Henry Bugalho - Minha Especialidade É Matar - Como o Bolsonarismo Tomou Conta Do Brasil-Amazon Services (2020) PDF
Henry Bugalho - Minha Especialidade É Matar - Como o Bolsonarismo Tomou Conta Do Brasil-Amazon Services (2020) PDF
Henry Bugalho - Minha Especialidade É Matar - Como o Bolsonarismo Tomou Conta Do Brasil-Amazon Services (2020) PDF
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HENRYBUGALHO
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ESPECIALIDADE
É MATAR
Como o bolsonarismo tomou conta do Brasil
Para Denise e Phillipe, as grandes alegrias da minha uida
Apresentação
No final de 2017, publiquei no Youtube meu primeiro vídeo sobre Jair Messias
Bolsonaro, na época apenas um dos muitos nomes possíveis para uma eventual
candidatura à presidência.
Naquele momento, a vitória de Bolsonaro parecia inconcebível e muitos analistas
políticos, habituados a um processo eleitoral pré-redes sociais, supunham que, uma vez
que a engrenagem fosse posta em movimento, o controverso deputado federal seria
devorado pelos partidos e candidatos tradicionais.
Bem poucos viram na vitória de Trump os sinais daquilo que poderia ocorrer
também no Brasil e como uma série de forças históricas se uniria para uma tempestade
perfeita.
Ao longo de 2018, os índices de intenção de voto de Bolsonaro se mostraram
consistentes e a internet servia de termômetro. Cada vez mais a vitória dele se tornava
uma possibilidade e, para muitos grupos, principalmente de minorias, a simples ideia
de ter um homem com um longo histórico de falas autoritárias, racistas, misóginas e
homofóbicas era horripilante.
Então Bolsonaro foi o candidato mais votado no primeiro turno, levando à
evaporação completa do apoio a demais candidatos da direita ou centro-direita.
Enfeixando um conjunto de valores dito conservadores, com suporte dos tais “cidadãos
de bem”, de evangélicos neopentecostais, católicos tradicionalistas, alunos de Olavo de
Carvalho tornados influenciadores digitais e candidatos, pró-armamentistas,
lavajatistas, antipetistas, e com toda uma retórica contra o establishment político, ele
conseguiu convencer 57 milhões de eleitores brasileiros de que era a melhor - ou a
menos pior — das alternativas.
Ainda hoje, muita gente tem dificuldades para compreender o processo que
levou à vitória de um político de carreira que, em distintas circunstâncias, afirmou que
a sua especialidade era matar, apologista da ditadura militar do Brasil, cujo livro de
cabeceira (segundo ele mesmo) é de um torturador conhecido, o mesmo torturador que
foi homenageado por Bolsonaro quando anunciou seu voto em favor do impeachment
da ex-presidente Dilma Rousseff em 2016, com constrangedores vínculos com milícias
cariocas, e que, embora se diga cristão, representa o oposto dos princípios de amor ao
próximo e tolerância do Cristianismo.
Este livro reúne artigos que publiquei na Folha de SP e na Carta Capital a partir
de janeiro de 2019. Neles, empreendo este esforço de compreensão dos eventos que se
sucederam desde a eleição de Bolsonaro e o mergulho no abismo de toda uma nação.
Hoje, ele ainda está no poder. E ainda não temos ideia de qual será o desfecho
desta história.
Henry Bugalho
junho de 2020
O avesso da verdade
“ É uma loucura o que está ocorrendo no Brasil, este surto fascista!", nos disse
enfático Jean Wyllys quando conversamos com ele, há algumas semanas, em Madri.
Segundo ele, desde o impeachment da presidente Dilma, o pacto democrático no Brasil
ruiu e as instituições restaram fragilizadas. Os brasileiros vivem uma farsa.
Em janeiro deste ano, da Europa, anunciou que não retornaria ao Brasil para
assumir seu mandato como deputado federal. Havia várias razões para isso, mas a
principal se concentrava nas recorrentes ameaças que Jean vinha recebendo.
Você se habitua a ser ameaçado. Esta é uma condição imposta a quase todos que
tenham um pouco de visibilidade nestes dias, principalmente aqueles que abordam
temas polêmicos ou controversos. Você se habitua a ser ofendido, insultado,
ridicularizado e ameaçado, principalmente porque você logo se dá conta que os insultos
e ameaças partem de adolescentes ou adultos frustrados, protegidos pelo anonimato ou
pela sensação de impunidade proporcionada pela Internet. Pessoas sem rosto atacando
rostos conhecidos.
No entanto, nem todas as ameaças são iguais. Num clima de crescente
polarização política e ideológica, o que temos visto é que alguns indivíduos estão se
sentindo encorajados a ir além das meras ameaças via redes sociais.
Quando Jean Wyllys comunicou seu autoexílio foi um choque, tratava-se de uma
mensagem clara do quão fraturada estava a democracia brasileira. Afinal, ninguém
despreza um mandato de Deputado Federal por pouca coisa, ao contrário, gasta-se
milhões e um esforço descomunal para obter um deles. E evidente que este não era o
primeiro indício e talvez nem o mais contundente, mas se somava a um conjunto deles
que projetava uma imagem bastante assustadora do cenário político do país.
Sem dúvida alguma, um destes momentos trágicos e preocupantes foi a execução
da vereadora Marielle Franco e seu motorista em março de 2018. Dada a sofisticação da
operação para matá-la, o tipo de armas usado e o contexto político do Rio de Janeiro,
logo nos demos conta que aquele não era apenas mais um homicídio como tantos
outros num dos países mais violentos do mundo.
O assassinato de Marielle não era tão somente um ataque a uma cidadã
brasileira, mas a uma vereadora eleita que representava um conjunto de valores que já
eram marginalizados histórica e socialmente. Como a própria Marielle se identificava,
ela era “mulher, negra, gay, da favela”, enfim, tudo que a classe média branca e
conservadora brasileira abominava e temia, ela era a antítese daquilo que se entende
habitualmente como “cidadão de bem”, ainda mais porque esta vereadora pertencia a
um partido de esquerda e defendia pautas que no Brasil ainda são tabus, como aborto e
feminismo.
A execução de Marielle foi um daqueles momentos críticos e sintomáticos,
quando já não podemos mais fingir que há normalidade democrática. Uma vereadora
de uma das principais capitais do país havia sido assassinada e tudo apontava para
milicianos, estas forças paramilitares que dominam conjuntos de favelas cariocas, e cuja
influência não pode ser menosprezada. Estas suposições se confirmaram quase um ano
depois, quando os primeiros suspeitos de envolvimento com o crime foram presos:
milicianos. Ainda não se divulgou quem teria sido o mandante da execução. O delegado
que desvendou até ali o caso foi destituído no dia seguinte ao da prisão.
