Narrativa Audiovisual Na Sala de Aula - Relatos Selvagens

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 13

NARRATIVA AUDIOVISUAL NA SALA DE AULA: RELATOS SELVAGENS,

CRÔNICA E PRODUÇÃO DE TEXTO1

Diogo dos Santos Souza (Fale/Ufal)2

Como alternativa metodológica para o ensino de língua portuguesa e literatura, o Cinema pode
ser um recurso, na sala de aula, para seduzir e provocar os alunos a entrarem no universo da
palavra, seja para o âmbito da leitura, seja para práticas que envolvem a produção de texto. Nesse
sentido, o presente trabalho traz um relato de experiência de aulas de língua portuguesa com uma
turma da graduação em Comunicação Social (Jornalismo e Relações Públicas) em que o filme
argentino Relatos Selvagens (2014), de Damián Szifron, foi estudado como uma via de leitura
para o conceito de crônica. Essa atividade culminou em uma produção textual, que será descrita
no decorrer desse relato.

Palavras-chave: Filme. Crônica. Relatos Selvagens. Ensino

1
Agradeço a leitura atenta do colega e pesquisador das relações entre Literatura e Cinema Felipe Benício,
do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Faculdade de Letras da Universidade Federal
de Alagoas, que forneceu preciosas contribuições para elaboração desse texto.
2
Douorando em Estudos Literários. Professor de Língua Portuguesa e Literatura do Instituto Federal de
Alagoas – Campus Piranhas. E-mail: [email protected]

973
1. Introdução
A grade curricular que regulamentava o curso de Comunicação Social da
Universidade Federal de Alagoas (Ufal) até 2015 previa duas disciplinas semestrais
ligadas à Língua Portuguesa: Português para Comunicação 1 (estudantes do primeiro
semestre) e Português para Comunicação 2 (estudantes do segundo semestre). Em turmas
que misturavam alunos de Jornalismo e Relações Públicas, o professor para as referidas
disciplinas, oriundo da Faculdade de Letras, seguia uma ementa direcionada à leitura e
produção de textos, compreendendo língua e linguagem como objetos variados de acordo
com as situações comunicativas nas quais o sujeito se insere.

Para a compreensão desse relato de experiência, é necessário fazer um percurso


que contextualize a atividade em questão para que o leitor entenda as condições de
produção dos trabalhos desenvolvidos. Levando em consideração que temas como
variedades linguísticas, coesão e coerência e tipos textuais já tinham sido trabalhados na
disciplina Português para Comunicação 1, optei a focar as atividades que sequenciaram
esse momento em discussões sobre gêneros textuais e produção de texto, dando
prioridade a gêneros que são mais presentes no cotidiano profissional da Comunicação
Social. Nesse sentido, a crônica surgiu como um objeto de estudo pertinente, uma vez que
dialoga, em sua composição, com o discurso jornalístico e o discurso literário, mantendo-
se numa zona fronteiriça entre essas duas modalidades de texto.

As noções de crônica trabalhadas em sala de aula tiveram início com o texto de


Antonio Candido “A vida ao rés-do-chão”, que lança uma abordagem acerca da história
do gênero Brasil. Como a discussão possui um direcionamento voltado para o ponto de
vista da crítica literária, destaquei pontos mais pertinentes à área de Comunicação Social,
que serão comentados mais adiante. Prosadores como Clarice Lispector, Rubem Braga e
Mário Prata3 fizeram parte de nossas aulas, momento em que mostrei como, dentro da
proposta distinta de cada autor, a crônica pode adquirir variações de ordem temática e
formal.

3
As crônicas lidas do autores mencionados foram as seguintes: “A morte da baleia”, “Os jornais” e “O
mato” e “Amor, vamos discutir a relação?”, respectivamente.

