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edelamare melo

organizadora

“negro/a, quilombola,
religioso/a de matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância
e Discriminação nas Relações de
Trabalho, Produção e Consumo.

Belo Horizonte
2019
Todos os direitos reservados à Editora RTM.
Proibida a reprodução total ou parcial, sem a autorização da Editora.

As opiniões emitidas em artigos de Revistas, Site e livros publicados pela


Editora RTM (Instituto RTM de Direito do Trabalho e Gestão Sindical) são de inteira responsabilidade de seus
autores, e não refletem necessariamente, a posição da nossa editora e de seu editor responsável.

N393 Negro/a, quilombola, religioso/a de matriz africana: racismo,


preconceito, intolerância e discriminação nas relações de trabalho,
produção e consumo. / Edelamare Melo (organizadora) – Belo
Horizonte: RTM, 2019.
498 p. : il. – Inclui bibliografia.

1. Racismo 2. Discriminação racial 3. Negros – Religião 4. Negros


- Educação 5. Discriminação no emprego 6. Quilombos – Brasil
I. Título

CDU 323.12

ISBN: 978-85-9471-108-3
Belo
Ficha catalográfica elaborada pela Horizonte
bibliotecária - 2019
Meire Luciane Lorena Queiroz CRB 6/2233.

Editoração Eletrônica e Projeto Gráfico: conselho editorial:


Amauri César Alves
Amanda Caroline Adriano Jannuzzi Moreira
capa: Àlvaro Rodrigues da Fonseca Faria Andréa de Campos Vasconcellos
Foto de capa: Jason Lowe Antônio Álvares da Silva
Antônio Fabrício de Matos Gonçalves
Fotos de jovens de terreiro: Ságàn Bruno Ferraz Hazan
editor responsável: Mário Gomes da Silva Carlos Henrique Bezerra Leite
revisão: Edelamare Melo Cláudio Jannotti da Rocha
Cleber Lucio de Almeida
Daniela Muradas Reis
Ellen Mara Ferraz Hazan
Editora RTM - Instituto RTM de Direito do Gabriela Neves Delgado
Jorge Luiz Souto Maior
Trabalho e Gestão Sindical Jose Reginaldo Inacio
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site: www.editorartm.com.br Ney Maranhão
loja Virtual : www.rtmeducacional.com.br Raimundo Cezar Britto
Raimundo Simão de Mello
Renato Cesar Cardoso
Rômulo Soares Valentini
Rosemary de Oliveira Pires
Rúbia Zanotelli de Alvarenga
Valdete Souto Severo
Vitor Salino de Moura Eça
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Apresentação

Edelamare Melo

“Negro(a), Quilombola, Religioso(a) de Matriz Africana. Preconceito,


Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e
Consumo” , é aberto com o “Padê de Exú” de Abdias Nascimento, permeado
de poesias de Milsoul Santos, Geovana Pires e de Ságàn, uma jovem de Terreiro
(Terreiro Ylè Álábásé, situado na cidade de Maragogipe, no Recôncavo
Bahiano), iniciada para o orixá Oyá, que também assina as fotos de jovens
negros e negras de comunidades tradicionais de terreiro que ilustra o livro. A
obra é o resultado do Simpósio, com o mesmo título, que foi realizado pelo
Ministério Público do Trabalho e a Escola Superior do Ministério Público da
União, em agosto de 2018. Miguel de Barros, sociólogo guineense de relevo
na contemporaneidade, nos brinda com artigo especialmente escrito para
contemplar o simpósio do ano de 2019 que, além de ampliar o seu objeto
para incluir a temática indígena, tem como tema central “Da Ancestralidade ao
Futuro”, como o Ordep Serra, antropólogo bahiano de reconhecida notoriedade,
apresenta “A Nova Luz dos Olhos Pretos do Brasil”.A obra coletiva contem
reflexões sobre as questões que afligem o povo negro, quilombola, e de terreiro,
fruto do preconceito, do racismo, e da intolerância que conduzem às diversas
formas de discriminação no mundo do trabalho e das relações de produção e
consumo. A questão de gênero, orientação sexual e identidade de gênero ganha
especial relevo, como a da reparação da escravidão negra, uma dívida social
do Estado Brasileiro, que as ações afirmativas não foram capazes de colmatar.
Também o racismo digital tem sua presença no livro, por se traduzir em um
problema que inquieta aqueles que são suas vítimas preferidas: em especial a
população negra, com destaque para os povos de terreiros que, para além, do
racismo religioso, são vitimas de crimes de ódio, em certa medidaacobertados
pelo Estado e seus agentes do sistema de justiça e de garantia de direitos. Estes
em razão do reflexo de suas crenças e sistemas de valores sobre suas atuações
institucionais porque, como proclamavam Ortega e Gasset, o homem é ele e suas
circunstâncias. A situação das mulheres encarceradas, em sua maioria negras,
é objeto de estudo, ao lado das questões relacionadas. A epistemologia NTU,
o multiculturalismo e a educação, teologia e espiritualidades afro-centradas,
o catolicismo e a diversidade étnico-racial e religiosa na pós modernidade, a

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Organizadora : Edelamare Melo

reforma trabalhista e a discriminação indireta, o direito penal da igualdade


racial, e as questões quilombolas no constitucionalismo democráticas são temas
tratados nos livros por acadêmicos de reconhecida notoriedade. Esperamos
que esta obra, como as que lhe seguirão, seja um instrumento efetivo para o
enfrentamento ao preconceito, à intolerância, ao racismo e à todas as formas
de discriminação que adoecem e matam suas vítimas; e para o fortalecimento
de uma cultura de paz e de respeito à diversidade. A diferença faz a diferença
quando o tema é igualdade, e é disto que se trata nesta obra coletiva.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Sumário

O Silêncio que grita por liberdade.....................................11


Bàbá Robinho de Otyn

Entender e Orixalidade...............................................................13
Ságàn

Padê de Exu libertador ...............................................................15


Abdias Nascimento

Agô, Abdias do Nascimento! .......................................................19


Milsoul Santos

Apresentação do 1º SIMPÓSIO “ NEGRO/A, AFRO


RELIGIOSO/A, QUILOMBOLA: DISCRIMINAÇÃO RACIAL
E RELIGIOSA NO BRASIL E SEUS REFLEXOS NO MUNDO
TRABALHO”, realizado em Brasília no período de
28 a 30.8.2019..............................................................................................23
Roseli Oliveira

NOVA LUZ NOS OLHOS NEGROS DO BRASIL. PALESTRA DE


ENCERRAMENTO DO SIMPÓSIO NEGRO [A], AFRO-RELIGIOSO
[A], QUILOMBOLA. RACISMO E INTOLERÂNCIA RELIGIOSA NO
BRASIL E SEUS REFLEXOS NO MUNDO DO TRABALHO............27
Ordep Serra

SIMPÓSIO INTERNACIONAL “Da ancestralidade ao futuro.


