviados, que são muitos (dito isto
depois do substantivo), e progridem na revelação de sua saudade,
na ousadia do pedido “venha cá”, culminando com a certeza do
encontro “até”.
Lido assim, com essa disposição gráfica e sem atentar para o
referencial bibliográfico, esse texto “emite” sinais literários dos mais
imaginativos, podendo ser “lido” como um poema, apesar de ser
“tão-só” uma das cartas de Ana Cristina, endereçada a Clara Alvim.
Nesta e em tantas outras em que “faz” literatura, ela também constrói
ricos instrumentos de reflexão e de referências crítico-teóricas que
“falam” de literatura. Nelas Ana desliza, criativamente, pela arte e pelo
artifício, pela literatura e pelo ensaio, pela prosa e pela poesia, o que
nos permite inscrever a carta na categoria dos poemas em prosa, uma

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Anélia Montechiari Pietrani


vez que se inserem no terreno conflituoso entre a ordem poética do
verso como unidade auditiva e visual e a liberdade prosaica da fluên-
cia da frase. Acerca dos poemas em prosa de Charles Baudelaire cuja
força Sonia Brayner acredita estar em seu poder de transfiguração e
sugestão, diz a ensaísta:

em um texto breve, uma realidade nunca se apresenta definitiva-


mente limitada em seu conteúdo, mas difusa na região subjetiva
dos afetos e das emoções profundas. [...] o poema em prosa é
um artifício para retratar a visão simbólica do protagonista
e, simultaneamente, sua dissolução no objeto. Enquanto uma
parte do sujeito dramatiza seu conflito interior, a outra parte,
sua máscara irônica, observa esse reflexo artístico do mundo.
(BRAYNER, 1979, p. 232)

Acrescente-se, ainda, que a tensão entre o intenso lirismo e a


linearidade estrutural acaba por conceder ao poema em prosa e às
cartas, por extensão, um caráter inovador na discussão dos limites
entre gêneros e na compreensão da integração das artes, minando a
concepção tradicional do romanesco que conquista um espaço sub-
jetivo mais amplo.
Retomando as cartas escritas por Ana Cristina Cesar, saliente-
mos que não há desejo, aqui, de nos tornarmos “um curtidor matreiro
e sabido” de suas correspondências. Ela mesma já havia advertido
que quem desejasse ler e aproveitar, ingenuamente, as cartas de um
escritor como matéria-prima para outros escritos estaria assumindo
uma atitude improdutiva. Essa observação de Ana se encontra no
artigo “O poeta é um fingidor”, em que resenha a edição das Cartas de
Álvares de Azevedo, organizadas por Vicente de Azevedo cuja leitura
do missivista mal-do-século ela considera ingênua, exatamente por o
compilador acreditar nas cartas como reflexo fiel do autor. Esse fato
faz com que ela prefira outra leitura: a que dele faz Mário de Andrade,
a qual, segundo ela, é mais rica por não cair nos atos de ingenuidade
que ela recrimina. Assim começa o artigo:

Escrever cartas é mais misterioso do que se pensa. Na prática


da correspondência pessoal, supostamente tudo é muito sim-
ples. Não há um narrador fictício, nem lugar para fingimentos
literários, nem para o domínio imperioso das palavras. Diante

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do papel fino da carta, seríamos nós mesmos, com toda a


possível sinceridade verbal: o eu da carta corresponderia,
por princípio, ao eu “verdadeiro”, à espera de correspondente
réplica. No entanto, quem se debruçar com mais atenção so-
bre essa prática perceberá suas tortuosidades. A limpidez da
sinceridade nos engana, como engana a superfície tranqüila do
eu. (CESAR, 1999b, p. 202)

Suas palavras iniciais já traduzem para o leitor do ensaio a


preocupação que os leitores de carta devem ter se acreditarem estar
cientes sobre a verdade que não está (ou apenas parece estar) ali
presente. Mas, a seguir, a advertência é clara: se as cartas forem lidas
com atenção, o leitor poderá encontrar-se no tortuoso caminho do
literário em que, duplamente, é atalhado pelo engano: a limpidez da
sinceridade e a aparência de tranqüilidade do eu. Reitera-se, aqui, a
diferenciação entre os conceitos de verdade e sinceridade.
Com isso, Ana Cristina aponta a riqueza de estudar a obra de
um autor a partir do que ela chama de “uso inteligente da biografia e
da correspondência”, desde que se reconheça o fingimento como ele-
mento próprio da literatura, mas que “só se afirma sobre bases deveras
sentidas”, descartando o “cotejamento simplório entre o literário e o
extraliterário” (CESAR, 1999b, p. 203). Há um interessante fragmento
de uma carta de Ana Cristina destinada a Heloisa Buarque em que
essa “limpidez” das verdades que aparecem nas correspondências é
questionada pela própria Ana missivista:

Dessa vez sou eu que estou passando dos limites. Pra dizer
a verdade eu não fiquei puta, eu fiquei rindo à toa com o seu
bilhete; quando eu te liguei a % de aflição estava alta e quando
eu me propus a te escrever e contar “tudo” (?) também. (CESAR,
1999a, p. 56)

O questionamento que faz sobre se, realmente, contaria “tudo” a


partir do momento em que se propôs a escrever nos conduz a insistir
na discussão de que a carta, compreendida como um gênero literário
específico, situa-se entre a “sinceridade verbal” e a “tortuosidade”
de um caminho poético e prosaico, de um eu enganoso e sincero,
insinuando-se pela ficção e pela biografia. Como diz Matildes Demétrio
dos Santos, em Ao sol carta é farol,

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as cartas fogem a uma classificação sistemática, mas tal parti-
cularidade não depõe contra elas, ao contrário, as reconduz a
um território amplo, onde elas participam, tranqüilamente, da
natureza da ficção, da memória, da autobiografia, do documen-
to, do artigo literário, do teatro. (SANTOS, 1998, p. 73)

Como se vê, não é por se considerar a carta a expressão de um


sentimento cujo cunho é o da veracidade ou da não-ficção que ela es-
taria despida do caráter de recriação poética do material lingüístico
escolhido pelo escritor. Seja espontânea ou fragmentária, incisiva
ou irônica, a carta cria uma ambiência própria para o exercício do
estilo do autor. Quando Ana Cristina escreve – seja prosa, seja poesia
–, encontramos um estilo de escrita que nos reenvia a uma poética
porco-espinho, no sentido como pensa a arte Friedrich Schlegel no
Athenäum. Isso porque – ciente das implicações de uma escrita tão
fechada e espinhosa e da busca da perfeição na sua própria imanên-
cia – o que a escritora realiza é a forma que encontra para construir
a expressão que “faz” uma obra fragmentária, irônica, ensimesmada,
intrincada, e sobre ela “fala” em vários momentos nos seus textos
crítico-ensaísticos e nos metalingüísticos literários.
“Jogo de eus” de uma poética que se passa na tensão entre o
eu e o outro, entre o eu e o mundo, entre fazer e falar, as correspon-
dências de Ana Cristina Cesar, muito mais do que um documento
histórico, se tornam, surpreendentemente, um campo de revelações
de suas concepções sobre o ofício do artista e, ao mesmo tempo, de
experimentações do exercício literário, que merecem ser fruídas como
obra de literatura.
Esta profunda relação entre fazer e falar se supera no único
texto que faz parte do livro Correspondência completa: uma carta
endereçada a “My dear” e assinada por “Júlia”. Conforme informa-
mos páginas atrás, este se trata de um livro que havia sido publica-
do independentemente em 1979, mas passou a compor A teus pés,
desde a sua primeira publicação em 1982. Não podemos deixar de
citar um texto que apresenta a estrutura epistolar, mas é, indiscu-
tivelmente, permeado pelo caráter de fingimento literário, mesmo
porque foi escrito com o objetivo de ser publicado, e este é um fato
que não deve ser esquecido, uma vez que denota um ato de discurso
literariamente intencionado. Além disso, é este mais um exemplo
de uma das grandes características de Ana Cristina: a ironia. Neste

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caso, ela ironiza as compilações epistolares, ao utilizar um único


texto-carta para constituir uma obra designada pelo título como
uma correspondência “completa”, assim como é irônica a referência a
essa obra como uma 2a edição, mesmo a que veio a público em 1979.
Se se trata de uma 2a edição, houve antes um interlocutor “oculto”
para nós, atuais leitores. Ana, assim, brinca com os limites de uma
carta real e uma carta publicada.
Nesta carta única deste livrinho, são muitas as pistas que ad-
vertem o leitor/o destinatário para o perigo de cair na armadilha da
mentira ou da verdade no texto. Já no primeiro parágrafo, aparece
a advertência: “Notícias imprecisas, fique sabendo” (CESAR, 1998a,
p. 117). Segue-se a isto um questionamento que, possivelmente,
tenta explicar tal atitude: “É de propósito? Medo de dar bandeira?”
(CESAR, 1998a, p. 117). Esta atitude pode ter outra explicação, a
que aparece no segundo parágrafo e atribui ao geminiano o caráter
de viver “ao sabor dos humores, natureza chique, disposição ambí-
gua” (CESAR, 1998a, p. 117), o que é interessante para se verificar
a textualização do eu Ana Cristina Cesar, já que ela pertencia ao
signo de gêmeos. É no parágrafo seguinte, no entanto, que aparece
um melhor lampejo de solução para o enigma entre factualidade e
literariedade do texto:

Depois que desliguei o telefone me arrependi de ter ligado,


porque a emoção esfriou com a voz real. Ao pedir a ligação,
meu coração queimava. E quando a gente falou era tão assim,
você vendo tv e eu perto de bananas, tão sem estilo (como nas
cartas). Você não acha que a distância e a correspondência
alimentam uma aura (um reflexo verde na lagoa no meio do
bosque)? (CESAR, 1998a, p. 117)

A emoção à flor da pele. A presença do outro a interferir. A falta


de estilo das ações cotidianas: tv, bananas, cartas. Eis a seqüência
inexorável do caminho percorrido pelo eu a partir da aura estetizada
até a realidade cobrada: o desejo de falar ao outro, enquanto perma-
nece em distância, é desauratizado pelo contato. Mas atentemos: é a
distância, não o estilo, que cria o caráter aurático da correspondência,
o qual, muitas vezes, se perde quando o distante e o ausente se tornam
próximos e presentes.

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Anélia Montechiari Pietrani


A discussão acerca da distância ou da tenuidade dessa distância
entre o que é verdade e o que é fingimento é reiterada também pelos
próprios personagens que figuram na carta. Gil e Mary respondem
a essa dúvida de acordo com as suas atitudes para com a remetente
da carta. Ele está sempre lendo tudo e achando que tudo sabe: são
“segredos biográficos” e pronto. Ela é mais compenetrada, porém se
desvia das “referências diretas”:

Fica difícil fazer literatura tendo Gil como leitor. Ele lê para
desvendar mistérios e faz perguntas capciosas, pensando que
cada verso oculta sintomas, segredos biográficos. Não perdoa o
hermetismo. Não se confessa os próprios sentimentos. Já Mary
me lê toda como literatura pura, e não entende as referências
diretas. (CESAR, 1998a, p. 120)

Nem o percurso de um nem o de outro, apesar de estar certo o


ponto de partida de cada um. Gil insiste nas referenciações biográficas,
buscando no autor as respostas que poderia (ou deveria) encontrar
em si mesmo, nos próprios sentimentos que ele não se confessa. Não
perdoa o hermetismo do autor e busca devassar-lhe tudo, mas não
verifica que, agindo assim, é o seu lado – o lado leitor – que se lacra
hermeticamente. Na verdade, o poema está fechado sim, ainda que
temporariamente. E tomar o poema como exemplo de hermetismo é um
aspecto em que está certa Mary: o poema é um enigma a desafiar o lei-
tor. Só que é preciso retirá-lo dessa torre de marfim, arrancar-lhe o lacre
e encontrar a “ternura” do autor, que Júlia tanto deseja explicar: “Não
estou conseguindo explicar minha ternura, minha ternura, entende?”10
(CESAR, 1998a, p. 120). Mas Mary não encontra ou não busca.
No breve mas consistente ensaio, “Singular e anônimo”, acerta
Silviano Santiago quando chama o primeiro de “detetive” e a segunda
de “vestal” (SANTIAGO, 1989, p. 59). Na imbricação dos sentidos, nem
de um exclusivamente nem de outro, mas dos dois, Gil e Mary, aparece
a resposta de Ana Cristina/Júlia para a aparente insolubilidade do ca-
ráter de verdade/fingimento do livro/texto literário: “Inventar o livro
antes do texto. Inventar o texto para caber no livro.” (CESAR, 1998a,
p. 119) Antes, o livro. Antes, o prazer distante, como “um reflexo verde
na lagoa no meio do bosque”, a intermediar a confissão nos intervalos
da ficção. Não, como diria o jovem Lukács, o sujeito não é auto-sufi-
ciente: junta os cacos, seus e os do mundo, sente-os e produz-se.

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Entre cartas e diários, um eu e uma (outra) história

Acabo de ler uma das biografias de KM, escrita por LM,


her wife, e tenho diante de mim outros pontos de vista,
o journal, and of course, a correspondência completa.
Esqueci os contos for the time being, uma coisa muito
construída. Comento episódios com a Shirley e ela me
diz se eu não acho meio obscena essa publicação de
todas as intimidades de alguém, a escrita íntima que
não é produzida para a reprodução industrial e o leitor
desconhecido. Mas estou fascinada pelo conflito entre
as versões, e pelo conflito entre as cartas de KM para
diferentes interlocutores, e pela tentativa de fazer da
literatura um lugar menos obsceno que toda essa apa-
rente confusão da verdade – higher up. (CESAR, 1999a,
p. 282-3)

A obscenidade de publicar intimidades sem a manifestação do


autor pode ser contraposta por Ana à literatura como lugar “menos
obsceno”, já que as biografias enchem-se de uma “confusão da verda-
de” apenas aparente. E é, exatamente, de uma “pura malícia” que fala
Italo Moriconi ao tratar das cartas de Ana Cristina Cesar. Acentuação
da obscenidade, aparente confusão da verdade e pura malícia se con-
firmam nos diários, digamos, literarizados da autora.
O diário – essa forma confessional de se esgueirar nos inter-
valos da ficção – aparece aqui exemplificado, inicialmente, por um
interessante texto intitulado “Jornal íntimo”, que merece ser citado
e analisado. Trata-se de uma espécie de diário em desordem crono-
lógica, cuja descrição começa e termina em 30 de junho e cujo ápice
(a entrada do dia 25 de junho, por ser a data mais antiga citada e,
portanto, o ponto de partida) apresenta um curioso relato do sujeito
poético em que este declara ter acabado “O jardim de caminhos que
se bifurcam”. Como nos labirintos borgianos, aparece aí uma pista
“incriminando” o livro (seja seu processo de leitura ou de escrita)
para um ponto crucial, tanto inicial quanto complicador.
O livro pode ser considerado o ponto inicial, porque aparece
referido na primeira data, 25 de junho, deste suposto diário que se
estende desde 30 de junho até também um outro 30 de junho; é ele o
receptáculo do verbo que se fez carne, para se alçar ao infinito, sem

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começo nem fim: o alfa e o ômega. E também pode ser o complicador,
já que, ao ser citado, é feita uma referência a caminhos e momentos
que se bifurcam: é o livro que começa e, na confusão de caminhos –
labirintos de verdades e mentiras –, desencaminha tudo.
Primeiramente publicado na antologia 26 poetas hoje, organiza-
da por Heloisa Buarque de Hollanda, “Jornal íntimo” encontra-se no
livro Cenas de Abril,11 que apresenta por subtítulo, entre parênteses,
a palavra “poesia”, embora muito pouco desta “forma” possa ser ali
verificada, o que já revela, por si só, a confusão dos limites de gênero
e forma de escrita de Ana Cristina. Há nele alguns poucos poemas,
muitas entradas de diário, um verbete de dicionário, uma espécie de
fichamento sobre gêneros literários, mais prosa que poesia, inclusive
um conto. É provocativo, portanto, este subtítulo. Nesta rasura de
limites entre o gênero poesia e o gênero prosa, entre o que é arte e
o que se torna arte por causa e efeito do criador, entre escrever um
diário – que deveria ser um discurso intimista e confessional – e a pro-
dução artística para publicação e exteriorização do eu, o texto a que
fazemos referência apresenta a seguinte insinuação: “Binder diz que o
diário é um artifício, que não sou sincera porque desejo secretamente
que o leiam” (CESAR, 1998a, p. 109). Se a carta ou o diário podem ser
arte(fício), há exposição de um eu outro e, portanto, insincero, mali-
cioso, “como convém à boa literatura”, aproveitando as palavras de
Moriconi. É a presença do outro – leitor/ destinatário – que contribui
para a construção da obra literária, portanto. Nas cartas, lá está o
destinatário; nos diários, na falta deste, ele aparece exatamente no
próprio temor de o eu ser lido, o que talvez possa ser uma forma de
suprir tal ausência; e, nos textos literários, o objetivo é lançar-se aos
pés de, embora não se saiba quem seja este outro.
O caráter intervalar confissão/ficção também pode ser reforça-
do, tomando-se como exemplo a página de diário “10.1.82”, incluída na
edição póstuma Inéditos e dispersos, organizada por Armando Freitas
Filho, e, portanto, não publicada por decisão de Ana Cristina Cesar:

Hoje que Mary está indo para Paris retomo o caderno terapêuti-
co depois de ter dito que a minha cura era “falar tudo”, que me
desse e viesse, e assim, angustiada com a partida que me cala ou
um flanco de mim, escrevo como quem fala tudo, querendo dizer
que hoje, com o Patinho, senti que o meu compromisso primeiro
era com a mãe, com as mulheres, com o colo delas, e só secun-

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dariamente com ele, com um apelo da realidade muda. Quero


que uma mulher me acompanhe (ou ao menos o Armando, que
fala tudo e preenche o vazio). Há coisas demais para fazer, não
quero ir para minha casa, onde me sinto independente demais
(é como um excesso). Volto para a casa de mamãe, e tenho de
suportar a angústia de ter que me emudecer até a Mary voltar.
Angústia é fala entupida. (CESAR, 1998b, p. 135)

Aqui se apresenta Mary, não só a que lê o texto/o outro como


literatura pura, mas também a psicanalista com quem Ana Cristina fazia,
à época, análise, segundo informação de Maria Lucia de Barros Camargo
(2003, p. 244). É a que representa a origem das origens e, na sua falta,
só resta o retorno fetal, o encontro de um colo de mulher, a busca da
casa materna, pelo vazio que fica e pelo excesso de independência. Gil
também está aqui, no Armando, que fala muito, até preenche vazios, mas
não inspira a cura pela fala e escrita: isto só com Mary. Há um indício de
que isto também funcionaria com o caderno terapêutico, onde poderia
escrever tudo o que desse e viesse. Mas não há certeza de se chegar ao
tudo, pois escreve “como” quem fala tudo. E, na comparação, mantém-
se a idéia do silêncio. Até que Mary volte, terá de permanecer muda e
angustiada, já que até mesmo a escrita é o espaço do “como se”.
A referência ao diário como um caderno terapêutico aparece
também em “Fogo do final”, de A teus pés, a que já aludimos em outro
segmento deste mesmo capítulo. Neste texto, muito próximo a um
poema de circunstância, o sujeito poético declara estar escrevendo de
um automóvel e, entre digressões e um mosaico de idéias dispersas,
aparecem os nós narrativos e descontínuos de um passeio de carro
em pleno centro urbano com todo o caos e fragmentação peculiares:
“Ancorada no carro em fogo pela capital: sight-seeing no viaduto para
a Liberdade” (CESAR, 1998a, p. 81). Ou: “Quem sabe uma corrida por
fora da tabela, meio em ziguezague, motorista de perícia desvairada.
Comprou carteira no Detran?” (CESAR, 1998a, p. 82). Ou então: “Engato
a quarta ao som de Revolution” (CESAR, 1998a, p. 82). Mas esta viagem
de carro sugere, ao final, uma outra viagem: “Minhas escapadas pelo
grande mundo, suas retiradas para dentro da sólida mansão” (CESAR,
1998a, p. 83). Nesta dispersão de caminhos – o eu e o grande mundo/
você e a viagem para um eu telúrico –, o sujeito precisa (re)correr a
algo e pergunta: “Então o quê?” (CESAR, 1998a, p. 83). E a resposta é
a parte final do texto:

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Anélia Montechiari Pietrani


26 de março.
Preciso começar de novo o caderno terapêutico. Não é como o
fogo do final. Um caderno terapêutico é outra história. É
deslavada. Sem luvas. Meio bruta. É um papel que desistiu de
da r recados. Uma imitação da lava nderia com sua s /
máquina s a
seco e suas prensas a vapor. Um relatório do instituto nacional
do comércio, ríspido mas ditoso, inconfessadamente ditoso.
Nele eu sou eu e você é você mesmo. Todos nós.
Digo tudo com ais à vontade. E recolho os restos das conversas,
ambulância. Trottoir na casa. Umas tantas cismas.
O terapêutico não se faz de inocente ou rogado. Responde e
passa as chaves. Metálico, estala na boca, sem cascata.
E de novo. (CESAR, 1998a, p. 83)

Confissão pura, sem luvas a ocultar a pele bruta, lugar em que eu


sou eu e você é você, na ambição de uma clonagem escrita do eu, onde
tudo pode ser dito à vontade, o diário assume a função de resgate, é a
ambulância a socorrer o que restou; ele não manda recados, pois pode
falar diretamente e obter as respostas e as chaves. Mas este caderno, o
verdadeiro caderno (se houver algum), é inencontrável, diferentemente
dos diários literários de Ana Cristina que só aparentemente nos fazem
revelações. Sobre a diferença ou não entre o diário e a poesia, Ana
Cristina entrega o jogo quando afirma que sabia que havia duas coisas
separadas – o diário e a poesia – e pensava que, no primeiro, caberiam
suas verdades, inquietações, aflições pessoais, confissões, amores. A
poesia – supunha – era outra coisa, embora não entendesse direito o
que era. Só que os dois começaram a se aproximar: “Percebi que no ato
de escrever a intimidade ia se perder mesmo. A poesia tendia, queria
revelar e o diário não conseguia revelar. Aí as duas coisas foram se cru-
zando” (CESAR, 1999b, p. 270). Este depoimento de Ana Cristina reforça
a tese de que confissão e ficção se encontram, indubitavelmente, naquele
jardim de caminhos que se bifurcam: o labirinto dos livros.
Acerca dos textos de Ana que, de diários, passam a se dizer
poesia, compreende Flora Süssekind:

A intimidade é uma ilusão de ótica, parecem dizer os diários


de Ana Cristina. Neles o sujeito lírico veste luvas (de pelica)
antes de iniciar a própria exposição. E só as tira ao final do

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Migração de gêneros e sentidos

livro. É inútil, portanto, imaginar que haja corações desnuda-


dos nesses diários. Neles não há nudez, até porque a crença
na referencialidade biográfica pura e simples é impossível aí.
Desnudar a quem se o sujeito se diz “literatura”? Diante da folha
há apenas um “olho que pensa e esquece” e mãos sempre prote-
gidas pela pelica. Assistimos, assim, a um redimensionamento
do sujeito. Nos diários de Ana Cristina a subjetividade é antes
de tudo literária, o que vai de encontro à obsessão biográfica
por retratar-se, expressar a própria experiência cotidiana ou
fazer de tudo que se diz poesia, tendência marcante na maior
parte dos poetas brasileiros que se firmam na década de 1970.
(SUSSEKIND, 2004, p. 133, grifos do autor)

Enquanto Flora Süssekind assume o comportamento Mary,


lendo Ana Cristina como literatura toda, há os que insistem – como
Gil – em lê-la exclusivamente a partir de sua biografia. “Apesar de
fazê-lo de maneira desconstrutiva e distanciada, toda a literatura
produzida por Ana Cristina toma por base a autobiografia, o auto-
retrato, a confissão” (MORICONI, 1996, p. 123). Embora Italo Moriconi
tente ser um pouco cuidadoso em sua assertiva ao apresentar uma
concessão ao caráter de desconstrução e distanciamento do estilo
de Ana, ele encaixa-se no grupo dos últimos, ao afirmar que toda
a sua literatura é produto autobiográfico. Linhas adiante em seu
texto, Süssekind desfigura a peremptoriedade de sua opinião, ao
aproveitar a imagem da intimidade como ilusão de ótica nos textos
de Ana Cristina.
O que insistimos em mostrar aqui é que ambas as formas de
leitura (e de escrita) não respondem às nossas inquietações e às da
própria Ana Cristina. Nem tanto Gil nem tanto Mary, é preciso tentar
decifrar o jogo e desarmar as armadilhas de seus textos, cujo papel
não é – nem poderia ser – polarizar sentidos e confissões, mas “levar
ao limite experiências poéticas em torno da subjetividade e do texto
confessional” (SÜSSEKIND, 1985, p. 78).
Conforme Ana afirmara em entrevista já citada, não se pode
jogar a intimidade na literatura já que aquela escapa a esta, ao mesmo
tempo ela é uma materialidade de desejos, um espaço onde se inventa
tudo, se diz tudo – verdade e mentira – e as coisas vão se cruzando:
diário, poesia, carta, romance, drama.

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Anélia Montechiari Pietrani


Não é à toa que a própria Ana, em um cartão endereçado a Maria
Cecilia Londres Fonseca, com data de 23.10.80, tenha caracterizado
como “romance” (assim mesmo, entre aspas) o livro Luvas de pelica.
É, por isso, interessante analisá-lo aqui, já que estamos defendendo
a precariedade de uma possível formatação dos gêneros literários e
a dificuldade em estabelecer limites entre a obsessão autobiográfica
e o seu antípoda: a “literatura pura”, a autônoma completude da “arte
pela arte”, a trágica consciência de que texto é só texto, o que leva-
ria, em última instância, a questionar conceitos estanques do que é
considerado literatura e do que não é.
Texto recheado de referências biográficas, que podem ser con-
frontadas com as cartas escritas em 1980, principalmente as endere-
çadas a Ana Candida, este livro, escrito e publicado na Inglaterra em
novembro deste mesmo ano (somente em 1982, passaria a compor a
edição de A teus pés, com Cenas de abril e Correspondência completa),
é um entremeado auto-referencial, lingüístico, geográfico e literário.
Uma breve vasculha nas cartas de Ana – atitude insolente dos
biógrafos para agradar os leitores – nos revela fatos curiosos e trans-
postos para o texto literário com uma certa dose de malícia, ousadia
e – por que não? – brincadeira, que vai de encontro à morbidez que
tantos procuram em sua obra. A opção pelo literário tem que ter uma
certa alegria, ela diz.
Mas vamos aos fatos (?): na universidade inglesa em que fizera o
mestrado, havia um lago com patos chamando-lhe a atenção no texto e
na vida; o casamento com um certo Chris, mesmo nome no romance de
uma moça para quem a narradora cozinha e com quem conversa sobre
uma possível disputa Mick versus Luke; Mike, outro caso amoroso; a
viagem por países da Europa; a tese sobre a tradução de conto “Bliss”,
de Katherine Mansfield; o estudo sobre os metafísicos; “My myself I”,
música de Joan Armadrating; a preocupação de perder a ternura quan-
do cria um personagem; o Cenas de abril, que no romance aparece em
minúsculas nomeando uma colagem de fotos; o desejo de não voltar
para o Brasil; a falta de lar por sua família estar mudando-se para o
Chile; e por aí vai... Mick versus Luke é um jogo fonético entre Mike e
Chris? My myself I é o narcisismo em sua obra? O que dizer da sigla
KM? O óbvio? O livro como uma colagem de fotos reitera o confessional
no texto? Ou isso tudo é uma balela e caímos feito patinhos na sua
armadilha? Apesar do perigo da ingenuidade que ronda os patos na
lagoa avistada pelo narrador, assumimos alguns riscos.

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Migração de gêneros e sentidos

Mesmo a língua-base sendo o português, não faltam no romance


frases em inglês e francês, reveladoras de um viajante pelas terras
européias, que, na impossibilidade de contar a história completa, car-
rega uma máquina fotográfica em busca de focar pessoas à sua volta.
Como também não sabe captar “as palavras escapando, sem nada que
volte e retoque e complete”, opta por desenhar, que o pode fazer “sair
da pauta”, permanecer em silêncio e fazer o que a fotografia impede:
voltar atrás, retocar e completar. Lembramo-nos, aqui, do caráter
instantâneo da fotografia: o inapelável instante aprisionado pela lente
do fotógrafo que, de fugaz, se torna eterno e imutável. Sim, também a
escrita é eterna, mas, antes, ela passou pelos “riscos” do autor. Risco
que retoca e forma uma rasura. Rasura que acentua o fragmento, o
caco, a ruína, o “pato” que irrompe como memória involuntária.
Assim como outras línguas vêm compor o texto em português,
também nações diferentes são os caminhos deste viajante errante e em
exílio. Aqui, porém, um é referido apenas – decerto que muito pouco
no decorrer da narrativa –, porém permanece. O corpo está fora, mas
o olhar dentro: “Vejo o papa no Rio de Janeiro. Brazil today. Frenesi,
Corcovado, fogos de artifício. Olho hipnotizada esse cartão-postal”
(CESAR, 1998a, p. 139). Brasil com z para esta desterrada que, no
exílio pós-moderno, também chora, construindo imagens grotescas
e de loucura nacional:

Dias em que ler jornal saca lágrimas e do fundo da cabeça


figuras da galeria nacional, anjos suspensos no ar de cabeça
para baixo, um deles ao peito de Vênus e em volta os outros
olhando, flechando, rodopiando entre cortinados, lençóis de-
sarrumados, pássaros, pavões, lagostas, aviões. Logo logo vou
de novo lá. Mas não quero esse salgado do meu lado. (CESAR,
1998a, p. 143)

Na lembrança e na emoção, aparece essa imagem do Brasil,


que produz um gosto salgado de torturas e lágrimas. Talvez um Bra-
sil já passado – pela anistia em 1979 – mas rememorado a partir da
leitura de um jornal que noticiava sobre o golpe militar na Bolívia que
impediu Hernán Siles Zuazo de assumir a presidência apesar de ter
vencido as eleições em 1980. A história se repete nas republiquetas
latino-americanas: “um salgado do meu lado”. Escreve ainda Ana: “Na
universidade tem um lago com patos e é muito triste quando desce a

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Anélia Montechiari Pietrani


neblina como hoje. Tenho sonhos péssimos todos as noites, é no Brasil
e as pessoas estão morrendo” (CESAR, 1999a, p. 32).
Não, isto não é ficcional. Este é um trecho de carta de Ana Cristi-
na: a primeira publicada em Correspondência incompleta, endereçada a
Heloisa Buarque de Hollanda. Sonho pode ser matéria-prima de escrita
e participar da confluência desarrazoada com a literatura que, por
isso mesmo, não dirime o irresolvível literário nem a história de um
eu abismado diante de si. Apenas acende o estopim para, por meio
da linguagem, se tornar construção da intermediação de eus – tantos
eus – em que um se faz outro.
Se por um lado existe tal processo de construção de uma história
outra do eu, convém ainda destacar a referência ao ato de escrever
e a presença do interlocutor, que é interpelado insistentemente em
Luvas de pelica. Por exemplo, a expressão “penso a te”, reincidente
no livro, conduz à idéia de um pensar dirigido, sim, a um alguém, pela
predicação verbal transitiva, mas se trata de um objeto movente, uma
vez que a preposição utilizada “a” tem valor semântico de destino e
não de permanência, como ocorreria se utilizasse a preposição “em”.
Convém ainda ressaltar a sutileza do uso do pronome “te”, átono (e
não “ti”, tônico), sobre quem recai, indireta e momentaneamente, a
ação verbal de pensar.
Para corroborar essa preocupação obsessiva com o destinatá-
rio, tão oblíquo quanto o eu que lhe fala, a narrativa aparece rechea-
da por citações referentes a cartas e diários, que apresentam como
substancial caráter tal presença: “carta você escreve para mobilizar
alguém, especialmente se a gente entra no terreno da paixão” e “você
vai escrever um diário para suprir esse interlocutor que está faltando”,
diz Ana Cristina em depoimento já citado (Cf. CESAR, 1999b, p. 257).
A referência a esses tipos de textos aparece, reincidentemente,
seja no próprio ato do narrador que envia e recebe correspondências,
seja em advertências sobre a perenidade dos textos memorialísticos.
Isto a torna uma narrativa fragmentária, com digressões insólitas de
uma personagem-narradora e escritora que, obsessivamente, envia
cartas mas não recebe respostas ou, se elas vêm, contam tudo: “Tudo!
Tudo menos a verdade” (CESAR, 1998a, p. 130). Pode ser que, por isso,
nas cartas idas e vindas, não haja completude de uma história. Não
consegue o sujeito narrador explicar o que chama de “sua ternura”,12
tão envolvido está com “patos”, um “lago com patos” que o outro –
interlocutor, leitor – não consegue avistar. Patos que desencadeiam,

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Migração de gêneros e sentidos

pelo significante, uma corrente de pathos, pactos, e pelo significado,


mergulhos e quedas: cair como um patinho na busca de um eu que se
esquiva, que nos confunde, que aponta caminhos, mas é tudo só indício,
ousadia de poder dizer na literatura o que não diria na realidade.
Assim é a linguagem de Ana: um tapa de leve, como alerta; um
tapa com luva de pelica, parecendo um anúncio às avessas, leve e su-
tilmente. Recado mandado, não há resposta. Ternura não é coisa que
se explica, por isso, na dúvida sobre que rumo dar à correspondên-
cia, em vez de rasgar a verdade com tudo o que tem direito (verdade
social, política, histórica, pessoal), opta pelo “olhar estetizante”, cuja
explicação aparece entre parênteses: “foto oblíqua, de lado, olheiras
invisíveis na luz azul” (CESAR, 1998a, p. 120).
Em depoimento já citado, Ana Cristina explicita o que ela chama
de “olhar estetizante”:

O que quer dizer “olhar estetizante”? Quando você estetiza, quer


dizer, quando você mexe num material inicial, bruto, você já
constrói alguma coisa. Então, você sai, você finge, é a questão
do fingimento novamente. Aí você sai do âmbito da Verdade,
com letra maiúscula. Você saca que ela nem existe, que ela
nem pode ser transmitida. Na literatura, então, não existe essa
verdade. Então, quando falo isso, eu opto, eu estou declarando,
fazendo uma afirmação de princípios da produção literária. Ao
produzir literatura, eu não faço rasgos de verdade, eu tenho
uma opção pela construção, ou melhor, não consigo transmitir
para você uma verdade acerca da minha subjetividade. É uma
impossibilidade até. (CESAR, 1999b, p. 273)

E aí entra o fato de que carta, diário e literatura podem se mis-


turar num mesmo vulto verbal textualizado. Quando se escreve ou
se fala, pode-se ser movido pela intenção de rasgar a verdade ou de
construir uma “verdade” para impedir a angústia, o fechamento no
silêncio. Abre-se uma brecha, para dizer a ternura, jamais explicar.
Sem conseguir mostrar-se e explicar sua ternura simultanea-
mente, o narrador de Luvas de pelica diz encontrar-se num estado de
“busca de bliss”. Em tradução do conto “Bliss”, de Katherine Mansfield,
a própria Ana explica por que escolheu a palavra êxtase para traduzir
bliss. Segundo ela, êxtase exprime uma “emoção que, ou ultrapassa a
palavra felicidade – ou é mais forte do que ela” (CESAR, 1999b, p. 323).

