Narrativa Audiovisual Na Sala de Aula - Relatos Selvagens
Narrativa Audiovisual Na Sala de Aula - Relatos Selvagens
Narrativa Audiovisual Na Sala de Aula - Relatos Selvagens
Como alternativa metodológica para o ensino de língua portuguesa e literatura, o Cinema pode
ser um recurso, na sala de aula, para seduzir e provocar os alunos a entrarem no universo da
palavra, seja para o âmbito da leitura, seja para práticas que envolvem a produção de texto. Nesse
sentido, o presente trabalho traz um relato de experiência de aulas de língua portuguesa com uma
turma da graduação em Comunicação Social (Jornalismo e Relações Públicas) em que o filme
argentino Relatos Selvagens (2014), de Damián Szifron, foi estudado como uma via de leitura
para o conceito de crônica. Essa atividade culminou em uma produção textual, que será descrita
no decorrer desse relato.
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Agradeço a leitura atenta do colega e pesquisador das relações entre Literatura e Cinema Felipe Benício,
do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Faculdade de Letras da Universidade Federal
de Alagoas, que forneceu preciosas contribuições para elaboração desse texto.
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Douorando em Estudos Literários. Professor de Língua Portuguesa e Literatura do Instituto Federal de
Alagoas – Campus Piranhas. E-mail: [email protected]
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1. Introdução
A grade curricular que regulamentava o curso de Comunicação Social da
Universidade Federal de Alagoas (Ufal) até 2015 previa duas disciplinas semestrais
ligadas à Língua Portuguesa: Português para Comunicação 1 (estudantes do primeiro
semestre) e Português para Comunicação 2 (estudantes do segundo semestre). Em turmas
que misturavam alunos de Jornalismo e Relações Públicas, o professor para as referidas
disciplinas, oriundo da Faculdade de Letras, seguia uma ementa direcionada à leitura e
produção de textos, compreendendo língua e linguagem como objetos variados de acordo
com as situações comunicativas nas quais o sujeito se insere.
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As crônicas lidas do autores mencionados foram as seguintes: “A morte da baleia”, “Os jornais” e “O
mato” e “Amor, vamos discutir a relação?”, respectivamente.
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Quase simultaneamente ao andamento das discussões sobre a crônica, o filme
Relatos Selvagens, de Damián Szifron, que havia estreado no Brasil em dezembro de
2014, ainda fazia bastante sucesso. Quando assisti à película pela segunda vez, pensei que
era possível fazer um diálogo entre cinema e gênero textual, visto que os seis “relatos”
apresentados em tela se aproximam de aspectos característicos da constituição da crônica.
Solicitei à turma que formassem duplas e seguissem a linha de pensamento do enunciado
abaixo, que corresponde a questão que foi colocada para os alunos:
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Isto posto, o objetivo deste trabalho é fazer uma análise de duas produções textuais
que foram desenvolvidas tendo como base a perspectiva de compreender Relatos
Selvagens como um conjunto de seis crônicas, escrevendo uma notícia para cada relato.
Logo, elementos do discurso jornalístico foram incorporados nessas produções, fato que
mostrou que os estudantes compreenderam a proposta da atividade e utilizaram a
criatividade como um recurso de leitura do gênero crônica. Nesse caminho, iremos
analisar a recepção do filme, identificando como a narrativa audiovisual foi relida na
escrita de uma notícia e observando quais os elementos do filme foram apropriados pelos
redatores. Assim, o cinema será visto como um recurso para a produção de um texto não
ficcional que teve como base um texto ficcional.
Antes de adentrarmos na leitura dos dois trabalhos produzidos com base no filme
Relatos Selvagens, é preciso expor o ponto de partida do professor em relação à proposta
pedagógica de incluir o cinema como um recurso de compreensão do gênero crônica. A
narrativa audiovisual argentina foi escolhida como componente da ementa da disciplina
devido ao fato de os realizadores4 do filme utilizarem um modo de narrar que se aproxima
da linguagem da crônica. Ao todo, há em tela seis curtos relatos que apresentam histórias
e personagens diferentes, tendo em comum entre eles o humor, a violência e a crítica
sobre a forma como os indivíduos do século XXI, no contexto da urbanidade, relacionam-
se. Essa atmosfera em que paira a produção fílmica dialoga com alguns temas vistos nas
crônicas dos autores brasileiros mencionados5. A percepção desse elo entre o que já tinha
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Compreendo como “realizadores” toda a equipe de produção do filme: roteiristas, diretores, produtores,
montadores, cenaristas, entre outros).