974
Quase simultaneamente ao andamento das discussões sobre a crônica, o filme
Relatos Selvagens, de Damián Szifron, que havia estreado no Brasil em dezembro de
2014, ainda fazia bastante sucesso. Quando assisti à película pela segunda vez, pensei que
era possível fazer um diálogo entre cinema e gênero textual, visto que os seis “relatos”
apresentados em tela se aproximam de aspectos característicos da constituição da crônica.
Solicitei à turma que formassem duplas e seguissem a linha de pensamento do enunciado
abaixo, que corresponde a questão que foi colocada para os alunos:

Uma das principais características do gênero crônica é o exercício de


apropriação com um fato do cotidiano, transformando uma notícia,
geralmente, em uma narrativa ficcional, que versa entre o “real” e o
“imaginário”, com pitadas de humor e crítica social. Assim, é possível
compreender que a construção desse gênero literário se relaciona
diretamente com o contexto jornalístico, principalmente quando
levamos em conta os meios de produção, circulação e recepção da
crônica, tendo o jornal como seu suporte material. Nessa perspectiva,
podemos encontrar em outras modalidades textuais a presença das
premissas que constroem a crônica, como, por exemplo, o filme Relatos
selvagens (2014), do diretor argentino Damián Szifron. Na película
mencionada, temos 6 histórias diferentes de personagens que estão
vivendo no limite do seu dia a dia, entre o cômico, o trágico e a reflexão
crítica sobre as relações pessoais na contemporaneidade. Isto posto, a
proposta desta atividade é que, em dupla, o filme seja assistido como se
fosse uma coletânea de crônicas. Logo, nesse caminho, para pensar
numa crônica, podemos nos direcionar para a notícia que a originou. É
desse princípio que vocês irão partir: escrever, para cada história, uma
possível notícia que pode ter sido o mote de construção para cada
“crônica” do filme. Ou seja, vamos partir de um movimento inverso:
criar, através do ato de ficcionalizar, o não ficcional. Usem a
criatividade. Vocês podem escrever essas notícias no formato de um
layout de site de notícias, jornal impresso...

Assim, baseados nas orientações acima, os estudantes desenvolveram os seus


trabalhos. Infelizmente, por conta de um calendário acadêmico afetado pela greve das
Universidades públicas no ano de 2015, o cronograma da disciplina foi prejudicado. Essa
atividade foi feita como exercício complementar. O link do filme foi disponibilizado para
que a turma pudesse assisti-lo em casa. Mas, antes desse momento, o passo a passo para
o desenvolvimento do trabalho – que será mais detalhado no decorrer deste texto – foi
explicado para os estudantes, bem como foi conversado sobre a estrutura da narrativa
audiovisual, a razão de sua escolha e as suas proximidades com a crônica (narrativa curta,
de caráter urbano, que se apropria de fatos que fazem parte do cotidiano do leitor). A
atividade foi utilizada como encerramento das reflexões sobre a crônica, numa tentativa
de, através do diálogo entre dois discursos (o fílmico e o literário), mostrar para a turma
como pode ser amplo o leque de possibilidades de trabalho com o gênero em questão.

975
Isto posto, o objetivo deste trabalho é fazer uma análise de duas produções textuais
que foram desenvolvidas tendo como base a perspectiva de compreender Relatos
Selvagens como um conjunto de seis crônicas, escrevendo uma notícia para cada relato.
Logo, elementos do discurso jornalístico foram incorporados nessas produções, fato que
mostrou que os estudantes compreenderam a proposta da atividade e utilizaram a
criatividade como um recurso de leitura do gênero crônica. Nesse caminho, iremos
analisar a recepção do filme, identificando como a narrativa audiovisual foi relida na
escrita de uma notícia e observando quais os elementos do filme foram apropriados pelos
redatores. Assim, o cinema será visto como um recurso para a produção de um texto não
ficcional que teve como base um texto ficcional.

2. Crônica, narrativa audiovisual e ensino

O cinema é o melhor instrumento para exprimir o mundo dos


sonhos, das emoções, do instinto. O mecanismo produtor da
imagem cinematográfica é, por seu funcionamento intrínseco,
aquele que, de todos os meios da expressão humana, mais se
assemelha à mente humana, ou melhor, mais se aproxima do
funcionamento da mente humana em estado de sonho.
Luis Buñuel