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Anélia Montechiari Pietrani


Tal sensação só poderia ser sentida em situações muito especiais tais
como “em momentos de satisfação na relação mãe/bebê, em outras re-
lações apaixonadas ‘primitivas’, em fantasias homossexuais, no êxtase
religioso e, muito raramente, na ‘vida real’, nos relacionamentos entre
adultos”. Esta seria uma sensação de “suprema alegria paradisíaca” que
supera a sinonímia simplória que os dicionários atribuem à palavra
bliss: felicidade, alegria, satisfação, contentamento, bem-aventurança.
Além dessa distinção que estabelece entre os significados de êxtase
e felicidade, Ana Cristina Cesar termina por definir a primeira como
“uma emoção imaginária cheia de força e do poder próprios do ima-
ginário” (CESAR, 1999b, p. 323, grifo do autor).
Recorrendo à imagem que a tradutora apresenta para o termo
bliss, em inglês, e êxtase, em português, aproveitamos suas sugestões
para a compreensão do estado de espírito da personagem do romance
Luvas de pelica. Em busca dessa sensação superior à plena felicidade,
ela só a encontra nas sempre evasivas formas imaginárias dos dese-
nhos de patos em lagoas, das fotografias tiradas, dos caderninhos
de notas que vão todos para a vitrine da exposição póstuma, de uma
carta e de outras tantas que escreve no decorrer da narrativa. Esta,
aliás, nos parece ser, ela mesma, uma longa carta, já que – conforme
apontamos – é veemente a presença de um outro ao longo do texto.
Ao final desta carta-romance, no único segmento com um títu-
lo, o “Epílogo”, a situação descrita assemelha-se a um palco circense
em que um mágico seduz seu público para que este lhe observe as
mãos vazias, os bolsos vazios, o chapéu vazio, as mangas vazias. Só
há uma mala, de onde o prestidigitador retira um par de luvas e as
veste. Tudo perfeito. Cenário perfeito para ser contada uma história
“verdadeira”...
Entrementes, um jovem artista, sozinho e perdido na Berlim
da Belle Époque, vê cair de uma mulher de branco uma luva com seis
botões forrados, branca, longa, perfumada. Mas ele ignora o repto e
volta para o hotel.
Esta história – verdadeira – é interrompida. O ilusionista promete
terminar de contar, se houver tempo...
Da valise de couro, retira papel, cartões, muitos cartões-pos-
tais... Estes são passados para todos na platéia. No verso, há palavras
rabiscadas, fragmentos de um eu que são revelados aos outros. Mas há
também cartões em branco. Estes também são retirados e repassados
ao público. Após este estilhaçar de vida em fragmentos e do entregar-se,

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Migração de gêneros e sentidos

o sujeito sai de cena. Precisa partir este “eu incorpóreo, triunfante,


morto”: fora do texto, morto para o texto, está dentro da vida.
Talvez – fora da vida, morto para a vida – possa retornar ao
texto, e promete que o fará em um momento propício, mas, por en-
quanto, tira a luva. As delicadas e finas luvas de pelica descansam no
espaldar da cadeira à espera da solução para aquele interdito, “aquela
história verdadeira”, e da retomada da entrega de cartões, cartas,
diários, histórias, essas outras histórias cheias de ironias, elipses,
delicadezas: a história na intermitência entre pele e pano, a história
revelada com a força da ousadia. Literatura é um tapa, sem a violência
da agressão física, mas com a sutileza (e não menor crueldade) da
luva de pelica.

Alterbiografia: o risco da autobiografia

“I celebrate myself, and sing myself,


And what I assume you shall assume,
For every atom belonging to me as good belongs to you.”13
(WHITMAN, 2000, p. 6)

Na travessia sem limites de diários e excertos de um suposto


romance, procuramos reforçar em Ana Cristina Cesar a impossibili-
dade de determinar com precisão científica o que aparece num texto
como dado apriorístico e o que ressurge como dado artístico. Junte-
se a isso a dificuldade de demarcar a linha que delimita a vida de um
autor e a sua obra.
O que nos parece inconteste é o intento de Ana Cristina, em sua
sagacidade de poeta-ensaísta, de transpor para seus textos publicados
literariamente as formas e gêneros à deriva tanto do discurso dito
verídico quanto do da manifestação artística. Isto, como procuramos
mostrar, acende a discussão a respeito do conceito de autobiografia
e sua relação com a literatura, discussão esta que reforça a especifi-
cidade da obra de Ana Cristina.
No caso de Sylvia Plath, os problemas da autobiografia merecem
um destaque especial, o que faz com que assumam uma amplitude
de diversa monta, especialmente pelas circunstâncias em que esses
tipos de textos vieram a público: não só pela publicação póstuma,
obviamente, mas também pelas decisões e soluções encontradas pela
família, especialmente a mãe e o ex-marido, para a publicação.

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Anélia Montechiari Pietrani


Cartas escritas à família por uma Sylvia ingênua são publica-
das em 1975 por Aurelia Schober Plath, sua mãe. Páginas de journals,
em que se revela uma Sylvia de palavras ferinas, têm muitas partes
“seladas” por Ted Hughes, seu marido, ou destruídas por ele mesmo
como o próprio informa no prefácio à edição organizada por Hughes e
Frances McCullough e publicada em 1982. Algumas delas, no entanto,
vêm à tona na publicação de 2000, organizada por Karen V. Kukil sob
o título The unabridged journals of Sylvia Plath.14 Dizer que esta é uma
publicação “integral” só pode ser uma caracterização irônica, uma vez
que permanecem “perdidas”, como informa a organizadora no prefácio,
as partes do diário que Plath escreveu proximamente à data de sua
morte: a última entrada data de 4 de julho de 1962, sete meses antes de
seu suicídio em 11 de fevereiro de 1963. Além dessas publicações, não
podemos esquecer ainda o romance The bell jar, que alguns consideram
ter impressas em suas linhas as marcas da autobiografia.
Interessa-nos aqui destacar que a estratégia de “pura malícia”
– aproveitando a expressão de Italo Moriconi sobre as cartas de Ana
Cristina Cesar –, que parece envolver a Sylvia ingênua das Letters Home,
bem diferente da Sylvia ferina das páginas dos diários (ou da autora de
A redoma de vidro, ou da criadora de Ariel...), é ampliada mais ainda
quando pensamos nos responsáveis por seus escritos: mãe e marido
que, certamente por interesses diversos (corretos, éticos ou não, o
que não vem ao caso), desejavam construir máscaras para uma “cer-
ta” Sylvia Plath e, certamente, para si mesmos. Compilado por outras
mãos que não as da autora, o material autobiográfico é utilizado ao
sabor do literário, e o que podia ser apenas instigante passa a ser uma
utilização manipuladora do próprio conceito de literatura. Não à toa,
Ted Hughes preferiu dizer sobre a sua vida com Sylvia Plath apenas
pela ficção. Trata-se do livro de poemas Cartas de aniversário, que veio
a público em 1998, pouco antes de Hughes morrer, e foi traduzido e
publicado no Brasil em 1999.
Convém perguntar por que silenciou durante 35 anos. Jamais
publicou algo com intenção informativa. Por quê? Por que a opção
pela arte? Porque sabia dos limites (im)perfeitos entre vida e poesia?
Por outro lado, classificar esses poemas como Cartas dá margem a
um outro tipo de verificação: a de que tais textos aproximam-se, si-
multaneamente, da ficção da narrativa e da circunstância da crônica,
tornando-se, também, bom exemplo das dificuldades de demarcação
fronteiriça entre gêneros literários e entre literatura e vida.

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Migração de gêneros e sentidos

Ted Hughes, em prefácio aos journals por ele compilados e


publicados, caracteriza a sua esposa e escritora como uma pessoa
de muitas máscaras, tanto na vida pessoal quanto em seus escritos.
Algumas, segundo ele, provinham de mecanismos defensivos, eram
involuntárias, portanto; outras, porém, eram poses deliberadas. Além
disso, informa que, durante o tempo em que viveram juntos, ela nunca
se deu a conhecer a ninguém, ao que acrescenta que, ali, nas páginas
de diário, “she set down her day to day struggle with her warring sel-
ves, for herself only” (HUGHES apud PLATH, 1998, p. XIII). Também
em um dos poemas de Cartas de aniversário, a imagem da outridade
é explorada, só que, nesse caso, pela luva:

Later, inside your poems


which they wore like gloves, the same hands
left big fingerprints. The same
inside your last-stand letters
which they wore like gloves.
[...]
Sometimes I think
Finally you yourself were two gloves
Worn by those two hands.15 (HUGHES, 1999, p. 372)

Esta luta com seus eus (ou dos outros sobre os eus de Plath)
também se verifica nas cartas compiladas por sua mãe. O texto que
Aurelia Plath elabora para compor o Letters home é uma espécie de
biografia de si mesma e uma oportunidade de contra-razão de recurso,
partindo das correspondências de Sylvia Plath, ao enfocar elemen-
tos referentes a seu casamento e seu relacionamento com os filhos,
principalmente, é claro, com a filha. A parte maior deste texto – a que
apresenta também a função de introdução à publicação das cartas
– traz dados apenas até 1949. Subseqüentemente, as cartas, distri-
buídas em sete blocos que, no todo, atravessam os anos 1950 a 1963,
parecem completar a narrativa iniciada com as informações prestadas
pela mãe. Esta, a partir de então, apenas faz rápidas introduções em
cada bloco, insere no próprio corpo das cartas informações sobre
alguns personagens que nelas aparecem, inclui dados elucidativos
acerca da contemporalização da missiva a que deseja se referir. Este
comportamento, digamos, seqüencial reforça a relação osmótica que
se estabeleceu (ou que a senhora Plath desejou que tivesse sido esta-

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Anélia Montechiari Pietrani


belecida) entre mãe e filha. Aliás, a comparação da relação entre elas
com o fenômeno da osmose foi feita pela própria Aurelia Plath:

Between Sylvia and me there existed – as between my own


mother and me – a sort of psychic osmosis which, at times, was
very wonderful and comforting; at other times an unwelcome in-
vasion of privacy. (PLATH, Aurelia apud PLATH, 1992a, p. 32)

A parte introdutória à coletânea das cartas do primeiro bloco


(que agrupa aquelas enviadas por Sylvia Plath no período de 27 de
setembro de 1950 a junho de 1953, enquanto estudou no Smith College)
termina com a transcrição de uma entrada de diário com data de 13 de
novembro de 1949 cujo título, Diary supplement, a mãe questiona, por
considerar que seria melhor titulá-la por Reflections on a Seventeen-
year-old. Aqui, a moça de 17 anos informa que decidira manter nova-
mente um diário, o que ela define como apenas um lugar onde pudesse
escrever seus pensamentos e opiniões quando tivesse um momento.
Como cada dia é precioso, ela se sentia infinitamente triste por pensar
em todo este tempo se distanciando tanto dela enquanto envelhecia (!).
Reconhecendo que ainda não se conhecia e talvez nunca se conhecerá,
Sylvia, com a típica preocupação das mocinhas, afirma:

Sometimes I try to put myself in another’s place, and I am fri-


ghtened when I find I am almost succeeding. How awful to be
anyone but I. I have a terrible egotism. I love my flesh, my face,
my limbs with overwhelming devotion. I know that I am “too
tall” and have a fat nose, and yet I pose and prink before the
mirror, seeing more and more how lovely I am... I have erected
in my mind an image of myself – idealistic and beautiful. Is not
that image, free from blemish, the true self – the true perfection?
Am I wrong when this image insinuates itself between me and
the merciless mirror? (PLATH, 1992a, p. 40)

É importante destacar que, no fragmento, existe um movimento


que resvala do personalismo exacerbado, que chega a beirar o narcisis-
mo, para a criação de um eu-outro, que se revela – pelo espelho – em
uma figura contraditória e em dobra: uma egoísta que se “ama”, uma
outra que se “conhece”. Entre “love” e “know”, aparece o desejo de
imaginar a perfeição verdadeira, a que se insinuaria entre si mesma e

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Migração de gêneros e sentidos

o espelho tão pouco misericordioso. O que parece, inicialmente, uma


preocupação típica de mocinhas com a aparência física é, na verda-
de, a conciliação entre sentir-se e conhecer-se, elementos antípodas
que deveriam ser indiferenciáveis numa autobiografia, neste meio de
traduzir em linguagem o conhecimento interior, de fazer a palavra
forte estilizar literariamente escritos considerados exclusivamente
intimistas. E é com a sagacidade da escritora preexistente na mocinha
de 17 anos que surge essa força da palavra, ainda que (segundo ela)
não pela palavra:

Never, never, never will I reach the perfection I long for with all
my soul – my paintings, my poems, my stories – all poor, poor
reflections... [...]
I am continually more aware of the power which chance plays
in my life. ... There will come a time when I must face myself
at last. [...]
I am strong. I long for a cause to devote my energies to... �����
(PLA-
TH, 1992a, p. 40)

Também as palavras finais de Aurelia Plath, após a última


carta de Sylvia Plath, com data de 4 de fevereiro de 1963, escrita
sete dias antes de morrer, são reveladoras desta instabilidade de
identidade (não) revelada por Sylvia, deste embate entre “selves”
de que fala Hughes. O que se verifica nesta última carta é que suas
aspirações parecem finalmente ter solidificado: não pretende voltar
aos Estados Unidos, pois lá não tem a BBC; lamenta que a mãe sinta
a ausência da neta Frieda, mas ela é agora, após a “perda” do pai
(Sylvia e Ted haviam se separado), a única segurança da filha; não,
não pode mudar-se para a América, os melhores médicos estão lá,
na Inglaterra. E por aí vai, até a despedida – “dê meu amor a todos”
– e a assinatura – “Sivvy”.
São estas as últimas palavras da mãe registradas no livro das
cartas:

Her physical energies had been depleted by illness, anxiety


and overwork, and although she had for so long managed to
be gallant and equal to the life-experience, some darker day
than usual had temporarily made it seem impossible to pursue.
(PLATH, Aurelia apud PLATH, 1992a, p. 500)

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Anélia Montechiari Pietrani


Compreende-se que a mãe queira justificar a morte da filha a
partir do fato de que um dia mais escuro que o costume mostrara
a ela a impossibilidade de perseguir a experiência da vida. Mas a
mãe-ensaísta dá uma bela pista para se compreender o tratamento
nitidamente ficcional que ajuda a transpor para os textos de caráter
confessional a imaginação própria da literatura. Nessa estrada de mão
dupla em que transitam (também) os textos autobiográficos, Sylvia
Plath pode servir como excelente exemplo para se estudar os recursos
de estilo que ladeiam as verdades da arte e da vida.
Registre-se uma interessante carta endereçada a um certo
“dear E.” e escrita em dezembro de 1953, quando esteve internada
no McLean Hospital, sendo submetida a tratamento psiquiátrico.
Sylvia somente entregou esta carta a sua mãe na primavera de 1954:
embora nunca a houvesse enviado, ela a havia guardado como uma
recordação de como se sentia naquela época. Em meio às palavras
explicativas sobre o que a levou a tentar suicídio e as conseqüên-
cias que advieram a partir de sua atitude, chamam-nos a atenção
alguns pontos que suplantam o teor da carta para além do âmbito
meramente noticioso. Não, a carta não é feita para mandar notícias,
ela é também espaço de fazer o eu sair de si e encontrar um mundo.
A seguir, um fragmento dela:

It turned out that not only was I totally unable to learn one
squiggle of shorthand, but I also had not a damn thing to say in
the literary world; because I was sterile, empty, unlived, unwise,
and UNREAD. And the more I tried to remedy the situation, the
more I become unable to comprehend ONE WORD of our fair
old language. (PLATH, 1992a, p. 130, grifos do autor)

A forma de expressar o intenso vazio que lhe tomou conta tem


relação com o processo de escritura. Sem ter uma única maldita coi-
sa a dizer no mundo literário, seu mundo interior tornou-se estéril,
vazio, “desvivido”, insensato, ilegível. Nessa enumeração, merecem
destaque os adjetivos “unlived” e “unread”, este último escrito em
letras garrafais. A negação da vida e da leitura no mesmo plano da
ausência do discurso se complementa, a seguir, pela incapacidade de
compreender uma palavra de sua bela e antiga língua.
Ao encontrar um mundo (seu) que não podia ser vivido (nem
lido nem escrito), deixa um bilhete. Antes de levar consigo as pílulas-

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Migração de gêneros e sentidos

calmantes de sua mãe para o porão, onde tentaria o suicídio pela


primeira vez, deixa escrito a ela que sairia para uma longa caminhada
e não estaria de volta em um dia ou mais. Esta seria uma falsa pista,
que reforçaria a tese de que não havia como ser lida, até porque
(acredita-se) as cartas não mentem jamais. E, finalmente, Sylvia
poderia entrar na escuridão tumultuária que acreditava honesta-
mente ser o eterno esquecimento. Sim, na ocasião em que escreve a
carta, já refeita, ela reconhece a estupidez do ato, mas havia usado
os artifícios lingüísticos de que dispunha para esquecer-se mais ou
totalmente. Escrita, que fora causa e meio para o não-vivido, torna-
se, de novo, instrumento de revitalização: descobre que agora pode
sorrir, apreciar o pôr-do-sol, encontrar um amor, freqüentar o Coffee
Shop, as bibliotecas e até ansiar por estar “in the wide open spaces
of the very messy, dangerous, real world which I still love in spite of
everything...” (PLATH, 1992a, p. 132)
Se confrontarmos a carta citada com outra escrita por Sylvia
três anos depois, em novembro de 1956, já casada com Ted Hughes,
morando na Inglaterra e estudando em Cambridge, conheceremos
alguém que aproveita a ocasião para assegurar-se de sua convales-
cença e tece considerações fora de si para explicar seu antigo estado.
Convém esclarecer que a referida carta, ainda que endereçada a sua
mãe, foi escrita em resposta à descrição que ela lhe fizera sobre o
estado depressivo de um certo S., filho de uma amiga, que recusava
aconselhamento psiquiátrico. Como ela, subitamente, sentiu a si
mesma no estado do rapaz, propôs-se assumir a condição de con-
selheira:

If you think you can, use me as an example. [...]


[...] tell him that (even in our competitive American society)
while marks may get scholarships, people are judged by very
different standards in life. If he tries to enjoy his studies (I assu-
me he is now taking some courses he likes), he will be enriched
throughout life. Try to give him a life-perspective… walk out
in nature maybe and show him the trees are the same through
all the sorrowful people who have passed under them, that the
stars remain, and that, as you once wrote me, he must not let
fear of marks blind him to the one real requirement of life: an
openness to what is lovely among all the rest that isn’t. Get him
to go easy on himself [...]

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Anélia Montechiari Pietrani


When he dies, his marks will not be written on his gravestone.
If he has loved a book, been kind to someone, enjoyed a certain
color in the sea – that is the thing that will show whether he
has lived. (PLATH, 1992b, p. 133, grifos do autor)

Em vários momentos, a autora faz relações com o seu passado


apontando “como eu pensava”, “como havia acontecido comigo”, mas
é bom que se note – principalmente no trecho acima – um total es-
vaziamento da particularização e a ascensão para a universalização
própria da criação literária.
O primeiro ponto a ser destacado tem a ver com a análise so-
cial que dele se depreende, ainda que de forma breve: a sociedade
americana competitiva e individualista exige o destaque que, nos
tempos estudantis, é a nota. Aliás, o termo em inglês, mark, para
nota é sugestivo para se refletir acerca desse aspecto. Sylvia Plath
escreveu um interessante ensaio intitulado America!America!, em
1963, que faz parte de Johnny panic and the bible of dreams, livro
que reúne contos, ensaios e fragmentos de diários de Plath, editado
e prefaciado por Ted Hughes. Neste texto, que teria sido escrito na
mesma época dos poemas de Ariel, segundo nos informa Hughes no
prefácio, ela descreve de modo bastante curioso a obsessão escolar
americana: “the college obsession would seize us, a subtle, terrifying
virus” (PLATH, 2000b, p. 54).
Destaque-se também, no trecho citado da carta, juntamente
com os conselhos para construir uma perspectiva de vida, a imagem
da estagnação, que é incontestável, e a da culpabilidade de si, que
é improdutiva. A culminância, no entanto, está na reflexão sobre o
conceito de viver exposto por Sylvia Plath: amar um livro, ser gentil
com alguém, apreciar uma certa cor do mar. Porque existe a poesia
e descobre-se seu tom, vive-se: é a arte encarada como vida, é a vida
encarada como arte, sem contar que o aconselhamento não é para o
outro, o interlocutor, mas, muitas vezes, para si mesmo: a “coincidência
de olhares” a partir de um face a face, conforme falou Foucault, ou o
desdobramento de si no outro que torna a ser si mesmo.
O tom ameno é muito pouco comum a esta poeta tão afeita ao
paroxismo de linguagem levado ao(s) extremo(s) (como no poema
“Kindness”,16 em que define poesia como um jato de sangue que não
há como parar e termina com a imagem gentil das duas crianças
que “você” me deixou, essas duas rosas). Onde se esconde a Sylvia

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Migração de gêneros e sentidos

Plath? Nos poemas em que pode mentir à vontade? Ou nas cartas (e


também diários), neste espaço da “aparente confusão da verdade”,
como disse Ana Cristina Cesar? Tudo isso só vem a acrescentar como
um documento da realidade, com os seus aparentes nexos lógicos e
concretos, desliza para a forma universalizante da criação literária
quase que irrestrita: não é mais para S. que se dirigem os conselhos,
mas para si mesma e para todos – primeira, segunda e terceira pessoas
coincidem seus olhares e ouvidos.
Essa questão envolve, ainda, o papel do interlocutor que pode
ser lido como produto da criação. Mesmo a carta tendo sido dirigida
a sua mãe, com o objetivo de consolar ou influenciar um terceiro, é –
como dissemos – sobre si mesma que as palavras recaem, ou sobre
um outro que, porventura, tocasse nessas palavras. Isso nos lembra,
de certa forma, as Confissões de Santo Agostinho que, sob o pretexto
de escrever a Deus, que seria o interlocutor direto, objetivava atingir
quem quer que as lesse, quiçá toda a humanidade. Com a diferença
(salvas as devidas proporções entre o texto “santo” e o “profano”) de
que, neste texto dirigido a um interlocutor onipresente e onisciente, a
verdade não poderia ser, de modo algum, posta em dúvida, ou, pelo
menos, assim pensava Santo Agostinho sobre as conclusões a que
chegariam os seus leitores acidentais.
A primeira carta de Sylvia a que nos referimos, dirigida a um
certo “dear E.”, em que um imaginário destinatário de fato se “apre-
senta”, torna-se também interessante, principalmente se pensarmos
que, num momento crucial de sua vida, a remetente tinha a intenção
de recuperar-se pelas letras ou utilizá-las para uma espécie de ad-
moestação a seu comportamento. Sem contar também que este E.,
aparentemente um destinatário oculto, pode ser uma entidade não tão
vazia assim, mas a própria recordação, o início de tudo, a origem: seu
pai feito carne-e-osso nesta palavra nunca enviada; o E. de Emile, o
correspondente francês do segundo nome de seu pai, Otto Emil Plath,
termo que freqüentemente ela usava para referir-se a ele, segundo nos
informa sua mãe, outra metade dessa “origem das origens”, a quem a
carta foi finalmente entregue tempos depois.
Não existe no texto-carta, meramente, uma explicação e/ou
uma confissão, mas há também a elaboração estilística que produz
uma contaminação vida-arte cuja força se encontra na simultaneidade,
não na alternância. Antonio Candido, no ensaio “Poesia e ficção na
autobiografia”, em que estuda os livros Boitempo e Menino antigo, de

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Anélia Montechiari Pietrani


Carlos Drummond de Andrade, A idade do serrote, de Murilo Mendes,
Baú de ossos e Balão cativo, de Pedro Nava, qualificando-os como
autobiografias poéticas e ficcionais, aponta o substrato comum que
permite ler tais textos, simultânea e duplamente, como “documento
da memória” e “obra criativa”. Sobre os livros de Drummond, o en­
saísta diz: “Usando o seu verso seco e humorístico, o seu firme golpe
de vista e a capacidade de escorço, ele constrói, num clima de poesia
e ficção, a verdade que é o mundo do eu, e o eu como condição do
mundo” (CANDIDO, 1989b, p. 57).
Apesar das diferenças óbvias entre esses textos e as cartas de
Sylvia Plath, seja no aspecto formal quanto no intencional, podemos
corroborar – também através de Sylvia – as palavras de Candido sobre
o caráter de transversalismo de uma visão particular e específica do
ser e de uma visão do mundo que percorre, indubitavelmente, as obras
de caráter literário e autobiográfico. Nesse sentido, confissão, análise
social e elaboração estilística ampliam as fronteiras da realidade e,
mais do que documentos de um concreto particular, se tornam, a partir
de então, uma narração da existência de um eu no mundo, atingindo
uma abstração mais geral que a especificidade do que apenas parece
ser o caráter da autobiografia.
Também Jean Starobinski, em “The style of autobiography”,
destaca que, mesmo que a autobiografia se limite a uma narrativa
pura, ela é uma “self-interpretation”. Utilizando os termos “enunciação
histórica” e “discurso” que o lingüista francês Emile Benveniste defi-
ne, respectivamente, como “narrativa de eventos passados” e “uma
enunciação que pressupõe um falante e um ouvinte; e, em primeira
pessoa, uma intenção de influenciar o segundo de alguma maneira”,
o ensaísta examina a hipótese de, nesses tipos de texto, estarmos
diante de uma entidade misturada, que ele chama de “discurso-
história” (STAROBINSKI, 1980, p.76). É quase impossível não recordar
Aristóteles pela distinção que faz, na Poética, entre história e poesia,
que, inclusive, também é citada no ensaio de Candido a que fizemos
referência linhas atrás:

Não é em metrificar ou não que diferem o historiador e o


poeta; a obra de Heródoto podia ser metrificada; não seria
menos uma história com o metro do que sem ele; a diferença
está em que um narra acontecimentos e o outro, fatos quais
podiam acontecer. Por isso, a Poesia encerra mais filosofia e

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Migração de gêneros e sentidos

elevação do que a História; aquela enuncia verdades gerais;


esta relata fatos particulares. Enunciar verdades gerais é di-
zer que espécie de coisas um indivíduo de natureza tal vem
a dizer ou fazer verossímil ou necessariamente; a isso visa a
Poesia, ainda quando nomeia personagens. (ARISTÓTELES,
1992, p. 28)

A partir da nomenclatura que define e caracteriza a autobio-


grafia como discurso-história, além de mesclar o que Aristóteles
procurou separar, Starobinski destaca a importância desse tipo de
texto como aquele em que o herói e o narrador são um, para trazer o
eu passado em confronto com o eu presente. É este o caso do eu que
se fragmenta ao mesmo tempo que se multiplica em sujeito e objeto
na/da narrativa.
Para isso, o sujeito autobiográfico necessitará de um estilo pecu-
liar para alcançar o seu objeto que, obviamente, não é nada exterior: é
sua narração de si, sua exposição, sua ousadia de dizer-se, sua incapa-
cidade de dizer-se tudo, sua infelicidade de já estar longe do silêncio e
precisar exprimir a reconciliação da nostalgia. Reconciliação esta que,
pelas veias e artérias do mesmo coração presente no radical erudito
da palavra recordação, faz acordar (mais uma do coração) a memória.
Em outro momento deste trabalho, citamos a frase de Starobinski e
aqui a repetimos: “O sentimento é, portanto, o coração indestrutível
da memória” (STAROBINSKI, 1991, p. 204).
Toda essa discussão é pertinente para se unificar nos jogos de
escrita e de literatura as singularidades concernentes aos poemas líri-
cos e à autobiografia, bem como aos diários e às cartas, principalmente
porque, nesses tipos de textos, se (con)fundem as categorias grama-
ticais e discursivas do emprego da primeira pessoa do singular.
A partir dessa constatação, duas perguntas podem ser feitas.
Primeiro, podemos nos perguntar se o que realizam os autores desses
tipos de texto é a chamada “poesia [ou prosa] de circunstância” e,
neste caso, deixam que

su yo referencial se exprese libremente – por eso son suscep-


tibles de ser juzgados o condenados por sus palabras, como
sucede com Villon o Withman, de quienes Éluard comenta:
“Sabemos las circunstancias de su vida y sabemos que su obra
está em función de sus circunstancias.” (COMBE, 1999, p. 141)

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Anélia Montechiari Pietrani


Outro questionamento que podemos fazer diz respeito a saber
se há pertinência a insistência e a vinculação, quase que espontânea,
que o leitor faz do sujeito da enunciação da poesia com a autobiogra-
fia, o que não aconteceria com as novelas e os romances escritos em
primeira pessoa, cuja separação entre narrador e autor parece ser
evidente. Chamando a esse fenômeno de “ilusão referencial”, Domi-
nique Combe diz que isto se deve provavelmente

a la pertenencia oficial e irrefutable de la novela a los géneros


de ficción, mientras que la poesía es percibida, a causa de la
pervivencia del modelo romántico, como um discurso de la dic-
ción, es decir, como um caso de enunciación efectiva. (COMBE,
1999, p. 141, grifos nossos)

Embora, em ensaio de 1962, intitulado “A comparison”, Sylvia


Plath reconheça que poema e romance apresentam distinções, a ponto
de concluir assertivamente que a porta do romance, como a do poema,
fecha-se, mas não tão rápido nem com tal finalidade maníaca e sem
resposta,17 vale a pena utilizar como exemplo o próprio romance de
Plath, The bell jar, traduzido para o português por Beatriz Horta com
o significativo título A redoma de vidro. Ele pode justificar o “parecer
ser” evidente a separação entre autor e narrador a que nos referimos
anteriormente. É curioso também que, no início do romance, haja a
referência a um episódio verídico que se apóia na dúvida: no primeiro
parágrafo do livro, o narrador faz alusão ao caso Rosemberg, cujo
processo judicial americano, na época do macarthismo, condenou à
morte Julius e Ethel Rosemberg, acusados de espionagem. Apesar das
manifestações a favor do casal de judeus, eles foram eletrocutados em
1953, sem que a sua culpabilidade tivesse sido provada.
Ao contrário da imagem “limpa” ou da imagem “cortada” que
Sylvia Plath (ou a mãe de Sylvia Plath: será esta a simbiose que a se-
nhora Plath dizia ter com a filha?) obtém com a publicação das Letters
Home por sua mãe e dos seus diários por seu ex-marido, A redoma de
vidro (The bell jar) é o resultado da construção de uma Sylvia a partir
do próprio punho da escritora que assume a parcialidade de Esther
Greenwood: Sylvia por si mesma com outra assinatura, a de Esther.
Espécie de “modelo de indiscrição com relação a si mesmo”, como disse
Hannah Arendt acerca das Confissões de Rousseau, o livro A redoma
de vidro foi publicado primeiramente em 1963 sob o pseudônimo de