O clima de animosidade política se acentuou ao longo de 2018 e se tornou
insustentável durante a campanha eleitoral. Abaixo de Lula, que era candidato, mas que
infalivelmente seria inviabilizado mais tarde pela justiça, vinha ascendendo nas
pesquisas um improvável Jair Bolsonaro, candidato extremamente divisivo, defensor da
ditadura militar no Brasil, que não poupava elogios a reconhecidos torturadores
daquele regime, e que crescia nas pesquisas justamente por causa de uma inflamada
retórica antiesquerda. Em seu discurso durante a votação a favor do impeachment da
então presidente Dilma em 2016, Bolsonaro exultou a memória do Coronel Carlos
Brilhante Ustra, que, segundo as palavras do próprio Bolsonaro, havia sido “o terror da
Dilma RoussefF. Como que confirmando isso, numa entrevista ao programa Roda Viva,
ao ser perguntado sobre qual era o seu livro de cabeceira, Bolsonaro respondeu “A
Verdade Sufocada". O autor? Carlos Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-CODI e que havia
pessoalmente supervisionado e participado de sessões de tortura nos anos 70.
Na sequência imediata do estridente voto de Bolsonaro, como a votação foi feita
por ordem alfabética do pré-nome, coube ao deputado Jean Wyllys dar seu voto, no
caso, contra o impedimento da presidente. Ao concluir seu voto, Bolsonaro, que ainda
estava próximo, o insultou e Jean cuspiu em Bolsonaro, que na época era apenas um
controverso deputado federal do baixo clero. Aquela cusparada de Jean Wyllys em
Bolsonaro dentro do Parlamento, por mais repreensível que tenha sido, lavou a alma de
muitos brasileiros depois de terem sido obrigados a ouvir a homenagem a um
conhecido torturador da ditadura. Mas nem Jean nem ninguém poderia imaginar que
aquele deputado polemizador, mas até então irrelevante, se tornaria o presidente do
Brasil tão poucos anos depois.
Voltamos a 2018 e o que se viu após a morte de Marielle foi um esforço,
possivelmente coordenado, para destruir a reputação da vítima. Parecia necessário um
segundo assassinato de Marielle. Inúmeras mentiras começaram a ser propagadas nas
redes sociais, no Facebook e em grupos de Whatsapp, associando-a a grupos
criminosos, a traficantes, disseminando informações e imagens falsas da vereadora
assassinada. Não bastava matá-la fisicamente, era preciso erradicar também a memória
dela e minimizar a gravidade do crime praticado não apenas contra uma representante
eleita, mas contra a própria ordem democrática. Um país que mata seus representantes
corre sérios riscos, não nos enganemos.
Marielle e Jean tinham muita coisa em comum, defendiam pautas semelhantes e
pertenciam ao mesmo partido. Mais que isso, eram amigos.
A retórica antiesquerda aumentava em intensidade e, naquele momento, havia se
tornado claro que a retórica por si não satisfaria mais seus enunciadores, eles iriam
avançar.
Jean Wyllys já sofria ameaças antes disto e, assim como se deu com Marielle
após sua morte, formou-se uma forte campanha de difamação contra ele nas redes
sociais. Figuras como Alexandre Frota, ex-ator da Globo e do pornô, propagavam
mentiras sobre ele e, mesmo após processá-las e ser indenizado por isto, a imagem de
Jean continuava sendo diariamente atacada e apoucada. A máquina de destruição de
reputações da extrema-direita trabalhava dia e noite.
Então, em 6 de setembro de 2018, ocorreu algo inconcebível. Em Juiz de Fora,
durante um ato de campanha de rua, o candidato Jair Bolsonaro foi esfaqueado.
Gravemente ferido, ele foi levado ao hospital e logo analistas políticos cogitaram que, se
sobrevivesse ao atentado, Bolsonaro ganharia as eleições. Aquele poderia ser o ponto de
virada numa campanha extremamente polarizada e, no caso particular de Bolsonaro,
sem projetos bem definidos para o Brasil. O autor do atentado foi preso e identificado:
Adélio Bispo. Laudos da Polícia Federal apontam que ele agiu sozinho e peritos
declaram que Adélio tem transtornos mentais. Mas este crime, muito diferentemente
daquele com alto grau de sofisticação que matou Marielle, deu margem para uma série
de especulações e teorias conspiratórias.
Cogitou-se que poderia ser uma obra da esquerda para tirar Bolsonaro do páreo.
Alguns anos antes, Adélio havia sido filiado do PSOL, o mesmo partido de Marielle e
Jean, e isto bastou para os bolsonaristas começarem a conjeturar e elaborar hipóteses
ensandecidas.
No bojo desses, outros episódios se desenrolaram.
Em agosto de 2018, a doutora Débora Diniz, antropóloga e professora da UNB,
participou de debates no Supremo sobre a descriminalização do aborto. Já sofria
ameaças antes, mas a envergadura desta discussão e a exposição a deixaram ainda mais
em evidência. Foi então que, em novembro, dada a gravidade das ameaças, Débora
Diniz se viu obrigada a deixar o Brasil. Hoje é pesquisadora na Brown University, nos
EUA.
Em dezembro, a polícia conseguiu desmantelar um plano para o assassinato de
Marcelo Freixo, também do PSOL. Estava sendo organizado por milicianos, pelo
mesmo grupo envolvido na execução de Marielle.
O que se podia perceber era um padrão recorrente de ameaças a políticos de
esquerda e professores, em alguns casos extremos levando à violência de fato.
Então, como indicavam as últimas pesquisas, Bolsonaro foi eleito presidente.
Jean Wyllys foi reeleito deputado federal. Há muito que ele sofria ameaças,
inicialmente em grupos da deep web, conhecidos como chans, mas, segundo Jean, “as
ameaças foram subindo de nível. O motivo delas era a minha agenda em favor dos
direitos LGBT, em favor dos direitos humanos, tinha a ver com o fato de eu ser um gay
assumido”. Para certos grupos, era inaceitável que alguém como ele ousasse se alçar do
lugar que era reservado a pessoas como ele. Aliás, para Jean, esta também seria a razão
essencial para a execução de Marielle Franco. “O crime da Marielle é um marco na
História do Brasil, e talvez seja o mais importante crime político já ocorrido na História
do Brasil, mais importante talvez até do que a própria execução do Rubens Paiva,
porque Marielle representava um conjunto de mobilidades produzidas pela nova
república, sobretudo pela era Lula", ele afirmou em nossa conversa. Assim, o que havia
começado como ameaças aparentemente inofensivas foi tomando contornos reais,
escalando para ataques vindos de grupos e influenciadores antipetistas e de extrema-
direita, até que, enfim, culminou na morte de Marielle. Jean Wyllys já não podia mais
ignorar o risco à sua própria vida e, assim, em outubro de 2018, ele entrou com um
pedido de proteção da Comissão Interamericana de Direitos Humanos que lhe
concedeu medidas cautelares para que o Estado brasileiro o protegesse. Nesta época,
ele já recebia escolta parlamentar, porém restrita ao horário de expediente, e o governo
brasileiro ignorou a ordem da CIDH. Segundo Jean, “a Polícia Federal nunca levou isto
a sério, pois se trata de ameaças a minorias".