Riscos de destruição das matrizes culturais para
futuras gerações. Alternativas de superação”.................39
Miguel de Barros

Subjetividades e marcas urbanas em PB:


valorizando a diversidade e empoderando
identidades não hegemônicas. TECNODEPENDÊNCIA,
REDES SOCIAIS, ARTE E SEXISMO....................................................45
Ana Cristina de Sá Mello

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Organizadora : Edelamare Melo

OUTRAS ÁGUAS DE MARÇO................................................................63


Milsoul Santos

O FUNDO PATRIMONIAL DA REPARAÇÃO DA ESCRAVIDÃO....65


Antonio Gomes da Costa Neto

ORIXALIDADE..........................................................................................71
Milsoul Santos

EPISTEMOLOGIA DO NTU: UBUNTU, BISOIDADE, MACUMBA,


BATUQUE E “X” AFRICANA.................................................................73
Bas´Ilele Malomalo

MULTICULTURALISMO E EDUCAÇÃO: A CONTRIBUIÇÃO


DO CIENTISTA DA RELIGIÃO NO DEBATE SOBRE A INCLUSÃO
DAS AFRICANIDADES NO ENSINO BRASILEIRO...........................87
Bas´Ilele Malomalo

TEOLOGIA E ESPIRITUALIDADE AFRO-ANCESTRAL EM


DEFESA DE PESSOAS HOMOAFETIVAS E DESAMPARADAS......105
Bas´Ilele Malomalo

La discriminación por razones étnicas y culturales.....117


Cayetano Núñez González

AS BARREIRAS DE ACESSO AO UNIVERSO DO TRABALHO


PARA A MULHER NEGRA E AFRO-RELIGIOSA. De que
mulher negra falamos? Qual a sua história?...............129
Edelamare Melo

MANIFESTO POÉTICO DA LUTA ANTIRRACISTA .........................157


Milsoul Santos

70 ANOS DE DECLARAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS: SOBRE


O PRECONCEITO, O RACISMO, A INTOLERÂNCIA E OUTRAS
DROGAS AFINS.........................................................................................159
Edelamare Melo

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Empoderamento e Contribuição da Mulher do


Terreiro de Candomblé...............................................................193
Egbom Sandra Maria Bispo de Yemanjá

A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL NA PROTEÇÃO


À IGUALDADE ÉTNICO-RACIAL E À LIBERDADE RELIGIOSA......197
Ela Wiecko V. de Castilho

QUILOMBISMO E REPARAÇÃO DA ESCRAVIDÃO........................213


Elisa Larkin Nascimento

História da sexualidade, corporeidade e gênero.....225


Elisia Santos

Relação da violência de gênero com o aumento da


criminalização feminina e baixa empregabilidade
de mulheres egressas do sistema penitenciário da
Região Metropolitana do Rio de Janeiro........................241
Flavia da Silva Pinto

O catolicismo e a diversidade étnico-racial e


religiosa na pós-modernidade................................................251
Frei David Santos OFM

Religiões Afrodiaspóricas: negros batistas e


pentecostais em Salvador (1882-1930).....................................265
Gicélia Cruz

EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES étnico-raciais:


UM DIREITO DO BRASIL.......................................................................275
Iêda Leal de Souza

O CORPO RACIALIZADO FEMININO DE SEXUALIDADE


DISSIDENTE: As percepções de um corpo avesso..................................281
Lara Jennyfer Batista Ferreira

Breve análise da Reforma Trabalhista sob a ótica


da discriminação racial indireta.........................................291
Luana Angelo Leal
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Organizadora : Edelamare Melo

PEDAGOgIAS CIVILIZATÓRIAS DE TERREIROS:


A AFROCENTRALIDADE COMO PROJETO POLÍTICO CONTRA
O RACISMO RELIGIOSO ......................................................................303
Luís Cláudio de Oliveira

DEPOIMENTO...........................................................................................315
Adna dos Santos (Mãe Bahiana)

UNIVERSALIZAÇÃO DA NORMA MORAL ATRAVÉS DA REGRA


JURÍDICA: a disciplina do racismo e intolerância
religiosa pelo direito..................................................................319
Maria Auxiliadora Minahim

O DIREITO PENAL DA IGUALDADE RACIAL, DA LIBERDADE


RELIGIOSA E DO PATRIMÔNIO IMATERIAL DAS
COMUNIDADES TRADICIONAIS DE TERREIRO E DE
QUILOMBO. A LEI 7716, E SUAS ALTERAÇÕES. PRECEDENTES
E JURISPRUDÊNCIA DO STJ E DO STF..............................................331
Maria Auxiliadora Minahim

O RESGATE DOS QUILOMBOS NO CONSTITUCIONALISMO


DEMOCRÁTICO LATINO-AMERICANO............................................343
Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega

Comunidade LGBTI+: mapeando intervenções em


serviços públicos do Distrito Federal ...........................351
Matheus da Silva Neves

Do navio negreiro ao século XXI - provocações


democráticas à política brasileira ..................................373
Melillo Dinis do Nascimento

Boca Preta.............................................................................................391
Milsoul Santos

Das trevas à luz: entre a proibição e a crítica............395


Michel Gherman
Rosiane Rodrigues de Almeida
Marcos Fábio Rezende Correia
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

tempo da delicadeza......................................................................407
Geovana Pires

RACISMO DIGITAL.................................................................................411
Paola Cantarini
Willis S. Guerra Filho

History, Mixture, Modernity: Religious Pluralism


in Guinea-Bissau Today..................................................................423
Ramon Sarró and Miguel de Barros

ÓDIO > PERDÃO > AMOR = Cidadania ..........................................445


Ruth Grinberg
Natalia Gedanken

As infiéis: Criminalização das mulheres na primeira


metade do século XX no Brasil...............................................453
​Thaís Dumêt Faria*

Relações e Conflitos Etno-raciais. Africanidade,


Religiosidade. Direitos Fundamentais e Cultura. Igualdade
Racial e Liberdade Religiosa. Ponto e Contraponto...........473
Willis Santiago Guerra Filho*

apêndice..................................................................................................493

PROJETO UBUNTU NO QUILOMBO do GROTÃO: ARTICULAÇÃO


INSTITUCIONAL PARA A PROMOÇÃO DO TRABALHO DECENTE
E PRODUÇÃO DE ALIMENTOS LIVRES DE AGROTÓXICOS......493
Vinicius Gomes de Aguiar
Dernival Venâncio Ramos Junior
Cecília Amália Cunha Santos
Kênia Gonçalves Costa

MANIFESTO: POR UM BRASIL AFRICANO MAIS JUSTO!