Antes de adentrarmos na leitura dos dois trabalhos produzidos com base no filme
Relatos Selvagens, é preciso expor o ponto de partida do professor em relação à proposta
pedagógica de incluir o cinema como um recurso de compreensão do gênero crônica. A
narrativa audiovisual argentina foi escolhida como componente da ementa da disciplina
devido ao fato de os realizadores4 do filme utilizarem um modo de narrar que se aproxima
da linguagem da crônica. Ao todo, há em tela seis curtos relatos que apresentam histórias
e personagens diferentes, tendo em comum entre eles o humor, a violência e a crítica
sobre a forma como os indivíduos do século XXI, no contexto da urbanidade, relacionam-
se. Essa atmosfera em que paira a produção fílmica dialoga com alguns temas vistos nas
crônicas dos autores brasileiros mencionados5. A percepção desse elo entre o que já tinha

4
Compreendo como “realizadores” toda a equipe de produção do filme: roteiristas, diretores, produtores,
montadores, cenaristas, entre outros).
5
Cada uma das seis histórias do filme conta a trajetória de personagens diferentes: 1) Várias pessoas dentro
de um avião descobrem que seus passados estão interligados por uma pessoa em comum; 2) Dois homens
chegam ao limite da selvageria ao brigarem numa autoestrada; 3) Uma garçonete reencontra um inimigo
no restaurante que trabalha e pensa numa vingança; 4) Um jovem atropela uma mulher grávida e os seus

976
sido visto em sala de aula e o filme fez com que a proposta pedagógica fosse construída
nesse caminho.

Entre os variados estudos teóricos sobre a crônica no Brasil, optamos seguir a


perspectiva de Antonio Candido em seu livro Crônica: o gênero, sua fixação e suas
transformações no Brasil (1992), pois o olhar do autor dialoga com a forma que
compreendemos a narrativa audiovisual como um conjunto de crônicas: “em lugar de
oferecer o excelso, numa revoada de períodos e adjetivos candentes, pega o miúdo e
mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas” (CANDIDO,
1992, p. 14). No filme de Damían Szifron, situações do cotidiano, aparentemente comuns,
são desenvolvidas, até hiperbolicamente, às vezes, de maneira inusitada, apresentando a
complexidade de casos triviais, carentes de uma “grandeza”. É como se, na tela, “a vida
ao-res-do-chão” entrasse numa zona de amplitude, dando ao telespectador uma espécie
de lupa para observar o modo viver urbano. Como a produção do texto foi solicitada num
momento de estudo em que tratávamos de gêneros textuais e interdiscurso6, é preciso
passar pelo pensamento bakhtiniano:

Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados


com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação
discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma
resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo [...]: ela
os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os como
conhecidos, de certo modo os leva em conta (BAKHTIN, 2014, p. 297).

Para o teórico russo, os gêneros do discurso, ainda que situados em contextos


comunicativos diferentes, relacionam-se através de “ecos” que os ligam numa
“identidade”. É por esse viés que analiso a relação entre crônica e narrativa audiovisual,
uma vez que considero que a composição do filme traz marcas do discurso literário. Além
disso, é sabido que o cinema, na história das artes, é uma arte jovem quando comparada
à literatura, fato que fez com que o discurso fílmico incorporasse vários elementos do
dizer literário. Visto isso, seja pela via da negação, seja pela via da complementação, é
interessante observar como os estudantes interagiram com a produção de notícias tendo

pais tentam acobertar o crime; 5) O cansaço de um sujeito ao não se adequar às regras de trânsito; 6) Os
fatos inesperados de uma recepção de casamento em que noivo e noiva transitam entre amor e violência.
6
Entende-se como “interdiscurso” o procedimento a qual um discurso incorpora em sua constituição um
discurso de outra área de conhecimento.

977
como partida um texto ficcional e a tensão entre a composição literária e fílmica e a escrita
jornalística.

Na palestra7 “Análise de filmes em sala de aula”, proferida por Marcos


Napolitano, da Universidade de São Paulo (Usp), em 2010, o professor destaca que é
preciso que o docente não somente saiba a função do cinema na sala de aula, como
também esteja em contato com o que acontece no circuito audiovisual, pois as condições
de produção, circulação e suporte influem diretamente na recepção do espectador. O
palestrante ainda menciona que o cinema vai além do estímulo à leitura, devendo, então,
manter-se conectado com a instituição educacional na qual ele está sendo inserido. No
presente relato de experiência, a atividade de produção texto foi inserida no contexto de
estudantes que estão em contato constante com o discurso audiovisual.