A decisão de deixar seu país não foi simples, e quando indagado sobre as
acusações de que teria abandonado o Brasil, ele rebate inflamado de indignação:
“abandonou é o caralho!"
Na presença de Jean, pudemos perceber o quanto ele é um homem machucado
pela sua trajetória como parlamentar, pela homofobia que sofria até mesmo no interior
da Câmara. Na nova vida dele em Berlim, cidade que escolheu para realizar seu
doutorado, no qual analisará o fenômeno dasfakes news, Jean Wyllys busca uma
rotina, o direito de poder se perder na multidão sem ser insultado nas mas e sem medo
de agressões. Tornar-se um anônimo. “Vim em busca disto, em busca por uma
liberdade", ele diz, “não quero virar figura pública aqui”.
Apesar deste anseio por tranquilidade, Jean tem cumprido uma agenda agitada
de palestras e eventos pela Europa. Promete não deixar de lutar por aquilo em que
acredita, “as causas pelas quais eu luto não ganham nada com a minha morte. Não
tenho vocação alguma para ser mártir nem herói”, ele afirma, rememorando aquilo que
o ex-presidente Pepe Mujica lhe havia dito: “os mártires não são heróis. Cuida-te”.
Acompanhamos Jean Wyllys até a porta do hotel. Logo ele retornaria a Berlim
para retomar a sua carreira acadêmica e, quem sabe, conseguir compreender melhor
parte deste mecanismo de mentiras e distorções que pôs a extrema-direita brasileira no
poder e, mais do que isto, que arruinou a vida política e pessoal de Jean através de um
discurso intolerante e polarizador, este “surto fascista" que também vem rondando
outras democracias pelo mundo.
Talvez Jean encontre algumas respostas para isto, e talvez também encontre o
anonimato que tanto almeja para cicatrizar suas feridas, a liberdade que procura e que
seu país lhe negou.
Deveria ser impossível, mas é fácil na verdade, entender o desprezo que o governo
Bolsonaro nutre pela Filosofia.
Temos um presidente que devolve respostas simples para os mais complexos
problemas do Brasil e do mundo, respostas que satisfazem as inquietações de seus
eleitores, hoje educados por meio de fake news no Whatsapp, sectários youtubers e pela
tal “mídia alternativa", um eufemismo para um jornalismo tosco que prescinde de um
dos princípios mais elementares da ética jornalística: fundamentar-se no que seja
factual, ou seja, restringir-se aos fatos.
Neste universo de linguagem simplificada e rasa, qualquer resposta sofisticada e
problematizadora é descartada como uma excentricidade de acadêmicos
ideologicamente enviesados.
Um presidente eleito sustentando a retórica de que “governaria sem viés
ideológico" dota agora todos os seus atos e falas com uma esmagadora e constrangedora
carga ideológica. Bolsonaro adora repetir a conveniente citação bíblica “Conheça a
verdade e a verdade vos libertará", como se ele detivesse e defendesse esta verdade
libertadora, mas esquece-se de um versículo bem mais apropriado a seu caso: “por que
vês o cisco no olho de teu irmão, mas não reparas na trave no teu olho?”
Ideologia é assim, só a vemos turvando o olho do outro.
Esta política de apontar os erros e falhas de seus inimigos o conduziu ao poder, e é
esta atitude que mantém a sua base mobilizada e inflamada. “Os inimigos estão por
todos os lados e nós, que conhecemos a verdade e somos livres, vamos destruí-los de
uma vez por todas para que o Brasil não sucumba diante da ameaça vermelha.” Bem-
vindos de volta à Guerra Fria!
Esta polarização político-ideológica, tão característica do mundo pré-Queda do
Muro de Berlim, caiu como uma luva para este discurso simplificador do Bolsonaro: de
um lado estão os justos - cristãos conservadores armamentistas não necessariamente
muito democráticos - e do outro, os maus - comunistas comedores de criancinhas que
trabalham dia e noite para a destruição da civilização ocidental, e aqui você reúne o PT,
o PSOL, o MST, George Soros e até Barack Obama.
Os professores de Filosofia certamente engrossam as fileiras inimigas destes
anacrônicos comunistas, ousando ensinar Marx, Gramsci e filósofos da Escola de
Frankfurt a seus incautos alunos, doutrinando-os para se tornarem militantes nesta
guerra cultural. Pois, para Bolsonaro e seu novo ministro da Educação, é exatamente
para isto que servem os cursos de Filosofia, para formar comunistas malévolos.
Não surpreende que o guru ideológico deste governo seja o mais anti-intelectual
dos pensadores, o Rasputin da Virgínia, o autoproclamado filósofo que nutre um
desprezo absurdo pela quase totalidade dos filósofos que se imortalizaram nesta Terra.
Em suas “aulas", que no fundo nada mais são que sessões ególatras e ataques virulentos
contra seus desafetos, não poupa insultos a Foucault, Nietzsche, Marx (principalmente
a Marx), nem Popper se salva, a quem o guru chama de “cretino”. Para ele, o
Iluminismo foi um tremendo equívoco, o bom mesmo era a Idade Média, para onde
retornaremos se não encontrarmos meios para deter esta onda obscurantista e
fundamentalista.
A Filosofia se tornou a inimiga número um.
Por qué?
Porque esta sim é libertadora, porque empreende a busca infatigável pela verdade,
cônscia de que a verdade é sempre ou provisória ou inalcançável mesmo. Jamais a
verdade poderia ser revelada, já que ninguém a detém. Na Filosofia, não há respostas
prontas, nem simplórias. Ela propõe a dúvida e reitera a permanente reflexão. E disto
eles realmente têm medo.
Sei que, assim como ocorre comigo, muita gente fica boquiaberta diante das
afirmações ofensivas, desrespeitosas e completamente desconectadas da realidade deste
senhor que agora se senta na cadeira presidencial.