II COLÓQUIO GEOPOLÍTICA & CARTOGRAFIA DA DIÁSPORA-
ÁFRICA -AMÉRICA -BRASIL.............................................................................505

verão, outono e inverno de 2019..................................................511


Milsoul Santos
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

“O Silêncio que grita por liberdade”

O livro “Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:


Preconceito, Racismo e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção
e Consumo” é ilustrado com fotos do ensaio fotográfico “O silêncio que
grita por liberdade” de autoria da jovem Ságán, Yaô de Oyá, do Terreiro Ylè
Alábásé, situado no Recôncavo Bahiano.
A história do Terreiro Ylè Álábásé, como de todos os terreiros de
candomblé, é marcada pela resistência e pela luta pela preservação e difusão
da cultura afro-brasileira, guardada por estas comunidades tradicionais a
sangue, suor e lágrimas, mas, também, com alegrias. Neste contexto nasce
o Projeto “O Silêncio que grita por liberdade”, de iniciativa e autoria da Yaô
de Oyá: Ságàn, que, por meio de ensaios fotográficos, se propõe a contribuir
para a valorização do povo de axé, o empoderamento feminino, o resgate e a
divulgação de identidades ofuscadas por um sistema marcado pelo preconceito,
estigma, racismo, discriminação e opressão. Para lograr os objetivos do
projeto, onde o silêncio grita pela liberdade de ser, jovens são retratados pela
jovem Ságàn e seus amigos e amigas que, com seus celulares, captam imagens
e sentimentos contidos e expressos nos rostos e corpos negros da juventude
de terreiro. As fotos que ilustram o livro foram selecionadas da primeira
edição do ensaio na qual são retratados rostos jovens, fundamentalmente de
mulheres, cujos ventres sagrados guardam os segredos da continuidade da
vida, que remete às história, tradição, cultura e religiosidade afro-brasileira
de culto aos Orixás. Nas fotos os rostos e corpos negros não são objetificados,
são a representação de sentimentos que saltam dos olhares, das expressões
corporais que remontam à força e determinação de nossos ancestrais negros
escravizados. Acolhamos a iniciativa da jovem Ságàn e dos seus amigos com
entusiasmo para estimular a juventude de terreiro a lutar pelos direitos de
serem e estarem livres das amarras do preconceito, do racismo, da intolerância
e da discriminação, e de viverem em uma sociedade justa e solidária na qual
impere a cultura da paz e do respeito à diferença .

Bàbá Robinho de Otyn


Babalorixá do Terreiro Ylè Álábáse

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

ENTENDER

Ságàn

Entender que é preciso cair para aprender a levantar.


Que é preciso chorar para saber o valor de um sorriso
Que é preciso perder para saber a delícia de se ter.
Entender que coisas boas acontecem. Todo dia. O tempo todo E que você
também pode ser uma delas
Entender que seu sonho não é inútil
Entender que o silêncio tem sempre razão
Entender que o processo de crescimento é demorado. E, tudo bem. Entender...é
preciso que você comece a entender quem você é. Porque você é? Porque
você está? Porque é você por você e será sempre assim. Saber agradecer e
reconhecer quem tirou você do fundo e quem te pôs lá.
Entender. Aprender. Reconhecer. Silenciar. Seguir.
Agarrar... agarrar as oportunidades que a vida dá.
Oyá soprou novos e bons ventos e me ensinou que também é possível dançar
na tempestade. Porque ela é. Porque eu sou. Porque nos somos. Obrigado .
Obrigado, Deus! Obrigado! Obrigado, ancestrais. Obrigado Vida.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Padê de Exu libertador1

Abdias  Nascimento

Ó Exu, ao bruxuleio das velas, vejo-te comer a própria mãe, vertendo o


sangue negro que a teu sangue branco enegrece, ao sangue vermelho aquece,
nas veias humanas, no corrimento menstrual.
À encruzilhada dos teus três sangues deposito este ebó preparado para
ti. Tu me ofereces?
Não recuso provar do teu mel cheirando meia-noite de marafo forte.
Sangue branco espumante das delgadas palmeiras.
Bebo em teu alguidar de prata, onde, ainda frescos, boiam o sêmen, a sali-
va, a seiva, o negro sangue que circula no âmago do ferro e explode em ilu azul
Ó, Exu-Yangui, príncipe do universo e último a nascer, receba estas
aves e os bichos de patas que trouxe para satisfazer tua voracidade ritual.
Fume destes charutos vindos da africana Bahia.
Esta flauta de Pixinguinha é para que possas chorar chorinhos
aos nossos ancestrais. Espero que estas oferendas agradem teu coração
e alegrem teu paladar. Um coração alegre é um estômago satisfeito e,
no contentamento de ambos, está a melhor predisposição para o cumprimento
das leis da retribuição, asseguradoras da harmonia cósmica.
Invocando estas leis, imploro-te Exu; plantares na minha boca o teu axé
verbal, restituindo-me a língua que era minha e ma roubaram.
Sopre, Exu, teu hálito no fundo da minha garganta, lá onde brota o bo-
tão da voz, para que o botão desabroche se abrindo na flor do meu falar antigo
por tua força devolvido.
Monta-me no axé das palavras prenhas do teu fundamento dinâmico, e
cavalgarei o infinito sobrenatural do orum, percorrerei as distâncias do nosso
aiyê feito de terra incerta e perigosa.
Fecha o meu corpo aos perigos, transporta-me nas asas da tua mobilidade ex-
pansiva, cresça-me à tua linhagem de ironia preventiva, à minha indomável paixão.
Amadureça-me à tua desabusada linguagem. Escandalizemos os puri-
tanos, desmascaremos os hipócritas, filhos da puta; assim, à catarse das im-
purezas culturais, exorcizaremos a domesticação do gesto e outras impostas
a nosso povo negro.
1
Reprodução autorizada pela IPEAFRO, detentora dos direitos autorais da obra de Abdias Nascimento.

15
Organizadora : Edelamare Melo

Teu punho sou, Exu-Pelintra, quando, desdenhando a polícia, defendes


os indefesos, vítimas dos crimes do esquadrão da morte, punhal traiçoeiro
da mão branca. Somos assassinados porque nos julgam órfãos, desrespeitam
nossa humanidade, ignorando que somos os homens negros, as mulheres ne-
gras, orgulhosos filhos e filhas do Senhor do Orum, Olorum, Pai nosso e teu,
Exu, de quem és o fruto alado da comunicação e da mensagem.
Ó, Exu, uno e onipresente em todos nós, na tua carne retalhada, espalhada
por este mundo e o outro, faça chegar ao Pai a notícia da nossa devoção, o retrato
de nossas mãos calosas, vazias da justa retribuição, transbordantes de lágrimas.
Diga ao Pai que nunca, no trabalho, descansamos. Esse contínuo fazer de
proibido lazer encheu o cofre dos exploradores.
À mais valia do nosso suor, recebemos nossa menos valia humana, na
sociedade deles.
Nossos estômagos roncam de fome e revolta nas cozinhas alheias, nas
favelas, nas prisões, nos prostíbulos.
Exiba ao Pai nossos corações feridos de angústia, nossas costas chicoteadas
ontem, no pelourinho da escravidão, hoje, no pelourinho da discriminação.
Exu, tu que és o senhor dos caminhos da libertação do teu povo, sabes
daqueles que empunharam teus ferros em brasa contra a injustiça e a opressão,
Zumbi, Luiza Mahin, Luiz Gama, Cosme Isidoro, João Cândido; sabes que
em cada coração de negro há um quilombo pulsando, em cada barraco, outro
palmares crepita os fogos de Xangô, iluminando nossa luta atual e passada.
Ofereço-te Exu, o ebó das minhas palavras neste padê que te consagra, não
eu, porém os meus e teus irmãos e irmãs em Olorum, nosso Pai, que está no Orum.
Laroiê!