O cinema, no ambiente do ensino, não deve ser observado como um instrumento


que substitui uma discussão sobre determinado assunto. Às vezes, na sala de aula, o
professor utiliza o filme como uma forma de “passatempo”, atribuindo-lhe função sem
fundamentação pedagógica que, quando se torna perceptível ao aluno, ou seja, quando
ele percebe que o filme está ali para preencher um horário e não estimular um debate, a
narrativa audiovisual se transforma em algo sem utilidade. O simpósio “O cinema em sala
de aula como a construção de saberes e a (re) construção de identidades: propostas
metodológicas para a educação básica”, que faz parte da programação do IV Colóquio de
Estudos Linguísticos e Literários (Cielli), na Universidade de Maringá, também passou
por essas reflexões nas trocas de experiências entre os professores, momento que
estimulou a vontade de compartilhar essa proposta de estudo da crônica.

As políticas educacionais e culturais que incentivam a produção audiovisual tanto


em instituições de educação básica quanto em instituições de ensino superior estão
solidificando a inserção do universo cinematográfico na sala de aula. A Lei nº 13.0068,
por exemplo, publicada em 2014, “obriga a exibição de filmes de produção nacional nas
escolas de educação básica”. Ainda que o foco desse trabalho seja numa experiência de
ensino superior, é válido uma passagem por essa questão, uma vez que a educação básica
precede o nível de educação que figura a nossa discussão. É importante regulamentar, no
currículo escolar, um tempo dedicado à produção audiovisual, porém, antes disso, faz-se

7
<https://www.youtube.com/watch?v=n1UTnjFnBws&spfreload=10>
8
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13006.htm>

978
necessário pensar em metodologias de práticas escolares que incorporem o discurso
fílmico às áreas de conhecimento. Com essa Lei, notamos que as Diretrizes que
comandam a organização curricular compreendem que o cinema é importante na sala de
aula, entretanto, as formas como esse trabalho se efetuará, em âmbitos de circulação,
condições de exibição e recepção ainda são caminhos pouco explorados.

A função da narrativa audiovisual precisa caminhar com os desejos das demandas


pessoais dos estudantes, mostrando que não é somente um estímulo à leitura. Por
exemplo, como eu já sabia que os alunos de Comunicação Social apreciam bastante
discursos visuais, incluí o cinema com a intenção didática de seduzi-los através de um
objeto de estudo que possui um lugar afetivo no cotidiano deles, além de fazer parte do
dia a dia profissional também.

3. Primeiro relato selvagem

O primeiro trabalho que se propôs a desenvolver notícias baseadas em cada uma


das seis histórias do filme Relatos Selvagens foi escrito por dois alunos do curso de
Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo. Inicialmente, para podermos
começar a análise da produção textual, é preciso expor o ponto de vista que norteou o
estudo do gênero jornalístico “notícia”. Para Nilson Lage (1990, p. 7), “diante do relato
feito em texto, pode-se sempre perguntar como terá sido isso, e imaginar uma possível
realidade concreta; diante do relato de imagens que se sucedem, cabem as perguntas Qual
o nome disto? e O que isto quer dizer?”. No caso da produção textual em questão, ir ao
contexto de origem da notícia significa se dirigir à narrativa audiovisual e recriar uma
história ficcional no plano da simulação de um público leitor, na tentativa de adentrar
mais no universo cronístico.

No livro Como usar o cinema na sala de aula (2013), Marcos Napolitano destaca
algumas utilizações didático-pedagógicas do cinema, alertando para possibilidades e
armadilhas que o professor pode encontrar nesse percurso. A proposta do filme como um
“texto-gerador” foi um caminho percorrido na realização da produção da notícia com base
no filme, entendendo que:

O uso do filme como texto-gerador segue os mesmos princípios de


abordagem anterior, com a diferença que o professor tem menos
compromisso com o filme em si, sua linguagem, sua estrutura e suas

979
representações, e mais como as questões e temas (políticos, morais,
ideológicos, existenciais, históricos etc) que suscita [...]. O importante
é não ficar apenas no filme como “ilustração”, mas usar criticamente a
narrativa e as representações fílmicas como elementos propulsores de
pesquisas e debates temáticos (NAPOLITANO, 2013, p. 28).

