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organizadora
“negro/a, quilombola,
religioso/a de matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância
e Discriminação nas Relações de
Trabalho, Produção e Consumo.
Belo Horizonte
2019
Todos os direitos reservados à Editora RTM.
Proibida a reprodução total ou parcial, sem a autorização da Editora.
CDU 323.12
ISBN: 978-85-9471-108-3
Belo
Ficha catalográfica elaborada pela Horizonte
bibliotecária - 2019
Meire Luciane Lorena Queiroz CRB 6/2233.
Apresentação
Edelamare Melo
3
Organizadora : Edelamare Melo
4
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Sumário
Entender e Orixalidade...............................................................13
Ságàn
5
Organizadora : Edelamare Melo
ORIXALIDADE..........................................................................................71
Milsoul Santos
6
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
DEPOIMENTO...........................................................................................315
Adna dos Santos (Mãe Bahiana)
Boca Preta.............................................................................................391
Milsoul Santos
tempo da delicadeza......................................................................407
Geovana Pires
RACISMO DIGITAL.................................................................................411
Paola Cantarini
Willis S. Guerra Filho
apêndice..................................................................................................493
11
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
ENTENDER
Ságàn
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Abdias Nascimento
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Organizadora : Edelamare Melo
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Foto cedida pela IPEAFRO
Organizadora : Edelamare Melo
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Milsoul Santos
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Organizadora : Edelamare Melo
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Roseli Oliveira
Estão todos e todas convocadas para nestes três dias conjugar o verbo
esperançar!! É hora de consolidar pontes infindáveis de humanidade.
Trata-se de uma iniciativa do Ministério Público do Trabalho, com apoio irrestrito
da Escola Superior do Ministério Público da União, Escola Nacional de Formação e
Aperfeiçoamento da Magistratura Trabalhista, e conta ainda com o Ministério Público
Federal, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, o Ministério Público do Distrito
Federal do Trabalho, a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
– SEPPIR do Ministério dos Direitos Humanos – MDH, a Fundação Cultural Palmares
do Ministério da Cultura, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversi-
dade e Inclusão – SECADI do Ministério da Educação - MEC, a Comissão da Verdade
sobre a Escravidão Brasileira do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil,
a Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, Organização Internacional do
Trabalho - OIT, todos se aliaram para conjugar o verbo esperançar!!!
Como filhos dos sobreviventes, dos sobrantes e também construtores da
resiliência, entendemos que é preciso convergir e conjugar o verbo esperançar e
o verbo superar!
Os tempos tem revelado que a pacificação proposta pelo Estado democrático
direito vem sendo ameaçada, o homem cordial, sim, o homem cordial de Sergio
Buarque de Holanda, vem demonstrando o seu lado sombrio e o discurso e atitudes
de ódio, de racismo, de sexismo, de intolerância, de eliminação das garantias e das
singularidades humanas ganham voz e coragem de se revelaram. Estão saindo dos
porões da ignorância, do desrespeito, da miséria humana, restolhos de um tempo das
dualidades, do certo e do errado, do falso e do verdadeiro, da vergonha!!!
É preciso urgentemente conjugar o verbo esperançar!!!
Estamos todas e todos ameaçados – as pessoas negras e seu patrimônio cultu-
ral, imaterial que dão sentido a história do Brasil e, aqueles que chegaram depois...
As mulheres e suas competências, em seus diferentes espectros da vida,
sentidos, que alargam a humanidade individual e coletiva;
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Organizadora : Edelamare Melo
Ordep Serra1
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Organizadora : Edelamare Melo
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
sua mulher, minha esposa Regina, a amiga Bete Capinan, os moços do Olo-
dum conduzidos por João Jorge, a turma do Ilê Ayê com Vovô e Mãe Hilda
à frente, Zezito Araújo, nosso bom companheiro de Maceió, e um time fan-
tástico de lideranças do movimento negro do país inteiro. Revejo o povo de
União dos Palmares espantado com a nossa chegada e torno a ouvir o comen-
tário quase temeroso de um cavalheiro do lugar: “Eu sabia que um dia eles
iam voltar”. Eles: os negros, a gente de Zumbi. Nós. Ainda sinto a emoção
deste momento inesquecível.
Voltei por sete vezes seguidas ao sítio sagrado onde reinou o maior
herói brasileiro. Tenho a lembrança de uma ocasião especial. Vou fazer in-
veja, agora, a muitos amigos, a ilustres membros do povo de santo que aqui
vejo: assisti na Serra da Barriga a linda cerimônia em honra de Zumbi, um
pequeno axexé do herói, celebrado por Mãe Hilda, com assistência do Elema-
xó Antônio Agnelo Pereira. Abdias estava presente.
A Serra da Barriga não foi o primeiro monumento negro a ser reco-
nhecido como patrimônio histórico nacional, nem a primeira campanha em
que juntei forças com o amigo homenageado neste Simpósio. Teve a pre-
cedência o Terreiro da Casa Branca do Engelho Velho, Ilê Axé Iyá Nassô
Oká. E foi também Olympio Serra quem nos recrutou. Recebi de Olympio a
incumbência de elaborar um projeto voltado para a preservação de bens cul-
turais do povo de santo, sítios sagrados que desde muito já mereciam registro
nos livros de tombo da União. Tendo como colaborador o arquiteto Orlando
Ribeiro, escrevi, então, o Projeto de Mapeamento de Sítios e Monumentos
Religiosos Negros da Bahia - MAMNBA, executado com base em convênio
entre a Pró-Memória, a Prefeitura Municipal do Salvador e a Fundação Cultu-
ral do Estado da Bahia. A primeira definição deste projeto foi a escolha de um
grande Terreiro para figurar como monumento histórico do Brasil. O velho
santuário da Casa Branca foi escolhido por sua antiguidade, sua importância
nacional e pela ameaça que sobre ele pairava. Começou assim uma grande
luta em que ainda hoje me acho envolvido. Chamo atenção para um dado por
vezes esquecido: na altura em que o Projeto MAMNBA foi implementado,
não se falava em patrimônio negro, não se usava esta expressão. Ainda me
lembro das críticas que sofri por falar em “monumento negro”; ainda tenho na
memória a insistente sugestão que ouvi de muitas bocas, propondo-me a troca
da palavra “negro” pelo adjetivo “popular” no nome do projeto. Lembro-me
sempre da reação escandalizada de técnicos do IPHAN que consideravam
absurdo tombar um Terreiro, que negavam valor histórico a um templo cente-
nário onde se perpetuam legados da civilização iorubana, heranças do grande
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
que não há no mundo governo tão generoso quanto o brasileiro quando se tra-
ta de remunerar os títulos da DP, que aqui desfrutam de abusivos incrementos
financeiros além de juros escandalosos, sem paralelo no mundo. Ao mesmo
tempo, as despesas com Educação e Saúde ficam entre 3 e 4 % do Orçamento.
Os dados da Receita Federal pertinentes ao Imposto de Renda da Pes-
soa Física indicam com clareza o aumento da concentração de renda. Entre
2014 e 2016 (ou seja, no início da recessão econômica no país), a renda per
capita do conjunto geral de contribuintes caiu 3,3% em termos reais, enquan-
to a renda per capita do segmento mais rico da população cresceu 7,5%. Com
base nesses dados, cabe dizer que hoje o governo brasileiro faz uma políti-
ca de acentuação da desigualdade: promove a hiperconcentração de renda e
gera pobreza em escala crescente. Pesquisa feita pelo SPC Brasil em parceria
com Confederação Nacional dos Lojistas mostra que 95% dos trabalhadores
e trabalhadoras desempregados há mais de um ano pertencem às classes C,
D e E, sendo que 54% deles têm escolaridade somente até o ensino médio. A
maioria desse contingente é do sexo feminino (59%). Nas classes C, D e E se
concentra a massa dos afrobrasileiros, o maior contingente de pretos e pardos.
Os cortes sistemáticos de verbas em áreas críticas para o bem-estar dos
cidadãos são justificados em nome da falta de recursos. Ao mesmo tempo, pro-
jeta-se a entrega do pré-sal a empresas estrangeiras com um brinde significa-
tivo: a dispensa de impostos durante vinte anos, com renúncia a um trilhão de
reais. Quer-se consertar a economia com medidas de arrocho que atingem a
renda da maioria da população, poupando os mais favorecidos e aumentando
seus privilégios. Assim se condena à miséria uma ampla fatia da população.
Contrariando recomendação da OCDE no sentido de aumentar os recursos des-
tinados ao programa bolsa família, o que se verificou foi sua drástica redução.
Os gastos com saúde, educação e segurança foram congelados. Em suma, ado-
tou-se a iniquidade como política. As consequências só podem ser severas para
a economia nacional: com uma população de 204 milhões de habitantes e um
PIB de 6 trilhões de reais, somos uma economia vinculada ao mercado interno.
Os 600 bilhões de reais logrados com as exportações mal chegam a 10% do
PIB. No entanto a EC 95 impõe por vinte anos um teto para o crescimento das
despesas não financeiras do governo, limitando perversamente o gasto social,
ao tempo em que amplia de 20% para 30% a Desvinculação de Receitas da
União. Não ha dúvida de que isso configura um ataque violento e irracional
contra o mercado interno, ou seja, contra a economia de nosso país.
Cogitou-se uma Reforma da Previdência voltada para suprimir direi-
tos adquiridos dos trabalhadores, mas sem qualquer medida destinada a sanar
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
situação de extrema pobreza: 11, 2 % nos dois últimos anos. O corte de 69% nas
verbas do Programa de Aquisição de Alimentos sem dúvida tem a ver com isso.
Infelizmente não é surpresa verificar que a mortalidade infantil para crianças entre
um mês e quatro anos de idade também cresceu nos dois últimos anos.
Tem a ver com a configuração desse quadro escabroso uma rude e des-
pudorada reafirmação do espírito escravista de nossas elites, seu racismo visce-
ral. Cabe dizer que a nostalgia do escravismo teve recentemente um surto espan-
toso no país. Todos se recordam da frustrada Portaria MTB 1129/ 2017, com que
o governo atual quis alterar de modo perverso a definição do trabalho escravo
(ou análogo ao escravo) dificultando a fiscalização dessa prática hedionda e
criando para seus obstinados impositores facilidades, atenuantes, subterfúgios.
Apenas a reação indignada da opinião pública no Brasil e no exterior, o empe-
nho do MPT e a pressão de organismos internacionais, cujos apelos provocaram
uma intervenção do STF, impediram que a vergonhosa portaria passasse a ter
vigência. Mas não se conseguiu debelar a sanha escravista que a alimentava:
o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho tem insistentemente
denunciado o contínuo, tenaz e sistemático desmantelamento das políticas de
combate ao trabalho escravo no Brasil contemporâneo. Não se pode dar mais
clara demonstração do ânimo escravocrata que inspira o atual regime antirepu-
blicano imposto ao país pela minoria encastelada no governo.
Casa-se muito bem com esta sanha o obscurantismo hoje reinante nes-
sa esfera e cada vez mais difuso na sociedade. São muitas as suas expressões.
Ele se manifesta em nível governamental por uma série de políticas castra-
doras: ganham proporções de calamidade pública a redução escandalosa das
verbas para a educação e a cultura, assim como a asfixia financeira imposta à
ciência e à tecnologia, com sinistras consequências para o desenvolvimento
econômico do país.
Como se não bastasse, no campo educacional retrocessos são imple-
mentados com furor. Retira-se a garantia da universalidade do ensino básico
e da sua gratuidade; suprime-se a obrigação do Estado de garantir a educação
infantil para todos. Suspende-se de maneira perversa a obrigatoriedade do
ensino da cultura afrobrasileira. Manifesta-se, assim, o claro propósito de
restringir o acesso e inviabilizar a permanência de negros e indígenas nas
instituições de ensino superior, sintoma do inconformismo de segmentos do-
minantes com as políticas de inclusão. Busca-se com rude empenho limitar a
escola pública à preparação de mão de obra servil, desinformada, sem capital
cultural que habilite o alunado pobre para o exercício da cidadania: pretende-
se tornar privilégio de poucos o ensino das Humanidades (Filosofia, História,
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Organizadora : Edelamare Melo
Sociologia, Artes etc.). O óbvio propósito dessa medida iníqua é tornar inal-
cançável para a maioria dos brasileiros tanto o conhecimento como o exercí-
cio do direito, a compreensão da ordem republicana. Quer-se, enfim, separar
a senzala da casa grande no campo da educação.
Ao mesmo tempo busca-se reintroduzir no ensino a censura, vetando
abordagem de temas como gênero e sexualidade, em nome de uma ordem
patriarcal perversa e de fundamentalismos incompatíveis com o estado laico
que a Constituição preconiza. Em suma, tenta-se mais uma vez agrilhoar as
consciências. Os novos censores que nisto se empenham desejam ainda pros-
crever o estudo e o debate de teorias em desacordo com a estreiteza de suas
convicções, pois a liberdade de expressão e de pensamento os ofende. Que-
rem que a educação de qualidade se torne cada vez mais restrita ao círculo dos
privilegiados e sequer se dão conta da contradição inerente a sua proposta,
pois sonham com um saber acrítico.
É fácil ver que tipo de trabalhadores desejam formar os proponentes
desse tipo bisonho de reforma educacional: sua triste utopia se resume à for-
mação de servos, em paralelo com a manutenção de escolas de elite isoladas
em torres de marfim.
Nada mais estúpido.
Mas o obscurantismo não se limita a este domínio, tem outras manifes-
tações. A intolerância religiosa hoje se tornou um novo cavalo de batalha do
racismo. Os grupos que a protagonizam unem-se com frequência ao crime orga-
nizado e ao que há de mais corrupto no inframundo político para promover sór-
didos ataques contra as religiões de matriz africana, que suas igrejas parasitam
e injuriam de todas as formas, não hesitando em valer-se de violência. Templos
de candomblé e umbanda são invadidos, sacerdotes dos terreiros são agredidos,
humilhados, injuriados, assassinados, não raro sob o olhar complacente de auto-
ridades que mal escondem sua conivência com tais abusos. Uma campanha de
deseducação conduzida pelo que prefiro chamar de empresas eclesiais dedicadas
ao esbulho e à exploração dos mais pobres busca de modo sistemático desvalo-
rizar os costumes, as artes, o saberes, a cultura do povo negro, que demoniza e
calunia, disseminando preconceitos, pregando ignorância.
Diante desse quadro, é impossível negar a continuidade de um éthos
escravocrata e mesmo de uma práxis escravista de que o Brasil tarda a livrar-
se. A herança dos séculos de cativeiro é perceptível em muitas instituições.
Marca a brutalidade de um Estado policial que oprime a população em cam-
panhas desvairadas contra o fruto de seus cárceres. É a juventude negra a
grande vítima tanto das organizações criminosas quanto dos repressores, for-
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
ças que não raro se aliam. Em defesa dos direitos da gente oprimida tombam
lutadores do porte de Marielle Franco. Mas eles renascem.
Não me reporto ao feio quadro acima descrito para nele me deter. Bem
ao contrário, o que tenho em vista é sua superação. Eu a enxergo com clareza
nos olhos dos companheiros aqui reunidos. Este Simpósio que reúne tantos
representantes ilustres da inteligência negra, tantas pessoas dignas, sérias e
realmente interessada em liberdade, em justiça, em igualdade, mostra bem
que é possível fazer outro Brasil. Vejo aqui mulheres e homens inspirados por
Marielle Franco, por Dandara, por Acotirene, por Zumbi, por Abdias Nasci-
mento, pelo que temos de melhor. Confio em sua força e no ânimo de muitos
outros que em nosso país se associam na luta contra o racismo, o sexismo, a
brutalidade escravista. Tenho afirmado e volto a afirmar a riqueza espiritual
do nosso povo negro, o esplendor das suas criações culturais. Nem mesmo
com a mais furiosa má fé se poderia negar que os negros, com seu trabalho,
suor e sangue, fizeram a riqueza material do nosso país; mas impõe-se tam-
bém reconhecer que sua contribuição vai além. Negras e negros do Brasil, na
esteira de seus ancestrais africanos, muito têm feito para formar o patrimônio
cultural desta nação: criam riqueza com seu trabalho e também com seus va-
lores morais, sua inteligência, suas artes e saberes.
Os herdeiros de Zumbi representam uma vanguarda criativa e genero-
sa, que pode, sim, vencer a barbárie hoje dominante. Seu compromisso com a
verdadeira civilização se demonstra neste simpósio brilhante onde se combate
a estupidez do racismo, da segregação, do sexismo. Aqui vozes poderosas se
levantam contra os pregadores do ódio, denunciam o obscurantismo, acusam as
armadilha da exploração e da ganância. Juntos cultivamos cidadania, exaltando
o valor do trabalho, a dignidade das mulheres e dos homens, a solidariedade, a
ética do ubuntu. O momento difícil que vivemos será superado.
Como bem sabemos, é a sanha escravista que ameaça o Brasil, é a pul-
são escravocrata que o vem arruinando e degradando. Mas ela será vencida. Os
brasileiros merecem o país justo sonhado por Dandara e Marielle Franco, por
Abdias Nascimento e Zumbi. É com o Brasil decente, equânime e livre entrevis-
to neste Simpósio que estamos comprometidos. Por ele nos unimos. Axé.
Ordep Serra
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
SIMPÓSIO INTERNACIONAL
“Da ancestralidade ao futuro. Riscos de
destruição das matrizes culturais para
futuras gerações. Alternativas de superação”
Miguel de Barros1
1
Guiné-Bissau Centro de Estudos Sociais Amílcar Cabral – CESAC ([email protected])
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
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Organizadora : Edelamare Melo
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Miguel de Barros
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Resumo
A aparente deficiência de representação das mulheres na ciência e tec-
nologia não se deve a fatores biológicos. Uma cultura de dominação mascu-
lina, centrada no homem branco ocidental, excluiu as mulheres, apesar das
suas importantes contribuições sem o devido reconhecimento histórico. O
maior acesso à educação e a liberdade das mulheres trabalharem ainda não
eliminou a desigualdade em relação aos homens, tanto na ciência como na
tecnologia. A cultura patriarcal, que se reproduz culturalmente, continua a
afastar as mulheres de campos considerados masculinos. A divisão social do
trabalho tem favorecido os homens. Existem inúmeras formas de se excluir as
mulheres, não só da criação da ciência e da tecnologia, mas também para im-
pedi-las de fazer uso da tecnologia a seu favor. A violência off-line e on-line
tem origens, objetivos e padrões semelhantes. Artistas e ativistas dos direitos
das mulheres sofrem, no Brasil e no mundo, violência on-line, com o objetivo
de silenciá-las e manter a exclusão.
Palavras-Chave: SEXISMO; CIÊNCIA; TECNOLOGIA; DESI-
GUALDADE; GÊNERO.
Ada Augusta King, atualmente conhecida como Ada Lovelace, nascida
em 1815, foi uma matemática e escritora inglesa. Era filha do Poeta Lorde
Byron. Sua mãe, temendo que a filha seguisse o caminho artístico do pai, o que
via como insanidade, encaminhou a filha para uma formação em matemática
1
Olympe de Gouges, nascida Marie Gouze, propôs a Declaração dos direitos da mulher e da cidadã à Assembleia
Nacional da França, em 1791, durante a revolução francesa. Foi guilhotinada em 1793. Condenada como contrarre-
volucionária e denunciada como uma mulher “desnaturada”.
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Organizadora : Edelamare Melo
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
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https://www.nobelprize.org/nobel_prizes/lists/women.html, acessado em 08.10.2017
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https://www.nobelprize.org/nobel_prizes/, acessado em 08.10.2017
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
za, com papeis diferenciados por gênero. As mulheres, desde muito cedo, são
impelidas a assumir estes papeis (tal como os homens). Assim, não é justo
nem produtivo ter papeis pertinentes a gênero muito bem definidos e preten-
der que tudo o mais se arranje a partir do oferecimento de vagas nas univer-
sidades e, eventualmente, algum sistema de cotas nas empresas. O fracasso
dessas políticas que tratam apenas da parte final do processo desigual será
ainda maior a se considerar o conteúdo e o ambiente masculino da ciência.
O conhecimento científico é afetado pela sociedade em que é condu-
zida. Considerações sociais e políticas entram nas avaliações científicas da
verdade ou falsidade de diferentes teorias. Mesmo o que se considera “fato”,
que seria estabelecido por experiência e observação, tem um conteúdo social.
Mas foi apenas no fim do século XX que se começou a admitir que a ciência
desenvolvida no ocidente era inerentemente patriarcal (Wajcman, 2000a).
Bordieu (2002b) faz um alerta sobre a armadilha de se tentar compreen-
der a dominação estando o próprio observador inserido num contexto sexista:
“Como estamos incluídos, como homem ou mulher, no próprio
objeto que nos esforçamos por apreender, incorporamos, sob a
forma de esquemas inconscientes de percepção e de apreciação,
as estruturas históricas da ordem masculina; arriscamo-nos,
pois, a recorrer, para pensar a dominação masculina, a modos de
pensamento que são eles próprios produto da dominação”.
Por outro lado, a tentativa de se criar uma ciência “feminina” pode levar
a enganos semelhantes, como uma proposta de se criar uma ciência neutra,
que agregasse valores femininos e masculinos, ignorando que estes valores
não são naturalmente femininos e masculinos, decorrem da divisão do tra-
balho. Por outro lado, a própria ideia do que seja natural é construída cul-
turalmente. O que é considerado como masculino em algumas sociedades é
considerado feminino ou neutro em outras (Wajcman, 2000c).
Wajcman (2000d) afirma que a racionalidade e a intuição devem ser
vistas como produtos sociais historicamente específicos, e que devemos nos
envolver nas práticas sociais para redefini-las. A base de poder dos homens
não é simplesmente um produto das ideias que defendem ou da linguagem
que usam, mas de todas as práticas sociais que dão aos homens autoridade
sobre as mulheres.
Bordieu (2002c), também tratando da divisão social do trabalho, mas
acrescentando a influência de mecanismos simbólicos para a perpetuação da
dominação masculina, afirma que:
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Organizadora : Edelamare Melo
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https://courses.cs.washington.edu/courses/csep590/06au/readings/p175-gurer.pdf, acessado em 09.09.2017
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
bem descrito no livro Estrelas Além do Tempo, de Margot Lee Shtterly, cujo
nome original é o adequado “Hiden Figures” (Figuras Escondidas), que foi
transformado em filme em 2016.
Margaret Hamilton criou o programa de computador que auxiliou as ma-
nobras espaciais que levaram o ser humano à Lua. O programa era tão robusto
e bem pensado que, quando a quantidade de informações se tornou excessi-
va para a capacidade limitada dos processadores da época, graças a um erro
de operação do astronauta, ao invés de simplesmente travar, como acontece
com qualquer computador moderno, o programa continuou rodando, apenas
interrompeu os dados menos relevantes. O código de programação escrito por
Margaret e sua equipe formava uma pilha de papel mais alta que ela mesma. 6
Elsie Shutt (nascido em 1928) foi uma programadora e empresária america-
na que fundou a Computation Incorporated (CompInc) em 1957. Ela foi a primei-
ra mulher a estabelecer uma empresa de software nos Estados Unidos. Mas a lei
de Massachusetts exigiu que ela abandonasse sua empresa depois de engravidar.
No gráfico abaixo vemos que a porcentagem de mulheres que mani-
festam interesse em estudar ciência da computação caiu de 4,2% em 1982, o
auge do interesse tanto para homens como para mulheres, para apenas 0,3%
em 2007, ao passo que os homens tiveram um outro pico de interesse em
1999, chegando a 6,5% em 1999, proporção que em 2007 caiu para 2,1%.7
Faruk Ates (2017a) conta em artigo on-line que James Damore, um enge-
nheiro do Google, escreveu um memorando de 10 páginas argumentando que
os esforços da empresa para melhorar a diversidade teriam sido equivocados.
Damore baseou sua tese nas ideias da Psicologia Evolutiva e na teoria dos “cinco
grandes traços de personalidade”, argumentando, em essência, que entre homens
6
http://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Espaco/noticia/2015/07/conheca-programadora-que-tornou-ida-da-huma-
nidade-lua-possivel.html Acessado em 30.08.2017
7
http://femalecomputerscientist.blogspot.com.br/2010/08/women-in-cs-its-not-nature-its-culture.html acessado em
25.08.2017
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http://revistagalileu.globo.com/Revista/noticia/2015/02/quem-sao-os-trolls-e-por-que-ninguem-esta-livre-deles.
html, acessado em 10.09.2017
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
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http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/search?q=boletim, acessado em 11.09.2017
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Bordieu, Pierre. A Dominação Masculina. Tradução maria Helena Kühner – 2ª Ed. Rio de
janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
Essinger, James. Ada’s Algorithm: How Lord Byron’s Daughter Ada Lovelace Launched the
Digital the Computer Age. Bluewave Publishing, 2013
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Milsoul Santos
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Organizadora : Edelamare Melo
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
2
http://caricomreparations.org/
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Organizadora : Edelamare Melo
3
Houve uma proposta pioneira no Supremo Tribunal Federal, nos autos do Mandado de Segurança n. 33826, o qual
versava sobre a reparação da escravidão, cujo pleito era o de garantir a Capoeira como Esporte de Exibição nas
Olímpiadas do Brasil, todavia, não se concretizado.
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Considerações
A proposta do ensaio foi ampliar o trabalho de Santos que discorreu so-
bre a reparação da Escravidão, essa apresenta os mecanismos que estão sendo
desenvolvidos em favor da população negra, ou seja, como reparar!
Acrescentamos a proposta de criação do fundo patrimonial da repa-
ração da escravidão, cujo objetivo é o de gerir recursos para manutenção e
custeio dessas atividades de modo a implementar políticas antirracistas.
Trata-se da divergência das políticas multiculturalistas utilizadas pelos organismos
internacionais e recepcionadas pelos diversos governos, pois de pouco impacto ou mudan-
ça, eis que evitam tratar dos efeitos econômicos, pois alteraria a destinação de recursos.
O fundo patrimonial da reparação deve ser inserido nos locais de recursos
oriundos de valores difusos, tem como fito promover a sustentabilidade dos pro-
cessos de desconstrução do racismo, cujos fins institucionais devem ser geridos e
administrados em favor da reparação, evitando políticas focais e o patrimonialismo.
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
ORIXALIDADE
Milsoul Santos
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
EPISTEMOLOGIA DO NTU:
UBUNTU, BISOIDADE, MACUMBA,
BATUQUE E “X” AFRICANA
Bas´Ilele Malomalo1
Introdução
Foi-me pedido, no âmbito do Simpósio “Negro (a), Afro-religioso (a), Qui-
lomboloba: Racismo e Intolerância Religiosa no Brasil e seus Reflexos no Mundo
de Trabalho”, desenvolver uma reflexão sobre “Ubuntu e religiosidade africana”.
Acabei optando pelo título de “Epistemologia do Ntu: Ubuntu, Bisoidade, Ma-
cumba, Batuque e “X” Africana” por acreditar expressar de perto alguns de meus
últimos trabalhos que se realizam no terreno das epistemologias do sul global
subalterno cujas epistemologias africanas continentais e diaspóricas são partes.
A tese que tenho defendido é que a filosofia africana (que deve ser sempre compre-
endida no plural e para além da disciplina da Filosofia), na qualidade de campo de pro-
dução de conhecimento e política de mudança social, coloca-se como um caminho de su-
peração da crise ecológica-planetária, vista como uma crise ontológica. Por ser uma crise
local-global-complexa, as respostas têm que ser igualmente locais-globais-complexas.
Nesse sentido é que se deve trabalhar com teorias e políticas assentes nos
pressupostos de intersecionalidades e complexidade. No caso de meus estudos, ca-
tegorias como raça, classe, gênero, migração, geração, espiritualidade e meio am-
biente são cruciais e devem ser tratadas numa perspectiva da complementaridade.
O significado do Ntu na epistemologia do Ntu
O que é Ntu? A resposta a essa pergunta tem que partir das bibliotecas
africanas que nos informam que é um termo usado entre alguns povos da
África central e austral que traduz a sua cosmovisão.
Kagame (1956) e Ramose (2011) são dois filósofos africanos que se
debruçaram sobre os significados do Ntu do ponto de vista da filosofia da
1
Doutor em Sociologia, Docente no curso de Bacharelado em Humanidades e no Programa de Mestrado Interdisci-
plinar em Humanidades, Instituto de Humanidades e Letras/Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira, São Francisco do Conde, Bahia, Brasil; líder do Grupo de pesquisa África-Brasil: Produção de
conhecimento, Sociedade civil, Desenvolvimento e Cidadania Global; pesquisador do Centro dos Estudos das Cul-
turas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra (CLADIN-Unesp), da Rede para o Constitucionalismo Democrático
Latino-Americano/Brasil, Member of United Nations - Harmony with Nature e integrante e fundador do Instituto da
Diáspora Africana no Brasil (IDDAB). Contato: [email protected].
73
Organizadora : Edelamare Melo
linguagem. Para Kagame (1956), o Ntu é o sufixo que é utilizado pelos povos
africanos, no caso ele estudava os banyaruanda, nomear o Ser. Este, para ele,
se traduz nessas quatro categorias Ki-Ntu (Coisa), Ha-Ntu (Espaço-Tempo),
Ku-Ntu (Modalidade do Ser) e Mu-Ntu (Ser Humano).
Ramose (2011) vai corrigir Kagame afirmando que esqueceu de uma
outra categoria primordial que é Ubu-Ntu. Ubu é o prefixo que traduz o mo-
vimento-força ou energia presente nas quatro categorias mencionadas. Essas
em si são as “entidades” que traduz a manifestação do “Ser”. Nesse senti-
do, Ubu-Ntu é o Ser-sendo, o Ser-Força-em-movimento. A física moderna
comprovou essa verdade metafisica defendendo que toda Matéria é feita de
energia. Essa é composta de átomos e partículas. Como se sabe a teoria de
big bang continua a sustentar a ideia de que o que deu início ao Universo se-
ria a explosão da energia primordial (HAWKING, 2015). E cada vez mais a
ciência moderna vem mostrando quanto à Energia está na base de tudo o que
existe (NTUMBA, 2014).
Essa concepção da Realidade é chamada da Filosofia da Força-Vital
(JANH, 1970; DIAGNE, 2014; TEMPLS, 2007). Em outras palavras, para a
filosofia africana tradicional e moderna, o que está na base de tudo o que existe
é o Ntu. Quando está em movimento é o Ubuntu. Todo mundo concorda que
cada povo ou zonas culturais africanas nomeia essa ideia de Força-Vital a partir
de suas línguas. Bilolo (1986) e Obenga (2005) afirmam que os egípcios anti-
gos traduziram a filosofia da Força-Vital em “Ntw”, “Onto”, Ser-Preexistente.
Todavia, não é um Ser imóvel; é o Ser-Devir a partir do qual tudo o que existe
procede, sem se confundir com Ele: o Noun, visto como Água primordial.
Ntumba (2014), na sua filosofia de bisoidade (Biso vem de Lingala e sig-
nifica Nós) alega o que existe deve ser interpretada como o Real-Total, Pro-
cessual, Multiforme e Plural. Como tudo procede desse Ser-preexistente, que é
Energia, primordial, o que que mantém cada entidade em suas manifestações é
a Solidariedade Cósmica, a Comunhão Participativa, que identifico em Ntumba
como Biso-Cósmico. Os povos yorubas perceberam o Ubuntu em termos de Axé
presente em todas as entidades e cujos orixás são guardiões e manifestações
plenas (SODRÉ, 2017, 2005). Porém, o Exu é visto como o orixá do movimento
que anima a Vida. O que existe de fato, me referenciando em Ntumba (1997), é
a complementaridade radical entre todas as entidades que existem e venho cha-
mando, em termos pedagógicos, de Comunidade-do-Sagrado-Ancestral, Comu-
nidade Universo-Natureza e Comunidade-dos-Bantu (Seres-Pessoas).
Interpreto Ubuntu como o Ser-em-movimento, aberto para o Outro e que
se concretiza nessas categorias ontológicas: Ki-ntu (ser-força-coisa), Ha-ntu
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
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Organizadora : Edelamare Melo
método e a/as teoria/as que a sustentam. Tem mais uma outra dimensão que
tem a ver com os princípios que devem guiar as atividades cientificas.
A epistemologia do Ntu tem por objeto ou sujeitos de investigação a
cultura negras e pessoas negras. Isso não quer dizer que não possa e deva
estudar outras realidades não negras.
A sua abordagem metodológica é interdisciplinar e intercultural. A in-
terdisciplinaridade não significa nem a negação de disciplinaridade, nem da
transdisciplinaridade. Respeita-se o método disciplinar quando não é sim-
plista e reducionista. Dependendo de contexto de estudos recomenda-se a
pratica da transdisciplinaridade nas pesquisas individuais e coletivas. A in-
terculturalidade sinaliza a necessidade de compreender não somente que toda
prática científica é um processo cultural, mas especialmente que os grandes
resultados são alcançados quando trabalhamos numa perspectiva do Exu, das
encruzilhadas, da interseccionalidades.
Os princípios de investigação são de ordem técnicas e éticas. Na pers-
pectiva da epistemologia do Ntu, esse é o seu princípio fundante: toda ciência
ubuntuista ou bisoista ou macumbista deve se movimentar, isto é,
(1) partir da vida;
(2) passar pela vida;
(3) desenvolver-se para a vida.
Em outras palavras, a construção de campo de investigação, os méto-
dos, as teorias e princípios a ser usados na epistemologia do ntu, partem da
cultura negra e em diálogo com outras culturas. Como toda teoria ou todo
paradigma só se explica pela linguagem, fazendo uso de conceitos, a episte-
mologia do ntu se fundamenta na linguagem negra.
O/apesquisador/a da ciência do ntu está na encruzilhada do mundo
acadêmico, vista por nós como escola da crítica e autocrítica radicais, e do
mundo não acadêmico, cultural, artístico, religioso. O ponto comum entre os
agentes que trabalham no mundo da academia e do mundo não acadêmico
seus esses três princípios: os saberes e conhecimentos partem da vida das
pessoas negras, da cultura negra, estruturam-se mediantes elas e têm por fina-
lidade a expansão de vidas negras e do cosmos.
Porque o nome de epistemologia do ntu? É porque Ntu é o conceito
com grande extensão analítica que engloba todos os elementos epistêmicos
da cultura africana: filosofias ancestrais ou contemporâneas como Ubuntu,
Bisoidade, Macumba, Batuque, Exu.
A ética, a política e a estética que ditam a linguagem da ciência ubun-
tuista correspondem a lógica da cultura negra. Nessa a ciência, a arte, a cultu-
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
MULTICULTURALISMO E EDUCAÇÃO:
A CONTRIBUIÇÃO DO CIENTISTA DA RELIGIÃO
NO DEBATE SOBRE A INCLUSÃO DAS
AFRICANIDADES NO ENSINO BRASILEIRO1.
Bas´Ilele Malomalo2
Resumo
A Lei 10.369/2003 e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana
inauguram uma nova página na história da democracia e da construção de uma educação
multicultural no Brasil. Esse trabalho pretende refletir sobre a contribuição do cientista
da religião no debate da inclusão das africanidades religiosas no currículo nacional.
Palavras-chaves:
Ciência da Religião, Multiculturalismo, Educação
Title
Multiculturalism and Education: The contribution of the religion scientist
to the debate over the inclusion of africanities at the Brazilian educational system.
Abstract
The law 10.369/2003 and the curricular national standards for the education of the
ethnical and racial relations and for the teaching of the African and Afro-Brazilian History
and Culture, inaugurate a new page at the history of democracy and the construction of a mul-
ticultural education in Brazil. This work aims to reflect over the contribution of the religion
scientist to the debate over the inclusion of africanities at the Brazilian educational system.
Keywords:
Religion Science, Multiculturalism, Education
1
Exto publicado em: MALOMALO, Bas´Ilele. Multiculturalismo e educação: a contribuição do cientista da religião
no debate sobre a inclusão das africanidades no ensino brasileiro. In: Religião & Cultura: Ensino religioso no Brasil:
Balanço, desafios, perspectivas, vol VI, n. 11, p. 107-122, jan/jun. 2007.
2
Bas´Ilele Malomalo, nascido na República Democrática do Congo, é Filosofo, Teólogo, Mestre em Ciências da
religião – Área concentração Ciência sociais, e Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia pela
Unesp; pesquisador do Centro de Estudos das Culturas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra da UNESP (CLA-
DIN) e Secretário Diretor Geral do IDDAB – Instituto do Desenvolvimento da Diáspora Negra no Brasil.
87
Organizadora : Edelamare Melo
Introdução
A Lei 10.639/20033, que estabeleceu o ensino obrigatório da História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana, abriu uma nova página na história da edu-
cação e da construção da democracia no Brasil4. As “Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”5 que acompanharam essa lei
explicitam melhor essa nossa observação.
A obrigatoriedade de inclusão da História e Cultura Afro-Bra-
sileira e Africana nos currículos da Educação Básica trata-se de
decisão política, com fortes repercussões pedagógicas, inclusi-
ve na formação de professores. Com esta medida, reconhece-se
que, além de garantir vagas para negros nos bancos escolares, é
preciso valorizar devidamente a história e cultura de seu povo,
buscando reparar danos, que se repetem há cinco séculos, à sua
identidade e a seus direitos. A relevância do estudo de temas
decorrentes da história e cultura afro-brasileira e africana não
se restringe à população negra, ao contrário, diz respeito a todos
os brasileiros, uma vez que devem educar-se enquanto cidadãos
atuantes no selo de uma sociedade multicultural e pluriétnica,
capazes de construir uma nação democrática6.
3
BRASIL, Lei No 10.639/2003. In: Diretrizes curriculares nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais
e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, p. 35. Daqui para adiante será identificado como
Lei 10.639/2003.
4
BRASIL, Pluralidade Cultural. In: Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos: apresentação dos
temas transversais/Secretaria da educação Fundamental, p. 117-160.
5
BRASIL, Diretrizes curriculares nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História
e Cultura Afro-Brasileira e Africana, pp. 5-33. Daqui para adiante será identificado como Diretrizes.
6
Diretrizes, p. 17.
88
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
7
V. C. de SOUSA JUNIOR, Nossas raízes africanas, 2004.
8
O Grupo de pesquisa Identidade do Instituto Superior da Igreja Luterana no Brasil e os Agentes Pastoral Negros
(APNs) do Rio Grande do Sul foram parceiros.
9
SECRETARIA DE ESTADO DE EDUCAÇÂO – SÂO PAULO. Programa São Paulo Educando pela diferença
para a igualdade. São Paulo, 2005 (Apostila Modulo II).
10
O. IANNI, A idéia de Brasil moderno, pp. 177-180.
89
Organizadora : Edelamare Melo
90
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
12
Ibidem..
13
E. MORIN, Complexidade e transdisciplinaridade: A reforma da universidade e do ensino fundamental, 1999.
14
G. FILORAMA; C. PRANDI, As ciencias das religiões, 1999.
91
Organizadora : Edelamare Melo
92
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
tentes entre negros e brancos na escola não encontram a sua justificativa so-
mente nas diferenças econômicas desses alunos, mas também e de maneira
incisiva, no racismo que se manifestas nos conteúdos dos livros didáticos e na
postura discriminatória dos professores e alunos não negros18.
Para superar essa situação da negação da cidadania dos negros nas esco-
las, os ativistas do movimento negro e os estudiosos das relações raciais têm
sugerido debates públicos em torno do multiculturalismo e da educação19. A Lei
10.639, as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Ét-
nico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana” e
os programas de formações de professores citados acima são exemplos concre-
tos de uma das conquistas desses agentes negros na sua luta pelo reconhecimen-
to dos direitos da população negra no campo da educação. Como reivindicações
fazem parte da luta pelo multiculturalismo no campo da educação20.
Mas o que entendemos por multiculturalismo? Boaventura de Sousa San-
tos e João Arriscado Nunes reconhecem que o “multiculturalismo” é um con-
ceito contestado, assim é preciso exorcizá-lo antes de qualquer uso. Para se sair
do malentendimento, esse autor adota a definição do “multiculturalismo eman-
cipatório”21. Stuart Hall compartilha essa concepção e faz essas distinções:
Multicultural é um termo qualificativo. Descreve as característi-
cas sociais e os problemas de governabilidade apresentados por
qualquer sociedade na qual diferentes comunidades culturais
convivem e tentam construir uma vida em comum, ao mesmo
tempo em que retêm algo de sua identidade “original”. Em con-
trapartida, o termo “multiculturalismo” é substantivo. Refere-se
às estratégias e políticas adotadas para governar ou administrar
problemas de diversidade e multiplicidade gerados pelas socie-
dades multiculturais22.