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Migração de gêneros e sentidos

Victoria Lucas, certamente como tentativa de simular o real e forma


de modular a expectativa expressa por Virginia Woolf, em Um teto
todo seu, de que, bem depois do século XVI, “alguma grande dama
tirasse proveito de sua relativa liberdade e conforto para publicar algo
com seu nome e arriscar-se a ser considerada um monstro” (WOOLF,
1985, p. 77).
De todo modo, o risco estava feito,18 e o livro “parece”, de fato,
pôr os meandros autobiográficos que o circundam na situação dile-
mática entre a Sylvia Plath autora e a mocinha dos anos 1950, Esther
Greenwood. Esta se vê sob a cobrança da mãe a se questionar onde
teria errado19 e sob a indiferença do irmão, praticamente ausente da
narrativa e, por breves momentos, apenas referido. Além disso, sofre
horrores nas mãos dos namorados, entra em colapso nervoso, tenta se
matar e passa por horrendos tratamentos psiquiátricos. Só lhe restava
trancafiar-se na redoma de vidro, asfixiada, “oca e parada como um
bebê morto”, a espreitar o pesadelo do mundo e das outras pessoas
em outras espécies de redomas (Cf. PLATH, 1999, p. 260-1). Por meio
desse romance – rico em imagens terríveis e, paradoxalmente, lúcidas
sobre a loucura – recupera-se, na ficção, um espaço privilegiado de re-
presentação e expressão do louco, esse ser seqüestrado da vida social
que necessita refugiar-se nas redomas de vidro para autoproteger-se
contra um meio inóspito.
De fato, podemos concordar que a “ilusão referencial” de que
fala Combe se encontra presente no romance, mas – e mais – o texto
de Plath acirra a discussão em torno do fato de a linguagem dominar e
potencializar um eu que avança do estado bruto biográfico e se vulca-
niza em erupção, através de um processo de escrita que – tal como a
imagem do porco-espinho – agoniza o eu, mas aponta o outro, que se
consolida etimológica e romanticamente na figura indiscreta do alter-
ego, na escrita sobre outra Esther-Plath. Esse seu peculiar “método” de
transformar as experiências num desafio à habilidade poética, Rodrigo
Garcia Lopes chama de “delírio lapidado”, referindo-se a sua poesia,
mas também cabendo aqui, neste romance, a denominação (Cf. LOPES,
1994, p. 119). Sirva ainda de exemplo um trecho memorável de página
de diário de Sylvia Plath que, no dia 11 de maio de 1958, Dia das Mães,
escreve sobre a técnica lúdica de transformação eu-poeta:

Prossigo com The wings of the dove e devoro avidamente uma


antologia de mil páginas de magníficos contos de fadas e folcló-

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Anélia Montechiari Pietrani


ricos de todas as nações, minha mente novamente se repovoa
de magos e monstros – cabem todos dentro dela. Ah, se me
deixassem em paz, que poeta desabrocharia em mim. Preciso
começar escolhendo objetos mágicos sobre os quais escre-
verei: seres marinhos barbudos – e começar a mergulhar nas
profundezas de minha cabeça submersa, “e é velho e a velhice
é triste e ser velho é triste e penosamente volto a você, meu
frio pai, meu pai frio e louco, meu frio e louco pai de conto de
fadas...” diz Joyce, de modo que o rio flui no rumo da nascente
paternal divina. (PLATH, 2004, p. 442-3)

Esse fragmento de página de diário, escrito pela Sylvia já casada


com Ted e que travava uma intensa luta para escrever e tornar-se poeta
reconhecida, é tentador demais para não ressaltarmos um aspecto que
a sutileza da poeta pode impedir o leitor desatento de vislumbrar. É
preciso, ao terminar de ler o texto, esfregar os olhos e tornar à leitura.
Lá se encontra a Sylvia Plath ferina que – no Dia das Mães – fala do
pai como “nascente paternal divina”. Certamente, é uma irônica forma
de pôr ao avesso a ideologia mítica acerca da maternidade, além de
trazer à tona, mais uma vez, a presença sempre constante de seu pai,20
morto quando ela tinha oito anos. Emile, figura tão ausente na vida,
mas presente na escrita.
Não há, pois, como pensar que as palavras de Combe possam
atenuar o debate sobre a questão do estatuto do literário. Elas (e, no
caso, o romance citado) fazem-nos retomar as propostas teóricas
desenvolvidas pelo primeiro romantismo alemão, em dois aspectos:
a literatura e o seu respaldo nas circunstâncias pré-textuais e a inclu-
são do elemento confessional no discurso literário, conforme pontua
Schlegel insistentemente na Carta sobre o romance:

Você não estranhará que eu tenha acrescentado aqui o elemen-


to confessional quando tiver reconhecido que o fundamento
de toda poesia romântica são histórias verdadeiras; e irá se
recordar e se convencer facilmente, quando refletir a respeito,
que o de melhor nos melhores romances é apenas uma auto-
confissão mais ou menos encoberta do autor, o produto de sua
experiência, a quintessência de sua singularidade. (SCHLEGEL,
1994, p. 69)

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Migração de gêneros e sentidos

Na verdade, trabalhar dialeticamente essas duas forças, em


vez de polarizá-las, é a forma que encontramos para responder às
perquirições de Dominique Combe (as nossas e, possivelmente, as
de Sylvia Plath) sobre o conceito de sujeito lírico, “de manera que el
yo, en poesía como en cualquier texto literario, no es ni verdadero
ni falso en la representación del poeta” (COMBE, 1999, p. 143), ainda
que isto intensifique a dificuldade de elucidar a problemática em que
se envolvem as categorias de ficção e verdade (para citar Goethe em
Dichtung und Wahrheit), que, para a ensaísta, longe de se excluírem,
favorecem-se mutuamente. A sua recomendação é a abordagem do
problema do ponto de vista dinâmico, como um processo, uma trans-
formação, um jogo (o jeu da escrita) em que o alcance da unidade do
eu (o je) se relacionaria a um perpétuo devir: “el sujeto lírico no existe,
sólo se crea” (COMBE, 1999, p. 153).
Lapidar delírios (e experiências), publicar intimidades (e ter
suas intimidades adulteradas): tudo isto faz parte da transgressão a
que só os mecanismos de literarização podem responder, seja pela
autocriação a partir dos cacos de eus, seja pela outridade do eu que
– se não existe assim ou de qualquer/todo modo – se cria. E a culpa
poderá sempre ser da literatura – essa (fantástica) mentira.

Ler o eu, escrever o outro

Para mim, o presente é para sempre, e o eterno está


sempre mudando, fluindo, se dissolvendo. Este se-
gundo é vida. E quando passa, morre. Mas você não
pode recomeçar a cada novo segundo. Tem de julgar
a partir do que já está morto. Como areia movediça...
invencível desde o início. Uma história, uma imagem,
pode reviver algo da sensação, mas não o bastante, não
o bastante. Nada é real, exceto o presente, e mesmo
assim já sinto o peso dos séculos a me esmagar. Uma
moça, há cem anos, viveu como eu vivo. E ela está
morta. Sou o presente, mas sei que também passarei. O
momento culminante, o relâmpago fulgurante, chega e
some, contínua areia movediça. E eu não quero morrer.
(PLATH, 2004, p. 22)

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Anélia Montechiari Pietrani


Compõem a publicação dos diários de Sylvia Plath auto-acon-
selhamentos, listagens de diretrizes a serem seguidas na vida, frag-
mentos de cartas, registros de poemas, notas sobre escrever poema
e romance, análise de acontecimentos históricos, questionamentos
sobre o papel social da mulher e do escritor, apontamentos de viagens,
esboços de textos literários e artigos, digressões sobre o problema
da criação, impressões de si e de outros, nos quais se incluem mãe,
pai, amigos, namorados, vizinhos, marido. Porém, o que se verifica na
força de seus escritos é a obsessão pelo processo de escrita, a busca
interminável pela realização de uma obra. Sua atitude persecutória
deixa de lado o caráter meramente documental do registro diário e
torna-se pano de fundo para a discussão que se entranha em Plath
ao longo de toda a sua vida e produção: por que escrever? Para que
escrever? Deseja alcançar um fim (ressalvada a ambigüidade do termo)
para sua tarefa, por meio da perfeição?
As palavras que servem de epígrafe a este segmento foram
escritas em 1950 por Sylvia Plath, aos 17 anos. A mocinha namora-
deira e preocupada com a (boa) impressão que causaria a atração
ou a repulsa dos rapazes, a estudante dividida entre a aparência e a
inteligência às voltas com o destacamento nos meios acadêmicos, a
mulher que se tornou dona-de-casa, esposa, mãe e escritora podem
não ter tanta diferença assim. Futuro e passado dentro do presente
escrito, um a um os significantes de escrita podem ir se desvelando
e revelando significados. E, neste desvelar, morrem signos enquanto
outros nascem, perpetuamente: a obra é infinita. “Que a tarefa do
escritor termina com a sua vida, eis o que dissimula que, por essa
tarefa, a vida dele resvala para o infortúnio do infinito” (BLANCHOT,
1987, p. 16).
Se cotejarmos as duas edições, a organizada por Ted Hughes
e a de Karen V. Kukil, o que encontraremos nas sobras de diários de
Plath? Lidos em seqüência, os textos de si sobre si têm caráter narrati-
vo entremeados de digressões. Cortes de Hughes não interrompem o
encadeamento das ações, mas poupam os referidos (o próprio marido,
a mãe, os vizinhos, os namoradinhos, por exemplo):

Talvez o melhor de tudo tenha sido ver Bill na pista de dança


enquanto Guy e eu circulávamos. [...] Fiquei muito contente
por ele ter visto que eu estava me divertindo. A noite inteira
se tornou mais agradável por eu ter me redimido aos olhos de

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Migração de gêneros e sentidos

diversas pessoas estratégicas ao desfilar de modo tão favorável.


[...] Bill telefonou com muita humildade, perguntando se eu me
divertira. Disse que sim, animada, e ele por sua vez retrucou
que não aproveitara muito a noite por causa de um resfriado (rá
rá!). Perguntou se eu queria carona para casa no dia de Ação de
Graças, com ele e dois amigos. O que poderia enfeitar melhor
o bolo? Aceitei. (PLATH, 2004, p. 43)

Todo o trecho acima foi cortado na edição de Hughes, porém


ele manteve a parte em que, em seqüência ao (que deveria ter sido)
transcrito, Plath revela um intenso sentimento de reclusão na solidão:
“Agora sei o que é a solidão, acho. Momentânea solidão, pelo menos.
Vem do fundo vago do ser – como uma doença no sangue espalhada
pelo corpo, de modo que não se pode localizar a origem, o ponto de
contato.” (PLATH, 2004, p. 43). É melhor que aquela que se diverte
aos olhos dos outros não se revele, que fique apenas a imagem da
encerrada em solidão. Deixando também de lado a que disse que sua
mãe matara seu pai, que seu marido roía as unhas e deixava o cabelo
sujo e ensebado, já que agora pouco se importava, pois “a sujeira é
muito profunda para xampu Halo & sabonete lux, a dissonância estri-
dente demais para o estalido límpido do cortador de unha” (PLATH,
2004, p. 455), tudo devidamente censurado, fiquemos com o “idílio”
do American way of life pós-guerra.
Em meio ao mundo branco de neve, às árvores desfolhadas,
aos esquilos e pássaros, a mocinha consegue afastar a mente das
festas da House Dance21 ou de Ano-Novo e partilhar da vida entre
os destroços da humanidade, ainda que se autocensure, chamando-
se dramática e meio cínica, indolente e meio sentimental; para ela,
torna-se difícil afastar os olhos e a mente das descrições de víti-
mas de Nagasaki, do russo que já era comunista antes de ajudar a
América a derrotar os alemães, dos veteranos de guerra aleijados,
dos coreanos que nunca foram divididos em norte e sul, do sistema
“democrático” (assim mesmo entre aspas) que os EUA querem im-
plantar no mundo:

enquanto a América morre como o grande Império Romano


morreu, enquanto as legiões tombam e os bárbaros conquistam
nossa milionária terra tenra, estupenda, suculenta como um
bife, cremosa como manteiga, em algum lugar estará o povo que

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Anélia Montechiari Pietrani


de qualquer maneira nunca teve muita importância em nosso
esquema. (PLATH, 2004, p. 46)

E também nunca tiveram muita importância em “nosso” esque-


ma as mulheres e os poetas. Ser mulher encaixa-se nos incontestáveis
“rituais de vestir prescritos por nossa cultura” (PLATH, 2004, p. 67),
é uma tragédia horrorosa cujos atos, pensamentos e sentimentos fo-
ram rigidamente circunscritos por sua inescapável feminilidade. Ser
homem, no entanto, está intimamente ligado à idéia de liberdade:

Sim, meu desejo ardente de me misturar a turmas de operários,


marinheiros e soldados, a freqüentadores de bares – fazer
parte de uma cena, anônima, ouvindo e registrando – tudo
isso é prejudicado pelo fato de eu ser moça, uma fêmea que
corre sempre o risco de ser atacada e maltratada. Meu inte-
resse intenso pelos homens e suas vidas é freqüentemente
confundido como desejos de seduzi-los, ou como um convite
à intimidade. Mas, meu Deus, quero conversar com todo mun-
do, o mais profundamente que puder. Quero poder dormir
em campo aberto, viajar para o oeste, andar livremente pela
noite... (PLATH, 2004, p. 96-7)

A idéia que Plath nos traz ressoa sobre a mulher tolhida, im-
pedida de escrever, porque necessitaria, para tanto, da liberdade
“masculina”, por isso o desejo intenso pelos homens e suas vidas.
Por isso, talvez, o homem tenha se destacado mais na escrita. É duro
perder o lampejo de sensibilidade, “fazendo ovo mexido para um
homem... ouvindo falar da vida em segunda mão” (PLATH, 2004, p.
109). Está aí a explicação para a terrível inveja que sente dos homens,
“uma inveja nascida do desejo de ser ativa e agir, em oposição a ser
passiva e ouvir” (PLATH, 2004, p. 119-20). Prato cheio para Freud, os
pensamentos da mocinha revelam sua certeza de maturidade, frente
a estes que receberam tudo de mãos beijadas da sociedade e não es-
tão nem aí para a poesia e a sensibilidade. É praticamente impossível
não recordar aqui as palavras de Virginia Woolf, em Um teto todo seu,
ensaio literário de 1928, acerca do que a mulher necessita para torna-
se escritora, vindo a ser “irmã de Shakespeare”: dinheiro e um teto
todo seu, o que sempre foi prerrogativa do poeta-homem. Para ela, a
suposta irmã de Shakespeare, chamada Judith, “maravilhosamente

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Migração de gêneros e sentidos

dotada”, matou-se e ficou esquecida, sem que alguém (um homem) a


registrasse em seus escritos, já que não teve instrução, nem condição,
nem liberdade para tanto.

A liberdade intelectual depende de coisas materiais. A poesia


depende da liberdade intelectual. E as mulheres sempre foram
pobres, não apenas nos últimos duzentos anos, mas desde o
começo dos tempos. As mulheres têm tido menos liberdade in-
telectual do que os filhos dos escravos atenienses. As mulheres,
portanto, não têm tido a mínima chance de escrever poesia. Foi
por isso que coloquei tanta ênfase no dinheiro e num quarto
próprio. (WOOLF, 1985, p. 141)

Esse questionamento do papel social e cultural que coube à


mulher permanece no decorrer do diário de Sylvia Plath, dando con-
tinuidade às tensões reveladas em seus 17 anos. Deve também ter
sido terrível para ela enfrentar o universo misógino da universidade
inglesa, acerca do qual nos fala Woolf nas páginas iniciais do ensaio
acima referido, a partir da imagem de uma mulher impedida de pisar
na grama e de entrar na biblioteca da Universidade de Oxbridge.
Diz Blanchot que “[o] Diário – esse livro na aparência inteiramen-
te solitário – é escrito com freqüência por medo e angústia da solidão
que atinge o escritor por intermédio da obra” (BLANCHOT, 1987, p.
19). A solidão do estar consigo prepara o terreno para a memória que
se configura em palavras. Já não é mais história. O trânsito sem limite
de sentidos entre o eu e o outro, entre vida e escrita se configura com
extrema força e lucidez nos diários de Sylvia Plath. Por um lado, ela
reforça a certeza de que “[s]e não consegue pensar nada externo a
você, não é capaz de escrever” (PLATH, 2004, p. 218, grifo do autor),
enquanto, por outro, afirma com a ênfase do sublinhado que “é impos-
sível ‘capturar a vida’ se a gente não mantém diários” (PLATH, 2004,
p. 316, grifos do autor). Assim trava a sua luta com a escrita e com a
vida e vai buscando um caminho:

O diálogo entre meus Escritos e minha Vida corre sempre o risco


de se tornar uma ladina transferência de responsabilidade, de
racionalização evasiva: em outras palavras: justifico a confusão
que fiz da minha vida dizendo que vou enchê-la de ordem, for-
ma, beleza, escrever a respeito; justifico meus escritos dizendo

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Anélia Montechiari Pietrani


que serão publicados, me dão vida (e prestígio na vida). Bom, a
gente precisa começar por algum lugar, e pode muito bem ser
pela vida. (PLATH, 2004, p. 243)

O caminho que encontra é árduo porque não consegue escre-


ver e, quando escreve, dificilmente obtém a publicação do texto, por
causa da “panelinha” dos editores que publicam sempre coisas dos
amigos, comportamento que ela critica com amargura (Cf. PLATH,
2004, p. 269). Como se vê, não só precisa fugir às prescrições sociais
infligidas à mulher mas também à prepotência de quem tem o poder
de selecionar e trazer a público o escrito.
Mulher-escritora, dupla interdição. Como o escritor não esco-
lhe essa vida por causa do dinheiro, ainda é marginalizado porque
não receberá o Diploma de Escritor. Pergunta Plath se “não teriam
razão as mães e os homens de negócios, afinal de contas” (PLATH,
2004, p. 505). Submetidos à fria censura dos olhos pragmáticos
consumistas que valorizam quem tem “emprego estável e bem pago,
carros, boas escolas, tevês, geladeiras, lava-louças e segurança em
Primeiro Lugar”, os escritores só podem buscar a permanência no
mundo da volatilidade:

Escrever é um ato religioso: uma missão, uma reforma, um


reaprendizado e um amar de novo as pessoas e o mundo como
são e como poderiam ser. Uma postura que não passa como um
dia datilografando ou lecionando. A escrita perdura: ela segue
seu próprio caminho no mundo. As pessoas lêem: reagem como
reagem a uma pessoa, uma filosofia, uma religião, uma flor:
gostam ou não gostam. A literatura as ajuda, ou não ajuda. Serve
para intensificar a vida: você se entrega, experimenta, pergun-
ta, olha, aprende e dá forma a isso: consegue mais: monstros,
respostas, cor e forma, conhecimento. Primeiro, faz para si. Se
der dinheiro, maravilhoso. (PLATH, 2004, p. 505)

Plath reconhece a marginalidade do escritor na era da desidea­


lização, sem a compreensão da sociedade que “mostra a língua para
nós” (PLATH, 2004, p. 506).
Ainda que muitos críticos, vermes famintos a espreitar os olhos
mortos de Sylvia Plath, busquem nas páginas de seus diários os lam-
pejos obsessivos de morte, não poderíamos terminar este capítulo

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Migração de gêneros e sentidos

dedicado aos entretextos literários e biográficos sem observar as


interessantes manifestações de estilo que Plath explora no processo
de escrita de seus diários. Principalmente nos cadernos anteriores ao
seu casamento, chama-nos a atenção a forma com que ela trabalha
as informações que povoarão a solidão da escrita. Ora usando você
para referir-se a si mesma, ora considerando personagens ele e ela
ou um rapaz e uma moça, ora conversando consigo mesma usando
vocativos carinhosos, o texto se estrutura em um dialogismo e uma
polifonia (apesar da voz única original) que transcendem a mera
exposição de si. Lembra Blanchot que é comum dizer que “o escri-
tor renuncia a dizer ‘Eu’”, ao que acrescenta que Kafka considerou
com grande surpresa que entrou na literatura no momento em que
pôde substituir o “Eu” pelo “Ele” (BLANCHOT, 1987, p. 17). Em um
interessante momento do diário, Plath discorre sobre a ausência do
eu que apenas se firma em função do outro. Convém citá-lo em in-
glês para que se perceba o efeito que a escritora obtém ao escrever
todo o trecho em minúsculas, inclusive o pronome I que, em inglês,
é comumente escrito em maiúscula: “there is no i because i am what
other people interpret me as being and am nothing if there were no
people”22 (PLATH, 2000b, p. 168).
Se o diário deixa de ser mera confissão, relato na primeira
pessoa, ele passa a ser o Memorial. O escritor recorda-se, lendo o eu,
e esquece-se, escrevendo o outro. Dessa forma, constitui-se a idéia
de personagem a partir da migração de sentidos entre recordação e
esquecimento, leitura e escrita, figuração do eu e do outro no espaço
lúdico da literatura. Literatura que se configura em vida e alegria, que
é o que parecia buscar Sylvia Plath – por mais que pareça absurdo
a alguns – na produção de seus textos. Por exemplo, ao enfeixar os
40 poemas que comporiam um livro seu, ela diz que são poemas
inatacáveis. Ou, pelo menos, acha que são. E vê neles uma espécie de
contentamento. Quando os compara aos de Smith, reconhece que, por
mais sombrios que sejam, “têm verve e alegria de viver” (PLATH, 2004,
p. 522). Se a sociedade lhes desse a língua, ela não se importaria com
isso, pois os poemas permaneceriam, já que são resposta do mundo
e eco da vida, por isso querem falar incessantemente, querem viver
eternamente:

Não posso viver só pela vida: mas sim pelas palavras que detêm
a torrente. Minha vida, sinto, não será vivida até que haja livros

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Anélia Montechiari Pietrani


e histórias que a revivam perpetuamente no tempo. Esqueço-me
com excessiva facilidade de como era, e me encolho horrorizada
com o aqui e agora, sem passado e sem futuro. Escrever rompe
os túmulos dos mortos e os céus acima dos quais se ocultam
os anjos proféticos. A mente faz e acontece, tecendo suas teias.
(PLATH, 2004, p. 330-1, grifos do autor)

“Fazer e acontecer” não é algo previsto quando se pensa na


escrita de Sylvia Plath, aparentemente tão austera, séria, uma dama
“inglesa”. Até mesmo a Ana Cristina leitora e tradutora de Plath, ob-
servou isso em carta à amiga Ana Candida:

Sabe qual é o problema com a Sylvia Plath? A massa de poemas


dela acaba por passar uma obsessão cega, um hálito suicida
(com a melhor das intenções biografílicas), as mesmas imagens
acabam por cegar. Você tem razão: é o conjunto que dará esse
mal-estar. Ela leva tudo muito a sério demais e raramente a
poesia deixa cair, desbunda. (CESAR, 1999a, p. 209)

Porém, quando se lê o diário de Plath, vê-se que ele se torna maté-


ria-prima de escrita, espécie de alegria do jogo na solidão da literatura,
que, na ausência do tempo e na presença do esquecimento, contém e
detém a vida. Seria ali um espaço para Sylvia Plath “desbundar”?

Notas
1 Este é um fragmento de carta de Rimbaud endereçada a Georges Izambard com
data de 13 de maio de 1871, citado e traduzido por Lucia Helena no ensaio “Ler
e reler Cecília Meireles: a escuridão e as águas de cristal”: “C´est faux de dire: Je
pense; on devrais dire on me pense. – Pardon du jeu de mots. Je est un autre” (apud
HELENA, 2001, p. 15).
2 “Na esfera da intimidade da pequena família, as pessoas privadas consideram-se
independentes também em relação à esfera privada de suas atividades econômi-
cas – exatamente como pessoas que podem estabelecer relações ‘puramente hu-
manas’: a forma literária disso foi, em certa época, a correspondência epistolar.
Não é por acaso que o século XVIII se torna um século das cartas: escrevendo car-
tas, o indivíduo se desenvolve em sua subjetividade” (HABERMAS, 1984, p. 65).
3 Os termos entre aspas foram utilizados por Habermas em Mudança estrutural na
esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa.
4 No primeiro capítulo, ao distinguirmos experiência e vivência, segundo Walter Ben-
jamin, mencionamos – e aqui reforçamos – a observação de Leandro Konder acer-
ca da relação semântica e mórfica, na língua alemã, entre experiência (erfahrung) e
viagem (fahren). Acerca disso, conferir principalmente a nota 4 do capítulo 1.

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5 A rua Faro, número 21 foi o antigo endereço da casa de Heloisa Buarque de Hol-
Migração de gêneros e sentidos

landa, onde se reuniam professores, estudantes, poetas, jornalistas, artistas de


teatro “agitando o ambiente” com suas manifestações culturais “marginais” (em
CESAR, 1999a, p. 299).
6 Os termos entre aspas são de Michel Foucault e aparecem no ensaio L’écriture de
soi: “La lettre qui, en tant qu’exercice, travaille à la subjectivation du discours vrai,
à son assimilation et à son élaboration comme ‘bien propre’, constitue aussi et en
même temps une objectivation de l’ âme” (FOUCAULT, 1983, p. 17).
7 “Ele (Waltércio, artista que elaborou a capa da primeira edição de A teus pés)
exatamente sacou que ‘a teus pés’ invertia. O que a gente pensa que é ‘A teus
pés’ o texto, de certa forma, dribla: ‘Não é isso que você está pensando’” (CESAR,
1999b, p. 264).
8 Como a classificação em prosa ou poesia é muito difícil de ser estabelecida em
Ana Cristina Cesar, reproduzimos a disposição gráfica conforme foi publicada na
edição consultada. Segundo o editor, a diagramação foi respeitada de acordo com
os parágrafos das edições originais da autora.
9 Convém citar que existe uma outra versão desse trecho do poema em Inéditos e
dispersos, livro que reúne textos de Ana Cristina Cesar compilados por Armando
Freitas Filho a partir do acervo literário da autora que ficou em sua casa. Esses
textos, escolhidos segundo o que ele considerou “mais conseguido e acabado”,
foram publicados postumamente, numa primeira edição em 1985. Aqui estamos
utilizando a terceira edição, com data de publicação de 1998. A outra versão do
trecho do poema Fogo do final, que não podemos saber se é anterior ou atualizada,
aparece disposta formalmente em prosa e apresenta algumas poucas diferenças:
“É para você que escrevo, hipócrita. Para você – sou eu que te sacudo os ombros
e grito verdades nos ouvidos, no último momento. Me jogo aos teus pés inteira-
mente grata: bofetada de estalo, decolagem lancinante, baque de fuzil. É só para
você e que letra tan hermósa – Exaltação – Império Sentido na Avenida – Carnaval
da síncope. Pratos limpos atirados para o ar. Circo instantâneo, pano rápido mas
exato descendo sobre a sua cabeleira de um só golpe de carícia e o teu espanto!”
(CESAR, 1998b, p. 136).
10 Há aqui uma clara releitura do poema “O impossível carinho”, de Manuel Bandei-
ra: “Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo/ Quero apenas contar-te a minha
ternura” (BANDEIRA, 1986, p. 223).
11 Cenas de abril, como Correspondência completa, foi publicado em 1979 de forma
independente e, a partir de 1982, passou a integrar o livro A teus pés.
12 Neste “romance”, repete-se a frase de Correspondência completa: “Não estou
conseguindo explicar minha ternura, minha ternura, entende?” (CESAR, 1998a,
p. 141).
13 Em tradução de André Cardoso: “Eu celebro a mim mesmo, e canto a mim mesmo,/
E o que eu pensar também vais pensar,/ Pois cada átomo que pertence a mim igual­
mente pertence a ti.”
14 Há disponível em português a tradução desta edição, feita por Celso Nogueira,
publicada no Brasil em 2004, pela Editora Globo, sob o título Os diários de Sylvia
Plath: 1950-1962. Neste trabalho, em respeito ao leitor de língua portuguesa, usare-
mos esta edição para a citação dos fragmentos do diário de Plath.
15 Em tradução de Paulo Henriques Britto: “Mais tarde, nos seus poemas,/ Que elas
usavam como luvas, as mesmas mãos/ Deixaram impressões graúdas. As mesmas/
Nas suas cartas derradeiras/ Que elas usavam como luvas/ [...]/ Às vezes penso/
Que no fim você era só as duas luvas/ Calçadas por aquelas duas mãos” (HUGHES,
1999, p. 373).
16 Transcrevemos a seguir o trecho do poema “Kindness”, a que fazemos referência:
“And here you come, with a cup of tea/ Wreathed in steam/ The blood jet is poetry,/
There is no stopping it./ You hand me two children, two roses” (PLATH, 1992b, p.
270).
17 “The door of the novel, like the door of the poem, also shuts. But not so fast, nor
with such manic, unanswerable finality” (PLATH, 2000a, p. 64).
18 “The distress of Sylvia Plath’s mother over the ‘ingratitude’ of The bell jar suggests
how difficult it has been for women to transcend social and familial pressures to
write only what is pleasant, complimentary, and agreeable” (SHOWALTER, 1977, p.
303, grifos do autor).

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19 A leitura de A redoma de vidro se torna mais interessante, para corroborar este

Anélia Montechiari Pietrani


aspecto, se a confrontarmos com o seguinte trecho da introdução a Letters home,
feita por Aurelia Schober Plath, mãe de Sylvia: “Both my babies were rocked, cud-
dled, sung to, recited to, and picked up when they cried.” (em PLATH, 1992a, p.
12). Estaria tentando a senhora Plath apaziguar os ânimos dos detratores da figura
materna? Isso evidencia o fato de que a publicação das cartas de Sylvia, reforçada
por uma introdução com esse tom, seria uma forma de estancar o furor plathiano
das poesias e do romance. Confronte-se ainda um trecho de A redoma de vidro, em
que Esther Greenwood reclama da visita de sua mãe, já que ela “nunca reclamava
de nada que eu fizera, ficava só pedindo com uma cara triste para eu dizer no que
foi que ela errara” (PLATH, 1999, p. 220).
20 Voltaremos à questão do “poder do pai” na escrita de Sylvia Plath mais adiante,

inclusive retomando este mesmo fragmento citado, que nos parece fundamental
para a compreensão desse processo.
21 Segundo as notas aos diários, a “House Dance”, traduzido por Baile da Casa, se

referia a “cada residência estudantil do Smith College [que] promovia seus pró­
prios bailes de inverno e primavera, nos anos 1950” (Notas do editor, em PLATH,
2004, p. 778).
22 Em tradução de Celso Nogueira: “não há eu pois eu sou o que as outras pessoas

interpretam como ser e não sou nada se não houver outras pessoas” (PLATH, 2004,
p. 198-9).