Relatos Selvagens pode ser considerado como um “texto-gerador”, uma vez que a
ideia principal da atividade era produzir um texto que transferisse as histórias do filme
para o plano jornalístico. Andando um pouco na contramão do posicionamento de
Napolitano (2013), tivemos um intenso compromisso com a linguagem e a estrutura do
filme, posto que esses elementos expressavam, junto aos temas abordados, o diálogo da
narrativa visual com a composição do gênero crônica. Dessa maneira, o filme foi
trabalhado como um recurso de leitura para a crônica, promovendo também a observação
da escrita literária em contato com situações do cotidiano e mostrando como este pode
ser apropriado tanto pela ficção quanto pela não ficção.

As notícias escritas pelos autores do trabalho não seguem a ordem de disposição


dos relatos do filme. O primeiro texto corresponde à quarta história da narrativa
audiovisual, tendo como título: “Engenheiro explode carro no setor de guinchos do
Departamento de Trânsito”. Aqui, o redator utilizou elementos do discurso da rede social
Twitter para dar uma maior dinamicidade ao texto, impulsionando a interação com um
possível público jovem, ao utilizar hashtags. Tendo como função ser uma espécie de
complemento de sentidos, a hashtag atua nesse plano do dizer algo mais, que nem sempre
pode ter o objetivo de dar mais “clareza” ao texto. Nesse caso, os redatores utilizaram
esse recurso como forma de expressar a voz de possíveis leitores que manifestaram apoio
ao engenheiro, o “Bombita”, mostrando que a ação, ainda que violenta, foi recebida
positivamente por uma parte da população. No filme, há uma passagem em que notícias
de jornal que mencionavam o fato são apresentadas, ilustrando o jornal como uma espécie
de lugar de continuidade da história, caminho semelhante ao da atividade de produção
textual.

O segundo texto, “Homem que atropelou mãe e filha é assassinado por pai
revoltado”, faz uma releitura mais ousada, uma vez que o autor criou um final que ficou
subentendido no filme. Nesse relato9, um jovem atropela mãe e filha, não presta socorro

9
A partir de agora, toda vez que usarmos a palavra “relato”, estaremos nos referindo a uma das histórias
contadas no filme.

980
e volta para casa para pedir ajuda à família. O pai do adolescente convence o caseiro em
assumir a culpa em troca de dinheiro. Quando o “novo” culpado pelo crime está sendo
levado pela polícia no meio de uma multidão de pessoas enfurecidas, o viúvo surge e
agride a pauladas o então suspeito de matar sua esposa e filha. Há um corte abrupto na
cena e não sabemos o que acontece em seguida. Na transposição da história para a não
ficção, nesse caso, a notícia, os autores tiveram a percepção em atribuir um final claro
para a história, algo característico do texto referencial. Assim, os redatores tiveram a
percepção de extrair do discurso ficcional um olhar mais próximo do jornalístico.
A próxima notícia do trabalho corresponde ao último relato do filme. Nesse texto,
os autores se prenderam bastante à descrição da narrativa audiovisual, mas dois elementos
merecem ser destacados: a imagem utilizada para estampar a notícia e o desfecho mais
hiperbólico do que o do texto-fonte. A quarta notícia do conjunto de textos produzidos
pelos alunos manteve-se muito próxima a uma descrição fidedigna da narrativa, contando
os acontecimentos desse relato no filme na mesma sequência cronológica. Entretanto,
houve a inclusão de um elemento que rompeu com essa linearidade: a descoberta pela
polícia que o autor intelectual e material do crime de derrubar o avião foi Gabriel
Pasternak. Assim, novamente, a produção da notícia dirige-se a fechar um final que na
ficção estava subentendido.
As duas últimas produções da dupla seguiram, em parte, o mesmo caminho de
escrita da notícia do relato anterior. Vale a pena destacar algumas peculiaridades. Na
notícia baseada no quinto relato, no embate entre garçonete e cliente, os redatores
mantiveram o suspense da narrativa audiovisual e não revelaram, inicialmente, que o que
estava acontecendo ali era um acerto de contas e que a cozinheira havia envenenado a
comida do cliente. Na última notícia, em que se apresenta a história dos dois motoristas
que brigam na autoestrada, os autores dizem que, quando os indivíduos foram encontradas
pela polícia, estavam “aparentemente carbonizadas”. Essa indeterminação, de certa
maneira, também se mantém no filme, visto que, para as pessoas que não presenciaram a
briga entre os dois homens, resta a dúvida se eles estavam abraçados ou em luta corporal.
Assim, a criação do texto de notícia, mesmo que no plano do discurso jornalístico, não
entregou ao leitor de forma detalhada o acontecimento, o que seria mais provável ocorrer.
O fato de os motoristas estarem carbonizados não se contrapõe à dúvida em relação ao
fato de estarem abraçados ou em luta corporal.