18
SECRETARIA DE ESTADO DE EDUCAÇÃO – SÂO PAULO. Programa São Paulo Educando pela diferença
para a igualdade. São Paulo, 2005 (Apostila Modulo II).
19
TERCEIRO SEMINÁRIO RELAÇÕES RACIAIS E EDUCAÇÃO : Saberes, Políticas e Perspectivas, 03 a 07 de
novembro de 2003; SECRETARIA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA, ALFABETIZAÇÃO E DIVERSIDADE,
pp. 205-229.
20
L. A . GONÇALVES; P. B. G. e SILVA, O Jogo das diferenças: o multiculturalismo e seus contextos, 2001.
21
B. de S. SANTOS; J. A . NUNES, Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igual-
dade. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. (Org.), Reconhecer para libertar, pp. 25-66
22
S. HALL, Da diáspora : Identidade e Mediações culturais, p. 52.
23
L. A . GONÇALVES; P. G. e SILVA, Op.cit.
93
Organizadora : Edelamare Melo
24
E. MORIN, A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento, 2001.
25
E. MORIN, Complexidade e transdisciplinaridade: A reforma da universidade e do ensino fundamental, 1999.
26
M. PAIXÂO, Manifesto anti-racista: idéias em prol de uma utopia chamada Brasil, pp. 11-12.
27
Cf. A. SEN, Desenvolvimento como liberdade, 2000.
28
P. B. G e SILVA, Aprendizagem e ensino das africanidades. In: MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o
racismo na escola, p. 155.
94
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
29
P. B. G. e SILVA, art. citado, p. 161.
95
Organizadora : Edelamare Melo
96
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
gerais os conteúdos que deveriam fazer parte do currículo nacional. Essas Di-
retrizes dividem esses conteúdos em quatro partes. A primeira reúne os temas
relacionados à História Afro-Brasileira, a segunda à História Africana, a tercei-
ra à Cultura Afro-Brasileira e a quarta à Cultura Africana. Caberá ao cientista
da religião ressaltar os elementos relevantes ligados ao seu campo de estudo,
mostrando sobretudo aqueles que detêm o poder simbólico eficiente e sufi-
ciente35 no processo da construção democrática de uma educação multicultural
brasileira; a educação que valoriza as diferenças e luta pela igualdade racial.
Por uma questão metodológica, a seguir, procederemos na apresentação
das orientações dos conteúdos do ensino das africanidades negras sugeridos
pelas referidas diretrizes. Em seguida, faremos alguns comentários relativos à
intervenção do cientista da religião. Gostaríamos de dizer que se trata somen-
te de breves comentários e não de estudos detalhados. Estes dizem respeito,
de modo particular, às ciências sociais, a sociologia, disciplina que é o nosso
oficio na atualidade. O que não impede que outros cientistas da religião, te-
ólogos, historiadores, filósofos possam se servir também deles. Começamos
pela primeira parte das diretrizes, a História Afro-Brasileira.
O ensino de História Afro-Brasileira abrangerá, entre outros con-
teúdos, iniciativas e organizações negras, incluindo a história dos
quilombos, a começar pelo Palmares, e de remanescentes de qui-
lombos, que têm contribuído para o desenvolvimento de comunida-
des, bairros, localidades, municípios, regiões (exemplos: associa-
ções negras recreativas, culturais, educativas, culturais, educativas,
artísticas, de assistência, de pesquisa, irmandades religiosas, gru-
pos do Movimento Negro). Será dado o destaque a acontecimentos
e realizações próprios de cada região e localidade36.
Datas significativas para cada região e localidade serão devi-
damente assinaladas. O 13 de maio, Dia Nacional de Denún-
cia contra o Racismo, será tratado como o dia de denúncia das
repercussões das políticas de eliminação física e simbólica da
população afro-brasileira na pós-abolição, e de divulgação dos
significados da Lei Áurea para os negros. No 20 de novembro
será celebrado o Dia nacional da Consciência Negra, entenden-
do-se consciência negra nos termos explicitados anteriormente
nesse parecer. Entre outras datas de significado histórico e polí-
tico deverá ser assinalado o 21 de março, Dia Internacional de
Luta pela Eliminação da Discriminação Racial37.
35
Cf. P. BOURDIEU, O poder simbólico., 2002; P. BOURDIEU; J-C PASSERON, A Reprodução: elementos para
uma teoria do sistema de ensino, 1975.
36
Diretrizes, p. 20.
37
Diretrizes, p. 21.
97
Organizadora : Edelamare Melo
38
B. de SANTOS, art. citado.
39
C. RIVIÈRE, Os ritos profano, 1997.
40
C. MOURA, Op.cit.
41
L. A. GONÇALVES; P. B. G e Silva, Multiculturalismo e educação: do protesto de rua a propostas e políticas. In :
Educação e pesquisa, pp. 109-123.
42
B. MALOMALO, Poder simbólico alternativo e a identidade étnica no Brasil, 2005.
43
Diretrizes, pp. 21-22.
98
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
44
G. RAMOS, Introdução crítica à sociologia brasileira., 1995.
45
CENTRE D´ÉTUDES DES RELIGIONS AFRICAINES, Religions Africaines et projet de socété. In : Cahier des
Religions Africaines, p. 23-28.
46
C. A . DIOP, Origem dos antigos egípcios. In: G. Mokhtar (Org.). História Geral da África, A África antiga, 1983;
Th. OBENGA, Fontes e técnicas especificas da historiografia da África Panorama Geral. In: KI-ZERBO, Joseph.
História geral da África: metodologia e pré-história da África, 1982, p. 91-104; Egiptologia. Disponível em : http ://
www.ankhonline.com..
47
Diretrizes, p. 22.
48
Ibidem.
99
Organizadora : Edelamare Melo
49
M. C. FAIK-NZUJI, La puissance du sacré; l´homme, la nature et l´art en Afrique, 1993.
50
CENTRE D´ÉTUDES DES RELIGIONS AFRICAINES, Religions Africaines et projet de socété. In : Cahier des
Religions Africaines, p. 23-28.
51
R. BASITIDE, As religiões Africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das interpretações de civilizações, 1989.
52
TERCEIRO SEMINÁRIO RELAÇOES RACIAIS E EDUCAÇÃO : Saberes, Políticas e Perspectivas, 03 a 07 de no-
vembro de 2003; SECRETARIA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA, ALFABETIZAÇÃO E DIVERSIDADE, pp. 205-229.
100
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Bourdieu, Pierre. O poder simbólico. 5 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
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53
P. B. G e SILVA, art. Citado, p. 160.
101
Organizadora : Edelamare Melo
_____. Lei No 10.639/2003. In: Diretrizes curriculares nacionais para Educação das Relações
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102
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Ramos, Guerreiro. Introdução crítica à sociologia brasileira. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
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103
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
TEOLOGIA E ESPIRITUALIDADE
AFRO-ANCESTRAL EM DEFESA DE PESSOAS
HOMOAFETIVAS E DESAMPARADAS
Bas´Ilele Malomalo1
Introdução
O texto que vou apresentar fará parte de uma mesa redonda que se denomi-
na: “Teologia e Espiritualidade Afro-Ancestral: Resistir, (Re)Existir e Transformar em
Tempos de Crise”. Como organizadores/as da referida mesa redonda, pensamos em
discutir sobre as religiões, teologias e espiritualidades africanas focando nas formas de
suas elaborações e vivências nos espaços moldados pelos valores civilizatórios africa-
nos e/ou que estão em permanente diálogos com outras religiões como religiões indíge-
nas, o islã, o cristianismo e o espiritismo na África e no Brasil. Tensionar a questão do
pluralismo religioso, e destacar como as comunidades religiosas lideradas por pessoas
negras podem se tornar espaços de resistência, re-existência e transformação em tem-
pos de crise. A mesa visa igualmente a troca de experiências de resistências feitas pelos
africanos e seus descendentes no continente africano e na diáspora negra no Brasil.
O texto apresentado inscreve-se na tradição da oralidade africana.
Quando falamos de tradição em relação à história africana, refe-
rimo-nos à tradição oral, e nenhuma tentativa de penetrar a histó-
ria e o espírito dos povos africanos terá validade a menos que se
apóie nessa herança de conhecimentos de toda espécie, paciente-
mente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao
longo dos séculos. Essa herança ainda não se perdeu e reside na
memória da última geração de grandes depositários, de quem se
pode dizer são a memória viva da África. (BÂ, 2010, p. 167).
1
Graduado em Filosofia e Teologia, é doutor em Sociologia pela UNESP, estagiário pós-doutorado pelo Instituto da Biociência/
Departamento de Educação/UNESP-Botucatu, docente e líder do Grupo de pesquisa África-Brasil: Produção de conhecimento,
Sociedade civil, Desenvolvimento e Cidadania Global/UNILAB/CNpq, pesquisador do Centro de Ciência e Tecnologia para
Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (INTERSSAN-Unesp), do Centro dos Estudos das Culturas e Línguas Africanas
e da Diáspora Negra (CLADIN-Unesp), da Rede para o Constitucionalismo Democrático Latino-Americano/Brasil e expert da
plataforma Harmony with Nature/ONU e fundador do Instituto da Diáspora Africana no Brasil (IDDAB).
105
Organizadora : Edelamare Melo
106
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
nos são anteriores aqueles e têm seu valor único. Os textos africanos que me
inspiram encontram-se, por exemplo, nas escritas de Hamadou Ampaté Bâ.
A tradição bambara do Komo ensina que a Palavra, Kuma, é uma
força fundamental que emana do próprio Ser Supremo, Maa Ngala,
criador de todas as coisas. Ela é o instrumento da criação: “Aquilo
que Maa Ngala diz, é!”, proclama o chantre do deus Komo.
O mito da criação do universo e do homem, ensinado pelo mestre
iniciador do Komo (que é sempre um ferreiro) aos jovens cir-
cuncidados, revela-nos que quando Maa Ngala sentiu falta de um
interlocutor, criou o Primeiro Homem: Maa. (BÂ, 2010, p. 170).
107
Organizadora : Edelamare Melo
gritos do público para castigar o Dagiu, que poderia envolver surras, expul-
são ou até apedrejamento, o mestre não sabia o que fazer diante da tamanha
incompreensão da situação. Logo me disse que ouviu uma voz que lhe disse
para perguntar ao seu discípulo porque teria furtado o gás, mesmo sabendo
que teria ido comprar a ovelha para o batizado. O discípulo respondeu que
não sabia porque estava fazendo aquilo, e implorou ao mestre para perdoá-lo.
O que foi feito; e no dia seguinte, o mestre, Dagui e outros discípulos foram
até a casa do pai da namorada para pedir a autorização para batizar a criança.
Teologia e espiritualidade africana
Nós pensamos e acreditamos que teologia é uma fala ou discurso so-
bre o sagrado. Rubem Alves, um dos teólogos brancos mais críticos que eu
admiro, compreende a Teologia, em geral, como “variações sobre a Vida e a
Morte”. Em outras palavras, conforme o teólogo protestante: “É assim que
entendo a teologia. Falar sobre a vida, suas coisas mais simples e mais gra-
ves, com amor, usando símbolos/memórias que uma tradição enfiou na minha
carne. É por isso que não tenho alternativas...” (1985, p. 7).
Contrariando, o mestre Rubem Alves, digo que alternativas sempre
temos, quando nos situamos numa tradição de insurgência, de resistência e
busca de liberdade absoluta. É isso que os povos negros sempre buscaram e
fizeram: encontrar alternativas para além de projeto de morte imposto a eles
pelos imperialistas e isso não somente no campo teológico.
Para me restringir no campo da resistência negra no campo teológico,
trago duas definições do teólogo metodista africano, Gabriel Setiloane, que
escreve desde África do Sul, e Marcos Rodrigues da Silva, que escreve desde
a diáspora negra brasileira.
Falando de modo muito bem resumido, então, a Teologia Africana é
uma tentativa de verbalizar a reflexão a respeito da Divindade (fazer
teologia) a partir da perspectiva do ambiente e da cultura do povo
africano. Esse ambiente e cultura são vistos e julgados, não somente
como ingredientes, mas como algo que determina as respostas finais
que essa teologia dá a perguntas referentes à natureza da Divindade
e da humanidade; aos imperativos que derivam daí, referentes às
relações humanas, individuais e em comunidades; e a perguntas so-
bre a morte e a vida depois da morte. (SETILOANE, 1992, p. 54).
108
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
109
Organizadora : Edelamare Melo
Quando meu mestre acabou de me contar as histórias, disse-me essa é a fé. Esse
é Deus. Na primeira história Deus/a se manifesta através de nós quando protegemos
os/as perseguidos por causa de diferença de identidade sexual. Ele se manifesta igual-
mente no perdão que quem se encontra numa posição de superioridade deve conceder
a quem, por muitos motivos que podem nos escapar, cometeu erros. Amor, perdão e
solidariedade incondicional são realidades históricas e não pura fantasia.
Colonialidade e reinvenção de espiritualidade africana na CMM
Temos que buscar interpretar a noção da colonialidade (BERNARDINO-
COSTA, Joaze ; MADOLNADO-TORRES, Nelson ; GROSFOGUEL, 2018;
MALOMALO, 2017) procurando situar sua gênese e sentido semântico nas e
dentro das dominações exercidas pelos impérios árabo-muçulmano (a partir do
século VIII) e europeu (a partir do século XV) para compreender as domina-
ções estrangeiras nos territórios africanos. Dominações que se fizeram de for-
ma paulatina, mas que tiveram impactos duradouros que se refletem até hoje.
O racismo é um dos elementos que acompanharam as colonizações árabo-mu-
çulmanas e europeias. Transformaram africanos/as e suas culturas em não humanos e
em culturas diabólicas. Apropriaram-se das terras africanas. Escravizaram e traficaram
africanos/as, ou ainda impuseram-nos/as o trabalho forçado, uma forma de escravidão
moderna camuflada. Saquearam o seu patrimônio material e cultural e os/as obrigaram
a menosprezaram a si mesmos/as, suas culturas, suas divindades.
Só que quaisquer forma de dominação gera, geralmente, resistência da
parte dos/as dominados/as. Essa pode ser lenta, mas acaba por aparecer um
dia, quando as condições históricas permitem-na. Dessa forma, é que a África
dominada pela cultura árabo-muçulmana ou euro-cristã, reagiu para assegu-
rar a sua existência coletiva.
Dentro das formas de resistências que os povos africanos travaram contra
seus opressores, a resistência religiosa foi uma delas e foi e tem sido uma das mais
eficientes, tendo-se em conta a não separação do mundo sagrado e mundo pro-
fano entre esses povos (SODRÉ, 2005). Conseguiram dessa forma, de um lado,
a depender de lugares, salvaguardar as religiões de seus ancestrais sem ceder às
imposições das religiões estrangeiras, o cristianismo e o islã. De outro lado, le-
vando-se em conta o contexto de dominação que sofriam, souberam reinterpretar
as religiões de seus opressores, criando novas formas de religiosidades africanas,
conhecidas como islã negro ou cristianismo negro (BASTIDE, 1989).
Esse hibridismo é que explica, em parte, porque uma parte de africanos/as
vivenciam dois ou múltiplo pertencimento religioso sem que seja um problema.
Continua sendo africano/a tradicionalista e/ou muçulmano/a e/ou cristão/ã.
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
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Organizadora : Edelamare Melo
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Sheik Modibo Dadiarra, fundador da Comunidade
Mandinatu Munawara (CMM)
Organizadora : Edelamare Melo
116
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
1. Nota introductoria
Abordar un tema tan complejo sobre la discriminación por razones étnicas
en el trabajo pasa, de manera inexorable, por valorar cuáles son las repercusiones
jurídicas que dichas conductas conllevan. Dicho de otra forma, parece imprescindible
evaluar cuál es la dedicación, alcance y efectividad de las normas que tutelan a las
personas que sufran dichas actitudes peyorativa. En este sentido, es imprescindible
una aproximación inicial a los derechos constitucionales en juego, concretando cuál
es el bien jurídico protegido. Múltiples son las causas y las formas de discriminación
proscritas por el Derecho, que en la mayoría de las ocasiones son susceptibles de ser
pluriofensivas y vulnerar varios derechos fundamentales a la vez.
En el tratamiento del tema que aquí se va a desarrollar, parece relevante
partir de un derecho que no sólo es parte indisoluble del ser humano: el derecho a
su diversidad, a ejercer con libertad e igualdad sus propios rasgos culturales, a una
diversidad cultural que, cuando no se tutela, vulnera derechos tan fundamentales
como la dignidad, la igualdad, el honor, la libre determinación de la personalidad,
su integridad corporal… Parece por ello importante realizar una breve revisión
conceptual y normativa2 que, en principio, pueda servir como aproximación pero
que, en definitiva, puedan a posteriori ser utilizadas como base para conocer y
realizar propuestas sobre el tratamiento que reciben en el mundo del trabajo.
Quiero por tanto empezar este trabajo destacando el valor de la cultura
y su relación estructural con las personas, así como poner en evidencia
el inevitable reflejo que tiene la cultura en todos los actos de la vida: sus
manifestaciones definen y diseñan la personalidad del ser humano.
2. La diversidad cultural como bien jurídico protegido
Las personas son, básicamente, culturales: cada una ha nacido en una
comunidad de vida en la que ha socializado, interiorizando unas maneras
1
Doctor en Derecho, Profesor Titular de Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social de la Universitat de València (Es-
paña). Investigador del Instituto Internacional Derecho y Sociedad (Lima, Perú). Investigador del Instituto Polibienestar y
del proyecto de Investigación sobre la violencia en el trabajo y género (VITRAGE) de la Universitat de València.
2
Este texto está basado en partes de mi monografía Interculturalidad y Derecho del Trabajo. Una aproximación a la
gestión no discriminatoria de la diversidad cultural en la empresa, Tirant lo Blanch, Valencia 2009.
117
Organizadora : Edelamare Melo
3
RODRIGO ALSINA, M., “La comunicación intercultural”, Estudios interculturales, textos básicos para el forum
2004, http://www.blues.uab.es/incom/2004/cas/rodcas1.html
4
Conferencia Mundial sobre las Políticas Culturales (MONDIACULT, México, 1982), de la Comisión Mundial de
Cultura y Desarrollo (Nuestra Diversidad Creativa, 1995) y de la Conferencia Intergubernamental sobre Políticas
Culturales para el Desarrollo (Estocolmo, 1998).
5
Artículo 4 de la Convención sobre la protección y promoción de la diversidad de las expresiones culturales de la UNES-
CO, aprobado en París el 20 de octubre de 2005 y ratificado por España el 25 de octubre de 2006 (BOE 12 febrero2007).
6
http://www.prodiversitas.bioetica.org/cultural.htm
7
Artículo 1º (“La diversidad cultural, Patrimonio Mundial de la Humanidad”) de la Declaración Universal de la
UNESCO sobre la diversidad cultural de 2002.
8
CORTINA, A., Ciudadanos del Mundo. Hacia una teoría de la ciudadanía, Alianza Editorial 2005, p. 188.
118
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
hecho de que haya diversas culturas, sino del hecho de que personas con
distintos bagajes culturales hayan de convivir en un mismo espacio social,
sea una comunidad política, sea una comunidad humana real en su conjunto,
donde la mayoría de las veces una de las culturas es la dominante”9.
La idea es crear un marco jurídico que permita el libre desarrollo de la
personalidad humana en todas las dimensiones sociales, incluida la laboral,
tutelando la condición humana en el doble sentido de no interferir en su
ámbito interior y de proporcionarle las condiciones que necesita para vivir
con dignidad. “La integración es, ante todo, igualdad de derechos (que no
uniformidad) y, por tanto, no sólo no discriminación, sino igualdad”10.
3. Dignidad humana, identidad cultural y libre desarrollo de la
personalidad
La diversidad cultural proporciona a las personas su identidad personal,
diferenciándola de otras personas o grupos al incorporarse de manera
indisoluble a su forma de ser y de pensar: el respeto a la diferencias está, por
esta causa, en íntima relación con la dignidad humana, lo que tiene suficiente
valor en sí mismo11 como para alejarlo del tráfico mercantil y no permitir su
medición en términos económicos.
Si los derechos humanos “son el núcleo básico, ineludible e irrenunciable
del status jurídico del individuo”12, y “la proyección positiva, inmediata y vital
de la dignidad de las personas”13, su satisfacción no debería alcanzarse a través
de un quid pro quo mercantil que implique la renuncia de aquellos elementos y
circunstancias que nos definen como personas: el origen racial o étnico, social
o nacional, las convicciones religiosas o ideológicas, el género, la lengua o las
manifestaciones de sus tradiciones, incluida la apariencia física. Expresado en
otras palabras, “para obtener el reconocimiento como seres humanos, iguales
en dignidad y derechos, no se nos puede exigir que dejemos de ser humanos”14.
El respeto a la diversidad cultural, el derecho a ser diferente, es “el
derecho de todas las personas a un trato que no contradiga su condición de ser
igual y libre, capaz de determinar su conducta en relación consigo mismo y su
9
En este sentido, CORTINA, A., ob .cit. (2005-a), pp. 178-179.
10
DE LUCAS, J., ob. cit. (2005), p. 256.
11
Este enlace con el sentido kantiano del fin en sí mismo lo plantea CORTINA, A., Conferencia en el Congreso
Nacional del voluntariado celebrado en Granada el 2 de diciembre de 2005, ejemplar fotocopiado.
12
Respecto de los derechos fundamentales, GARCÍA-PERROTE, I. y MERCADER UGUINA, J.R., “Conflicto y
ponderación de los derechos fundamentales de contenido laboral”, en El modelo social de la Constitución Española
de 1978 (SEMPERE NAVARRO, A., Director), MTAS, Madrid 2003, p. 251-252.
13
GARCÍA-PERROTE, I. y MERCADER UGUINA, J., ob. cit. (2003), p. 251.
14
DE LUCAS, J., “La herida original de las políticas de inmigración. A propósito del lugar de los derechos humanos
en las políticas de inmigración”, ISEGORÍA 26/2002, p. 70.
119
Organizadora : Edelamare Melo
120
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
21
AÑÓN ROIG, M.J., Igualdad, diferencias y desigualdades, México 2001, pp. 23-24.
22
DE LUCAS, J., ob. cit. (2002), p. 76.
23
AÑÓN ROIG, M.J., “La multiculturalidad posible: la mirada del Derecho”, Cuadernos Electrónicos de Filosofía
Del Derecho 8/2003, www.uv.es/CEFD/Index_8.htm, p. 21.
24
“En el discurso occidental estas dicotomías se estructuran en torno a la dicotomía buena/mala, pura/impura. La pri-
mera parte de la dicotomía se eleva sobre la segunda porque designa lo unificado, idéntico a sí mismo, mientras que
la segunda parte se ubica fuera de lo unificado como lo caótico, sin forma, en transformación, que siempre amenaza
con traspasar el borde y romper la unidad de lo bueno”, YOUNG, ob. cit. (2000), pp. 168-169.
25
ELÓSEGUI ITXASO, M., “Asimilacionismo, multiculturalismo, interculturalismo”, Claves de la razón práctica
74/1997, p. 24 ss.
26
ELÓSEGUI ITXASO, M., ob. cit., p. 31.
27
CORTINA, A., ob. cit. (2005-b).
28
AÑÓN ROIG, M.J., ob. cit. (2003), p. 4.
29
Artículo 2.3 Convención UNESCO 2005.
30
RODRÍGUEZ ALSINA, M., ob. cit. (1999), p. 60.
121
Organizadora : Edelamare Melo
122
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
123
Organizadora : Edelamare Melo
43
FERRAJOLI, L., en Derechos y garantías: la ley del más débil, Trotta, Madrid 2004, p. 82.
44
AÑÓN ROIG, M.J., ob. cit. (2001-b), p. 18.
45
AÑÓN ROIG, M.J., ob. cit. (2001-b), p.26.
46
DAMIANI BUSTILLOS, L.F., “De la subversión social a la subversión política”, Cuadernos para el debate agosto
1991, Ediciones Primera Línea, Caracas, pp. 45-46.
124
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
discriminado47. No obstante este tránsito tan significativo, para que los derechos
humanos sean justiciables48 y se puedan disfrutar materialmente, es necesario, de
un lado, que los poderes públicos faciliten el ejercicio progresivo, irrenunciable,
indivisible e interdependiente de todos ellos, con independencia de cuál sea su
naturaleza; y, de otro, que lo hagan alentando la construcción de unas relaciones
sociales y, por supuesto, de un ordenamiento jurídico (también jurídico-laboral),
en el que la identidad cultural forme parte del derecho a la igualdad49.
Considerando que el primero de los derechos humanos es el derecho a tener
derechos, sólo un disfrute integral de todos ellos permitirá el reconocimiento de los
seres humanos como sujetos, pero no en el sentido de una universalidad uniforme,
“sino precisamente desde su carácter insustituible, desde su diferencia, su otreidad”.
Al amparo de esta idea, me parece que conviene superar el modelo
que propone un tratamiento jurídico neutro que ignora la diversidad, en un
vivir y dejar vivir, pero cada una en su cultura, que normalmente ha estado
vinculado con la creación de ghettos50. “Una sociedad multicultural moderna
requiere adoptar, por parte de todos los grupos, pautas y referencias comunes
que faciliten la convivencia política y hagan posible el diálogo intercultural”51,
considerando al otro como alter ego, y teniendo en cuenta que para comprender
sus intereses es preciso comprender su cultura52. La apuesta es conseguir que
entre los grupos sociales con distintos códigos culturales53 y sus conjuntos
de valores, de creencias y de comportamientos54, exista un proceso abierto
de diálogo que admita la posibilidad real de intercambio55, fomentando una
interacción cultural basada en el derecho a la inclusión56.
La diversidad cultural es hoy una realidad que requiere construir
una convivencia para la integración, donde en el desarrollo de la identidad
ciudadana, promover y facilitar el diálogo intercultural sean prioridades
declaradas que contribuyan a la cohesión social y a la aceptación de identidades
culturales y de creencias diferentes dentro de la ciudadanía europea57.
47
VALDÉS DALRÉ, F., “La prohibición de discriminación: una cualificada expresión del moderno ius gentium”,
Relaciones Laborales 5/2008.
48
Término utilizado por FERRAJOLI, L., Los fundamentos de los derechos fundamentales, Trotta, Madrid 2001.
49
AÑÓN ROIG, M.J., ob. cit. (2003), CEFD, p. 7.
50
Idea expresada por CORTINA, A., Conferencia “Tolerancia y solidaridad” Universitat de València, 29 de marzo de 2007.
51
ÁLVAREZ DE FORRONSOLO, I., ob. cit., http://www.uv.es/CEFD/Index_0.html
52
CORTINA, A. ob. cit. (2005-a), p. 184.
53
Utilizando la expresión de AÑÓN ROIG, M.J., ob. cit. (2003), p. 2.
54
Vid. CEAR-Euskadi, Inmigración y empresa. Dodecálogo de recomendaciones para un tándem económicamente
eficiente y socialmente responsable, CEAR (2006), http://www.cear.es/DodecalogodeRecomendacio.pdf
55
ELÓSEGUI ITXASO, M., ob. cit., p. 25.
56
JAHANBEGLOO, R., “En defensa de la diversidad”, Diario El País 29 de octubre de 2006, Edición Digital.
57
Exposición de Motivos del Real Decreto 367/2007, de 16 de marzo, por el que se crea y regula la Comisión Na-
cional para el Fomento y Promoción del Diálogo Intercultural (BOE 24 marzo 2007).
125
Organizadora : Edelamare Melo
58
Artículo 4.8 Convención UNESCO 2005.
59
FORNET-BETANCOURT, R., “Supuestos filosóficos del diálogo intercultural”, http://www.ensayistas.org/criti-
ca/teoria/fornet
60
VALDÉS DALRÉ, F., ob. cit. (2008), p. 3.
61
En sentido similar, GARCÍA-PERROTE ESCARTÍN, I. y MERCADER UGUINA, J.R., ob. cit. (2003), p. 255.
62
Ver FERRAJOLI, L., ob. cit. (2004), pp. 73 y ss..
63
SEMPRINI, A., Le multiculturalisme, Presses Universitaires de France, París 1997, p. 66.
64
Una interesante y relativamente reciente reflexión crítica sobre esta doctrina puede verse en HERREÑO HER-
NÁNDEZ, A.L., ¿Todo o nada? Principio de integralidad y derechos sociales, ILSA, Bogotá 2008, pp. 25 ss.
65
Vid. STC 192/2003 de 27 de octubre.
126
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Edelamare Melo1
De que mulher negra falamos? Qual sua história e sua contribuição para
a identidade feminina brasileira? Estas são perguntas que devemos sempre
nos fazer quando falamos da mulher negra e afro-religiosa no universo do
trabalho. Não deveria, mas, não raro, a escolha de credo/ crença/ orientação
religiosa tem sido levada em conta pelas empresas na hora da contratação.
Daí a importância de nos debruçarmos sobre o tema das barreiras de acesso
da mulher negra e afro-religiosa no universo do trabalho porque é fato, a vio-
lência do preconceito, do racismo, da intolerância e da discriminação racial
e religiosa é sentida como algo único e solidário por quem a sofre na medida
em que afeta, de forma contundente, a sua dignidade.
Trata-se de um preconceito velado, que restringe o acesso ao mercado
de trabalho de afro-religiosos, em especial as mulheres negras, porque sobre
elas pesa tríplice discriminação: gênero, étnico-racial e orientação religiosa,
que se agrava quando agregamos a estes fatores outros fatores que também
trazem consigo as marcas do preconceito, do racismo, da intolerância e da
discriminação: orientação sexual ou identidade de gênero.
Apesar da existência de vedação constitucional e legal expressa para
tal prática, o fato é que, no país, 80% das pessoas de religiões de matriz afri-
cana, em sua significativa maioria mulheres, sofrem restrições no mercado de
trabalho, seguida das mulheres muçulmanas, com 70%2.
Refletindo sobre este quadro nos remetemos a Abdias Nascimento3, que
apresenta um iter histórico pós-abolicionista que persiste até os dias atuais, lem-
brando que, antes de 1950, no Brasil, a discriminação racial para acesso ao
emprego era uma prática corrente, sancionada pela lei consuetudinária, tanto as-
1
Doutora em Direito pela Universidad Pablo de Olavide (Sevilla, Espanha). Subprocuradora Geral do Trabalho.
Membro do Conselho Superior do Ministério Público do Trabalho. Coordenadora do Grupo de Trabalho Comunida-
des Tradicionais do Ministério Público do Trabalho.
2
Dados disponíveis em: https://extra.globo.com/emprego/intolerancia-religiosa-reduz-chances-no-mercado-de-tra-
balho-15876508.html. Acesso em 18.11.2018
3
NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um racismo mascarado. 3ª edição. São
Paul. Perspectivas, 2016, pp 62-63 p. 97
129
Organizadora : Edelamare Melo
4
Lei Afonso Arinos, Lei 1390, promulgada por Getúlio Vargas em 3.7.1951. Batizada de Lei Afonso Arinos em
homenagem a seu autor, vice-líder da bancada da conservadora União Democrática Nacional (UDN) na Câmara.
Leia mais: https://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/criada-lei-afonso-arinos-primeira-norma-contra-racis-
mo-no-brasil-10477391#ixzz5Wa1MVF5m
5
NASCIMENTO, Abdias. Ob. Cit.
6
PRANDI, Reginaldo. Povo Negro. Revista USP. p. 64-83, dezembro/fevereiro: 1996
130
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
7
Candomblé é uma palavra derivada da língua bantu: ca [ka]=uso, costume, ndomb=negro, preto e lé=lugar, casa,
terreiro e/ou pequeno atabaque. A reunião dos três vocábulos resulta em “lugar de costume dos negros”, por extensão, lu-
gar de tradições negras, tradições entre as quais, destacam-se, no sentido atual as práticas religiosas que incluem a música
percussiva [A TARDE, 1980]. Outra interpretação informa que kandombele significa “adorar” [Ngunz’tala, 2006] [Fonte:
https://www.portalsaofrancisco.com.br/historia-geral/candomble]. O candomblé é uma religião anímica porque tem, por
base, a anima (alma) da Naturezao. Sendo de origem totêmica e familiar, é uma das religiões de matriz africana mais
praticadas, tendo mais de três milhões de seguidores em todo o mundo, principalmente no Brasil.[...] Os sacerdotes afri-
canos que vieram para o Brasil como escravos, juntamente com seus orixás/nkisis/voduns, sua cultura, e seus idiomas,
entre 1549 e 1888, tentaram dar continuidade à sua cultura e religiosidade em terras brasileiras. Foram os africanos que
implantaram suas religiões no Brasil, juntando várias em uma casa só para a sobrevivência das mesmas, e nisto consiste
o seu diferencial em relação às práticas religiosas em África onde cada nação cultuava uma determinada divindade.
Embora confinado originalmente à população de negros escravizados, inicialmente nas senzalas, quilombos e terreiros,
proibido pela igreja católica, e criminalizado mesmo por alguns governos, o candomblé prosperou nos quatro séculos,
e expandiu consideravelmente desde o fim da escravatura em 1888. Estabeleceu-se com seguidores de várias classes
sociais e dezenas de milhares de templos. Em levantamentos recentes, aproximadamente 3 milhões de brasileiros (1,5%
da população total) declararam o candomblé como sua religião. Na cidade de Salvador existem 2.230 terreiros regis-
trados na Federação Baiana de Cultos Afro-brasileiros e catalogados pelo Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA,
[Universidade Federal da Bahia. Mapeamento dos Terreiros de Candomblé de Salvador. Fonte: Wikpedia. Disponível
em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Candombl%C3%A9]. Por conta do histórico de perseguições e de discriminação, o
sincretismo entre a religiosidade africana e o catolicismo sempre foi um dos aspectos mais destacados do Candomblé, que
continuou a cultuar seus Orixás, resguardando-os sob a aparência de santos católicos. As religiões de matizes africanas
são ancoradas nos princípios da oralidade, temporalidade, senioridade, na ancestralidade, não necessitando de um texto
básico para defini-las.
8
NERIS, Júlia Simões. “Intolerância Religiosa nas relações de trabalho: proteção ao povo de Santo”. In: Revista
Eletrônica do Tribunal Regional do Trabalho da Bahia, Ano V, n. 9, Out. de 2017.
131
Organizadora : Edelamare Melo
132
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
9
REIS, Josélia Ferreira dos; e FREITAS, Rita de Cássia Santos. De Matriz Africana: O Papel das Mulheres Negras
na Construção da Identidade Feminina. Fazendo Gênero 9. Diásporas, Diversidades, Deslocamentos 23 a 26 de
agosto de 2010.
133
Organizadora : Edelamare Melo
10
Idem
134
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
11
REIS, Josélia Ferreira; FREITAS, Rita de Cássia Santos. Ob.Cit.
12
Líder comunitária na sociedade tradicional ioruba
13
REIS, Josélia Ferreira; FREITAS, Rita de Cássia Santos. Ob.Cit.
14
BERNARDO, T. apud REIS, Josélia Ferreira; FREITAS, Rita de Cássia Santos. Ob.Cit.
15
Idem
135
Organizadora : Edelamare Melo
16
AMARAL, R. apud REIS, Josélia Ferreira; FREITAS, Rita de Cássia Santos. Ob.Cit
17
REIS, Josélia Ferreira; FREITAS, Rita de Cássia Santos. Ob.Cit.
18
AMARAL,R. apud REIS, Josélia Ferreira; FREITAS, Rita de Cássia Santos. Ob.Cit
19
REIS, Josélia Ferreira; FREITAS, Rita de Cássia Santos. De Matriz Africana: Ob.Cit
136
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
20
REIS, Josélia Ferreira; FREITAS, Rita de Cássia Santos. Ob.Cit
21
NASCIMENTO, Abdias. 13 de maio: Dia de Denúncia contra o Racismo, Minas Gerais, n. 1.098, 7 maio 1988.
(Suplemento Literário).
137
Organizadora : Edelamare Melo
terror: desde 1890, o negro vem sendo o preso político mais igno-
rado desse País[...]
22
CARNEIRO, Sueli. “Enegrecer o Feminismo: A Situação da Mulher Negra na América Latina a partir de uma
perspectiva de gênero”. Disponível em: http://latitudeslatinas.com/download/artigos/enegrecer-o-feminismo-a-situ-
acao-da-mulher-negra-na-america-latina-a-partir-de-uma-perspectiva-de-genero.pdf. Acesso em 10/11/2018
23
SEYFERTH,Giralda. A Invenção da Raça e o Poder Discricionário dos Estereótipos. Comunicação apresentada na
mesa redonda “Racismo e Identidade Social”, 45a Reunião Anual da SBPC, Universidade Federal de Pernambuco,
Recife, 11a 16-7-93. Anuário Antropológico/93 Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995, p. 185
24
CARNEIRO, Sueli. Ob.Cit.
138
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
139
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28
Idem
29
GOLDWIN, Morgan apud NASCIMENTO, Abdias, ob.cit. p.63
30
SILVA, Vagner Gonçalves da. Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras: Significados do ataque aos símbolos
da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo. In: Mana vol.13 no.1 Rio de Janeiro Apr. 2007. Disponível
em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-93132007000100008&script=sci_arttext. Acesso em 16.11.2018
140
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
31
GONÇALVES, Vagner. Ob. Cit.
141
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142
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
32
Confira-se reportagem e vídeo em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/06/menina-vitima-de-intole-
rancia-religiosa-diz-que-vai-ser-dificil-esquecer-pedrada.html
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Organizadora : Edelamare Melo
Agregue-se a tudo o que até aqui foi dito a necessidade de alguém negar
a sua identidade de cor e religiosidade para se incluir no universo que lhe ex-
clui por força do preconceito, do racismo, da intolerância e da discriminação
de gênero, raça, cor, etnia, religiosidade. Isto é um fato que foi identificado
em um censo do IBGE, e que foi objeto de análise pelos repórteres do Estado
de São Paulo, Edison Veiga e Rodrigo Burgarelli, em 7 de março de 2017 ,
cuja reportagem recebeu o seguinte título: ‘Faltam’ 2,5 milhões de mulheres
pretas e pardas no País, segundo IBGE35. Intrigados com referidos dados es-
33
NASCIMENTO, Abdias. Ob. Cit. pp 54-55.
34
Idem. p. 54
35
VEIGA, Edison, e BURGARELLI ,Rodrigo. O Estado de S. Paulo. ‘Faltam’ 2,5 milhões de mulheres pretas e
144
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
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seu turno, Taís Araújo pontua: “Ser mulher negra neste País é muito difícil.
Entendo profundamente as pessoas que tentam se aproximar de uma realida-
de que não é delas”. Ou seja, trata-se de uma triste rota de fuga dos estigmas
que recaem sobre a mulher negra. Uma tentativa de negar aquilo que se lhe
imputa como características negativas.
A partir deste contexto tentemos refletir sobre as seguintes narrativas
de preconceito, racismo, intolerância e discriminação nas relações de trabalho
e como elas podem afetar a saúde da mulher negra, sua qualidade de vida, sua
autoestima, sua dignidade, enfim.
Primeira narrativa: Larissa Neves, estudante de psicologia, quando ti-
nha 18 anos conseguiu emprego como recepcionista em uma empresa mul-
tinacional, mas acabou tendo que sair por não suportar os ataques e piadas
preconceituosas por ser negra. Relata Larissa que “Na época eu estava come-
çando meu processo de transição, tinha parado de relaxar o cabelo e cortei ele
bem curtinho. Quando ele começou a crescer começaram a dizer que minha
aparência não era compatível com o trabalho, me questionaram se eu não iria
relaxar o cabelo. Até que um dia eu estava na sala e começaram, além de fazer
piada, a colocar objetos do escritório na minha cabeça”36.
Segunda narrativa, dentre muitas outras...
36
THÂMARA, Thamyra. Mulher negra ainda é mais discriminada no trabalho. Homens brancos ganham mais que
mulheres brancas, mulheres brancas ganham mais que homens negros. e mulheres negras ganham menos que todos.