E alguém que não respeita a dignidade do cargo que ocupa e que nos deixa sem
reação e, às vezes, sem palavras diante do absurdo.
Semana passada, Bolsonaro disparou mais um das suas, desta vez glorificando o
trabalho infantil e acabou tendo de se explicar (novamente). Ele diz, depois se desdiz, e
passa dias tendo de se explicar. Talvez isto seja estratégico, um recurso intencional de
desinformação, ou talvez seja meramente despreparo mesmo. De qualquer modo, os
estragos na consciência coletiva são devastadores.
Então, ontem de manhã, recebi esta emocionante mensagem da professora Dirce
que, de maneira clara, lúcida e sábia, explica-nos porque o trabalho infantil jamais
deveria ser aceito. Sendo assim, quero compartilhar com vocês estas considerações.
Como vai? Espero que este e-mail o encontre bem. Vejo seu canal na internet,
ouço e medito sobre seus comentários e os considero muito lúcidos, razão esta pela qual
lhe escrevo para falar sobre um tema acerca do qual houve comentários recentes por
parte do Sr. Jair Messias Bolsonaro: trabalho infantil.
Espero que minhas letras cheguem até você a fim de que, por meio de sua voz,
ecoe um brado: o trabalho infantil não pode ser aceito no Brasil do século
XXI de maneira alguma. Creio ter autoridade para falar sobre o tema.
Meu nome é Dirce Pereira da Silva e sou de Penápolis-SP, cidade em que nasci
no dia 19 de dezembro de 1934. Diferentemente de você, portanto, não sou jovem:
encontro-me a caminho dos 85 anos de idade e estou ciente de que cheguei ao rumo
final de minha rida.
Justamente por me encontrar na etapa derradeira e última de minha existência,
desejo complementar sua fala aos nossos irmãos brasileiros porque vivi o trabalho
infantil na pele. Nunca mais terei cinco, dez ou quinze anos de idade - todo esse
tempo foi perdido para vencer a fome.
O Presidente da República, nascido aqui na vizinha cidade de Glicério-SP, disse
que “desde os oito anos” fazia pequenos serviços rurais como colher e quebrar milho,
apanhar bananas e as colocar em caixa, etc. Em tom irônico, afirmou que o dono da
fazenda quase não estava por lá - seu “capataz" (aquele que dá ordens no lugar do
patrão) era Percy Geraldo Bolsonaro, ou seja, seu pai.
Aviso desde já que quem escreve esse texto é uma preta, neta de um casal de
escravos que só foram alforriados após a Lei Áurea pelo lado paterno.
O meu avô João começou a vida sendo chamado de “preto João", sem nome ou
sobrenome - simplesmente apelidado como um animal qualquer. Começou a trabalhar
com 4 ou 5 anos de idade, assim como a totalidade de minha família. Jamais soube
quem eram os seus pais, pois negros existiam em senzalas apenas para que se
reproduzissem.
A minha avó Rosa teve história bastante similar à do meu avô. A diferença foi
apenas a de saber o nome de seu pai e de sua mãe, que sobreviveram até depois de 13 de
maio de 1888. Nenhum deles, porém, teve infância, vida ou velhice. Ambos nasceram e
morreram sem nunca ter aprendido a ler ou escrever, assim como jamais viram o mar.
Meu pai, nascido em 1904, questionava-me se era verdadeiro o que ouvia falar“Dirce,
aquela água toda é salgada de verdade?".
Foi por pouco que não tivemos morte e vida severina - a vida foi longa para
quase todos, exceto para meu avô e minha avó maternos, os quais morreram de fome
bem antes dos 30. Minha avó materna, ao que sei, chamava-se Vitória e faleceu durante
o parto da minha mãe, aos 24. Cinco meses depois, por tuberculose, morreu o meu avô
Vicente, que à época somava 27 anos de vida.
Meu pai se chamava Marinho Aurélio da Silva e minha mamãe era Maria
Rita Pereira da Silva, os quais nunca foram meus “capatazes”. Nunca possuíram
terra que fosse deles e também nunca deram ordem em nome de seus chefes.
Meu avô, minha avó, meu pai, minha mãe, meus tios e meus primos trabalhavam
sim, e muito, na colheita de café e de algodão nas fazendas aqui da região noroeste
paulista, onde eu e o Presidente Jair Bolsonaro nascemos.
Assim como toda minha família, eu fui também obrigada a trabalhar nisso
desde meus 4 ou 5 anos.
Desejo sublinhar que o trabalho infantil não se tratava de uma escolha.
Trabalhar desde a infância era, para minha família, a única possibilidade de lutar
organizadamente contra a fome. Meu trabalho vinha dessa necessidade e em nada
me enobreceu, tal como jamais fez o mesmo com minha família toda.
Talvez esta necessidade de trabalhar para não passar fome venha desde quando
meus ancestrais africanos vieram para o Brasil. Dentro de minha família e de tantas
outras similares a ela jamais escutei que alguém se sobressaiu. A história parecia
infinita: todos nasciam para trabalhar, reproduzir-se e, em seguida, morrer.
Se não houvesse fatalidades excepcionais em minha família, muito
provavelmente eu mesma não conseguiria libertar-me desses grilhões da
escravidão porque, embora ela já não existisse formalmente desde 1888, ainda havia a
fome... e esta, impiedosamente, sempre nos rondava.
Quando o senhor Presidente falou em "apanhar milhos”, confesso que senti um
imenso vazio. Nunca tive um único brinquedo na vida que não fossem espigas
de milho para que fossem as minhas filhas. Todas as minhas bonecas de milho
tinham um nome, mas, já aos cinco anos de idade, eu era obrigada a acostumar-me com
a ideia de ser a pior de todas as mães, pois sequer conseguia garantir algum futuro
breve para essas "filhas".
Será que o Presidente da República ou alguém que jamais tenha passado fome
conseguirá imaginar uma criança com 4, 5 ou 6 anos de idade que tinha espigas como
filhas, e sentia a dor mais profunda que existe quando a própria mãe as arrancava das
mãos de uma menina para cozinhá-las e as comer... e eu sequer podia lhes ofertar um
velório digno?
Sentia-me canibalesca por ver que teria de comer minhas próprias “filhas" ou
permitir que meus pais, avós ou tios as comessem. Enquanto isso, eu chorava. Muito. O
senhor Presidente não deve imaginar - e espero que jamais tenha de pensar - no
quanto é traumático para uma criancinha ter de mastigar seus brinquedos, amados
como filhos, e se calar... porque a mesa era grande, a família idem e a fome ainda maior.