4. Segundo relato selvagem

981
Tendo como título “Vivenciando a notícia”, as estudantes de Relações Públicas
escreveram um trabalho apropriando-se de elementos característicos de um infográfico,
numa formatação no programa Word em que as notícias estavam dispostas como se
fossem um jornal. O primeiro relato, “Chacina em Florianópolis: investigações do caso
que chocou o Brasil” (reescrita do primeiro relato do filme), desloca, cultural e
geograficamente, a produção da notícia do texto no qual ela se baseou. Saímos do espaço
da Argentina e nos direcionamos ao Brasil, percurso interessante das redatoras, pois a
utilização da palavra “chacina”, que pertence ao léxico brasileiro, oferece um
distanciamento da narrativa audiovisual, fato que mostra que a criatividade na escrita da
notícia foi empegada num momento propício. Além disso, nessa notícia, o atentado não
foi em um avião, e sim em uma casa de veraneio, algo bem mais verossímil que o filme.
Em Relatos Selvagens, Gabriel Pasternak reuniu inimigos de diferentes fases de
sua vida, de círculos sociais praticamente opostos, em um mesmo avião. A concretização
dessa ação parece ser algo um tanto inverossímil10, porém, como estamos no plano
ficcional, sem compromisso com o “real”, tudo é possível. A questão é que, na
transposição do relato para a notícia ficcionalziada, as redatoras perceberam que seria
mais crível fazer essa operação de alteração do acontecimento principal, procedimento
que deixou o texto na esteira de um discurso referencial, mas sem perder o diálogo com
a narrativa audiovisual. Coimbra (2009, p. 94), quando discute as relações entre
criatividade e escrita, afirma que a “qualidade discursiva” do texto se constitui, entre
outros aspectos, na relação formada entre ele e outros textos que antecederam a sua
história. Nesse caso, a notícia criada possui semelhanças e dissonâncias com o filme,
fazendo com que o traço que a distingue seduza essa outra projeção de leitor, que não é
mais o telespectador, e sim um possível consumidor de jornal.
No texto seguinte, “Cozinheira assassina cliente: até onde vai a justiça com as
próprias mãos?”, o enredo principal do relato do filme também foi alterado, configurando
a notícia numa atmosfera de jornalismo sensacionalista: “Ela ainda complementa falando
que cometeu o crime porque o homem, Paulo Fernandes (62), era um egoísta e prepotente,
portanto resolveu matá-lo [sic] pois iria eliminar mais um ‘monstro’ da face da terra”. Na
releitura, o motivo para o crime é torpe, fora da teia de intrigas apresentada no filme. Essa
“simplificação” do fato ocorrido, sem muitos floreios e suspenses, atribuiu um tom mais
jornalístico do que ficcional. A personalidade da cozinheira, retratada na tela como uma

10
O filme utiliza o estranhamento de algumas situações como manobra para provocar o espectador a
observar mais de perto que as personagens estão suscetíveis a extrapolar os seus limites.

982
mulher que não media a consequência de seus atos, uma vez que não se importava em ir
para a prisão, é enunciada através das redatoras por uma frase de efeito que demonstra o
não arrependimento da personagem. Na produção textual, a criminosa ganha voz,
contrastando com a tela em que o telespectador fica somente com o seu violento olhar.