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Morrer na vida, viver na poesia

(Não é só) uma questão de vida e morte

“Poema (e leitura), morte (e vida) existem como bastão numa


corrida de revezamento. Em travessia pelo possível nosso de
todos os dias e todas as noites.” (SANTIAGO, 1989, p. 59)

Uma poeta. Seus poemas são vida e – ironia paradoxal – a morte da


vida. Encarna no texto um eu às voltas com o romantismo. Encara as dúvidas
sobre a impessoalidade ditada pelas novidades teóricas do New Criticism e
Estruturalismo. Escreve cartas a outra mulher, fazendo e falando de litera-
tura. Faz ensaios críticos com afinadas e rigorosas análises sobre o (seu)
fazer poético. Mulher bela e jovem, passa por clínicas. Poeta reconhecida,
este é o limite: suicida-se aos 30 anos.
Duas poetas: Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath. Impossível identificar
nas linhas acima os traços que distinguem uma de outra, pela similitude
biográfica de ambas. Para tanto, propomos repensar as alusões à morte
nos seus poemas, não como referência exata e inequívoca à perda da exis-
tência física e terrena, o que só acenderia a discussão em torno do mito
do poeta suicida, segundo o qual este, até as últimas gotas de sangue,
dedicaria o esquartejamento de suas palavras e de si mesmo ao poema.
Procuramos ler Ana Cristina e Sylvia como poetas que viveram a sua
poesia, definidas pelas palavras que deixaram e que permanecerão para
sempre, mas não por aquele triste dia de fevereiro de 1963 ou o de outubro
de 1983. Nesse sentido, buscamos as respostas estéticas às evocações à
morte em seus textos.
Em um emocionante depoimento publicado na The Times Magazin,
em 2000, intitulado “A matter of life and death”, Frieda Hughes, filha de
Sylvia Plath e Ted Hughes, explica por que questionou o fato de o English
Heritage desejar colocar uma placa em homenagem a sua mãe na casa 23
da Fitzroy Road, residência onde vivia com os dois filhos quando cometera
o suicídio. Ao recusar esse local de fixação da placa e sugerir a mudança
de endereço para o número 3 da Chalcot Square – segundo a filha, a verda-
deira casa londrina de Sylvia, onde ela vivera com Ted –, Frieda desejava

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Morrer na vida, viver na poesia

celebrar a vida de sua mãe, a despeito dos protestos dos que ela
chama os “amigos de minha mãe”. Para estes, disse Frieda Hughes
terminando o artigo:

Without my mother’s life, there would be, among other things,


no Ariel, no Colossus, no Winter trees, no Bell jar, no Journals,
no Frieda, no Nicholas. In remembering my mother’s death, I
wonder at the people who seem to forget that in order to reach
that point, she had to live first. She did what she could, with
that she had, and the results were spectacular. That is what the
blue plaque commemorates, not the desperately sad day when
she left us. (HUGHES, 2000, p. 21)

Afastar este trabalho do caráter do biografismo é um dado


fundamental que deve ser ressaltado neste momento, já que o
consideramos um ponto bastante perigoso para a análise da obra
dessas autoras. O suicídio no auge da beleza e da juventude e no
prenúncio da fama pode ter contribuído para a construção de um
mito que – se não for examinado com a devida e racional proporção
que lhe cabe – pode ofuscar o trabalho de extremo talento, beleza e
sensibilidade que deixaram. Pode até ser que “os amigos da mãe de
Frieda” insistam em tornar seu trabalho e sua vida um mito. Pode
ser que nós, na margem de cá da ficção,1 nos sintamos tentados a
acreditar nele e a fazê-lo existir. Pois assim ocorre com os poetas-
mitos que se suicidam. Habituamo-nos a neles ver uma aura de
mistério que ronda a sua vida, a sua obra, a sua morte. Pensamos
na loucura: a loucura de viver, escrever, desejar morrer. Povoamos
nossas mentes, aparentemente concertadas, de relações imaginárias
desconcertadas. E continuamos a construir mundos, a nos extasiar
com os que puseram fim aos seus, a confrontar o mundo do texto e
o mundo da vida.
Ted Hughes, em The dogs are eating your mother, compartilha da
preocupação da filha e, na tentativa de uma explicação da salvaguarda
que empreendeu sobre seus filhos, revela:

Now see who


Will drop on all fours at the end of the street
And come romping towards your mother,
Pulling her remains, with their lips

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Anélia Montechiari Pietrani


Lifted like dog’s lips
Into new positions. Protect her
And they will tear you down
As if you were more her.
They will find you every bit
As succulent as she is. Too late
To salvage what she was.2 (HUGHES, 1999, p. 392)

Talvez a própria Plath tenha se dado conta do enlevo orgásti-


co que envolveria os leitores e críticos, voyeurs de sua vida, obra e
morte. No poema “Lady Lazarus”, em trecho que parece esboçar uma
premonição do que aconteceria consigo mesma acerca da predileção
das pessoas – sádicas – pelo suicida, ela escreve:

What a million filaments.


The peanut-crunching crowd
Shoves in to see

Them unwrap me hand and foot –


The big strip tease.
Gentlemen, ladies

These are my hands


My knees.
I may be skin and bone,

Nevertheless, I am the same, identical woman.


[...]

Dying
Is an art, like everything else.
I do it exceptionally well. (PLATH, 1992b, p. 245)

O strip tease do cadáver que seduz revela o vazio do espectador,


porque sua aparência agora pele e osso, sua ossatura elegante não
revelam o eu, que é o mesmo, a essência de sempre, um eu invisível
a olhos nus, cujo corpo só agora os famintos da carne gozam voyeu-
risticamente. Mas o osso é anônimo, igual para qualquer um, leitor
hipócrita, espectador de carcaça.

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Morrer na vida, viver na poesia

Nem o velho Machado deixou que os espectadores dos suici-


das escapassem. O narrador-personagem do conto “Último capítulo”
aponta duas vantagens do “excelente costume” de os que se matam
escreverem algo que explique o motivo que os levou a isso:

em primeiro lugar, é um ato de cortesia, não sendo este mundo


um baile, de onde um homem possa esgueirar-se antes do coti-
lhão; em segundo lugar, a imprensa recolhe e divulga os bilhetes
póstumos, e o morto vive ainda um dia ou dois, às vezes uma
semana mais. (ASSIS, 1994, p. 381)

Descartada a vantagem jocosa apontada pelo personagem


criado pelo sagaz anedotista com tudo e todos, humor negro que
não deveria combinar com este trabalho, resta a outra: a que toca no
comportamento voyeur dos que ficam.
Também Ana Cristina, no poema “Quando chegar”, escrito em
seus poucos quinze anos, condenava a exposição a que submetem o
morto, inclusive pelo ato de falsearem a dor pela perda:

Quando eu morrer,
Anjos meus,
Fazei-me desaparecer, sumir, evaporar
Desta terra louca
Permiti que eu seja mais um desaparecido
Da lista de mortos de algum campo de batalha
Para que eu não fique exposto
Em algum necrotério branco
Para que não me cortem o ventre
Com propósitos autopsianos
Para que não jaza num caixão frio
Coberto de flores mornas
Para que não sinta mais os afagos
Desta gente tão longe. (CESAR, 1998b, p. 27)

Podemos afiançar, com segurança, que a fragmentação do eu e


o fascínio pela morte – temas recorrentes na poética dessas autoras,
indubitavelmente – não decorrem da psicopatologia suicida nem se
trata de uma antevisão do suicídio. Enganam-se os críticos que insis-
tem na busca pela morbidez e pela morte per se nos textos das duas

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Anélia Montechiari Pietrani


poetas, ainda que os tantos títulos que sugerem ou nomeiam a morte
sejam uma constante em seus poemas.
É curioso também que a questão do suicídio tenha tomado
muito mais os críticos de Sylvia Plath que os de Ana Cristina Cesar.
Estes parecem explorar melhor o texto de Ana, enquanto aqueles a
vida de Sylvia, haja vista tantos livros biográficos escritos sobre a
norte-americana. Tais biografias – muito pouco esclarecedoras – ape-
nas aguçam a curiosidade em torno da morte da poeta, procurando
apagar, em contrapartida, o fogaréu que o forno de sua poesia (não,
não é aquele que a levou à morte) produziu. Tentemos uma explicação
nas palavras de Italo Moriconi:

A vida pública brasileira não está habituada a mexericos. Talvez


seja uma vantagem. O estilo anglo-saxão da franqueza total,
que acaba levando ao sensacionalismo barato, choca muito a
sensibilidade patricial de nossos intelectuais e políticos. Será
que isso é mesmo vantagem de nossa cultura? Alimentar o se-
gredo, a hipocrisia, as meias-verdades, os subentendidos que
acompanham os olhares cúmplices e excludentes dos “poucos
que sabem”. Silêncios que protegem corruptos. Olhares que
marginalizam rebeldes e enlouquecem “ineptos”. (MORICONI,
1996, p. 131-2, grifos do autor)

Ainda que o ensaísta enverede por digressões sobre o silêncio


que ronda a política brasileira, suas palavras podem ser aproveitadas
para marcar as diferenças entre o Brasil e a Inglaterra no tratamento
dado a uma e a outra poeta e para justificar o comportamento dos
resguardados amigos de Ana que silenciam sobre nomes e detalhes
que trairiam a sua imagem bem-comportada.
Não, não queremos mexericos sobre a vida das poetas. Poesia
é vida? Não se sabe, mas tem um olhar sobre a vida. Um olhar em
fragmentos, que é simultaneamente um instrumento de encenação da
história de dispersões, diluições, desvios. Um olhar sobre o efêmero:
a única certeza que tem o homem, este cadáver em potencial, a de que
é inevitável o desfazer-se, decompor-se, corromper-se no tempo e na
história.“Morrer é”, bem recorda Denilson Lopes, tomando as palavras
de Peggy Phelan. “Morrer é um viver repleto de tempos presentes”
(LOPES, 1999, p. 10). Não é passado, não está no futuro, é. O tempo é
rompido, o corpo é corrompido, a palavra quebra. O texto não flui, é

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Morrer na vida, viver na poesia

tensão, acidente, desvio: o fragmento em que se torna o fragmento.


Corpo morto, corpo vivido: corpo escrito.
Pode ser, então, que a poesia esteja muito mais próxima da morte
que da vida. Se considerarmos a morte o não-ser (ao mesmo tempo
que sua semente vive em nós desde o nosso nascimento), então pode
ser a arte o não-existir (ao mesmo tempo que tem referencialidade a
partir do real). No paradoxo, portanto, de viver o poetar, é preciso
amoldar-se ao não-ser, abrir uma passagem, transpor uma parede,
aventurar-se no escrever/viver/morrer.
Trazemos aqui a temática da morte como interface da aventura
dessa transposição de limites, a aventura dessa coisa difícil de tratar
que é a interrupção da vida, a passagem do existir para o significar,
que só a linguagem pode atravessar. Os nomes falam até de coisas
inexistentes, sabemos. A coisa morre, o nome fica. A palavra sobre-
vive à morte. Enquanto vida, mundo e realidade unem-se no âmbito
da movência e instabilidade, a morte e a escrita predispõem-se à
permanência e estabilidade, porque são as únicas que – inerentes à
existência – permanecem para além do desaparecimento.
Sobre a tarefa de morrer e a tarefa artística, esclarece Maurice
Blanchot, em O espaço literário:

Nesse pavor pela morte em série há a tristeza do artista que


honra as coisas bem feitas, que quer fazer uma obra e fazer da
morte sua obra. Assim, a morte está desde o começo em rela-
ção com o movimento, tão difícil de esclarecer, da experiência
artística. (BLANCHOT, 1987, p. 121)

O livro de Blanchot é um curioso ensaio, a partir da análise de


textos de Mallarmé, Kafka, Rilke, sobre a “solidão essencial” da obra
de arte ao mesmo tempo que o autor indaga sobre o não-vazio pes-
soal do momento da escrita. Segundo ele, “alguém é o que está ainda
presente quando não há ninguém” (BLANCHOT, 1987, p. 22). A partir
daí, problematiza de forma consistente questões clássicas sobre a
linguagem literária e a linguagem do mundo, a intimidade do criador
com o leitor, o escrever e o libertar(-se), a linguagem de irrealização
da realidade, o espaço entre a escrita e a morte.
Viver/morrer e escrever/morrer – seguindo a indicação de Blan-
chot, que defende a essencial consonância entre morte e arte – são
exemplos de experiências-limites: tanto morrer quanto escrever são

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Anélia Montechiari Pietrani


experiências extremas de transposição do limite do vivenciável para
o alcance do (in)dizível, cujas travessias tomam em ambas o viver
como ponto de partida e de transfiguração. Interrompe-se a vida,
acentua-se o desejo de se revelar o outro lado: o momento supremo
de transposição do real, em que o verbo, feito um dia carne, retorna,
finalmente, ao texto.
Chegar à arte e à morte – limites inexoráveis que escapam,
paradoxalmente, às limitações – exige a transposição de veredas
misteriosas. O que há a encontrar? Sangue, dor, alívio, encantamento?
Como atravessar? “Dying/ Is an art, like everything else”, diz Sylvia
Plath no já citado poema “Lady Lazarus”, quatro meses antes de morrer
em fevereiro de 1963.
“A poesia pode me esperar?”, pergunta Ana Cristina, também
quatro meses antes de morrer em outubro de 1983, para responder
intransitivamente um mês depois: “Não, a poesia não pode esperar.”
Coincidências? Podem ficar à parte, só servem aos escarafunchadores
da só-vida ou da só-morte, porque aqui, insistimos, não há intenção de
traçar perfis biográficos de mulheres-poetas suicidas que acabariam
em especulações psicológicas e, por certo, enfadonhas e intromisso-
ras, além de uma reles apelação pela insistência no “fascínio simplista”
do glamour que ronda o mito suicida.

Eros e Tanatos sob a figuração do feminino

“A sepultura e a alcova, em blasfêmias fecundas,


Nos dão de quando em vez, como boas irmãs,
Os prazeres do horror e as carícias malsãs.

Hás de enterrar-me, Orgia, em tuas covas fundas?


Quando virás, ó Morte, envolta em negras vestes,
Sobre os mirtos em flor plantar os teus ciprestes?”
(BAUDELAIRE, 1985, p. 401)

Segundo Philippe Ariès, em História da morte no Ocidente, o


último grande momento de devoção aos mortos aconteceu junto
à ternura do romântico século XIX. Desde então, duas mudanças
intervieram e modificaram o quadro – praticamente cerimonial e
público – de morrer. Primeiramente, privou-se aquele que vai morrer
do direito de conhecer a verdade, sendo tratado como uma criança

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Morrer na vida, viver na poesia

ou alguém que perdeu a razão. Na transferência da honra feita ao


morto, esta passa aos sobreviventes que, por isso, como edificação
e consolo, recebem o silêncio. É a segunda mudança que intervém
diante da morte: “Hoje é vergonhoso falar da morte e do dilacera-
mento que provoca, como antigamente era vergonhoso falar do sexo
e dos prazeres” (ARIÈS, 2003, p. 224). De fato, falar da fealdade da
agonia e da presença da morte não é característica da modernidade,
que perpassa a idéia (ou a aparência) de beleza, limpeza e ordem,
ainda que, conforme mensagem de Sigmund Freud em O mal-estar
na civilização, os prazeres e a satisfação da vida civilizada estejam
acompanhados de sofrimentos e mal-estar.
Segundo Freud, estes nos ameaçam a partir de três direções:
do mundo externo, por meio de suas forças de destruição; de nosso
próprio corpo, por sua fragilidade e dissolução; e de nossos relaciona-
mentos com os outros (Cf. FREUD, 1997, p. 25). Sendo as duas primei-
ras indicações provenientes do poder inexorável da própria natureza
sobre nós, muito pouco – ou mesmo nada – poderíamos fazer para
evitar as conseqüências do sofrimento causado, por exemplo, por um
terremoto ou pela morte ocorrida na velhice. Resta-nos reconhecer e
considerar como o mais penoso o último indicativo de nossa infelici-
dade, que Freud chama de “fonte social do sofrimento” (FREUD, 1997,
p. 37). Sobre ele, recaem nossas dúvidas de como viver de forma a
alcançar a ordenação e a perfeição, que deveriam ser os preceitos da
civilização, a que estamos, indissoluvelmente, associados. O fundador
da psicanálise questiona por que as maravilhosas realizações dos
homens nem nos fizeram desfrutar prazerosamente da vida nem nos
tornaram mais felizes. Para Sigmund Freud, neste estudo publicado
em 1930 porém visivelmente atual, a agressividade inerente ao homem
recorda e suscita a eterna luta entre Eros e a Morte:

[O] natural instinto agressivo do homem, a hostilidade de cada


um, contra todos e a de todos contra um, se opõe a esse pro-
grama da civilização. Esse instinto agressivo é o derivado e o
principal representante do instinto de morte, que descobrimos
lado a lado de Eros e que com este divide o domínio do mundo.
Agora, penso eu, o significado da evolução da civilização não
mais nos é obscuro. Ele deve representar a luta entre Eros e a
Morte, entre o instinto de vida e o instinto de destruição, tal
como ela se elabora na espécie humana. Nessa luta consiste

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Anélia Montechiari Pietrani


essencialmente toda a vida e, portanto, a evolução da civili-
zação pode ser simplesmente descrita como a luta da espécie
humana pela vida. E é essa batalha de gigantes que nossas
babás tentam apaziguar com sua cantiga de ninar sobre o Céu.
(FREUD, 1997, p. 81-2)

E, ainda segundo Freud, tal agressividade e o sentimento de


culpa respondem a essa aflição que atinge o homem:

A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber


se, e até que ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá
dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo
instinto humano de agressão e autodestruição. Talvez, preci-
samente com relação a isso, a época atual mereça um interesse
especial. Os homens adquiriram sobre as forças da natureza
um tal controle, que, com sua ajuda, não teriam dificuldades em
se exterminarem uns aos outros, até o último homem. (FREUD,
1997, p. 111-2)

Neste texto, marcadamente pessimista (e, talvez por isso, um


dos seus mais realistas), o próprio Freud parece trazer à tona a idéia
de que a condenação a que o homem está sujeito não deriva (só) de
seu complexo de Édipo, de problemas de castração e de sexualidade,
de processos libidinais, sejam eles narcísicos, agressivos, eróticos, isto
é, a questão não se encontra apenas nas entranhas do ser humano. A
aflição maior a que o homem está condenado é viver em um mundo
esmagadoramente trágico e demoníaco.
Se, no século XX, a morte substitui o sexo como principal
interdito e falar sobre ela nas sociedades modernas torna-se, como
foi apontado por Ariès, um “novo” tabu, é importante pensar não só
na substituição do tabu do sexo pelo tabu da morte (ou na luta entre
eles, fazendo eco ao texto de Freud), mas na relação intrínseca que um
recebe ou dá ao outro, que, aliás, é confirmada por Georges Bataille,
em O erotismo:

Se virmos nas proibições essenciais a recusa que opõe o ser à


natureza, encarada como desperdício de energia viva e como
orgia de destruição, não podemos continuar a estabelecer
diferenças entre a morte e a sexualidade. Sexualidade e morte

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Morrer na vida, viver na poesia

são apenas os momentos culminantes da festa que a natureza


celebra com a inesgotável multidão dos seres. Uma e outra têm
o sentido do desperdício ilimitado a que a natureza procede
contra o desejo de durar que é próprio de cada ser. (BATAILLE,
1968, p. 54)

Embora a sexualidade e a morte não sejam características


exclusivamente humanas (apenas quando se deseja atribuir sentidos
de perversões a esses comportamentos, imediatamente, dizemos que
os homens assumiram atitudes animalizadas), podemos afirmar que
o homem é o único animal que não só pensa sobre sexo e morte (o
que nos distingue – seres pensantes – dos animais), mas pensa neles
como formas aterrorizantes e, daí, não os encara de frente: veste-se
para acentuar o tabu do corpo, silencia para atenuar essa presença
tão terrível da morte.
Basta que lembremos que o mito da queda de Adão e Eva do
paraíso prega que, por causa do atrevimento de terem experimentado
a fruta da árvore do conhecimento, eles tomaram consciência de sua
sexualidade e morte. A terra – de onde tirariam seu sustento – seria
trabalhada com seu suor e significaria o lugar para onde – feitos pó
– retornariam. Para garantir a sua mortalidade, foram expulsos do
jardim do Éden, onde se postaram querubins com espadas flamejan-
tes guardando a árvore da vida. O aviso é: podem passar a conhecer
tudo, podem tentar equiparar-se a Deus, mas jamais perpetuarão. O
homem caído é o homem da angústia escondendo-se atrás de folhas
de figueira, confinando-se, reprimindo-se (no exato conceito atribuído
a esse termo por Freud), que é a forma de defesa desenvolvida pelo
homem para enfrentar a sua realidade: a certeza de sua finitude (e,
conseqüentemente, seu esquecimento).
Encarar o tabu do sexo e da morte significa transgredir: em um
caso, despir-se revela a aceitação da penetração, da (possível) fecun-
dação; em outro, convocar a morte, por meio do desejo e da realização
do suicídio, por exemplo, é também uma forma de despir-se, só que,
aqui, do caráter da inevitabilidade da morte, pela escolha. Nudez e
suicídio são, simultaneamente, proibições e trangressões de limites:
formas de desnudar-se para sair de si e receber o outro/chegar ao
outro. Além disso, se somos seres descontínuos, como afirmou Bataille
em outro momento do estudo a que fizemos referência, e condenados
ao esquecimento, é por meio exatamente do erotismo e da morte que,

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Anélia Montechiari Pietrani


paradoxalmente, somos conduzidos à eternidade, e, assim, podemos
aliar ambos à poesia, já que desejamos defender aqui o caráter de
perenidade da arte. Pela fecundação, buscamos em outrem a continui-
dade a partir da ruptura da individual descontinuidade; pela morte,
damos lugar a novas vidas, na perpetuação dos seres que – com nova
força – ocupam os lugares cedidos, a partir do adubo que os corpos
se tornaram, seguindo, assim, o perfeito equilíbrio bio e ecológico;
pela arte, revitalizamos o pré-escrito ao renomeá-lo.
Enquanto o silêncio sobre a morte se abateu sobre os costu-
mes no decorrer do século XX, a literatura continuou seu discurso
sobre o tema, estabelecendo-se como mais uma das características
contramodernas da arte. Já que a morte – outrora tão presente, tão
familiar – tornou-se vergonhosa, objeto de interdição e motivo de
silêncio, o livro buscou-lhe um túmulo mais honesto: a loquacidade
que nos faz olhá-la de frente, sem recalques e desvios, dominando o
que nos aterroriza. “Porque o túmulo sempre há de entender o poeta”,
dizia Baudelaire em fragmento do poema “Remorso póstumo” (BAU-
DELAIRE, 1985, p. 183).
Explicitar o que é para ser ocultado é a forma que o poeta
encontra para lidar com o sexo, com a morte. E tudo se torna mais
audacioso e sensual, quando a palavra sai da pena da mulher: dona do
sangue e dos ciclos, lua-vítima (desde sempre) dos interditos. Leiamos
“Sábado de aleluia”, de Ana Cristina Cesar:

Escuta, Judas.
Antes que você parta pro teu baile.
A morte nos absorve inteiramente.
Tudo é aconchego árido.
Cheiro eterno de Proderm.
Mesa posta, e as garras da vontade.
A gana de procurar um por um
e pronunciar o escândalo.
Falar sem ser ouvida.
Desfraldar pendengas: te desejo.
Indiferença fanática ao ainda não.
(CESAR, 1998a, p. 78)

Da alusão a Manuel Bandeira à referência direta à morte, o


poema acima constrói-se sob a imagem do suicídio de Judas, como

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Morrer na vida, viver na poesia

uma espécie de alerta sobre a morte: origem, maternidade, cheiro


de pomada, em analogia com o “aconchego árido” e o “falar sem ser
ouvida”. No entanto, há desejo, vontade, gana, que aí se embutem na
transgressão do desfraldar e na coragem do resistir ao ainda-não: que
seja pronunciado o escândalo. Repita-se: “pronunciado”, verbalizado,
tornado palavra, ainda que todos busquem o silêncio. Durante os ritos
da Semana Santa, principalmente a partir do pôr-do-sol da sexta-feira,
a vigília do sábado começa a ser contada, até que chegue o domingo
festivo da Páscoa. Nesse intervalo, o silêncio é exigido, respeita-se o
preceito do repouso, que só é interrompido por poucos minutos no
sábado de aleluia, em que Judas é malhado, esse traidor, suicida, trans-
gressor, anticristo, semita e por aí vão as idéias se fecundando...
Em outro poema de Ana Cristina, ela usa a imagem do rito cristão
da Semana Santa, desta vez a sexta-feira da Paixão, assim titulando
o texto seguinte:

Alguns estão dormindo de tarde,


outros subiram para Petrópolis como meninos tristes.
Vou bater à porta do meu amigo,
que tem uma pequena mulher que sorri muito e fala
pouco, como uma japonesa.
Chego meio prosa, sombras no rosto.
Não tenho muitas palavras como pensei.
“Coisa ínfima, quero ficar perto de ti”.
Te levo para a avenida Atlântica beber de tarde
e digo: está lindo, mas não sei ser engraçada.
“A crueldade é seu diadema...”
O meu embaraço te deseja, quem não vê?
Consolatriz cheia das vontades.
Caixa de areia com estrelas de papel.
Balanço, muito devagar.
Olhos desencontrados: e se eu te disser, te adoro,
e te raptar não sei como dessa aflição de março,
bem que aproveitando maus bocados para sair do
esconderijo num relance?
Conheces a cabra-cega dos corações miseráveis?
Beware: esta compaixão é
é paixão. (CESAR, 1998a, p. 70)

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Anélia Montechiari Pietrani


A imagem do silêncio se repete nos versos, seja diretamente
como em “Não tenho muitas palavras como pensei”, seja com uma
maior sutileza, por meio das figuras da japonesa, das sombras no rosto,
do não saber ser engraçada, do embaraço que deseja, dos olhos desen-
contrados, do “se eu te disser”, da cabra-cega. E a poeta termina o texto
com o belo jogo entre as palavras compaixão e paixão, reafirmando
a idéia de que a paixão, sem compaixão, leva ao sofrimento, ou a de
que a paixão do homem e a de Cristo – símbolo de compaixão – são
mesmo amor e dor, como na velha e batida rima pobre. Acentua-se,
dessa forma, o duplo significado da palavra paixão: arrebatamento,
desejo intenso e obsessivo, por um lado; sofrimento, Paixão de Cristo,
morte, por outro.
Paixão, de fato, é o que parece perseguir Ana neste livro, a cuja
duplicidade já nos referimos em momento anterior deste trabalho,
principalmente acerca do título A teus pés: “[p]ara o poema confluem
os dois pólos. Ele é sujeito da paixão pelo leitor, ele é objeto da paixão
do leitor” (MORICONI, 1996, p. 132, grifos do autor). Aliás, Ana Cristina
tem certeza de que o ato de escrever associa-se à paixão:

Quando você escreve, você tem esse desejo alucinado e, se você


está escrevendo na perspectiva da paixão, ou sobre a paixão, a
respeito da paixão, há esse desejo alucinado de se lançar, que
o teu texto mobilize. (CESAR, 1999b, p. 264)

Paixão, que é luz de escrita, uma escrita alucinada. Escrita que


tem o poder de libertar, livrar. Livro que “mata” o real (“hoje sou eu
que/estou te livrando/da verdade”) seco e iluminado, como a cidade de
Brasília, apesar de guardar nele resquícios desse mesmo real (“Minha
boca também/está seca”), conforme aparece em texto sem título (Cf.
CESAR, 1998a, p. 59) que parece continuar na página seguinte com
as palavras:

e livrando
castillo de alusiones
forest of mirrors

anjo
que extermina
a dor. (CESAR, 1998a, p. 60)

Experiencia do limite.indb 133 17/2/2009 16:50:55


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Morrer na vida, viver na poesia

Diferentemente da paganização de imagens cristãs que Ana uti-


liza – Paixão-paixão / anjo-livro –, Sylvia Plath (embora também haja
muitos textos de sua autoria com imagens cristãs) busca em muitos
poemas o diálogo com o clássico na alusão a estátuas, à medusa, a se-
reias, a serpentes que matam (como as de Cleópatra). O poema “Edge”,
com data de 5 de fevereiro de 1963, é elucidativo na aproximação de
algumas dessas imagens:

The woman is perfected.


Her dead

Body wears the smile of accomplishment,


The illusion of a Greek necessity

Flows in the scrolls of her toga,


Her bare

Feet seem to be saying:


We have come so far, it is over.

Each dead child coiled, a white serpent,


One at each little

Pitcher of milk, now empty.


She has folded

Them back into her body as petals


Of a rose close when the garden

Stiffens and odors bleed


From the sweet, deep throats of the night flower.

The moon has nothing to be sad about,


Staring from her hood of bone.

She is used to this sort of thing.


Her blacks crackle and drag. (PLATH, 1992a, p. 272-3)

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Anélia Montechiari Pietrani


A mulher sublima-se na morte: estátua grega, cujo corpo é ilusão
que transparece na sensualidade do tecido, deixando à vista apenas
os pés que finalmente alcançaram a perfeição, neste momento-limite:
borda, margem, gume de lâmina, palavras estas que podem ser usa-
das para traduzir o sugestivo título edge. Completam a cena crianças
mortas e enroscadas, feitas serpentes, em torno de vasilhas de leite
que as alimentaram (ou envenenaram?). Mulher-seio que abraça crian-
ças; mulher-rosa que se fecha; mulher-flor noturna de cuja garganta
sangram odores; mulher-lua cujo lado negro avança e draga.
Confirmando a idéia lançada por Ana Cristina acerca do livro
como produtivo, fecundo, “castelo de alusões” e “floresta de espelhos”,
as interpenetrações alegóricas sobre o feminino neste poema de Plath,
no que tange à figura da mulher associada a elementos da natureza e
de seu próprio corpo, sustentam o ciclo de fecundação e, na presença
da morte, o retorno à vida: mulher que, numa espécie de contrafecun-
dação, com sua morte, envolve, suga e torna-se o início. É tênue, nesse
poema, a marcação de uma margem entre corpo e ilusão, vida e morte,
início e fim, até mesmo na confusão causada pelo uso dos pronomes
“she” e “her” na última estrofe: a lua ou a mulher (apesar de lua, em
inglês, ser neutro)? Quem está acostumada a este tipo de coisa, nascer
e morrer? Da perenidade da estátua grega chega-se à modernidade do
perecível e renovável como nos ciclos lunar e feminino.
Na coletânea de poemas de Sylvia Plath traduzidos por Rodrigo
Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça e publicados no Brasil em
1994, eles encontram uma palavra interessante para a tradução do título
do referido poema: “Auge”. Tal escolha apóia-se, principalmente, na
afirmativa de Ted Hughes de que este teria sido o último texto escrito
por Plath. Sendo assim, os tradutores lêem o poema como “a declaração
e a antevisão explícita da própria morte. Plath se reveste do ideal de
auge da perfeição atingido na morte, como se completasse uma obra.
Assim se justifica a nossa solução para o título, além da aproximação
sonora” (em PLATH, 1994, p. 105). Ainda que concordemos com a leitura
que entrelaça escrita e morte, não podemos deixar de insistir no tom
de biografismo reducionista que ela apresenta. Por isso, optamos por
sugerir a utilização de borda, margem ou mesmo gume de lâmina para a
tradução de “edge”, mais coerentes com o que vimos estudando acerca
da experiência-limite entre vida e obra, entre vida e morte. Além disso,
os termos sugeridos refinam a intensa carga erótica do poema com a
complexa e tensional relação entre esses elementos.

Experiencia do limite.indb 135 17/2/2009 16:50:55


136
Morrer na vida, viver na poesia

Desse modo, pensamos que Eros ocupará, nessa espécie de


faixa de Möebius, simultaneamente, os dois espaços limítrofes: em
um, imbricam-se o amor e a vida, o amor que impulsiona a vida;
em outro, Tanatos se encarregará de unir-se ao próprio Eros, que,
seguindo as indicações do estudo de Freud acerca das relações do
indivíduo consigo mesmo e com o grupo no processo da civilização,
aqui3 – no espaço da escrita – permanecerão em luta. Destrói-se,
cria-se, morre, renasce, e o desejo de sair de si e chegar ao outro,
de romper e fecundar permanece. Torna-se difícil vislumbrar aí a
definição de limites: Eros passeia de lado a outro, e não se sabe o
lugar onde começa e termina a transgressão, onde está o eu corpóreo
e o incorpóreo.
O poema seguinte de Ana Cristina estreita a relação entre
poesia, morte e erotismo, três formas de transgressões, três formas
marginais:

Olho muito tempo o corpo de um poema


Até perder de vista o que não seja corpo
E sentir separado entre os dentes
Um filete de sangue
Nas gengivas. (CESAR, 1998a, p. 89)

O erotismo está evidente neste poeta, voyeur de seu próprio


texto. O olhar interrompendo a escrita faz abandonar “o que não
seja corpo”, deixando restar a vida: fica o corpo, lugar de experiên-
cia vital, sente-se o sangue, sensação vital. Estão muito próximos,
portanto, o corpo de escrita e o corpo de desejo que se encontram
na dor. Isto nos faz retomar, uma vez mais, a suposta continuação
do poema sem título a que nos referimos páginas atrás, que aqui
transcrevemos:

te livrando

castillo de alusiones
forest of mirrors

anjo
que extermina
a dor. (CESAR, 1998a, p. 60)

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Anélia Montechiari Pietrani


A partir do jogo com os cognatos livro e livrar e das alusões ao
processo de escrita como fecundo e produtivo, aparece uma imagem
curiosa: corpo do desejo, corpo da dor se completam neste anjo que
extermina a dor. É preciso ver e sentir o sangue para estancá-lo, é
preciso falar da dor para exterminá-la. Coloca-se em livro para livrar-
se, libertar-se: o livro fecunda especularmente o que eu quero matar
alusivamente. É como se a agonização do ato de escrever instaurasse
a suavização do ato de viver: “as palavras escorrem como líquidos/
lubrificando passagens ressentidas” (CESAR, 1998b, p. 87). Tal idéia
também parece ser perseguida por Sylvia Plath ao reconhecer que
é preciso encontrar a palavra para deter o fluxo: “Quero publicar
qualquer bobagem inútil. Palavras, palavras para impedir a inunda-
ção como um polegar no dique. Esse é meu refúgio secreto” (PLATH,
2004, p. 368).
Cabe, aqui, abrir parênteses para uma comparação curiosa
que Ana Cristina estabelece – em depoimento já citado – entre san-
gue, feminino e violência, fugindo da visão de um feminino etéreo, “o
que fala de coisas muito leves da natureza, nuvens e riachos, alguma
coisa que não ‘toca’ direito. [...] Talvez o feminino seja alguma coisa
de mais violento que isso. Talvez o feminino seja mais sangue, mais
ligado à terra.” (CESAR, 1999b, p. 205). Escolhido como representativo
da subversão do discurso cultural estabelecido a respeito do que é
feminino, o sangue é tomado como símbolo da ruptura com os tabus.
O elemento telúrico e feminino do mênstruo, dos rituais antigos de
sacrifício para a fertilização da terra, é reaproveitado por Ana, agora
como signo da profanação de uma mítica do feminino.
Estamos diante de outro caráter instigante da “modernidade
pós-moderna”, o da dessacralização e desconstrução das ideologias
culturais, nesse caso, as que marcaram a divisão binária e sexista no
que diz respeito à articulação do feminino com os valores da subje-
tividade, da emoção e da natureza, e do masculino com os da objeti-
vidade, da razão e do intelecto, cujo aparato ideológico, discursivo e
cultural foi estudado por Evelyn Fox Keller em Reflections on gender
and science:

The most immediate issue for a feminist perspective on the


natural sciences is the deeply rooted mythology that casts ob-
jectivity, reason, and mind as male, and subjectivity, feeling, and
nature as female. In this division of emotional and intellectual

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Morrer na vida, viver na poesia

labor, women have been the guarantors and protectors of the


personal, the emotional, the particular, whereas science – the
province par excellence of the impersonal, the rational, and the
general – has been the preserve of men. (KELLER, 1985, p. 7)

Grosso modo, o interessante estudo de Keller – cientista-mulher


estabelecida no padronizado mundo masculino científico – monta
uma engenhosa crítica que lança um olhar de desconfiança sobre os
referenciais masculino e feminino e sobre a posição do homem e da
mulher determinada e determinista na cultura, na ciência e na socie-
dade como um padrão ideológico, que visa a assegurar a continuidade
da hegemonia masculina.
Retomando o poema citado de Ana, podemos inferir que, so-
mente a partir da diferenciação entre “o corpo de um poema” e “o
que não seja corpo” é que se percebe, na morte, o sangue, a dor de
escrita, idéia que se confirma em texto publicado como entrada de
diário no próprio A teus pés, “Meia-noite, 16 de junho”: “Não volto às
letras, que doem como uma catástrofe. Não escrevo mais. Não milito
mais. Estou no meio da cena, entre quem adoro e quem me adora.
Daqui do meio sinto cara afogueada, mão gelada, ardor dentro do
gogó” (CESAR, 1998a, p. 107).
Meio da cena, meio-dia, margem entre adorar e ser adorada,
fogo e gelo, não voltar às letras, ardor no gogó. Se escreve, é dor, é
luta, é militar; se não, é fogo! Que jeito? Gume da lâmina afiada da
escrita, filete de sangue entre as gengivas: estão elas – Sylvia e Ana –
na borda (ou no auge).