Nasci no campo, mas durante o impulso da industrialização brasileira. Os
trabalhos começavam a ficar cada vez mais escassos, e aí a fome começou a nos matar
de forma literal.
Embora esse fato tenha ocorrido em 1939, jamais conseguirei esquecer-me dele:
muito de longe avistei meu pai chorando enquanto conversava com minha mãe, pois ele
sempre foi ensinado a não demonstrar fraqueza perante sua família, o que incluía desde
meu avô, seu pai, até mim, a filha. Meu pai tinha medo, muito medo mesmo de
que eu morresse, tal como as outras onze gravidezes que minha mãe
perdeu.
Eu poderia ter onze irmãos, mas sou e fui filha única de um casal em plena
década de 1930. Isso não era planejamento familiar - ninguém da minha família
imaginava o que era isso. Muito ao contrário: faziam piadas sobre uma suposta
ausência de virilidade do meu pai, ou então que a mamãe era amaldiçoada, pois
"matou" sua mãe justamente no momento em que nasceu.
Até eu tinha medo de morrer, porque se minha mãe não conseguiu levar adiante
os meus possíveis onze irmãos... por qual razão eu seria a mais forte? Somente
pudemos descobrir que minha mãe nunca teve outros filhos porque, em 1996, num
exame de rotina, o médico constatou que ela teve eritroblastose fetal. O problema é
que, em 1996, minha mãe já vivia em estado vegetativo por sofrer do mal de Alzheimer.
Eu somente pus fim àquele pesadelo da minha infância aos quase 62 anos de idade;
meu pai pôde saber de tudo cerca de três meses antes de sua morte, a qual se deu em
01.05.1996.
Voltando ao passado, meu pai e minha mãe se mudaram para a cidade a fim de
procurar trabalho: ele capinava terrenos, varria, carregava lixos, até que começou a
trabalhar numa olaria. A mamãe não: era lavadeira e eu, ao seu lado, permitia-lhe
ampliar o número de "freguesas", como ela dizia.
O vô João ainda estava vivo quando entrei para a Escola e aprendi a ler e
escrever, graças a uma das “freguesas" de minha mãe. Ela comprou cadernos e lápis.
Quando vi a professora, pensei que havia encontrado finalmente o que desejava ser
mas, ao comentar isso em casa, minha avó já aconselhou o papai a não permitir que eu
sonhasse tão alto assim, pois sofreria. Nem meu pai acreditava nisso: “uma
professora preta? Acho que nem pode ter alguém assim”. Meu pai disse isto
não por ser racista, mas por ser um preto analfabeto que nasceu em 1904 e que tinha,
como única visão de mundo, a necessidade de trabalhar e sobreviver. O que se poderia
esperar de um dos filhos de um casal de escravos supostamente libertos em 13.05.1888?
Só que houve, sim, a primeira professora preta: eu. Meu pai teve muito
orgulho disso até a última frase de sua vida, quando disse "obrigado por existir, minha
filha".
Mas, enfim, naqueles tempos a Escola pública era direcionada apenas à elite e,
por isso, o ensino era bom e os professores, todos eles, recebiam bons salários.
Dedicavam-se e eram existentes, tanto que com eles aprendi a aprender sempre. Se sou
capaz de enviar um e-mail, algo impensável na década de 1940, é porque aprendi as
lições primeiras e indispensáveis de qualquer aluno.
Havia um único problema: os cursos eram diurnos, todos eles, porque eram
destinados a quem não trabalhava. Só vi cursos noturnos a partir da década de 1970 e,
ainda assim, com reservas. Meus pais só me permitiram estudar se eu, pela manhã,
frequentasse as aulas, mas, durante a tarde e o começo da noite, lavasse e passasse
roupas junto com minha mãe... e então, madrugada adentro, fazia minhas
lições e estudava à luz de lamparina. Minha média de sono era de
aproximadamente três horas por dia.
O sono e a dor em meus músculos e em minhas mãos foram gritos sufocados em
meu peito até dezembro de 1954, quando me tornei professora normalista (que
lecionava para primeira a quarto anos do ensino primário). Meu avô não pôde ter o
orgulho de me ver sendo respeitada pelas mesmas pessoas que sempre desrespeitaram
a ele e à minha família toda.
Enquanto meu pai trabalhou na olaria, seu patrão mandava-nos as roupas de sua
casa para que lavássemos. Acho que não chegava a somar 15 anos de idade quando
aquele velho perguntou ao papai por quanto ele me “venderia”. Muita gente pensa que
pobre não é honesto, mas a minha família toda sempre foi. O motivo era simples: a
única coisa que possuíamos em nossas vidas era honra. Por isso mesmo o papai disse ao
patrão que, se ele repetisse aquela pergunta novamente, seria morto... e quase foi:
houve a demissão. Foi inevitável.
Trabalhei como professora efetiva da rede pública do estado de São Paulo por 49
anos e 08 meses, do início de 1955 até 2004, poucos antes da minha aposentadoria
compulsória (que se daria quando completasse 70 anos de idade, em 19.12.2004).
Nunca faltei ou cheguei atrasada a uma única aula durante todo esse período. Jamais
deixei de estar dentro de uma sala de aula, em contato direto com meus alunos, e até
negligenciei minha própria saúde para jamais me ausentar. Sabe por quê? Porque,
como dizia minha mãe, se eu quisesse ser respeitada por meus colegas de trabalho,
todos brancos, eu deveria ser dez vezes mais correta e proba que eles.
Meu salário de professora permitiu-me cuidar melhor do papai e da mamãe, a
fim de que eles pudessem ter uma velhice tranquila. Consegui fazê-lo, mas ninguém
imagina o preço que tive de pagar. Meus parentes e amigos pobres afastaram-se de mim
porque se sentiam envergonhados em falar com uma professora, ao passo que colegas
de trabalho não aceitavam a cor da minha pele.
Essa história poderia ser interessante caso considerássemos que minha
conduta permitiu me transformar na professora que por maior tempo
continuado lecionou na rede pública em toda a história do Estado de São
Paulo.
Fui homenageada pelo Governador do Estado em pessoa, durante um almoço
especialmente dirigido a mim, mas... trocaria aquele almoço, aquela homenagem e
qualquer outra coisa para não sofrer o que sofri.
Não sou tola. Sei que minha história é bonita e pode ser tocante. Tenho ciência
até mesmo de que minha trajetória poderia ser utilizada como exemplo de alguém que
veio da miséria extrema, superou tudo e encerrou sua carreira com muita dignidade,
mas somente eu sei o preço que paguei por isto. Infelizmente só me apaixonei uma vez
na rida e fui correspondida, mas ele era branco e eu não. A mãe dele foi contrária ao
casamento e, sem forças para mais lutar, eu o ri partir para a cidade de São Paulo, onde
morreu anos depois.