In: Maré Online. Disponivel em: http://redesdamare.org.br/mareonline/2017/11/29/mulher-negra-ainda-e-mais-dis-
criminada-no-trabalho/. Acesso em 15.11.2018
37
SANTIAGO, Viviana. Diário de Uma Mulher Negra no Mercado de Trabalho. In: geledes.org.br.21.8.2017. Dispo-
nivel em: https://www.geledes.org.br/diario-de-uma-mulher-negra-no-mercado-de-trabalho/. Acesso em 11.11.2018
146
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
rias me chama para conversar: tece elogios a minha prática, que
minha escrita era muito boa, que eu era muito educada e tinha
maneiras excelentes ao telefone (?!) mas ela precisava fazer uma
observação: eu tinha um cheiro que incomodava as pessoas, que
algumas pessoas já tinham pedido sua intervenção…me dizia
que sabia que era uma situação constrangedora; Eu me lembro
de ficar ali, sem palavras, prendendo o choro, mas vinha mais:
ela me diz que está chateada com a situação, mas eu precisava
entender que tentavam manter o escritório num nível muito alto,
pois recebiam muitas pessoas muito importantes, mas ela gosta-
va muito do meu trabalho, por isso, me informa, ela decidiu en-
tender que as vezes, algumas pessoas tem um cheiro muito forte
e me oferece um dos seus desodorantes. Eu lembro muito bem
da minha sensação, sentia uma vergonha, os olhos ardendo, das
lágrimas que eu tentava reprimir, a voz não saia… Me senti tão
humilhada; na volta pra casa arrasada, a sensação de vergonha
e de estar inadequada me seguindo a cada passo, a vontade de
não voltar ao trabalho no outro dia… Mas desistir não era uma
opção, tinha um filho pra criar e alimentar, não podia abrir mão
do salário. E assim engoli as lágrimas e voltei ao trabalho às 7h
da manhã seguinte. Depois de algumas semanas, toda a equipe
viajou e eu fiquei sozinha no escritório, nessa tarde, por volta das
14h um dos sócios chega e precisa resolver muitos assuntos de
pagamento, e ele me perguntou se eu podia ir ao banco descontar
um cheque. O banco ficava a uns 10 minutos de caminhada do
escritório, fui, com uma sensação de inquietude, porque eu esta-
va fazendo aquela tarefa? Eu havia sido contratada para escrever
projetos, será que ele pediria isso à coordenadora branca caso ela
estivesse sozinha no escritório? Fui ao banco, enfrentei uma fila
enorme e saquei o dinheiro. Nova caminhada até o escritório.
Entreguei o dinheiro e voltei a minha sala para trabalhar. Um mi-
nuto depois o sócio chega a minha sala, irado, diz que está faltan-
do dinheiro. Me pergunta se eu não vi. Eu disse que não, ele me
diz que quer o dinheiro completo, e decide ir comigo até o banco
para pedir que o atendente do caixa lhe entregue a diferença. Vou
com ele. Na rua ele vai irritado, reclamando. Ao chegar ao banco,
informo ao atendente do caixa o que aconteceu, ele me diz que
só pode me entregar a diferença de valor no final do dia, quando
conferir seu caixa e observar que está sobrando. Informo isso ao
chefe, que decide voltar ao escritório e me deixa no banco espe-
rando. E eu esperei, esperei por muito tempo, por horas. Até o
banco fechar, até que o banco fechou e não havia quase ninguém
lá dentro. Um gerente se aproxima e ao me ver ali em pé perto do
caixa, pergunta o que estava havendo, diante da explicação, ele
pergunta quanto é que está faltando. Eu informo, ele se espanta,
puxa sua carteira, tira 10 reais e me entrega. Fico mais uma vez
147
Organizadora : Edelamare Melo
38
NERIS, Júlia Simões. Ob.Cit
39
Idem. p.185
148
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Vejamos as narrativas:
Terceira narrativa:
No processo número 01786-2013-016-10-00-6, TRT-10, julgado
em primeira instância pela Magistrada Luiza Fausto Marinho de
Medeiros e em sede de recurso teve como relator Maria Regina
Machado Guimarães, é possível analisar com maior profundidade
a ocorrência, no caso concreto, desse tipo de conflito entre o po-
der diretivo do empregador e a liberdade de crença do empregado.
Segundo consta nos autos, a Autora foi vítima de despedida sem
justa causa motivada por circunstâncias discriminatórias de cunho
religioso, dado o fato de a ela terem sido atribuído os caracteres de
“Macumbeira” e “Mão de Santo” por colega de profissão (coorde-
nadora do colégio o qual a Autora era professora). A partir disso, foi
vítima de constrangimento pelos demais colegas. A Autora susten-
ta ainda, afirmação reiterada por testemunhas, que foi questionada
pela empregadora sobre a verdade dos boatos acerca de suas práti-
cas religiosas e, mediante confirmação, seria despedida.
Quarta narrativa
Gilmara Santos, professora de filosofia de escola particular em
Salvador-Ba, na constância do contrato de emprego, era even-
tualmente vítima de comentários de conotação depreciativa
como “Macumbeira” e “Mulher do torço” por parte de colegas
de trabalho e estudantes. Em dado momento, isso chegou a ser
suscitado por alguns colegas com caráter vexatório em reuniões
de professores, em seu período de iniciação no Candomblé, no
qual as vestes características da religião eram mais expressivas.
A partir de então, Gilmara passou a ter de se posicionar constan-
temente em face do preconceito dentro da escola, trazendo para
a sala de aula discussões sobre religiosidade e tolerância. Além
disso, houve casos de alguns pais tirarem as crianças da escola
devido à presença da educadora, pois, nas palavras dela, alega-
vam que a diretora estava “colocando gente que tem parte com
o diabo para dar aula” e não manteriam as crianças na escola se
Gilmara continuasse a ministrar aulas na instituição. A resposta
da escola foi não permitir o preconceito, perpetuando o contra-
to de emprego de Gilmara e lhe dando discricionariedade para
trabalhar o tema religiosidade dentro da disciplina por ela mi-
nistrada. Ela relata ainda que a escola tinha inúmeros estudantes
candomblecistas que não se apresentavam enquanto tal, filhos de
149
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40
CARNEIRO, Sueli. Ob.Cit.
150
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
41
CARNEIRO, Sueli. Ob.Cit.
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Organizadora : Edelamare Melo
Assim, ainda uma vez com Sueli Carneiro42, temos que um feminismo
negro “tem como principal eixo articulador o racismo e seu impacto sobre as
relações de gênero, uma vez que ele determina a própria hierarquia de gênero em
nossas sociedades”. Neste sentido observa a autora que, para a mulher negra:
[...] se impõe uma perspectiva feminista na qual o gênero seja uma
variável teórica, mas como afirmam Linda Alcoff e Elizabeth Pot-
ter, que não “pode ser separada de outros eixos de opressão” e
que não “é possível em uma única análise. Se o feminismo deve
liberar as mulheres, deve enfrentar virtualmente todas as formas
de opressão”. A partir desse ponto de vista, é possível afirmar que
um feminismo negro, construído no contexto de sociedades mul-
tirraciais, pluriculturais e racistas – como são as sociedades latino
-americanas – tem como principal eixo articulador o racismo e seu
impacto sobre as relações de gênero, uma vez que ele determina a
própria hierarquia de gênero em nossas sociedades.
42
CARNEIRO, Sueli. Ob.Cit.
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
43
CARNEIRO, Sueli. Ob.Cit.
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Nascimento, Abdias. 13 de maio: Dia de Denúncia contra o Racismo, Minas Gerais, n. 1.098,
7 maio 1988. (Suplemento Literário).
Reis, Josélia Ferreira dos; e FREITAS, Rita de Cássia Santos. De Matriz Africana: O Papel
das Mulheres Negras na Construção da Identidade Feminina. Fazendo Gênero 9. Diásporas,
Diversidades, Deslocamentos23 a 26 de agosto de 2010
Santiago, Viviana. Diário de Uma Mulher Negra no Mercado de Trabalho. In: geledes.org.
br.21.8.2017. Disponivel em: https://www.geledes.org.br/diario-de-uma-mulher-negra-no-
mercado-de-trabalho/. Acesso em 11.11.2018
Thâmara, Thamyra. Mulher negra ainda é mais discriminada no trabalho. Homens brancos
ganham mais que mulheres brancas, mulheres brancas ganham mais que homens negros. e
mulheres negras ganham menos que todos. In: Maré Online. Disponivel em: http://redesda-
mare.org.br/mareonline/2017/11/29/mulher-negra-ainda-e-mais-discriminada-no-trabalho/.
Acesso em 15.11.2018
155
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Milsoul Santos
Edelamare Melo1
Resumo
No marco dos 70 anos da Declaração dos Direitos Humanos, pretende-
se demonstrar que, como as drogas, o preconceito gera dependência – senão
química, comportamental-, afetando o nosso modo de ser e estar no mundo,
condicionando nossas reações a ponto de colocar em risco a nossa própria hu-
manidade no sentido de que, movidos pelo preconceito, estabelecemos proces-
sos discriminatórios que infirmam a condição humana do outro, a quem não
vemos como igual, mas, sim, como um ser inferior ao qual se nega direitos
elementares como o direito à vida, à igualdade, à liberdade...ou simplesmente, o
direito de, como nós (os detentores do preconceito) termos direito à felicidade,
tal e como nos albores do liberalismo foi concebido pelo naturalismo, raciona-
lizado pelo racionalismo e interiorizado pelo individualismo - elemento central
do liberalismo, que descansa na ideia de propriedade e na afirmação de que a
natureza do homem implica a propriedade sobre sua pessoa e, por tanto, sobre
suas capacidades e o fruto delas: seu trabalho, sendo livre para dela se valer para
perseguir a constante e eterna meta da felicidade. Contudo, a realidade da vida
demonstrou a insustentabilidade destes paradigmas liberais, o que conduziu às
suas releituras em especial sob a forma do liberalismo igualitário, que tem ser-
vido de justificação para políticas de ação afirmativa, notadamente aquelas de
recorte étnico-racial. Mas não se pretende cuidar do preconceito e da discrimi-
nação sob o viés do liberalismo igualitário e de sua pretensão de enfrentar suas
consequências de exclusão por meio de ações afirmativas, que já demonstraram
ser meros paliativos para a questão senão acompanhadas de medidas e políticas
estruturantes que propiciem condições efetivas de inclusão social considerando
a questão que a subjaz: no caso brasileiro, a renitência da pobreza, da miséria e
de seus agravos, fruto de um processo histórico e cultural de negação de direitos
1
Doutora laureada em Direito pela Universidade Pablo de Olavide (Sevilla, Espanha) Subprocuradora Geral do
Trabalho. Membro do Conselho Superior do Ministério Público do Trabalho. Coordenadora do Grupo de Trabalho
Comunidades Tradicionais do Ministério Público do Trabalho.
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
a sua importância para a nossa constituição), não é menos certo que, este
sentimento, produz alterações em nosso sistema biológico e deflagra reações
físicas e comportamentais que, não raras vezes, conduz a prática de verda-
deiras atrocidades que vão de encontro à humanidade humana, permitam-nos
a redundância ou a licença poética, acadêmica, como se queira.
Não é novidade que, se é certo que sofremos influência do meio no qual vive-
mos – que informa nosso sistema de valores e crenças-, não é menos certo que também
somos seres biológicos havendo uma intrínseca relação entre o nosso corpo físico e o
nosso corpo emocional, que também determinam, ou se se prefere, influenciam nos-
sas reações e condutas aos variados estímulos que recebemos em nossa vida diuturna.
Explico: nosso sistema biológico reage às provocações do meio ambiente na
sua inteireza e complexidade por meio de reações químicas que provocam do êxta-
se, da alegria, da felicidade, à tristeza, à depressão, ao amor, ao ódio..., das lágrimas
ao sorriso...e respondemos a este influxo enquanto seres sociais de formas diversas.
Ora contendo estes impulsos porque social, moral, cultural, ética e/ou juridicamen-
te reprováveis; ora nos entregamos a eles agindo, muitas vezes, como bestas-feras.
Mas também temos a capacidade de empatizar, de nos colocarmos no lugar do ou-
tro, de tentar sentir como o outro...o que se constata como uma dificuldade, notada-
mente no campo do preconceito que conduz a perversas formas de discriminação.
Estas relações entre comportamento, conduta humana e o funcionamen-
to do sistema biológico, em especial do sistema cerebral, são objeto de estudo
pela neurociência, dando azo de algum tempo a estudos que buscam estabele-
cer relações entre a neurociência e o direito, a ética articulando-os sob as con-
signas neurodireito, neuroética. Entre nós Atahualpa Fernandez e Manuella
Maria Fernandez (2010) têm se dedicado a esta temática, observando que:
Os estudos da natureza da mente e do funcionamento do cérebro co-
meçam a chegar à filosofia moral e ao direito de uma maneira cada
vez mais contundente; de forma direta ou indireta, não param de
lançar novas luzes sobre questões antigas acerca da racionalidade
humana, da moralidade, do bem e do mal, do justo e do injusto, do
livre-arbítrio, da “rule of law” e das relações entre os indivíduos.
2
P. CHURCHLAND apud FERNANDEZ, Atahualpa; FERNANDEZ, Manuella Maria, FERNANDEZ, Atahualpa;
FERNANDEZ, Manuella Maria. Neuroética, “neurodireito” e os limites da neurociência. In: Âmbito Jurídico, Rio
Grande, XIII, n. 83, dez 2010. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revis-
ta_artigos_leitura&artigo_id=8691>. Acesso em dezembro/2018
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3
Discurso proferido pela Ministra Rosa Weber por ocasião da diplomação do Presidente eleito para exercer as
funções de chefe de governo e chefe de Estado da República Federativa do Brasil. Tribunal Superior Eleitoral,
10.12.2018.
4
Foi noticiado na imprensa, gerando comoção, o fato de que, na campanha eleitoral de 2018 para Presidência da Repúbli-
ca, universidades públicas de ao menos nove estados brasileiros foram alvos de operações autorizadas por juízes eleitorais
para averiguar denúncias de campanhas político-partidárias que estariam acontecendo dentro das universidades. O Minis-
tério Público Federal judicializou a questão e,em voto histórico, a Ministra Carmém Lúcia deferiu liminar, em 27.10.2018,
vedando tal prática abusiva. No despacho, a ministra também suspendeu os efeitos de decisões que determinaram o reco-
lhimento de documentos, a interrupção de aulas debates ou manifestações de professores e a alunos universitários.”(...)
para, ad referendum do Plenário deste Supremo Tribunal Federal, suspender os efeitos de atos judiciais ou administrativos,
emanado de autoridade pública que possibilite, determine ou promova o ingresso de agentes públicos em universidades
públicas e privadas, o recolhimento de documentos, a interrupção de aulas, debates ou manifestações de docentes e dis-
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centes universitários, a atividade disciplinar docente e discente e a coleta irregular de depoimentos desses cidadãos pela
prática de manifestação livre de ideias e divulgação do pensamento nos ambientes universitários ou em equipamentos sob
a administração de universidades públicas e privadas e serventes a seus fins e desempenhos (...)”, escreveu a ministra.
Posteriormente, em 31.10.2018, o Supremo Tribunal Federal confirmou, à unanimidade a ordem liminar. Disponível em:
https://g1.globo.com/politica/noticia/2018/10/31/maioria-do-stf-confirma-decisao-que-suspendeu-acoes-dentro-de-uni-
versidades.ghtml. Acesso em 10.12.2018
167
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5
Universa: Rio registra 431 vítimas de LGBTfobia no estado em 2017. Disponível em: https://universa.uol.com.br/
noticias/redacao/2018/12/11/rio-registra-431-vitimas-de-lgbtfobia-no-estado-em-2017.htm. Acesso em 10.12.2018
6
Carta Capital. Como o Brasil lida com os Direitos Humanos. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/
sociedade/como-o-brasil-lida-com-os-direitos-humanos. Acesso, 11.12.2018
7
Idem
8
MELLO, Bruna Peneluppi. Os limites das fronteiras in: Direitos Humanos no Brasil 2018. Relatório da Rede
Social de Justiça e Direitos Humanos. Organização STEFANO, Daniela e MENDONÇA, Maria Luisa. 1ª Edição.
São Paulo: Outras Expressões, 2018, p.
9
NOVAES, Regina. Jovens como sujeitos de direitos?. In: Direitos Humanos no Brasil 2018. Relatório da Rede
Social de Justiça e Direitos Humanos [...]
168
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
10
In: Direitos Humanos no Brasil 2018. Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos […]
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Importante registrar que a Lei 7.716 foi editada sob o influxo da Con-
venção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discrimina-
ção Racial, de 1963, que conclamou aos países a tomarem:
“todas as medidas necessárias para eliminar rapidamente a dis-
criminação racial em todas as suas formas e manifestações, e a
prevenir e combater doutrinas e práticas racistas e construir uma
11
BRASIL. Presidência da República, Casa Civil, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. www.
planalto.gov.br
174
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
12
UNESCO. Convenção da ONU sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial. Disponível em:
unesdoc.unesco.org/images/0013/001393/139390por.pdf
13
Brasil, Presidência da República, Casa Civil, Lei 12.288/2010. Disponível em: www.planalto.gov.br
14
ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Breves Considerações sobre Racismo e Intolerância Racial.Disponível em :
ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Breves Considerações sobre Racismo e Intolerância Racial. http://www.revista-
persona.com.ar/Persona70/70Andreucci.htm.
175
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A sua vez, o Código Penal (art.208) cuida dos crimes contra o sentimento
religioso concretizando, por este meio, o disposto no artigo, 5º, VI da Consti-
tuição da República, segundo o qual “é inviolável a liberdade de consciência
religiosa e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e
garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”.
Ressalte-se, ainda, neste campo da intolerância (melhor dito, desrespei-
to religioso), que a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, alterada pela Lei nº
9.459, de 15 de maio de 1997, considera crime a prática de discriminação ou
preconceito contra religiões. Eis as condutas que, neste contexto, são tipifica-
das como crime de preconceito ou discriminação religiosa:
“Impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a
qualquer cargo da Administração Direta ou Indireta, bem como das
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15
Intolerância religiosa é incentivada por governos e favorece crimes de ódio, alerta relator da ONU. In: ONU-
BR- Nações Unidas Brasil, 28.10.2016. Disponível em: https://nacoesunidas.org/intolerancia-religiosa-e-incentiva-
da-por-governos-e-favorece-crimes-de-odio-alerta-relator-da-onu/ . Acesso em 16.5.2017
16
Dossiê da intolerância religiosa. Disponível em : http://intoleranciareligiosadossie.blogspot.com.br/
178
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Mas não apenas o ser humano de raça negra e do sexo masculino é obje-
to de preconceito, discriminação e estigmatização. A mulher, os afro-religio-
sos, as pessoas com deficiência, as crianças e idosos, os integrantes do grupo
LGBTQI+, os nordestinos, os negros refugiados, também o são.
A mulher é tida como fomentadora da prática de crimes sexuais pelo só
fato de ser mulher que possui uma especial leveza de ser que a sensualiza; os inte-
grantes do Grupo LGBTQI+ pelo só fato de sua orientação/ identidade sexual ser
tida por muitos, em razão de credo religioso, como doentes que precisam de cura.
Estes são estigmatizados como pessoas promiscuas que de tudo fazem para garan-
tir um segundo de prazer...; os afro-religiosos que, por sua fé monoteísta ancestral
de culto aos Orixás, são tidos como tribais que cultuam forças demoníacas e, por
isso, atentam, com suas práticas litúrgicas, aos valores estabelecidos pelo influ-
xo do cristianismo na sua vertente sectária e fundamentalista capitaneada pelos
neopentecostais; as crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade pelo
só fato de estarem em contextos que a propicia; as pessoas com deficiência pela
sua vulnerabilidade que demanda quebra de barreiras físicas, sociais, e culturais,
e, muitas vezes, cuidados de terceiros para que lhes seja assegurada existência
digna, situação que também é compartilhada pelos idosos17.
17
Sobre estes temas são interessantes as discussões travadas no XXV CONGRESSO DO CONPEDI – CURITIBA, no
Grupo SOCIEDADE, CONFLITO E MOVIMENTOS SOCIAIS, com destaque para os seguintes trabalhos: “Violência
Institucionalizada: Os conflitos que permeiam a sociedade do Século XXI”, escrito por Albo Berro Rodrigues e Ivo dos
Santos Canabarro, que aborda a questão de violência religiosa no Brasil, através de uma análise histórica, demonstrando
a existência de preconceito étnico e violência existentes no Brasil; “Instrumentos para a captação de demandas sociais
e o exemplo das influências culturais nas políticas públicas voltadas para o grupo LGBT”, cujos autores Marco Antonio
Turatti Junior e Felipe Ferreira Araújo, abordam a necessidade de articulações de ações governamentais que percebam os
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
problemas e demandas sociais, visando a melhoria da qualidade de vida dos grupos vulneráveis, neste caso voltadas ao
grupo LGBT; “Cristo gay crucificado: movimento LGBT, religião e liberdade de expressão”, de autoria de Ricardo Adria-
no Massara Brasileiro e Thiago Lopes Decat, que, sob a ótica da Teoria do Direito e perspectiva crítica da teoria liberal,
analisam dois casos recentes afetos às comunidades LGBT ocorridos no Brasil – em 2011 e 2015
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18
Sobre o tema do subjetivismo consulte-se as aportações de FOUCAULT, que foram objeto de excelente análise
desde perspectiva das diferenças e reconhecimento étnicos por Laira Correia de Andrade e Paulo Raimundo Lima
Ralin no estudo “Reconhecimento, Diferença E Subjetividade Etnica” apresentado no XXV CONGRESSO DO
CONPEDI – CURITIBA - Grupo SOCIEDADE, CONFLITO E MOVIMENTOS SOCIAIS Disponível em: http://
www.conpedi.org.br/publicacoes/02q8agmu/09gc6o3b/u298hAykM5NvFvvd.pdf. Acesso: Maio/2017
184
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
187
Organizadora : Edelamare Melo
Caldas Fernandes, Sérgio Henrique Cordeiro. Neurodireito?. In: Jus.com [Em linha]. Dispo-
nível em: https://jus.com.br/artigos/13938/neurodireito. Acesso: Maio 2017
Junior, João Feres; Campos, Luis Augusto. Liberalismo igualitário e ação afirmativa: da teo-
ria moral à política pública. In: Revista de Sociologia e Politica, 21, Nº 48: 85-99 DEZ. 2013.
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rsocp/v21n48/a05v21n48.pdf. Acesso: Maio/2017
188
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Habermas, Jürgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública. Río de Janeiro: Tempo Brasileiro,
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Acesso: 15.5.2017
Minhoto Antonio Celso Baeta; Mandalozzo, Silvana Souza Netto (Coord). Sociedade, Con-
flito e Movimentos Sociais. [Recurso eletrônico on-line]. Organização CONPEDI/UNICU-
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Neves, Maria do Céu Patrão Alteridade e Direitos fundamentais: uma abordagem Ética.
Versão de trabalho. Conferencia proferida no I Congresso Internacional de Direitos Fun-
189
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ponível em:<http://www.laeditorialvirtual.com.ar/Pages/CarlSchmitt/CarlSchmitt_ElCon-
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190
MÃE STELLA DE OXOSSI
Terreiro Opó Afonjá/ Bahia
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
1
Ya kekerê do Terreiro de Oxumaré, Professora de Metodologia do Ensino Superior e Educação Infantil, Socióloga,
Psicopedagoga Institucional, Produtora Cultural.
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Introdução
No contexto do Simpósio Nacional sobre Racismo e Intolerância
Religiosa no Brasil e seus Reflexos no Mundo do Trabalho coube-me comentar
a atuação do Ministério Público Federal (MPF) na proteção à igualdade
étnico-racial e à liberdade religiosa.
Este artigo reproduz basicamente o conteúdo da exposição oral feita no
Painel 5, mas traz alguns outros dados e informações sobre a atuação judicial
e extrajudicial do MPF, no período de 2000-2018. Trata-se de uma abordagem
exploratória que aponta para um campo inexplorado de pesquisa, o qual deveria
merecer atenção da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU)
na Década Internacional de Afrodescendentes, iniciada em 1º de janeiro de
2015 com término previsto em 31 de dezembro de 20241. Especialmente porque
todos os Ministérios Públicos, a despeito de terem a missão de defesa de direitos
individuais e coletivos indisponíveis, entre eles dos direitos das populações em
situação de vulnerabilidade e das minorias, praticam o racismo institucional.
Entende-se por racismo institucional:
o fracasso das instituições e organizações em prover um servi-
ço profissional e adequado às pessoas devido a sua cor, cultura,
origem, racial ou étnica. Ele se manifesta em normas, práticas e
comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano de tra-
balho, os quais são resultantes da ignorância, da falta de atenção,
do preconceito ou de estereótipos racistas. Em qualquer caso, o
racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais
ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso
a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e or-
ganizações (PCRI, 2007).
1
A Assembleia Geral da ONU, por meio da Resolução n. 68/237, de 23/12/2013, proclamou a Década Internacio-
nal com o tema: “Afrodescendentes: reconhecimento, justiça e desenvolvimento”. O principal objetivo consiste em
promover o respeito, a proteção e a realização de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais de afrodes-
cendentes, como reconhecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
197
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2
Sistema de informação para agilizar e unificar o trâmite de documentos judiciais e administrativos do Ministério
Público Federal, visando, entre outras coisas, proporcionar meios de responder a questões estratégicas que possibi-
litem ter uma noção quantitativa e a melhoria qualitativa da gestão.
199
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
207
Organizadora : Edelamare Melo
Brasil. Lei Federal n. 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de precon-
ceito de raça ou de cor. Disponível em http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/LEIS/L7716.
htm. Acesso 25 de jan. 2019.
208
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
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Organizadora : Edelamare Melo
cujo conteúdo é a marcha de uma espécie de exército conhecido como Gladiadores do Altar.
Espécie de milícia religiosa. Fanatismo. Solicitação de investigação. Representada: Igreja
Universal do Ceará. Representante: Verônica da Costa Silveira. Disponível em sistema Único
MPF. Acesso em 10 de jan. 2019.
Brasil. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 494.601/RS. Relator atual: Mi-
nistro Marco Aurélio. Recorrente Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Re-
corridos: Governador do Estado do Rio Grande do Sul e Assembleia Legislativa do Estado
210
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Fioratti, Gustavo. Folha de São Paulo. Após processo de 15 anos, Record terá de exibir pro-
gramas sobre religiões de origem africana. Disponível em https://w.w.w1.folha.uol.com.br/
ilustrada/2019/0. Acesso em 31 jan. 2019.
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Introdução
No século passado, mais precisamente no ano de 1980, o então profes-
sor catedrático da Universidade do Estado de Nova York, nos Estados Unidos,
Abdias Nascimento participava do 2º Congresso de Cultura Negra das Amé-
ricas, no Panamá. Nesse conclave, ele apresentou sua “proposta aos irmãos
afrodescendentes do Brasil e das Américas”: o quilombismo. Assumindo o
princípio básico da democracia em um país de maioria negra, ele foi muito
além de propor ideias e princípios de organização e protagonismo coletivo
do povo negro para enfrentar e combater o racismo. O quilombismo é uma
proposta de organização do Estado brasileiro, em bases democráticas plurais
que contemplem a diversidade demográfica e cultural de seu povo.
Naquele momento histórico, o Brasil vivia o período conhecido como
Ditadura Militar (1964-1985), cuja opressão e censura tirou Abdias do país
por 13 anos (1968-1981). Seu livro O Quilombismo (Nascimento, A., 1980)
foi publicado um ano após a anistia e o início do retorno ao país dos exilados
da ditadura militar. O cenário político e o palco das ideias efervesciam. Ain-
da faltava quase uma década para a promulgação da Constituição Cidadã. O
foco da agenda política era a construção do Estado democrático de direito;
construíam-se as bases conceituais da Carta de 1988. A luta do movimento
negro focalizava direitos formais como, por exemplo, o voto ao analfabeto, a
revogação da vadiagem como figura do direito penal e a substituição da Lei
Afonso Arinos por uma legislação eficaz de combate à discriminação racial.
Dois anos antes, Abdias havia publicado o seu livro O Genocídio do Negro
Brasileiro (Nascimento, A., 1978), trazendo ao debate público um termo en-
tão considerado absurdamente ousado e exagerado. Passados quase 40 anos, a
vida da população negra no Brasil hoje se parece, de forma bastante decepcio-
nante, com a daquele momento. A implantação de medidas de ação afirmativa
1
Mestre em Direito e em Ciências Sociais pela Universidade do Estado de Nova York, Doutora em Psicologia pela
USP, preside o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO), que trabalha com relações étnico-ra-
ciais e história e cultura de matriz africana. Coordena o tratamento técnico para preservação e difusão do acervo
museológico e arquivístico de Abdias Nascimento, sob a guarda do IPEAFRO. Curadora de exposições educacionais
e artísticas com base nesse acervo, é autora de diversos livros e trabalhos publicados.
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Organizadora : Edelamare Melo
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Cultiva-se nas escolas e no folclore nacional a frase “40 acres and a mule”, que se refere a essa política, como forma
de consolidar a consciência dominante do suprematismo branco, que se considera generoso para com os negros e
livre de qualquer dívida histórica com relação à escravidão.
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https://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=366043, acessado em 18.set.2019.
4
Lei n. 6.613, de 13 de junho de 2019, publicada no Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro em 14/06/2019.
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https://pretitudes.blogspot.com/2019/07/ngola-janga-territorio-livre.html, acessado em 18.set.2019.
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Desde seu primeiro número, o jornal trazia matérias sobre a liberdade de culto.
Décadas depois, voltando do exílio, Abdias Nascimento vinha somar sua ex-
periência à atuação da nova geração do movimento negro que levava adiante a
luta de resistência. Na tese do quilombismo, Abdias frisava a necessidade for-
talecer a transmissão de valores africanos às sucessivas gerações na Diáspora.
O quilombismo tem como objetivo construir ações e legados de com-
bate ao racismo a partir das tramas culturais, filosóficas, artísticas e episte-
mológicas tecidas pelos povos negros em África e sua diáspora. Isto significa
recuperar, estudar, ressignificar e disseminar os valores semióticos e episte-
mológicos africanos como ferramentas para construir um desenvolvimento
sustentável com justiça social no mundo contemporâneo. Novamente, a ideia
dá continuidade a uma longa trajetória de luta contra aquilo que Jayro Pereira,
citando Muniz Sodré, aponta como o “semiocídio ontológico praticado pelos
evangelizadores, que se constituiu no pressuposto do genocídio físico”. (Go-
mes e Oliveira, 2019, p. 188), Abdias Nascimento e o TEN brandiam os sig-
nos estéticos da matriz africana como armas de enfrentamento nos anos 1940.
Nesse caminho eles não estavam sozinhos. Desde os idos dos 1930 os poetas
anticolonialistas africanos e antilhanos do movimento da Negritude percor-
riam veredas semelhantes (Césaire, 2010). Mas a afirmação da cultura negra
era vista como “racismo às avessas”, e aliados da esquerda se recusavam a
reconhecer a legitimidade da negritude e do combate à discriminação racial
com frente de luta política. Com o acirramento da guerra fria nos anos 1960
e 1970, lideranças e movimentos de libertação optaram pela estrita adesão ao
legado europeu do marxismo, o chamado “socialismo científico”, rechaçando
as referências à ancestralidade africana como recursos legítimos de organiza-
ção política. Chegando ao páis no final dos anos 1970, Abdias Nascimento se
deparou com um movimento negro identificado à esquerda ocidental, cujas
propostas ignoravam largamente os valores africanos enquanto mobilizadores
de uma luta política. Abdias manteve sua postura ao propor, no quilombismo,
um modelo de luta construído a partir da própria experiência histórica e dos
próprios valores culturais e filosóficos ancestrais africanos. Ao estabelecer
diálogo entre setores do movimento negro e as casas de santo, o projeto Tra-
dição dos Orixás colocava em prática esse princípio do quilombismo.
A partir de 1983, Abdias Nascimento atuava – na legislatura anterior à
Constituinte – como único deputado federal a levar ao Congresso propostas de
políticas antirracistas, tratando a questão racial como tema urgente e fundamen-
tal à construção da democracia e da Nação brasileira. Para ele, fazia parte da
demanda democrática a inclusão e o reconhecimento dos valores africanos como
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https://www.oabrj.org.br/noticias/nota-oabrj-sobre-morte-menina-agatha-complexo-alemao, acessado em
21.set.2019.
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Uma das referências mais destacadas desse consenso é o trabalho de Jessé de Souza (2017).
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https://www.marianne2020.com/issues/the-reparations-plan, acessado em 19.set.2019.
9
https://www.nytimes.com/2019/06/19/us/politics/slavery-reparations-hearing.html?partner=IFTTT, acessado em
20.set.2019. https://www.congress.gov/bill/116th-congress/house-bill/40, acessado em 20.set.2019.
10
https://www.latimes.com/opinion/story/2019-07-19/reparations-germany-hr40-holocaust-slavery, acessado em
20.set.2019.
11
https://www.spiegel.de/international/germany/germany-to-pay-772-million-euros-in-reparations-to-holocaust-
survivors-a-902528.html, acessado em 20.set.2019.
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História da sexualidade,
corporeidade e gênero.
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rença sexual”, pois a palavra exerce poder sobre os corpos que ainda estão cons-
truindo seu gênero, identidade de gênero e sexualidade, faz-se necessário pensar
possibilidades de resistência a essas formas de poder exercidas pelo discurso
(...) através do aprendizado de papéis, cada um/a deveria co-
nhecer o que é considerado adequado (e inadequado) para um
homem ou para uma mulher numa determinada sociedade, e res-
ponder a essas expectativas. (LOURO, p.24,1997).
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• O tabu do incesto;
• A ordenação política e social;
• A exogamia;
• A monogamia;
• Os acordos políticos e;
• O casamento.
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Justificativa
A população carcerária feminina no Brasil é a quarta maior do mundo,
com quantitativo atual de 42 mil mulheres presas (INFOPEM, 2018), no livro
Encarceramento em Massa a antropóloga Juliana Borges demonstra que esta
população cresceu mais de 500%, nos últimos 10 anos. O Rio de Janeiro tem o
quantitativo, atualmente, de 2.229 mulheres (BNMP 2.0), distribuídas em 6 pri-
sões entre, presídios e penitenciarias. Deste coletivo 64% são mulheres negras,
de origem pobres da favela, possuem baixa escolaridade, a maioria foi vítima
de abuso sexual, físico e psicológico e muitas são LGBTQI+. Os estudos sobre
o perfil desta população, ainda são muito insipientes, o que demonstra uma
necessidade de aprofundamento de analises menos superficiais e incompletas
deste grupo social para que seja possível a construção de uma política pública,
a médio e longo prazo, que posso fortalecer a inserção deste grupo social no
mercado de trabalho, fator fundamental para sua emancipação social e inter-
rupção do ciclo da violência sofrida pelas mulheres no sistema patriarcal.
Ao observar o perfil das mulheres encarceradas percebe-se um padrão que se
repete onde a maioria tem: a mesma origem, a mesma cor de pele, o mesmo nível
de escolaridade e vitimização dos diferentes tipos de violências de gênero, o que
leva a crer que tal regularidade não deve ser tratada como similaridades ou coin-
cidências uma vez que esta é uma forma simplista de tratar os fenômenos sociais.
De acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano de 1995, de
1.3 bilhões de pessoas na pobreza no mundo 70% são mulheres, o que de-
monstra que a “pobreza tem o rosto de uma mulher”. Estudos realizados em
176 países demonstram que mulheres com formação escolar até o secundário
se veem forçadas a recorrer ao tráfico de drogas para a sua subsistência e de
seus filhos. Os altos índices de desemprego também é um fator considerável
para envolvimento das mulheres com atividades ilegais o que as coloca em
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Histórico
A Casa do Perdão é um Terreiro de umbanda fundado em 23 de Abril de
1999, cadastrado junto a Secretaria de Administração Penitenciaria do Rio de
Janeiro – SEAP, para oferta de assistência afro religiosa no sistema prisional ca-
rioca, desde 2004. Nos últimos 12 anos, assistindo apenas mulheres no Presidio
feminino Nelson Hungria e na Penitenciaria Talavera Bruce, ambos localizado no
Complexo Penitenciário do Gericinó, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
O atendimento consiste em oferta de ensinamentos, rezas, cânticos e pa-
lestras sobre a religiosidade e cultura milenar africana e indígena. Em virtude
de ter formação na área das ciências sociais e atuar há 21 anos como ativista
social na área dos direitos humanos, as palestras trazem, também, os temas In-
terseccionais sobre o racismo, sexismo, violência de gênero, cidadania LGBT-
QI, liberdade religiosa, que são transversais ao processo histórico de formação
social brasileira, sendo estes temas presentes na vida destas mulheres.
Neste sentido, busca-se ofertar além do conhecimento religioso, abordar
assuntos que sejam utilizados pelas futuras egressas do sistema prisional, na
conquista de sua cidadania na vida extra cárcere. A cosmologia africana e indí-
gena, da qual deriva a tradição filosófica e religiosa umbandista e candomble-
cista, não trazem em sua cultural milenar o uso do dogmatismo e proselitismo
em sua pratica ritualística, seja nas atividades religiosas internas ao espaço
religioso ou em formato de apresentações, quando são transmitidas através de
palestras, como é feita dentro das unidades prisionais em que a instituição atua.
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e intima de suas companheiras, mas tão somente aquelas(es) que forem unidos
ou casados judicialmente, o que é pouco comum no universo homoafetivo.
Todos estes fatores interferem diretamente na empregabilidade, moradia
e reinserção destas internas e internos no momento em que se tornam egres-
sas(os) do sistema. A perspectiva de objeto de estudo, é realizar observância
sobre o universo feminino, levando em consideração, todos os aspectos que
podem interferir interseccional mente na vida destas mulheres ou homens
trans. Entende-se por homens trans, pessoas nascidas geneticamente mulhe-
res, mas que se identificam psicologicamente e socialmente como homem.
O termo homem trans é um conceito considerado por grande parte do movi-
mento LBTQI como politicamente correto, porem nem todas as pessoas que
podem ser consideradas como homens trans, consideram esta terminologia
adequadas e aplicáveis para identifica-los ou representar.
Em virtude da população carcerária dos presídios feminino serem cons-
tituídos de mulheres, de diferentes orientações homoafetivas e de homens
trans, utilizaremos em todos os momentos o feminino e masculino, contem-
plando o gênero de identificação socialmente escolhida pelos homens trans, e
por esta razão quando usarmos as palavras no masculino é preciso que se en-
tenda que não estamos falando de pessoas nascidos biologicamente homens,
mas tão e somente estaremos nos reportando aos homens trans, que estão
cumprindo pena nas mesmas unidade prisionais que as mulheres.
Ao longo de todos estes anos de atuação junto ao sistema prisional ca-
rioca, a instituição foi procurada por mulheres e homens trans recentemente
saídos do cárcere, solicitando ajuda institucional e humana para sua sobrevi-
vência temporária que auxiliasse na reconstrução de suas vidas após o perío-
do prisional em virtude de não terem vinculo familiar, não terem para onde ir,
morar e sem condições de sobreviver. Em virtude da Casa do Perdão ser um
terreiro de tradição matriarcal, sempre foi ofertado o acolhimento, porem em
virtude da falta estrutura física, administrativa e financeira, houve bastante
dificuldade de ajudar estas pessoas com ações concretas para além do acolhi-
mento humano, sendo limitados em oferecer auxilio com orientações, alimen-
tação, abrigamento de algumas noites, mas, depois, as mesmas iam embora,
por necessitarem de uma estrutura mais definida de acolhimento temporário,
que pudesse oferecer toda rede de apoio que estas pessoas necessitam nesta
situação como: trabalho, ocupação, atendimento médico, acompanhamento
psicológico, assistência social, alojamento, dentre outros.
Cansados de acumular a frustação de não poder ajudar, a instituição está
em processo embrionário de busca por parceiros e investidores para o desen-
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56-mil- presos-no-bnmp em 17/09/2019
http://www.forumseguranca.org.br/publicacoes/atlas-da-violencia-2019/ em 17/09/2019
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
I. Introdução
Em 16 de maio de 2018, num encontro com religiões não cristãs, o Papa
Francisco disse que o “diálogo e colaboração são palavras-chave nos dias de
hoje” e é importante ver cada vez mais os líderes religiosos “se compromete-
rem em cultivar a cultura do encontro e dar exemplo de diálogo colaborando
efetivamente ao serviço da vida, da dignidade humana e da tutela da criação”.
Assim o Papa Francisco dá continuidade à EXORTAÇÃO APOSTÓLICA
“EVANGELII NUNTIANDI” do PAPA PAULO VI, especialmente no núme-
ro 20 Esta leitura nos revela que o diálogo religioso continua sendo o grande
desafio que ainda não foi plenamente abraçado pela Igreja, para se libertar do
domínio totalitário da cultura europeia dentro dos espaços eclesiais e pregar o
evangelho à todas as culturas, com a liberdade de filhos de Deus, a partir dos
valores de cada cultura, mantendo o cerne do vigor evangélico. Poucos Car-
deais, Bispos, Padres, Religiosos/as e suas respectivas Congregações levam-
no a sério e o colocam em prática, no dia-a-dia, com dedicação e compro-
misso com o Reino de Deus. Por quê? Infelizmente a resposta é muito fácil
e chocante: exigia e exige que as culturas que predominavam e predominam
dentro da Igreja abrissem mão de seu poderio cultural europeu, na forma de
evangelizar e celebrar, dando espaço para a diversidade cultural criada por
Deus e desejada pelos documentos eclesiais. Que permitissem que as culturas
oprimidas, especialmente a indígena e a afro-brasileira fossem protagonistas
no serviço de evangelizar e gerar o diálogo com Deus. Este é um problema
verificado só na Igreja Católica? Não. Todas as Igrejas cristãs desrespeitavam
e desrespeitam, na base de suas estruturas, a rica diversidade cultural, criada
e doada à humanidade por Deus que é o senhor de todas as culturas.