For the eyeing of my scars, there is a charge


For the hearing of my heart –
It really goes.

And there is a charge, a very large charge


For a word or a touch
Or a bit of blood. (PLATH, 1992a, p. 246)

Nesse fragmento de “Lady Lazarus”, também se reconhece essa


escrita de sangue, forte, violenta (e, portanto, feminina?); escrita em
que o cotidiano é poetizado a partir da captação dilemática de acon-
tecimentos aparentemente banais (olhar cicatrizes, ouvir coração),

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Anélia Montechiari Pietrani


mas que desencadeiam assimilações complexas e um trabalho de
linguagem (o alto preço a pagar nesse trânsito) apurado, por vezes, em
que se misturam o ato de escrever e a dificuldade da escrita, o corpo
humano e o corpo do texto, acendendo a carga erótica que reveste
o texto: palavra, toque, um pouco de sangue. Ou uma escrita como
jato de sangue a estilar violência e, por isso, declinada num feminino
antiéter, antipureza, anticandidez, pró-sangue: oblíqua e dissimulada
– como a figuração feminina – transgressão de modelos dominantes.
Não é feminina a poesia de Ana Cristina e Plath porque foi escrita
por mulher. Não é feminista, porque marcada pela pressão obsessiva
de um homem que a despreza e a abandona, em troca de outra – e,
nesse caso, referimo-nos principalmente à poesia de Sylvia Plath. Se
assim a justificássemos, isso só contribuiria para incorrer no erro de
atribuir à obra de autoria feminina um caráter específico ou um estilo
particular de escrita, o que caracterizaria a literatura como marcada
por ideologias de gênero e poria em vigor a concepção do texto lite-
rário como reflexo do real, conforme a argumentação sustentada por
Rita Felski em Beyond feminist aesthetic: feminist literature and social
change. Lucia Helena, no livro em que estuda Clarice Lispector, intitu-
lado Nem musa nem medusa, sem recusar o brilhantismo da leitura de
Hélène Cixous sobre a mesma autora, aponta os riscos das colocações
da ensaísta francesa acerca do que ela chama écriture féminine:

Por um lado, porque parece mesmo impossível apresentar pelo


menos um caso convincente de análise que prove a alegada exis-
tência de algo que é inerentemente feminino no texto literário. Por
outro, porque tais análises trazem em seu bojo o risco de retorno
a um apriorístico e eterno feminino, podendo, paradoxalmente,
recair exatamente no que pretendem sofisticadamente criticar:
o determinismo biológico que toma o corpo da mulher como
sinônimo de “escrita feminina” e acaba por “refletir” na “fenda”,
no “vazio” que lhe é atribuído, características que pertencem à
biologia dos corpos. (HELENA, 1997, p. 103, grifos do autor)

Proporíamos, sim, incluir as obras de Ana Cristina Cesar e Sylvia


Plath na possibilidade da existência de um projeto cultural em prol
do feminino, não pelo intrínseco na literatura ou pelo determinismo
da biologia de corpos, porém desde que se compreendessem as suas
características como a transgressão à ideologia discursiva e cultural,

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Morrer na vida, viver na poesia

o questionamento das verdades ditas absolutas e sagradas e a pro-


blematização da inclusão da mulher como sujeito de uma história,
conforme procuramos apontar em nosso estudo, intitulado O enigma
mulher no universo masculino machadiano (PIETRANI, 2000), acerca
de tal preocupação nos textos de Machado de Assis.
Nesse sentido, pensamos no apurado trabalho de linguagem
que empreenderam e acreditamos que é a partir dele que a figuração
do feminino está presente: o interdito desmascarado, o desdito ferino,
doloroso, escrito. Palimpsesto que, escavado, se mostra desnudado
em morte: palavra violenta, que não caberia nos “lugares discursivos e
culturais”4 prontos para a mulher. A tal ponto que Ana Cristina escreve
no diário fingido de 16 de junho: “Posso ouvir minha voz feminina: estou
cansada de ser homem” (CESAR, 1998a, p. 102), como se ela sentisse que
era importante construir uma outra voz poética, porque a que existe,
mesmo a de poetas-mulheres, é profundamente masculina.
O poema dramático “Three women”, de Sylvia Plath, em que a
poeta descreve – a partir de monólogos entrecortados – as diferen-
tes experiências de três mulheres com a gravidez e a maternidade,
é fantástico exemplo de rasura aos “lugares prontos e destinados” à
mulher e das tensões que surgem entre a experiência de dar vida e a
definição e expectativa social dessa experiência.
Enquanto a primeira voz parece representar o papel estereoti-
pado da mãe, imersa em calma, folhas, pétalas, sementes e descrita
num imaginário cristão (“Dusk hoods me in blue now, like a Mary”
(PLATH, 1992b, p. 179)), a segunda – possivelmente uma secretária – se
destaca pela consciência que tem do conflito entre a sua capacidade de
criação e a vivência no mundo fechado, burocrático, estéril do qual faz
parte, tanto que para ela, diferentemente da primeira cujo nascimento
do filho é um renascimento, é um tipo de morte. Nesse sentido, não
corresponde à definição social da mulher como mãe e, então, diz: “I
see myself as a shadow, neither man nor woman” (PLATH, 1992b, p.
182). A terceira também manifesta um conflito diante de sua situação,
porém a tensão parece atenuar-se até por ser esta voz a de uma jovem
(uma colegial, é provável) que demonstra desejo de abdicar-se de tal
tarefa. A “secretária”, no entanto, é a única das três mulheres que tem
um trabalho e participa do mundo alienado e alienante; é a única que
tem consciência de sua capacidade de criação e da hostilidade com
relação à sua criatividade; é a única que, no questionamento da(s)
identidade(s), rejeita a ilusão.

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O instigante texto de Sylvia Plath, intitulado “I am vertical”,
também põe em evidência a rasura de identidades(s), alardeando a
fusão produtiva entre erotismo, feminino e morte:

But I would rather be horizontal.


I am not a tree with my root in the soil
Sucking up minerals and motherly love
So that each March I may gleam into leaf,
Nor am I the beauty of a garden bed
Attracting my share of Ahs and spectacularly painted,
Unknowing I must soon unpetal.
Compared with me, a tree is immortal
And a flower-head not tall, but more startling,
And I want the one’s longevity and the other’s daring.

Tonight, in the infinitesimal light of the stars,


The trees and flowers have been strewing their cool odors.
I walk among them, but none of them are noticing.
Sometimes I think that when I am sleeping
I must most perfectly resemble them –
Thoughts gone dim.
It is more natural to me, lying down.
Then the sky and I are in open conversation,
And I shall be useful when I lie down finally:
Then the trees may touch me for once, and the flowers have/
time for me.
(PLATH, 1992b, p. 162)

Nesse texto, a poeta retrata a dificuldade em reconhecer-se e


ter reconhecida a identidade. Se é algo, preferiria ser outro e ter do
outro as características: da árvore, a longevidade; da flor, a ousadia.
É somente quando dorme, quando se deita (atente-se para o fato de
que, em inglês, “to lie” é um signo polissêmico: deitar, mentir e mor-
rer) que pode abrir-se em conversação com o céu: sonho, mentira,
morte, qualquer circunstância outra. Se, na vertical, não é notada
e sua errância é solitária, apenas sendo o que não é ou estando
como não estava – na horizontal – é reconhecida, mas não é mais
apenas eu, é/está outro: assim podem as árvores tocá-la, e as flores
lhe dedicar tempo. Flores que lhe cobrem o corpo deitado, inerte,

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Morrer na vida, viver na poesia

morto. Flores que instauram, em simultaneidade à idéia de morte,


o processo de erotização do eu-no-outro, em que se evidenciam
sinais de sexualidade, estimulados pelo odor (ressalte-se: frio) que
se espalha, até se chegar a este corpo à espera, uma vez ao menos,
do toque íntimo e da dedicação do outro, quando poderá ser útil,
finalmente morto.
Enquanto a morte parece ser o tema resultante das ruínas
escavadas – inscritas e escritas – dos textos dessas poetas, pode-
mos seguir – para lá chegar – os rastros e revelações daqueles cujo
apelo erótico é bastante evidente. Em “Nada, esta espuma”, de Ana
Cristina Cesar, se verifica o quanto o erotismo mescla-se ao processo
de escrita:

Por afrontamento do desejo


insisto na maldade de escrever
mas não sei se a deusa sobe à superfície
ou apenas me castiga com seus uivos.
Da amurada deste barco
quero tanto os seios da sereia. (CESAR, 1998a, p. 97)

Um Ulisses-escritor que não se esquiva à presença sensual das


sereias, antes busca-a, espera ansiosamente a concretização do desejo
sem tapar-lhe os ouvidos. Ainda assim, o eu poético insiste na escrita que
reconhece como um mal. Esse texto lembra-nos “Crossing the water”, de
Sylvia Plath, e a associação pode não ser casual. Nele, somos levados a
contrapor os uivos da deusa que castiga ao silêncio que aterra.

Black lake, black boat, two black, cut-paper people.


Where do the black trees go that drink here?
Their shadows must cover Canada.

A little light is filtering from the water flowers.


Their leaves do not wish us to hurry:
They are round and flat and full of dark advice.

Cold worlds shake from the oar.


The spirit of blackness is in us, it is in the fishes.
A snag is lifting a valedictory, pale hand;

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Stars open among the lilies.
Are you not blinded by such expressionless sirens?
This is the silence of astounded souls. (PLATH, 1992b, p. 190)

Esse é o silêncio das almas atormentadas: sombras negras,


avistadas por quem atravessa o rio Letes. Enquanto em um, a maldade
de escrever se insiste em meio ao desejo do eu poético à espreita (e à
espera) da deusa e dos seios da sereia; em outro, a imagem recorrente
é a do inferno pós-morte, marcada pelo silêncio, mas nem por isso
as sereias são menos perigosas: ainda que inexpressivas, causam
dúvida no eu poético, a dúvida da cegueira. Acima de tudo isso, um
barco atravessando esses limites tênues: corpo, mulher, vida, escrita,
ilusão, morte. Todas essas formas entremundos, visões intervalares
de uma história cética e melancólica que nos deixa à deriva: sensação
de fim, certeza de escuridão que está em nós, fragmentos que somos,
porque certos e conscientes da inevitabilidade da morte, não (só)
porque – na razão dos suicidas – ousamos atravessar as fronteiras
e escolhemos pegar o barco. Na esteira de Drummond, “os suicidas
tinham razão”, diríamos.

O gato e a fênix sob a estética da finitude

“Louvo a vida merecida


de quem morre pra viver,
Louvo a luta repetida
Da vida, pra não morrer.”
(TORQUATO NETO, 1982)

Como este trabalho já parece encaminhar, é em consonância


com seu aspecto estético que o tema-problema acirra, ainda mais, o
teor do mistério que o ronda. Quando pensamos no espaço do literá-
rio, transgridem-se limites. Converge-se a realidade em imaginário.
Tempera-se de verdades, mentiras e outras histórias a verossimilhança
da literatura. Não sabemos mais o que é eu, o que é outro. Também
se fundem e confundem o espaço literário e o da existência. O ser de
palavras e o real (con)formam-se na experiência mimética por uma
espécie de “jogo” com a aparência de certeza de se estar revelando a
verdade. “Agora, imediatamente, é aqui que começa o primeiro sinal

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Morrer na vida, viver na poesia

do peso do corpo que sobe. Aqui troco de mão e começo a ordenar o


caos” (CESAR, 1998b, p. 195).
Escrevia esse texto Ana Cristina entre 1982 e 1983,5 ano de sua
morte, levando-nos a refletir sobre a relação possível (ou impossível)
entre “mundo externo” e “obra de arte”, se considerarmos os limites
tão tênues que separam (ou unem) os espaços do criador e da criatura.
Sua obra, madura organização estética em meio à marginalidade da
poesia que lhe é contemporânea em meados dos anos 1970 e início
dos 1980, como temos dito, abre a possibilidade de discussão sobre a
difícil relação da linguagem literária com a auto-referencialidade e a
referencialidade. A Ana Cristina ensaísta alerta para isso na resenha
“O poeta é um fingidor”:

o fingimento é próprio da literatura, mas só se afirma sobre


bases deveras sentidas. A insinceridade porém não se detecta
cotejando o documento com a literatura de um Autor, mas
dentro da própria produção literária, como problema intrinsica-
mente literário, como dado revelador de um jogo de recalques
e poderes. (CESAR, 1999b, p. 203)

Essa preocupação aparece bastante evidente também em relatos


da própria Ana, sobre seu fazer poético, como neste depoimento:

Ao produzir literatura, eu não faço rasgos de verdade, eu tenho


uma opção pela construção, ou melhor, não consigo transmitir
para você uma verdade acerca da minha subjetividade. É uma
impossibilidade até. Já que é uma impossibilidade, eu opto
pelo literário e essa opção tem que ter uma certa alegria. Ela
é engraçada. Não é uma perda como parece. Ela tem uma re-
núncia inicial, mas, no final, não é uma perda não. A gente tem
que falar, a gente tem mais é que falar. Falar nunca é a verdade
exatamente, mas a gente tem que falar, falar, falar, falar, falar,
falar... para abrir brecha. Se não, a gente angustia muito. Não
sei. (CESAR, 1999b, p. 273)

O mistério da arte está claro no depoimento: “não sei”, diz Ana.


Sabe apenas que é necessário falar para abrir brecha, para não an-
gustiar muito. Aí vem a poesia como libertação, que deve ser marcada
por “uma certa alegria”. Também Sylvia Plath fala da alegria na escrita:

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Anélia Montechiari Pietrani


“Escrever por escrever, fazer coisas pela alegria intrínseca. Uma dádiva
dos deuses” (PLATH, 2004, p. 590), escreve Plath em seu diário, após
falar de competição e busca de sucesso. Para não se fechar completa-
mente, o criador-autor renuncia a algo inicialmente, mas, sem perder
este algo por completo, faz pairar sua criatura escrita no entrelugar
possível ou impossível da distância e da proximidade.
Estranho falar de “uma certa alegria” ou de “uma alegria intrín-
seca” em um capítulo que pretende tratar a morte. Talvez, no entanto,
não haja tanta dissociação assim entre as três – poesia, alegria e morte
– mesmo quando o que comumente se observa é a opinião contrária:
tristeza e arte andam juntas. Poder-se-ia argumentar que, quando
muito, a arte traz felicidade porque sublima a tristeza, a melancolia, a
morte. Mas é exatamente desta estranha “certa alegria” que trataremos
em conjunto com a arte e a inexorável morte.
De acordo com a concepção de alegria desenvolvida por Clément
Rosset em Alegria: a força maior, ela se constitui em uma espécie de
algo “a mais” que é, simultaneamente, inexplicável e inexprimível, o
alegrar-se com tudo em geral e o não-dizer-se o bastante sobre isso.
Pode ser que, por isso, a realização concreta da alegria seja praticamen-
te impossível, ao mesmo tempo que a simples evocação de lembranças
– mesmo se tiverem sido tristes – traga-a carregada em si. Isso reforça
ainda mais o caráter de irracionalização da alegria, que aparece no
mesmo plano que o ilogismo, a incoerência e até mesmo a loucura:
“não há alegria senão louca – todo homem alegre é necessariamente e
a seu modo um desatinado” (ROSSET, 2000, p. 25). Resta compreender
como o exercício da pena – instrumento e sofrimento – experimenta a
alegria (e a morte). Procuremos em Nietzsche a iluminação:

Sinto uma alegria melancólica em viver neste emaranhado de


ruelas, de necessidades, de vozes: quantos prazeres, impaciên-
cias, desejos, quantas sedes de vida e de embriaguez de vida
nascem aqui a cada instante! E, contudo, que silêncio depressa
terá coberto todos estes barulhentos, todos estes vivos, todos
estes ávidos! Como se vê bem atrás de cada um desenhar-se a
sua sombra, o seu obscuro companheiro de caminho! Sucede
constantemente como no último momento antes da largada de
um berço de emigrantes: já não há mais nada a dizer-se, a hora
aperta, o oceano e o seu vazio silêncio esperam impaciente-
mente atrás de todo este barulho... tão ávidos, tão seguros da

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Morrer na vida, viver na poesia

sua presa! E todos, todos imaginam que o passado não é nada,


que o próximo futuro é tudo: de onde esta pressa, estes gritos,
esta necessidade de se ensurdecer e de entre-enganar que os
domina! Cada um deles quer ser o primeiro neste futuro, e,
contudo, a morte, o silêncio do túmulo, é a única certeza que
ele oferece, que possa ser comum a todos. Como é estranho que
esta única certeza e esta única comunhão não possam quase
nada sobre os homens, e que não haja aí nada mais distante do
seu espírito que a idéia de sentir esta fraternidade da morte!
Sinto-me feliz por ver que os homens se recusam absolutamente
a querer pensar na morte. Gostaria de contribuir para lhes tor-
nar a idéia da vida ainda mil vezes mais digna de ser pensada.
(NIETZSCHE, 1996, p. 175-6, grifos do autor)

Na segunda parte do livro de Rosset, ele palmilha sua argu-


mentação com os aforismos de Nietzsche, inclusive o citado acima,
o qual nos parece fundamental para a compreensão filosófica do
caminho estético entre alegria e morte. Trata-se do aforismo 278
que abre o Livro IV de A gaia ciência, intitulado “O pensamento da
morte”. Nele, Nietzsche concilia na alegria dos viventes a melancolia
que lhes é inerente em conseqüência da presença – tão viva! – da
morte, única coisa certa que o futuro oferece a todos, única forma
de fraternidade entre os homens que, apesar dessa certeza e comu-
nhão, neutralizam o pensamento da morte com o pensamento da
vida. O que sente o filósofo diante do quadro que vê é a experiência
da alegria exatamente porque sabe, pensa a tristeza e a melancolia
que rondam a vida dos homens.
Para Rosset, o registro fundamental do pensamento nietzs-
chiano é o que ele chama de “aliança secreta [...] entre a felicidade
e a infelicidade, o trágico e o jubiloso, a experiência da dor e a afir-
mação da alegria” (ROSSET, 2000, p. 42). Segundo ele, assim como
o pensamento da vida inclui o pensamento da morte, do mesmo
modo o homem da felicidade pensa e conhece tudo, inclusive a infe-
licidade, enquanto o homem da infelicidade não tem acesso a nada,
possivelmente nem ao conhecimento dela mesma, a sua própria
causa, razão de ser, se é que é. Por isso, podemos pensar não como
paradoxal, mas como complementar, a “alegria melancólica” de que
trata Nietzsche no aforismo citado. Pensar a alegria, conhecê-la, só
é possível, porque temos o conhecimento da melancolia. Nesse sen-

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Anélia Montechiari Pietrani


tido, Nietzsche faz uma homenagem à existência, já que acredita que
o homem depara-se com a sua condição humana e, por isso, pode
romper com Deus, pode quebrar a onipotência divina. O homem,
demasiadamente humano, devia aproveitar a idéia do savoir-vivre,
porque é o único – entre os seres viventes6 – que pode tornar-se
existente, apesar da morte.
A morte está por todos os lados e a todo instante, é respirada
por todos os poros porque ela é a única e certa existência na vida. Sem
limites se intermedeiam vida e morte, ainda que os homens tentem agir
(ou finjam agir) como se esta “indesejada das gentes” não existisse.
Mas ela está aí: humanamente vital. Pensar a vida implica, sem dúvida,
pensar a morte, e este pode ser um conhecimento bastante.
Quando Rosset fala da alegria como um algo “a mais”, pensamos
na ousadia – que também é um “a mais” – de dizer no texto o que é
necessário calar na vida. Só porque foi possível, um dia, o silêncio, é
que a arte foi dita. Na verdade, cala-se para escrever ou para possi-
bilitar a escrita. E esta resulta do risco, da audácia de dizer(-se), sem
medo. À questão do sofrimento e da passividade da vida, como falsos
sins que traem o não que não se ousa dizer, contrapõe-se a arte como
alegria, o jogo, a ação, o dizer não.
Todorov, em Poética da prosa, discute de maneira interessan-
te as questões a esse respeito tomando como base a Odisséia. Fala
ele do efeito cíclico produzido pelo episódio do canto das sereias
na rea­lização da narrativa. Se Ulisses tivesse ouvido o canto das
sereias, morreria. Tapando seus ouvidos com cera, impedido de
ouvi-las, ele fez com que elas se precipitassem do alto do rochedo
no mar. As palavras implicam morte para quem as ouve. E, se não
forem ouvidas, a morte é de quem as diz. Porque o guerreiro nada
ouviu, as sereias morreram, mas, por esse mesmo motivo, ele lhes
deu a imortalidade, através de Homero. Elas silenciaram, mas seu
canto se eternizou. Se nos alegramos com o sucesso da passagem
de Ulisses, é só porque houve a morte. Se, como ele, arriscamos na
transposição de caminhos, é para falar mais adiante. Avançamos
para/com a audácia do dizer.
É nesse sentido que defendemos a existência de uma estéti-
ca da finitude: encarar a morte com a alegria do jogo de escrita, o
re-sentimento posto em xeque pelo sentimento, o rei que é derrubado
pelo eu, sim, fragmentado, mas ciente de que a partida terá de começar
de novo. E sempre, e infinitamente, nasceremos inter urinas et faeces.

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Morrer na vida, viver na poesia

Uma ferida ou um blood jet, a poesia participa desse jogo de


alegria e morte na ousadia da escrita. A ferida de Ana Cristina é tex-
tualizada em “Contagem regressiva”, e o jato de sangue de Plath em
“Kindness”. O primeiro é um longo poema publicado no livro Inéditos
e dispersos, na seção em que Armando Freitas Filho reuniu os escritos
do período que compreende os anos de 1982 e 1983, ano da morte da
poeta. O segundo, escrito em 1o de fevereiro de 1963, dias antes de a
poeta suicidar-se, integra tanto a publicação inglesa (1965) quanto a
americana (1966) de Ariel, apesar de não constar na seqüência inicial-
mente planejada por Sylvia Plath para o mesmo livro. Ressalte-se que,
apesar de morta tão jovem, os textos de Ana Cristina estão longe de
ser prematuros e muito menos uma simples “anotação de experiências
vivenciais” (SANTIAGO, 1978, p.185), como disse Silviano Santiago, em
artigo sobre o que ele chamou de “poema jovem”. O mesmo seja dito
sobre Sylvia Plath. É notável o tom “gentilmente” malicioso e irônico
de “Kindness” com que Plath trata a terra do exílio, ainda que tenha
sido por opção, ainda que tenha lhe dado tantos frutos: filhos, livros,
marido, reconhecimento post mortem.
Tomemos um fragmento de “Contagem regressiva”:

Qual tarde de maio.


Como um trunfo escondido na manga
carrego comigo tua última carta
cortada
uma cartada.
Não, amor, isto não é literatura. (CESAR, 1998b, p. 163)

Neste momento derradeiro, em que seus últimos segundos es-


tão movidos pela contagem regressiva, a última carta está com ela.
A última carta cortada, ela a carrega como trunfo, como cartada, nos
informando que “isto não é literatura” não. Pode acreditar. E em litera-
tura não se acredita? Paira a dúvida sobre o que “não” é literatura. Isto,
o que está próximo do falante: mas é a carta cortada ou a cartada?
A última lembrança física aparece desmontada pelo corte, mas
será ela mesma o elemento seminal para a execução da ação ines-
perada, se preciso for, que finalizará o jogo nessa cartada genial, a
partir desse trunfo sob a manga: a carta. Na reflexão sobre o advento
da palavra poética, surge a tensão sobre o que é este “isto”, que não é
literatura. Não sei, como disse Ana em seu depoimento, citado páginas

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Anélia Montechiari Pietrani


atrás. O quase indizível, o inapreensível em sua totalidade, porque
sujeito a um corte, pode ser que seja a literatura. Ou pode ser que não
seja. Não sabemos. No irresolvível pode estar a chave. Ou na fusão
da gentileza ironizada no poema de Sylvia Plath com o jato de sangue
que, na poesia, ninguém pode deter:

Kindness glides about my house.


Dame Kindness, she is so nice!
The blue and red jewels of her rings smoke
In the windows, the mirror
Are filling with smiles.

What is so real as the cry of a child?


A rabbit´s cry may be wilder
But it has no soul.
Sugar can cure everything, so Kindness says.
Sugar is a necessary fluid,

Its crystals a little poultice.


O kindness, kindness
Sweetly picking up pieces!
My Japanese silks, desperate butterflies,
May be pinned any minute, anesthetized.

And here you come, with a cup of tea


Wreathed in steam.
The blood jet is poetry,
There is no stopping it.
You hand me two children, two roses. (PLATH, 1992b, p. 269-70)

Toda a situação descrita é um novelo de movimentos aparen-


tes: as pedras preciosas que embaçam as janelas, as pessoas que
sorriem narcisicamente ao espelho, os ingredientes do chá inglês – o
simpático chá-das-cinco – que, docemente, podem encantar, curar,
juntar, anestesiar, silenciar: as jóias, os cristais de açúcar, as sedas,
a xícara de chá fumegante. Um alguém tão gentil que lhe traz o chá,
entrega-lhe também duas crianças, duas rosas, cujos gritos cortam
o silêncio e a aparência de realidade da situação. Mas há outro ele-
mento que pode interferir na aparente – apenas aparente – harmonia

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Morrer na vida, viver na poesia

da cena descrita: a poesia, que não é silêncio nem pode ser gentileza,
porque é um jato de sangue incontido (embora possa revelar, pela
ironia, a impaciência diante de uma “doce” gentileza). A criança grita,
o coelho grita. Mas apenas aquela é real, porque este não tem alma.
E a poesia nessa história toda? Somos tentados a fundir num mesmo
plano semântico a criança, a rosa, a poesia: interruptoras, germina-
tivas, dessilenciadoras, sem nada que possa estacar seu desejo, seu
sangue, sua ferida aberta. Elas não querem uma compressinha de
açúcar. Elas querem crescer.
Continuando a análise com a retomada do texto de Ana Cristi-
na, em versos adiante, afirma-se a idéia da ausência de contenção e
limitação do espaço e tempo da poesia:

Os poemas são para nós uma ferida.

cachoeira
de repente alguém diz a palavra cachoeira
e ela se medusa

insolúvel
intimidade
piche insolúvel
negro

E do meu pai marceneiro


herdei este ritmo de serra. (CESAR, 1998b, p. 164)

Dor, infinito, intimidade, insolubilidade, corte e serra. Seria


preciso tudo isso para mimetizar o real da vida, como a cachoeira
que, de repente, ao se tornar discurso, se medusa. A bela imagem
torna-se a horrenda e temida cabeça de serpentes, assim transfor-
mada por Atena. Torna-se palavra que petrifica quem se dispuser a
olhá-la, à espera de Perseu a combatê-la, forçando-a a olhar-se no seu
escudo-espelho. Triste destino da Górgona que não pode ver o que é
humano, só a morte.
Vencida, a imagem é imortalizada na palavra, não se dissolve
mais: “insolúvel intimidade”. Intimidade que não se dissolve, piche que
se tornou; intimidade que não se resolve, o irresolvível que envolve a
tensão sobre o que é a arte e o que é a vida. Insolúvel é todo o poema

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Anélia Montechiari Pietrani


que revela, na dor da ferida da escrita, a petrificação. É por isso que
a poeta recebe como herança de seu “pai marceneiro” o ritmo de
serra: sim, instrumento masculino utilizado para a fragmentação, mas
também culpadas são as belas imagens – enganadoras – que é preciso
transfigurar em assustadoras medusas. Impossível não se lembrar do
anjo – poesia sem sexo – que extermina a dor, revelando-a.
A poeta se torna, então, Atena criadora, que se apodera da bela
matéria-prima e esgarça-a sob o pré-texto de transformação em outro
texto, agora tão pouco humano, texto-medusa capaz apenas de ver
pedra e morte. “Belo belo. Tenho tudo que fere” (CESAR, 1998a, p. 106),
na esteira de Manuel Bandeira, um de seus pais marceneiros, nos diz
Ana Cristina, certa que está de que tememos “o pontiagudo estilete de
minha arte” (CESAR, 1998b, p. 123). E esta imagem terrível – mesmo
morta – permanecerá, porque coroa o escudo de Atena (não por acaso
a deusa protetora das atividades filosóficas e literárias), que a acolhe.
Sim, a cabeça da Medusa já está abatida, sim está sob a guarda da deusa,
mas ainda é capaz de trazer, sempre, à memória a presença da morte.
Somos levados, inevitavelmente, a aproximar as imagens que
aparecem tão fragmentárias em “Contagem regressiva” de “Medusa”,
de Sylvia Plath, escrito em 16 de outubro de 1962 e que também faz
parte do livro Ariel:

Off that landspit of stony mouth-plugs,


Eyes rolled by white sticks,
Ears cupping the sea’s incoherences,
You house your unnerving head – God-ball,
Lens of mercies,

Your stooges
Plying their wild cells in my keel’s shadow,
Pushing by like hearts,
Red stigmata at the very center,
Riding the rip tide to the nearest point of departure,

Dragging their Jesus hair.


Did I escape, I wonder?
My mind winds to you
Old barnacled umbilicus, Atlantic cable,
Keeping itself, it seems, in a state of miraculous repair.

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Morrer na vida, viver na poesia

In any case, you are always there,


Tremulous breath at the end of my line,
Curve of water upleaping
To my water rod, dazzling and grateful,
Touching and sucking.

I didn’t call you.


I didn’t call you at all.
Nevertheless, nevertheless
You steamed to me over the sea,
Fat and red, a placenta

Paralyzing the kicking lovers.


Cobra light
Squeezing the breath from the blood bells
Of the fuchsia. I could draw no breath,
Dead and moneyless,

Overexposed, like an X-ray.


Who do you think you are?
A Communion wafer? Blubbery Mary?
I shall take no bite of your body,
Bottle in which I live,

Ghastly Vatican.
I am sick to death of hot salt.
Green as eunuchs, your wishes
Hiss at my sins.
Off, off, eely tentacle!