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Foto cedida pela IPEAFRO
Organizadora : Edelamare Melo

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Agô, Abdias do Nascimento!

Milsoul Santos

Falar de Abdias é coisa que requer muito estudo e consequentemente,


muito conhecimento e quando ele já estava no meio do seu longo caminho,
eu não tinha nem nascido. Vinte minutos, certamente, não dá pra acessar com
êxito merecido este que participou da Frente Negra Brasileira na década de 30,
que criou o Teatro do Sentenciado na antiga Penitenciária do Carandiru no ano
de 1942 onde cumpria pena como resultado de sua resistência contra o racismo.
Os próprios presos faziam os textos e a produção musical e cênica das peças
apresentadas. Ele fundou no Rio de Janeiro, em 1944, o Teatro Experimental
do Negro - TEN- entidade que rompeu a barreira racial no teatro brasileiro.
Além de levar o negro ao palco como protagonista, o TEN propiciou a criação
de textos dramáticos que incorporaram ao cânone teatral a vida e as peripécias
da população negra. Abdias, à frente do TEN com Aguinaldo Camargo, Iro-
nides Rodrigues, Arinda Serafim, Marina Gonçalves, Ruth de Souza e outros,
organizou a Convenção Nacional do Negro em 1945-46, que propôs à Assem-
bleia Nacional Constituinte de 1946 um elenco de medidas de políticas pú-
blicas voltadas às necessidades dos afrodescendentes. Jornalista de profissão,
Abdias dirigiu o jornal Quilombo: Vida, Problemas e Aspirações do Negro,
órgão de comunicação do TEN. Fundado em 1948, esse jornal foi publicado até
1950, dando notícias de atividades de alcance nacional e internacional como
concursos de beleza para mulheres negras, aulas magnas da coreógrafa Kathe-
rine Dunham, plataformas de candidatos negros de todos os partidos, casos e
exemplos de discriminação racial e notícias de artistas e intelectuais negros em
vários cantos do mundo. Mais tarde, com Guerreiro Ramos, Marietta Damas
e Guiomar Ferreira de Mattos, Abdias, Aguinaldo e Ironides à frente do TEN
organizaram eventos seminais como o 1º Congresso do Negro Brasileiro em
1950, cuja resolução demandava a criação de um Museu de Arte Negra. Esse
projeto, sob a curadoria de Abdias e Guerreiro, promoveu o concurso de arte
sobre o tema do Cristo Negro em 1955, por ocasião do 36º Congresso Euca-
rístico Mundial (reunião da igreja católica do mundo todo no Rio de Janeiro).
É, minha gente, como vimos, estamos diante de um gigante que, após
a primeira exposição da coleção Museu de Arte Negra em 1968, com obras
de artistas negros como o pintor Sebastião Januário e os escultores Agnaldo e
José Heitor da Silva, lecionou nas Universidades Yale, Wesleyan, Temple e do

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Organizadora : Edelamare Melo

Estado de Nova York, nos EUA, e na Universidade de Ifé na Nigéria. E foi na


Nigéria que, no ano de 1977, no ápice da ditadura militar, desconstruindo a fal-
sa visão de que os descendentes de africanos que viviam no Brasil se encontra-
vam numa condição favorável se comparados aos afrodescendentes que viviam
no Sul dos Estados Unidos ou na África do Sul do Apartheid, desmentindo a
teoria da dita democracia racial que vinha, ao longo do século, afirmando que o
grande problema do negro estava relacionado à pobreza e não à cor da pele, que
Abdias, no Segundo Festival de Artes e Culturas Negras, em Lagos, colocou as
coisas no lugar. Abdias que nada fez sem um grande quilombo ambulante lhe
acompanhando, Abdias, linha de frente de grandes sonhos, ponta de lança de
grandes parcerias. Abdias em vários países e eventos internacionais, inserindo
a denúncia do racismo brasileiro no contexto da luta pan-africana. Nessa mes-
ma frente de luta, desenvolvendo uma nova linguagem: a pintura.
No ano de 1978, foi lançada a primeira edição brasileira do livro O Ge-
nocídio do Negro Brasileiro, que completa agora 40 anos. Infelizmente, é de
uma pertinência, ainda muito potente e precisamos pensar num modo efetivo
de tomar o controle das mãos do racismo antes que o racismo nos destrua.
Para isso o IPEAFRO providenciou a nova edição que estamos lançando hoje
em Brasília. Também disponibilizamos a biografia de Abdias Nascimento pu-
blicada pelo Senado Federal, que testemunha o trabalho dele como primeiro
parlamentar negro comprometido com o combate ao racismo.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Apresentação do 1º SIMPÓSIO “ NEGRO/A, AFRO


RELIGIOSO/A, QUILOMBOLA: DISCRIMINAÇÃO
RACIAL E RELIGIOSA NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
NO MUNDO TRABALHO”, realizado em Brasília
no período de 28 a 30.8.2019

Roseli Oliveira

Estão todos e todas convocadas para nestes três dias conjugar o verbo
esperançar!! É hora de consolidar pontes infindáveis de humanidade.
Trata-se de uma iniciativa do Ministério Público do Trabalho, com apoio irrestrito
da Escola Superior do Ministério Público da União, Escola Nacional de Formação e
Aperfeiçoamento da Magistratura Trabalhista, e conta ainda com o Ministério Público
Federal, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, o Ministério Público do Distrito
Federal do Trabalho, a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
– SEPPIR do Ministério dos Direitos Humanos – MDH, a Fundação Cultural Palmares
do Ministério da Cultura, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversi-
dade e Inclusão – SECADI do Ministério da Educação - MEC, a Comissão da Verdade
sobre a Escravidão Brasileira do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil,
a Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, Organização Internacional do
Trabalho - OIT, todos se aliaram para conjugar o verbo esperançar!!!
Como filhos dos sobreviventes, dos sobrantes e também construtores da
resiliência, entendemos que é preciso convergir e conjugar o verbo esperançar e
o verbo superar!
Os tempos tem revelado que a pacificação proposta pelo Estado democrático
direito vem sendo ameaçada, o homem cordial, sim, o homem cordial de Sergio
Buarque de Holanda, vem demonstrando o seu lado sombrio e o discurso e atitudes
de ódio, de racismo, de sexismo, de intolerância, de eliminação das garantias e das
singularidades humanas ganham voz e coragem de se revelaram. Estão saindo dos
porões da ignorância, do desrespeito, da miséria humana, restolhos de um tempo das
dualidades, do certo e do errado, do falso e do verdadeiro, da vergonha!!!
É preciso urgentemente conjugar o verbo esperançar!!!
Estamos todas e todos ameaçados – as pessoas negras e seu patrimônio cultu-
ral, imaterial que dão sentido a história do Brasil e, aqueles que chegaram depois...
As mulheres e suas competências, em seus diferentes espectros da vida,
sentidos, que alargam a humanidade individual e coletiva;

