O Passado, Modos de Usar - Enzo Traverso
O Passado, Modos de Usar - Enzo Traverso
O Passado, Modos de Usar - Enzo Traverso
POLÍTICA
Rememoração
A história, que no fundo, lembrava Ricoeur, não é mais do que uma parte da memória,
escreve-se sempre no presente. Para existir como campo do saber, no entanto, a história
deve emancipar-se da memória, não rejeitando-a, mas colocando-a à distância. Um
curto-circuito entre história e memória poderia ter consequências prejudiciais para o
trabalho do historiador. (p.25)
[...] a memória singulariza a história, na medida em que é profundamente subjectiva,
selectiva, muitas vezes desrespeitadora da cronologia, indiferente às reconstruções de
conjunto e às racionalizações globais. (p.26)
Separações
A separação entre a história e a memória foi fruto de críticas impostas pela filosofia de
Bergson, pelo olhar psicanalítico de Freud e pela sociologia de Halbwachs,
transformando história e memória num par antinómico.
Para Hegel, apenas os povos estatizados, dotados de uma história escrita, possuem uma
memória. Os outros – “os povos sem história” (geschichtlose volker), ou seja, o mundo
não europeu desprovido de um passado estatal e do seu relato codificado pela escrita –
não podem superar o estádio de uma memória primitiva, feita de “imagens”, mas
incapaz de se condensar em consciência histórica. Daqui resulta uma visão dupla da
história, como prerrogativa ocidental e como dispositivo de dominação. (p.30)
A história, da mesma forma que a memória, não tem apenas as suas falhas; pode
também desenvolver-se e encontrar a sua razão de ser no desaparecimento de outras
histórias e na negação de outras memórias. [...] Por outro lado, deve ter-se em conta a
influênica da história sobre a própria memória, já que não existe memória literal,
original e não contaminada: as recordações são constantemente elaboradas por uma
memória inscrita no espaço público, submetidas aos modos de pensar colectivos, mas
também influenciadas pelos paradigmas especializados da representação do passado.
(p.36-37)
Empatia
II – O TEMPO E A FORÇA
A memória dos oprimidos não se priva de protestar contra o tempo linear da história.
Ela exige, segundo Benjamin, “um presente que não é de forma alguma a passagem do
tempo, mas antes a sua paragem e bloqueio”. (p. 56)
A crise dos partidos e das instituições que encarnavam a memória antifascista criou as
condições para a emergência de uma outra memória, até então silenciosa e
estigmatizada. O fascismo é agora reivindicado como uma parte da história nacional, o
antifascismo rejeitado como uma posição ideológica “antinacional” [...] o Estado não
tivesse que se pronunciar sobre os valores e as motivações dos actos praticados, ou, pior
ainda, como se pudesse colocar no mesmo plano carrascos e vítimas, objectos de
memórias “simétricos e compatíveis”. (p.65)
Como memória e história não estão separadas por uma barreira inultrapassável, mas sim
em interacção permanente, existe uma relação privilegiada entre memórias “fortes” e a
escrita da história. Quanto mais forte é a memória – em termos de reconhecimento
público e institucional -, mais o passado de que é vector se torna susceptível de ser
explorado e historicizado. (p.84)
O linguistic turn – Permitiu quebrar a dicotomia que separava até então a história das
ideias e a história social, assim como ultrapassar os limites simétricos de uma história
do pensamento auto-referencial e de um historicismo fundado sobre a ilusão de que a
interpretação histórica se reduziria ao simples reflexo de uma prática rigorosa de
objectivação e contextualização dos acontecimentos do passado. O linguistic turn
sublinhou a importância da dimensão [...] de ideologia, de representações e de códigos
literários herdados que se refractam no itinerário individual de um autor. [...] A mais
generalizada das suas derivas metodológicas foi, segundo as palavras de Roger Chartier,
a tendência para “uma perigosa redução do mundo social a uma pura construção
discursiva, a um puro jogo de linguagem”. (p.89-90).
Porém, a história não é assimilável à literatura, uma vez que a mise em histoire do
passado, isto é, o tornar o passado em história, deve sujeitar-se à realidade e a sua
argumentação não pode evitar a obrigação de, quando necessário, apresentar provas. É
por isso que a afirmação de Roland Barthes, segundo a qual “o facto nunca tem mais do
que uma existência linguística, não é aceitável.” (p.91)
François Bédarida a reconsiderar, no decurso dos anos 1990, a posição de “um certo
desdém” que os historiadores tinham tido tendência a manifestar, durante as décadas
precedentes, face à noção de facto, e a “exortá-los vigorosamente a não rejeitarem o
bebè-objectividade com a água do banho positivista”. [...] Pierre Vidal- Naquet colocou
o problema em termos muito claros: “se o discurso histórico não estivesse ligado,
mesmo que através de todo o tipo de intermediários, ao que nós chamaremos, à falta de
melhor, o real, estaríamos ainda no discurso, mas esse discurso deixaria de ser
histórico”. (p.93)
Verdade e justiça
A relação entre a história e a memória tem inscrito cada vez mais as noções de verdade
e de justiça. “Este vínculo torna-se hoje cada vez mais problemático com a tendência
crescente para uma leitura judiciária da história e uma judiciarização da memória”.