5
Cada uma das seis histórias do filme conta a trajetória de personagens diferentes: 1) Várias pessoas dentro
de um avião descobrem que seus passados estão interligados por uma pessoa em comum; 2) Dois homens
chegam ao limite da selvageria ao brigarem numa autoestrada; 3) Uma garçonete reencontra um inimigo
no restaurante que trabalha e pensa numa vingança; 4) Um jovem atropela uma mulher grávida e os seus
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sido visto em sala de aula e o filme fez com que a proposta pedagógica fosse construída
nesse caminho.
pais tentam acobertar o crime; 5) O cansaço de um sujeito ao não se adequar às regras de trânsito; 6) Os
fatos inesperados de uma recepção de casamento em que noivo e noiva transitam entre amor e violência.
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Entende-se como “interdiscurso” o procedimento a qual um discurso incorpora em sua constituição um
discurso de outra área de conhecimento.
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como partida um texto ficcional e a tensão entre a composição literária e fílmica e a escrita
jornalística.
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<https://www.youtube.com/watch?v=n1UTnjFnBws&spfreload=10>
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13006.htm>
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necessário pensar em metodologias de práticas escolares que incorporem o discurso
fílmico às áreas de conhecimento. Com essa Lei, notamos que as Diretrizes que
comandam a organização curricular compreendem que o cinema é importante na sala de
aula, entretanto, as formas como esse trabalho se efetuará, em âmbitos de circulação,
condições de exibição e recepção ainda são caminhos pouco explorados.
No livro Como usar o cinema na sala de aula (2013), Marcos Napolitano destaca
algumas utilizações didático-pedagógicas do cinema, alertando para possibilidades e
armadilhas que o professor pode encontrar nesse percurso. A proposta do filme como um
“texto-gerador” foi um caminho percorrido na realização da produção da notícia com base
no filme, entendendo que:
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representações, e mais como as questões e temas (políticos, morais,
ideológicos, existenciais, históricos etc) que suscita [...]. O importante
é não ficar apenas no filme como “ilustração”, mas usar criticamente a
narrativa e as representações fílmicas como elementos propulsores de
pesquisas e debates temáticos (NAPOLITANO, 2013, p. 28).
Relatos Selvagens pode ser considerado como um “texto-gerador”, uma vez que a
ideia principal da atividade era produzir um texto que transferisse as histórias do filme
para o plano jornalístico. Andando um pouco na contramão do posicionamento de
Napolitano (2013), tivemos um intenso compromisso com a linguagem e a estrutura do
filme, posto que esses elementos expressavam, junto aos temas abordados, o diálogo da
narrativa visual com a composição do gênero crônica. Dessa maneira, o filme foi
trabalhado como um recurso de leitura para a crônica, promovendo também a observação
da escrita literária em contato com situações do cotidiano e mostrando como este pode
ser apropriado tanto pela ficção quanto pela não ficção.
O segundo texto, “Homem que atropelou mãe e filha é assassinado por pai
revoltado”, faz uma releitura mais ousada, uma vez que o autor criou um final que ficou
subentendido no filme. Nesse relato9, um jovem atropela mãe e filha, não presta socorro
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A partir de agora, toda vez que usarmos a palavra “relato”, estaremos nos referindo a uma das histórias
contadas no filme.
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e volta para casa para pedir ajuda à família. O pai do adolescente convence o caseiro em
assumir a culpa em troca de dinheiro. Quando o “novo” culpado pelo crime está sendo
levado pela polícia no meio de uma multidão de pessoas enfurecidas, o viúvo surge e
agride a pauladas o então suspeito de matar sua esposa e filha. Há um corte abrupto na
cena e não sabemos o que acontece em seguida. Na transposição da história para a não
ficção, nesse caso, a notícia, os autores tiveram a percepção em atribuir um final claro
para a história, algo característico do texto referencial. Assim, os redatores tiveram a
percepção de extrair do discurso ficcional um olhar mais próximo do jornalístico.
A próxima notícia do trabalho corresponde ao último relato do filme. Nesse texto,
os autores se prenderam bastante à descrição da narrativa audiovisual, mas dois elementos
merecem ser destacados: a imagem utilizada para estampar a notícia e o desfecho mais
hiperbólico do que o do texto-fonte. A quarta notícia do conjunto de textos produzidos
pelos alunos manteve-se muito próxima a uma descrição fidedigna da narrativa, contando
os acontecimentos desse relato no filme na mesma sequência cronológica. Entretanto,
houve a inclusão de um elemento que rompeu com essa linearidade: a descoberta pela
polícia que o autor intelectual e material do crime de derrubar o avião foi Gabriel
Pasternak. Assim, novamente, a produção da notícia dirige-se a fechar um final que na
ficção estava subentendido.