There is nothing between us. (PLATH, 1992b, p. 224-6)

Neste, a longa descrição feita evidencia o vasto campo de idéias


associadas à prisão, pressão, compressão. Sentimo-nos sufocados ao
ler o poema: dragados, pescados, sugados, paralisados, sem ar dentro
de um corpo, uma espécie de garrafa em que vivemos. Petrificados,
melhor dizendo. Ou engarrafados numa redoma de vidro.
Cabeça, cabelo, mar, placenta, cobra, sinos de sangue, hóstia,
corpo, garrafa, pecados, tentáculos: uma aparente ilogicidade, que se

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Anélia Montechiari Pietrani


instaura na dificuldade de apreensão. Se a realidade por sua opacidade
torna-se tão difícil de ser apreendida, também a arte recuperará essa
dificuldade em sua expressão. Decerto que, num mundo de fragmentos,
a contradição, a ambigüidade e o inconcluso só podem ser ingredientes
da escrita que sugere infinitos jogos e sentidos como neste texto de
Sylvia Plath e no que foi sugerido pelo de Ana Cristina Cesar: cachoeira
mesmo a deslindar-se em pedra, negrume, eu, poesia – tantas coisas
insolúveis. Pedras, afinal.
Acontece que a chave do poema de Sylvia Plath aparece em ou-
tro ponto, e aí está a curiosidade do jogo poético que ela empreende.
“There is nothing between us”, diz a poeta no último verso – único da
última estrofe – do texto. É claro que ela sabe da medusa que vive na
poesia; é certo que o corpo apreendido por ela se sufoca, mas – e aí
está o jogo ousado de Plath, o “a mais” da alegria de que fala Rosset
– a poeta não tem nada a ver com isso, não há nada entre ela e a me-
dusa. Ela apenas pode cantar nos seus versos o que vê ou sente por
aí. Sim, ela fala muito do que vê por aí, mas inventa mais ainda o que
vê, suplanta-o e funde imagens aparentemente desconexas.
A poesia corta, fere, petrifica, mas não é por causa do poeta.
Diante da poesia de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath, nos depara-
mos com uma escrita, sim, espinhosa, como uma farpa a lançar-se
na defensiva em caso de perigo. Em estado latente, é intimista a tal
ponto que os espinhos repousam e fecham sobre si mesmos. Porém,
ao tentarmos apreendê-la, os espinhos se abrem, para se defender,
para defender a poesia. Essa atitude de defesa pode levar o leitor, em
contrapartida, a se ferir.
Jacques Derrida, em “Che cos’ è la poesia?”, reflete sobre a ima-
gem da poesia associada a um ouriço, podendo ser estendida para a
de Ana e Sylvia:

Enrolado em bola, eriçado de espinhos, vulnerável e perigoso,


calculista e inadaptado (pondo-se em bola, sentindo o perigo na
estrada, ele expõe-se ao acidente). Não há poema sem acidente,
não há poema que não se abra como uma ferida, mas que não
abra ferida também. (DERRIDA, 2001, p. 115)

Porém, parece-nos que Derrida “esquece-se” de remontar à ori-


gem de suas elucubrações sobre o poético: a imagem do porco-espinho
referida por Friedrich Schlegel no fragmento 206 da Athenäum. Ainda

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154
Morrer na vida, viver na poesia

que já tenhamos transcrito o antológico fragmento no primeiro capí-


tulo deste trabalho, façamos justiça ao romântico alemão, citando-o
novamente para que, bebendo na fonte, percebamos a inter-relação
de idéias: “um fragmento tem de ser como uma pequena obra de arte,
totalmente separado do mundo circundante e perfeito e acabado em
si mesmo como um porco-espinho”.
O porco-espinho de Schlegel (ou a versão derridiana do ouriço)
nos faz remontar à discussão filosófica sobre a articulação entre o ficcio-
nal e o real incitada pelo romantismo: ao mesmo tempo que se configura a
obra de arte como autônoma, a ela se incorpora o jogo da arte, a ousadia
indiscreta que revela e desvela: “todos os jogos sagrados da arte são
apenas simulacros distantes do jogo infinito do mundo, da eterna obra de
arte que se forma a si mesma”, insistamos ainda com Schlegel, represen-
tante do movimento que, brilhantemente, percebeu essas nuanças entre
jogo e arte, entre jogo e referencialidade. É por meio do aspecto lúdico
da arte que esta reconverte a realidade em potencialidades, conferindo a
elas a aparência de realidade. Aqui podemos estender para a arte a idéia
da configuração matemática – outra imagem usada por Schlegel – sobre
a potenciação e a radiciação, segundo a qual o eu pode tanto elevar-se
a si mesmo, voltando para si (como na operação multiplicativa das po-
tências), quanto pode sair de si (como na de extração da raiz quadrada).
Nesse ludismo que envolve operações lógicas e uma aparente ilogicidade,
está o principal pressuposto da arte: a alegria, a “força maior” (diria
Rosset) que forma o jogo do revelar-se e do reconverter-se “a mais” em
um ser eu/ser outro, fatal ferida se houver encontro.
Do porco-espinho, podemos voltar à espinhosa Ana Cristina
Cesar, na parte final do poema a que vimos fazendo referência:

Te convenço então. Venço como estúpida


quando peço guarita ao interfone,
então, seco teus cabelos,
ando pela casa facilmente,
quando tiro tua febre,
pego carona no carro da auto-escola,
faço ar de distraída para não confundir
os teus pedais,
te convenço então,
saberias então que hoje, nesta noite, diante desta
gente,

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Anélia Montechiari Pietrani


não há ninguém que me interesse e meus versos
são apenas para exatamente esta pessoa que dei-
xou de vir
ou chegou tarde, sorrateira, de forma que não
posso,
gritar ao microfone com os olhos presos nos seus
olhos
baixos, porque não te localizo e as luzes da ribalta
confundem a visão, te arranco, te arranco do
papel,
materializo minha morte, chego tão perto que
chego
a desaparecer-me, indecência, qualquer coisa de
excessivamente
oferecida, oferecida, me pasmo de falar para quem
falo,
com que alacridade
sento aqui neste banco dos réus, raso,
e procuro uma vez mais ouvir-te respirando
no silêncio que se faz agora
minutos e minutos de silêncio, já. (CESAR, 1998b, p. 166-7)

A longa citação é proposital, já que, após um período simples


e curto, a poeta – em um único e longo período – desata imagens,
a princípio, desconexas, mas enfeixando a temática da morte e da
vida nessa coisa insolúvel que chamamos poesia. Esta parte final do
poema é excelente exemplo de experimentação da forma como reve-
lação da dificuldade de apreender o conteúdo, conforme apontamos
anteriormente acerca dos outros trechos. Compõe-se de imagens
fragmentadas e, ao mesmo tempo, enoveladas surrealisticamente,7
desde um “venço”, resultado de um anterior “convenço”, até se chegar
ao silêncio final e já.
Se a morte do sujeito foi materializada é porque um “tu” foi ar-
rancado do papel. Na palavra, a morte é silêncio. Fora dela, é matéria.
Sem ele, este singular e anônimo, que deixou de vir ou chegou tarde,
só resta o silêncio do indizível, que pode ser – paradoxalmente – o
único veículo de percepção de uma presença. No silêncio da solidão
da escrita, o acusado pelas feridas senta-se alacremente no banco dos
réus e pode ouvir do outro, uma vez mais, a respiração. Neste vago e

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Morrer na vida, viver na poesia

sutil sorriso, está o “verdadeiro a ser dito”: tem nas mãos tudo o que
fere. O “veredicto” é preciso que seja a absolvição do poeta. Seu crime
(se houve algum) foi apenas o de dar vida à morte, o de recolher as
cinzas e – tal fênix – criar e mostrar. Só mostrar: não há nada (nem
pode haver) entre aquilo que fere e aquele que mostra o que fere, como
diz Sylvia Plath, em “Medusa”.

O espaço onde tudo retorna ao ser profundo, onde existe passa-


gem infinita entre os dois domínios, onde tudo morre, mas onde
a morte é a sábia companheira da vida, onde o pavor é êxtase,
onde a celebração se lamenta e a lamentação glorifica, o próprio
espaço para o qual “se precipitam todos os mundos como para
sua realidade mais próxima e mais verdadeira”, o do maior círcu-
lo e da incessante metamorfose, é o espaço do poema, o espaço
órfico ao qual o poeta, sem dúvida, não tem acesso, onde só pode
penetrar para desaparecer, que só atinge unido à intimidade da
dilaceração que faz dele uma boca sem entendimento, tal como
faz daquele que entende o peso do silêncio: é a obra, mas a obra
como origem. (BLANCHOT, 1987, p. 140)

O poeta é que é o responsável por abismar-se, mergulhar pro-


fundamente dentro de si e, nesse sentido, está morto. Se ele cai no
abismo do ser e morre, é por uma conversão do mundo visível ao
sensível do eu, que é, ainda, poeta. Ele se desvia para se encontrar no
eu e no outro. Ele penetra para poder desaparecer e surge ali, naquele
espaço. Nessa origem do poema, há a semente do criador que morre
por sua criatura, mantendo-se, paradoxalmente, nele.

These poems do not live: it’s a sad diagnosis.


They grew their toes and fingers well enough,
Their little foreheads bulged with concentration.
If they missed out on walking about like people
It wasn’t for any lack of mother-love.

O I cannot understand what happened to them!


They are proper in shape and number and every part.
They sit so nicely, in the pickling fluid!
They smile and smile and smile and smile at me.
And still the lungs won’t fill and the heart won’t star.

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Anélia Montechiari Pietrani


They are not pigs, they are not even fish,
Though they have a piggy and fishy air –
It would be better if they were alive, and that’s what they were.
But they are dead, and their mother near dead with distraction,
And they stupidly stare, and do not speak of her.
(PLATH, 1992b, p. 142)

Poderia ser o poeta a “mãe” de seus textos? Mas uma mãe que
os cria e os faz não existir para a vida? Nesse poema de Sylvia Plath,
intitulado “Stillborn”, convém ressaltar, ela ironiza o ato purista e
formal de escrever um texto que, no caso, já nasce morto, está preso
num vidro de picles, sorrindo para ela, mas sem bater o coração: “It
would be better if they were alive, and that’s what they were./But
they are dead.” Se, na rica ambigüidade da poética de Plath, eles de-
veriam estar vivos, mas pela má-formação tiveram um fim no início,
é de se pressupor que – para a sua travessia – um “algo a mais” deve
haver no texto. Texto que precisa receber da vida, renascer para a
vida, com a morte. Texto que cria, recria, renasce das cinzas de uma
mãe-fênix. Texto de garras afiadas que renasce quantas vezes forem
necessárias. Texto que merece ser louvado pela luta da vida que se
repete para não morrer.

Notas
1 A palavra ficção é aqui tomada em sentido amplo e não como sinônimo de nar-
rativa romanesca. Relembremos Wolfgang Iser que designa por ficção – e é nesse
sentido que tomamos o termo – o mundo do “como se” que caracteriza o texto
literário: “Assim se revela uma conseqüência importante do desnudamento da
ficção. Pelo reconhecimento do fingir, todo o mundo organizado no texto literário
se transforma em um como se” (ISER, 1983, p. 400, grifos do autor).
2 Em tradução de Paulo Henriques Britto: “Agora veja só quem/ Cai de quatro ali
na esquina/ E vem correndo em direção à sua mãe./ Disputando seus despojos,
com lábios/ Arreganhados, como os dos cães,/ Em posições inauditas. Se tentar
protegê-la/ Eles derrubam você também,/ Como se fosse um pedaço dela./ E vão
achá-la tão suculenta/ Quanto ela. Tarde demais/ Para salvar o que sua mãe era”
(HUGHES, 1999, p. 393).
3 “Aqui meus crimes não seriam de amor”, escreve Ana Cristina (CESAR, 1998b, p.
127).
4 A expressão foi utilizada por Lucia Helena no ensaio citado (Cf. HELENA, 1987, p. 84).
5 Consideramos aqui a distribuição temporal dos textos de Ana Cristina Cesar, ela­
borada por Armando Freitas Filho, em Inéditos e dispersos.
6 Desejamos aqui enfatizar que a morte não é o fim do existente e sim do vivente
e, assim, salientar que o que distingue o homem do animal é que este vive a vida
como vivente apenas; viver a vida como existente é pensar a morte. E esse caráter
é humano, exclusivamente humano.

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7 Ao referirmo-nos ao exercício poético de Ana Cristina como surrealista, queremos
Morrer na vida, viver na poesia

dizer que ela aproveita a senda aberta pelo surrealismo na exploração da ima­
ginação e do inconsciente para buscar comunicação entre a realidade visível e a
invisível. A poeta, nessa busca, pauta-se na desformalização e na espontaneidade
de dizer alternativamente a sensibilidade e executar livremente o exercício da imag-
inação, inclusive também por uma escrita que se faz tão necessária – ou automática
– pela rapidez com que são proferidas as sentenças, estão desarrumadas as frases
nos versos prosaicos, são confrontadas as imagens oníricas, alucinadas estadas em
espaços diferentes (casa, carro, festa, papel, tribunal), para citar como exemplo.

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Tra(u)mas de ana cristina cesar e sylvia plath

O lugar e o fora-do-lugar da arte; o tempo e o fora-do-tempo da arte

“O poeta goza do incomparável privilégio de ser,


à sua vontade, ele mesmo e outrem.”
(BAUDELAIRE, 1980, p. 39)

As palavras de Baudelaire servem-nos como um consolo – ainda que


tardio – para a condição do poeta expulso da República e condenado à
marginalidade. Na comunidade ideal, não há lugar para a phantastiké, que
apenas serve para esconder a verdade. Por negar a episteme, a rival da filo-
sofia é fraude. Se a cidade a acolhesse em seus muros, ela seria governada
pelo prazer e pela dor, em lugar da lei e do princípio.
De certa forma, em resposta ao anátema de Platão, ao longo dos
tempos, os próprios poetas foram construindo sua apologia às letras. Isto
os fez permanecer. Os fora-do-lugar tornaram-se fora-do-tempo. Tanto que,
ainda hoje, teóricos da literatura, críticos literários, poetas permanecemos
na busca de explicações para o seu papel na sociedade.
Se, segundo a volatilidade do mundo capitalista, que prega o substi-
tuível, o novo, a aceleração, a inutilidade da poesia está mais do que com-
provada, é ela mesma quem – na contramão, como sempre, à margem de,
inevitavelmente – responderá, com a lentidão que lhe é peculiar, por sua
perenidade.
Que importância há em estudar a poesia de duas mulheres que se fo-
ram tão cedo, deixando tantos inéditos e tantos (a serem) ditos? Que poder
há nessa poesia, que a faz permanecer? Que poder há na poesia?

Os poetas são os hierofantes de uma inspiração inapreendida, os es-


pelhos das sombras gigantescas que o futuro lança sobre o presente,
as palavras que exprimem o que eles não entendem, as trombetas
que chamam à batalha e não sentem aquilo que inspiram: a influência
que não é movida, mas que move. Os Poetas são os legisladores não
reconhecidos do Mundo. (SHELLEY, 2002, p. 199)

Experiencia do limite.indb 159 17/2/2009 16:50:57


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Tra(u)mas de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath

Seguindo a pista deixada pelo idealismo romântico de Shelley,


em trecho que faz parte do apologético ensaio “Uma defesa da poesia”,
de 1821, podemos reconhecer na poesia o dom profético e tomar a
figura simbólica da pitonisa para também caracterizar Ana Cristina
Cesar e Sylvia Plath. Na dimensão atemporal da lírica, na visão profé-
tica deslocada do tempo ou que o desloca, o poeta/profeta é capaz de
olhar passado, presente e futuro. Isso nos lembra a figura mitológica de
Jano. Com uma face voltada para a frente e outra para trás, conhecedor
do passado e adivinho do futuro, o poeta “não somente contempla
intensamente o presente como ele descobre as leis segundo as quais
as coisas presentes deveriam ser ordenadas, mas também o futuro
no presente, e seus pensamentos constituem as sementes da flor e o
fruto da época mais longínqua” (SHELLEY, 2002, p. 173-4).
Infelizmente, porém, e muitas vezes, poetas tornam-se Cas-
sandras da vida e da arte. Mesmo não reconhecidos, legislam com o
poder que lhes cabe: o poder da palavra poética. Um poder estranho,
decerto, que inventa respostas à angústia, projeta desejos de liberda-
de, cria sentidos que coincidem com a dor, busca atalhos que desviam
do veio consumista que outros poderes impõem. Tentando encontrar
saídas possíveis, na condição de si mesmo e outrem, o poeta desbrava
caminhos e desmonta sistemas, como nos diz Shelley:

Um poeta é um rouxinol, que na escuridão canta para alegrar


sua própria solidão com doces sons; seus ouvintes são como
homens arrebatados pela melodia de um músico invisível, que
se sentem comovidos e tranqüilizados, sem que, todavia, saibam
como nem por quê. (SHELLEY, 2002, p. 177).

Desde o romantismo e a revolução que promoveu nas artes e


na sociedade, supõe-se que nem os próprios poetas sabem por que
lutam, por que dizem. Apenas o fazem. Nesses tempos ditos pós-
modernos, em que, supostamente, perderam-se as grandes narrativas,
em que outra grande narrativa se impôs pelo analfabetismo político,
do desenvolvimento desigual da economia e da desmemoriação,
em que anunciaram o fim da história, em que até mesmo a palavra
foi determinada pelo neo-sagrado – o mercado –, por que escreve o
poeta? Que “utilidade” tem o poema? É inútil a poesia? Lemos para
encontrar o sonho no caos? Escrevemos para trazer o prazer numa
época adversa?

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Anélia Montechiari Pietrani


Em vão, insistem alguns, plantamos uma flor no asfalto. Que
valor tem essa flor que germinou em tal lugar tão adverso? A sub-
jetividade mais radical e mais significativa do ser humano está ali
plantada. Angústia, morte, amor, opressão, pressão, sentimentos
comuns, são dialeticamente expostos pela palavra poética: se seus
ouvintes traduzem um misto de comoção e tranqüilidade, isso advém
do esforço do artista moderno que ousou encarar o amontoado de
ruínas do passado, enquanto uma terrível tempestade o impelia para
um futuro que não desejava, pois – por ser ele mesmo e outrem – pre-
cisava tornar e recolher o caos,1 conforme nos diz Benjamin a partir
do alegórico anjo de Paul Klee.
Herdeira do poeta-anjo torto, anjo da catástrofe e da melancolia,
Ana Cristina Cesar, no texto a seguir, convida-nos a pensar na face de
Jano que o fazer poético assume:

Eu penso
A face fraca do poema/ a metade na página
Partida
Mas calo a face dura
Flor apagada no sonho
Eu penso
A dor visível do poema/ a luz prévia
Dividida
Mas calo a superfície negra
Pânico iminente do nada. (CESAR, 1998b, p. 88)

Mostra-nos a poeta as tramas de uma poesia partida: a face do-


lorida do poema entre o falar no texto e o calar na vida. Ali, nas letras,
aparece a face fraca, mas entre as letras – no calar – se esconde a dura
face da superfície negra, do nada. Para que se mostrasse, foi preciso
ocultar-se. Morre-se e escreve-se. Escreve-se e vive-se.
Nessa intermitência sutil de sentidos, eu/outro, vida/arte, escri-
ta/morte, é que gostaríamos de refletir sobre o poder da (e na) poesia
de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath. Nela, a experiência (do) limite –
que amplia a relação entre escrita, vida e morte – é tratada não só como
problema estético, mas também como questão histórico-filosófica. Isso
porque a complexa relação entre literatura e morte, entre literatura
e representação, é delineada na obra das poetas em estudo, entre
outras possibilidades já apresentadas, como tematização da crise da

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162
Tra(u)mas de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath

modernidade instaurada pelo desencantamento e pelo peso trágico


que o homem carrega na procura existencial em um mundo fora dos
eixos; tensão que persegue os textos da modernidade e ainda os da
pós-modernidade.
Vazados das lacunas e instabilidades de um moderno pós-
moderno, há nos textos de Ana Cristina e Sylvia Plath uma trajetória
de escrita: o cotidiano, o corpo, a poesia em fragmento, os paradoxos
da modernidade e da pós-modernidade; talvez confissão, um meio de
ficção: um errar (estar-se) entre a vida e a arte, entre a vida e a morte,
na esfera do mal-estar: o mal-estar da modernidade (para fazermos
eco ao texto seminal de Freud), que pode ser estendido ao da pós-
modernidade, conforme pista deixada por Zigmunt Bauman em O
mal-estar da pós-modernidade, livro que avança, temporalmente, as
conclusões freudianas.
Nessa errância, vale a pena ressaltar a imagem de insatisfação,
confinamento e abismo da escrita e da(s) identidade(s) presente no
excerto do texto “Elmo”2 (criado a quatro mãos, pois escrito por Sylvia
Plath e traduzido por Ana Cristina):

Eu conheço o fundo, ela diz. Eu conheço com minha mais/


profunda raiz:
É o que tu temes
Eu não temo: estive lá.

É o mar o que tu ouves em mim,


Sua insatisfação?
Ou a voz do nada, tua loucura?

Nesse sentido, observa-se na obra das duas autoras mortas


prematuramente um discurso poético em que se percebe a volta
de um certo tônus romântico nesse “mal” que o ronda. Podemos
pensar, ainda, em uma espécie de neo-romantismo nostálgico: crí-
tico, irônico e melancólico. Termos aqui utilizados no sentido que
lhes atribui a análise de Michael Löwy em Redenção e utopia, que,
tomando como ponto de partida o caráter pregnante das reflexões
dos pensadores judeus da Europa Central – dentre eles Gustav
Landauer, Gershom Scholen, Ernst Bloch, György Lukács, Walter
Benjamin, para citar alguns –, considera que a “afinidade eletiva”
entre fenômenos aparentemente díspares – a utopia romântica e o

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Anélia Montechiari Pietrani


messianismo restitucionista – fez surgir uma nova reflexão social
e artística, a intelectualidade judaica, sob uma dimensão cultural
neo-romântica de crítica à sociedade industrial-burguesa, a que se
vincula o caráter melancólico inerente à modernidade (que esten-
deríamos a uma pós-modernidade). Não à toa, lembra Löwy, muitos
dessa geração escolheram o suicídio, como Tucholsky, Toller, Wolfen-
tein, Carl Einstein, Hasenclever, Benjamin... Para o autor brasileiro,
“judeu um tanto errante”, como se define, e radicado em Paris, esta
teria sido uma geração que ficou na história: a história “dos vencidos,
marginais na contracorrente de sua época, românticos obstinados
e incuráveis” (LÖWY, 1989, p. 10).
Ou, como já sugeriram, entramos no mundo dos neobarrocos:
“uma ópera de vozes esmagadas, solidões monumentais, homens
caídos em espaços claustrais, de onde se escapa pela fuga, desenraiza-
mento, morte ou loucura, sem nenhuma possibilidade de reconciliação
com Deus” (LOPES, 1999, p. 29), recuperando-se o olhar saturnino
benjaminiano acerca da alegoria que monta (e desmonta) o anjo da
catástrofe e da melancolia: “[a]s alegorias são no reino dos pensa-
mentos o que são as ruínas no reino das coisas. Daí o culto barroco
das ruínas” (BENJAMIN, 1984, p. 200).
Ou, então, perdemo-nos em meio às ruínas de um processo de
modernização que põe em evidência as aporias da modernidade. Por
um lado, a cisão entre Estado e Religião inaugura um novo contrato
social: a soberania divina é substituída pela soberania do Estado que
legislará, executará e julgará por um eu; por outro, a gênese do indi-
vidualismo advém da explosão de “eus”, que estão agora em solidão
e se tornaram apenas fragmentos de um todo em dissolução. Nessa
ambiência, já registrada no “sol negro” de Nerval,3 reina o “Deus sem
D” de que falou Llansol,4 em que, ao depor-se a onipotência divina,
irrompem-se eus em estilhaços e isolados.
Trata-se de um eu que não mais se identifica com o herói épico,
mas se coloca diante de sua dimensão e condição humanas, demasia-
damente humanas. A desmontagem de um teos instiga o sem-lugar da
aventura do herói épico, que não tem mais sentido; a viagem, agora,
não é mais para fora, mas para dentro.

Quem é esse rosto


Assassino em seu estrangular de ramos?

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Tra(u)mas de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath

Seu beijo ácido de serpente


Petrifica o desejo. São lentos erros isolados
Que matam, que matam, que matam.5

Como quer que seja chamado o sentimento nuclear dos filhos


de Saturno, “mal-estar”, “nostalgia romântica”, “melancolia barroca”,
ruínas de um “Deus morto” e “sem D”, tais denominações podem ser
vistas como uma forma de contextualizar a subjetividade, de transpor
a expressão individual lírica em direção ao universal. Retematizando
esses sentidos e sentimentos, o texto de Ana Cristina Cesar e Sylvia
Plath, dentre outras possibilidades, representa a tradução de uma
apreensão e compreensão dramática da existência. A respeito dos
poetas marginais da década de 1970 no Brasil, já havia considerado
Heloisa Buarque de Hollanda, em texto de apresentação da antologia
26 poetas hoje por ela mesma compilada, na qual inclui a poesia de
Ana Cristina: “[o] sentido da mescla trazida pela assimilação lírica
da experiência direta ou da transcrição de sentimentos comuns fre-
qüentemente traduz um dramático sentimento do mundo” (HOLLANDA,
1998, p. 11, grifos nossos).
Problematizando as relações entre linguagem e realidade
por meio do ficcional e desmistificando a visão determinista que
restringe a literatura a uma representação “tal qual” do real, a obra
dessas poetas nos faz pensar a lírica dentro de um contexto mais
amplo. Isso implica supor que a trama lírica de um texto literário
não se dissocia da trama e dos traumas do social, já que é forma de
expressão e construção de realidades individuais, estéticas, sociais,
não só conforme sugerem as palavras de Baudelaire utilizadas como
epígrafe a este segmento, mas também de acordo com o que reflete
Theodor Adorno no antológico ensaio “Lírica e sociedade”: “Só
entende aquilo que o poema diz quem escuta em sua solidão a voz
da humanidade” (ADORNO, [19- -], p. 194). Vale também relembrar,
nesse sentido, a reflexão do jovem Lukács, em A teoria do romance,
que citamos anteriormente neste trabalho, mas é pertinente também
neste momento:

também a subjetividade lírica conquista para seus símbolos o


mundo externo; ainda que este seja autocriado, ele é o único
possível, e ela, como interioridade, jamais se opõe de maneira
polêmico-repreensiva ao mundo exterior que lhe é designado,

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Anélia Montechiari Pietrani


jamais se refugia em si mesma para esquecê-lo, mas antes,
conquistando arbitrariamente, colhe os fragmentos desse caos
atomizado e os funde – fazendo esquecer todas as origens – no
recém-surgido cosmos lírico da pura interioridade. (LUKÁCS,
2000, p. 119-20)

Ainda que corramos o risco de levantar Platão da sepultura,


persistiremos em nossa busca acerca da importância da tarefa do
poeta – aquele que insistia em perder-se nas impressões enganosas
das sombras da caverna – exatamente porque sua techné não é cópia
exata e é, por isso, talvez, e por Platão certamente, o fora-do-lugar
que se tornou fora-do-tempo. Ainda que reconheçamos o espaço da
marginalidade que coube ao poeta, fiquemos com a confluência do
idealismo romântico e das orientações revolucionárias – quer estéticas
quer históricas – sobre o poeta e seu papel.
É emblemático, nesse sentido, o poema “Sculptor”, escrito por
Sylvia Plath em 1958, com uma dedicatória, certamente não casual,
a Leonard Baskin (1922-2000), escultor norte-americano judeu que
apresenta como uma de suas obras públicas a escultura do Memo-
rial do Holocausto no primeiro cemitério judeu em Ann Arbor, em
Michigan.
Enquanto a poeta descreve o manuseio do esculpir como mais
sacerdotal que as mãos de um sacerdote, o leitor se depara com a
descrição de um anjo (possivelmente o “Anjo triste”, uma escultura
de Baskin em que, conforme nota de Hughes, Plath teria se inspirado
para escrever o poema) nu, que bloqueia e molda a luz frágil, e, de
braços cruzados, assiste ao embaraçoso eclipse do mundo vazio de
sentidos, imortalizado e empedernido na escultura.

[...] Our bodies flicker


Toward extinction in those eyes
Which, without him, were beggared
Of place, time, and their bodies.
Emulous spirits make discord,

Try entry, enter nightmares


Until his chisel bequeaths
Them life livelier than ours,
A solider repose than death’s. (PLATH, 1992b, p. 92)

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Tra(u)mas de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath

Esse anjo parece-nos impotente diante do que vê e diante da


transformação efetuada pelo cinzel do escultor: a arte se manifesta
como aquela que lega vida e repouso aos corpos que se extinguem a
nossos olhos, olhos de anjos empedernidos não só no mármore frio da
escultura. Ali, em silêncio, solidificam a dor, a dor da vida mais vivida,
mais do que o faria a própria morte. Qualquer semelhança com o anjo
de Klee pode não ser mera coincidência.

Poesia e poder: por uma lírica social

“É bom alguma vez lembrar aos felizes deste mundo, ao


menos para lhes humilhar por um instante o orgulho tolo,
que há felicidades superiores à deles, mais vastas e mais
requintadas.” (BAUDELAIRE, 1980, p. 39)

Onde se situa a poética de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath em


meio a este mal-estar? Pensando no lastro de força e de reflexão que
o texto literário instaura, não convém ofuscar a carga de historicidade
que o ronda. No caso de Sylvia Plath e Ana Cristina Cesar, ao revisitar
os caminhos de sua produção poética, enveredamos por dois momen-
tos importantes da história da sociedade mundial e brasileira.
Nos Estados Unidos e na Europa dos anos 1950/60, com o início
da Guerra Fria, a partir de 1947, Sylvia Plath convida-nos a pensar so-
bre o desencantamento marcado pelo espírito de confusões, buscas,
recriações que advêm com a proliferação dos “pós” e “des”. A estabili-
zação pós-guerra – seguida pelo período de mais rápido crescimento
internacional da história do capitalismo – proclama a recriação de
um sistema baseado na formação de uma sociedade pós-industrial,
a partir do princípio pós-capital em que a tecnologização assume,
de vez, o lugar dos capitais financeiro, industrial e comercial, em um
processo de suposta centralização que nasce com os olhos abertos
para o descentramento: a globalização produzida pelo escoadouro
consumista que esgarça fronteiras entre espaços, quer nacionais
quer sociais. Desfila, vitorioso e em carro triunfante, o capitalismo,
enquanto a desideologização oferece-lhe a coroa e o cetro.
Também desfilam, aos olhos da filha de um nazista e de uma
judia, as imagens da Segunda Guerra no decorrer do fantástico poema
“Daddy”, de Sylvia Plath. Nele, segundo a explicação da própria Plath em
texto preparado e lido na rádio BBC,6 a filha une e paralisa a força dos

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Anélia Montechiari Pietrani


dois, enquanto precisa aprender a lidar com as lembranças e esqueci-
mentos que restaram da terrível imagem, a figura alegórica do pai.

I have always been scared of you,


With your Luftwaffe, your goobledygoo.
And your neat mustache
And your Aryan eye, bright blue.
Panzer-man, panzer-man, O You.
(PLATH, 1992b, p. 223, grifos do autor)

Recorrendo a imagens da Alemanha nazista, Dachau, Auschwitz,


Belsen, Luftwaffe, Aryan, Panser, swastika, Meinkampf, a filha nos diz
que teria de matar o pai, mas ele morreu antes que ela tivesse tempo.
A explicação talvez estivesse na terrível descrição (“Marble-heavy, a
bag full of God,/Ghastly statue with one gray toe”), que se confirma
na imagem dualista do pai: ter medo de você, porque você é Você.
Divinizado e, ao mesmo tempo, infernal, ela nos apresenta: “Every
woman adores a Fascist,/The boot in the face, the brute/Brute heart
of a brute like you.”
Além da beleza da (quase) homofonia entre boot e brute, convém
discriminar as ligações metafóricas que dela advém: bota, pé, raiz,
origem nos remetem à cidade do corredor polonês de onde tantos
outros germanos vieram com sua língua obscena, que é preciso deixar
presa em suas mandíbulas (“Put your foot, your root,/I never could talk
to you,/The tongue stuck in my jaw”); chute na cara, coração bruto,
novelo de guerras, nazista com um estilo Meinkampf hitleriano, eis o
modelo de pai que ela construiu ou impuseram-lhe que construísse.
Nas duas estrofes finais do poema, recupera-se a imagem dupla
do pai:

If I’ve killed one man, I’ve killed two


The vampire who said he was you
And drank my blood for a year,
Seven years, if you want to know.
Daddy, you can lie back now.

There’s a stake in your fat black heart


And the villagers never liked you.
They are dancing and stamping on you.