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Organizadora : Edelamare Melo

As crianças ainda em formação subjugadas, ameaçadas;


A juventude negra morta, assassinada...
São mulheres, crianças, jovens, haitianos, venezuelanos, todos compul-
soriamente, impedidos de exercitar a sua humanidade...
Então, é hora da reação, e estamos convidando a todos e todas para recuperar a
nossa memória social, a coragem dos nossos ancestrais e encarar os desafios e superar!!!
E, em falando de desafios, em superação, em altivez, em determinação é bom
fortalecer a alma, e aqui estamos – respondendo ao chamado do - é possível, sim!
Invocaremos
Zumbi, Mestre Valentim, Aleijadinho, José do Patrocínio e Abdias do
Nascimento..
Dandara dos Palmares, Aqualtune, Tereza de Bengela, Maria Firmina
dos Reis e Dandara dos Santos....
Luiz Gama, Juliano Moreira, Carolina de Jesus, Lélia Gonzalez e Ma-
rielle Franco.
Todos e todas Presentes!!!!
E nós, sim, nós, anônimos e anônimas também estamos presentes, vestidos de
Procuradores, advogados, Magistrados, gestoras, estudantes, economistas, policiais,
sociólogos, professores, todos aprendizes e os Griots... estamos todos presentes!
Griots ? aí temos que fazer uma breve ressalva.
Quem são os Guardiões, Guardiãs da nossa história?
São popularmente chamadas de “Mães de Santo” – Yalorisás, Mametus,
Makotas, Ebomys, Ekédis, Benzedeiras, todas guardiãs da memória ancestral.
Mulheres Negras, filhas da luta, sobreviventes, senhoras que afirmam
que é possível conjugar o verbo esperançar.
Sapientes dos tempos, conhecedora das almas humanas, alquimistas da
vida, das formas de sobrevidas, e que ainda sobrevivem às violências contínuas
– senhoras que lidam com os medos, as incertezas, as inseguranças, alicerçam os
passos dos homens, geradoras de sustentabilidade, da sustentabilidade humana.
Escolhidas pela natureza e amalgamadas ao ar, água, terra, fogo, vento, folhas, ra-
ízes, sais, se juntam, e despertam, clarificam, multiplicam conhecimento, fé e esperança.
Por meio de seu conhecimento, narrativas, dedicação à humanidade,
seus saberes ofertam ao conjunto social que nada mais são que recursos ao
equilíbrio moral, social e histórico.
Ah, estamos falando de guardiões e guardiãs, de donibekas – fazedores
do conhecimento, então estamos também falando de pessoas que asseguram
por meio da lei, das regras, dos regimentos, dos regulamentos - a ação.
Intermediam as relações institucionais e sociais, então estamos falamos
de nós, senhores e senhoras, que aqui estão em nome do direito, porque é
preciso agir, garantir, reparar, proteger e promover.
24
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Estamos falando dos guardiões institucionais do mundo do trabalho, do


trabalho que já foi escravo, do trabalho que, infelizmente, pode ser traficado,
do trabalho não remunerado, protetor do sem trabalho.... e que em missão
especial continuadamente, se colocam ao lado daqueles que historicamente,
emprestaram valores a sociedade brasileira - solidariedade, liberdade, espiri-
tualidade, todos princípios africanos, doados a esta terra.
É preciso guardar os que guardam, é preciso curar as feridas, amenizar
as dores, as cicatrizes, é preciso organizar a vida, o direito e garantir o amanhã
livre, altivo, que nós chamamos de democracia.
A política pública tem sentido se submeter aos princípios da transversalidade, in-
terssecionalidade, equidade, do direito, substantivo masculino, singular - direito - que
orienta, reconhece as especificidades da humanidade brasileira, que deve contar com a
educação plural, com a justiça social, com as diferentes áreas do saber, como elementos
fundamentais para a superação das desigualdades étnico-raciais, de gênero.....
É sabido que o corpo negro sofreu diuturnamente processos de desumaniza-
ção, foram ciclos de violência, de invisibilização, violações, aspectos se entrelaça-
ram em nome dos interesses de uma determinada configuração histórica, gerador de
um atrofiamento estrutural para o conjunto social e ainda, no presente, a tentativa
de redução de um determinado grupo aos processos de uma tal “sub-cidadania”.
Então é preciso reagir!!! É preciso humanizar a humanidade.
Estão todas e todos presentes, convidadas e convidados, a refletir sobre
as portas de saída à superação da violência no Brasil.
É necessário avançar na consolidação de um novo olhar, novas concepções e
recursos, para fincar nas Américas à bandeira contra toda e qualquer forma de discri-
minação, racismo, intolerância xenofobia, consubstanciar o desafio histórico de in-
cluir nas proposições do Estado, das instituições, da sociedade, as singularidades da
população negra, como nuances de direito, de justiça e de igualdade.
Estamos firmando compromisso público com a população negra ao resgatar a
presença, o significado, a participação e a contribuição destes sequestrados de seus
territórios e que formam a Nação brasileira.
Iniciamos este Simpósio com os compromissos aqui nomeados e perse-
guiremos estas máximas até a completa transformação social, para um Estado
soberano, plural e de direitos.
É inegável os resquícios da discriminação étnico-racial, do racismo e sexismo
no território brasileiro, mas também é inegável a nossa busca por meios para enfrentar
e superar as desigualdades raciais e sociais na história recente do Brasil.
Que Olodumare nos cubra
Sejam todas e todos bem-vindas nesta empreitada.
Obrigada!!!
Roseli Oliveira
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

NOVA LUZ NOS OLHOS NEGROS DO BRASIL.


PALESTRA DE ENCERRAMENTO DO SIMPÓSIO
NEGRO [A], AFRO-RELIGIOSO [A], QUILOMBOLA.
RACISMO E INTOLERÂNCIA RELIGIOSA NO BRASIL E
SEUS REFLEXOS NO MUNDO DO TRABALHO.