(p.100)
Carlo Ginzburg contribuiu de forma poderosa para perceber a separação entre o juiz e o
historiador. Enquanto o juiz e o historiador, partilham de um mesmo objetivo: a busca
pela verdade, angariada em provas; a do historiador não constitui uma verdade
normativa, absoluta. Pelo contrário, permanece parcial e provisória, jamais definitiva.
Poderemos fazer um uso crítico da memória? [...] O risco não é o de esquecer a Shoah,
mas o de fazer um mau uso da sua memória, de embalsamá-la, de a fechar nos museus e
de neutralizar o potencial crítico, ou, pior, de a submeter a um uso apologético da actual
ordem mundial. (p.110)
A elaboração da memória dos passados fascista e nazi, iniciada alguns anos antes em
vários países europeus – enleou-se com o fim do comunismo. A consciência histórica do
carácter assassino do nazismo serviu de parâmetro para medir a dimensão criminal do
comunismo, rejeitado em bloco – regimes, movimentos, ideologias, heresias e utopias
incluídas – como um dos rostos do século da barbárie. [...] Se o nazismo e o comunismo
são os inimigos irredutíveis do Ocidente, este deixa de constituir o seu berço para se
tornar a sua vítima, erigindo-se o liberalismo como o seu redentor. (p.123-124)
O desaparecimento do fascismo
Terceiro debate: em meados dos anos 1990, a obra do politólogo americano Dainel
Goldhagen suscitou, bem para lá dos meios universitários, um vasto debate público
sobre a ligação da sociedade alemã com o regime nazi e o grau de implicação dos
alemães “normais” na efectivação dos crimes nazis. (p. 132)
Quarto debate: em 1998, o tradicional encontro de historiadores alemães, que tem lugar
de dois em dois anos, foi marcado por debates muito intensos a respeito do passado da
sua disciplina. [...] Foi esse congresso que desenhou o perfil de uma nova geração – no
sentido histórico, e não simplesmente cronológico do termo, segundo a definição de
Mannheim – que emergiu no decurso da última década. [...] Foi de certa forma
inevitável que, após ter sido um dos vectores privilegiados da elaboração de uma
consciência histórica e do desenvolvimento de um vasto debate na sociedade sobre o
uso público da história, a comunidade de historiadores se visse obrigada a centrar o seu
olhar sobre o seu próprio percurso e a proceder, muito honestamente e portanto
dolorosamente, à sua autocrítica. (p.133-134)
Quinto debate: a exposição sobre os crimes da Wehrmarcht, organizada pelo Institut fur
Sozialforschung de Hamburgo e inaugurada em 1995, tem uma longa e tormentosa
história, cuja conclusão podemos referenciar ao ano de 2002. [...] essa exposição
rompeu com um lugar-comum instalado na opinião pública alemã, segundo o qual o
exército não teria estado implicado nos crimes do nazismo, que teriam sido
responsabilidade quase exclusiva dos SS e da Gestapo. [...] Mostrar a implicação da
Wehrmacht no genocídio dos judeus significou, portanto, demolir o mito segundo o
qual os alemães “não sabiam”. (p.134-135)
Mas, no entanto, se virmos bem, as três primeiras controvérsias, que constituem também
a premissa de a base sobre a qual se desenvolveram as outras, andam em torno de uma
mesma questão: a singularidade histórica do nazismo e dos seus crimes. O
reconhecimento dessa singularidade é doravante o postulado implícito à maior parte das
pesquisas alemãs sobre o nazismo. Não se trata aqui de pôr em causa essa singularidade,
que podemos muito bem admitir e que constitui, em vários aspectos, uma aquisição
importante da historiografia. O que mercê ser sublinhado, em contrapartida, é o seu
corolário, ou seja, as consequências problemáticas, algumas vezes inquietantes, que
acompanharam esse reconhecimento. Na primeira linha dessas consequências negativas
deve inscrever-se, precisamente o desaparecimento do conceito de fascismo. (p.136)
Na maior parte dos casos os historiadores que continuam a utilizar a noção de fascismo
são os representantes da escola histórica da antiga RDA, como Kurt Patzold, marxistas
como Reinhard Kuhnl, ou discípulos de esquerda de Nolte, como Wolfgang
Wippermann. (p.137)
Os primeiros limites vêm de uma teoria clássica sobre o fascismo (marxista), a qual
identificava o nazismo como uma mera expressão mais agressiva do capital e do
imperialismo alemão, resultado de simples alterações das relações de forças entre as
classes. Contudo, diga-se de passagem, as interpretações são muitas vezes bem mais
ricas e complexas do que se pensa. “(os marxistas estão entre os primeiros a ter falado
do fascismo em termos de totalitarismo, de policracia, de carisma, de psicologia de
massas, etc).” (p.139)
O segundo fator é a ausência do antissemitismo, que só vai ocupar lugar no fascismo
italiano a partir de 1938, dezesseis anos após Mussolini chegar ao poder.
Além disso, a rejeição da noção de fascismo (e por consequência antifascismo) não faz
mais do que recolocar a eterna questão das relações entre história e memória. Abre um
hiato radical entre a historicização actual do nacional-socialismo e a percepção que
tinham os seus contemporâneos, quando o fascismo, antes de ser uma categoria
analítica, era um perigo contra o qual se tinha de lutar e quando o antifascismo, antes de
se tornar uma ideologia de Estado, constituía um ethos partilhado pela Europa
democrática e, nesse contexto, pela cultura alemã no exílio. (p.147)