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Tra(u)mas de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath

They always knew it was you,


Daddy, daddy, you bastard, I’m through. (PLATH, 1992b, p. 224,
grifos do autor)

De fato, são muitas as evidências que nos fazem pensar no pai


real de Plath, inclusive se nos pautarmos na acusação que desfere a
ele em uma das páginas de seu diário, em meio a tantas que lança
contra sua mãe (assassina do pai, para citar a mais branda): “Ele
se recusava a consultar um médico, não acreditava em Deus e no
recôndito do lar idolatrava Hitler” (PLATH, 2004, p. 498). No entanto,
torna-se interessante fugir um pouco da “paternidade” psicanalítica
deste texto, na referência ao complexo de Electra, e lê-lo a partir da
perspectiva daqueles que se calaram por imposições de outrem, até
mesmo por conta da guerra: os filhos órfãos da guerra não são apenas
os judeus, são muitos os mutilados. Em página antológica de seu diário,
escrita quando ainda tinha 18 anos, Plath retoma as imagens da bota,
da brutalidade e do poder da força e da opinião:

Não creio em Deus como uma espécie de pai do céu. Não acre-
dito que os simples herdarão a terra. Os simples são ignorados
e espezinhados. Eles se decompõem no solo ensangüentado da
guerra, dos negócios e da arte; apodrecem sob a terra morna
após as chuvas da primavera. Os ousados, cruéis, cheios de
vida, revolucionários, poderosos de corpo e alma, estes mar-
cham sobre a carne mole pacata que jaz sob o tacão de suas
botas. (PLATH, 2004, p. 60)

Se, no poema citado, outros vêem no pai da moça sem voz um


vampiro que merece receber a estaca no peito e ser pisoteado pelos
do vilarejo como se estivessem numa dança; nesse trecho de diário,
também as botas do poderoso e do vencedor tornam em sangue e
morte o campo dos abatidos. Sem exagero, poderíamos concordar
com George Steiner, que chamou “Daddy” de o “Guernica” da poesia
moderna.7
De todo modo, de nada adiantou matar o pai, o nazismo, um
bastardo8 de fato, imagem com que a poeta termina seu texto. Numa
espécie de “banalização do mal”, digamos, Plath ousa falar o nome
do diabo e, ainda por cima, o coloca como pai, que não precisa ser
apenas (e, de fato, não é) seu pai.

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Este texto de Plath nos lembra, no entanto, que chegamos aos
anos em que outro pai triunfa, sob a propaganda infalível do exter-
mínio da águia (curioso é que, agora, desfazem-se os laços feitos
durante a Segunda Guerra com os soviéticos e se inicia outro pro-
cesso propagandístico de desmantelamento): é preciso alardear aos
quatro cantos do mundo, a qualquer custo, o triunfo do capitalismo.
O que não se esperava, talvez, é que os filhos da guerra saíssem às
ruas conclamando aos gritos seus direitos eternos: os parricidas, no
entanto, continuarão livres, e o silêncio se abaterá sobre os órfãos,
principalmente entre aqueles da América Latina.
No início da Guerra Fria, o primeiro mundo está, de certa for-
ma, estável social e politicamente, vivendo sob o medo da potencial
intervenção bélica do segundo mundo. Sobre o terceiro mundo,
no entanto, pode-se dizer que muito poucos foram os países que a
atravessaram sem revolução, golpes militares, conflitos armados.
Obviamente que essa instabilidade era vista pelos Estados Unidos
como o resultado de uma identificação com o comunismo soviético.
No entanto, a politização de uma geração estudantil rebelde – que
mais tarde seria recrutada para a profissão acadêmica – estava longe
da ortodoxia de Moscou e buscava os inspiradores radicais: Marx,
os ícones não-stalinistas e Mao. Os estudantes, “sendo membros das
classes educadas, muitas vezes filhos da classe média estabelecida,
e – quase em toda parte, mas sobretudo no terceiro mundo – base de
recrutamento para a elite dominante de suas sociedades, não eram tão
fáceis de metralhar quanto as classes mais baixas” (HOBSBAWM, 2003,
p. 431); porém, era preciso frustrar essas esperanças revolucionárias.
De fato, é o que acontece.
No Brasil da década de 1970, em que se insere a produção
poética de Ana Cristina Cesar, em meio aos anos da ditadura militar
e da recrudescência das formas de repressão política e artística,
Ana Cristina, mesmo não refletindo diretamente sobre isso, abre sua
lírica, como poucos, para a articulação entre lirismo, existência e
experiência histórico-social. Os anos 1970 representam um momento
de frustração, mas, paradoxalmente e talvez por esse motivo, reve-
lam intenso questionamento e arrefecimento de posições, por um
lado, e, por outro, florescimento cultural e defesa de pontos de vista
revolucionários, marcando – tanto na arte quanto na sociedade – a
ambigüidade da concepção (pós-)moderna. Este será o momento de
preparação para a chamada geração Coca-Cola, que, gradativamente,

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Tra(u)mas de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath

se instalará e contribuirá para a plebeização, no sentido de Jameson,


do mercado: o Deus da modernidade sacraliza-se na pós-modernidade.
E isto – salientemos – ainda antes da vitória total do neoliberalismo
na Guerra Fria, que acontecerá somente no final dos anos 1980, não
só com a derrocada mas com o desaparecimento de seu adversário
comunista soviético.
A cultura, a arte e a literatura recorrerão à complexificação
desse momento em que o pós-sagrado será em definitivo legitimado,
realçando vários dos meandros “marginais”, o que será uma carac-
terística fundamental, como defendem alguns, de um certo pós-mo-
dernismo: em oposição a um sistema totalizante ou homogeneizante,
reiteram-se, na (ex)centrididade pós-moderna, segundo expressão de
Linda Hutcheon, os conceitos modernos de fragmentação, diferença
e heterogeneidade. De fato, o sentido mais profundo do triunfo do
capitalismo está na propalada derrocada das alternativas políticas,
na falácia que se construiu em torno da crença de que o capitalismo
é o único caminho a se tomar, a única possibilidade para a economia
do globo. Essa visão inaugurará “algo como o pós-modernismo”, já
que, para o modernismo, era essencial a existência de outras ordens
sociais, como observa Perry Anderson, ao mencionar observação de
Jameson de que a modernidade chega ao fim ao perder todo contrário
(Cf. ANDERSON, 1999, p. 108). Contrário, aqui, é entendido no sentido
de dicotomia, uma vez que vivemos o momento em que se abrem ca-
minhos – apesar da insistência no caminho único – para um festival
de “contrários”.
Nesses “momentos dessublimadores, culturalmente revolucio-
nários” (MORICONI, 1996, p. 8) de nossa cultura, a poesia brasileira
rejeita a pompa e a solenidade. Para chegar ao público, a literatura-
mimeógrafo estampa-se em folhetos, jornais, revistas, muros, postes,
banheiros públicos, explode do alto de edifícios, viaja de mão em mão
nos bares, nas feiras, nas praias, nas portas de teatro e cinema, ou
seja, está fora dos circuitos comerciais do livro. Se a chamada poesia
marginal dos anos 1970 é entendida por muitos como uma poética
do cotidiano, do antiintelectualismo, da espontaneidade, preferimos
vê-la na dialética desses mesmos conceitos: 9 na impossibilidade de
fala, a fala cotidiana; na restrição de alcance público, a aproximação
corpo-a-corpo; na seriedade do academicismo literário e da panfle-
tagem revolucionária, o desbunde de uma escrita que, no caso de
Ana Cristina, é investigação, criação e crítica. Esta é uma escrita que

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Anélia Montechiari Pietrani


conjuga em suas tramas os traumas de uma sociedade tomada num
golpe: a literatura pode não ser uma arma de guerra, mas é uma arma
poderosa do pensamento. Colhe, como diria Lukács, naqueles tempos
modernos, os fragmentos do caos atomizado e os funde.
É elucidativa acerca disso a opinião da Ana Cristina Cesar
ensaísta que vê, na forma de apreensão da realidade, o fragmento
como um procedimento literário e estilo. Referimo-nos ao texto “Li-
teratura marginal e o comportamento desviante”,10 em que ela define
como “percepção fragmentária” o elemento distintivo da produção
da rotulada “poesia marginal”, marcada, segundo a ensaísta, por um
comportamento desviante e uma “nova sensibilidade”, que relaciona
viagem (incluindo-se, aqui, a das drogas), artista e loucura:

Na verdade, este gesto de recolher partes do real se manifesta


como forma de apreensão de mundo extremamente vinculada
a uma postura geral da vida. Mais do que uma observação, em
que sujeito e objeto estariam delimitados, a fragmentação é
sentida no nível das próprias sensações mais imediatas. Mais
que um procedimento literário, a fragmentação é nesse grupo
um sentimento do mundo. (CESAR, 1999b, p. 222)

Convém insistir que, para chegar a essa conclusão drummondia-


na, Ana Cristina deseja mostrar que a literatura – e, nesse caso mais
especificamente, a literatura marginal – compreende um tipo de arte
que conduz, de forma decisiva, as relações estéticas para o centro das
experiências existenciais, já que concretizam esse comportamento
desviante na poesia a partir também de uma vivência e de um mundo
fragmentários. Nesse sentido, ainda que a crítica contemporânea em
geral prefira incluir Ana Cristina na categoria de marginal da poesia
marginal, podemos crer na Ana marginal de um circuito institucional,
a Ana marginal de um comportamento desviante, a Ana, também,
fragmento. Com isso, podemos mostrar que a poeta-ensaísta defen-
de, na experiência e no seu exercício poético, a confluência entre
a fragmentação e o “sentimento do mundo” que se faz e desfaz na
volatilidade pós-moderna.
Por exemplo, retomando um texto citado no primeiro capítulo
deste trabalho, “Poema óbvio”, Ana Cristina Cesar declara não ter ra-
zão de ser nem finalidade própria, captando, desse modo, uma “nova
sensibilidade” pós-moderna e marginal. De fato, ao fazer tal declara-

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Tra(u)mas de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath

ção, ela instaura o paradoxo da linguagem e de seu (suposto) poder.


Ironicamente, tematiza a complexidade do poder da Poesia que, na
confluência entre conteúdo e forma, abarca um tempo e uma história
repleta de vazios, estilhaços e ruínas. Caberia ao poeta, mesmo sem
o reconhecimento, conforme pontuou Shelley, mesmo sem um lugar
destinado, conforme determinou Platão, caberia, repitamos, ainda
um compromisso: o de ouvir e fazer ouvir, por meio de sua memória-
invenção e em solidão, a voz da humanidade, retomando, assim, a
afirmação de Adorno. Quanto a isso, nos diz Ana em “Psicografia”:

Também eu saio à revelia


E procuro uma síntese nas demoras
Cato obsessões com fria têmpora e digo
Do coração: não soube e digo
Da palavra: não digo (não posso ainda acreditar
Na vida) e demito o verso como quem acena
E vivo como quem despede a raiva de ter visto.
(CESAR, 1998b, p. 81)

Também aqui, Ana Cristina reitera a dificuldade do poeta em


ocultar-se/revelar-se. Silenciando a memória e o sentimento (lem-
bremo-nos do sentido do radical erudito de coração) e demitindo a
palavra, pode viver, porém trata-se de uma vida em que não acredita
(ainda). Uma vida em que o sujeito – desejoso de estar à revelia – pode
despedir-se da raiva de ter visto, mas não o poeta: este apreende não
só a lógica circundante, mas também a que não há, pois vê com olhos
críticos a descrença, a dessacralização, a desconstrução, a desideo-
logização, o desencantamento dessa dita pós-modernidade, rica da
proliferação dos “des”.
Tal preocupação marca também muitos textos de Sylvia Plath.
Vejamos, por exemplo, a questão da fragmentação em The colossus,
de 1959, em que a estátua em destroços remonta à figura do pai:
oráculo, deus, mas também ruína, numa clara alusão ao vigoroso e
histórico fórum romano. É sempre curioso que Plath, assim como
Ana, busque na experiência da escrita, marcando-a com o selo da
melancolia, resposta para a desconstrução como um tecido para o
corroído e esgarçado, ainda que, muitas vezes, pareça ficar apenas
no questionamento. O trecho do poema de 1959, “I shall never get you
put together entirely,/Pieced, glued, and properly jointed” (PLATH,

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1992b, p. 129), pode responder ao questionamento com que a poeta
termina o poema “Conversation among the ruins”, de 1956: “What
ceremony of words can patch the havoc?” (PLATH, 1992a, p. 21).
Talvez, o tecido que se forme seja a própria ruína do colosso, que se
configura no espanto do sujeito ao buscar uma resposta para a perda
evocada: “It would take more than a lightning-stroke/To create such
a ruin” (PLATH, 1992b, p. 130).
No entanto, mesmo como ruína, a estátua destroçada e colossal
permanece ao longo dos tempos, “pithy and historical as the Roman
Forum”, assim como também a escrita, feita de tecidos retalhados,
sim, mas cheia de vigor. Temos procurado descartar, neste trabalho,
a fixidez da correspondência entre o conteúdo de um poema e a
mera expressão individual. Aproveitando as correlações entre ruína,
melancolia e “sentimento de mundo”, convém insistirmos na deslimi-
tação do tempo a que pertence uma obra. Obviamente que, ao tratar
do poeta fora-do-tempo, não nos referimos ao caráter a-histórico da
lírica. Ao contrário, pensamos no fato de que, mesmo que porte as
marcas de uma época e seja carregada de historicidade, ela consegue
transcendê-las e lançar-se para além de seu próprio tempo. Uma obra
não é o presente ou foi o passado, ela sempre ultrapassa e, por isso,
permanece, mesmo como ruína de um tempo.
No caso de Ana Cristina, por exemplo, de fato, seus textos
nascem pós-engajamento anos 1960 e, dessa forma, como podem
pensar alguns, ficariam à margem do discurso didático que pregava
a tomada do poder e a eficácia revolucionária da palavra poética. No
entanto, olhados de perto, nem por isso deixam de revelar-se formas
de contestação e resistência cultural. Se, de forma tão categórica, o
jornalista da Folha de S. Paulo, Marcos Augusto Gonçalves, em tex-
tos em que analisa o livro A ditadura encurralada, de Elio Gaspari,
já disse que a “carioca (que mais parecia uma inglesa)”, símbolo da
geração dos anos Geisel, da cultura do mimeógrafo e das edições
alternativas (que “até aglutinava algum público”), “detestava a gros-
sura da cultura de esquerda” e, por isso, “causava-lhe enjôos a incli-
nação naturalista de alguns escritores e artistas, sempre dispostos
a besuntar arte de povo” (GONÇALVES, 2004, p. E6), é porque ainda
hoje se insiste na relação direta e imediata entre arte e sociedade,
é porque ainda se lê a poesia, apenas ou na maior parte das vezes,
em sua visibilidade. Assim, o poeta será sempre aquele esquecido
na marginalidade e trancafiado na torre de marfim, cada vez mais

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Tra(u)mas de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath

marcado, paradoxalmente, pela diferença de classe e pela linguagem


que o separa do “povo”.
É com esse sentido que gostaríamos de entender a poesia car-
regada de tom melancólico, desencantamento, tormentos, morte. É
esse porão subterrâneo e ultra-romântico que gostaríamos de invadir
e, nele, buscar a cisão entre vida e morte. É esse imaginar em delírio
que ousaríamos apontar, tanto na obra de Ana Cristina Cesar quanto
na de Sylvia Plath. Desejamos pensar a poesia como medida contra-
razão dos limites impostos ao real, uma espécie de confluência entre a
liberdade a que a arte nos remete e a consumação da loucura: “a poesia
é um tipo de loucura qualquer. É uma loucura que te pira um pouco,
que meio te tira do eixo” (CESAR, 1999b, p. 267), dizia Ana Cristina.
Daí se presume o caráter fora-do-lugar da poesia e a sua relação com
a sociedade fora-do-eixo: o sem-razão que vê as razões de um mundo
desconcertado (ou desconsertado) à Camões e à Shakespeare, o (mal)
dito que defende a dessacralização e derrubada de um deus onipotente.
Estamos, assim, uma vez mais, diante do tema que persegue esta tese:
a tenuidade da divisão entre verdade e ilusão, agora representada pela
oposição razão e loucura, razão e poesia.
É imprescindível ressaltar, neste momento, o caráter coincidente
entre eu e outro da experiência poética, em que toda a rede de dêiticos
se desfaz, conforme parece salientar Baudelaire. Aqueles signos cujos
referentes no código dependem de uma determinada circunstância
espacial, temporal, pessoal – como aqui, lá, hoje, amanhã, ontem,
isto, aquilo, eu, você – são reorganizados de tal modo que permitem
deslimitar egos e alteridades, deslocar tempos e lugares, transpassar
realidades e aparências, o que é próprio do louco, do profeta, do droga-
do, do poeta. A loucura como medida da razão, como sua contraparte
inevitável, como forma de reagir ao excesso de racionalidade e de
submergir através da subjetividade exacerbada dos poetas sempre tão
“sem-razão”, apesar de suas “cem razões”, revigora a “marginalidade”
da figura do poeta, anjo e demônio em sua experiência alucinógena
feita de luz e treva.
Por isso, insistimos que estão ali, nas tramas de escrita lírica –
não só na de hoje, mas desde os românticos –, os traumas do poder e
da cultura. Está a escrita lírica circunscrita pelo mundo externo de que
aparenta se distanciar. No caso de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath,
isso se dá, como vimos, na tensão entre a melancolia e a fragmentação,
elementos recorrentes de sua produção e de uma época, com a qual

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Anélia Montechiari Pietrani


sua poesia entretece um olhar estetizante – sim, mas de viés, oblíquo
e dissimulado. É o poeta tentando se equilibrar na corda bamba da
literatura e da sociedade fora-do-eixo moderna e pós-moderna.

É para você que escrevo, hipócrita.


Para você – sou eu que te seguro os ombros e grito verdades
Nos ouvidos, no último momento. (CESAR, 1998a, p. 81)

Se está certo Perry Anderson ao ver o pós-modernismo como


“a lógica cultural de um capitalismo não disposto para o combate”
(ANDERSON, 1999, p. 136), como na verdade nunca se dispôs, é preciso
encarar esta ordem tal como é para que, nesse gesto, a resistência
comece. É, portanto, no paradoxo da alienação, na apropriação das
imagens de retórica totalitária e utilitária, que a poesia de Ana Cristina
e Plath resiste. Mesmo que tantos míopes leitores hipócritas – meu
irmão, meu semelhante, como dizia Baudelaire – continuem vendo
no poema apenas sua “face fraca”, sentindo apenas sua “dor visível”,
ainda continuará lá, de esguelha, a “face dura” do poema, “a superfície
negra” e o “pânico iminente do nada”.
Isso porque “toda interpretação do literário acaba por ressaltar
que, a par da natureza lingüística e auto-referente de seu material, não
há na literatura nada que não seja social e histórico. Ou, com efeito e em
última instância, significa considerar que o inconsciente da literatura
é político” (HELENA, 2004, p. 35). Por isso, parece-nos, Ana Cristina
Cesar e Sylvia Plath souberam apresentar como poucos – nos impas-
ses inconscientes encaminhados por seus textos – a literatura como
indispensável fonte de reflexão. Sirvamo-nos, sempre, das palavras
“reconfortantes” de Baudelaire dirigidas aos “felizes deste mundo”:
assim, acreditamos, a poesia poderá, para alguns, servir para alguma
coisa e assumir (por que não?) seu poder.

Em nome do pai: o filho-poeta

“Pensei naquele cavalheiro idoso, já morto, mas bis-


po, acho eu, que declarou ser impossível a qualquer
mulher, do passado, do presente ou por vir, ter a
genialidade de Shakespeare. Ele escreveu aos jornais
a respeito. Disse também a uma dama que o consultou
em busca de informações, que os gatos, na verdade,

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Tra(u)mas de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath

não vão para o céu, embora tenham, acrescentou,


uma espécie de alma. Quantos pensamentos aqueles
velhos cavalheiros costumavam poupar-nos! Como
as fronteiras da ignorância recuavam à aproximação
deles? Os gatos não vão para o céu. As mulheres
não podem escrever as peças de Shakespeare.”
(WOOLF, 1985, p. 61)

Pode ser, ainda, que Sylvia Plath tenha desejado matar o seu
pai por outra razão, ou melhor, por ser outro o pai: o pai literário.
Impossibilitada de executar tal função, atribui aos demais o papel de
carrasco. De fato, sua poesia convive com a idéia do grande pai de
maneira bastante crítica: Ariel, de Shakespeare (ou de Eliot?), é um
deles. Essa questão também será trabalhada crítica e esteticamente
por Ana Cristina Cesar. A respeito da questão da influência, vejamos
o que nos diz Harold Bloom em página de seu já antológico e bastante
visitado e criticado texto intitulado A angústia da influência:

Com “Influência Poética”, não me refiro à transmissão de idéias


e imagens de poetas anteriores a posteriores. Isso na verdade é
apenas “uma coisa que acontece”, e se essa transmissão causa
angústia nos poetas que vêm depois, é apenas uma questão de
temperamento e circunstâncias. É belo material para caçadores
de fontes e biógrafos, e pouco tem a ver com meu interesse.
As idéias e imagens pertencem à discursividade e à história, e
dificilmente são exclusivas da poesia. Mas a posição do poeta,
sua Palavra, sua identidade imaginativa, todo o seu ser, têm de
ser únicos dele, e permanecer únicos, ou ele perecerá, como
poeta, se algum dia conseguiu seu renascimento em encarnação
poética. Mas essa posição fundamental é também, tanto de seu
precursor, quanto a natureza fundamental de alguém também
o é de seu pai, por mais transformada que seja, por mais virada
ao contrário. (BLOOM, 2002, p. 119, grifos do autor)

Bloom trata a questão da influência da tradição como resul-


tado da “angústia” de realização, “conseqüências da apropriação
poética, mais que a sua causa” (BLOOM, 2002, p. 24, grifos do autor),
de acordo com o prefácio pós-escrito à publicação e repercussão do
livro. Propomos um repensar do uso da palavra angústia para tal

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Anélia Montechiari Pietrani


caracterização, que, a nosso ver, recorda as questões traumáticas e,
nesse sentido, beira mais a desprazer que prazer estético, embora
o crítico no prefácio supracitado tente defender seu ponto de vista,
inclusive afirmando que jamais sustentou como argumento, nas obras
intertextuais, a presença de um trauma edipiano. O próprio Bloom
– no corpo do livro – assim define a palavra: “[e]ssa angústia, esse
modo de melancolia, é a angústia da influência, o terreno sombrio e
daemônico” (BLOOM, 2002, p. 75), enquanto mais adiante lembra o
termo influenza (em inglês, gripe), associando-o à influência no reino
da literatura, a uma espécie de “influxo de uma epidemia de angústia”
(BLOOM, 2002, p. 88).

Ficamos, no entanto, com a segunda parte da argumentação do


crítico norte-americano, em que alude, simbolicamente, à experiência
literária a partir da relação pai-filho e recorda a interessante conjunção
entre criação biológica e criatividade artística, nascimento humano e
poético. Assim como o pai deixa ao filho um legado que se perpetuará,
se transformará ou se perderá, sem que este deixe de ser si mesmo,
também o poeta só se torna “o” poeta se “distinto” e “único” em sua
condição de originalidade, individualidade e (re)criatividade. Também
diz Virginia Woolf que

se vocês examinarem qualquer grande figura do passado como


Safo, como Lady Marasaki, como Emily Brontë, descobrirão que
ela é tanto uma herdeira quanto uma geradora, e que veio ao
mundo porque as mulheres passaram a ter o hábito de escrever
naturalmente. (WOOLF, 1985, p. 142)

Com isso, descartamos aqui uma forma de escrita vista como


um marco zero, eu-início de tudo, ou como um pretensioso presente
auto-suficiente que parece se eternizar. Tal constatação é especialmente
importante nesta contemporaneidade em que predomina o virtual, o
homogêneo e o global, conforme se tem procurado caracterizar a pós-
modernidade, e colabora para que pensemos o papel da poesia como
base de reflexão em tal concepção de tempo e espaço em que se vislum-
bra “a perda tipicamente pós-moderna de qualquer senso de passado,
numa contaminação oculta do atual pelo melancólico, um tempo que
anseia por si mesmo num impotente refúgio” (ANDERSON, 1999, p. 70).
Ainda que se perceba, neste momento pós-moderno em que vivemos,

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Tra(u)mas de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath

uma profunda alteração em face do passado, muitas vezes até de esque-


cimento (proposital) do que nos legou, convém estar ciente do que ele
pôde nos oferecer como expectativa para o futuro. E isso, parece-nos,
tanto Ana Cristina quanto Plath souberam realizar com a humildade dos
grandes gênios: “[p]ode-se dizer que é um sinal característico do gênio
poético saber muito mais do que sabe que sabe” (SCHLEGEL, 1997, p.
75). Voltamos, assim, à concepção romântica de gênio segundo a qual
este acrescenta algo de novo, revolucionário, com o objetivo de perdurar
e ser lembrado; daí o seu heroísmo e conseqüente imortalidade; daí a
relação entre escrita, registro e não-esquecimento.
Não deve ser à toa, decerto, que, em muitos de seus textos,
estamos diante de uma poesia presente carregada de passado, princi-
palmente de textos e contextos de Baudelaire, Whitman, Eliot, Pessoa,
Bandeira, Jorge de Lima, Drummond, para citar alguns. É como se
quisessem nos alertar de que é preciso conviver e co-escrever com
esse carregado senso de passado e lançar-se em uma escrita própria.
Diz-nos Ana que

é importante ser iniciado [em poesia], porque os textos mais


densos da literatura, os que nos satisfazem mais se referem
muito a outros textos. Cada texto poético está entremeado com
outros textos poéticos. Ele não está sozinho. É uma rede sem
fim (CESAR, 1999b, p. 267).

Tanto Sylvia Plath quanto Ana Cristina tiveram de se debater


sobre um cânone (ainda que, de fato, não tradicional, uma vez que
contemporâneo a elas) pesado: Plath com a impessoalidade eliotiana;
Ana Cristina com a antilírica cabralina e o formalismo concretista.
A resposta das duas foi, curiosamente, muito semelhante. Enquanto
Plath revisitava a poesia de Eliot que se opunha ao estereótipo ro-
mântico, na figuração de um, por exemplo, Alfred J. Prufrock austero,
detalhista, conservador, Ana Cristina observava a afirmação de uma
imagem de poeta como engenheiro ou arquiteto, por meio da negação
de um sujeito lírico, nos moldes da poesia do maior poeta brasileiro
da segunda metade do século XX e da concepção tecnicista de van-
guarda dos anos 1950. Como já dissemos, o momento literário a que
pertence Ana Cristina é o da chamada poesia marginal, reconhecida
pelos críticos por sua linguagem rebelde, pela recusa a padrões de
“bom comportamento poético” e, nesse sentido, seria marcada pela

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Anélia Montechiari Pietrani


ironia, espontaneidade, coloquialismo e antiintelectualismo. Diz
Charles, um dos marginais: “A sabedoria tá mais nas ruas/que nos
livros em geral.”
Em ambas as poetas, pode-se notar a preocupação com a
construção de um sujeito lírico não apenas como persona para uma
finalidade poética mas também existencial: a relação do poema, o seu
sujeito e o mundo. Esse desejo de construção de uma personalidade
poética mantém uma relação muito grande com a permanência pela
escrita, cuja preocupação, em Sylvia Plath, se percebe nestas “Last
words”:

They will wonder if I was important.


I would sugar and preserve my days like fruit!
My mirror is clouding over –
A few more breaths, and it will reflect nothing at all.
The flowers and the face whiten to a sheet.
(PLATH, 1992b, p. 172)

Plath termina este poema com a imagem de Ishtar, deusa da


fecundidade. Porém, todo o texto é um convite ao estéril, o que tam-
bém se verifica no fragmento citado acima, em que, contrariamente
ao desejo de adoçar seus dias, o que o eu lírico constrói é um espelho
embaçado até não refletir mais nada: ou apenas uma imagem embran-
quecida. Por isso, uma dúvida é lançada na frase em discurso indireto:
perguntariam se sou importante.
Também revelando a obsessão pela busca da escrita (constante
e reconhecida) expressa por Sylvia Plath, Ana Cristina Cesar, confun-
dida com a persona de Emily Dickinson, diz em uma carta dirigida a
Heloisa Buarque de Hollanda:

Escrevia umas coisas que eu estou adorando (eu quero fazer


prosa, contar histórias, sintaxes coleantes, “Going-to-her!/
Happy-letter! Tell her – / Tell her – the page I never wrote! / Tell
her, I only said the syntax – / And left the Verb and the Pronoun
– out!” – Emily Dickinson.) Tem uma coisa meio decadente, um
ritmo narcisista com ironia sacaneando o pathos, Sylvia Plath
é muito bom mas sai, azar! And please não fica puta porque eu
fico fazendo literatura, cartas inclusive. (CESAR, 1999a, p. 57)

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Tra(u)mas de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath

Esse fragmento, em complemento a outros trechos da mesma


carta, em que Ana – sob a informação de que foi fazer uma viagem
– usa o pretérito imperfeito (ficava chorando, ia, ficava tomando,
saía, fazia), deixa o leitor em dúvida sobre se escreveu realmente ou
desejava escrever: o imperfeito pode ter sido tomado pelo uso do
futuro do pretérito, o que é muito comum na linguagem coloquial. A
dúvida se confirma também porque ela afirma estar fazendo literatura
o tempo todo, até nas cartas inclusive. De todo modo, interessa-nos
aqui a preocupação da poeta nessa busca pela escrita, revelada pela
citação de Dickinson.
A preocupação com a página que nunca escreveu une-se à que
cerca o debate sobre o momento literário, como neste trecho (origi-
nalmente em inglês) de carta escrita dois meses antes da anterior:

At the turn of the year, the posh papers were full of retrospec-
tive articles about the 70s – its trends, fads and fashions, but
nowhere did I see a mention of structuralism. BBC television
will carefully explain relativity and catastrophe theory to the
viewing million, but if there has ever been a programme about
structuralism.11 I missed it.
It looks as if structuralism may be the first such movement to
go through the complete life-cycle of innovation, orthodoxy and
obsolescence, without ever touching the popular conscious-
ness. (CESAR, 1999a, p. 47)

Apesar de o fragmento acima parecer denotar uma confluência


entre Ana e o estruturalismo, esse movimento é tratado por ela com
ironia em outra carta, já referida no segundo capítulo deste trabalho.
A ele Ana Cristina se diz “agarrada” e revela que estaria buscando a
“despretensão literária”, mesmo que esse comportamento fosse “contra
suas garras formalistas” (CESAR, 1999a, p. 124).
Nos diários de Plath, são muitos os momentos em que a poeta
norte-americana aponta seu “problema”: “Falta de imagens vigorosas,
de idéias novas. Excesso de vínculos subconscientes com clichês e
combinações batidas. Insuficiência de originalidade. Muita adoração
cega dos poetas modernos, pouca análise e pouca prática” (PLATH,
2004, p. 108), ao que acrescenta os nomes dos autores pelos quais
sente atração: Amy Lowell, Elinor Wylie, e. e. cummings, T.S. Eliot,
Achibald Macleish, Conrad Aiken, e isso dito pela mocinha Sylvia,

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Anélia Montechiari Pietrani


de 19 anos. Em outras partes, nas receitas de escrever dirigidas a si
mesma, alguns meses depois de revelar que precisava escrever “por
ter um ímpeto de me destacar num meio de traduzir e expressar a
vida” (PLATH, 2004, p. 216), adverte(-se) que “se não consegue pensar
nada externo a você, não é capaz de escrever” (PLATH, 2004, p. 218),
com o grifo na palavra “externo” feito por ela mesma. Tudo isso, no
entanto, colocando-se matematicamente sujeita à produção escrita:
escrever três páginas por dia, estar em atraso de cinco páginas por
dia... Que o diga Prufrock, que mediu sua vida em colherinhas de
café... Mas a fórmula, se há e se a encontrou, Plath a registrou no dia
23 de abril de 1959: “Como superar minha ingenuidade na escrita? Ler
outros autores e pensar muito. Nunca me afastar de minha voz, como
a conheço.” (PLATH, 2004, p. 552).
Há dois caminhos bastante sugestivos para se pensar, conside-
rando as duas poetas em estudo, esse diálogo entre “tradição e talento
individual”, mesmo que não desejemos expor a fórmula impessoal
eliotiana da poesia comparada à reação entre oxigênio e dióxido de
enxofre que, na presença de um filamento de platina, forma ácido
sulfúrico (Cf. ELIOT, 1989, p. 42-3). Por um lado, essas múltiplas vo-
zes ecoando no texto ressoam à confluência entre forma e conteúdo:
a colcha de retalhos assume, agora, forma no fragmento e no caos
pós-modernos, espécie de literatura urbana cortada e costurada,
interpretação que vem, também, corroborar as experimentações
melancólicas que percorrem os textos das autoras, de acordo com o
que vimos pontuando. A leitura e releitura da tradição estaria, nesse
sentido, formando um texto cujo contexto confirma o estilhaçamento
pós-moderno: a forma literária é estetização do conteúdo fragmentário
e caótico da pós-modernidade.
Por outro lado, a polifonia pode também sugerir um questiona-
mento interessante acerca do conceito de autor e dos deslimites de
sua categoria, se pensarmos na produção escrita que é feita a partir
da leitura. A biblioteca, nesse caso, será o espaço por excelência da
tradição e o laboratório da criação como reinvenção; enquanto o papel,
o espaço de indiscrição e exposição – como veio recessivo do roman-
tismo – de diferentes eus que se encontram em outros eus, formando
uma rede de escritas (e de escritores) sem fim, revigorando, assim, a
idéia do intelectualismo na literatura. Porém, não devemos esquecer
que tal “apropriação” tem ligação direta com a criação (ou recriação)
de um eu literário, atitude perseguida pelas duas, repitamos, em um

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Tra(u)mas de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath

momento em que a negação da subjetividade parecia estar veemen-


temente confirmada.
Diz Sylvia Plath em carta a sua mãe, com data de 9 de março
de 1956, junto a qual enviou dois de seus poemas, comentando-os e
citando a influência de Blake, a epígrafe de Racine e uma outra possível
(epígrafe) de seu “amado” Yeats para o poema curiosamente intitulado
“The pursuit”: “I am fighting, fighting, and I am making a self, in great
pain, often, as for a birth” (PLATH, 1992a, p. 223). Estaria, assim, “for-
jando uma alma”. “O, only left to myself, what a poet I will lay myself
into”12 (PLATH, 2000a, p. 381), escreve Plath já em outro momento, em
seu diário. Nesta mesma página, ela faz um interessante encadeamento
de imagens a partir da figura do pai: seu próprio pai, a musa mascu-
lina, o deus-criador, o companheiro Ted, o pai13 dos mares Neptuno.
Além disso, cita A tempestade, confirmando que o mar é uma metáfora
essencial de sua infância, e as fontes provenientes dos contos de fada,
onde deverá mergulhar sua cabeça e escolher objetos mágicos sobre
os quais escreverá. Tudo isso termina com uma citação de Joyce (“e
é velho e a velhice é triste e ser velho é triste e penosamente volto a
você, meu frio pai, meu pai frio e louco, meu frio e louco pai de conto
de fadas”) para confirmar a “paternal source godhead”.
“Ariel”, título do poema que deu nome ao último livro organizado
por Sylvia Plath, é fundamental na análise dessas questões e, nesse sen-
tido, parece condensar bem esses dois aspectos a que nos referimos.