II. De cada 10 líderes negros norte-americanos, 9 foram “gestados” nos
espaços religioso-cristãos
Este tema é de vital importância para o aprofundamento do ser Igreja na
atual fase de busca e construção de comprometimento e identidade com a comu-
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nidade afrodescendente e indígena, nas Igrejas e fora das Igrejas, em nível nacio-
nal. As Igrejas, mais uma vez, erram e não dão espaço para o novo! Os cristãos em
geral estão descobrindo algo fantástico: este povo afro-brasileiro é marcadamente
religioso! Se a Igreja Católica não lhes permite espaço, buscam, sem perda de
tempo, em outras expressões religiosas. Este é um dos fatores através dos quais
a Igreja Católica está, cada vez mais, em queda livre... A religião está na flor da
pele deste povo negro! Eles têm grande potencial para viver a fé, mas ela está
formatada equivocadamente para os pertencentes ao poder branco. Percebemos
que, antigamente, nos quatro cantos do Brasil, havia uma tentativa de articulação
da luta pelos direitos dos afrodescendentes nas respectivas Paróquias, Dioceses e
Arquidioceses nas quais vivenciavam sua fé.
Fazendo-se uma retrospectiva histórica da luta dos negros nos EUA vamos
constatar que, de cada 10 líderes negros norte-americanos, com diferente inten-
sidade na aplicação de sua pedagogia de liderar, 9 foram “gestados” nos espaços
religioso-cristãos. É o caso do Pastor Luther King, Malcon X e outros grandes
exemplos a serem seguidos. Lá nos EUA, a tática usada pela comunidade afrodes-
cendente fez as estruturas das Igrejas a se colocarem a serviço da causa do povo
negro, consciente ou inconscientemente. Na década de 80 cresceu aqui no Brasil
a articulação dos afrodescendentes dentro dos espaços religiosos. Com a constata-
ção de que esta foi também uma estratégia que garantiu conquistas da comunidade
negra cristã norte americana. A tendência hoje é de retomada e investimento neste
caminho? Ou as estruturas contrárias são as mesmas e, mais uma vez não irão dei-
xar o novo florescer? Não temos dúvidas: consciente ou inconscientemente este é o
caminho que trará, mais rapidamente, as vitórias que almejamos – uma Igreja sendo
instrumento de Deus na construção da diversidade étnica na Igreja e na sociedade.
Todos os cristãos: brancos e negros estaremos mais próximos e em sintonia com as
exigências proféticas do Reino de Deus, se optar por este caminho!
III. Os afro-brasileiros e as Religiões Evangélicas
É possível um trabalho conjunto da Católica Católica com os movi-
mentos cristãos evangélicos negros, em atitude de abertura? Ao se tratar deste
tema no Brasil, uma grande pergunta fica no ar: se nos EUA a Igreja Batista
foi o principal instrumento que lutou pela libertação dos afrodescendentes,
porque, aqui no Brasil, a Igreja Batista não cumpriu o mesmo papel? E os de-
mais Evangélicos? Seria fundamental se fazer esta pergunta a todos os nossos
irmãos evangélicos. Uma tentativa de resposta é esta: o poder central batista
(que era branco) dificultou, ao longo destes anos a vinda de Pastores Batistas
negros que eram conscientes dos direitos do povo negro. Só enviaram como
252
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Missionários para o Brasil pastores e leigos brancos que tinham posturas con-
tra o investimento na retomada da consciência e dos direitos do povo negro
no Brasil. Os poucos negros que aqui vieram como Missionários Batistas não
tinham consciência de negritude relativamente bem elaborada.
Por volta dos anos 80 surgem pessoas batistas negras e outros evangélicos
que tentavam fazer um trabalho de evangelização nesta linha. Organizavam-se
em várias partes do Brasil. No Paraná editavam um informativo impresso com as
demandas por evangelização dos batistas negros. Nas assembleias dos Agentes
de Pastoral Negros participavam batistas negros e outras denominações.
O Jornal da Igreja Evangélica do Reino de Deus (que tem uma grande
tiragem), na edição 304/1998 dedicou uma página inteira discutindo o racis-
mo no Brasil e colocando em debate, dois expoentes da reflexão racial brasi-
leira: Aroldo Macedo, Diretor da Revista Raça e Ivanir dos Santos, secretário
executivo do CEAP-Rio.
A Igreja “Assembleia de Deus” tem tido uma ou outra pessoa preocupada
com este aspecto da evangelização. O ritmo dos cantos evangélicos adaptado
dos ritmos das ricas culturas afros, com letras religiosas, tem sido cada vez mais
comum nestas Igrejas e em outras pentecostais que atuam em todo o Brasil.
O ritmo do samba, além de ter entrada em várias Igrejas ocupa boa parte das
programações evangélicas nas rádios e televisões no Brasil e conquista grande
parte da comunidade negra, inclusive multidões de Católicos negros!
O estilo musical GOSPEL (dos negros dos EUA), inclusive com seu
visual estético afro tem ocupado bons espaços nos corais que se apresentam
nas Igrejas e televisões, caindo de cheio no gosto do povo e tem sido cada vez
mais comum no Brasil. Em que podemos aprender com as Igrejas evangéli-
cas, sem nos contagiar com possíveis equívocos?
Cresceu no Rio de Janeiro a articulação através dos encontros de CA-
POEIRISTAS EVANGÉLICOS. Conseguiram reunir pastores e leigos afro-
descendentes de várias religiões evangélicas e uniram com qualidade a refle-
xão evangélica com elementos simbólicos da cultura afro-brasileira.
Nos anos 90 surgiu, no Brasil, uma articulação de evangélicos afrodes-
cendentes, provenientes de mais de 5 denominações religiosas. Seus objetivos
foram o de refletir o evangelho a partir dos valores culturais; avaliar a prática
das Igrejas Evangélicas no tocante ao racismo inconsciente ou conscientemente
praticado no interior das Igrejas; avaliar possíveis passos de avanço enquanto
negros e evangélicos que deveriam ser dados, etc. Tiveram algumas dificulda-
des institucionais para manter esta novidade profética e dar continuidade a este
valor do Reino de Deus. Por que tudo para o povo negro é mais difícil?
253
Organizadora : Edelamare Melo
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
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Organizadora : Edelamare Melo
2 - Segundo projeto
No segundo projeto, denominado romano-europeu, a partir de 1842 até
1968, a luta era pela retomada da europeização da vida religiosa e da Igreja no
país e isto significava combater as irmandades e todas as organizações leigas.
Passar por cima dos grupos e das culturas consideradas inferiores, a fim de que
prevalecesse o processo de ocidentalização. Para isso, abrem-se as portas para os
imigrantes europeus, ao mesmo tempo em que se busca a perseguição e elimina-
ção dos quilombos, pelo perigo que ele representava ao projeto de europeização
do país. Os negros, neste caso, só teriam vez se entrassem no esquema da euro-
peização, que tinha como um de seus instrumentos a ideologia do embranqueci-
mento. Os negros que procuravam defender sua cultura, principalmente através
da vivência da fé nas religiões afro (um dos poucos espaços de resistência), eram
impiedosamente perseguidos e mortos. Foi nesta fase que a ideologia determinou
que as religiões afro fossem coisas do demônio e proibidas de funcionar.
Os colonizadores e missionários europeizavam/catequizavam negros e
índios e, aqueles que se rebelavam eram massacrados pelos colonizadores
sem a defesa da vida Religiosa ou da Igreja. No máximo, iam ministrar o sa-
cramento da extrema unção para os injustamente condenados à morte.
Ainda fazendo referência à ideologia do embranquecimento do país,
proibindo a entrada de negros e só permitindo brancos, lembramos o decreto
Nº 7967, artigo Nº 2, de 18 de setembro de 1945, assinado pelo então Pre-
sidente Getúlio Vargas que diz: “Atender-se-á, na admissão dos novos imi-
grantes, a necessidade de preservar e desenvolver na composição étnica da
população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia,
assim como a defesa do trabalhador nacional”.
Em 1960, com a Lei Afonso Arinos que punia todas as atitudes de discrimi-
nações raciais, as Congregações Religiosas do Brasil, por pressão do advogado da
CRB Nacional, começaram a tirar de seus estatutos e normas internas a proibição
de se permitir a entrada de negros(as) e mestiços(as) na vida religiosa.
3 - Terceiro projeto
A partir de 1968, com a Conferência de Medellin e Puebla, a compre-
ensão de vida religiosa em missão profética consistia em trabalhar a evange-
lização baseada na situação concreta e histórica do povo oprimido, afirmando
e defendendo que este era o verdadeiro rosto de Deus, configurando assim, o
terceiro projeto de evangelização.
Concluíram que este povo oprimido reúne principalmente negros/as e
índios, entre o grande volume de marginalizados. Foi então que começaram
256
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
a surgir os grupos de base formados por negros católicos que em 1980, fun-
daram articulações de negros(as) católicos em todos os seguimentos. A Arti-
culação dos Franciscanos Negros desembocou na luta tenaz pelas Ações Afir-
mativas e cotas nas universidades brasileiras, uma das principais conquistas
do povo negro nos últimos 150 anos!
Depois de um grande trabalho de pressão da base negra católica, formada em
grande parte por Religiosas e Religiosos negros/as, a CNBB assume na Campanha
da Fraternidade de 1988 o tema: “A Fraternidade e o Negro!” graças a grande mobi-
lização dos grupos pastorais negros de base. Esta iniciativa projetou o trabalho dos
negros católicos no sentido de conquistar um espaço para levar toda a sociedade a
refletir a condição socioeconômica sub-humana de homens e mulheres negros ex-
cluídos institucionalmente dos espaços de decisão da sociedade e da Igreja.
4 - Quarto projeto
Finalmente, a proposta do “quarto projeto de evangelização” é o que se tem
de mais recente no tocante à postura da Igreja em relação às questões raciais. O
retorno ao conservadorismo, a valorização da oração sem o compromisso da ação
enquanto escolha mais eficaz para a solução dos problemas começam a ganhar
mais impulso. A tendência dos grupos de base foi de esmorecimento quase total.
Alguns têm optado por realizar trabalhos mais internos, na tentativa de não perder
os espaços já conquistados anteriormente. O projeto latino-americano perde sua
força na medida em que os agentes negros que tiveram um bom “pique” no co-
meço perderam-se no caminho, com conflitos onde o negro era o “revoltado”. Os
negros católicos comprometidos, principalmente religiosos e religiosas, tentam
trabalhar a causa do negro fora da Igreja. Focam na luta por políticas públicas,
contra a continuação da discriminação racial, através dos veículos de comuni-
cação, de iniciativas junto ao poder público, atuando também junto ao processo
educacional, no sentido de promover a cultura negra e de conscientizar a partir da
compreensão da unidade respeitando a diversidade.
V - Como os negros católicos organizaram-se nestes 518 anos?
A organização religiosa só é possível ser plena na liberdade. A primeira
grande experiência de liberdade religiosa foi experimentada nos quilombos
reunidos dos Palmares. A comunidade quilombola, por ser radicalmente livre
do domínio do pensar político e religioso dos colonizadores, tinha total liber-
dade e motivo para rechaçar a influência da Igreja Católica e todos os seus
símbolos religiosos. No entanto, não foi isto que aconteceu. O povo quilom-
bola foi capaz de distinguir os valores religiosos emanados dos evangelhos,
257
Organizadora : Edelamare Melo
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Liberdade!
Sagrada busca por justiça e igualdade
E com arte eu semeio a verdade
O despertar para um novo amanhecer
Faço brotar a força da esperança
Deixo de herança um novo jeito de viver!
Vamos louvar o canto da massa
259
Organizadora : Edelamare Melo
Zwetsch, Roberto E. (Org.). 500 anos de invasão — 500 anos de resistência. São Paulo:
Paulinas, 1992.
Oliveira Luz, Marco Aurélio. AGADÁ: Dinâmica do Processo Civilizatório Negro no Brasil.
Tese de Doutorado em Comunicação da UFRJ, 1988.
Pinaud, João Luiz e outros. Insurreição Negra e Justiça. Rio de Janeiro, Expressão e Cultura, 1987.
Fragoso, Frei Hugo. Uma dívida para com os negros do Brasil, in Revista de Cultura Vozes,
ano 82, número 1.
Vários autores. “Negros no Brasil: Dados da Realidade.” Petrópolis, Vozes- Ibase, 1989.
Silva, Edson. “500 anos de pena de morte”, in REB 51, de março 1991, p.175-188.
Las Casas, Bartolomé de. O Paraíso Destruído; A sangrenta história de conquista da América
Espanhola, Porto Alegre, 1984.
260
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
“Sete Atos Oficiais que decretaram a marginalização do negro no Brasil,” in: Convergência
284 - jul/ago. 1995.
Documento final do I Encontro dos Franciscanos Negros do Brasil, in: SEDOC 20 (maio/
jun. 1988)
261
Organizadora : Edelamare Melo
264
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Gicélia Cruz1
1. Introdução
As últimas décadas apresentaram um crescimento no número de negros
evangélicos no Brasil. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatís-
tica (IBGE), censo de 2010, no Brasil, existem cerca 22.784.825 de negros
e pardos, que se declararam evangélicos; na Bahia 1.896.361 e em Salvador
439.2232. Esses dados mostram que os africanos diaspóricos, aderiram às dis-
tintas práticas religiosas na interlocução da nova realidade que lhe foi imposta
pelo processo de colonização. Essa temática tem sido objeto de análise de
muitos estudiosos da História das Religiões Afro brasileiras.
Compreender como se configurou, dentro das religiões afroatlânticas na
Cidade de Salvador, no período entre 1882 e 1930, a adesão de negros ao protes-
tantismo e pentecostalismo, é importante visto que estes sujeitos já tinham expe-
riências de práticas religiosas tanto nas religiões de matriz africana, catolicismo,
islamismo, bem como de outras. Convém também conhecer o contexto socio-
econômico, cultural, religioso e educacional em que este negro estava imerso
quando em 1882, chega o trabalho batista na capital baiana, e logo no início do
século XX, chegam os pentecostais. Nesse sentido, percebe-se a ressignificação
da espiritualidade e fé do afro brasileiro, merecendo tal contexto ser pesquisado.
A partir da Lei Federal 10.639/2003, torna-se obrigatório o ensino da
História da África e Cultura Afro brasileira na sala de aula, ou seja, a partici-
pação do negro na construção da história do Brasil. Assim sendo, é importan-
te no que diz respeito ao universo religioso, que tal protagonismo negro tam-
bém seja tema de estudos, posto que as especificidades configuram diferentes
identidades, processos e trajetórias históricas afro brasileiras.
A seguir, faremos um breve resumo sobre a presença da religião protes-
tante no Brasil. O primeiro momento se dá nos séculos XVI, XVII com as
1
Mestranda em Educação e Contemporaneidade – Linha 1(UNEB/Salvador) - Bacharel em Teologia(Seminário
Teológico Batista do Nordeste) – Licenciada em História (UNIJORGE/Salvador) –– Especialista em Educação de
Jovens e Adultos(UFBA) – Especialista em História e Cultura Afro brasileira e Indígena(Instituto Federal da Bahia)
2
IBGE: Censo 2010. Disponível em: < http://www.ibge.gov.br/cidadesat/link.php?uf=ba>. Acesso em: 20 nov 2012.
265
Organizadora : Edelamare Melo
3
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm (Acessado 10.09.2019)
4
SILVA, Elizete da. Conflitos religiosos na Bahia século XIX. Nº 21. Feira de Santana: Sitientibus, 1999. p.51-67.
5
https://hibridos.cc/po/rituals/igreja-nossa-senhora-do-rosario-dos-pretos/ (Acessado 19.09.2019); http://spd.org.br/
(Acessado 19.09.2019)
6
REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil - A História do Levante dos Malês em 1835. São Paulo: Cia das Letras,
2003
7
REIS, João José. SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo:
Companhia da Letras, 1989. p. 100
266
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
8
LISBOA, Karen M. A Nova Atlântida de Xpix e Martius: natureza e civilização na Viagem pelo Brasil. Vol. II. São
Paulo:Hucitec, 1997. p.29
9
RIBEIRO, Boanerges. Protestantismo no Período Monárquico. São Paulo: Pioneira, 1973.
10
SILVA, Elizete da. Conflitos religiosos na Bahia século XIX. Nº.21. Feira de Santana: Sitientibus, 1999 , p.51-67.
267
Organizadora : Edelamare Melo
11
BARBOSA, José Carlos. Negro não entra na igreja, espia da banda de fora. Vol. 1. Piracicaca: UNIMEP, 2002.
p. 35.
12
Ibid. p. 35.
13
Ibid. p. 39
14
bid. p.56.
15
Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Metodista de Piracicaba (1980), graduação em Teo-
logia pela Universidade Metodista de São Paulo (1984), Mestrado em História pela Universidade de Brasília (1988)
e Doutorado em História da América - Universidad de Sevilla (1995). Atualmente é professor do Centro Universitá-
rio Metodista Izabela Hendrixhttps://www.escavador.com/sobre/2277187/jose-carlos-barbosa
268
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
16
Idem. pp.158-159
17
SILVA, Elizete da. Visões Protestantes sobre a escravidão(1860-1890). Revista de Estudos da Religião, n.1/2003/p.
1-26.
18
SILVA, Elizete da. Conflitos religiosos na Bahia século XIX. Nº.21. Feira de Santana: Sitientibus, 1999 ,, p. 51-67.
19
SILVA, Elizete da. Visões Protestantes sobre a escravidão(1860-1890). Revista de Estudos da Religião, n.1/2003. p. 1-26.
269
Organizadora : Edelamare Melo
20
FILHO, Walter Fraga. Mendigos, Moleques e Vadios. São Paulo/Salvador: HUCITEC, 1996. p. 30.
21
Idem p. 24
270
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
tes. Em meados do século XIX, 78,6% dos moradores das lojas eram mestiços
e negros22. A relevância desses dados está em possibilitar identificar as pri-
meiras conversões a exemplo do latoeiro ou funileiro, chamado João Batista,
citado na obra História dos Batistas no Brasil23. Seria esse primeiro o negro
ou mestiço baiano protestante? Tendo em vista que essas atividades eram
desenvolvidas por esse segmento da população?
Na década de vinte do século passado, começa o evangelismo pentecostal
na Bahia, sendo pioneira a Igreja Assembléia de Deus, que se instala na cidade de
Canavieiras em 1927. Expandindo-se para outros municípios vizinhos, abre frentes
missionárias em Itabuna, Belmonte, Itapebi, Macote, Pau Brasil, Camacã, Santa
Luzia Arataca, Jaçari, Itaimbé, Palmira, Curaçá, Valente e Valença. Chegando à ci-
dade de Salvador em 1930, instala-se à Rua Carlos Gomes nº 402. Esses fatos estão
documentados no acervo histórico da igreja que também identificam: o seu primei-
ro pastor negro Teodoro Feliciano Santana, nascido em 7 de setembro de 1888, no
município baiano de Santo Antonio de Jesus; registram também em 28 de maio de
1930, na cidade de Salvador, a primeira conversão de um descendente de africanos,
que tinha por nome Heliodoro24. O teólogo Marcos Davi25, questiona a aproxima-
ção do afro-brasileiro com as Igrejas Pentencostais, onde há uma concentração de
quase 9 milhões de negros professando essa vertente do protestantismo.
O II e III Congresso Baiano de Pesquisadores negros, (UEFS,2009) e
(UNEB, 2011), publicou em seu Caderno de Resumos, a Análise das Repre-
sentações de Negritude e Africanidades no Protestantismo do século XIX26,
onde faz-se uma análise sobre o crescimento de negros que se declaram evan-
gélicos e qual sua relação com o tema escravidão.
Diante de tais informações faz-se necessário compreender em que me-
dida a conversão desses negros ao cristianismo protestante e pentecostal, in-
fluenciava suas relações sociais nas quais estavam imersos, principalmente
com as outras religiões as quais já conviviam há quase 400 anos. Nesse sen-
tido na busca da eficácia no resultado do estudo proposto é importante refletir
sobre estas prerrogativas acima elencadas, trazendo como exemplo o primei-
ro convertido no trabalho batista, um latoeiro, tornando-se um frequentador
assíduo da igreja e letrado o suficiente, este é indicado para fazer o curso de
22
FILHO, Walter Fraga. Mendigos, Moleques e Vadios. São Paulo/Salvador: HUCITEC, 1996. p. 26.
23
PEREIRA. J. Reis. História dos Batistas no Brasil:1882-1982. 2º edição. Rio de Janeiro: JUERP,1985. p. 23-2
24
História da Igreja Assembléia de Deus na Bahia. 2ª ed. Rio de Janeiro: CPAD, 1982
25
OLIVEIRA, Marco Davi de. A religião mais negra do Brasil. São Paulo: Mundo Cristão, 2004.
26
CRUZ, Gicélia da. Caderno de Resumos do Congresso Baiano de Pesquisadores negros: outros caminhos das
culturas afro-brasileiras: confluências, diálogos e divergências, de 24 a 26 de setembro de 2009, Feira de Santana/
Realização: Associação de Pesquisadores negros da Bahia ET AL., - Salvador: EDUNEB, 2009, pp.138,139.
271
Organizadora : Edelamare Melo
Barbosa, José Carlos. Negro não entra na igreja, espia da banda de fora. Protestantismo e
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Lisboa, Karen M. A Nova Atlântida de Xpix e Martius: natureza e civilização na Viagem pelo
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Pereira. J. Reis. História dos Batistas no Brasil 1882-1982. 2º edição. Rio de Janeiro:
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Pesavento, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica,2003.
272
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Reily, Duncan. A História Documental do Protestantismo no Brasil. São Paulo: ASTE, 1984.
Reis, João José. SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escra-
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Verger, Pierre. Fluxo e Refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de
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Werber, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. 4ª Ed. São Paulo: Martin
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http://www.ibge.gov.br/estadosat/temas.php?sigla=ba&tema=censodemog2010_relig (aces-
sado 25.08.2019)
273
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
1
Artigo públicado na Revista Xapuri Socioambiental do mês de janeiro/2017. https://www.xapuri.info/cidadania/
educacao-para-as-relacoes-etnicorraciais-um-direito-do-brasil/
2
Coordenadora Nacional do MNU. Secretária de Combate ao Racismo da CNTE. Tesoureira do SINTEGO. Vice
-Presidenta da CUT-GOIÁS. Coordenadora do Centro de Referência Negra Lélia Gonzales. Conselheira da Conse-
lho Nacional de Direitos Humanos
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Introdução
Estes escritos têm como intuito ligar os estudos sobre as relações de
corpo-mente e ambiente, baseadas no conceito de corpomídia de Helena Katz
e Christine Greiner - que entendem o lugar do corpo como um território em
constante comunicação com suas percepções, reações, pensamentos e am-
bientes, com as perspectivas específicas que acometem o corpo racializado
e feminino de sexualidade dissidente na nossa sociedade, assinalando então
uma certa localização especificamente do corpo feminino negro não-heteros-
sexual na contemporaneidade, que perpassa principalmente a marginalização.
A partir desses pontos, propõe-se uma reflexão sobre como esses corpos foram
marcados por sua sociedade - ocidental de epistemologias brancas, em lugares comuns
que exigem pesquisas com foco específico para clarificar tais históricos, desenvolvi-
mentos e repercussões desse grupo atravessado por tantas interseccionalidades. É im-
portante assinalar que a racialização perpassa inúmeros corpos e perspectivas, porém
o artigo se propõe a analisar as identidades negras, deixando de abordar por exemplo
recortes com perspectivas de um corpo indígena ou asiático.
Esse é um campo de estudo que apenas a partir do século XX começa
a se desenvolver, principalmente no mundo ocidental, e por isso existe uma
enorme gama de pesquisas a serem feitas. Sendo assim, é também proposição
deste trabalho abrir um diálogo entre as diversas áreas de conhecimento para
que esse corpo não mais sofra perante a marginalização, e sim, a partir da
consciência de sua posição, consiga achar sua cura pessoal e coletiva.
Corpo de qual não se fala, pois foge da modernidade. É oposto ao ser
universal neutro e oficial.
A modernidade nasce com o “descobrimento”, a colonização das Améri-
cas; junto se estabelece uma exploração transnacional e sistemática dos corpos
1
Lara Ferreira é estudante de Artes Cênicas da Universidade de Brasília. Seu trabalho perpassa estudos políticos e as
artes performáticas buscando construir relações gesto-imagem-corpo-ação-palavra por meio de uma estética que aborda
a liberdade identitária e diversificada através de epistemologias sul globais. Para mais informações: likidah.tumblr.com
281
Organizadora : Edelamare Melo
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
E daí já conseguimos ter uma primeira ideia de toda a hipocrisia das falsas
liberdades, igualdades, autonomias e direitos sociais que, em suma, foram es-
critos na Constituição Brasileira para aqueles que vão, de fato, ser atendidos
pelas determinações constitucionais, os homens brancos e heteronormativos.
Esse movimento pode ser percebido através da própria aplicação de políticas
públicas que perpassa conceitos de população, sujeito e família, presentes em
nossa Constituição e mais uma vez ligados a valores cristãos.
Assim quando partimos para a análise da afetividade e das trocas dentro de
nossas relações sociais, análise crucial para esse trabalho quais são as represen-
tações de troca, amor e afetos que nos permeiam e que podemos esperar que nos
permeiem desde a infância até o presente momento da vida adulta?
O primeiro contexto em que estamos inseridas é o familiar, e particular-
mente o da família tradicional brasileira que é em princípio heterossexual. E
mesmo que grande parte das famílias brasileiras fujam de um padrão higienizado
de família, quando nós ligamos a noção de família a uma análise da imagem
difundida no imaginário popular por meio de representações gráficas e audiovisu-
ais, visualizamos na maioria das vezes representações de famílias brancas. Logo,
quando buscamos as imagens e símbolos que representam a família tradicional
brasileira, partimos para a análise de dois importante constitutivos da nossa for-
mação e da nossa consolidação imagética de representatividades no mundo: a
educação básica e as representações de arte e entretenimento.
Dentro da educação básica tem-se uma perspectiva histórica que mos-
tra como o ensino sempre foi direcionado para as altas classes, baseado em
princípios cristãos (Loureiro, M.C.S. 2008). Observando um retrato do pre-
sente, o ensino tem se desenvolvido muito mais pluralmente se comparado
aos seus anos anterior, mas ainda enfrentamos diversas questões que partem
da regência do conhecimento a partir de perspectivas da modernidade branca,
firmando-se pelo racionalismo de Descartes e a teleologia de Hegel. Enquanto
oculta filosofias, visões e pesquisas que partem de corpos negros, femininos e
de sexualidade dissidente. A criança, pequeno corpo avesso, feminino e negro,
passa por grande parte da educação básica entendendo que sua percepção não
é importante, que seus sentimentos são irrelevantes para o contexto de sala de
aula, reprimindo-os, e caso seja não-heterossexual, provavelmente seu primei-
ro contato com relações homossexuais serão sexualizadas ou criminalizadas.
Além disso, a probabilidade de desestabilização de seu contexto familiar
é enorme, afinal homens negros estão sempre na mira do Estado. E, caso esses
homens não estejam diretamente na mira no Estado, ainda existe uma série de
questões e abusividades sobre os casais heteronormativos que só se tornam mais
283
Organizadora : Edelamare Melo
284
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
mesmo que ela não queira, pois logo chegam os assuntos sobre maternidade e
namoricos, constituindo base psicológica para a heteronormatividade. Para a
mulher negra resta o papel de cuidar, amasiar, esperar e doar o corpo ao outro.
E aqui, nesse momento da interiorização, se coloniza a mente e o corpo, por
mais sutil que seja, esse movimento sempre cria repercussões.
Então se torna aberto o segundo processo que é o de violação desse corpo
criança, ou seja, se o corpo criança negro e feminino não corresponde às expec-
tativas já delimitadas pela sociedade, ela é repreendida. Essa repressão pode re-
percutir tanto em um endurecimento para esconder tais características quanto em
uma extravagância violenta, mas também em várias outras possibilidades ainda
não documentadas e estudadas detalhadamente. Além disso, a violação também
pode vir de uma sexualização desse corpo, enquanto agressão verbal ou violência
física. De qualquer forma as reações raramente serão positivas, pois a repressão
e a sexualização em si são negativas para qualquer corpo, e consequentemente
essas violências ficarão guardadas no corpo como características específicas.
Nesse processo a reprodução dos padrões apreendidos é no mínimo difícil de
ser negada e ressignificada, especialmente quando falamos sobre como esses padrões
se estabelecem dentro de um relacionamento, seja ele romântico ou não. Quando
chegamos a fase da adolescência essas questões se tornam ainda mais delicadas, pois
a adolescência é uma fase de grande experimentação sexual e é importantíssima para
a construção da noção de sexualidade. Então o corpo negro feminino, geralmente,
está desenvolvendo melhor o entendimento de sua não-heterossexualidade, mas an-
tes disso, já havia desenvolvido seu entendimento do que é a submissão, do seu lugar
de não-amor e do que é o amor romântico - esse sonho vendido pelas ruas como
promessa de felicidade, construção social do tipo dominante-dominada em que cada
um deve comprimir seus papéis para que a relação se cristalize.
O corpo negro feminino de sexualidade dissidente amadurece “escolhen-
do” seguir ou não os padrões de feminilidade que lhes são impostos. Quanto
mais distantes desse padrão de feminilidade mais sujeitos esses corpos estarão
a invisibilização e a violência (física e psicológica) que também vem em par-
te da deslegitimação de estereótipos ligados a não-normatividade de corpos
dissidentes. Essa não-normatividade também acaba por gerar noções coletivas
banhadas em preconceitos como a de “se você é mulher, gosta de mulher e se
veste como homem é porque você tem inveja de não ter um pau”. Afinal, a pa-
dronização estética é extremamente ligado a concepção do que é ser mulher na
nossa sociedade, majoritariamente regida por epistemologias brancas.
De qualquer forma não podemos nos esquecer que o próprio sucumbir a
feminilidade é prejudicial a saúde mental do corpo auto-intitulado mulher. Susan
285
Organizadora : Edelamare Melo
Bordo, a partir da ideia de que o corpo deveria ser reconhecido como uma cons-
trução cultural e um locus de controle social, estuda doenças que seriam eminente-
mente encontradas em mulheres que performance a feminilidade, como a histeria
e a anorexia. Assim, assinala que “observando estes distúrbios, vemos o corpo das
doentes como uma construção ideológica emblemática da definição de feminilidade
de cada período em que formam mais reincidentes.” (GREINER, Christine, 2010).
A criação de um corpo regrado e não-humano
A dor e a violência então perpassam esse corpo negro e feminino de
sexualidade dissidente de várias maneiras ao longo de sua vida, provocando
diversas mágoas, angústias e tensões diárias. Consequentemente se desenvol-
vem somatizações, blindagens e couraças emocionais nesses corpos específi-
cos. “A expressão corporal é a visão somática da expressão emocional típica
que é vista a nível psíquico como carácter. Defesas aparecem em ambas as
dimensões, no corpo como couraça muscular.” (LOWER, Alexander, 1976).
Para o corpo negro feminino de sexualidade dissidente foram relegados
os sentimentos negativos e a baixa auto estima enquanto o corpo universal
branco masculino relegou a si mesmo a auto estima e os sentimento positivos.
E a partir dessa divisão também se cria um corpo específico, regrado e oposto
ao ideal de o que é humano, definido pela modernidade capitalista e branca.
Um corpo que a margem da legalidade do Estado, adoece.
“Cada sentimento-mapa parece engendrar respostas adaptativas
na forma de estados corporais e vice-e-versa. Os mapas da má-
goa (ou sentimentos de mágoa) estão, por exemplo, associados a
estados de desequilíbrio funcional. A facilidade de ação se reduz.
Não raramente estes mapas estão associados a presença da dor, de
sinais de doenças, ou de desacordos fisiológicos, indicando uma
coordenação diminuta das funções vitais”
286
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
acabam por resultar em uma internalização por vias de identificação que nos auto
induz a imagem de subalternidade - e que também nos relega ao silêncio.
Ao longo da vida nos formamos algozes de nós, através de auto con-
troles e auto sabotagens que nos relega mais uma vez a raiva, o medo e nos
priva de amor, auto estima e memória. Todas essas marcas passam a estar em
nossos corpos e mentes. O estado de tensão se torna uma constante e a possi-
bilidade de somatização negativa desses estados é recorrente.
Considerações Finais
O corpo é único e mantém relações únicas com a mente e o ambiente.
Entender isso, é também entender que o corpo de cada mulher negra de se-
xualidade dissidente é único, mas existem questões que nos perpassam em
padrões que se repetem historicamente e socialmente. Essas questões pa-
dronizadas, principalmente enquanto violências, nos colocam em um lugar
específico e comum por dividirmos esse locus social, e cabe a nós, corpas
racializadas de sexualidade dissidente , estudarmos as reverberações sociais
da violência em nossos corpos. Pois somente partir de novas epistemologias
nossas e a partir do resgate de epistemologias negras e indígenas ancestrais
que teremos a possibilidade de desconstruir as caixas terminológicas e sociais
que nos prendem em um ciclo repetitivo de relações violentas conosco e com
o ambiente. O termo mulher, o termo negra, o termo lésbica, bissexual ou
transsexual não nos cabe. Somos muito mais complexas e ancestrais que as
definições modernas brancas fabricadas para docilizar os corpos que se mos-
traram opostos a certas formas de dominação dos corpos e das mentes
E por conta das violências e dominações que permeiam esses corpos, o
corpo avesso que está às margens sociais precisa constantemente se adaptar
às mudanças sociais, culturais, políticas e econômicas para conseguir sobre-
viver. E a partir dessas metamorfoses os corpos marginalizados provocam
também um giro de percepções e conceitos, colocando em xeque a si mesmas,
criando novas territorializações e agindo como operadores de desestabiliza-
ção de conceitos e práticas da modernidade branca. As percepções negras
não-heterossexual, nesse sentido e vários outros, se tornam revolucionárias, e
esse é um dos vários motivos pelo qual precisamos conduzir nossas próprias
produções e definir nossos próprios novos conceitos.
Como cita Angela Davis “quando a mulher negra se move, as estruturas se
movem com ela”. É necessário nos movermos em meio a lama que nos chafurda,
pois a vida nunca foi fácil para aquelas que tentam sobreviver em um país que
passou por tantos percalços como o Brasil, desde a colonização até o pós-ditadu-
ra. Estamos a margem, mas isso só nos coloca em uma posição de maior urgência
287
Organizadora : Edelamare Melo
em criar demandas por nós, por nossas ancestrais e por nossas descendentes. Aqui
escolho as Artes como uma das grande possibilidade de novas territorializações
na mesma medida em que, com o olhar e a pesquisa artística, podemos dar visi-
bilidade a planos não explorados. Criar novos discursos é uma disputa de narrati-
vas, é uma disputa de poder, pois a arte:
“ é autônoma, mas guarda contato a partir de seus pontos de par-
tida: o caos, o território e o corpo. É sempre o gesto que dá poder
a imagem. O que ele comunica não é só para o outro, mas para
si mesmo uma comunicabilidade e não um significado pronto.
Toda escritura é dispositivo de poder. A escritura do gesto não é
exceção. (Greiner, Christine. Corpo em crise. 2010,p.106).
Curiel, Ochy. La Nación Heterosexual: Análisis del discurso jurídico y el régimen heterose-
xual desde la antropología de la dominación. Colombia: Impresol Ediciones, 2013
Greiner, Christine. O corpo em crise: Novas pistas e o curto-circuito das representações. São
Paulo: Annablume editora, 2010
Louro, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1997.
288
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Louro, Guacira Lopes. Um corpo estranho - Ensaio sobre sexualidade e teoria queer. Belo
Horizonte: Editora Autêntica, 2004.
Barbosa, M.r., Matos, P. M., & Costa, M. E. (2011). Um olhar sobre o corpo: o corpo ontem
e hoje.Psicologia & Sociedade, 23(1), 24-34.
Loureiro, M. C. S.. Psicologia da Educação no Brasil. In: Miranda, Marília Gouvea de; Re-
sende, Anita C. Azevedo. (Org.). Escritos de Psicologia e Educação. 1ed.Goiânia: Editora da
UCG, 2008, v. 1, p. 35-54.
289
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Introdução
O mercado de trabalhe o brasileiro é historicamente marcado por
diversas desigualdades, dentre as quais destaca-se para os fins do presente
estudo a desigualdade racial2: negros3 recebem cerca de 44% a menos do
que brancos, representam o maior número de desempregados, maior índice
de analfabetismo e maior presença no trabalho infantil4. Esta desigualdade
é causada e perpetuada pelo racismo presente na sociedade brasileira, cujo
combate é um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil,
conforme redação do art. 3º da Constituição Federal, e um dos princípios que
regem as relações internacionais do Brasil, conforme art. 4º, CRFB.
Considerando que a Constituição Federal é a norma superior no or-
denamento jurídico brasileiro, o combate à discriminação mostra-se como
basilar para a constituição de uma “sociedade livre, justa e solidária”, como
estabelece nossa Carta Maior, devendo estar refletido nas demais legislações
para possibilitar a redução das desigualdades sob diversos aspectos. Assim,
no caso da legislação trabalhista, também deve ser guiada pelo princípio do
repúdio ao racismo, criando normas que proíbam a discriminação racial nas
relações de trabalho e promovam a redução da desigualdade racial.
A Lei nº 13.467/2017, também chamada de Reforma Trabalhista, tra-
mitou em regime de urgência no Congresso Nacional e foi aprovada e sancio-
nada em apenas 7 meses, alterando mais de uma centena de dispositivos da
1
Mestranda em Teorias Jurídicas Contemporâneas pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (PPGD/UFRJ) e bolsista CAPES. Integrante do grupo de pesquisa Configurações Institucionais e Relações de
Trabalho (CIRT/UFRJ). Integrante do Curso de Extensão Jurista Luiz Gama (UFRJ). E-mail: [email protected].
2
Sem ignorar o relevo das demais formas de desigualdade e discriminação (sexo, orientação sexual, identidade de
gênero, origem, idade e etc.), o presente estudo também pode ser observado a partir da ótica destas outras modali-
dades e suas interseções.
3
A partir da nomenclatura adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estatística em que o termo “negro” re-
presenta o somatório da população autodeclarada como preta e parda, bem como por sua utilização nas referências
bibliográficas consultadas.
4
IBGE. As cores da desigualdade. Retratos: a revista do IBGE. Rio de Janeiro, nº 11, maio/2018, p. 14-19. Disponível
em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/17eac9b7a875c68c1b2d1a98c80414c9.
pdf . Acesso em 17 set. 2019.
291
Organizadora : Edelamare Melo
5
MOREIRA, Adilson José. O que é discriminação? Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito: Justificando,
2017, p. 17-18.
6
Na mesma obra, p. 103-104.
292
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
7
Na mesma obra, p. 41 e 146-148.
8
CRENSHAW, Kimberle W. (2004). A intersecionalidade na discriminação de raça e gênero. In: VV.AA. Cruza-
mento: raça e gênero. Brasília: Unifem, p. 7-16.
9
MOREIRA, Adilson José. Obra citada, p. 136-137.
10
ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018, p. 36-37.
293
Organizadora : Edelamare Melo
11
Conforme dados da pesquisa “Perfil social, racial e de gênero das 500 maiores empresas do Brasil e suas ações
afirmativas”, realizado pelo Instituto Ethos (2016, p. 22), cujos resultados apontam que pardos representam menos
de 5% dos cargos de Conselho de Administração e do Quadro Executivo e pouco mais de 6% dos cargos de gerência
(pretos representam menos de 1% nestas funções), ao passo que negros representam 58% dos trainees, 57% dos
estagiários, 35% do quadro funcional e 25% dos cargos de supervisão, revelando a desigualdade ocupacional entre
negros e brancos no setor privado, em que negros tem menor acesso aos cargos de gestão e comando.