Não tive amores, não tive filhos, fui ignorada durante meus primeiros vinte anos
de trabalho como professora e, às vésperas de completar 70 anos de idade, conquistei o
que me negaram ao longo de toda a vida: respeito.
A solidão maltrata demais. Quantas pessoas deixaram de ser meus amigos por
medo? Durante minha infância, todos, sem exceção. Se minha trajetória pode ser vista
como um belo romance, asseguro: vivê-la na minha pele negra fez a carne que há por
debaixo dela sentir muita, muita dor.
Nenhuma criança possui vocação para o crime: em 84 anos de vida posso
testemunhar que nunca tive um único cheque devolvido. Se algum dia praticasse
crimes, minha mãe e meu pai morreriam de desgosto, pois viveram honestamente... tão
honestamente que, em nove décadas de vida, jamais viram o mar.
Não sou tola para pensar que a realidade cultural, social e política é, hoje, similar
àquela de minha época. Já não estamos em 1934. O que isto significa? Que o senhor
Presidente e muitos outros já deveriam ter solucionado essa questão há muitos anos,
até mesmo para “enobrecer" seres humanos, mas na época correta.
Lugar de criança não é no trabalho, nem no crime, nem em qualquer coisa
diferente de Escola e formação.
Esforce-se para que o Estado ofereça estudo de boa qualidade, Universidade para
quem assim desejar, cursos técnicos, etc. O senhor, ao naturalizar sem pudor algum a
necessidade de trabalho infantil, dizendo que ele “não faz mal a ninguém", oferece às
crianças e aos jovens deste país somente a servidão!
O que pensar sobre isso? Gostaria que o Presidente Jair Bolsonaro me oferecesse
uma única resposta: se uma criança com 8, 10, 12 ou 14 anos de idade
perguntar-me se vale a pena trabalhar para receberUM SALARIO
MÍNIMO (ou menos) como retribuição de seu trabalho, mas ao mesmo tempo
um traficante garantir e provar a essas mesmas crianças que, no mundo do
crime, elas receberão 10 MIL REAIS MENSAIS... o que elas optariam?
O Presidente acredita, de fato, que trabalhar por R$ 998,00 ou até menos que
isso “enobrece" alguma criança ou jovem? Não estou falando aqui de adultos,
porque esses - na maioria dos casos - já têm discernimento sobre as consequências de
se envolver no mundo do crime. Provavelmente, aliás, envolveram-se com o crime
porque jamais mostraram a essas pessoas, quando ainda eram
crianças, uma outra forma de mundo que não fosse a barbárie.
Crianças e jovens ainda estão em processo de formação de valores e caráter. A
Escola, garanto, é o único local em que aprenderão valores mais “nobres”. Ao propor
trabalho às crianças e aos jovens, o Presidente da República incentiva a maior chaga
desse país, que é a “opção" entre perpetuar-se na miséria física ou na miséria
moral.
Peço ao Senhor Presidente que tome vergonha na cara!
Perdoe-me, jovem Henry, por considerações tão extensas, mas... não cheguei
aos 84 anos de idade para ser covarde. Demorei muitas horas para escrever tudo
isso porque tive de contar com a ajuda de terceiros para digitar. Está frio e, por tal
razão, minhas mãos estão mais trêmulas que de costume, tenho mal de Parkinson, mas
estou viva, sou cidadã e nunca compactuei com regimes ditatoriais como esses que o
Presidente idolatra - incluindo a ditadura militar deste país.
Vale lembrar que eu já era professora e tinha 30 anos de idade em 1964,
quando depuseram João Goulart e implementaram uma ditadura civil-militar no país.
Um dia, se você quiser, contarei em detalhes o quão horrível foi aquele período -
chegaram a ameaçar de MORTE minha mãe, meu pai e minha velha avó Rosa caso eu
não denunciasse meus colegas “subversivos".
Abraços,
Referencias:
How YouTube Built a Radicalization Machinefo r the Far-Right
https://wvvw.thedailybeast.com/hovv-youtube-pulled-these-men-down-a-
vortex-of-far-right-hate
Neste momento, está ocorrendo a CPMI das fake news no Senado para investigar
a propagação da desinformação no processo eleitoral e como enfrentá-la.
Terça-feira, questionaram Allan dos Santos, o responsável pelo site e canal no
Youtube Terça Livre, suspeito de ser financiado diretamente por Eduardo Bolsonaro em
sua nova vida em Brasília como um dos líderes das milícias virtuais bolsonaristas.
No entanto, já questiono a ineficácia da oposição em:
1 - compreender o fenômeno das fake news, e
2 - lidar com os tentáculos da desinformação dentro do governo.
Boa parte da esquerda brasileira ainda não entendeu o que aconteceu nestas
últimas eleições e as engrenagens que levaram Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto.
Então vamos recapitular.
Bolsonaro é um fenômeno que brotou nas redes sociais sobre um terreno fértil
semeado por inúmeros influenciadores ao longo de anos. Embora Bolsonaro tenha
começado a surgir com certa força no debate político de 2016 em diante e só ser levado
a sério como um forte candidato à presidência em meados de 2018, todo o cenário para
a ascensão desta retórica extremista de direita já estava preparado.
Olavo de Carvalho já dava suas aulas on-line desde há muito tempo e havia
criado levas e mais levas de discípulos, alunos e seguidores curiosos. Se enumerarmos
alguns aqui perceberemos o estrago que foi feito: Kim Kataguiri, Alexandre Frota,
Felipe Moura Brasil, Nando Moura, Lobão, Luiz Philippe de Orléans e Bragança, Joice
Hasselmann, Bia Kicis, Felipe G. Martins, o próprio Allan dos Santos, Carlos e Eduardo
Bolsonaro, Abraham e Arthur Weintraub, entre vários outros que hoje ocupam cargos
no governo Bolsonaro, que foram eleitos parlamentares ou atuam na mídia. Vários
destes caíram no desagrado do guru, que atua de fato com um modus operandi de seita
de fanáticos e, tal qual um líder incontestável, não perdoa dissidentes. Inclusive, muitos
dos que estão agora dando com a língua nos dentes conhecem muito bem os
procedimentos olavistas.
Bolsonaro floresceu num ambiente ideológico em parte cultivado por Olavo e
seus discípulos, em parte decorrente da sanha revanchista do antipetismo e lavajatismo.