Ordep Serra1

Começo por agradecer aos organizadores a oportunidade de participar


deste magnífico simpósio e a grande honra de nele pronunciar a palestra de
encerramento. Sou especialmente grato a minha querida amiga Edelamare
Melo e a Oxumarê que nos aproximou. Parabenizo a Escola Superior do Mi-
nistério Público da União e o Ministério Público do Trabalho pela brilhante
iniciativa, mais do que nunca oportuna, de acolher a nossa gente negra, os
quilombolas, o povo de santo, um grupo notável de lídimos representantes
da imensa comunidade afro-brasileira, a fim de discutir temas de indiscutível
relevância que envolvem direitos, dignidade, valores sem os quais nosso país
ficaria às cegas. Louvo estas instituições que decidiram enfrentar com lucidez
e coragem os sérios problemas criados no Brasil pela tenacidade do racismo e
pelo furor da intolerância religiosa, mazelas cujo impacto negativo se faz sen-
tir em todos os níveis da vida nacional, marcadamente no mundo do trabalho.
Assim deram prova cabal de sua disposição de combate à iniquidade. Destaco
mais uma vez o generoso empenho de minha cara amiga Edelamare, guerrei-
ra da justiça iluminada pelo fogo de Xangô na realização deste evento, com
certeza um dos mais importantes ocorridos no Brasil no presente ano de 2018.
O simpósio já começou de forma brilhante. Nada mais justo, nada mais
oportuno e acertado que celebrar a memória das heroínas Dandara e Marielle
Franco. Toca-me profundamente, também, a homenagem a meu saudoso amigo
Abdias Nascimento, com quem tive a honra de participar do Memorial Zumbi
1
Mestre em Antropologia Social pela UNB e Doutor em Antropologia pela Universidade de São Paulo, com Pós-Doutora-
do em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia. Professor Aposentado do Departamento de Antropologia
da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia. Membro da Associação Brasileira de
Antropologia, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos. Mem-
bro fundador de Koinonia, Presença Ecumênica e Serviços. Membro fundador da Associação Observabaía. Fundador,
primeiro Coordenador e conselheiro do Grupo Hermes de Cultura e Promoção Social. Coordenador do Movimento Vozes
de Salvador e membro do Fórum “A Cidade Também é Nossa”. Produção principal em Antropologia da Religião, Antro-
pologia das Sociedades Clássicas, Teoria Antropológica. Tradutor de textos científicos e literários. Escritor premiado em
três concursos nacionais de literatura (ficção). Membro da Academia de Letras da Bahia.

27
Organizadora : Edelamare Melo

e da campanha pelo tombamento da Serra da Barriga. Com igual saudade cele-


bro os demais companheiros desta luta, evocando de modo especial os que já
se foram, como os inesquecíveis Joel Rufino, e Lélia Gonzalez, a quem Abdias
foi juntar-se. Estendo minha saudação a todos os que se empenham ainda hoje
no combate ao racismo, à injustiça, à iniquidade. Mas peço vênia para evocar
primeiro o saudoso amigo e os militantes a ele associados numa campanha que
tem muito a ver com o tema deste Simpósio. Não posso esquecer o entusiasmo
com que vivenciamos a primeira romaria à sagrada Serra da Barriga, que subi
por sete anos seguidos homenageando os heróis do histórico quilombo. Permi-
tam-me que rememore essa magnífica aventura.
Quando foi convidado por Aloysio Magalhães para assumir uma coor-
denação de projetos na Fundação Pró-Memória, o antropólogo Olympio Serra
teve um gesto de estranhamento que se revelou muito frutífero. A relação dos
bens tombados como patrimônio histórico da União já tinha sido vista mi-
lhares de pessoas, já tinha passado por inúmeras mãos, sem quem ninguém a
estranhasse. Ele a achou muito esquisita e tratou logo de manifestar a Aloysio
Magalhães sua estranheza. Como podia ser que neste país de maioria negra
nenhum traço da memória do povo negro tivesse sido, até então, considerado
digno de figurar como patrimônio nacional? Era já a penúltima década do
século XX. A omissão que ele apontou mostrava-se mesmo escandalosa, se-
gundo logo admitiu o Presidente da Fundação Pró Memória, também titular
da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - SPHAN. Com seu
aval, Olympio Serra tomou uma iniciativa pioneira. Contactou imediatamente
Abdias Nascimento e numerosas outras lideranças do Movimento Negro de
todo o país, convidando-os para um seminário na Serra da Barriga, onde nas-
ceria o Memorial Zumbi, entidade cujo propósito primeiro era a preservação
daquele sítio histórico, mas que também ensejava a criação de uma instância
onde dialogassem gestores da política cultural do país e militantes da luta an-
ti-racista. Integrando o Conselho do Memorial Zumbi, participei, ao lado do
amigo Zezito Araújo, da elaboração do dossiê que fundamentou o pedido de
tombamento da antiga capital da república negra de Palmares, tombamento
este consumado em 20 de novembro de 1985. O êxito do Memorial Zumbi não
se cingiu a essa iniciativa. Ao extinguir-se ele deixou uma semente poderosa:
foi a verdadeira matriz da Fundação Palmares. Basta lembrar que três dos
presidentes desta Fundação foram antes Conselheiros do Memorial Zumbi.
Retorno com a lembrança ao dia da nossa primeira peregrinação à
sede histórica do quilombo glorioso. Revejo Abdias a discursar emocionado,
e diviso a sua volta uma pequena multidão em que distingo a querida Elisa,

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

sua mulher, minha esposa Regina, a amiga Bete Capinan, os moços do Olo-
dum conduzidos por João Jorge, a turma do Ilê Ayê com Vovô e Mãe Hilda
à frente, Zezito Araújo, nosso bom companheiro de Maceió, e um time fan-
tástico de lideranças do movimento negro do país inteiro. Revejo o povo de
União dos Palmares espantado com a nossa chegada e torno a ouvir o comen-
tário quase temeroso de um cavalheiro do lugar: “Eu sabia que um dia eles
iam voltar”. Eles: os negros, a gente de Zumbi. Nós. Ainda sinto a emoção
deste momento inesquecível.
Voltei por sete vezes seguidas ao sítio sagrado onde reinou o maior
herói brasileiro. Tenho a lembrança de uma ocasião especial. Vou fazer in-
veja, agora, a muitos amigos, a ilustres membros do povo de santo que aqui
vejo: assisti na Serra da Barriga a linda cerimônia em honra de Zumbi, um
pequeno axexé do herói, celebrado por Mãe Hilda, com assistência do Elema-
xó Antônio Agnelo Pereira. Abdias estava presente.
A Serra da Barriga não foi o primeiro monumento negro a ser reco-
nhecido como patrimônio histórico nacional, nem a primeira campanha em
que juntei forças com o amigo homenageado neste Simpósio. Teve a pre-
cedência o Terreiro da Casa Branca do Engelho Velho, Ilê Axé Iyá Nassô
Oká. E foi também Olympio Serra quem nos recrutou. Recebi de Olympio a
incumbência de elaborar um projeto voltado para a preservação de bens cul-
turais do povo de santo, sítios sagrados que desde muito já mereciam registro
nos livros de tombo da União. Tendo como colaborador o arquiteto Orlando
Ribeiro, escrevi, então, o Projeto de Mapeamento de Sítios e Monumentos
Religiosos Negros da Bahia - MAMNBA, executado com base em convênio
entre a Pró-Memória, a Prefeitura Municipal do Salvador e a Fundação Cultu-
ral do Estado da Bahia. A primeira definição deste projeto foi a escolha de um
grande Terreiro para figurar como monumento histórico do Brasil. O velho
santuário da Casa Branca foi escolhido por sua antiguidade, sua importância
nacional e pela ameaça que sobre ele pairava. Começou assim uma grande
luta em que ainda hoje me acho envolvido. Chamo atenção para um dado por
vezes esquecido: na altura em que o Projeto MAMNBA foi implementado,
não se falava em patrimônio negro, não se usava esta expressão. Ainda me
lembro das críticas que sofri por falar em “monumento negro”; ainda tenho na
memória a insistente sugestão que ouvi de muitas bocas, propondo-me a troca
da palavra “negro” pelo adjetivo “popular” no nome do projeto. Lembro-me
sempre da reação escandalizada de técnicos do IPHAN que consideravam
absurdo tombar um Terreiro, que negavam valor histórico a um templo cente-
nário onde se perpetuam legados da civilização iorubana, heranças do grande