12
CAMPANHA com profissionais de RH retrata racismo institucional. O Estado de São Paulo, 17 nov. 2016. Dis-
ponível em: https://emais.estadao.com.br/noticias/comportamento,campanha-com-profissionais-de-rh-retrata-racis-
mo-institucional,10000088984 Acesso em: 18 set. 2019.
13
MOREIRA, Adilson José. Obra citada, p. 124-125.
294
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
blicos federais. Estas medidas são basilares para uma mudança gradativa do ce-
nário da inserção da população negra no mercado de trabalho, porém, é preciso
mais e Coordenadoria Nacional de Promoção de Igualdade de Oportunidades e
Eliminação da Discriminação no Trabalho do Ministério Público do Trabalho
(COORDIGUALDADE-MPT) defende inclusive a aplicação analógica da lei
nº 12.990/2014 para o setor privado, com a possibilidade de reserva e anúncio
de vagas específicas para a população negra, o que ampliaria a capacidade de
mudança, dado o número de empregos neste setor14.
Todavia, o racismo não afeta apenas o momento da contratação, mas
todo o curso do contrato de trabalho. Uma das formas de expressão da discri-
minação racial no local de trabalho são as microagressões, que são pequenas
manifestações de desprezo buscam ofender, rebaixar e/ou invalidar pessoas
negras, gradualmente minando sua autoestima, podendo até mesmo ensejar a
dispensa voluntária do(a) trabalhador(a) quando a convivência no ambiente
de trabalho torna-se insustentável15. Outro exemplo de racismo durante o con-
trato de trabalho se dá quando há pressão social para que o(a) trabalhador(a)
de grupo minoritário se assemelhe ao máximo ao padrão do grupo normativo.
Deste modo, a cultura institucional da empresa tenta gradativamente apagar
a identidade do(a) trabalhador(a), que se sente pressionado(a) a dissimular
sua identidade pessoal para evitar discriminação (omitindo sua religião ou
orientação sexual, por exemplo) ou tentativa de aproximar-se esteticamente
do grupo dominante, como meios para evitar a discriminação, manter-se na
empresa e avançar na carreira16.
1. Análise de alterações promovidas na CLT Reforma trabalhista sob a
ótica da desigualdade racial
A Lei nº 13.467/2017 promoveu mudanças em uma série de aspectos da
legislação trabalhista, fixados de forma genérica. Apesar da mudança ter sido gené-
rica, destinada a todos(as) os(as) que são afetados(as) por esta legislação – trabalha-
dores(as), sindicatos e empregadores(as) –, a aparente neutralidade da norma incide
sobre uma realidade estruturalmente desigual, onde o racismo se reproduz de forma
sistêmica, de modo que tem severo potencial de aprofundar a desigualdade racial
nas relações de trabalho em decorrência de seu impacto desproporcional para a
população negra, majoritariamente trabalhadora ou desemprega. O presente estudo
14
COORDIGUALDADE-MPT. Nota Técnica GT de raça nº 001/2018, de 06 de agosto de 2018. Disponível em: https://mpt.
mp.br/pgt/publicacoes/notas-tecnicas/nota-tecnica-gt-de-raca-no-01/@@display-file/arquivo_pdf. Acesso em 18 set. 2019.
15
MOREIRA, Adilson José. Obra citada, p. 13 e 158.
16
Na mesma obra, p.126.
295
Organizadora : Edelamare Melo
aborda algumas mudanças centrais divididas nos seguintes eixos: Direito Processu-
al do Trabalho, Direito Material do Trabalho e Direito Coletivo do Trabalho.
As mudanças no Direito Processual do Trabalho podem afetar gra-
vemente o acesso à justiça para os trabalhadores, em especial para negros e
negras. A Justiça do Trabalho já é considerada uma justiça para desemprega-
dos, tendo em vista a não regulamentação da proteção constitucional contra
dispensa sem justa causa (prevista no art. 7º, I, CRFB), de modo que os traba-
lhadores sentem-se inseguros de ajuizar a ação durante o contrato de trabalho
(e muitas vezes até mesmo depois) e a proteção aos direitos trabalhistas se dá
de forma reparatória. Dados divulgados pelo Tribunal Superior do Trabalho
apontam queda brusca no número de ações trabalhistas ajuizadas a partir de
dezembro de 2017 (início estatístico da vigência da Reforma Trabalhista),
e no ano de 2018 os números continuaram reduzidos, abaixo do padrão dos
mesmos meses nos anos anteriores17.
Um dos aspectos que indica que a Reforma Trabalhista dificulta o
acesso à justiça é o aumento nos custos do processo judicial trabalhista, den-
tre os quais o primeiro que se pode destacar são as mudanças na gratuidade de
justiça. Originalmente na Justiça do Trabalho bastava a declaração de próprio
punho do(a) trabalhador(a) indicando que não possui recursos para arcar com
os custos sem prejuízo de seu sustento. Agora, também é necessária a com-
provação de insuficiência de recursos para o trabalhador que receba salário
superior a 40% do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previ-
dência Social, conforme art. 790-B. A Reforma também limita o alcance da
gratuidade de justiça, que não abrange as novas custas criadas18.
Outro aspecto do encarecimento do processo trabalhista é a criação de
novos custos. Agora a legislação trabalhista também prevê possibilidade de ho-
norários de sucumbência advocatícios (Art. 791-A) e periciais (art. 790-B), o que
significa que a parte que perder o processo deverá pagar um percentual para o
advogado da parte vencedora ou para o perito, mesmo que seja beneficiário de
justiça gratuita. Isto é um empecilho a acesso à justiça uma vez que os honorários
sucumbenciais incidem sobre pedidos indeferidos, o que gera receio da formula-
ção de determinados pedidos, devido ao risco de indeferimento por divergência
judicial, de cálculo ou dificuldade probatória. A sucumbência agora também in-
17
PRIMEIRO ano da reforma trabalhista: efeitos. TST, 05 nov. 2018. Disponível em: http://www.tst.jus.br/noti-
cias/-/asset_publisher/89Dk/content/id/24724445. Acesso em: 18 set. 2019.
18
Isto estabelece uma diferenciação entre o acesso à justiça do beneficiário de gratuidade no processo civil e no
processo do trabalho, visto que no processo civil, apesar da existência de sucumbência com responsabilização do
beneficiário da gratuidade, a obrigação de pagamento pode ficar suspensa pelo prazo de até 5 anos e só será cobrada
caso o credor comprove que não há mais insuficiência de recursos, conforme art. 98º, §3º, CPC.
296
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
19
COSTA, Camila. 5 mapas e 4 gráficos que ilustram segregação racial no Rio de Janeiro. BBC Brasil, 10 nov. 2015. Disponível
em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/11/151109_mapa_desigualdade_rio_cc. Acesso em: 17 set. 2019.
20
DELGADO, Mauricio Godinho; DELGADO, Gabriela Neves. A reforma trabalhista no Brasil: com os comentá-
rios à Lei n. 13.467/2017. São Paulo: LTr, 2017, p. 144-145.
297
Organizadora : Edelamare Melo
visto que pode ser utilizada até mesmo na atividade-fim da empresa princi-
pal, o que anteriormente era vedado pela súmula 331 do Tribunal Superior
do Trabalho. Esta alteração, como muitas outras, teve a constitucionalidade
questionada no Supremo Tribunal Federal, por meio da Arguição de Descum-
primento de Preceito Fundamental nº 324/DF, que já foi apreciada e a Corte
entendeu pela constitucionalidade desta transferência de serviços.
Esta alteração pode ter impacto negativo nas relações de trabalho e
prejudicar especialmente a população negra tendo em vista sua significati-
va representação nestes contratos de trabalho, conforme estudo desenvolvido
pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada que destaca a desigualdade
salarial entre empregados terceirizados e os empregados contratados pela em-
presa principal, o número expressivo de acidentes de trabalho e até mesmo
mortes envolvendo trabalhadores terceirizados21.
A Reforma Trabalhista cria novas exigências para a reconhecimento
de identidade de funções entre empregados e a consequente concessão da
equiparação salarial, que é o mecanismo jurídico para reparar o ato discrimi-
natório de pagamento de salários distintos para trabalhadores que realizam as
mesmas funções – o que também pode ter aspecto racial, se considerarmos
a diferença de renda entre trabalhadores negros e brancos. Agora o art. 461,
CLT exige que a comprovação da identidade de funções se dê no mesmo
estabelecimento (reduzindo a anterior previsão que abrangia a “mesma loca-
lidade”, que era interpretada como o Município ou Região Metropolitana22) e
estabelece limites temporais (trabalhadores contemporâneos com diferença
de tempo de serviço para o mesmo empregador de no máximo 4 anos e dife-
rença de tempo na função de no máximo 2 anos).
Um aspecto benéfico trazido por esta norma é a previsão de aplicação
de multa caso reste comprovado que a diferença salarial se deu em função de
discriminação racial ou sexual, conforme previsão do §6º do art. 461, no en-
tanto, a norma estabelece limite indenizatório no valor de 50% (cinquenta por
cento) do teto máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência So-
cial, o que é um valor pouco expressivo (atualmente equivale a menos de três
mil reais) e que não representa potencial inibitório da prática discriminatória.
Sob o prisma do Direito Coletivo do Trabalho, a Reforma Trabalhista
também enfraquece os sindicatos com o fim da contribuição sindical com-
21
PELATIERI, Patrícia [et. al]. As desigualdades entre trabalhadores terceirizados e diretamente contratados: análise
a partir dos resultados de negociações coletivas de categorias selecionadas. In: CAMPOS, André Gambier (org).
Terceirização do trabalho no Brasil: novas e distintas perspectivas para o debate. Brasília: Ipea, 2018, pp. 33-48.
22
DELGADO, Mauricio Godinho; DELGADO, Gabriela Neves. A reforma trabalhista no Brasil: com os comentá-
rios à Lei n. 13.467/2017. São Paulo: LTr, 2017, p. 172.
298
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
pulsória, sem qualquer período de adaptação, na forma do art. 545, CLT, re-
duzindo drasticamente a arrecadação dessas instituições protetivas da classe
trabalhadora, que em 2018 apresentaram queda de cerca de 90% no mês de
recolhimento da contribuição sindical (abril) de 2018 se comparado com o
mesmo mês do ano anterior, conforme Nota Técnica do Departamento Inter-
sindical de Estatística e Estudos Sócio Econômicos23.
É válido lembrar que a força dos trabalhadores está em sua organização
coletiva através do sindicato, que é a instituição com legitimidade para nego-
ciar cláusulas específicas para a categoria – por meio de contratos ou acordos
coletivos –, configurando um espaço de disputa em que os trabalhadores e tra-
balhadoras negros poderiam levar suas reivindicações antidiscriminatórias. Po-
rém, com recursos reduzidos torna-se cada vez mais difícil a negociação, como
fica evidenciado pela queda significativa de cerca de 25% se comparadas com
anos anteriores24. Ao mesmo tempo em que enfraquece a entidade sindical por
redução de seus recursos financeiros, a reforma aumenta seu poder de negocia-
ção ao estabelecer que a negociação coletiva prevalece sobre a previsão legal
em uma série de hipóteses elencadas no novo art. 611-A, CLT.
2. Conclusão
Após breve análise de alguns dispositivos de Direito Material, Processual
e Coletivo do Trabalho incluídos pela Reforma Trabalhista correlacionados com
dados sobre a desigualdade racial no Brasil, é possível perceber o potencial lesi-
vo destas normas para a população negra sob os diversos aspectos da legislação
laboral, tendo em vista principalmente a desigualdade salarial e ocupacional que
atinge os trabalhadores e trabalhadoras negras no mercado de trabalho. A partir
do Direito Processual do Trabalho os possíveis impactos estão representados pela
limitação ao acesso à justiça das camadas mais pobres devido à elevação os custos
do processo do trabalho sem isentar os beneficiários da gratuidade de justiça.
No Direito Material do Trabalho são ampliadas as exigências para
verificação da identidade de funções e consequente equiparação salarial; os
valores de indenização para danos morais (agora chamados de “extrapatri-
moniais”) são limitados com base no salário recebido pelo(a) empregado(a)
ofendido; é criada uma nova modalidade contratual extremamente flexível e
sem garantia sequer de pagamento do salário mínimo mensal e é ampliada a
possibilidade de terceirização da atividade-fim das empresas.
23
DIEESE. Nota Técnica: Subsídios para o debate sobre a questão do Financiamento Sindical. São Paulo, nº 200,
dez/2018, p. 5. Disponível em: https://www.dieese.org.br/notatecnica/2018/notaTec200financiamentoSindical.pdf.
Acesso em: 18 set. 2019
24
Na mesma obra, p. 7-8.
299
Organizadora : Edelamare Melo
Brasil. Projeto de Lei nº 6787, de 2016 (da Câmara dos Deputados), PL 6787/2016. Altera o
Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 - Consolidação das Leis do Trabalho, e a Lei nº
6.019, de 3 de janeiro de 1974, para dispor sobre eleições de representantes dos trabalhadores
no local de trabalho e sobre trabalho temporário, e dá outras providências. Brasília: Câmara
dos Deputados [2016]. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichade-
tramitacao?idProposicao=2122076. Acesso em: 17 set. 2019.
300
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
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de Direito do Trabalho (São Paulo), v. 199, p. 133- 161, 2019.
301
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Introdução
Nesta comunicação pretendo contribuir com o debate sobre pedagogia
para a garantia de direitos, iluminando-o com algumas considerações extra-
ídas do meu livro O tradição dos Orixás: valores civilizatórios afrocentra-
dos, escrito conjuntamente com a antropóloga Edlaine de Campos Gomes.
No centro desta conversa estão as tensões existentes na arena de interes-
ses da fé religiosa de integrantes do campo evangélico e do campo afro-bra-
sileiro, evidenciadas tanto na imprensa corporativa como nas redes sociais,
e a pedagogia de perspectiva afrocêntrica como instrumento de salvaguarda
do patrimônio material e imaterial representado nos terreiros de candomblé.
Creio ser pertinente esclarecer que o título do livro releva o título do
Projeto. À época, a visão do grupo que o desenvolveu era influenciada pela
concepção que atribuía o candomblé à nação ketu /Nagô cuja língua matriz é
o yorubá e na qual se cultuam os orixás, dado que no Rio de Janeiro era esse o
grupo predominante. Posteriormente o grupo faria autocrítica, reconhecendo a
coexistência da nação Angola/Congo, com línguas de matriz banto e os cultos a
inquices, assim como a nação Jeje/Fon tem como língua o ewe e cultua voduns.
Igualmente, esclareço que vejo o candomblé como um sistema cosmo-
gônico forjado no plano de uma “dialogia” – termo que aprendi com o pro-
fessor Muniz Sodré –, que articula conhecimentos de diversas religiosidades
africanas trazidas ao Brasil no curso da diáspora negra. A literatura em geral
relaciona três grupos étnicos aportados no litoral nordeste e sudeste do nosso
país cujas vivências na tradição africana, ainda que incompleta por se trata-
rem de jovens escravizados, deram origem a esse sistema. Os educadores
Denise Botelho e Wanderson Flor do Nascimento precisam que
Os bantos (vindos da região centro-sul do continente, sobretudo
dos atuais Congo, Angola e Moçambique), os Iorubás (vindos
dos atuais Nigéria, Benin e Togo) e os Fonewés (conhecidos
como Jêjes, vindos dos atuais Benin e Togo). Cada um desses
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
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1
Cf. IBGE, 2010. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/apps/atlas/pdf/Pag_203_Religi%C3%A3o_Evang_miss%-
C3%A3o_Evang_pentecostal_Evang_nao%20determinada_Diversidade%20cultural.pdf Acesso em 5 out 2019.
2
Lembro-me perfeitamente de ter avistado várias vezes o líder da IURD, Edir Macedo, em trajes sempre muito modestos,
circulando na primeira sede da Igreja, na rua da Abolição, bairro de mesmo nome, um subúrbio da capital do Rio de Janeiro.
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Talvez os escritos de Fanon amparem as nossas reflexões sobre esse efeito con-
trário não esperado pelo Tradição dos Orixás. Quem sabe a inoculação da subalter-
nidade e do servilismo continue a ser a arma de guerra de dominação do colonizador,
superior à espada e ao canhão, hábil em extrair do colonizado a sua dignidade humana,
o seu sentimento de pertencer a uma história própria, a uma cultura própria, a uma
tradição própria, enfim, a uma matriz civilizatória estruturada em valores próprios.
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
DEPOIMENTO
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Mãe Bahiana diante do Incêndio do seu Terreiro Ylê Axé Oyá Bagan, em Brasília, em
27.11.2015. O fogo começou por volta das 5h30 do dia 27.5.2015 e destruiu o barracão
da casa. Cinco pessoas dormiam na casa, mas ninguém ficou ferido. Depoimento de Mãe
Bahiana: “Eu levantei e o fogo já estava muito alto, tomando conta de tudo. Como estou
arrumando tudo, lá dentro tinha muita louça, esteiras, as roupas dos santos, mas não tinha
velas acesas porque eu coloquei em outro local”, disse ela.1
1
Notícia disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2015-11/terreiro-de-candomble-e-incen-
diado-no-paranoa
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
1
Professora Titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da UFBa. Mestre e Doutora em Direito Penal.
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
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2
Es ético utilizar los descubrimientos científicos nazis para salvar vidas? Frank Swaine BBC Future Disponível:
https://www.bbc.com/mundo/vert-fut-49240265. Acesso em: 17 ago. 2019
3
De acordo com Robert Miles. London, Routledge, 1989, p. 158, em 1928, na obra Race and Civilization, Friedrich
Hertz ainda se valia da expressão ódio racial, mas, em 1933 Magnus Hirschfeld usou o termo racismo, distinguin-
do-o de xenofobia.
322
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
em 2001 que tinha como objetivo definir uma plataforma de atuação contra os
preconceitos de raça. No entanto, algumas delegações discutiram a assimilação
do sionismo a uma ideologia racista, outros discutiram antissemitismo como uma
forma moderna de antissionismo e outras delegações, ainda, reivindicaram para
os negros as mesmas indenizações devidas ao judeus pela ação genocida dos na-
zistas. Procurou-se também incluir a discriminação de castas praticada na Índia
como manifestação de racismo. No entender acertado de Balibar (op. Cit, s/p),
outros fenômenos se intercambiam com a segregação por motivo de raça, a exem-
plo de nacionalismo, imperialismo e intolerância religiosa.
A dificuldade de estabelecimento de um sentido comum para o ter-
mo raça, revela que ele não passa, como querem muitos, de mera construção
social e politica e, portanto, não é assunto relacionado à biologia. (Brian
Duignan, 2019, s/p). Esta revelação tornou-se possível após os avanços pro-
porcionados pelo sequenciamento do genoma humano quando se constatou
que não há correlação entre a variação genômica humana, a ancestralidade
biogeográfica e a aparência física das pessoas.
As leis norte americanas são um perfeito exemplo dessa afirmação porque cada
estado define quem é a pessoa negra valendo-se de diferentes critérios: na Virginia
um afro descente deve ter um sexto de ancestralidade africana, na Flórida, um oitavo
e, no Alabama, basta que se tenha um ancestral africano. Brian Duignan, op. cit., s/p
Lévi-Strauss (1999. p. 98) a propósito da crença evolucionista, opinião
afim do racismo biológico, afirma que ela ocorre, apenas porque o Ocidente
vê a si mesmo como finalidade do desenvolvimento humano, e as demais cul-
turas são avaliadas tendo como parâmetro seus próprios valores.
Apesar de todas essas constatações, aquele que tem a aparência e o
ethos distinto do que tem o poder, tem sido excluído e humilhado a despeito
de todos os discursos sobre os direitos humanos. Há uma suposição de que
basta a existência de leis que estabeleçam a igualdade entre todos para a ins-
talação do universalismo da espécie. As normas jurídicas funcionam, de certa
forma, como um álibi de intenções, que a prática desconfigura, na medida em
que a discriminação e o preconceito predominam sobre as leis.
3. Direito e racismo
A Constituição de Independência da Índia dispôs sobre a abolição da
‘intocabilidade’ e sua incriminação e também sobre discriminações positi-
vas em favor das Scheduled Castes e das Scheduled Tribes (Scs & STs) que
constituíam cerca de 23% da população estratificada da Índia. O sistema foi
abolido legalmente em 1950, mas há resistência às tentativas de programas
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4
Vale lembrar que o índice varia de 0 a 100. (CNCDH 2017, s/p) conforme Les Essentiels du Rapport sur la lut-
te contre le racisme 2017. Disponível em: Dihttps://www.cncdh.fr/sites/default/files/essentiels_du_rapport_racis-
me_2017_-pour_impression_ok_1.pdf Acesso 15 set, 2019.
5
Posteriormente, foram introduzidas alterações pelas Leis n nº 9.459 de 13 de maio de 1997 e 12.288 de 2010,
ampliando as hipóteses de incriminação.
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
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326
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328
Foto do acervo do Terreiro Ylè Alábásé. Reprodução autorizada
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Resumo
O trabalho trata da discriminação racial no Brasil e da evolução do tra-
tamento legislativo dado ao tema no Brasil, detendo-se na análise da Lei 7716
e das alterações que esta sofreu ao longo do tempo. Procura distinguir os tipos
penais que se aproximam e interpretar seu alcance. Propõe reflexão sobre a
extensão da legislação e sua correlação com o compromisso do estado brasi-
leiro na afirmação da igualdade material.
Palavras-chave: Ideais de Solidariedade, Discriminação Social, Direi-
to Penal, Lei 7716.
Ideais de fraternidade
Por detrás das obrigações jurídicas de respeito ao outro em sua dignida-
de, estão sem dúvida, os ideais de solidariedade. Os preconceitos que levam
alguns a negar um espaço de convivência qualificado a todos resultam muitas
vezes da recusa em aceitar as diferenças de etnia, crença ou ascendência que
são distintos dos padrões tidos como ideais naquela sociedade específica.
É importante convocar Maria do Céu Patrão Neves3 quando se trata de fa-
lar da coexistência entre os seres humanos, e o destaque que a autora dá à questão
da alteridade na relação entre as pessoas. Na linha do pensamento de Lévinas, a
filosofa portuguesa, adverte para a importância do outro, igual ou diferente, na
constituição de cada qual: nós nos fazemos, afirma, na relação com o outro.
Nesse sentido, nem haveria como se falar em uma distinção absoluta
entre o eu e o outro. Bom que se advirta que o conceito de outro não se refere
a um outro especifico, mas a todos os outros.
1
Apresentação feita no Simpósio Racismo e Intolerância Religiosa, Procuradoria do Trabalho, Brasília, agosto de 2018.
2
Professora Titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da UFBa. Mestre e Doutora em Direito Penal.
3
Alteridade e Direitos fundamentais: uma abordagem Ética versão de trabalho, conferencia proferida no I Congresso
Internacional Direitos Fundamentais e Alteridade, Universidade Católica de Salvador. Disponível em: www.mpatraoneves.pt
331
Organizadora : Edelamare Melo
4
BORDIN, Luigi. Judaísmo e filosofia em Emmanuel Lévinas. À escuta de uma perene e antiga sabe-doria. UFRJ.
Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 83, 1998, p. 555
5
VAZ, H. C. L. Antropologia Filosófica. Vol. II, São Paulo: Loyola, 2004, p. 144
6
Unesco. Declaração de Princípios sobre a Tolerância. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/ima-
ges/0013/001315/131524porb.pdf. Acesso em: f
7
ZIZEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 17
332
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
8
Brasil, Presidência da República. Lei nº 1.390, de 3 de julho de 1951. Inclui entre as contravenções penais a
prática de atos resultantes de preconceitos de raça ou de côr. Disponível em:https://www.jusbrasil.com.br/topi-
cos/12138061/lei-n-1390-de-03-de-julho
9
UNESCO. Convenção da ONU sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial. Disponível em:
unesdoc.unesco.org/images/0013/001393/139390por.pdf
333
Organizadora : Edelamare Melo
10
BRASIL, 1967. Presidência da República Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos Constituição da República
Federativa do Brasil De 1967. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao67.htm
11
Brasil, Presidência da República, Casa Civil, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. www.
planalto.gov.br
12
Brasil, Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/LEIS/L7716.htm
13
Brasil, LEI 9459. Altera os arts. 1º e 20 da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes
de preconceito de raça ou de cor. www.planalto.gov.br/ccivil_03/ LEIS/L9459.
334
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
do artigo-Lei que dispõe sobre os crimes de racismo ficou como exposta: “Art.
1º: Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou
preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.
Como se vê, o legislador fala em preconceito e discriminação, de forma
que é importante distinguir uma expressão de outra. O preconceito é um senti-
mento, ideia, opinião ou sentimento desfavorável formado sem conhecimento
abalizado, ponderação ou razão. O preconceito racial consiste em sentimento,
assimilado de forma acrítica em razão de desvios culturais ou “da generalização
apressada ou imposta pelo meio, conduzindo geralmente à intolerância.”14
É possível afirmar que o preconceito não pode ser objeto de Lei, na
medida em que esta não tem o poder, nem aptidão para mudar sentimentos,
ou questões que dizem respeito à subjetividade da pessoa, a menos que estes
se revelem em atos exteriores. O que a lei pode determinar é que alguém aja
como se não tivesse tais afetos.
A discriminação racial é o preconceito determinando atitudes, políticas,
restringindo oportunidades e direitos no convívio social. A discriminação se
concretiza no ato de estabelecer diferenças, de tratar de modo desigual às
pessoas, em razão das suas características raciais, religiosas, atingindo o prin-
cípio constitucional da igualdade.
Há várias formas descritas na lei de manifestar racismo ou discrimi-
nação. É importante destacar que algumas dessas condutas podem constituir
outro crime ou, até mesmo, ser um indiferente penal. Para que sejam consi-
deradas como um dos tipos da Lei 7716 e se a motivação for distinta daquela
descrita nos artigos da lei, ou seja, se a ação não for praticada por discrimina-
ção ou preconceito, pode não haver crime de racismo.
Assim ocorre com o artigo quarto que contém o tipo cuja realização
consiste em: “Negar ou obstar emprego em empresa privada . Pena: reclusão
de dois a cinco anos”. Se o motivo da negativa for, por outra razão que não o
racismo, a conduta será um indiferente penal. Da mesma forma acontece com
seu parágrafo primeiro que comina pena idêntica àquele que:
“por motivo de discriminação de raça ou de cor ou práticas resultantes
do preconceito de descendência ou origem nacional ou étnica: I - deixar de
conceder os equipamentos necessários ao empregado em igualdade de condi-
ções com os demais trabalhadores”.
Essa conduta, porém, pode vir a consistir um crime de perigo para a vida ou
a saúde de outrem (artigo 132 do Código Penal Brasileiro) se a ação não houver
14
ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Breves Considerações sobre Racismo e Intolerância Racial. http://www.revista-
persona.com.ar/Persona70/70Andreucci.htm).
335
Organizadora : Edelamare Melo
sido fundada em preconceito. A pena, nesse caso, é muito mais baixa - três meses
a um ano - porque a reprovação do comportamento é menor, embora aqui para
a caracterização do delito, deva ter ocorrido um perigo concreto e demonstrado
para a vida da vítima. Já o crime da Lei 7716 consumar-se-ia, aparentemente,
com a simples abstenção da conduta: bastaria o ato de preterição do empregado
para realizar o tipo. A redação do tipo não sugere, como no exemplo do Código
Penal, que se trata de crime de perigo. Da recusa em fornecer os equipamentos
podem resultar muitas consequências. É preciso registrar, todavia que, se antes
mesmo que o empregado venha a realizar uma ação que possa causar danos ou
perigo de dano a um bem jurídico de que seja portador, o equipamento lhe seja
oferecido, não se deve cogitar de considerar a existência de crime.
O bem jurídico, o valor tutelado na Lei é o direito à dignidade humana
(art. 1º, III) e o direito à igualdade (art. 5º), ambos consignados na Constitui-
ção de 1988.
Outro dispositivo gerou certa complexidade na compreensão da Lei.
Trata-se daquele introduzido pela Lei 9.459, a qual, além de inserir novos
crimes na “Lei do Racismo”, também acresceu, ao artigo 140, do Código Pe-
nal, o parágrafo terceiro, criando com isso a figura da injúria qualificada que
recebeu a seguinte configuração típica:
Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
[......]
§ 3º - Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça,
cor, etnia, religião ou origem.
Pena - reclusão de um a três anos e multa.
Ocorre que, a mesma lei alterou o artigo 20 da Lei 7716 para acrescen-
tar a seguinte conduta como sendo proibida com pena de reclusão de um a três
anos e multa: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de
raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.
O artigo 20 consiste em uma forma de crime de racismo que se realiza
através de discriminação que diminua o valor de grupos relativamente a outros
em razão de suas características antropológicas ou de sua cultura. Esse acréscimo
obrigou que fosse feita a distinção entre o artigo 20 e o artigo 140 §3º do Código
Penal já que ambos aparentemente se referem à mesma conduta. No entanto, a
doutrina já assinala a diferença entre as duas figuras: a injúria racial contida no
artigo 140, §3º, consiste em ofender a honra de alguém, pessoa determinada, se
valendo de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem; já o crime
de racismo atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, implica conduta
discriminatória a uma coletividade pelos motivos assinalados na Lei.
336
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
SALVADOR, Alamiro Velludo et alli. Legislação penal especial. Vol.2, 3ª edição, São Paulo: Saraiva, 2010. p.37.
15
BECHARA, ANA Elisa Liberatores Silva. Valor, Norma e Injusto Penal: Considerações sobre os elementos nor-
16
mativos do tipo objetivo no direito Penal Contemporâneo, São Paulo, Tese Apresentada à USP, para obtenção do
337
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338
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
juiz do DF decidiu que uma pessoa que publicou nota em seu blog na rede mundial de computadores contendo a
expressão “negro de alma branca”, não se amoldava ao tipo penal previsto no art. 20, § 2º, da Lei 7.716/89, mas sim,
ao tipo penal do art. 140, § 3º do Código Penal pessoa . O STJ decidiu então que o mesmo tratamento da Lei 7716
deveria ser dado ao delito de injúria racial.
19
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
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Mestre e Doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora Titular na Faculdade de Direito
da Universidade Federal de Goiás e Professora na Universidade de Ribeirão Preto. Coordenadora do Núcleo Emer-
gente Comunidades Tradicionais. CNPq Bolsista Produtividade em Pesquisa CNPq.
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Resumo
Este artigo tem como objetivo investigar a realidade contextual em que
ocorre serviços específicos para a população LGBT+, na rede pública do Dis-
trito Federal. A partir do contato inicial com gestores administrativos, um ques-
tionário foi desenvolvido, utilizando como base Intervention Mapping Appro-
ach e o framework EPIS. Direcionado para os profissionais da rede que atuam
como linha de frente do serviço, este instrumento investiga informações sobre
o design da intervenção, teorias e métodos, recursos/barreiras, resultados e
avaliação do processo. Compreender os mecanismos operantes da intervenção
em interface com os determinantes da mudança social se mostra um exercício
complexo, que demanda estratégias e adaptações aos contextos acessados. Os
resultados preliminares apresentam uma pluralidade no desenvolvimento e ma-
nutenção de intervenções disponíveis pelo Governo do Distrito Federal.
Palavras-chave:
Intervenção, LGBT+, Intervention Mapping
Abstract
This article aims to investigate the contextual reality in which specific ser-
vices are available for the LGBT+ population, in the public network of the Federal
District. From the initial contact with administrative managers, a questionnaire was
developed, based on the Intervention Mapping Approach and the EPIS framework.
Aimed at the professionals at the network who act as the front line of service, this
instrument investigates information about the design of the intervention, theories
and methods, resources/barriers, results and process evaluation. Understanding the
operative mechanism of the interventions in interface with the determinants of so-
cial change is a complex exercise that demand strategies and adaptations to the
context accessed. The preliminary results presents a plurality in the development
and maintenance of intervention available by the Federal District Government.
Key-words: Intervention, LGBT+, Intervention Mapping.
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ção. Segundo Green (2000), o uso de teorias assegura um acesso coeso aos
determinantes de efetividade da intervenção, o que previne uma interpretação
empobrecida do design e do processo de implementação. Essa investigação
das estruturas fundamentais da intervenção permite uma leitura congruente
de como os determinantes presentes impactam atores (pessoas envolvidas di-
reta e indiretamente com o funcionamento do programa) que desenvolvem e
recebem este conteúdo. Esse acesso viabiliza o aprimoramento em todos os
níveis, o que certifica uma operacionalização sinérgica dos recursos disponí-
veis diante das limitações e intempéries (Kok, Peters & Ruiter, 2017).
Neste projeto, o pressuposto teórico que estrutura parte do planejamento da
intervenção, se pauta na compreensão de gênero e sexualidade (Butler, 2003) como
construção social mediada pela subjetividade do indivíduo. A pesquisa se norteia a
partir do questionamento: “Como produzir uma intervenção para melhorar a qua-
lidade de vida da população LGBT+, frente ao preconceito?”. A proposta deste
artigo é fundamentar os aspectos operacionais da intervenção, a partir das informa-
ções coletadas e qualificadas dos profissionais envolvidos na rede socioassistencial.
A qualificação dessa avaliação possibilita a percepção das demandas
sob perspectivas diferentes, o que é necessário no processo de implementa-
ção, comparação de dados e enriquecimento da literatura. Existem, porém,
caminhos a serem construídos para que a desenvolvimento da intervenção seja
pautada em fatores contextuais da realidade do fenômeno. Não há somente
uma forma de criar e realizar uma avaliação do processo de pesquisa; escolhas
devem ser feitas a endereçar o contexto em que o objetivo e a metodologia
se relacionam. A escolha de um método de avaliação de processo deve servir
como instrumento para que o pesquisador consiga explicitar as escolhas de
pesquisa e os métodos abordados para a resposta (Grant, A. et al., 2013).
As etapas da pesquisa são monitoradas com o uso de um instrumento de
aprimoramento de processo, o framework que se baseia em evidências, EPIS:
Exploration, Preparation, Implementation, Sustainment (Aarons., Hurlburt,
& Horwitz., 2011). Os frameworks são desenvolvidos para avaliações de pro-
cesso e visam estruturar a complexidade para avançar a compreensão sobre
como intervenções funcionam (Moore et. al., 2013).
Desenvolvido e operacionalizado na área de saúde, as matrizes do EPIS fo-
ram adaptadas em forma de questionamentos sobre a direção da pesquisa, o que
possibilita um olhar metacognitivo sobre o processo. A escolha do EPIS possibilita
uma orientação simultânea do processo de implementação e dos fatores estruturais
da intervenção em si. Em outro estudo (Smith & Polaha, 2017), este método possi-
bilitou a medição e antecipação de barreiras no processo de implementação.
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PERGUNTAS OBJETIVOS
Como você descreve a atuação do Obter uma descrição dos proce-
seu trabalho? Quais serviços ofere- dimentos, protocolos e serviços
cidos? oferecidos.
Existe alguma base teórica/concei- Compreender o que estrutura con-
tual que abarque as técnicas/direcio- ceitualmente a técnica utilizada nos
namentos deste serviço? serviços.
Quais barreiras/limitações você per-
Acessar o contexto em que se pra-
cebe no desenvolvimento do seu tra-
ticam as intervenções oferecidas,
balho? (condições físicas, pessoais,
investigando possíveis barreiras.
sociais, internas ou externas)
Quais recursos você tem disponíveis? Como
facilitam o desenvolvimento do seu traba- Acessar o contexto em que se pra-
lho? (condições físicas, pessoais, sociais, ticam as intervenções oferecidas,
internas ou externas, ex: material de artes, investigando possíveis recursos.
computador, salas, pessoas, veículos, etc.)
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lise foi a articulação dos conteúdos interpretados com a fundamentação teórica, para
subsídio das argumentações críticas-reflexivas. Os temas foram avaliados em uma
segunda instância, por colaboradores do grupo de pesquisa do Laboratório de Grupo,
Família e Comunidade da Universidade de Brasília. Compreende-se a utilidade desta
metodologia diante as especificidades da coleta e do número de participantes, o que
demonstra ser eficaz nos processos descritivos-interpretativos.
Resultados
A partir do dados obtidos, em interface com o objetivo de mapear aspec-
tos estruturais da relação entre profissionais, instituição e serviço, tendências
foram identificadas e qualificadas em nove categorias que englobam os aspec-
tos estruturais explorados pela Intervention Mapping Approach. Os trechos que
narram as falas foram sinalizados de 1 à 5, em referência a cada participante.
Essencialidade da Rede
Em relação aos procedimentos e protocolos que substanciam o serviço,
a partir das descrições utilizadas para explanar estes mecanismos, foi possível
perceber uma tendência nos discursos dos profissionais: uma visão expandi-
da e sistêmica das instituições. Os relatos contemplaram que os protocolos
institucionais visam acolher a pessoa em vulnerabilidade, com o objetivo de
vinculá-la aos serviços das redes. Isso se dá por meio de encaminhamentos,
acesso a benefícios, entre outros, conforme os trechos abaixo ilustram:
[1]“Atender casos encaminhados pelos núcleos, que necessitem
de acompanhamento psicossocial. [...] Realizar encaminhamen-
tos de assistidos aos órgãos competentes para casos específicos
[...]”.
[3]“Vinculação ao serviço de Assistência Social como CREAS
[...] através da vinculação, pode se pleitear auxílios vulnerabi-
lidade, auxílio aluguel, intervenção junto a defensoria pública
para troca do nome e processo transexualizador. ”;
[5]“Atuação coletiva com foco na fiscalização e implementação
de políticas públicas.”.
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Fundamentação Político-Legal
Sobre as bases teóricas/conceituais que fundamentam as técnicas e prá-
ticas, os serviços investigados relatam semelhanças. Observa-se que os dispo-
sitivos que oferecem inserção na rede a partir de serviços psicossociais e ju-
rídicos, relatam não possuir uma fundamentação teórica científica específica,
porém, pautam suas ações nos princípios e disposições legais que amparam
as políticas assistenciais:
[1] “Não existe uma base teórica.”
[2] “Quanto à adolescência utiliza-se técnicas de manejo de gru-
po e o acolhimento individual às demandas.”;
[3]“Sim, o SUAS (Sistema Único de Assistência Social), através
dele podemos direcionar cada caso.”;
[4]“Leis, decretos de garantia de direitos da população vulne-
rável”;
[5]“A nossa atuação tem enfoque nos marcos legais e constitucional.
Toda a atuação se desenvolve por intermédio de ferramentas jurídicas
extrajudiciais/administrativas e judiciais.”.
Recursos
Em relação a percepção de mecanismos que contribuem para o desen-
volvimento e sustentação das intervenções, observa-se que os participantes
relatam recursos materiais e subjetivos Os recursos materiais são ferramentas
físicas e instrumentais que possuem uma funcionalidade e finalidade direta
relacionada às demandas, como o objetos e cargos técnicos como pode ser
observado nos trechos seguir:
[2] “[...] equipe multidisciplinar para atendimento[...]”;
[3] “Temos uma van que nos auxilia no transporte no DF todo,
temos o Creas da Diversidade que nos dá o suporte necessário e
a sede do Instituto que é nossa base de trabalho além da coorde-
nação e supervisão”.
[4] “Estagiários de ensino superior dos cursos de psicologia e
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Sucateamento
Quando questionados sobre as limitações que impactam diretamente a im-
plementação de suas intervenções, é possível compreender sobre suas falas, a
percepção de mecanismos relacionais internos e externos ao serviço que afetam
suas práticas. Este contexto pode ser evidenciado a partir de alguns trechos:
[2] “[...] pela falta de investimento que não se está tendo nos
serviços públicos.;
[3] “Falta de pessoal nas equipes dos equipamentos públicos para
viabilizar algumas demandas [...]”;
[4] “[...]infelizmente percebe-se que os serviços não recebem o
investimento necessário para a atuação de total qualidade, infeliz-
mente faltam diversos recursos para o funcionamento dos serviços.
[...] reduzido pessoal para a quantidade de demanda de trabalho e
também a estrutura física necessita melhorar (computador, móveis,
salas).”;
[5] “Os maiores entraves são as condições de estrutura (recursos hu-
manos e estrutura física) e a falta de efetividade do poder público.”;
“Seria necessário mais servidores e servidoras, além de melhores
condições de trabalho. [...] seria indispensável o que o Núcleo de
Direitos Humanos tivesse uma unidade de atendimento Psicossocial
exclusiva.”.