Somando-se a isto uma profunda crise política e econômica, a facilidade de acesso às
redes sociais e uma população tremendamente insatisfeita, tínhamos diante de nós uma
tempestade perfeita.
Sendo assim, as fake news fornecerem a argamassa para disseminar o medo e o
ódio dos brasileiros, mesmo quando estas notícias falsas eram completamente absurdas
e inverossímeis. A crescente polarização política não foi um acidente, foi um projeto e
que favoreceu ainda mais as mentiras propagadas. No fundo, não importava se era
verdade ou mentira, as pessoas queriam simplesmente acreditar porque isto dava um
pouco de ordem e estabilidade ao mundo caótico ao seu redor, ao mesmo tempo em que
despontava alguém que prometia restaurar tal ordem, um outsider, um político que se
vendia como antissistêmico. Portanto, repito, a ascensão de Bolsonaro e da extrema-
direita pertence a um projeto de desconexão da interpretação do mundo de seus
respectivos fatos, e de uma eventual reconstrução a partir da criação de uma
constelação de inimigos imaginários à espreita para destruírem o Brasil e seus supostos
valores tradicionais. Possivelmente este projeto não visava exatamente o surgimento de
uma figura despreparada como Bolsonaro, mas, sem dúvida alguma, abriu caminho
para tal.
A desinformação, ou as fake news, não é uma anomalia neste momento, mas é o
fundamental para este novo mundo no qual já não sabemos navegar entre verdade e
mentira.
A CPMI das fake news será ineficaz porque seus integrantes parecem ter
dificuldades para constatar a simbiose entre esta ruptura política simbolizada pelo
governo Bolsonaro e a mentira, pois, sem elas, ele sequer teria sido eleito ou
despontaria como uma promessa de transformação/renovação política. E outro limite
também é como trabalharemos com as zonas limítrofes entre interpretação da realidade
e fatos, entre equívoco e mentira, entre jornalismo sério — enquanto uma atividade que
se dá em tempo real e maneira fragmentária — e um pseudojornalismo malicioso que
distorce tudo que toca.
E evidente que o esforço para combater a desinformação é louvável, porém, sem
o confronto ao substrato ideológico que justifica o uso da desinformação como arma de
combate político, com um grave potencial corrosivo numa sociedade democrática,
qualquer judicialização ou criminalização da prática será bastante ineficaz. Será uma
tentativa de minimizar os sintomas sem jamais confrontar suas causas.
O câncer que está matando o debate político brasileiro é, em sua essência,
ideológico e parte de uma estratégia de que tudo é permitido para destruir seu inimigo.
Eles pensam estar travando uma guerra cultural e, nesta guerra, vale tudo: a suspensão
de comportamentos éticos, o desprezo a valores religiosos que eles alegam defender e,
acima de tudo, uma rejeição da verdade. Os que se arrogam defensores da verdade são,
em essência, seus maiores inimigos.
Eu adoraria acreditar que nós, como sociedade, aprendemos alguma coisa com
a História e, deste modo, com os acertos e erros pretéritos.
No diálogo platônico “Timeu”, vemos o personagem inspirado no ateniense
Sólon ouvir de um sábio egípcio que “os gregos não passam de crianças", dando a
entender que, ao contrário dos egípcios, os gregos eram um povo sem memória, sem
História, sempre começando de novo.
Assim como no texto de Platão, também tenho esta impressão, que somos
sempre crianças, sem memória, em parte por ignorância, em parte por negligência. Não
damos o devido valor às grandes lições históricas, mas, frequentemente, sequer as
conhecemos. Um grande erro foi, por exemplo, a ampla anistia aos crimes cometidos
por agentes do Estado durante a ditadura militar no Brasil. Tentar apagar o erro sem
precisar retificá-lo.
A nossa incapacidade de lidar com a barbárie dos anos de chumbo, de
confrontar este passado, é justamente aquilo que permite hoje a manifestação de um
mórbido saudosismo pela ditadura. Pouco mais de 30 anos depois da redemocratização,
vemos pessoas nas ruas e na política clamando pela repressão, por um novo AI-5, por
golpes de Estado, por rupturas institucionais.
O mais surpreendente é que não estamos sozinhos nessa onda. Mesmo em
países onde a memória histórica foi cultivada nas escolas e na vida pública, também é
possível perceber esta nova marcha autoritária; mesmo na Alemanha, talvez o país que
mais sofreu com esta culpa coletiva pelos grandes horrores perpetrados em nome de
uma ideologia nefasta, também encontramos grupos flertando com uma retórica
assustadora.
Em 2012, foi lançado o livro, depois adaptado também ao cinema, “Ele está de
volta” de Timur Vermes. Esta trama de humor negro nos mostra o retorno, aos dias de
hoje, do ditador Adolf Hitler, surgindo numa Alemanha contaminada por um
sentimento xenófobo e repleta de ressentimento. Ao contrário do que poderíamos
imaginar, esta nova volta de Hitler, vista como piada por muita gente, vai gradualmente
se infiltrando no imaginário alemão atual e se naturalizando. “Ele diz o que todos nós
pensamos”, é uma frase que perpassa toda a obra, “ele (Hitler) não se curva ao
politicamente correto".
Uma série que também explora este espírito populista e autoritário é “Years
and Years", da BBC em parceria com a HBO. Ao longo de seus seis episódios, eles
tentam fazer uma projeção de como serão os próximos anos no Reino Unido e no
mundo. Mais uma vez, visualizamos exatamente a mesma retórica excludente e
perigosa, de confronto “ao politicamente correto” e que, no fundo, é uma defesa aberta
do discurso racista e intolerante. Não é uma projeção animadora, embora seja bastante
realista.
A ficção pode nos ajudar a entender o que está acontecendo e, quem sabe,
funcione até melhor do que as advertências provenientes da História.
“Nunca mais” foi um dos slogans repetidos após o Holocausto, uma
advertência também explicitada no artigo “ Educação após Auschwitz” de Theodor
Adorno, que defende a necessidade de jamais nos esquecermos do que ocorreu.
Mas nós nos esquecemos. Não estamos observando os alertas. Estamos
desprezando os padrões. Somos sempre crianças, e foi justamente o ideal do vigor da
juventude um dos nutrientes essenciais do fascismo — lembremo-nos da Juventude
Hitlerista, pois os jovens são o futuro da ideologia, são “quadros em branco” nos quais
devemos inculcar a grandiosa mensagem do líder incontestável.
Devemos resgatar a memória da barbárie e dela extrair suas mais cruciais
lições, pois o futuro não precisa ser o passado.
E que repitamos sempre: nunca mais!