As duas últimas produções da dupla seguiram, em parte, o mesmo caminho de
escrita da notícia do relato anterior. Vale a pena destacar algumas peculiaridades. Na
notícia baseada no quinto relato, no embate entre garçonete e cliente, os redatores
mantiveram o suspense da narrativa audiovisual e não revelaram, inicialmente, que o que
estava acontecendo ali era um acerto de contas e que a cozinheira havia envenenado a
comida do cliente. Na última notícia, em que se apresenta a história dos dois motoristas
que brigam na autoestrada, os autores dizem que, quando os indivíduos foram encontradas
pela polícia, estavam “aparentemente carbonizadas”. Essa indeterminação, de certa
maneira, também se mantém no filme, visto que, para as pessoas que não presenciaram a
briga entre os dois homens, resta a dúvida se eles estavam abraçados ou em luta corporal.
Assim, a criação do texto de notícia, mesmo que no plano do discurso jornalístico, não
entregou ao leitor de forma detalhada o acontecimento, o que seria mais provável ocorrer.
O fato de os motoristas estarem carbonizados não se contrapõe à dúvida em relação ao
fato de estarem abraçados ou em luta corporal.
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Tendo como título “Vivenciando a notícia”, as estudantes de Relações Públicas
escreveram um trabalho apropriando-se de elementos característicos de um infográfico,
numa formatação no programa Word em que as notícias estavam dispostas como se
fossem um jornal. O primeiro relato, “Chacina em Florianópolis: investigações do caso
que chocou o Brasil” (reescrita do primeiro relato do filme), desloca, cultural e
geograficamente, a produção da notícia do texto no qual ela se baseou. Saímos do espaço
da Argentina e nos direcionamos ao Brasil, percurso interessante das redatoras, pois a
utilização da palavra “chacina”, que pertence ao léxico brasileiro, oferece um
distanciamento da narrativa audiovisual, fato que mostra que a criatividade na escrita da
notícia foi empegada num momento propício. Além disso, nessa notícia, o atentado não
foi em um avião, e sim em uma casa de veraneio, algo bem mais verossímil que o filme.
Em Relatos Selvagens, Gabriel Pasternak reuniu inimigos de diferentes fases de
sua vida, de círculos sociais praticamente opostos, em um mesmo avião. A concretização
dessa ação parece ser algo um tanto inverossímil10, porém, como estamos no plano
ficcional, sem compromisso com o “real”, tudo é possível. A questão é que, na
transposição do relato para a notícia ficcionalziada, as redatoras perceberam que seria
mais crível fazer essa operação de alteração do acontecimento principal, procedimento
que deixou o texto na esteira de um discurso referencial, mas sem perder o diálogo com
a narrativa audiovisual. Coimbra (2009, p. 94), quando discute as relações entre
criatividade e escrita, afirma que a “qualidade discursiva” do texto se constitui, entre
outros aspectos, na relação formada entre ele e outros textos que antecederam a sua
história. Nesse caso, a notícia criada possui semelhanças e dissonâncias com o filme,
fazendo com que o traço que a distingue seduza essa outra projeção de leitor, que não é
mais o telespectador, e sim um possível consumidor de jornal.
No texto seguinte, “Cozinheira assassina cliente: até onde vai a justiça com as
próprias mãos?”, o enredo principal do relato do filme também foi alterado, configurando
a notícia numa atmosfera de jornalismo sensacionalista: “Ela ainda complementa falando
que cometeu o crime porque o homem, Paulo Fernandes (62), era um egoísta e prepotente,
portanto resolveu matá-lo [sic] pois iria eliminar mais um ‘monstro’ da face da terra”. Na
releitura, o motivo para o crime é torpe, fora da teia de intrigas apresentada no filme. Essa
“simplificação” do fato ocorrido, sem muitos floreios e suspenses, atribuiu um tom mais
jornalístico do que ficcional. A personalidade da cozinheira, retratada na tela como uma
10
O filme utiliza o estranhamento de algumas situações como manobra para provocar o espectador a
observar mais de perto que as personagens estão suscetíveis a extrapolar os seus limites.
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mulher que não media a consequência de seus atos, uma vez que não se importava em ir
para a prisão, é enunciada através das redatoras por uma frase de efeito que demonstra o
não arrependimento da personagem. Na produção textual, a criminosa ganha voz,
contrastando com a tela em que o telespectador fica somente com o seu violento olhar.
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notícias. A inconclusividade de alguns finais, como o deste relato, foi reapropriada na
notícia como uma forma de indicar esse caráter indefinido do cotidiano, que se desfaz
diante de nós.
Referências
CANDIDO, A. A vida ao rés do chão. In: ______. et alli. A crônica: o gênero, sua
fixação e suas transformações no Brasil. Campinas, SP: Editora da UNICAMP; Rio de
Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.
NAPOLITANO, M. O cinema na sala de aula [2003]. 5ª ed. São Paulo: Contexto, 2013.
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