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Organizadora : Edelamare Melo

império de Oyó. Para eles nada significava a matriz de centenas de Casas


de culto aos Orixás em todo o Brasil. A custo essa resistência foi vencida.
Mas era apenas o começo de longos embates em que me orgulho de ter tido
sempre o apoio de Abdias Nascimento, o primeiro a celebrar no Congresso
Nacional a vitória do candomblé do Engenho Velho. Foi com muita emo-
ção que participei da homenagem feita neste Simpósio a meu caro amigo, à
gloriosa Dandara e à inesquecível Marielle Franco, que nós aqui veneramos
ainda com lágrimas nos olhos. Impossível conter a indignação que nos toma
com a lembrança não só do assassinato desta grande mulher e de seu amigo
Anderson Gomes, mas também com a delonga espantosa das autoridades na
investigação deste crime, cuja origem tudo indica achar-se na brutalidade das
milícias e dos brutamontes policiais que ela combatia. Aproveito a ocasão
para fazer aqui duas propostas que pretendo encaminhar também ao IV Con-
gresso Internacional do Direito dos Povos e Comunidades Tradicionais, a ce-
lebrar-se em Salvador entre 7 e 9 de novembro deste ano de 2018. Proponho,
primeiro que solicitemos, ou melhor, exijamos o reconhecimento de Mariel-
le Franco como Heroína do Brasil, a incorporação de seu nome ao panteon
dos heróis nacionais. A segunda proposta eu fundamento em lições ouvidas
neste Simpósio. Ouvimos aqui de jurista abalizados, de honrados militantes
da causa da Justiça, repetidas denúncias da incrível morosidade do aparelho
judicial do Estado quando se trata de punir crimes evidentes, gritantes, mais
que comprovados, brutais, escandalosos, cometidos com frequência contra a
nossa gente negra, contra os quilombolas, os favelados, os povos e comuni-
dades tradicionais; ouvimos honrados representantes do Ministério Público a
queixar-se da espantosa dificuldade de fazer com que seja punida a intolerân-
cia, ou melhor dizendo, a violência religiosa desencadeada contra os adeptos
das religiões de matriz africana, vítimas constantes de injúrias, agressões,
desrespeito, ameaças, expulsão, assassinatos; escutamos denúncias graves de
esbulhos tolerados, de atos hediondos, de gestos abomináveis de discrimina-
ção e medidas de segregação mantidas impunes; ouvimos falar de brutalidade
sistemática jamais coibida, ou sequer levada a julgamento; ouvimos queixas
de desrespeito, de ataques diversos sequer registrados pelas autoridades poli-
ciais e de abusos que elas mesmas cometem impunemente. Estamos cansados
de denunciar em vão o morticíno da juventude negra. Continuaremos, é claro,
a denunciar, a reclamar, a exigir do Estado as providências indispensáveis,
quase sempre negligenciadas quando se trata de fazer justiça a nosso povo.
Mas acredito que também devemos, nós mesmos, assumir o julgamento des-
ses crimes, para dar conhecimento deles à opinião pública nacional e interna-

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

cional, tornando patente a omissão do Estado brasileiro e impedindo que se


esqueçam as vítimas. Por isso proponho a instalação de um tribunal popular
que se reuna periodicamente em locais simbólicos como a Serra da Barriga
para julgar os grandes criminosos que perseguem os quilombolas, o povo de
santo, a gente negra, as comunidades tradicionais: o Tribunal Marielle Fran-
co. Peço aos meus queridos amigos que estudem esta sugestão.
O magnífico Simpósio que agora se encerra tem um significado especial
por realizar-se em um momento tenebroso em que se multiplicam retrocessos
e agressões à democracia; em que um candidato à presidência da república, ao
mesmo tempo em que ataca de forma sórdida o Ministério Público do Trabalho,
a Justiça do trabalho, prometendo constanger, coibir e essas instituições como
se já fosse um ditador, ao tempo em que insulta descaradamente os quilom-
bolas e conta com a leniência de ministros da mais alta corte. Estamos em um
momento em que a justiça social se vê atacada de maneira sistemática. Impos-
sível deixar em silêncio este fato. Temos de considerá-lo.
Inegavelmente, é a iniquidade que ora prevalece em nossa terra. Um
país rico em recursos, uma das maiores economias do planeta, continua a ser
um dos mais desiguais do mundo, mantido assim de forma sistemática pela
fração dominante que se aproveita do descalabro. As vítimas maiores desse
estado de coisas terrivelmente injusto são fáceis de identificar. Não dá para
esconder que gênero e raça têm peso considerável na perversa distribuição de
riqueza num país onde, como vários palestrantes lembraram neste Simpósio,
mulheres ganham menos que os homens pelas mesmas tarefas e o ganho de
67% dos negros situa-se na faixa de 1,5 salários mínimos. É também notório
que na sociedade brasileira as mulheres e os negros são os mais atingidos pelo
crescente desemprego: conforme atesta o IBGE, mais de 67% dos desem-
pregados no Brasil são pretos ou pardos; onde os negros, quando ocupados,
recebem em média quase a metade do que ganham os brancos.
A rigor, a desigualdade se acha aqui institucionalizada. Segundo a Oxfam
Brasil, em nosso país a riqueza de seis bilionários corresponde ao ganho dos cem
milhões de brasileiros mais pobres e os 170 mais ricos abocanham o correspon-
dente a quase 15% do PIB. Mecanismos institucionais garantem a reprodução
deste status quo desigual. Basta ver que 56% dos tributos aqui consistem em im-
postos indiretos, embutidos nos produtos, e se resiste ferozmente à progressivida-
de da tributação. Assim é desde muito. Mas nos últimos tempos neoliberais se tem
incrementado de forma deliberada e sistemática tal disparidade. Vale recordar:
em meados da década de 1990 verificou-se em nosso país uma perversa alteração
do regime tributário, que agravou sua injustiça: diminui-se a tributação sobre a