Valores Morais
A percepção dos valores morais associados às vivências sexuais não-
normativas influencia diretamente a qualidade e eficácia dos objetivos que
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Empatia / Interesse
O interesse e conforto pelo tema da diversidade, parece ser uma característi-
ca central da postura esperada do profissional. Os relatos consideram que uma pos-
tura sensível às diferenças é uma predisposição. Quando questionados sobre quais
aspectos necessários pra se trabalhar com pessoas LGBT+, eles relatam:
[2]“Ser uma pessoa com um mínimo de resolução de sua própria
sexualidade, que não se sinta agredido com a dos outros. Que se
interesse em aprofundar/estudar as questões relativas à sexualidade
e a gênero, sobretudo sobre o viés da riqueza da diversidade”
[3]“Primeiramente olhar com olhar justo, sem preconceitos, sem
julgamentos. A/O LGBTI é como qualquer outra pessoa.”
[4] “Identificação com a temática [...]”
[5] “[...]é indispensável empatia e comprometimento.”
Necessidade de Capacitação
Os participantes descrevem a importância de uma capacitação técnica
profissional para quem lida com sujeitos LGBT+, de maneira que a rede espe-
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
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âmbito acadêmico. É preciso, então, que seja de interesse das esferas gover-
namentais e da população a averiguação desses dados, por meio de estudos,
para o subsídio de financiamentos e a responsabilização dos gestores regio-
nais no processo de tomada de decisões administrativas. Logo, a dependência
da avaliação apenas na ponta do serviço impede uma construção robusta e
significativa de dados para estes aportes.
A interface produzida pelas etapas de Exploration e Implementation,
em conjunto com os conceitos abordados na Intervention Mapping Approa-
ch, possibilitou uma interpretação dos contextos em que se desenvolvem às
etapas cruciais de uma intervenção.
Considerações Finais
O processo de implementação é crucial na estabilização de um projeto,
e possibilita um território “seguro” para que o processo de intervenção ocorra.
Quando discute-se o desenvolvimento de uma intervenção complexa, o sucesso
em conseguir estruturar a base do projeto em andamento influencia as escolhas
temporais de custo e benefício; logo, possuir uma ferramenta de implementação
bem articulada com o design do projeto é uma forma de otimizar seus aspectos
operacionais e reduzir seus custos (Hoekstra et. al., 2014). Utilizar o EPIS como
componente estruturante para guiar o processo de exploração e implementação,
permite a percepção das potencialidades a serem desenvolvidas e a possíveis
barreiras a serem trabalhadas. Ainda, de acordo com as teorias discutidas so-
bre o embasamento de intervenções (Aaron et. al., 2011; Bartholomew et. al.,
2011; Moore, et. al., 2013), compreender o funcionamento da intervenção, em
interface com seus dispositivos e contextos operacionais (serviços, profissionais
e instituições) reflete sua efetividade, de forma que controle das variáveis deter-
minantes do processo conduz segurança nas etapas de implementação.
Os diferentes níveis de gestão envolvidos nos serviços podem oferecer
uma otimização do alcance e da qualidade do serviço. A partir das relações
institucionais, podemos promover uma malha na rede de serviços que possa
receber demandas que já estejam sobrecarregando os dispositivos existentes.
Em junção, as instituições podem expressar um poder interventivo enorme,
englobando interfaces de nível assistencial, psicológico e jurídico.
Qualquer pessoa pode se tornar um recurso protetivo e fortalecedor para
os que se encontram em vulnerabilidade. Nós, enquanto profissionais técnicos,
podemos contribuir tecendo caminhos que possam ser trafegados por todos.
Identificar especificidades que produzem sofrimento, qualificando em formato
de demanda, pode ser um dos primeiros passos na promoção de saúde (Poleja-
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
1. Introdução
Construímos parte de nossa história a partir dos terríveis e dolorosos
preconceitos, dos racismos, das discriminações e de seus reflexos nas rela-
ções de trabalho, produção, consumo, cidadania e política. Não é possível
pensar o Brasil, com toda a sua complexidade2, sem considerarmos o fato de
que, em grande medida, somos o que somos em decorrência desses perma-
nentes conflitos, lutas de classes e de grupos sociais, em que se consolidou o
modo brasileiro de exploração e superação, fruto das nossas próprias relações
de poder e dominação. Desde os navios negreiros que construimos a nossa
luta contra o mundo da exclusão, da discriminação e do preconceito3.
1
Advogado em Brasília-DF (www.melillo.adv.br) e analista sênior do Inteligência Política (www.inteligênciapoli-
tica.com.br)
2
Há um permanente desafio de compreender o fenômeno da complexidade para o pensamento político, cf. ZOLO,
Danilo. Democracia y complejidad. Un enfoque realista. Buenos Aires: Nueva Visión, p. 231 e ss. Há uma comple-
xidade epocal, sistêmica e epistêmica. Ela é gerada e gera as formas que se relacionam os elementos de um sistema
social e político. Quando a quantidade dos mesmos aumenta, já não é possível relacionar cada um dos elementos no
mesmo momento, com cada um dos outros elementos, nem ao mesmo tempo, com cada um dos outros, criando as-
sim uma situação de complexidade que cresce em proporções geométricas. Luhmann (1998) sustenta (p. 47): “Com-
plejidad en el sentido mencionado, significa coacción de la selección. Coacción de la selección significa contingen-
cia, y contingencia significa riesgo. Cualquier estado complejo de cosas se basa en una selección de las relaciones
entre los elementos, los cuales, a la vez, son utilizados para constituirse y conservarse. La selección sitúa y cualifica
los elementos, aunque para éstos fueran posibles otras formas de relación. Designamos este ‘ser posible también de
otro modo’ mediante un término cargado de tradición, que es el de contingencia. La contingencia advierte sobre la
posibilidad de error aun en la mejor posibilidad relacional de los elementos”. Cf. LUHMANN, Niklas. Complejidad
y modernidad: De la unidad a la diferencia. Madrid: Ed. Trotta, 1998.
3
Adoto aqui como premisssa o pensamento clássico de Florestan Fernandes. Apesar da grande tradição sociológica
deste autor em seus textos, os temas que interessam para este artigo estão reunidos aqui: FERNANDES, Florestan.
Significado do protesto negro. São Paulo: Cortez, 1989. Há uma especificidade na dimensão racial que não é en-
globada pela problemática da classe, embora as duas devam caminhar juntas. São várias as dimensões de luta. Este
pensamento geralmente é mal interpretado. Quando se destaca apenas um aspecto há um isolamento prejudicial
à luta política. É apenas na conjugação que as especificidades podem ser defendidas. Nas palavras de Fernandes:
“Muitos acham que o potencial do negro é melhor aproveitado quando ele se afirma só como raça. Mas se ele se
afirmar somente como raça ele vai se isolar. O negro deve estar junto com os grupos que podem levar o protesto
social até o fundo, pois se o negro estiver presente ele irá dinamizar o espaço político das classes trabalhadoras. É
por isso que eu acho que é o momento de um lance entre raça e classe. Não para neutralizar o elemento raça, pois se
neutralizar não haverá grupo humano que vá apresentar as reivindicações que são específicas da população negra. É
imperativo que o negro entre como e enquanto negro, mas também substancialmente como negro que faz parte das
classes despossuídas e das classes trabalhadoras e assim ele pode viver os dois papéis políticos simultaneamente e
dar maior eficácia aos dois. Se ele tentar se isolar, ele vai falar sozinho, não aproveitando o espaço político que está
373
Organizadora : Edelamare Melo
surgindo; se falar unicamente como classe ele não levantará as bandeiras que são essenciais, porque a desproporção
que existe nos padrões de carreira entre brancos e negros é enorme. Ninguém pode negar isto. É preciso que o negro
coloque seus problemas, porque na desigualdade existem os mais desiguais; e as desigualdades que afetam o negro
o afetam em termos de classe mas também de raça” (FERNANDES, 1989, p. 74-75). Essa perspectiva talvez ajude a
compreender porque, para o autor, afirmar-se politicamente somente pela raça, no Brasil, pressupõe uma utopia (cf.
FERNANDES, 1989, p. 61). O protesto negro não deve isolar raça e classe, pois na sociedade brasileira as categorias
raciais não contêm, em si e por si mesmas, uma potencialidade revolucionária: os estoques raciais perdem o seu
potencial revolucionário e diluem seu significado político como limite histórico da descolonização e da revolução
democrática quando desvinculados da estrutura de classes da sociedade brasileira, da marginalização secular que
tem vitimado o negro nas várias etapas da revolução burguesa e da exploração capitalista direta (FERNANDES,
1989). Mas as limitações e os perigos do isolamento são também identificados da perspectiva das classes sociais. Ele
aponta que é imperativo que a classe redefina sua órbita, tendo em vista a composição multirracial das populações
em que são recrutados os trabalhadores – todos os trabalhadores possuem as mesmas exigências diante do capital,
mas existem trabalhadores que possuem exigências diferenciais, e é imperativo que encontrem espaço dentro das
reivindicações de classe e das lutas de classe (FERNANDES, 1989, p. 61-62). Em uma sociedade multirracial, na
qual a morfologia da sociedade de classes ainda não fundiu todas as diferenças existentes entre os trabalhadores, a
raça também é um fator revolucionário específico. Em suma, para Florestan Fernandes classe e raça se fortalecem
reciprocamente, e combinam forças centrífugas à ordem existente. No seu projeto político viceja a ideia de jogar
contra tal ordem (contra o capital) não só o dinamismo negador da classe, mas todos os dinamismos revolucionários
possíveis, entre eles a raça. Talvez essa seja a dimensão essencial para captarmos a atualidade do seu pensamento,
nas questões aqui propostas. Antes de tudo, é preciso enfatizar que os conflitos na sociedade brasileira devem ser
evidenciados, e não poderemos fazer isso enquanto colocarmos como bem incontestável uma suposta paz e harmo-
nia sociais. Os conflitos devem ser trazidos à tona porque é através deles que as camadas desfavorecidas podem
expressar seu descontentamento, apontando os elementos estruturais que obstaculizam a sua classificação social
como sujeitos portadores de direitos. Uma sociedade sem conflitos é, fundamentalmente, não uma sociedade harmô-
nica, mas uma sociedade que reprime os anseios sociais das camadas desfavorecidas. Mas as reflexões de Florestan
Fernandes nos ajudam a delinear ainda outro aspecto desses conflitos. Trata-se de uma perspectiva que preza pela
interseccionalidade, pelo não exclusivismo no âmbito das lutas políticas. Ainda que num primeiro momento uma
perspectiva como essa possa ser vista como desmerecendo as especificidades das questões em pugna – e já vimos
que não é o caso – é preciso pensar que, numa conjuntura como a atual, em que a defesa da fragmentação das lutas
tende a obedecer interesses voltados para a conservação do atual estado de coisas, a defesa da sua interpenetrabilida-
de (não só em termos de raça e classe, mas também de gênero, orientação sexual, etnia etc.) adquire um verdadeiro
caráter democrático – quiçá revolucionário, diria talvez Florestan Fernandes, sem temer assumir corajosa e esperan-
çosamente a defesa dos interesses e valores das camadas desfavorecidas.
4
Que infelizmente não conta com todas as tradições gregas que originaram o συμπόσιον.
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Estes conceitos na experiência brasileira, com um passado colonialista, patrimonialista, autoritário e escravocrata, assumem um
sentido completamente diferente dos países centrais. No Brasil, a extrema-direita (o que chamo de atraso) e o neoconservadoris-
mo emulam várias das características do pensamento conservador, mas sempre de uma maneira farsesca, as vezes quase cômica.
Dos movimentos da Europa Oriental reproduzem a luta contra o comunismo e o antagonismo às minorias, mas num país que
nunca teve um governo comunista, ou mesmo esteve sob a ameaça efetiva de um levante “vermelho”. Do debate norte-americano,
com meio século de atraso, ressuscitam o discurso sobre a necessidade de combater os “ativismos”, que teriam hegemonizado
as universidades por meio do “marxismo cultural” e seriam responsáveis pela degradação dos valores da “verdadeira” Nação
brasileira. Por fim, mas com o sinal contrário em relação aos partidos da Europa Ocidental, seu nacionalismo populista é neo-
liberal e cosmopolita, pretendendo preterir as indústrias e o emprego nacional pelo regresso as relações econômicas norte-sul,
num papel de clara subserviência aos interesses dos EUA. Portanto, nem todo conservador pertence e se identifica com a extre-
ma-direita, ainda que, em função da atual conjuntura política e econômica, tenham formado um grande bloco que veio a eleger
esse projeto. Na minha visão, a manifestação do atraso brasileiro, ultraliberal, neopentecostal e militarista, sequer é compatível
com o pensamento conservador. Ver CASTELLO-BRANCO, José Tomaz. Conservadorismo. In: João Cardoso Rosas e Ana Rita
Ferreira (Orgs.). Ideologias políticas contemporâneas. Coimbra: Almedina, 2016. Também LÖWY, Michael. Conservadorismo e
extrema-direita na Europa e no Brasil. Serv. Soc. Soc. 2015, nº.124, pp.652-664. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/sssoc/
n124/0101-6628-sssoc-124-0652.pdf. Acesso em 20 set. 2019.
6
LACLAU, Ernesto. La razón populista. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2005.
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
7
O Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) surgiu em 1987 como uma opção de centro-esquerda, e, de acor-
do com seus fundadores a agremiação nasceu alinhada com a ideologia socialdemocrata. Contudo, desde sua origem
o partido apresentou duas diferenças fundamentais em relação aos clássicos partidos socialdemocratas europeus: (a)
não tinha muitos vínculos com movimentos trabalhistas e (b) defendia um tipo de “liberalismo” de mercado. No
decorrer de sua história, o partido muda da centroesquerda para a centrodireita demonstrando mais claramente sua
verdadeira inclinação ideológica, fato que pode ser observado no posicionamento de sua bancada, no autoposiciona-
mento e nas políticas que foram implementadas nos anos em que esteve à frente do executivo federal. A análise dos
documentos do PSDB revela que a mudança do partido não foi de algo pragmático. O partido já apresentava simpatia
às políticas prómercado em seus manifestos desde sua fundação.
8
A minha tese é que o Partido dos Trabalhadores (PT) cumpriu no Brasil de forma concentrada todas as três fases
que caracterizaram os clássicos partidos socialdemocratas na Europa: (a) uma primeira apoiada nas lutas operárias,
com forte conteúdo ideológico socialista e de oposição extraparlamentar privilegiando a ação direta, especialmente
a grevista. Essa fase foi da fundação em 1980 até 1989. Uma segunda fase (b) é a da consolidação como partido
institucional, sendo a principal força de oposição dentro do parlamento e com grande peso de deputados e de profis-
sionais políticos. Ela ocorre durante uma década de fraca mobilização social, durante os dois governos FHC, entre
1990 e 2002. A terceira é (c) da ascensão ao poder, indo de 2002 até hoje, com a descaracterização do ideário “socia-
lista” fundador em prol de um pragmatismo que levou a alianças com velhos adversários e a adoção de métodos de
corrupção, além de uma política eleitoralmente bem sucedida de assistência social junto com uma aliança estratégica
com o setor financeiro e o agronegócio.
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9
ABRANCHES, Sérgio Henrique. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados Revista de
Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, 1988, p. 5-34. Aqui, p. 21. Ver ECO, Umberto. Construir o inimigo e
outros escritos ocasionais. Lisboa: Gradiva
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ridades. Neste caso, muito comum no Brasil, os recursos públicos foram gastos,
com ou sem corrupção, privilegiando opções da máquina estatal que favoreciam
apenas um grupo muito restrito, e não toda a população, ou as parcelas da popu-
lação necessitadas das políticas públicas, como os mais empobrecidos.
De todo modo, em alguns períodos, estes contextos estavam, cada um
a seu modo, confundidos e unidos, ou separados e articulados, mas presentes
no cotidiano das relações público-privadas. Havia, como há, ilhas onde a
corrupção não estava (está) tão presente de uma forma sistêmica. Mas, no
oceano da vida brasileira, havia (como há) sempre continentes inteiros em
que a corrupção era ou é uma marca quase que indelével.
Nos últimos dois anos (2016-2018) aumentou a crise da política brasilei-
ra (impeachment em 2016) com (i) um executivo federal, com Michel Temer
(MDB) Presidente, sem quase nenhuma consistência política em termos nacio-
nais, mais empenhado em tentar escapar das várias denúncias, e (ii) a prisão de
Lula (o personagem mais relevante na política brasileira deste período que se
encerra – gostando-se ou não). Este quadro acirrou de forma muito polarizada a
percepção da população acerca da realidade, o que permitiu o surgimento de um
novo ciclo no modelo político brasileiro: o presidencialismo de colisão!
3.2. O presente: PRESIDENCIALISMO DE COLISÃO
O novo modelo político brasileiro, que denomino de presidencialismo
de colisão, coloca no centro das relações políticas a figura do “inimigo”. O
cenário é de beligerância, conflito e guerra permanente.
Quanto mais complexos são os desafios da gestão de um país, quanto
mais a sua questão social e econômica é complexa, quanto mais a sua de-
mocracia é instável, mais cuidado com o equilíbrio das forças e das relações
institucionais e nacionais é necessário para o governante. Não dá para colocar
tocar o terror do conflito todos os dias e em todas as direções.
Bolsonaro, todavia, foi eleito numa onda de polarização, desencanto
com a política e com os políticos, medo e tensão que se reproduziu no núcleo
de seu governo e no modo de fazer política. Não é mais prioridade a coalizão.
A colisão é a forma de enfrentar “tudo que está aí”.
Na lógica do atual Presidente do Brasil, se o modelo de coalizão deu
errado no passado, a única solução do presente é a colisão.
3.2.1. O inimigo como o centro da política
Há um inimigo em cada esquina. O perigo ronda todos o tempo todo.
É tempo de, sob a democracia brasileira, compreender que há uma lógica de
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10
Ver ECO, Umberto. Construir o inimigo e outros escritos ocasionais. Lisboa: Gradiva, 2011, p. 11-36.
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11
A obra Os Protocolos dos Sábios de Sião é a publicação anti-semita mais famosa e divulgada da época contempo-
rânea. Suas mentiras sobre os judeus, embora repetidamente desmentidas por estudiosos e autoridades, continuam a
circular hoje, principalmente na Internet. Os indivíduos e grupos que fazem uso dos Protocolos estão unidos por um
mesmo propósito: disseminar o ódio contra os judeus.
12
D. Sebastião (1554-1578) transformou-se num mito após o seu desaparecimento na batalha de Alcácer Quibir, no norte
de África. A sua morte abriu as portas à crise dinástica que vai colocar os reis de Espanha no trono português. À sua volta
nasceu o mito do “Sebastianismo”, a esperança de que regressaria um dia, numa manhã de nevoeiro, para salvar o país
de todos os seus problemas. No Brasil, este messianismo assumiu ares diversos e ainda hoje é parte da cultura popular.
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13
Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. O inimigo, no
campo penal, é uma construção tendencialmente estrutural dos discursos legitimadores do poder punitivo.
14
Cf. RIBEIRO, Renato Janine. A sociedade contra o social. O alto custo da vida pública no Brasil (Ensaios). São
Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 43.
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também uma identidade da dor. E a dor nos aprisiona tanto quanto os grilhões.
Ela impede que enfrentemos a liberdade e nos expressemos em uma linguagem
que possamos ter a adesão e a presença de outros grupos às nossas demandas,
que devem ser delas, não pela imposição, mas pelo convencimento democráti-
co, antes que resultado apenas de uma força. O processo só pode ser centrífugo
no campo da política se incluirmos aqueles que tanto nos excluíram.
Há uma multidão e uma multiplicidade de temas a construir. Não apenas os
nossos. Não apenas os deles. Mas isto tem que partir, metodologicamente, de nos-
sas proposições. Na história temos casos assim, como nas lutas do Congresso Na-
cional Africano (CNA), desde o século passado na África do Sul, que de uma luta
por identidade se transformou em um partido político de massas que, apesar dos
seus erros históricos, representou avanços históricos naquele país e no mundo.
O debate metodológico e estratégico, neste campo e no atual estágio, pres-
supõe uma consideração acerca de dois projetos táticos: O “consenso sobreposto”,
de origem rawlsiano, e a “interseccionalidade”, com origem no neofeminismo.
O “consenso sobreposto”, que tem a função de tornar a noção de sociedade bem
ordenada mais realista e condizente, está relacionado com o ponto de interseção no
qual diferentes grupos sociais compreendem ter algo em “comum” no que se refere às
diferentes agendas políticas. Cuida dos fatos históricos e sociais apresentados nas so-
ciedades democráticas pelo pluralismo razoável (diversidade de opiniões dos cidadãos
com relação às escolhas políticas, religiosas e morais). Independente dessa diversida-
de, a concepção política, que tem por base os elementos constitucionais essenciais,
pode ser possível, se for atingido um ponto de vista comum entre todos. É condição
necessária à consolidação dos princípios de justiça que fundariam um “novo” con-
trato social. O neocontratualismo rawlsiano pressupõe um ponto de tangência no que
se refere aos diferentes interesses e agendas políticas dos grupos sociais e, ou, ainda,
movimentos sociais organizados politicamente15.
Noutro sentido, o conceito de “interseccionalidade” elaborado por Kimber-
le Crenshaw, no início dos anos de 199016, cuja preocupação é entrelaçar distintas
formas de diferenciações sociais (e de desigualdades). Nesse contexto mais que
uma “agência interseccional” na política, temos que construir, como rumo e fator
de coesão, uma “agenda interseccional” que possa servir de base e de horizonte.
Assim, temas como “raça”, gênero e classe não serão vistos como facetas que
existem em isolamento umas das outras, pois o caráter de articulação constituirá
as próprias categorias. Elas existiriam em relações íntimas, recíprocas e contra-
15
Cf. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2016
16
CRENSHAW, Kimberle. Documento para o encontro de especialistas de em aspectos de discriminação racial
baseado no gênero. In: Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 1, n. 1, p. 171-188, maio 2002. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/ref/v10n1/11636.pdf. Acesso em: 20 set. 2019.
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Boca Preta
Milsoul Santos
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Michel Gherman1
Rosiane Rodrigues de Almeida2
Marcos Fábio Rezende Correia3
1
Professor Doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisador do Núcleo Interdisciplinar
de Estudos Judaicos (NIEJ/UFRJ)
2
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense, Bolsista CA-
PES, pesquisadora do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INEAC/UFF)
3
Mestre em Desenvolvimento e Gestão Social pela Escola de Administração da UFBA e pesquisador do Núcleo Interdisci-
plinar de Estudos e Pesquisa Onilê da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia (EAUFBA)
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
401
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5
Ver: https://www.conjur.com.br/2005-nov-09/mpf_tenta_suspender_venda_livro_edir_macedo, Acesso em
21/08/2019.
402
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C3%A1-em-2016/a-18271632
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tler/a-18081085
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t/a-17358821
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go/a-18346321
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debate-liberdade-expressao
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tempo da delicadeza
Geovana Pires
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
RACISMO DIGITAL
Paola Cantarini
Willis S. Guerra Filho
Resumo
A inteligência artificial vem sendo utilizada cada vez mais na solução de
casos jurídicos. Mas, quem vigia, controla e se responsabiliza pelos algoritmos no
caso de respostas racistas, machistas, sexistas ou discriminatórias? Sabe-se que
a discriminação socioeconômica, racial ou de gênero vem ocorrendo de forma
muito frequente na utilização do sistema da inteligência artificial. As tecnologias
digitais de comunicação e a ideologia do Vale do Silício são racializadas, pois
reforçam a produção de um imaginário social racista. Trata-se, pois, em um pri-
meiro momento, de investigar a dimensão ética e moral da automação e digitali-
zação, envolvendo a incorporação aos sistemas inteligentes de valores humanos
(machine ethics), o uso indiscriminado e a mercantilização, sem responsabilidade
e sem controle de nossos dados pessoais por empresas como Google e Facebook,
a concretização do direito a dados pessoais como direito humano e direito funda-
mental, a correlação de tal temática, com o uso discriminatório, racista ou sexistas
em casos jurídicos decididos por meio da inteligência artificial, envolvendo dados
obtidos por meio da mídia digital. As mídias integram o Direito, pois também
o constroem, porquanto são meios de comunicação privilegiados na sociedade
contemporânea, sendo sua linguagem mais amplamente divulgada, e o Direito é
linguagem, com função similar. Em um segundo momento, busca-se verificar se
estaríamos diante de um ponto de mutação, de uma nova virada autopoiética, em
um momento de ponto crítico na forma de produção do Direito e de como este é
interpretado e aplicado. Questiona-se: o desenvolvimento indiscriminado e sem
controle, totalmente desvinculado de uma fundamentação superior, ética e moral
do Direito em sua aplicação por meio da inteligência artificial, pode indicar o fim
da humanidade? Teria chegado de fato o fim da história e a morte do homem?
Trata-se do império da máquina que se aproxima, tal como vislumbrado em obras
de ficção científica? E no caso de um dano a um ser humano produzido por inte-
ligência artificial quem se responsabiliza? As máquinas podem ser consideradas
aptas a serem sujeitos de direitos, com direitos e deveres, possuem aptidão para
capacidade jurídica, a qual por sua vez pressupõe uma consciência individual au-
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cia. Começa tal processo na verdade desde a química, no século XVIII, como bem
relata Isabelle Stengers (“A invenção da Ciência”). Daí a alquimia era química, e
não há separação entre o sujeito e o objeto do estudo, do conhecimento. O Sujeito
está envolvido na sua própria transformação nos seus estudos, típica conclusão da
alquimia, a pedra filosofal buscada, seria a própria transformação pessoal durante
tal processo. Não havia distinção até o surgimento da química entre as ciências
herméticas e as ciências alquímicas. Antigamente, portanto, o objetivo da ciência
não era um objetivo econômico, utilitário como vem a se transformar após Newton.
A informática e a inteligência artificial na utilização de algoritmos para
a produção de decisões judiciais baseiam-se na matemática, ou seja, na lógica
simbólica, diferente da lógica aristotélica. A inteligência artificial é um sim-
bolismo, um pensamento abstrato. Sob o ponto de vista do formalismo não há
tanta diferença entre o Direito e a Matemática, pois ambos são formalismos,
números e normas, ambos são fórmulas.
Há uma fratura, com a divisão das culturas das ciências e das humani-
dades, promovendo uma desumanização das ciências naturais e matemáticas
e também uma atrofia do lado das humanidades, de um tipo de raciocínio
lógico-matemático que poderia em muito contribuir. Há uma dupla atrofia,
portanto. Promovendo o que é denominado já na década de 30 por Husserl
em seu livro sobre a “Crise da civilização europeia”, das matrizes europeias
ou seja, do modo ocidental de estudar a realidade, intervindo nesta realidade,
de forma diversa do que era postulado pela alquimia, antes da transformação
da ciência em algo utilitário.
Husserl assim já antecipando até mesmo as conclusões de Heidegger,
seu aluno, apontando para o problema no cerne do pensamento matemático
tendo efeitos catastróficos do ponto de vista político e social (Grande Guerra
Mundial). Isto porque a ciência ao se utilizar da lógica matemática e do sim-
bolismo e da abstração típicos da matemática, se descola do mundo da vida,
do mundo vivido, da vivência mundana, e pois, de nos seres humanos. Tal
conhecimento proveniente da ciência moderna, ao se descolar do mundo da
vida, do verdadeiro solo que justificaria toda a construção do conhecimento,
acaba se tornando um conhecimento alienado, estranho.
Trata-se do que se denomina de ciência como religião, de uma religião
científica, assumindo como verdade as fases do desenvolvimento da realida-
de, tal como se situa o pensamento e proposta epistemológica de A. Conte, e
seu positivismo. Neste sentido, a terceira fase a fase científica é tida como a
derradeira e definitiva, correspondendo a ideia de progresso. Contudo a cren-
ça na ciência promove uma crença na descrença. Uma espécie de fundamen-
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
1
The authors thank the Fundação Para a Ciência e a Tecnologia, who funded the project “The Prophetess and the
Rice Farmer: Transformations in Religion, Gender and Agriculture in Guinea-Bissau (2011-2014)” (of which R.
Sarró is the PI and M. de Barros an external advisor). This made it possible for them to conduct interviews together
and to meet several times both in Guinea-Bissau and in Lisbon. The article also draws from research conducted by
R. Sarró with the project’s researcher Marina P. Temudo in rural Guinea-Bissau. We thank Marina for sharing her
research and her data with us, and for her insightful comments to an early draft. Ambra Formenti made useful com-
ments too. Most especially, we thank Toby Green for the invitation and feedback.
423
Organizadora : Edelamare Melo
an ethnic and a religious one. In Entxale there is one mosque, one Catholic
church, one Protestant temple, many neo-Pentecostal young people who so far
have no temple and pray elsewhere, and many balobas (Kriol for traditional
shrines). Till recently, there were also members of the Kyang-yang prophetic
movement. This pluralism, common to many Bissau-Guinean villages, could
make of Guinea-Bissau a model for scholars to understand the inner workings
of religious pluralism in the complex world of today.
Religion in Guinea-Bissau: an encounter of frontiers
Like much of the Upper Guinea Coast, the region today comprising the
territory of Guinea-Bissau was in the past the scene of a meeting between three
religious frontiers. First of all, the African internal frontier, to use Kopytoff’s
category (1987), i.e., the reproduction, through segmentation and expansion,
of indigenous groups, often accompanied by the expansion of their religious
universes. The occupation of the land by the agriculturalist or agro-pastoralist
groups of Guinea-Bissau (Balanta, Fulup, Nalu, Tenda, Mandjaco, Mancanha,
Banhuns, etc.) has followed a frontier model, perfectly studied by Eve Crowley
(Crowley 1994, 2000). This expansion was accompanied by notions of spiritual
contracts discussed in the next section. The ritual workings and cosmological
contexts of “animistic” societies have been well studied by a legion of
anthropologists (for Mandjaco, see Gable 1990; Carvalho 1999; Teixeira 2001;
Constantine 2006; for the Bijagó, see Henry 1994; Pussetti 2000; for the Fulup
or Jola, see Journet-Diallo 2007; for Nalu see Temudo 2012).
Secondly, the Muslim frontier spreading westbound since the 13th
Century through a combination of the military enlargement of Muslim empires and
individual traders and clerics, some acting peacefully, some using violent jihads
(see Gaillard 1994 for a relatively recent jihad among the Beafada). Particularly
important for the understanding of the territory of what is today Guinea-Bissau
was the empire of Gabu (Caroço 1954; Lopes 1999; Costa Dias 2004), and its
internal fights between Mandingoes and Fulbe stretching back to the 18th century.
These came to a head in the 19th century, with the collapse of Kaabu at the Battle
of Kansala in 1867 following attacks by the Fulani theocracy of the Fuuta Djalon
in neighbouring Guinea. Such historical conflicts are an important context to the
unstable relationship between Mandinga and, Fulbe actors in the public sphere of
Guinea-Bissau, especially as regards the control of Islam.
The Muslim centers such as Fuuta Toro or Fuuta Djallon, or later the
Islamized Gabu, managed to control some coastal groups, such as the Nalu,
whose rulers were subjected to the Fuuta Djallon during much of the second
424
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
half of the 19th century (Sampil 1969). However, as far as coastal groups and
Islam were concerned, the Nalu were more the exception than the rule. In
most of the places in coastal Guinea-Bissau, the Muslim frontier did not reach
the coast, even if individual Muslims were reported in early sources (Horta
2004), testifying to a very old co-existence of Muslim and non-Muslim agents
even in the urban centers, largely inhabited by Catholics and Jews.
The third relevant frontier is the Christian Atlantic frontier, as old
as the history of the arrival of the Portuguese in the mid-15th Century, when
Catholicism began to be institutionally established. Both individual frontiersmen
and Portuguese institutions collaborated in the making of a Christian community
that established itself in coastal centres such as Farim, Geba, Bolama or Cacheu,
home to the oldest Catholic church in Guinea-Bissau (Vicente 1993). A Christian
Creole society, a sort of embryo of the colonial society, emerged in these sites,
monitoring the Atlantic trade and entering, often through the mediation of Cape-
Verdian agents (Djaló 2013:149), into commercial connections with hinterland
groups (Brooks 2003; Havik 2004). This proto-colonial society prefigured also
a set of relations between Creoles and natives that, much later, would be legally
enforced with the rise of colonial legal structures.2
Despite the fact that most early sources on the history of the “Guinea
of Cape Verde” (as this part of the Upper Guinea Coast was referred to) was
Catholic in authorship and intention (for a thorough analysis, see Horta 2011),
the literature on the establishment of a Catholic community in what is now
Guinea-Bissau remains scattered across archives and colonial journals (see
Vicente, nd, for a very good bibliography). Apart from the detailed historical
survey by Father Rema (Rema 1982), there has been no other systematic
work on the structure and transformations of the Catholic communities in
pre-colonial times, colonial days or the postcolony. This is problematic,
given the central place of religious practice in Guinea-Bissau, and the role
of Catholicism in the formal colonial period; for such reasons, understanding
contemporary conjunctures must engage with the religious dimension.
As far as the postcolonial dimension of Catholicism is concerned,
Koudawo (2001) offered a very good exception. Building upon previous work
by de Fonseca (1993), Koudawo undertook a thoughtful synthetic analysis of
the different phases Catholicism went through since Independence (when it
was abhorred for its colonial past and foreignness) to a relative revival during
2
The making of a Creole, originally Portuguese, community has too often taken for granted, wrongly, that, given the Ca-
tholic hegemony of Portuguese culture, this equals the making of a Christian community. This has invisible-ized the very
important Jewish diaspora along the Lusophone Upper Guinea Coast (Mark and Horta 201; Green 2012).
425
Organizadora : Edelamare Melo
the liberal opening of the 1990s, and to the solid implementation (indeed a
fully-fledged “indigenization” with the nomination of a native Bishop and
priests) in the aftermaths of the civil war of 1998-99.3 It would be necessary
to have an update to that seminal analysis.
The importance of Catholicism in the making of the Creole community
has been object of scholarly research (Brooks 2003; Havik 2005; Nafafé
2005, 2007; Sweet 2007) and is perhaps most visible in the Creole concept
for person: pekadur (literally, “sinner”), today used by all Bissau-Guineans,
Christian or not. Yet there was nevertheless a surprisingly limited pastoral
activity in colonial, Catholic-driven Guinea-Bissau (Gonçalves 1960, vol.
2: 12-13; Trajano Filho 2004; Djaló 2013: 148-152). There were isolated
missions in rural areas, as well as many individual converts among different
ethnic groups, but overall, and beyond the Papel areas close to Bissau, the
rural mission in Guinea-Bissau had little impact compared to the successful
Muslim implementation in the hinterland or to the making of robust
Catholic communities in neighbouring countries. This historical context of
the Christian Atlantic frontier is therefore important in understanding the
religious composition of the country today.
The religious ecosystem of Guinea-Bissau has always been quite
respectful towards “animistic” groups left unconverted by both Muslims and
Christians. Why? While explanations based on “resistance” come easily to
our mind (to explain, e. gr., the relative non-conversion of Balanta to Islam
or Christianity), we think that religious transformation has to be explained in
a more holistic, regional model and without falling into too heroic views of
cultural resistance. It is not only the resistance of local groups to Christianity
or to Islam that needs to be explained, but also the resistance of Muslim and
Christian actors towards entering certain zones. For instance, Djaló discusses
the explicit instructions early Catholic agents had not to leave the urban centers
(2013: 148). A holistic, regional model, combined with a careful analysis of
sources along the lines suggested by Djaló, would probably help us understand
the advantages, for all the actors involved, of keeping different cosmological
enclaves coexisting. This might explain why in certain zones some members of
the local community converted to a world religion, while others did not.
The above-mentioned Balanta are a case in point. Despite the resistance
model often imposed upon them, the fact is that many Balanta did convert to
3
Because of its mediatory role (Infanda 2009), the civil war proved a true coming-of-age for the Catholic Church
in the post-colony. Furthermore, it allowed religions to be present in the public, political sphere and consolidated
ecumenical initiatives that, up to that moment, had kept a very low profile (Augel 1996).
426
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Islam, becoming the subgroup known as Balanta Mane. The Balanta Mane
abandoned many customs and adopted Mandinga ways of life, and their language
is now substantially different from both Balanta Nhakra and Balanta Kuntoe, the
two main languages spoken by their animistic neighbours. Like those, the Balanta
Mane live in the region of Oio, which has been a kind of “buffer zone” between
the Muslim internal frontier (populated mostly by Mandinga and Fulani) and the
Coastal Christian one. The Balanta, being mostly animistic, have been object of
both Christian proselytizing (quite successfully; the current Bishop of Bissau is
a Balanta Kuntoe) and Muslim efforts in the same vein (which has been very
successful in the past among the Balanta Mane, and is being quite successful
today among the Balanta Nhakra). In Guinea-Bissau in general, Christians rarely
attempted to convert in Muslim areas,4 and Muslims proselytizers were rarely
active in Christian centers except as traders, but the buffer zone of Oio along
the Geba river and other interstitial frontiers were reservoirs for agents of both
religions where to look for in their search for converts.5
The existence of the buffer area of Oio (and other similar ones in the
country) makes us think of an important element in the religious geography
and political culture of Guinea-Bissau: the importance of mediation,
negotiation and religious compromise. The Upper Guinea Coast has too often
been analyzed in terms of polarities (coast-hinterland, landlord-stranger,
youths-elders, raider-refugee, animistic-world religious, male domain-female
domain, etc.), In reality, these oppositions are ideal types, and many possible
negotiations occur in between the two poles of each continuum. Guinea-
Bissau has been quite a good example of successful opposition management,
creating a hyper-complex cultural grid full of mediations and negotiations.
Thus, to give just a few examples, today’s bishop of Bissau, Mgr. José
Câmnate na Bissing (ordained Bishop in 2000), is a Balanta Kuntoe, a group
strongly perceived in the Bissau-Guinean public sphere as being animistic.
The leader of the National Islamic Council is a Mandinga learned man who,
despite his important role in the Muslim community, goes by the Christian
name of Armando, because he grew up in a Catholic home and is proud of
the name given by his adopting family. The recently deceased ex-President
Kumba Yala was a Balanta man who always wore the red bonnet (a symbol
4
This could be nuanced by arguing that Protestant churches did try to convert Muslims already in colonial times, as
proved in the thorough and graphic article on communication, media and propaganda by Gonçalves (1966). Howe-
ver, their success was, we suspect, minimal.
5
The “fascination” for Islamic mores among animistic Balanta of Oio was a matter that worried Governor Sarmento
Rodrigues, who, being well aware of the geographical distribution of religions in the Province he was ruling, also
noted the alliance that Christianity should establish with the animistic coastal dwellers (Rodrigues 1948).
427
Organizadora : Edelamare Melo
6
Ordained in 1977, Ferrazzetta was the first bishop of Bissau. After his death, Guinea-Bissau had two dioceses:
Bissau and Bafata. Ferrazzetta was a significant mediator in the armed conflict and an initiator of the ecumenical
spirit continued by his successors.
7
The importance of radio channels in the making of ecumenical religious publics in Guinea-Bissau is an underde-
veloped area of research (already discussed by Gonçalves in colonial days, see Gonçalves 1961:27-32 and 1966).
One of the authors (de Barros) has already started a contemporary systematic survey; future publications will follow.
428
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
429
Organizadora : Edelamare Melo
At the practical level, some religious celebrations (important Muslim and Christian
feasts) often bring people together in big ecumenical prayers. With prayer such a
key defining aspect of people’s lives, understanding the fabric of the contemporary
country and how religion might be related to political projects of stabilization is
extremely important.
Prayer is thus a very strong centripetal gluing force, but it can also become
a centrifugal drive of exclusion. Individuals or groups who do not belong to the
“people of the prayer” category are more and more ostracized and excluded
from the public sphere. This exclusion and marginality generates reactions,
such as the mimetic Kyang-yang prophetic movement discussed below, but
it can also create resentment. It also creates tensions between Muslim and
Christian proselytizers in their competition to convert “pagan” people.
Religions of prayer abhor notions of spirit contract. In Christian
theology, in particular, you can have a contractual relationship with the Devil
(the “Faustian” contract) but certainly not with God. In both Muslim and
Christian theology, God is beyond practical obligations towards humans, and
cannot be forced to abide to legalistic forms of contract. However, the strict
opposition between “prayer” and “contract” may be another one of those
ideal typical ones that work very well at the level of representations, but that
in practice are divided in many in-between solutions and situations. Many
of the Muslim practices associated with mouros (the Kriol word for what in
many parts of West Africa, including eastern Guinea-Bissau, is referred to
as marabouts) can be seen as a mixture of contract and prayer, and although
mouros are criticized by reformist Muslim leaders, they are so important
in the Bissau-Guinean public sphere (as well as in the diaspora) that their
existence, even if contested by some reformist ulema, is part and parcel of the
religious convivência, and not very aggressively tackled by anyone. The same
can be said of Catholicism, a religion based on prayer, but whose practices
are often subjected to the logics of contract, promises and torna-boka, as
Bissau-Guineans refer to the rituals one must perform in a shrine in order to
return a favour of the spirit of the place. Sometimes, even migrants who live
in Europe, who may be Muslim or Christian, must make a journey back to
the most remote village in hinterland Guinea-Bissau to perform a torna-boka.