Mais urna vez assistimos ao presidente saindo diante do Palácio do Planalto para
saudar manifestações golpistas que visam intimidar o Supremo Tribunal Federal e o
Congresso. Uma vez mais vimos a enxurrada de notas de repúdio lançadas a esmo nas
redes socais.
Como das outras vezes, a intenção de Bolsonaro é clara. Este é um jogo de
expansão e contração. Ele atiça, esbraveja, inflama os ânimos, e depois recua, afirma
ser um defensor da Constituição e da democracia, que respeita os demais poderes.
Embora a ameaça de um avanço autoritário tenha se tornado uma sombra permanente
neste governo, o presidente se encontra isolado e acuado. Está blefando, ou pelo menos
é o que aparenta, já que não temos muita certeza de qual é a posição oficial das Forças
Armadas, nas quais Bolsonaro se respalda para estas bravatas. Assim como o
presidente, os oficiais militares mandam mensagens desencontradas: ora se silenciam,
ora repudiam nos bastidores, raramente sinalizam desacordo, às vezes glorificam a
“revolução de 64".
Já vimos este filme antes inúmeras vezes em diferentes ocasiões, mas agora
temos um elemento adicional bastante singular — a demissão de Sérgio Moro. O ex-
ministro da Justiça abandonou o cargo e soltou uma bomba-relógio no colo do
presidente. Sabemos que, em algum momento, ela vai explodir, mas não temos como
prever as consequências. Após oito horas de depoimento na Polícia Federal, Moro
prometeu provas e testemunhas. Este pode ser o começo do fim para Bolsonaro, que
tem se agarrado ao assento presidencial comprando o apoio do Centrão, conseguindo
assim alienar a sua base lavajatista que migra a tiracolo de Moro e, ao mesmo tempo,
confundindo de maneira irreconciliável o seu eleitorado a quem ele havia prometido
que não faria toma-lá-dá-cá, que não praticaria a talvez “velha política", como, se de
algum modo, Bolsonaro representasse qualquer coisa de nova. Não, ele é sinônimo da
Velha Política e das velhas práticas. O presidente está compreendendo que neste jogo
político nem sempre a ideologia sobrevive ao pragmatismo, especialmente quando
arrota uma ideologia de conveniência, nutrindo-se de um espírito de indignação
coletiva.
O maior desafio é como a oposição deve navegar em meio a este turbilhão.
Quando pensamos na História, temos a comodidade de julgar anacrónicamente as
decisões dos grandes líderes do passado, mas já não temos esta lucidez no calor do
desenrolar dos eventos. Corremos o risco de subestimar o discurso de Bolsonaro e
julgá-lo incapaz de atentar contra as instituições e seguir seus já conhecidos impulsos
autoritários, abrindo-lhe uma brecha para a marcha da arbitrariedade. Por outro lado,
um erro igualmente problemático seria superestimar a posição do presidente, supondo
que ele realmente tem mais apoio do que de fato tem e que, ao tentar neutralizá-lo, seja
através de um impeachment ou tentando forçar sua renúncia, isto o fortaleça e lhe dê
um fôlego adicional.
Este é o desafio do tempo presente e destas conjunturas sempre em
transformação. E como se participássemos de um jogo no qual não enxergamos quais
são os movimentos do time adversário, a não ser quando já for tarde demais. Precipitar
se pode nos levar a abrir a guarda e expor as nossas táticas e fraquezas; porém, agir
tardíamente poderia ser fatal.
Já sabemos muito bem que uns dos elementos centrais das extremas-direitas, e
que hoje se trata de um esforço político coordenado e global, são a desinformação e a
confusão. Ganha-se terreno ao desorientar a oposição para que ela nunca saiba
exatamente o que está acontecendo, para que perca tempo desnecessário enfrentando
factoides, desmentindo fake news, sempre na defensiva e inevitavelmente orbitando a
narrativa elaborada por líderes populistas e suas máquinas de destruição de reputações.
Mas tudo tem seu fim. Em algum momento, conseguiremos, mesmo que
tateando nas trevas, encontrar a saída deste labirinto de mentiras e distorções. A noite
pode ser escura e assustadora, mas não dura para sempre.
Este livro não seria possível sem o generoso espaço que me foi concedido por
Mino e Manuela Carta e pelo editor Ricardo Pieralini na Carta Capital. Neste mais de
um ano e meio de parceria, pude expor a minha visão do atual cenário político tanto
para seus leitores quanto em sua plataforma do Youtube.
A Sálvio Nienkotter, o extraordinário editor que publicou recentemente dois dos
meus Iívtos pela Kotter Editorial, incluindo o meu livro em coautoria com Heloisa de
Carvalho, Meu Pai o Guru do Presidente, em conjunto com a Editora 247, no qual
Heloisa e eu nos esforçamos para retraçar a gênese de Olavo de Carvalho e como ele
passou a se tornar uma figura central na ascensão da extrema-direita brasileira. Muitos
dos textos aqui publicados passaram pelo olhar clínico do Sálvio, sempre com
enriquecedoras sugestões para aprimoramento do texto.
As antropólogas Débora Diniz, uma verdadeira luz para nós neste sombrio
percurso, uma incansável defensora dos valores da democracia, dos direitos humanos e
da dignidade de minorias, e Rosana Pinheiro-Machado, cuja obra Amanhã vai ser
maior iluminou para mim muitos aspectos dos processos e contradições que
permitiram a chegada de Bolsonaro à presidência, e que nos honra muito com sua
amizade.
A Glenn Greenwald e a equipe de jornalistas do The Intercept Brasil que, através
da cobertura das conversas vazadas entre procuradores da força-tarefa da Lava Jato e o
ex-juiz Sérgio Moro, revelaram de maneira inequívoca a real natureza e a parcialidade
do combate à corrupção no governo petista, assim como o modo que este espírito
lavajatista também influenciou tremendamente no destino do país.
A Carlito Neto, Nilce Moretto, Dead Consense, Jana Viscardi, Marco Bezzi,
Helder Maldonaldo, Ferréz, Ale Santos, Maurício Ricardo, Clayson Felizola, Gabriel
Montanari, Tassio Denker, Bruno Silvestre, Normose, Pirula, Família Passos, Felipe
Neto, dentre muitos outros influenciadores e produtores de conteúdo que, ao longo dos
últimos anos, enfrentaram o obscurantismo, o autoritarismo e o retrocesso.
A Anthony Koontz por ajudar a aprimorar o design da capa.
A todos os milhões de brasileiros que não compactuam com este governo de
atraso e que darão o máximo de si para proteger a tão frágil e complicada democracia
brasileira.