Em “Discussão no trânsito: intolerância em vias públicas”, as redatoras optaram


por deslocar o ocorrido, novamente, do contexto argentino para o brasileiro, porém, agora,
em Paulo Afonso (BA). Ao invés de uma briga essencialmente motivada por falta de
paciência e temperamentos elevados ao máximo, como no filme, a notícia colocou a razão
do confronto em uma manifestação de preconceito racial. Houve também a ênfase nas
estatísticas crescentes de brigas de trânsito, algo muito comum no Brasil. Assim, essa
notícia se apropriou da história original, dando-a novos contornos. Vale destacar também
a presença das testemunhas, figuras que alimentam bastante a produção dos textos
jornalísticos e que, aqui, são as agentes que revelam o mote de toda a discussão. A
inclusão desse espectador, que na tela está oculto, parece indicar que, no filme, como não
há testemunhas, a razão da briga se camufla diante do espectador. Já na notícia, revela-
se. Esse jogo entre a representação da ação na ficção como algo camuflado e a
representação da ação na notícia como algo descortinado aponta para uma distinção
fundamental, e também questionável, desses dois discursos: a ficção como um campo
lacunar, sugestivo e a não ficção como um terreno em que os sentidos estão mais
próximos do olhar do leitor.

No penúltimo relato, “Impunidade desmascarada: casal forja para ‘proteger’ filho


da justiça”, as redatoras, tal como os redatores do trabalho anterior, em alguns momentos,
fincaram o olhar puramente descritivo da narrativa audiovisual, modificando somente o
final. Na tela, o desfecho da história sobre a família que atribui a culpa de um duplo
homicídio ao caseiro na tentativa de livrar o filho da prisão não é mostrado, enquanto na
notícia: “investigações se iniciam e desmascaram farsa da família, e o verdadeiro culpado
do crime é preso. O viúvo é internado para tratamento psicológico, pois exames
constataram acesso de loucura no ato que ele cometeu quando esfaqueou o homem”. O
final da notícia acentua um tom trágico mais intenso do que o filme, visto que o viúvo é
destinado um sofrimento não expresso em tela. No ensaio “Crônica e cotidianidade”,
Gilda Brandão (2014, p. 152) comenta que “nada mais indefinido do que o cotidiano. Mas
é exatamente neste campo rarefeito que irá se mover a crônica moderna”. A complexidade
do cotidiano, do viver urbano, em coletividade, é um dos focos centrais do filme e das

983
notícias. A inconclusividade de alguns finais, como o deste relato, foi reapropriada na
notícia como uma forma de indicar esse caráter indefinido do cotidiano, que se desfaz
diante de nós.

A última notícia segue uma linha de pensamento semelhante ao texto anterior,


mantendo-se numa esteira de descrição fidedigna ao filme, alterando somente o final:
“Mas após vários gritos, brigas e choros no meio do salão, os dois, por fim, reconciliam-
se e protagonizam uma cena digna de cinema. Perdoando um ao outro por todos os
acontecimentos”. A dubiedade do filme aqui é substituída por uma certeza, a certeza de
que houve uma final feliz, algo um tanto incerto no relato. Esse redirecionamento da
história reafirmou uma posição assumida anteriormente também pelos redatores: no
trânsito entre o gênero crônica e o gênero notícia, há uma predileção em preencher
algumas lacunas do discurso ficcional, dando um tom mais descritivo e explicativo
quando nos transportamos para o discurso jornalístico.

Referências

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso [1979]. In: ______ Estética da criação verbal.


Tradução de Paulo Bezerra. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

BUÑUEL, L. Cinema: Instrumento de Poesia [1970]. In: _____ A Experiência do


Cinema. XAVIER, I. (org). Rio de Janeiro: Graal, 1983.

BRANDÃO, G. Crônica e cotidianidade. Revista Navegações. Vol. 7. Número 2. Jul-


Dez. 2014. p. 151-157.

CANDIDO, A. A vida ao rés do chão. In: ______. et alli. A crônica: o gênero, sua
fixação e suas transformações no Brasil. Campinas, SP: Editora da UNICAMP; Rio de
Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.

COIMBRA, P. Da redação à produção textual: o ensino da escrita. São Paulo:


Parábola, 2009.

LAJE, C. Estrutura da notícia. São Paulo: Ática, 1987.

NAPOLITANO, M. O cinema na sala de aula [2003]. 5ª ed. São Paulo: Contexto, 2013.

RELATOS SELVAGENS. Direção de Damián Szifron. Produção de Augustín e Pedro


Almodóvar. Argentina/Espanha: Warner Bros, 2014. DVD.

984
985

Você também pode gostar