Stasis in darkness.
Then the substanceless blue
Pour of tor and distances.

God’s lioness,
How one we grow,
Pivot of heels and knees! – The furrow

Splits and passes, sister to


The brown arc
Of the neck I cannot catch,

Nigger-eye
Berries cast dark
Hooks –

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Anélia Montechiari Pietrani


Black sweet blood mouthfuls,
Shadows,
Something else

Hauls me through air –


Thighs, hair;
Flakes from my heels.

White
Godiva, I unpeel –
Dead hands, dead stringencies.

And now I
Foam to wheat, a glitter of seas.
The child’s cry

Melts in the wall.


And I
Am the arrow,

The dew that flies


Suicidal, at one with the drive
Into the red

Eye, the cauldron of morning. (PLATH, 1992b, p. 239-40)

A concisão de palavras, em sua maioria substantivos, sugere


uma exaustão de idéias; os sintagmas entrecortados, desafiados
pelo enjambement, revelam um dinamismo e força extraordinários; a
apropriação e manipulação de material literário e emocional indicam
uma aparente desorganização de imagens que fluem como (ou em)
alucinação, desafiando a imaginação visual do leitor.
Pour, splits, passes, cast, hauls, melts, flies, drive são vocábulos
usados por Plath que denotam mudança, passagem, perda. No decor-
rer do texto, no entanto, o eu lírico coloca-se em busca de estabilida-
de (“How one we grow,/ Pivot of heels and knees!”) ou de um golpe
definitivo (“And I/ am the arrow,/ The dew that flies/ Suicidal, at one
with the drive/ Into the red/ Eye, the cauldron of morning.”) lançado
à idéia inicialmente exposta no texto: “Stasis in darkness”.

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Tra(u)mas de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath

Algumas observações relevantes sobre a análise do texto bem


como as possibilidades de tradução devem ser feitas. Ariel teria sido
o nome de um cavalo que Plath usava para cavalgar em Devon. Estase
é uma doença que acomete cavalos a ponto de seus olhos sangrarem,
diz Rodrigo Garcia Lopes, em nota à tradução do poema feita por
ele (Cf. LOPES em PLATH, 1994, p. 101). Ana Cristina Cesar, em sua
tradução, opta pela palavra “estacamento”, que apresenta relação
semântica com o termo patológico, já que, segundo o verbete do
dicionário Aurélio, é definido como “estagnação, no organismo, de
matérias de consistência diversa, como urina, sangue, fezes, etc.”.
Porém, aqui, essa palavra recorda também, pela semelhança fonética
principalmente, o “ecstasy of the animals” citado por T. S. Eliot no
texto “Marina” (ELIOT, 2004, p. 222), dos seus “Poemas de Ariel”. É
incrivelmente bela a confluência dessa coletânea de textos de Eliot
(por si mesmos, uma colcha de retalhos de citações bíblicas) e o
referido de Plath, por suas sugestões poéticas. A temática do nasci-
mento e da morte, fundidos, é evidente. Coincidentemente ou não,
“Ariel” foi escrito em 27 de outubro de 1962, último aniversário de
nascimento de Plath.
Em “A viagem dos magos”, diz o poeta norte-americano: “I had
seen birth and death,/ But had thought they were different; this Birth
was/ Hard and bitter agony for us, like Death, our death” (ELIOT, 2004,
p. 210). A conjugação dessas imagens se repete no verso “Pray for us
now and at the hour of our birth”, na reversão da Oração à Virgem
Maria (Ora pro nobis nunc et in hora mortis nostrae) feita por Eliot
no poema “Animula” (ELIOT, 2004, p. 218). O simbolismo religioso
cristão, que percorre a coletânea eliotiana, é desapropriado no texto
plathiano. Aliás, é feita uma única referência religiosa em Plath: a
própria palavra Ariel que, em hebraico, significa altar e foi empregada
por Isaías para designar Jerusalém, cujo sentido é “Leão de Deus”,
ou “Coração (Altar) de Deus”. Escreve a poeta, no entanto, “God’s
lioness”, o que serve como exemplo de mais uma de suas inversões
(ou subversões?).
O que parece ser apropriado dos versos de Eliot citados aci-
ma é a fusão entre nascimento e morte (ou, antes, entre claridade e
escuridão), que também se verifica no texto de Plath. O estase (ou
estacamento, conforme preferiria a Ana tradutora) na escuridão, com
que Plath inicia o texto, culmina com o êxtase da flecha lançada no
olho vermelho, que se incendeia pela manhã.

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Anélia Montechiari Pietrani


Se há semelhanças entre Eliot e Plath nos textos citados, há
que se ressalvar, ainda, que Ariel não é apenas Eliot mas também
Shakespeare. Neste, a figura etérea que aparece em A tempestade é
um anjo e servo que recebe a liberdade, apenas após serem satisfeitas
as vontades de Próspero, seu senhor, ao final do drama. Atingindo os
olhos vermelhos, precisa Plath pôr-se num eixo e acertar (sim, uma
flecha), lançar-se adiante para que nasça, ainda que seu nascimento
seja terrivelmente doloroso e, certamente, uma re-visão da tradição.
Resgatar textos de outros autores, trazer-lhes para seu próprio
texto e estabelecer com eles uma intensa crítica são a forma que a
poeta encontra para construir uma poética pessoalíssima e em estilo
próprio, ou seja, é pelo diálogo com o “outro” que o “eu” do escritor se
firma. Essa busca e construção se tornam especialmente interessantes,
tanto em Sylvia Plath quanto em Ana Cristina Cesar, já que o processo
de “imitação” dos outros poetas nelas revelado estabelece relação
com o conceito de mímese, velho chavão que persegue (e confunde)
o caráter do literário.
A mímese é uma duplicação do que já “existe” como verdade,
conforme a teoria aristotélica segundo a qual a techné realiza o que
a physis não faz e, por isso, a imita. Assim, o processo de escrita das
duas é também, pela via da releitura, uma reprodução do que já “é”
cânone. Shakespeare, Eliot, Baudelaire, Rimbaud, Drummond, etc. já
se tornaram “matéria de poesia”. Por isso, podemos descartar a ar-
gumentação de Harold Bloom sobre a angústia que persegue o poeta
sujeito às influências. E, num certo sentido, também questionamos a
tentativa de explicação de Maria Lucia de Barros Camargo acerca das
múltiplas vozes presentes no texto (de Ana Cristina) em referência “às
tensões advindas da busca do novo, do inédito, no confronto com o
peso da tradição; às ansiedades geradas pelas influências” (CAMARGO,
2003, p. 110, grifos nossos), em que as palavras destacadas parecem
remontar a Bloom, embora em outros momentos de seu texto a en­
saísta rejeite as considerações do crítico norte-americano. No entanto,
concordamos quando, no período seguinte, ela diz que “explicitá-las
talvez tenha sido o caminho para conviver com elas. Ou, mais do que
conviver, para se utilizar intensa e criativamente delas.”
Nesse sentido, podemos afirmar que a produção de Ana Cris-
tina Cesar e a de Sylvia Plath são uma mímese do outro-antigo, sem
repeti-lo, sem refleti-lo, mas recriando-o em outro, sob o “olhar
estetizante” de um eu. E, quando se pensa em mímese, sempre há

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Tra(u)mas de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath

de se ter em mente a questão do limite entre a verdade e a menti-


ra, a essência e a aparência, tema que vem percorrendo esta tese
desde seu início. Aliás, como temos procurado mostrar, a metáfora
do vidro, em Sylvia Plath, e a da luva, em Ana Cristina, condensam
bem a temática da intermitência entre arte e vida, da transparência
e do obstáculo entre o olhar artístico – o secundário – e o olhar ver-
dadeiro – o primário, sem as dicotomias platônicas. A imagem que
perpassa o vidro não é mais a mesma porque resulta do processo de
refração; a luva que calça a mão impede a visão; o eu que assina o
texto é também outro, embora estejam ali, ambos, feito mão e luva,
feito imagem e vidro.
O texto “Arte-manhas de um gato gasto”, um dos chamados
poemas gatográficos de Ana Cristina Cesar, que apresentam ao pé
a informação d’après Jorge de Lima, Invenção de Orfeu, é excelente
exemplo do que vimos apresentando. Em determinado momento, a
poeta pergunta qual é o nome do gato: “J. Alfred Prufrock? J. Pinto
Fernandes?” (CESAR, 1998b, p. 74). São personagens de Eliot e Drum-
mond, assim como o gato é personagem de Ana Cristina. Símbolos
de sutileza e graça e também de sedução e mistério, revelados prin-
cipalmente pelos olhos, gatos estão também presentes na poesia de
Baudelaire, querido a quem a poeta abominou e de quem resgatou a
melancolia solitária: “Abomino Baudelaire querido, mas procuro na
vitrina um modelo brutal. Fica, boazinha, dor; sábia como deve ser,
não tão generosa, não”14 (CESAR, 1998a, p. 106).
Num de seus mais interessantes diálogos intertextuais – ou uma
“versão livre”, conforme definira em carta para Ana Candida Perez
–, “Carta de Paris”, publicado em Inéditos e dispersos, é releitura de
“O cisne”, de Baudelaire. Nos dois poemas, a interlocutora é a frágil
Andrômaca, sugerida no texto de Ana por “minha filha viúva”. A ine-
vitabilidade da mudança provocada pelo novo, a desolação pelo que
foi, a desesperança pelo que virá – já que a melancolia é a única que
não se move –, símbolos da dor e da solidão (orfandade, ilha, balsa,
mar) são temas dos dois textos. Embora não haja um gato sequer
neste texto (nem no de Baudelaire), reportamo-nos a ele porque a
temática do presente desgastado, estilhaçado, que desperta o olhar
para o passado se encontra ali nas entrelinhas. E é isso que queremos
aproveitar para correlacionar esse texto com o “Arte-manhas de um
gato gasto”. Neste, diz Ana Cristina, após perguntar, retoricamente,
quem seriam os gatos:

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Anélia Montechiari Pietrani


o nome do gato é nome de estação de trem
o inverno dentro dos bares
a necessidade quente de tê-lo
onde vamos diariamente fingindo nomear
eu – o gato – e a grafia de minhas garras:
toma: lê o que escrevo em teu rosto
lê o que rasgo – e tomo – de teu rosto
a parte que em ti é minha – é gato
leio onde te tenho gato
e a gatografia que nunca sei
aprendi na marca no meu rosto
aprendi nas garras que tomei
e me tornei parte e tua – gata – a. (CESAR, 1998b, p. 74)

O gato também sou eu. O que nomeio, eu finjo. O que escrevo,


eu arranho, rasgo, tomo, porque não sei, mas aprendi em mim e nesse
interlocutor que não se revela (Jorge de Lima?), tornando-me “parte
e tua”. Se confrontarmos este texto com outros que compõem esta
“escrita gatográfica”, encontraremos esta mesma preocupação: o que
fica, o que se apropria, o que permanece, o que morre. Nesse sentido,
tal preocupação suplanta a questão das influências e atinge o próprio
processo de escrita. Conforme a imagem do gato percorre os textos,
o leitor se depara com as várias tentativas da poeta de transfiguração
desse animal-real em animal-personagem, cuja imagem permaneceria
nas palavras enquanto se perderia o objeto “gato”: “O nome morto
vira lápide,/ falsa impressão de eternidade” (CESAR, 1998b, p. 63).
Flâneur às avessas (já que é o gato que a persegue), a poeta apenas
finge escrever gato. Enquanto isso, surge uma visão “ameaçando de
morte/a própria forma ameaçada do desenho/e o gato transcrito que
antes era/marca do meu rosto, garra no meu seio” (CESAR, 1998b, p.
64). A dificuldade de escrita parece ir se acentuando e é marcada por
um silêncio, por uma “paralisia em caixa, crédito e cheque onde/risco
assinatura de meu nome” (CESAR, 1998b, p. 65). O animal continua
à espreita, mordiscando a poeta, desejando entrar no poema, mas,
enfim, “o gato desaparece do poema/feito de leitura ensangüentada
e surda” (CESAR, 1998b, p. 67). Até que, mesmo com a dificuldade
da poeta, desenhou-se gato, escreveu-se gato, gatografou-se: “nesse
instante perdeu-se/a voz que os miasse e desse forma/e de gato se
fizesse sem engenho/e deformando-os em bichos nunca vistos,/não

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Tra(u)mas de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath

mais linguagens perseguidas,/mas gato somente se lambendo” (CE-


SAR, 1998b, p. 73).
Se, por um lado, Ana Cristina constata, em seus 20 anos (os poe­
mas gatográficos foram escritos em 1972), que a dificuldade de lidar
com o pré-texto é evidente; por outro, ela parece querer revelar que
é preciso saber lidar com as marcas (“Que culpa tenho deste sonho
que se origina/antes de mim” (CESAR, 1998b, p. 70)) e aprender nas
garras, certificando-se de que “desenho/e escrita esperam gato/saltar
felinamente sobre o nome de gato” (CESAR, 1998b, p. 75), este, agora,
um gato-gasto “ameaçado de morrer na gastura de meu nome” (CESAR,
1998b, p. 75). Se considerarmos o duplo genitivo e a ambigüidade da
palavra gastura, teríamos tanto a gastura praticada por “meu nome”
quanto a náusea provocada pelo gato-ruína perpetuado pelo poeta:

Nem agora posso ver minha leitura


E dela me afastar num salto único

Sem ter donde fugir, isenta e clara.


Nem agora os verbos me consolam

E saltam como gatos desgarrados


Por cima dessas pedras que me inscrevem.
(CESAR, 1998b, p. 69)

As artimanhas do gato (persuasivos, insistentes, sedutores) reve-


lam as arte-manhas de Ana: nomes são fingidos. O cavalo com que Sylvia
cavalgava em Devon é ga(s)to também. Escrever é acercar-se de outros
textos e contextos, refigurá-los, a fim de afirmar uma nova voz, sempre
com o intuito de libertar-se: Lady Godiva cavalgando nua (“White/Godiva,
I unpeel”), Ariel finalmente livre pelos ares (“Hauls me through air”).
Conforme a lição deixada por Orfeu, escrever é inventar a escrita
a partir da morte, pois mesmo sabendo do risco que corria, ao caminhar
de volta para o mundo dos vivos, não se conteve e olhou para trás, em
busca daquela, a amada morta Eurídice. Talvez a invenção seja d’après
Jorge de Lima, ou d’après Baudelaire, d’après Drummond, d’après Eliot,
d’après tantos amados mortos... Longe de traumas com o passado, são
as tramas da poesia de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath que, seduzidas
e sedutoras, deixam rastros, cheiros, sons, gostos; que, herdeiras e
geradoras, levam todos os gatos para o céu.

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Notas
1 Retomamos aqui, em linhas gerais, a análise de Walter Benjamin sobre o quadro
Angelus novus, de Paul Klee, no ensaio “Sobre o conceito da história”, a que fize-
mos referência no primeiro capítulo deste trabalho.
2 In: CESAR, Ana Cristina. Crítica e tradução. São Paulo: Editora Ática, 1999b. p. 450.
Cf. o original em inglês sob o título “Elm”: “I know the bottom, she says. I know it
with my great tap root:/It is what you fear./I do not fear it: I have been there./Is it
the sea you hear in me,/Its dissatisfactions?/Or the voice of nothing, that was your
madness?” (PLATH, 1992b, p. 192).
3 Referimo-nos ao soneto “El desdichado”, de Gérard de Nerval (1808-1855), cuja
primeira estrofe é: “Sou o tenebroso, o viúvo, o inconsolado/ O príncipe na torre
abolida de Aquitânia;/ Morta minha única estrela, meu alaúde constelado/ Porta o
sol negro da melancolia.” (apud KRISTEVA, 1989, p. 132).
4 Em Um falcão no punho, diz-nos a escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol:
“Decido, nessa altura natalícia, tirar o d de deus, e chamar eus ao que for a dife­
rença que o prive de ser a sua vontade” (LLANSOL, 1985, p.16-7, grifos do autor).
5 Mais uma vez, transcrevemos a tradução de “Elm”, de Sylvia Plath, feita por Ana
Cristina Cesar, desta vez, os últimos versos do texto: “What is this, this face/ So mur-
derous in its strangles of branches?/ Its snaky acids kiss. / It petrifies the will. These
are the isolate, slow faults/ That kill, that kill, that kill” (PLATH, 1992b, p. 193).
6 “Here is a poem spoken by a girl with an Electra complex. Her father died while she
thought he was God. Her case is complicated by the fact that her father was also
a Nazi and her mother very possibly part Jewish. In the daughter the two strains
marry and paralyse each other – she has to act out the awful little allegory once
over before she is free of it.” (Citado por Ted Hughes na nota do poema “Daddy”, à
p. 293, em Collected poems.).
7 “In ‘Daddy’ she wrote one of the very few poems I know of in any language to come
near the last horror. It achieves the classic act of generalization, translating a pri-
vate, obviously intolerable hurt into a code of plain statement, of instantaneously
public images which concern us all. It is the ‘Guernica’ of modern poetry. And it
is both histrionic and, in some ways, ‘arty’ as is Picasso’s outcry” (STEINER apud
BRENNAN, 2000, p. 31).
8 Convém ressaltar que “bastard”, em inglês, não só designa o filho ilegítimo mas é
também uma forma de xingamento. O jogo pai-filho, a nosso ver, se intensifica com
esta palavra e com a ambigüidade dessa tradução.
9 Como diz Heloisa Buarque de Hollanda em fragmento transcrito por Ana Cristina
no ensaio “Nove bocas da nova musa”, publicado no Opinião, em 25 de junho de
1976: “a própria precariedade da sua produção a liberta do quadro alienante e
dominador da cultura oficial” (HOLLANDA apud CESAR, 1999b, p. 162).
10 Trata-se de um trabalho de mestrado entregue em 8 de junho de 1979, na escola de

Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na disciplina “Comunica-


ção e Direito”, ministrada pela professora Ester Kosovski, conforme informação de
nota de rodapé da publicação Crítica e tradução. É bem provável que este trabalho
se trate de um fichamento da tese de doutoramento de Heloisa Buarque de Hollanda,
intitulada Impressões de viagem, defendida em 1978, uma vez que o trecho de Ana
apresenta semelhança total com o de Heloisa, que diz o seguinte: “Esse gesto de
recolher partes do real agora se manifesta como forma de apreensão do mundo ex-
tremamente vinculado a uma postura geral de vida. Mais do que uma observação do
mundo, onde sujeito e objeto estariam mais ou menos delimitados, a fragmentação
é sentida a nível das próprias sensações mais imediatas. O binômio Arte/Sociedade
começa a se confundir com uma postura vitalista que definirá o binômio Arte/Vida.
Mais do que um procedimento literário, a fragmentação, nesse grupo, é um senti-
mento de mundo, uma forma de comportamento” (HOLLANDA, 1980, p. 81).
11 Creio que aqui a pontuação está equivocada. Tratar-se-ia de uma vírgula. No en-

tanto, reproduzo a edição das cartas, conforme a publicação.


12 A tradução para o português, infelizmente, faz perder o sentido do jogo entre o eu

e o poeta que se revela neste fragmento de diário. Daí, termos optado pela citação
no original, em inglês. Cf. a citação em português: “Ah, se me deixassem em paz,
que poeta desabrocharia em mim”(PLATH, 2004, p. 442).

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13 Mais uma vez, o original é bem mais instigante que a tradução: “sea-father nep-
Tra(u)mas de Ana Cristina Cesar e Sylvia Plath

tuno” é traduzido por “netuno senhor dos mares” (Cf. PLATH, 2000a, p. 380, PLATH,
2004, p. 442).
14 “Sê sábia, ó minha Dor, e queda-te mais quieta” é o primeiro verso de “Recolhi-

mento” de Baudelaire (BAUDELAIRE, 1985, p. 471).

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Considerações finais

Chegar ao limite de um ensaio pode até ser uma aspiração. Muitas


vezes, fica-se apenas na expectativa de terminar e arrisca-se pôr um ponto,
ainda que se saiba que há muito a ser dito, senão pelo ensaísta, ao menos
pelos críticos que o lerem.
O ato ensaístico, incompleto por sua natureza, faz com que nos de-
paremos, com freqüência, com uma pedra sobre o papel. Se esta não é, de
todo, uma pedra bruta, tem ainda muito a ser escoimado, como os diamantes
que não foram lapidados. Por isso, contém cascalhos desmembrados, que
se formam da pancada constante. E isto, cremos, porque estudar a poesia
implica, também, o quebrar pedras de que fala Clarice Lispector.
Esse processo de atingir o cerne da produção poética nos lembra a
imagem surpreendente de Schlegel que, ao falar da autonomia da obra de
arte e, ao mesmo tempo, de seu caráter fragmentário, traz à baila o porco-
espinho, como se, para o poeta e seu crítico, houvesse, pulsando no ato de
ler, reler e escrever, um porco-espinho-pedra de espinhos de artérias e veias
num coração vibrátil.
Tarefa árdua, portanto, a do ensaísta-leitor de poesia. Árdua, também,
a tarefa do crítico, mesmo que não se pense que a análise do objeto estéti-
co exija sempre a gélida observação crítica, nem se suponha que o uso da
inteligência encontre-se a léguas de distância do uso emocional de trazer
das letras a recordação, palavra aqui usada no sentido mais etimológico
possível.
O árduo na leitura e crítica dos textos de Sylvia Plath e Ana Cristina
Cesar se encontra na dificuldade de tradução. Esta palavra aqui utilizada,
embora impactante, é proposital. Ao definir o tradutor, diz a própria Ana
Cristina, em introdução a sua tese de mestrado O conto “Bliss” anotado:
“alguém que procura absorver e reproduzir em outra língua a presença
literária de um autor” (CESAR, 1999b, p. 287). Pois bem. Se essa definição
se aplica facilmente à minha “tradução” de Sylvia Plath por eu, brasileira,
ler Sylvia em inglês, com Ana Cristina – mesmo em português – a referência
não se distancia tanto assim. Ler poesia com o intuito de fazer-lhe crítica é
também traduzir: perceber, na linguagem ensaística (outra língua, portanto),
a linguagem poética, explicar tecnicamente a originalidade de uma obra por

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Considerações finais

sua permanência e inovação, absorver friamente os significantes cujos


significados foram elaborados sob o calor da pena do poeta.
Nem sempre, no entanto, o intento descrito no último item da
enumeração acima foi atingido com sucesso. Creio estar aí uma respos-
ta para o encantamento que os textos das poetas me provocaram. A
emoção estava à flor da pele. Era difícil separar vida e obra. Folheava
páginas de diários e cartas, parava nas fotos e pensava na mãe, no
pai, nos irmãos, nos filhos, nas duas lindas mulheres: Sylvia e Ana.
Sentia-me compelida a cada vez mais ler seus textos, e só ler, e não
pensar muito. Levava alguns para meus alunos que, dificilmente (e
disso também assumo a culpa), se afastavam da aura de tristeza que
acreditavam encontrar em seus textos.
Era preciso, paradoxalmente, encontrar alegria nisso tudo. Se
a vida era dura, triste, surtada, a resposta estava no outro lado: na
escrita. Os jogos de linguagem, as refigurações do eu, as transfigura-
ções do mundo registravam o verdadeiro objetivo da arte: o prazer
estético. Se o mal-estar e a melancolia pós-moderna não se moviam,
o ludismo poderia ser encontrado ali, na Stultifera navis medieval,
no Bateau Ivre de Rimbaud, na Navilouca dos marginais. Eu também,
louca de pedra, fui recolhida em seus barcos.
Ironia do destino ou ironia do escrito, queria seguir rumo sem
parar. “É sempre mais difícil ancorar um navio no espaço”, escreveu
um dia Ana C. “Is it the sea you hear in me,/Its dissatisfactions?/Or
the voice of nothing, that was your madness?”, perguntava-me Sylvia.
Saía por aí, singrando mares, enquanto a poesia de Ana Cristina Cesar
e Sylvia Plath despertava-me a náusea dos navegantes de primeira
viagem. Mesmo hoje, passados anos de contato com seus textos, o
estômago ainda não se acostumou.
Apenas sei que, com suas manhas felinas, artimanhas escritas,
atraiçoavam-me, atirando-me migalhas que eu perseguia na ânsia de
encontrar o todo. Muitas vezes, fui pega nas armadilhas, de muitas
saí arranhada. Garras afiadas: o grande salto estava preparado. Como
está o de todo grande poeta.
O poeta – este maldito –, que deveria ser o arauto da bem-
aventurança, anuncia a ruína e a infelicidade de si e do outro. Ele não
cria as “flores do mal” de nossa era, mas, a partir delas e sob a aura
de desencantamento, tematiza as críticas à modernidade e instaura
um novo modo de sentir. Com a atrofia da experiência que primava
pela sedimentação, construção e desdobramento paulatino, a vida

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Anélia Montechiari Pietrani


moderna passa a se modular sob a vivência do choque, o momentâneo,
a uniformização, a repetição. Disso tudo a conseqüência é o vazio e a
inutilidade já que – em novo momento – vamos recomeçar a concluir
o que nunca foi terminado, e tudo se repete, e o indivíduo se perde
no mesmo, e não há vestígios, e nos tornamos massa nesta inexorável
solidão humana. O novo sentido é o sem sentido do mundo; o novo
sentimento é o terrível vazio da catástrofe e da melancolia; e a nova
teoria da arte – talvez não tão nova assim – é a recuperação da beleza
no espetáculo da vida moderna, onde só há fragmentos.
O poeta – este sedutor e fabricante de simulacros, que mereceu
a expulsão da república platônica – insiste em permanecer. Em meio
ao utilitarismo da vida moderna e pós-moderna, ele insiste em nos
fazer defrontar intensamente com nossa condição subjetiva e social.
Ele ocupa os lugares vazios da multidão, empresta-lhe uma alma, traz o
outro para dentro do texto, tornando-o o novo objeto da poesia lírica.
É a velha inscrição do oráculo pagão “conhece-te a ti mesmo”, enlaçada
com a desconfiança profunda que nos ronda, que precisa nos rondar,
neste pluralismo de imagens efêmeras e de signos vários que exigem
uma escolha rápida, impulsiva, produtiva... para o consumo.
Se a arte – essa cigana de olhos oblíquos e dissimulados – perma-
nece, é porque só ela passeia tranqüilamente entre o terrível e o belo
e põe diante de nós uma realidade em xeque. Ou uma realidade num
choque de discussões. Por isso, está certo Ronaldo Lima Lins quando
afirma, em Nossa amiga feroz, que, enquanto houver arte, haverá a
utopia. E também está certa Ana Cristina Cesar, que diz que, se a gente
não falar, a gente angustia muito. Entre solidão e abismos, o risco pode
ser o mesmo: o do perigoso pacto entre o eu e a escrita, entre escritos
e vividos: “Quero escrever por ter um ímpeto de me destacar num
meio de traduzir e expressar a vida. Não consigo me satisfazer com a
tarefa colossal de simplesmente viver” (PLATH, 2004, p. 216).

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Paulo Henriques Britto e prefácio de Leonardo Fróes. Rio de Janeiro:
Record, 1999.
LIEBERMAN, Lisa. Leaving you: the cultural meaning of suicide. Chi-
cago: Ivan R. Dee, 2003.

LOPES, Rodrigo Garcia. Sylvia Plath: delírio lapidado. In: PLATH, Sylvia.
Poemas. São Paulo: Iluminuras, 1994. p. 117-126.
LUNARDI, Adriana. Victoria. In: ______. Vésperas. Rio de Janeiro: Rocco,
2002. p. 89-98.
MENDONÇA, Maurício Arruda. Sylvia Plath: técnica e máscara de tragé-
dia. In: PLATH, Sylvia. Poemas. São Paulo: Iluminuras, 1994. p. 127-139.
MALCOLM, Janet. A mulher calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os limi-
tes da biografia. Tradução de Sergio Flaksman. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995.
MUSCHIETTI, Delfina. El poema: ¿Traduccíon y pliegue de la voz? ¿El
sueño del cuerpo em las fronteras de la lengua? In: ANDRADE, Ana Luiza
et al. (Org.). Leituras do ciclo. Florianópolis: Grifos, 1999. p. 61-68.
PERLOFF, Marjorie. Poetic license: essays on modernist and postmod-
ernist lyric. Evanston, Illinois: Northwestern University Press, 1990.
______. The dance of the intelect: studies in the poetry of the Pound
tradition. Evanston, Illinois: Northwestern University Press, 1996.
PIRES, Paulo Roberto. Sylvia e Ted. O Globo, Rio de Janeiro, 2 out. 1999.
Caderno Prosa e Verso, p. 1-3.
SHOWALTER, Elaine. A literature of their own: british women novelists
from Brontë to Lessing. New Jersey: Princeton University Press, 1977.
STEVENSON, Anne. Amarga fama: uma biografia de Sylvia Plath. Tra-
dução de Lya Luft. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
WAGNER-MARTIN, Linda. Sylvia Plath: a biography. New York: St. Mar-
tin’s Griffin, 1987.

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Coleção Biblioteca EdUFF

O cotidiano dos trabalhadores de Buenos Aires (1880-1920)


Norberto Osvaldo Ferreras
Em busca da boa sociedade
Selene Herculano
História do anarquismo no Brasil - V. 1
Rafael Borges Deminicis e Daniel Aarão Reis Filho (orgs.)
O poder de domar do fraco: construção de autoridade e poder
tutelar na política de povoamento do solo nacional
Jair de Souza Ramos
Cruéis paisagens
Ângela Maria Dias de Brito Gomes
Percursos do olhar: comunicação, narrativa e memória
Marialva Carlos Barbosa
Literalmente falando: sentido literal e metáfora na metalinguagem
Solange Coelho Vereza
Rotas atlânticas da diáspora africana: da baía do Benim
ao Rio de Janeiro
Mariza de Carvalho Soares (organizadora)
Terras lusas. A questão agrária em Portugal
Márcia Maria Menendes Motta (organizadora)
Experimentação animal: razões e emoções para uma ética
Rita Leal Paixão e Fermin Roland Schramm
De pedra e bronze: um estudo monumentos o monumento a
Benjamin Constant
Valéria Salgado
Discurso e Publicidade: dos processos de identificação e alteridade
pela propaganda brasileira
Rosane da Conceição Pereira
Poses e Flagrantes: ensaios sobre história e fotografia
Ana Maria Mauad
Os debates sobre a transição: idéias e intelectuais na controvérsia
sobre a origem do capitalismo
Daniel de Pinho Barreiros
Relações entre linguagem de jornal: fotografia e narrativa verbal
Regina Souza Gomes

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PRIMEIRA EDITORA NEUTRA EM CARBONO DO BRASIL

Título conferido pela OSCIP PRIMA (www.prima.org.br)


após a implementação de um Programa Socioambiental
com vistas à ecoeficiência e ao plantio de árvores referentes
à neutralização das emissões dos GEE´s – Gases do Efeito Estufa.

Este livro foi composto na fonte ITC Cheltenhan, corpo 10.


impreso na Quatro Pontos Studio Gráfico Ltda.,
em papel reciclato 75g (miolo) e cartão supremo 250g (capa)
produzidos em harmonia com o meio ambiente.
Esta edição foi impressa em fevereiro de 2009.
Tiragem: 400 exemplares

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