Islamic trends: old and new
The history and workings of the expansion of Islam, sometimes referred to as
“the threat of Islam” in colonial sources (e.gr. Franklin 1956), in Guinea-Bissau has
been a topic of scholarship by colonial administrators (Rodrigues 1948; Teixeira
430
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
da Motta 1954; Brito 1957; Gonçalves 1958, 1961, 1962; Carreira 1966), as well
as by recent historians (Bowman-Hawking 1980) and anthropologists (Gaillard
1994, 2000; Johnson 2000; Costa Dias 2009). Nevertheless, despite some efforts by
recent scholars, ethnographic work is still needed to assess the relevance of Islam in
today’s public sphere.8 The available literature shows that the making of a Muslim
community in Guinea-Bissau has been extremely turbulent and fragmented since
the days of precolonial empires such as Mande, Gabu or the two Fuutas and their
fights (both internal and among each other), right through to today’s controversies
within the umma. It also shows that between the letter of the Qur’an and everyday
practices there have been many possible compromises, negotiations and processes
of cultural osmoses and symbioses, which, in their turn, have produced many
reformist Muslim movements. This is true of most of West Africa; but perhaps due
to its ethnic pluralism and to the tenacity of traditional religions, as well as to the
ability of inhabitants to adopt multiple identities and make fluid alliances, Guinea-
Bissau might offer a paradigmatic case in which to study the cultural logics beneath
Muslim incorporation, expansion, and internal debates.
The entanglement between Islam and the anti-colonial struggle has
been tackled by Garcia (2000, 2004), and its relevance to understanding later
post-colonial politics by Gaillard (2002) and Cardoso (2004). Much like
Christianity, Islam, Cardoso argues, was regarded with suspicion by the first
independent governments, largely because of its “verticality” (to use Cabral’s
formulation) and its association with colonialism (see chapter by Green, this
volume). Religion was perceived as a hindrance for the making of the homem
novo of the revolutionary future. In the 1990s, religion, like associations and
civil society in general (Barros 2012), started to have a much more accepted
presence in the public sphere. This was accentuated after the conflict of 1998/99,
when both Islam and Christianity became engaged in the political landscape.
Cardoso argues that, although the situation at the time he was writing was not
quite the same as that of Senegal (overt symbiosis between political parties
and Sufi brotherhoods), Guinea-Bissau might be going in that direction, with
similar symbioses between Islamic trends and political attitudes. Ten years after
Cardoso’s article, and basing ourselves on our field research among Muslim
agents and associations in pre-electoral Bissau in December 2013, we are
inclined to believe that the convergence between political leaders and Muslim
publics he anticipated is becoming more and more likely.
8
For some exceptions, see the recent MA thesis on early marriage among Muslim women (Borges 2009) or the
UNICEF report (Einarsdóttir et al. 2010) on the problem of the “talibé children”, i.e. young boys sent to undertake
Qur’anic training to Senegal, where they are forced to beg, a big concern in both Guinea-Bissau and Senegal.
431
Organizadora : Edelamare Melo
9
See, for instance, the 2012 entry “Muçulmanos guineenses que praticam o islão segundo regras xiitas preocupam
chefes religiosos” in the blog “Ditadura do Consenso” (http://ditaduradoconsenso.blogspot.pt/2012/07/muculma-
nos-guineenses-que-praticam-o.html) (retrieved 11 April 2014).
10
The clash between different modes of Islamic training is the object of an insightful article by Eduardo Costa Dias
(2005), astutely avoiding a facile divide between “Black Islam” and “orthodox Islam.”
432
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
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so acute that last year the two councils celebrated the tabaski (the West African name
for the annual Eid-al-Ahda feast) in different days, following different readings of
the liturgical calendar. These are divisions which have thus all followed on from the
emergence of Islam into the public sphere since 1998, and the intersection of religious
and political changes in the whole sub-region.
Religion, modernity, and connection
Perhaps because it has been such a marginal, out-of-the-way place where
for too long modernity has been beyond the reach of many of its citizens, Guinea-
Bissau has been object of some of the most innovative works on the fascination
for modernity among young Africans (Gable 1992; Bordonaro 2010). In this final
part of our chapter, we seek to show how many of the religious transformations
the country has experienced in the last 30 years can be seen as indigenous ways to
appropriate what people perceive as a modernity from which they feel excluded
and to make alliances with broader worlds, an “extroversive” attitude that has
characterized the local worlds of Guinea- Bissau since their early days.
Perhaps the most paradigmatic example of this religious appropriation of
modernity is the prophetic movement Kyang-yang (Cardoso 1992; Caellewart
2000; Temudo 2008; de Jong and Reis 2010). The Kyang-yang (a word meaning
“shadows” in Balanta) is a religious movement that affected almost exclusively
the rural Balanta. It emerged in 1984 when a woman, Ntombikte (later known as
Maria), claimed to have received commandments by God. She had thousands of
followers, who under her initial guidance (later under the guidance of other Kyang-
yang prophets, including Ntombikte’s brother) abandoned traditional religion and
converted to what, from an external point of view, was a syncretistic form of
monotheism. They mixed Muslim and Christian symbols and rituals and gave a
centrality to idioms of “prayer”. They also materialized their religion and beliefs
through sculptures and drawings. It is striking, when analyzing this imaginative
material culture, to notice how important modernity was for adepts to Kyang-
yang. It was as though Balanta farmers, aware of their marginalization from the
Bissau-Guinean public and political spheres (particularly acute in the early years
of the 1980s, after Nino’s coup d’état), attempted, through conversion, to join
the modern world they were explicitly expelled from. Through their exuberant
religious imagination, they built or designed hospitals, schools, modern homes,
and religious buildings similar to either a mosque or a Christian temple. The
movement was highly mimetic, but it had real effects on people’s lives.
The Kyang-yang gradually died out. Today it is composed of isolated
individuals living in Balanta villages, who sometimes gather in small groups
434
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
to pray, but more and more rarely so. There have been little or no conversions
over the last decade. Its gradual disappearance has been replaced, as far as young
Balanta people are concerned, by two new religious arrivals in the villages:
Pentecostalism and Islam, even in regions previously known for their fierce
opposition to Islam. These two religions are seen today (and, unlike Kyang-yang,
not only for Balanta) as local mechanisms to reach modernity and to be connected
to a wider world, effecting, probably, a much more real and less imaginative
connection than that earlier expressed by Kyang-yang prophets. In March 2011,
one single man, Maulama, a Balanta Nhakra who had studied in Morocco, where
he converted to Islam, brought Islam into his village (in the region of Oio) and
converted hundreds (some say thousands) of young people to Islam. Several
villages decided, collectively, to convert so as to have access to “hospitals,
wells, and schools”, to cite verbatim the three things their dwellers mentioned in
interviews as the main advantages of conversion (in the hope that development
agencies from other Muslim countries would help them obtain them).
The rise of new forms of Evangelism and Pentecostalism in Guiné-Bissau is
a recent boom (linked to the expansion of Brazilian churches), but it builds upon
a deeply established Protestant community that, although very small till recently,
should not be neglected (for its history, see Brierley 1955; Gonçalves 1961, 1966;
Santos 1968; Wallis 1997; Costa Dias 1999; Lima 2007). Neo-Pentecostalism often
functions to promote forms of “development” and to provide an anchorage for
young people to feel that they belong to wide networks and possibilities, being very
efficient at combining religious with other social services.11 In the island of Formosa,
for instance, the Evangelical headquarters includes a pharmacy. Evangelists also
rely on the power of the radio, and in particular it may be worth singling out the
Radio Luz. This radio was born in the 1998-99 civil war environment. It was during
the war that the Brazilian Pastor Cláudio Silva (from the Assembly of God), then in
Cape Verde, had a dream in which God commanded him to go to war-torn Guinea-
Bissau to undertake evangelical work there. TV channels, especially “Record TV”
(belonging to the Universal Church of the Kingdom of God), is also a prominent
element of evangelical action. Evangelist churches arriving from Brazil have in
their favour the fascination that Bissau-Guineans feel towards things Brazilian: the
culture, the people, the music, the tastes, and even the characteristic Brazilian accent
and way of speaking Portuguese. Brazil, a country Africans perceive as being much
11
The huge literature on (neo-) Pentecostalism in Africa is often based on a clear-cut distinction between Pentecostal
and non-Pentecostal forms of evangelical Christianity. However, in the field the line gets very blurred. Many Bis-
sau-Guineans we interviewed did not even know whether their church was Pentecostal, Evangelical, or mainstream
Protestant.
435
Organizadora : Edelamare Melo
more developed than their own, is, in itself, a symbolic mediator that allows for
Christianity to arrive to ex-Portuguese Africa without any colonialist connotation.
Brazilian religious expansion is not only a “South-South” phenomenon, but one
that gives hopes to Africans that they can reach their own way of being in the
“developed” side of the world.
These waves of modernization through religion (the semi-extinct Kyang-yang,
Pentecostalism, and Islam) have some common trends, which an help us to assess how
the country can move towards integrating this modernity with the need to find a stable
political settlement. First of all, they all share the notion that religion brings connection.
Non-Muslim and non-Christian people know that their world religious neighbors belong
to complex networks linking them to each other and to wider international circuits. Being
modern is being connected to this network and, through this connection, able to gain
access to development, wealth, and improvement of life quality.
Secondly, we find in these religious dynamics reconfigurations of age
and gender. Young people may find it easier to express and effect revolt against
their elders if they feel God is on their side. The three religious examples have
produced breaks with tradition and with kin obligations. Women, too, may find in
religion ways to organize themselves against traditionalist male hegemony. Since
its arrival in 2010, the Brazilian-initiated Evangelist organization Filhas da Sara
(Sarah’s daughters) is rooting itself in the Bissau-Guinean society and providing
women with a relatively autonomous sphere within Christian religious culture.12
Last, but not least, religion is part and parcel of the reconfiguration of alliance and
relatedness we witness in Guinea-Bissau today. New idioms of love, of individual
autonomy and of nuclear family are emerging, and religion plays a very important
role in encouraging young people to look for their partners and breaking with
traditional structures of kinship and alliance.
Christian and Muslim proselytizers are very successful at mobilizing this
need for individual autonomy in a world of equal citizens, but given the peculiar
tenacity of traditional religions in Guinea-Bissau, sometimes the dynamics are
reverted. Thus, in the largely animist Papel and Bijago regions, when people
convert to Christianity (and sometimes to Islam) but their move is felt as
unsuccessful, they may have to pay huge amounts of money and sacrifices to ask
for forgiveness and to be reconverted and reincorporated in their communities.
Conclusion
Guinea-Bissau, a small country at the edge of a big continent and of an
even bigger ocean, boasts many different religious traditions and many different
12
http://ministeriofilhasdesara.blogspot.pt/p/guine-bissau.html (retrieved 10 April 2014)
436
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
compromises. Sociologists are often puzzled to find that people, when asked
about their religion in questionnaires, do not write down “Muslim”, “Christian”
or “animist”, but rather “mixed”.13 What might a “mixed religion” be like? What
do people really mean? This must be ethnographically studied, but the use of the
concept, in itself, tells us a lot about the lived-world of contemporary Bissau-
Guineans. Their spiritual landscape offers a rich variety of discourses and
practices, and history has taught them that it is best to keep options open. Their
success, as individuals and as groups, depends on tapping from different sources
and on making simultaneous alliances (in some parts of Guinea-Bissau it is very
common to find people who send one child to the Mosque and another one to the
Catholic church, thus maximizing their and their group’s alliances). Managing
multiple identities and mastering the arts of ambiguity has long been part and
parcel of being a person on the often turbulent frontiers of the Upper Guinea Coast.
Historical work is necessary to analyze the depth of the different traditions, the
connotations some groups have inherited, the representations different religions
have had in different times, and the compromises made at specific moments.
Sociological and anthropological work is equally necessary to better understand
how this historical legacy is incorporated, what the cultural logics of religious
change and mixture are, and how the cunning ability of actors to negotiate and
to find resourceful mediations works. In the conclusion of O Mestiço e o Poder,
Tcherno Djaló warns against the potential polarization between a Luso-ized elite
and a Muslim one, and reminds that only a properly democratic institutional
setting will prevent this from becoming a political problem for the country (Djaló
2013: 273-74). Democracy is indeed necessary, but in any case Bissau-Guineans
have sufficiently demonstrated that they do not sit well in strict polarities, be
they racial, political or religious: they are very good at managing ambiguity and
mediation and at offering imaginative solutions. In the making of the modern
global world, Bissau-Guineans are better regarded as actors than as outcomes.
Their own willingness to remain actors is what lies underneath their skillful
management of alliances and extraversions and what gives rise to the religious
inventiveness of this apparently marginal, but in reality very central part of the
Atlantic world.
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
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Esta poderia ser apenas uma história do passado. Porém, hoje, mais
do que nunca, a cultura do ódio virou uma moda e um modelo de cidadania.
Hoje tanto nos meios de comunicação (jornais, rádio e TV), nas redes sociais
(WhatsApp, Twiter, Facebook) vem incentivando cada vez mais a maldade
humana. O que mais se lê e se escuta são sobre as situações alarmantes e cru-
éis que estão ocorrendo: crimes dos mais diversos, assédios, raptos e torturas.
Alguma coisa diferente da época do nazismo? Tenho minhas dúvidas...
Atualmente está em voga ser ruidoso, mal-educado, pérfido, agressivo,
descuidado, bruto, mal-humorado, impaciente, ranzinza... Não é à toa que a
moda atual busca calças rasgadas e até mesmo roupas com simbologia na-
zista ou de guerrilha. Elas falam por si só. Hoje o chique é ser assim. Todos
os tipos de mercadorias com fotos de vítimas de campos de concentração e
imagens que exaltam Hitler agora são facilmente encontrados em lojas on-li-
ne. Já existe uma tendência de moda, chamada “nazista chique”, que ganha
popularidade em todo o mundo.
Se o uso do simbolismo nazista na moda se manifestasse em ca-
sos isolados, haveria apenas um pequeno motivo de preocupação.
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
O Perdão
Após a guerra, a trajetória de Eva Kor foi muita ativa. Gerenciava suas
páginas no Facebook e no Twitter, viajava pelo mundo fazendo palestras e
documentários, escrevia livros. Dois anos após a morte de sua irmã, fundou o
museu CANDLES, dedicado à história dos experimentos nazistas com crian-
ças, a recordação e a reconciliação.
Após a morte de Miriam, Eva iniciou o caminho para a libertação, o perdão e
a cura. Em abril de 2015, viajou para a Alemanha para ser testemunha no julgamen-
to do ex-nazista, Oskar Groening. Durante o processo, ela se aproximou do homem
e o abraçou. Eva explica que percebeu que tinha o PODER de PERDOAR e PO-
DERIA USÁ-LO COMO QUISESSE. O PERDÃO a tornou mais forte, ajudou-a
a apagar lembranças terríveis e a se LIBERTAR DE SEU PASSADO TRÁGICO.
O bem e o mal sempre coexistiram dentro de nós. O mal, na visão judaica, é
a chance para crescer, evoluir e conseguir elevar a alma, desenvolver nossa capaci-
dade criativa e as habilidades de nos relacionarmos como seres vivos. Ele até tem
nome próprio: IÊTZER ARÁ. Para podermos lidar com o mal que existe em nós,
precisamos conhecer a nossa própria história de vida, de nossa família e do povo ao
qual pertencemos. Esse é o primeiro passo para que possamos ir além destes senti-
mentos que contaminam as relações pessoais, familiares e profissionais.
O mundo em que estamos vivendo neste momento, está constantemente
sendo bombardeado por notícias, imagens e fatos de morte, agressividade,
de desespero e acabam levando à desesperança e descrédito no ser humano.
Poderia parecer natural se não fosse tão cruel. Nunca houve tantas tentativas
de suicídio (“Setembro Amarelo”), casos de anorexia, bulimia etc.
O que mais temos ouvido com relação aos jovens de todos os lugares é
a falta de esperança e o descrédito nos seres humanos: “já que está tudo es-
tragado, podre mesmo, vamos lá, que eu ajudo a estragar mais”, acredito que
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Organizadora : Edelamare Melo
é isso que devem pensar. Com isso, os ataques às escolas, templos, pontos de
ônibus, táxis, caminhando nas ruas, em qualquer lugar... “esse ódio que tenho
dentro de mim não aguento mais e tenho que colocar para fora! ” Esse ódio é
um desesperado pedido de ajuda para que se faça alguma coisa.
Além disso, vejam o quanto estamos passando por crises ecológicas! To-
dos deveriam perceber o que está acontecendo na natureza. Vamos continuar nos
comportando como criancinhas e viver da misericórdia dela? Ou vamos assumir
a responsabilidade sobre nossas vidas e o planeta, nossa casa em que vivemos.
Não dá mais para acharmos que o que ocorre num país não repercute
nos outros. Estamos todos entrelaçados na teia da vida planetária. A guerra na
Síria, por exemplo, levou-os à uma fuga em massa, causando drásticas con-
sequências em diversos países. Sabemos com isso que hoje não há mais ven-
cedor; que por isso devemos nos cuidar e tentar transformar as ideias do mal.
O único escudo para a nossa sobrevivência é nossa unidade. Como está escrito:
“A principal defesa contra a calamidade é o amor e a unidade. Quando há amor, união
e amizade, nenhuma calamidade pode vir sobre eles” (Maor Vashemesh).
Como poderemos transformar toda essa maldade? O que posso fazer é
recodificar minhas ideias e percepções sobre os fatos. As boas forças são re-
veladas e você as deve usar para se transformar dentro delas. Só depende das
nossas ações. Como então transformo coisas ruins em boas?
Através da restrição. Todos nós temos capacidade e competência de con-
trolar nossos atos e com isso sublimar nossas emoções. É fundamental acreditar
na força de nossa intenção e termos clareza e fé. Então, somente com a bondade
poderemos fazer um mundo melhor. Repetimos, para isso, precisamos conter
a nossa parte malvada e transformar, ou despertar a força positiva, a força su-
perior, o amor. O que está sendo revelado agora é para nosso puro polimento.
Precisamos aprender a construir, inspirar e reviver relacionamentos amo-
rosos, elevando-nos acima do egoísmo. Precisamos aprender a entender nossa
natureza humana egoísta e por que não podemos tolerar um ao outro.
Os que desejam se submeter a esse processo precisam de um grupo onde
os participantes mostrem uns aos outros o quanto tentam superar seus próprios
desejos em benefício dos parceiros. O amor é como um animal e deve ser cons-
tantemente alimentado. Elevar-se acima do egoísmo abre novos horizontes de
acordo com o princípio: “o amor cobrirá todas as transgressões”. Um novo es-
tudo sugere um método para parar o sofrimento: simplesmente não pensar em
nós mesmos, mas nos outros. Este é o caminho para ser feliz de acordo com a
sabedoria da Cabalá. Quando nos unimos acima dos conflitos e das diferenças
de opinião, uma força positiva se espalha no mundo e pode fazer maravilhas.
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
“Se uma pessoa pega um feixe de juncos, não pode quebrá-los todos de
uma só vez. Mas, tomado um de cada vez, até um bebê os quebrará. (Midrash
Tanhuma, Nitzavim, Capítulo 1). Entendem a importância da UNIÃO?
AMOR
Então D’us, como posso estar consigo, falar, interagir, me sentir amada e prote-
gida e mesmo confiar em Ti e também querer lhe proteger e berrar aos quatro ventos
o quanto O amo, O respeito e O quero! Eu acredito na humanidade, no bem e no bom,
ENFIM busco sempre o melhor DO SER HUMANO. (Eva é um exemplo)
Reconheço o ódio.
Realizo o Perdão.
Busco a aceitação e o amor.
Para concluirmos vamos compartilhar um texto que nos nos chamou atenção
sobre o AMOR, em tempos de tantas manifestações de ódio e intolerância, que vem
do povo Na’vi, nativo de Pandora, no filme AVATAR. Ao em vez de dizer “eu te
amo”, diziam: “eu vejo você”. Ver o outro é reconhecê-lo como semelhante, é ir
além da superfície e mergulhar no SER. Significa ver o outro mais do que fisica-
mente. Significa ver um olhar amoroso dentro do outro, com compreensão, acolhi-
mento e com toda a nossa vulnerabilidade, humanidade e divindade em comum.
Eu vejo a sua dor.
Eu vejo os seus potenciais.
Eu vejo você e aceito tudo o que eu vejo, mesmo aquilo que não
me agrada, mesmo aquilo que não se encaixa nos meus padrões.
Eu vejo a sua Luz.
Eu o vejo sem lhe julgar, sem lhe culpar. Eu vejo você além de
quaisquer expectativas e projeções, pois elas podem prejudicá
-lo e esconder sua identidade mais profunda.
Eu vejo você em todas as suas dimensões e na riqueza de todas
as suas experiências.
Eu vejo você, é minha maneira de recebê-lo incondicionalmente
e, ao fazê-lo, eu permito que você se veja e perceba como você é.
Eu vejo você, significa deixar-se irradiar, sem filtros, sem más-
caras e sem medos.
Quando digo “Eu Vejo Você”, estou dizendo que estou deixando de
lado o meu julgamento, os meus preconceitos para enxergar você de verdade,
inteiramente, como você realmente é e aceito você exatamente do jeito que é.
Eu vejo você porque eu também consigo me ver. Eu o respeito, eu o
valorizo, você é importante para mim. Toda minha atenção está com você. Eu
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
“desvios sexuais” eram os mais ressaltados como perigosos, não à toa as pros-
titutas eram consideradas o grupo mais perigoso das mulheres, seguidas pelas
lésbicas ou bissexuais. Nesse sentido, pretendemos iniciar uma reflexão de
como as mulheres foram vistas, no início do século XX, e como a tentativa de
classificação da mulher criminosa colaborou para a formação de estereótipos
existentes nos dias atuais e que justificam um tratamento diferenciado social
ou penal para determinados grupos de mulheres.
2. As vítimas da herança1
O início do século XX foi marcado por políticas eugênicas e higienis-
tas na busca de uma sociedade evoluída. A medicalização das relações foi um
processo com significativas decorrências para a história da construção social
do Brasil e teve repercussão nas regras de procriação e, portanto, no papel
da mulher, considerado central, porque responsável pela transmissão da con-
formação hereditária das gerações futuras (STEPAN, 2005, p. 116). A virada
do século requereu uma mudança de comportamento e valores em busca da
proteção da “raça” e da construção de um país higienicamente adequado.
Se o foco era a “limpeza” racial, as ações foram voltadas para a valori-
zação do casamento higiênico e da garantia da reprodução entre pessoas incluí-
das no grupo das “evoluídas”, buscando formas de diminuir e/ou eliminar a re-
produção entre pessoas com “pechas” de inferioridade ou com doenças e outros
males. Dessa forma, casamentos que, até o século XIX, eram frequentes, como
entre pessoas com diferenças de idade muito grande ou parentes, passaram a
ser evitados a todo o custo sob o argumento de garantir uma prole saudável. O
médico Leonidio Ribeiro (1929, p. 23) defendeu o exame para verificação do
amadurecimento dos noivos para a procriação. Segundo ele, “Para atender ao
ponto de vista eugênico, melhor será que o casamento se faça tendo em vista
não só a perfeita saúde como o completo desenvolvimento físico de ambos os
cônjuges, especialmente no que toca ao aparelho reprodutor”. Como se vê, a
discussão não girou somente em torno da idade, mas das relações de consan-
güinidade, que eram consideradas passíveis de gerarem filhos com problemas
hereditários. De acordo com COSTA (2004, p. 218):
Compatível com a ética religiosa e social da Colônia, esta con-
cepção de casamento entrou em desuso no séc. XIX. O casal
ajustado à defesa da propriedade revelou-se canhestro na pro-
teção da infância. As preliminares do bom casamento mudaram
de tom. As razões higiênicas desarticularam as razões familiares
1
Denominação utilizada na revista Gazeta Médica da Bahia.
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
deixarem-se levar pelos vícios e pela vida livre, o que por um lado ajudava
na propagação das doenças venéreas que assolavam o período e por outro não
reproduziam e, quando o faziam, não cumpriam com o seu papel de pai. Os
celibatários também eram considerados “indesejáveis” porque muitas vezes
se entregavam às prostitutas e, ou não casavam ou, quando decidiam, já esta-
vam velhos demais para uma procriação considerada saudável.
No entanto, eram os homossexuais os mais rechaçados e punidos so-
cialmente. É interessante notar que quase sempre os argumentos para essa
“condenação pública” entravam no campo da moral subjetiva. Enquanto no
caso dos libertinos e celibatários os motivos estavam claros, no caso dos ho-
mossexuais as explicações para essa condenação maior só se explicava com
argumentos vagos e que inferiam, sobretudo na educação das famílias, a “cul-
pa” pela existência do homossexualismo crescente. Ou seja, mais um argu-
mento para o fortalecimento da família e a atenção na educação dos filhos.
Segundo Costa (2004, p. 248):
É notável como, na abordagem do homossexualismo, os mé-
dicos limitavam-se a dizer que sentiam repugnância pelos ba-
gaxas ou a compará-los à putrefação que por vezes é preciso
manear para fertilizar a terra onde vai cair a boa semente. Des-
crevia-se o tipo físico do homossexual; sua classe social; seus
costumes mundanos; sua situação econômica; seus vícios e prá-
ticas sexuais sórdidas, etc. Mas todas as hipóteses etiológicas e
terapêuticas sobre este tema médico resumiam-se, grosso modo,
à crítica aos hábitos de educação da infância e à forma como se
exercia a prostituição no Brasil.
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
2
Fundada no século XVIII pelo médico vienense Franz Joseph Gall (1758-1828). “A segunda metade do século XIX
marcou o apogeu da craniologia e da frenologia, no Brasil, como práticas científicas que, entre outros pontos, pre-
tendiam explicar diferenças étnicas e de gênero em termos de grau de inteligência; além de aptidão para atividades
específicas, saúde física e mental e até mesmo a personalidade dos indivíduos”. “A frenologia pautava-se no estudo
detalhado das características cranianas e das circunvoluções cerebrais dos indivíduos. Essa prática notabilizou-se
pela análise de cérebros de indivíduos considerados ‘geniais’, possuidores de ‘dons naturais’, e de pessoas com
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foram feitos no cérebro da mulher, para provar que teria uma massa menor que a
do homem e, por isso, seriam menos inteligentes. Broca, craniologista e médico,
estudou cérebros na segunda metade do século XIX e, numa análise comparativa,
verificou que o cérebro das mulheres teria em média 181 gramas a menos que o
masculino (14%). No entanto, suas conclusões foram questionadas, mostrando
que Broca não havia levado em conta elementos fundamentais para essa medição
como a estatura, constituição física e idade de homens e mulheres pesquisados.
Ou seja, a teoria da capacidade craniana foi contestada, através também de outros
argumentos científicos, mas nem por isso deixou de ser utilizada por uma gama de
teóricos como prova da inferioridade feminina (JAY GOULD, 2003).
As mulheres, consideradas inferiores e menos capazes, não eram considera-
das grandes ameaças sociais, ou pelo menos eram vistas como mais facilmente conti-
das e “domadas” que os homens. No entanto, crimes e criminosas surgiram ao longo
da história que fomentaram o debate com relação à existência de criminosas natas, às
causas da criminalidade feminina, aos crimes típicos de mulheres e, sobretudo aos es-
tigmas atávicos que, reunidos, identificariam a mulher delinquente. Da mesma forma
que com os homens, buscou-se definir grupo e categorias de mulheres que oferece-
riam perigo social e, portanto deveriam ser contidas. Essas características são ainda
hoje responsáveis por uma herança preconceituosa não só contra as mulheres, mas
contra determinados comportamentos ligados, sobretudo à sexualidade feminina.
3. Mães e pais higiênicos: o controle da mulher, da sexualidade e da
família.
Num período de busca pelo avanço do país, os argumentos higienistas
e eugenistas de “limpeza racial” foram condutores de reformas sociais profun-
das e importantes para se entender o papel que a mulher passou a representar
do início do século XX no país. Algumas autoras chamam esse período de
“processo de construção da domesticidade feminina” (RAGO, 1985), que teve
reflexos profundos nas políticas públicas, incluindo a trabalhista e a penal.
No campo do trabalho, as mulheres iniciaram a saída do âmbito domés-
tico no processo de industrialização, tornando mais relevante o seu trabalho na
esfera pública em meados do século XIX. É importante lembrar que o trabalho
feminino não se aprentava somente nas fábricas, mas em outros serviços, como
domésticas, comércio ambulante, costura e, muitas vezes, a prostituição3. Sobre
comportamento tido como desviante (prostitutas, assassinos, homossexuais etc.) (SÁ, SANTOS, RODRIGUES-
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
esse processo de “saída” das mulheres, há uma discussão sobre o efeito das me-
didas tomadas, com apoio da ciência e do poder público, para o retorno dessas
mulheres ao lar, como o fortalecimento do papel da amamentação e da esposa,
como veremos em seguida. Apesar de não ser o objeto direto desse estudo, parece
importante demonstrar que, apesar das medidas, as mulheres permaneceram no
mercado de trabalho, contrariando muitas discussões sobre um “retorno” femi-
nino ao lar. ABRAMO (2007), em sua tese de doutorado, discute esse período e,
demonstra, com base no Censo industrial, das primeiras décadas do século XX,
e em outros dados relevantes, que, não só as mulheres não saíram do mercado de
trabalho, como houve um leve aumento na sua participação. De fato, houve um
movimento de expulsão das mulheres das fábricas, mas elas continuaram em um
número considerável, além de ocuparem outros espaços de trabalho, que, fre-
quentemente, não eram considerados no momento de um levantamento sensitário
(RAGO, 2007). Ou seja, o retorno das mulheres ao lar e sua expulsão das indús-
trias, pode ser mais um argumento simbólico importante para fortalecer a tese da
mulher “mãe” e “esposa” do que uma realidade histórica.
No campo da sexualidade, procurava-se fortalecer o papel de mãe das
mulheres como o mais importante e essencial para o desenvolvimento das
famílias. Era esse a função a ser preservada na mulher. Já não era mais inte-
ressante apenas a procriação, mas a representação da mãe cuidadora, presente
na vida da família e na educação dos filhos. “A maternidade é o imperativo
fundamental da natureza”, dizia o médico Perrusi (1950, p. 88). A saída das
mulheres de suas casas representava uma “ameaça” ao “bem estar social”.
Porto-Carrero (1929, p. 17) afirma:
É facto evidente que a moral moderna, baseada sobre a organiza-
ção tradicional da família, afrouxa pouco a pouco. Emancipação
da mulher, cooperação desta no trabalho fora do lar, divorcio,
vida cada vez mais externa, educação dos filhos e educandá-
rios, desde as curtas edades do jardim de infância – tudo está
a demonstrar que o lar perde pouco e pouco a sua razão de ser;
que a família se torna conceito cada vez mais abstracto; que o
casamento, cada vez mais fácil de contrahir e de desfazer tende
a uma formula menos fechada, se não será o amor livre, será o
amor mais livre do que hoje.
461
Organizadora : Edelamare Melo
realizar a sua função de procriar, já para as mulheres que não tinham as carac-
terísticas desejadas, esse “instinto” não era tão evidente. As mulheres eram,
então, classificadas sob o argumento eugênico e sob a justificativa de preser-
var a prole. A maternidade passou a ser função “sagrada” da mulher e, com a
justificativa de proteger a prole, os médicos lançaram mão da necessidade de
amamentação para ampliar a ligação entre a mulher e a família, ou seja, era
só dela a responsabilidade por manter saudáveis os seus filhos. Argumentos
foram utilizados, provando que o aleitamento “mercenário”4, muito comum
no século XIX, era prejudicial às crianças e aumentava a mortalidade infantil,
além de proliferar doenças. A vida e morte das crianças passavam para mão
exclusiva da mulher e para a sua capacidade de amamentar. No dizer de Rago
(1997, p. 78), “O discurso masculino e moralizador dos médicos e sanitaris-
tas procura persuadir cientificamente a mulher, tanto da classe alta como das
camadas baixas, de sua tarefa natural de criação e de educação dos filhos”.
A figura da mãe, valorizada pela medicalização, passou a representar o
ideal de mulher, e, junto à necessidade da amamentação veio a do controle da vida
social e da sexualidade da mulher. Para ser uma boa mãe era preciso amamentar
o maior tempo possível, permanecer perto e acompanhar a educação dos filhos e,
claro, ter a sua sexualidade controlada para se aproximar à figura de “santa”, tão
desejada e buscada para as mulheres. De acordo com Costa (2004, p. 263):
Sem poderem entregar os filhos às escravas, como na Colônia, as
mulheres viram-se contraditoriamente estimuladas e impedidas de
usufruírem da sexualidade. Os higienistas ensinavam-lhes que ti-
nham o direito de gozar, mas não lhe deixavam tempo para o gozo.
Preocupados em salvar as crianças, a família e o Estado colocavam-
nas numa posição sexualmente paradoxal. Procuraram, então, abrir
válvulas de escape à insatisfação feminina, sem contudo abortarem
seus projetos familiares e populacionistas. Serviram-se novamente
da amamentação. Porém, desta vez, mostrando como a mulher po-
dia gozar sexualmente amamentando.
4
Aleitamento, comum no final do século XIX, feito, geralmente por escravas ou serviçais da elite. Quase sempre, as
amas de leite eram mulheres negras.
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
são sexual feminina. Vale ressaltar que esse processo de domesticação da mu-
lher não se deu sem questionamentos contrários. As feministas, dentre elas as
anarquistas, apontavam a necessidade do trabalho para a formação da mulher.
Segundo Rago (2007, p. 590):
Cautelosas, as feministas, que iniciaram a divulgação de seus ide-
ais na revista A Mensageira, publicada em São Paulo entre 1897 e
1900, ou posteriormente, na Revista Feminina, entre 1914 e 1936,
defendiam um discurso contrário, apontando para os benefícios do
trabalho feminino fora do lar: uma mulher profissionalmente ativa
e politicamente participante, comprometida com os problemas da
pátria, que debatia questões nacionais, certamente teria melhores
condições de desenvolver seu lado materno.
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
5
Expressão sugerida por Ferri.
467
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
5. Conclusão
Este artigo pretendeu demonstrar como as teorias da Escola Positivista e
as ligadas aos movimentos eugêncos e higienistas contribuiram para a formação de
estereótipos nas mulheres que definiram os comportamentos considerados “ideais”
e “aceitos”. Não restam dúvidas que esses argumentos, vindo da “ciência” toma-
ram força suficiente para justificar a segregação de mulheres que não obedeciam
aos padrões de esposa, mãe, heterossexual, comportada, recatada e outros sinais
favoráveis à “boa” mulher. Nesse sentido, mecanismos sociais, políticos e criminais
são criados no sentido de proteger o desenvolvimento saudável e a evolução do ser
humano, através da procriação dos grupos considerados superiores.
O processo de tentativa de evolução social criou um sistema de opressão
da mulher, sobretudo ligado a sua sexualidade, para mantê-la como mãe e esposa.
É fundamental conhecer o processo de construção das relações sociais para que
se possa compreender a origem da estigmatização e, através dela, do preconceito,
segregação e violência a que são submetidas muitas mulheres nos dias atuais. Te-
mas discutidos pela ciência no início do século XX, como raça, orientação sexual,
comportamento feminino, são temas atuais que ainda requerem um grande esfor-
ço social para serem desconstruídos como categorias que inferiorizam ou tornam
mulheres mais perigosas. Nesse sentido, o objetivo do presente artigo é contribuir
a uma análise do processo de estigmatização das mulheres para auxiliar na cons-
trução de possíveis caminhos rumo a uma sociedade sem categorização de seres
humanos como justificativa para sua segregação e violência.
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Organizadora : Edelamare Melo
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470
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004
STEPAN, Nancy Leys. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Trad.
Paulo M. Garchet. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005.
471
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
1
Cf. Luhmann, “Die Weltgesellschaft”, in: Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie, n. 57, Stuttgart: Steiner, 1971.
473
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
E é este ser assim tão confiante de si e do que tem sido capaz de fazer
que agora, com estes feitos, ameaça com a destruição total, seja de maneira
lenta, seja de algum modo mais abrupto e repentino, a existência e a perma-
nência de si mesmo, be como de todos os demais, pois se trata da destruição
de todo o planeta...
Forçoso é então reconhecer que entramos num desvio da história e
estamos perdidos, perigosamente perdidos, enquanto civilização e etnia oci-
dental, que na verdade é aquela mundial da modernidade, esteja onde estiver
no planeta, na América do Norte, Europa ou Japão, como está na Av. Paulista
e outras vias, de São Paulo e do Brasil. E quando estamos perdidos, como
sabemos, o melhor que fazemos é tentar retornar para o ponto em que nos ex-
traviamos, sendo que para mim este ponto está ali onde se deu o encontro da
Civilização Greco-Romana - cuja religiosidade, politeísta, vale lembrar, era
muito similar àquela africana, encontrando-se todas em torno Mediterrâneo –
com o monoteísmo judaico-cristão, havendo de ambas as partes um impulso
ao universalismo, sendo aquele da razão e do domínio político, de um lado,
e do outro o universalismo cristã da crença em uma verdade pessoalmente
revelada. É aqui que surge essa associação, de um lado, entre um modo impe-
rial de reger e governar, jurídico e político, e de outro lado, a que se afirmará
como uma religião verdadeira, por ser a religião da verdade, que tendo sido
negada por três séculos como verdadeira religião pelo poder imperial que
determinara a morte de seu Deus, quando finalmente foram acatados os argu-
mentos jurídicos de seus defensores, ditos apologetas, para que fosse conside-
rada religião lícita, em setenta anos passou, de proibida a obrigatória, ao ser
abraçada pelo imperador, tornando, de apostólica, militante em favor de sua
mensagem, também romana e católica (da palavra grega para “universal”).2
2
Aqui vale lembrar o quanto expõe Pierre Legendre, em O Amor do Censor. Ensaio sobre a ordem dogmática, trad.
Alduízio Menezes e Potiguara Mendes da Silveira Jr., Rio de Janeiro: Aoutra (Colégio Freudiano)/Forense Uni-
versitária, 1983, p. 56 ss., ao indicar o lugar fundador da elaboração do direito canônico por Graciano, em meados
do século XII, em decorrência da chamada “Reforma Gregoriana”, iniciada na virada do século VI para o VII
por Gregório I, ao apresentar as formulações iniciais que criariam a infalibilidade papal e a supremacia da Igreja
Católica, e completada, por assim dizer, por Gregório VII, em meados do século XI (seu pontificado vai de
1073 a 1085), o qual estabeleceu o poder dos papas sobre o poder temporal, realizando assim o que de maneira
muito fundamentada se considera a primeira grande revolução europeia, por conta do enfrentamento gerado contra
o poder fragmentado, local, dos reis, exercido juridicamente através de práticas que remontavam ao passado pagão,
bárbaro-germânico, como as ordálias (palavra derivada do germânico Gottesurtheile, ou “julgamento de Deus”). Em
decorrência da reforma, todos os homens ficaram submissos ao papa, o qual tinha o poder sobre qualquer ser viven-
te, representando a palavra de Deus, enquanto seu “vice-rei” (vicarius). Os papas passavam a ser inferiores apenas
ao próprio Deus, uma vez vencida por Gregório VII a “querela das investiduras”, que opôs o Papa ao Imperador
do Sacro-Império Romano-Germânico, pelo juramento de fidelidade do Imperador Henrique IV da Germânia em
Canossa. A Igreja Católica ganhava então um poder ilimitado, centralizando-o e prefigurando assim o poder estatal
moderno – cf. Harold J. Berman, Law and Revolution: The Formation of the Western Legal Tradition, Cambridge,
Mass./London,: Harvard University Press, 1983. Entende-se assim melhor acerto do quanto expõe Pierre Legendre,
475
Organizadora : Edelamare Melo
quando referindo a obra de Graciano (adiante novamente abordada, nas notas 15 e 16), destaca que “na mais monu-
mental, na mais complexa e na mais compreensiva divisão das ciências, o Direito canônico pode ocupar indiferen-
temente uma das dezesseis partes onde se acham contidas todas as ciências, absolutamente todas (...) uma ciência
tão natural quanto o inventário dos vegetais, (que) escamoteia aquilo de que precisamente os juristas dão conta: que
existe um saber sagrado, privilegiado e separado dos outros, em relação como o Pra-cima onde reside a Potência; só
nesse lugar aí é que se domina afinal e se justifica a Natureza. (...) Daí podem ser percebidos os limites mágicos, que
delimitam o traçado obrigatório por onde transita o discurso” (grifos do A., ob. cit., p. 56).
3
Cf. Legendre, ob. loc. ult. cit.: “O fato é que a Escolástica não operava de um modo puramente dedutivo, porém
mais sutilmente, seguindo a arte do juiz, os desvios do procedimento judiciário (...)”.
4
A propósito, cf. Martin Heidegger, Sobre o “humanismo”. Carta a Jean Beaufret, 2ª. ed. rev., trad. Rubens Eduardo
Frias, São Paulo: Centauro - 2005, p. 21, disponível em https://professorsauloalmeida.files.wordpress.com/2015/08/
cartas-sobre-o-humanismo-heidegger.pdf).
5
Trad. Rita de Cássia Amaral, São Paulo: Cia. Das Letras, 2006. Também publicado em Cadernos de Campo, São
Paulo: USP, disponível in: http://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/40311/43196.
476
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
todo,6 Roger Bastide, outro dentre diversos que estiveram no Brasil pesquisando
e lecionando, principia fazendo alusão ao dito de Nietzsche, sobre a morte de
Deus, como sendo já praticamente o mesmo daquele que à época (o texto é
oriundo de uma palestra proferida em 1973) se associava a Michel Foucault, so-
bre a morte do Homem, quando a voga estruturalista fazia eco a pronunciamen-
tos como o de Heidegger, em sua célebre carta a Jean Beaufret, asseverando o
despropósito e a impertinência do humanismo. Que o anúncio da morte de Deus
(e da religião) correspondesse ao anúncio também da morte do Homem (e do
humanismo), para Roger Bastide, seria “lógico, já que o homem só se constitui
como homem através de sua relação com os Deuses”.
E, de fato, é o que constatamos, se recorremos ao que nos ensina a an-
tropologia, uma ciência, derivada da filosofia moderna – logo, pós-cristã, isto
é, posterior e condicionada ao advento da subjetividade humana, referida ao
Deus interiorizado e encarnado do cristianismo -, que tem como pressuposto
fundamental a unidade do gênero humano, para sair em busca de regularida-
des incidindo sempre que estejamos diante dele, ou seja, de formas de se ser
humano, como nós, ainda que se pareçam tão diversas.
Em todas as formas de organização social – e o humano só se manifesta
e prospera em alguma delas – tem-se a presença do que para os seus compo-
nentes seria sagrado, índice de uma presença não-humana, a ser reverenciada,
como divindade. Na esteira de René Girard, autor de “A Violência e o Sagrado”
- tal como Michel Serres em “O Incandescente” e, de uma outra perspectiva,
Lévinas, em obra cujo título já indica a distinção proposta: “Do sagrado ao
santo” -, é preciso distinguir, no que é tido como divino e sagrado, a sacrali-
dade e a santidade. O sacro é, literalmente, o excluído, o separado, mantido de
fora do que é comum, profano – isto é, restrito aos que têm acesso ao lugar em
que, secretamente, se pratica ritos iniciáticos -, e uma tal segregação pressupõe
o emprego de violência, física ou simbólica, para que se verifique, bem como
se mantenha. É um índice da presença de uma insanidade, ameaçadora, posto
que pelo que se considera sagrado se está disposto a matar e morrer. O santo,
a santidade, como a própria etimologia sugere, ao contrário, é decorrente da
sanidade, de uma compreensão sã e salutar, salvadora, capaz de desativar os
dispositivos mortíferos que agem, sobre e através de nós, humanos.
Do que se trata, então, é de buscar uma compreensão do ser que somos,
enquanto humanos, em sua correlação com a religião, como também com o
6
“A propósito da poesia como método sociológico”, publicado originalmente em 08.02.1946, no Diário de São
Paulo, depois em Cadernos, São Paulo: Centro de Estudos Rurais e Urbanos, n. 10, 1977, p. 75 – 82, disponível in:
https://projetobrasilfranca.files.wordpress.com/2010/07/metodopoetico.pdf
477
Organizadora : Edelamare Melo
direito e com a política, entendidos como meios com que estabelecemos, com
proibições e sanções – portanto, com ameaças de exercício da violência -,
nosso relacionamento pacífico uns com os outros, tendo como garantia uma
referência externa e superior, sobreposta aos que se conflitam, em si e entre si.
Uma primeira indicação (a fim de evitar a armadilha que representam os
conceitos, algo explicitado por Hans Blumenberg,7 mas como a própria palavra
alemã para “conceito” deixa transparecer, “Begriff”, de “greiffen, agarrar, “indi-
cação” há de ser entendida, em termos que se pretende mais precisos, no sentido
em que Heidegger se referia a “formale Anzeige”, no início de sua longa carreira
filosófica,8 tomando de empréstimo e ampliando noção devida a seu Mestre, Ed-
mund Husserl, referida na “Abertura” da “Primeira Investigação (Lógica)” “ín-
dices” (Anzeigen) significativos, para distingui-los das significações já prontas
e acabadas), ou “pista” a ser seguida, aqui fornecida a título de mera sugestão,
sobre um modo de ser do humano, ou como nele podemos perceber, fenomeno-
logicamente, e com uma conotação claramente jurídica, é a de que o ser huma-
no é o ser responsável. Com essa indicação marca-se bem a sua – aliás, nossa
- diferença em relação a seres que nos são tão próximos, como são os animais.
O ser animal reage, ao invés de responder, donde não lhes podermos atribuir
responsabilidade por seus atos, embora seja comum que lhes infrinjamos puni-
ções, praticando uma espécie de “imputação objetiva”, para coibir ações suas
que repudiamos. Essa nossa característica embrica-se inextrincavelmente com
aquela outra, a liberdade, pois se nossas ações não são meras reações é porque
7
Teoria da não conceitualidade, trad. Luis Costa Lima, Belo Horizonte: EDUFMG, 2013, p. 49.
8
Jesús Adrián Escudero, tradutor espanhol da proposta de pesquisa feita por Heidegger a Natorp - “Interpretacio-
nes fenomenológicas sobre Aristóteles. Indicación de la situación hermenéutica [Informe Natorp]”, Madrid: Trotta,
2002 -, opta por termo equivalente ao nosso “anúncio” e o italiano, tal como o fizemos, por “indicação”, enquanto
na literatura nacional se encontra também a tradução de Anzeige por “indício”, não havendo propriamente um erro
nessas opções, pois na palavra original estão contidas essas outras, e não só: notificação, inclusive no sentido mesmo
jurídico, policial, é também uma tradução possível. E se “anúncio” é mais literal, em termos semânticos, e nisso se
encontra a um só tempo uma vantagem e uma desvantagem, “indício” preserva, como “indicação”, a mesma etimo-
logia do original, com a desvantagem de, na primeira palavra aludida, se ter uma alusão ao indiciário, em matéria
probatória, sendo nossa opção, também por isso, pela segunda. Com apoio em Friedrich-Wilhelm von Herrmann, em
“A idéia de fenomenologia em Heidegger e Husserl”, in Phainomenon. Revista de Fenomenologia, Lisboa: Curso
de Filosofia da Universidade de Lisboa, n. 7, 2003 (cap. III de Id., Hermeneutik und Reflexion, 2000), pode-se iden-
tificar no emprego da indicação formal, ainda que a noção seja oriunda de Husserl, o que caracterizaria a diferença
da abordagem fenomenológica de cunho reflexivo, transcendental, propugnada por este último, e aquela de seu
discípulo, de cunho hermenêutico, que permaneceria fenomenológica ao compartilhar o “princípio dos princípios”,
de “voltar às coisas mesmas”, livres dos modos como elas são conceitual ou preconceituosamente capturadas, seja
por teorias, científicas ou filosóficas, seja pelo senso comum, respectivamente. Em Husserl, ter-se-ia grosso modo,
um constante “voltar-se para dentro”, para a consciência, transcendental, a fim de fazer essa experiência de como se-
riam, ou se dariam, as “coisas mesmas”, enquanto em Heidegger ter-se-ia uma abertura para captá-las na experiência
existencial, fora (eks), a caminho (unterwegs), servindo-se para isso das referidas indicações como acenos (Winke),
“marcas no caminho” (Wegmarken), que vai se fazendo, muitas vezes desobstruindo, pela desconstrução (Abbau)
dos que já se instalaram, evitando nosso acesso à “coisa”, mesma.
478
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
são praticadas de um modo – por vezes mais, outras vezes menos – deliberado,
sendo essa faculdade deliberativa própria de um ser reflexivo, devotado ao pen-
samento. Aqui cabe destacar a relação que guarda a responsabilidade-liberdade
em que habita o ser humano com a sua natureza extraordinária. E extraordinário
entendido primeiramente de maneira neutra, literal, como o que está fora de or-
dem, sendo isso assombroso, tanto no sentido de terrificante, pois é assustador
ter a consciência de que dependemos de nossas deliberações para termos êxito
na “luta pela existência”, como também no sentido positivo, de ser maravilhoso,
tomar consciência da existência. Daí podermos concluir que, também literalmen-
te, só o ser humano existe, por estar (“sistere”) fora (“ex”) de uma ordem natural,
em que os outros seres simplesmente estão, por ser onde sobrevivem, mas não
vivem nem morrem, propriamente, apenas começam e terminam, por não se sa-
berem mortais. Acometidos dessa solidão existencial, uma resposta tipicamente
humana está em supor a existência ainda maior de outros seres, míticos, divinos,
que no animismo, tão comum e mitopoeticamente espontâneo entre os povos pri-
mevos, tribais, são associados a animais, plantas, pedras e tudo o que compõe um
mundo percebido como tão vivo quanto si mesmos, em quem, sob esse aspecto,
se reconhece uma superioridade em relação aos humanos, ao se mostrarem segu-
ros de si, de seu ser. De fato, não é nada fácil lidar com a instabilidade de ser que
é própria do ser humano, o ser que, a rigor, não é, não tem um ser, fixo, donde se
explica a criação de uma ordenação humana para nos fixar o ser, assujeitando-
nos, tornando-nos o sujeito que somos, sendo semelhantes ao(s) que nos cria(m),
pela fala que nos transmitem e nos permite construir o mundo em que habitamos,
assim econômica como ética, jurídica e politicamente.
Eis o caráter extraordinário da vida humana, dotada de subjetividade (espíri-
to, mente, consciência ou como se queira denominá-la), na qual se revelam ideias
a respeito do universo “lá fora”, bem como sobre a (ou as) divindade(s) que nos
transcende(m), como ainda, reflexivamente, sobre si mesma, em si e em outros. Tal
extraordinariedade é que nos atribui, propriamente, a responsabilidade, no sentido
de que podemos assumi-la ou não, pela liberdade co(r)respondente, imanente deste
modo de ser que somos. De antemão, no entanto, assombra-nos a possibilidade de
estarmos pondo a perder uma oportunidade absolutamente excepcional – e isso,
tanto individual como coletivamente, em escala mundial, inclusive – quando nos
conduzimos sem sequer nos preocuparmos com o significado que pode ter isso de
sermos dotados de consciência e da correlata reponsabili(ber)dade.
Referido, assim, ao que entendemos ser a relação co-institutiva entre a fa-
bulação mitopoética, a religiosidade, o direito, a política e o humano, então do que
se trata é de verificar em que medida um componente jurídico-político, junto ao
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mítico-religioso, faz-se presente para fixar, em uma ordem, tudo o que cria esse ser
criador que somos os humanos, a começar pela própria linguagem, que se origina,
originando-nos, necessariamente revestida de formalidades, segundo nos propõe
Rossenstock-Huessy, em sua obra sobre a origem da linguagem, com o caráter sa-
cramental que antes destacara Johann Georg Hamann – uma fonte pouco conside-
rada das reflexões bem mais notórias de autores contemporâneos como Walter Ben-
jamin e seu seguidor Giorgio Agamben -, pois exige já um contexto adequado para
que surja, que há de se conceber como devocional, reverente, ritualístico, mimético,
por mítico-religioso. Em um tal contexto é que, por razões fáceis de se perceber,
inserir-se-ia, para se manter e superar as adversidades, o ser que se extravia da or-
dem natural, buscando reencontrar-se, pensando reencontrá-la, criando, sem se dar
conta, outras ordens, “co-naturais”, animistas, ou sobrenaturais, transcendentes.
Assim, a política, com o direito, compõem a argamassa que cimenta
nossas relações uns com os outros, através da linguagem, em que ele se ex-
pressa e ajuda a fixar, sendo que nessa composição também se faz necessário o
fluido da religião, entendida muito simplesmente, de maneira indissociável das
práticas mágicas, com seus mitos e sua encenação, os ritos, como o faz Marcel
Mauss,9 enquanto um conjunto de crenças, cristalizadas em dogmas, dogmas
estes que também podem se revestir de conotação jurídica, donde ser na teolo-
gia e na jurisprudência, entendida como a ciência jurídica em sentido estrito,
onde se verifica a permanência de uma estrutura dogmática de conhecimento,
ou seja, de uma especulação racional sobre tais dogmas. Que não nos repugne,
neste contexto, a possibilidade de nos defrontarmos com um novo humanismo,
que entretanto não poderá incorrer em equívocos típicos dos puros humanis-
mos, ao elegerem o homem e suas capacidades como a medida com a qual se
avaliaria tudo o que nos diz respeito, tanto no campo do conhecimento, da teo-
ria, em que imperariam as ciências, como naquele da ação, da prática, em que
uma moral universalista e laica haveria de pautar nossa conduta, com pouca
consideração para com situações particulares, singulares, e também para com
as crenças que nos constituem, mesmo que sejam crenças ateístas.
Direito e política de um lado, magia e religião de outro, portanto, es-
tabelecem uma relação de simbiose, presente quando da afirmação pioneira
do humanismo pelo romano Cícero, e retomada no Renascimento, a qual se
pretendeu romper, com o humanismo da modernidade, eivado de formalismo,
sem se perceber que o lugar deixado vazio, ao lado do Direito, termina sendo
ocupado por o que se vai chamar então de ideologia, para designar esse con-
9
Cf., v.g., Oeuvres, vol. 2, Paris: Ed. de Minuit, 1968, p. 647.
480
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
10
Ed. bras. trad. Regina Schöpke et al, São Paulo: Martins Fontes, 2007.
11
Ob. cit ., p. 27 .
12
V. id. ib., p. 77 ss.
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que ainda são seguidas por multidões, inclusive de filósofos, ainda imagi-
nando Deus como a mais terrível das potências, a concluir daí que, quando
está irritado, ele deve infligir o mais terrível dos castigos. Desconsidera-se,
assim, que Deus, esse supremo ideal, deveria ser simplesmente incapaz de
fazer mal a alguém e, com ainda mais razão, de devolver o mal pelo mal.
Precisamente por se conceber Deus onipotente – em sintonia com uma li-
nhagem de pensamento que deriva da teologia metafísica tardo-medieval de
franciscanos como Duns Scot e Guilherme de Ockham, a já então chamada
via moderna, que repercute em filósofos tidos como maximamente modernos,
a exemplo de Leibniz e Kant -, portanto como o máximo de potência, Ele só
poderia infligir o mínimo de dor; isso porque, quanto maior é a força de que
se dispõe, menos se tem necessidade de despendê-la para obter determinado
efeito (princípio da economia ou parcimônia, também conhecido como “na-
valha de Ockham”). Como, além disso, vê-se n´Ele a suprema bondade, é
impossível imaginá-Lo infligindo até mesmo esse mínimo de dor. É preciso
que o pai celestial ao menos tenha, sobre os pais deste mundo, a superioridade
de não açoitar seus filhos. Enfim, como Ele é, hipoteticamente, a soberana
inteligência, por onisciente, não podemos acreditar que faça nada sem razão
(princípio da razão suficiente, de Leibniz); ora, por que razão Ele faria sofrer
inutilmente um culpado, já que isso não pode alterar o que foi feito, o passa-
do? E, de todo modo, o ocorrido não se deu com a Sua concordância? Deus
está acima de qualquer ultraje e não precisa se defender, não deve nada a
ninguém (nullius debitor est) e Ele não tem, portanto, de ferir. Daí se entende
a afirmação de Slavoj Žižek, em seu grande livro sobre Hegel, “Menos que
Nada”, de que o primeiro mandamento, “Não Matarás”, tem como primeiro
destinatário o próprio Deus.
As religiões são sempre levadas a representar o homem mau como um
titã empenhado numa luta contra o Deus em exercício do poder; uma vez que
Zeus/Júpiter saia vencedor é muito natural que, daqui por diante, ele tome
suas precauções e esmague seu adversário sob uma montanha. Mas é fazer
uma estranha ideia de Deus imaginar que ele possa lutar materialmente com
os culpados, sem perder Sua majestade e Sua santidade. A partir do momento
em que a Lei moral personificada empreende uma luta física com os culpados,
ela perde precisamente seu caráter de lei, rebaixa-se ao nível deles, decai. Um
Deus não pode lutar com um homem: Ele expõe-se a ser jogado por terra,
como foi o anjo por Jacó [Gênesis]. Ou Deus, essa lei viva, é a onipotência,
e então não podemos verdadeiramente ofendê-lo, mas ele também não nos
deve punir, ou então nós podemos alguma coisa contra Ele, e Ele não é a
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
onipotência, não é absoluto, não é (esse) Deus. “No fundo, mesmo na moral
kantiana, a sanção é apenas um expediente supremo para justificar racional e
materialmente a lei formal de sacrifício, a lei moral. Acrescenta-se a sanção
à lei para legitimá-la”.13 Caso se queira encerrar a escalada de violência que
vem se mostrando ser a da humanidade, coibindo as ações por meio da sanção
sacrificial, originalmente voltada para – e devotada a - satisfazer divindades
em quem projetamos o ódio que nos é próprio, ter-se-ia que retribuir o mal
com o bem, com o amor, fraterno, como apregoa Guyau em texto que resume
suas ideias sobre o assunto, significativamente intitulado “Sanção de amor e
de fraternidade”.14 Ora, embora ele apenas insinue, talvez para não despertar
o desagrado de seus pares, em época de descrédito do que se pudesse consi-
derar religioso, não seria essa justamente a proposta do cristianismo?
Hoje em dia, no entanto, consideremos não ser de se dar crédito a preten-
sões, já de partida falsas (ou fracas), quando sugerem um acesso privilegiado
à verdade, logo, à (única) resposta certa para questões complexas como as que
temos de lidar na atualidade, donde a necessidade de se assumir um ponto de vis-
ta epistemologicamente democrático, radicalmente democrático, praticando uma
abertura como aquela que se encontra entre cultores das artes e do mistério.15
Isso significa que temos de promover (e nos envolvermos) em amplos de-
bates e acirrados embates, incluindo o maior número possível de posições, mes-
mo aquelas acima descritas como fracas, de forma que sem um viés ideológico
excludente possamos reunir aspectos de cada uma, a serem avaliados como cor-
retos, por critérios previamente estipulados, mas também sempre revisáveis, com
vistas à construção de respostas apropriadas a tais questões. Com tal conclusão,
somos remetidos ao nosso próximo item, onde abordaremos o que se pode con-
siderar como requisitos para que os debates e embates aqui referidos possam se
desenvolver de modo satisfatório: direitos fundamentais e cultura.
3. Direitos fundamentais e cultura.
Começando pela “cultura”, literal e etimologicamente, em certo senti-
do,remete a esse ambiente úmido, ao húmus, de onde brotamos, sendo o hú-
mus da cultura donde emerge o humano: a capacidade simbolizadora presente
na linguagem, em suas mais diversas formas (sendo o direito uma delas),
enquanto produtora (e produto) do esforço de produção de um sentido para
13
Guyau, ob. cit., p. 89 e 90
14
Ib., pp. 82 ss.
15
Sobre a importância de tal aproximação entre a criatividade artística e a radicalização da democracia v. a densa
carta de Toni Negri para Giorgio Agamben, de 07.12.1988, in: https://www.alfabeta2.it/2014/10/26/sublime/.
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Organizadora : Edelamare Melo
a existência desse ser em aberto, livre, que somos. Trata-se, assim do solo
em que nos assentamos, que cultivamos, ou deveríamos, por ser onde somos
cultivados. Há, no entanto, um outro sentido, menos evidente, menos conhe-
cido, e que quero relembrar, vindo do direito, e também da religião, por ser o
direito canônico, da origem deste, na obra magna de Graciano, do século XII,
o Decretum Gratiani, também conhecido como Concordia discordantium ca-
nonum ou Concordantia discordantium canonum,16 produzido naquela matriz
romano-cristã, dita católica, ou seja, universal, apostólica, ou seja, militante,
proselitista e elitista. Trata-se da definição de um ilícito, um pecado, um cri-
me, a ser perseguido para punir a quem, ao invés de se dedicar ao culto, ao
culto verdadeiro, católico, da verdade, revelada e anunciada, na boa nova, a
novidade, o evangelho,17 praticavam o que ali se designa, pejorativamente,
como “cultura”,18 os “pagãos”, ou seja, literalmente, aqueles dos campos e
florestas, similar àquela que foi chamada, pelos portugueses, quando a encon-
traram na África, de “feitiço”, o culto dos deuses fetiches, cultura proibida.19
Bem, o direito à cultura há então de ser visto como um direito funda-
mental que praticamente se confunde, pelo que temos exposto até aqui, com
o direito a ser humano, um ser de cultura, cultos e culturas, um ser cultural,
“culturado”, das mais diversas formas nas quais este ser plástico que somos
vamos nos tornando, nos fazendo e refazendo, neste esforço de sermos, di-
16
Ilustração de página da obra original de Graciano (aprox. 1150), prefigurando a Arbor scientiae (A árvore da ciên-
cia), de Raimundo Lúlio, um século depois (1272), em que postula a existência de princípios científicos gerais nos
quais se englobam os saberes particulares, fonte de inspiração para Leibniz em sua influente metafísica, fundante
da filosofia em língua alemã, especialmente em sua tese de doutoramento em direito, a Nova Methodus discendae
docendaeque jurisprudentiae (1617), onde se pode encontrar talvez a fonte mais remota do atual pensamento gene-
ralizado por algoritmos da cibernética. https://en.wikipedia.org/wiki/File:Treegratian.jpg
17
Note-se bem como se conectam a ideologia ou religião da modernidade, assim como seu correlato gnosiológico,
a ciência, com esta da novidade.
18
E ainda hoje reverbera a cisão entre religião e cultura, pois como me foi relatado por um pesquisador de literatura
africana, Ubiratã de Souza, quando ele esteve em Moçambique pesquisando para o seu doutoramento, teve dificul-
dade em se fazer entender com aqueles que lá lhe perguntavam por sua religião e sendo ele adepto do candomblé
dizia ser a mesma que a deles, mas para eles a suas práticas religiosas denominavam “cultura”, preservando o termo
“religião” para aquelas, que até, em geral, também dispunham, institucionais, como as cristãs, muçulmana etc.
19
Pierre Legendre, em O Amor do Censor, cit., p. 70, destaca que na obra de Graciano “a ciência selvagem, no-
meadamente citada sob a qualificação de cultura, se encontra radicalmente desintegradas por meio das doutrinas
que elucidam os procedimentos da excomunhão e da penitência. (...) Da Escolástica que gira em torno deste eixo e
segundo seu regime, podemos dizer isto: que ela abre o discurso universal das ciências, (...)”. Adiante, p. 103, o A.
refere em que consiste a “cultura” para Graciano: seguir os augúrios e interrogar o movimento das estrelas, tal como
se encontra na Causa 26, questão 2, cânon 9 – uma ciência sacrílega, portanto. E isso o faz apresentando o caso do
padre adivinho, ensandecido em sua arte e em virtude disso excomungado. “Ciência do pagão”, comenta Legendre,
na p. 239, “a cultura resume todas essas práticas (dos saberes malditos), associadas ao pecado fálico”, e transcreve a
referida passagem do Decretum, se reportando a S. Jerônimo, para quem se deve guardar o seguinte: “o fornicador
comete o pecado em seu corpo, não somente em seu próprio corpo, transformado no templo de Deus, mas também
naquele outro corpo que chamamos Igreja, corpo do Cristo. Assim, aquele que se houver maculado sexualmente
torna-se criminoso para a Igreja inteira, visto que por um único membro (o membro impuro), a mácula espalha-se
na integralidade do corpo”.
484
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
recionando-se por alguma referência, uma orientação sobre o que pode nos
acontecer, o que acontece.
Agora, os direitos fundamentais precisam ser compreendidos como
direitos que não são apenas direitos subjetivos, direitos dos sujeitos, desses
assujeitados a alguma forma de poder que os co(i)nstitui de determinado,
mas assim, também, e anteriormente, em todos os sentidos, tanto cronológico
como ontológico, essencial, como direitos dotados também de uma dimensão
objetiva. Nesta dimensão os direitos fundamentais se projetam para moldar
as estruturas de poder, a fim de que se amoldem ao respeito do ser, humano,
e outros, para que assim faça com que melhor nos desenvolvamos, experi-
mentando a nossa necessária e intrínseca liberdade, dentre as quais se destaca
a liberdade religiosa – por muitos tida como o primeiro direito humano e
fundamental a se afirmar historicamente -, a liberdade de culto, de cultura.
Daí decorre a copreensão de que não adianta haver direitos assegurados em
tratados internacionais, constituições e leis se não houverem, nesta dimensão
objetiva, instituições devidamente estruturadas para fazer valer e respeitar
tais direitos, reconhecidas como instituições que só se justificam se estiverem
a serviço de tais direitos e de seus titulares, que somos nós, os seres ameaça-
dos por definição, que por isso se tornam ameaças também – e isso sobretudo
quando não se reconhecem a igualdade, no que é fundamental, daqueles que
são aparentemente diversos, e que esta diversidade não só é inevitável como
é favorável à continuidade do nosso desenvolvimento, seres que estão, ou
estamos, por definição, sempre em desenvolvimento, em desdobramento, em
transformação em outro, em outros.
4. Igualdade racial e liberdade religiosa
Pelo que já dito aqui até o momento, neste ponto podemos ser mais bre-
ves, sustentando que a igualdade racial precisa ser, simplesmente, reconhecida
como um fato: há uma só raça humana, a raça humana, e deste ponto de vista
somos iguais, ou, se quisermos empregar termos biológicos, já que a noção é
biológica,podemos dizer que entre todos os humanos há uma tal proximidade
genética, de genótipos, que torna toda a diferença de fenótipos, de aparência, por
mais diversa que pareça, meramente isso, aparências, enganosas.
Já a liberdade religiosa é uma expressão um tanto pleonástica, pois a
religião é uma expressão maior, primeira, da liberdade, dessa característica
humana tão peculiar, tão singular, dos seres singulares, singularíssimos que
somos, e nos assustamos com isso. Desse susto surgem as religiões, como
surgiu a filosofia (na versão desta origem indicada nas obras de seus dois
485
Organizadora : Edelamare Melo
20
Cf. Peter Sloterdijk, Du musst dei Leben ändern, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2009, p. 140. Vale lembrar um
dos sentidos que autores latinos mais antigos, como Sérvio Sulpício, atribuíam à palavra religio, fazendo-a derivar
de relinquere, isto é, deixar, abandonar, relegar - cf. Giovanni Filoramo/Carlo Prandi, As Ciências das Religiões,
São Paulo: Paulus, 1999, p. 255. Os demais sentidos etimológicos aventados além de “reler”, ou seja, “observar
conscienciosamente”, respeitar a “palavra de(os) Deus(es)”, seriam “religar”, quer dizer, “vincular-se a Deus(es)
ou a eles retornar quando os pontífices (literalmente, os fazedores de pontes) firmavam os laços que amarrava a
ponte que unia o solo profano ao sagrado, e “re-eleger”, isto é, “converter-se a um novo discernimento”, os quais
são associados a Virgílio, Lactâncio e Agostinho, respectivamente, sendo também este último que irá, neste sentido,
postular por uma vera religio, a cristã. Em Tomás de Aquino, religio será entendida em um sentido mais próximo
a este último, mas com uma conotação menos intelectual e mais emocional, de adoração - cf. Matthias Lutz-Ba-
chmann, “Religião depois da Crítica à Religião”, in: Impulso. Revista de Ciências Sociais e Humanas, v. XIV, n. 34,
Piracicaba: UNIMEP, 2003, p. 14 e seg.
486
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
21
Willis Santiago Guerra Filho, Processo Constitucional e Direitos Fundamentais, São Paulo: Instituto Brasileiro de
Direito Constitucional/Celso Bastos Ed., 1999, p. 23 ss.; 7ª. ed., São Paulo: SRS, 2017, p. 44 ss., 89 ss.
22
Pablo Lucas Verdú, Curso de derecho político, vol. 2, Madrid: Tecnos, 1977, p. 532.
23
Peter Häberle, El Estado constitucional, Buenos Aires: Editorial Ástrea de Alfredo y Ricardo Depalma, 2007, §
2.º p. 84; § 54, p. 272.
24
Willis Santiago Guerra Filho, Ensaios de Teoria Constitucional, Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1989,
pp. 69 ss.; 2ª. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, pp. 65 ss.
487
Organizadora : Edelamare Melo
mento jurídico, assim como o da dignidade da pessoa humana (art. 1o., inc. III,
CR), é uma exigência inafastável da própria fórmula política adotada por nosso
constituinte, a do “Estado Democrático de Direito”, pois sem a sua utilização não
se concebe como bem realizar o mandamento básico dessa fórmula, de respeito
simultâneo dos interesses individuais, coletivos e públicos. Em sendo assim, tem-
se que o compromisso básico do Estado Democrático de Direito repousaria na
harmonização de interesses que se situam em três esferas fundamentais: a esfera
pública, ocupada pelo Estado, a esfera privada, em que se situa o indivíduo, e um
segmento intermediário, a esfera coletiva, em que se tem os interesses de indiví-
duos enquanto membros de determinados grupos, formados para a consecução de
objetivos econômicos, políticos, culturais ou outros.
É cediço que o Estado de Direito tem como viga-mestre o princípio da
legalidade. O princípio da legalidade o entendemos, na perspectiva aqui exposta,
como condicionado por aquele da proporcionalidade, a fim de que não viole o prin-
cípio da dignidade humana, pondo-se a serviço do Estado de Direito e, ao mesmo
tempo, tanto da isonomia como da segurança jurídica, em seu aspecto formal, e
também, em seu aspecto substancial, servindo ao Princípio Democrático, à morali-
dade pública e à liberdade, ao determinar que se equacione, de maneira ponderada,
a gravidade dos fatos a serem apenados e a severidade das penas ou consequências,
para que subtraiam ou restrinjam direitos fundamentais, sem fulminar a dignidade
humana do prejudicado, mas sempre em defesa de bens dignos de uma proteção
com tal magnitude, como são aqueles de interesse público e da coletividade.25
O melhor entendimento do princípio da proporcionalidade decorre de
sua aplicação a casos concretos de colisão entre princípios e direitos funda-
mentais, em situações reais, portanto, mas de antemão vale adiantar que com
esta aplicação do que se trata é de preservar a dignidade humana, que está
entronizada no núcleo essencial intangível de todos os direitos (e garantias)
fundamentais, como é aquele direito a exercer plenamente o quanto requer uma
crença religiosa, quando tal direito é ameaçado ou afrontado por quem faz isso,
ainda que invocando outros direitos, religiosos ou não, de forma abusiva.
Referências Bibliográficas
Bastide, Roger. “A propósito da poesia como método sociológico” ( publicado originalmente
em 08.02.1946, no Diário de São Paulo), in: Cadernos, São Paulo: Centro de Estudos Rurais
e Urbanos, n. 10, 1977, p. 75 – 82, disponível in: https://projetobrasilfranca.files.wordpress.
com/2010/07/metodopoetico.pdf.
25
Cf. Willis Santiago Guerra Filho, “Princípio da Proporcionalidade e Teoria do Direito”, in: Eros Roberto Grau
e Willis Santiago Guerra Filho (orgs.), Direito Constitucional. Estudos em Homenagem a Paulo Bonavides, São
Paulo, Malheiros, 2001, p. 269.
488
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Bastide, Roger. “O Sagrado Selvagem”, in: Cadernos de Campo, São Paulo: USP, disponível
in: http://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/40311/43196.
Bastide, Roger. O Sagrado Selvagem, trad. Rita de Cássia Amaral, São Paulo: Cia. Das Le-
tras, 2006.
Berman, Harold J. Law and Revolution: The Formation of the Western Legal Tradition, Cam-
bridge, Mass./London,: Harvard University Press, 1983.
Blumenbeerg, Hans. Teoria da não conceitualidade, trad. Luis Costa Lima, Belo Horizonte:
EDUFMG, 2013, p. 49.
Filoramo, Giovanni/PRANDI, Carlo. As Ciências das Religiões, São Paulo: Paulus, 1999.
Guerra Filho, Willis Santiago. Ensaios de Teoria Constitucional, Fortaleza: Imprensa Uni-
versitária da UFC, 1989.
Guerra Filho, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais, São Paulo:
Instituto Brasileiro de Direito Constitucional/Celso Bastos Ed., 1999.
Guerra Filho, Willis Santiago. “Princípio da Proporcionalidade e Teoria do Direito”, in: Eros
Roberto Grau e Willis Santiago Guerra Filho (orgs.), Direito Constitucional. Estudos em
Homenagem a Paulo Bonavides, São Paulo, Malheiros, 2001.
Guerra Filho, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais, 7ª. ed., São
Paulo: SRS, 2017.
Guerra Filho, Willis Santiago. Ensaios de Teoria Constitucional, 2ª. ed., Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2018.
Guyau, Jean-Marie. Crítica da Ideia de Sanção, trad. Regina Schöpke et al, São Paulo:
Martins Fontes, 2007.
Häberle, Peter. El Estado constitucional, Buenos Aires: Editorial Ástrea de Alfredo y Ricardo
Depalma, 2007.
Heidegger, Martin. Sobre o “humanismo”. Carta a Jean Beaufret, 2ª. ed. rev., trad. Rubens
Eduardo Frias, São Paulo: Centauro - 2005, p. 21, disponível in https://professorsauloalmei-
da.files.wordpress.com/2015/08/cartas-sobre-o-humanismo-heidegger.pdf.
Legendere, Pierre. O Amor do Censor. Ensaio sobre a ordem dogmática, trad. Alduízio Me-
nezes e Potiguara Mendes da Silveira Jr., Rio de Janeiro: Aoutra (Colégio Freudiano)/Foren-
se Universitária, 1983
489
Organizadora : Edelamare Melo
Luhmann, Niklas. “Die Weltgesellschaft”, in: Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie, n.
57, Stuttgart: Steiner, 1971.
Sloterdijk, Peter. Du musst dei Leben ändern, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2009.
Verdú, Pablo Lucas. Curso de derecho político, vol. 2, Madrid: Tecnos, 1977.
490
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Apêndice
Introdução
O projeto Ubuntu é uma proposta de promoção do trabalho decente que
tem se dado na comunidade quilombola Grotão, viabilizado pelo Ministério
Público do Trabalho (MPT) de Araguaína, pela Organização Internacional do
Trabalho (OIT) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) Araguaia-Tocantins,
com a execução técnica do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SE-
NAR) – Administração Regional do Tocantins.
Segundo o Plano Nacional de Trabalho Decente (PNTD), torna-se necessário
que o Estado brasileiro crie condições para que as relações de trabalho viabilizem “a
superação da pobreza, a redução das desigualdades sociais, a garantia da governabili-
dade democrática e o desenvolvimento sustentável” (BRASIL, 2010, p. 4). Neste mes-
mo documento é analisado inclusive o entendimento da OIT, que se baseia em quatro
pontos básicos: ater às normas de trabalho; promover emprego de qualidade; garantir
da proteção social; e viabilizar o diálogo social (BRASIL, 2010).
Naturalmente o projeto Ubuntu não consegue executar todas os pontos
apontados pela OIT, uma vez que não se trata de uma ação de geração de
emprego formal envolvendo empregador e empregado, mas busca fortalecer
a comunidade do quilombo Grotão no que tange a geração de renda (pois tra-
ta-se de uma comunidade em que os homens eram contratados por sistemas
de diárias e empreitas, com baixa remuneração e eventualmente realizando
jornadas exaustivas), redução do êxodo de quilombolas para as cidades mais
próximas, elevação da autonomia das comunidade em relação às práticas pro-
493
Organizadora : Edelamare Melo
Figura 5. Hortaliças do Projeto Ubuntu no qui- Figura 6. Cenouras do Projeto Ubuntu no quilom-
lombo Grotão no ponto de colheita. bo Grotão ainda em desenvolvimento.
Desde o ano de 2018 o NEUZA-UFT realiza trabalhos de pesquisa e
extensão no quilombo Grotão relacionado as práticas agroecológicas em con-
junto com a CPT, através de um projeto financiado pelo CNPq (Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Com isso, aprovei-
tando o diálogo já existente entre o núcleo da UFT e a comunidade, a ação de
venda dos produtos do Projeto Ubuntu começou a ser organizada.
Nesta etapa, a Dra. Cecília Amália conseguiu, junto a prefeitura de Ara-
guaína, um local para instalar a banca dos quilombolas na feira do mercado
central de Araguaína, durante a tarde de sexta e no sábado pela manhã, assim
como um veículo com motorista para transportar a produção e os vendedores
quilombolas do território para a feira (Figura 7). O NEUZA-UFT se mobilizou
para divulgar a chegada dos quilombolas na feira, conseguir caixas de madeiras
e isopor para acomodar os produtos, além de uma cotação de preço dos pro-
dutos semelhantes aos do Projeto Ubuntu comercializado por outros feirantes.
497
Organizadora : Edelamare Melo
Figura 8. Raquel, quilombola e filha da liderança Figura 9. Servidor do MPT auxiliando os vendedores
da comunidade, trabalhando na feira. quilombolas na feira do mercado central de Araguaína.
Figura 10. Saída dos vendedores Figura 11. Chegada dos vendedores quilombolas
quilombolas da feira. na sede da CPT em Araguaína.
498
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Figura 12. Instalação da banca do Projeto Ubun- Figura 13. Entrega do “Troféu Caixa Vazia” para
tu na feira do Entroncamento. os vendedores quilombolas do Grotão.
499
Organizadora : Edelamare Melo
Figura 14. Imbira sendo manipulada utilização Figura 15. Cebolas expostas na feira e amarra-
nas hortaliças. das com Imbira.
Além desses elementos, pelo fato da comunidade eventualmente levar para
a feira produtos da sociobiodiversidade quilombola, importantes para a soberania
alimentar do Grotão, como a melancia comumente chamada de Jandaia, o frango
caipira, a mandioca e o limão conhecido regionalmente como Galego.
Outro elemento de grande relevância da produção tradicional quilombola é
a produção de farinha de mandioca que estava limitada devido às más condições
da casa de farinha. Com o projeto o Ubuntu a produção de mandioca se amplia,
inclusive com espécies fornecidas pela Embrapa, além de viabilizar a aquisição de
maquinários, como o triturador e o forno, o que permitiu potencializar a produção
e da comercialização de farinha, tanto no território como nas localidades vizinhas.
Figura 16. Cesta com cajuí, limão galego e Figura 17. Melancia jandaia exposta na feira do
frango caipira. mercado central em Araguaína.
500
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Figuras 18. Filtro de água da cadeia produtiva de Figura 19. Tanque de psicultura.
psicultura.
501
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Considerações finais
Este texto apresentou a experiencia de articulação institucional entre
MPT, CPT, OIT, SENAR e NEUZA-UFT na viabilização da produção de ali-
mentos sem uso de insumos químicos, propiciando oportunidade de trabalho
decente no Quilombo do Grotão, bem como descreveu os desafios enfrenta-
dos e alguns resultados alcançados.
O projeto Ubuntu tem permitido articular trabalho decente, produção
sem agrotóxicos, fortalecimento da relação com os produtos da sociobiodi-
versidade do território, bem como a comercialização de alimentos saudáveis
nas cidades próximas ao quilombo.
Os desafios enfrentados têm sido superados pela articulação institu-
cional e pela capacidade de organização e resiliência da comunidade.
Referências Bibliográficas
Almeida, Roberto Alves. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária –
Brasil. Ministério do Trabalho e Emprego. Plano Nacional de Trabalho Decente. Brasília, 2010. Dispo-
nível em: Hiperlink, www.mte.gov.br/antd/programa_ nacional.asp. Acesso em: 02 dez. 2010.
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Organizadora : Edelamare Melo
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
MANIFESTO:
POR UM BRASIL AFRICANO MAIS JUSTO!
II COLÓQUIO GEOPOLÍTICA & CARTOGRAFIA DA
DIÁSPORA- ÁFRICA -AMÉRICA -BRASIL
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.
Milsoul Santos
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