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Organizadora : Edelamare Melo

renda enquanto se acrescia a incidente sobre o consumo. Naquela altura, deu-se


generosa redução (de 25% para 15%) não só da alíquota do Imposto de Renda de
Pessoas Jurídicas das instituições financeiras como da chamada Contribuição So-
cial sobre o Lucro Líquido (neste caso, de 30% para 9%). Reduziu-se ainda mais
a base de cálculo do IRPJ e da CSLL graças ao artifício de permitir a dedução dos
juros sobre capital próprio. Além disso, concedeu-se isenção do imposto de renda
sobre remessa de lucros e dividendos ao exterior. Ao mesmo tempo, a liberaliza-
ção financeira franqueou às elites econômicas novas oportunidades de evasão e
elisão fiscal, facilitando a fuga de capitais. Já os impostos que oneram a classe de
renda mais baixa foram majorados.
Como tem mostrado o Sinprofaz, chega a ser incrível a facilidade com
que, no Brasil, as grandes empresas e os detentores de altos rendimentos escapam
do fisco, tão rigoroso com quem trabalha. Cerca de quatro mil pessoas físicas e
jurídicas têm dívidas de impostos cuja soma chega a quase um trilhão de reais.
Calcula-se que o combate à evasão fiscal poderia resultar na arrecadação de soma
equivalente a mais de 160 bilhões de dólares. Mas sucede o contrário: em 2018,
o Brasil está a conceder aos nababos 283 bilhões de reais em benefícios fiscais,
mais que os gastos com saúde e educação. As isenções de impostos de grandes
empresas chegaram a 280 bilhões no ano passado. A um grande banco foi perdo-
ada uma dívida de 25 bilhões em impostos.
Segundo análises recentes, as renúncias fiscais respondem por 25% das
receitas federais e a sonegação por 14%. De acordo com estudo realizado em
conjunto pela Procuradoria da Fazenda Nacional e pelo INCRA, entre os maio-
res sonegadores do Brasil se encontram grandes latifundiários. E o governo que
mostra tamanha generosidade para com essa gente podre de rica, cumulando de
benesses o latifúndio, se empenha em ignorar, cercear e restringir os direitos dos
quilombolas, dos indígenas, de povos e comunidades tradicionais em geral.
Cabe dizer que vivemos uma crise seletiva: no Brasil, o sistema financeiro
teve o lucro de 44 bilhões no primeiro semestre de 2017. Nos anos de 2015 e 2016,
já desfrutara lucro igual ou superior, no mesmo período. E apenas no primeiro tri-
mestre de 2018, os três maiores bancos privados do país registraram lucros de 14,3
bilhões. Ao mesmo tempo, a produção industrial caiu e o desemprego subiu.
Em 2017 foram pagos cerca de 400 bilhões de juros da Dívida Públi-
ca, beneficiando grandes instituições financeiras e um punhado de rentistas.
Claro que esse débito não foi reduzido. Pelo contrário, cresceu: calcula-se que
deve alcançar cerca de 4 trilhões neste ano de 2018. Os juros e amortizações
da misteriosa dívida - cujo montante não se conhece por que ela nunca foi au-
ditada - consomem a maior fatia do Orçamento da União, quase 50%. Note-se

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

que não há no mundo governo tão generoso quanto o brasileiro quando se tra-
ta de remunerar os títulos da DP, que aqui desfrutam de abusivos incrementos
financeiros além de juros escandalosos, sem paralelo no mundo. Ao mesmo
tempo, as despesas com Educação e Saúde ficam entre 3 e 4 % do Orçamento.
Os dados da Receita Federal pertinentes ao Imposto de Renda da Pes-
soa Física indicam com clareza o aumento da concentração de renda. Entre
2014 e 2016 (ou seja, no início da recessão econômica no país), a renda per
capita do conjunto geral de contribuintes caiu 3,3% em termos reais, enquan-
to a renda per capita do segmento mais rico da população cresceu 7,5%. Com
base nesses dados, cabe dizer que hoje o governo brasileiro faz uma políti-
ca de acentuação da desigualdade: promove a hiperconcentração de renda e
gera pobreza em escala crescente. Pesquisa feita pelo SPC Brasil em parceria
com Confederação Nacional dos Lojistas mostra que 95% dos trabalhadores
e trabalhadoras desempregados há mais de um ano pertencem às classes C,
D e E, sendo que 54% deles têm escolaridade somente até o ensino médio. A
maioria desse contingente é do sexo feminino (59%). Nas classes C, D e E se
concentra a massa dos afrobrasileiros, o maior contingente de pretos e pardos.
Os cortes sistemáticos de verbas em áreas críticas para o bem-estar dos
cidadãos são justificados em nome da falta de recursos. Ao mesmo tempo, pro-
jeta-se a entrega do pré-sal a empresas estrangeiras com um brinde significa-
tivo: a dispensa de impostos durante vinte anos, com renúncia a um trilhão de
reais. Quer-se consertar a economia com medidas de arrocho que atingem a
renda da maioria da população, poupando os mais favorecidos e aumentando
seus privilégios. Assim se condena à miséria uma ampla fatia da população.
Contrariando recomendação da OCDE no sentido de aumentar os recursos des-
tinados ao programa bolsa família, o que se verificou foi sua drástica redução.
Os gastos com saúde, educação e segurança foram congelados. Em suma, ado-
tou-se a iniquidade como política. As consequências só podem ser severas para
a economia nacional: com uma população de 204 milhões de habitantes e um
PIB de 6 trilhões de reais, somos uma economia vinculada ao mercado interno.
Os 600 bilhões de reais logrados com as exportações mal chegam a 10% do
PIB. No entanto a EC 95 impõe por vinte anos um teto para o crescimento das
despesas não financeiras do governo, limitando perversamente o gasto social,
ao tempo em que amplia de 20% para 30% a Desvinculação de Receitas da
União. Não ha dúvida de que isso configura um ataque violento e irracional
contra o mercado interno, ou seja, contra a economia de nosso país.
Cogitou-se uma Reforma da Previdência voltada para suprimir direi-
tos adquiridos dos trabalhadores, mas sem qualquer medida destinada a sanar

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Organizadora : Edelamare Melo

desvios notórios, distorções e fraudes mantidas impunes. Ainda em 2016 o


descalabro dessa reforma tão desejada pelo atual governo foi demonstrado
de forma cabal em documento assinado por 50 especialistas no assunto: ve-
ja-se o estudo produzido pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da
Receita Federal e pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos
Socioeconômicos, com o título de Previdência: reformar para excluir? E em
2017 uma Comissão Parlamentar de Inquérito revelou que empresas privadas
devem à Previdência cerca de R$ 500 bilhões. Nisso não se toca.
Outro retrocesso brutal veio com a chamada Reforma Trabalhista que
se apresentou também como remédio contra a crise, e trouxe em seu bojo, en-
tre outras novidades do mesmo jaez, o trabalho intermitente, a jornada parcial,
a terceirização irrestrita, a contratação na modalidade de pessoa jurídica mais
a contratação de autônomos com “exclusividade e continuidade”, sem todavia
configurar relação de emprego. A essa medidas se somaram dispositivos que
inibem o recurso à Justiça do Trabalho por parte de quem mais carece, ou seja,
os trabalhadores. As consequências óbvias dessa estranha reforma vêm a ser re-
baixamento de salários, aumento da insegurança laboral, queda de receita previ-
denciária, enfraquecimento do mercado interno, aumento do precariado.
Responsabilizou-se a legislação trabalhista anterior pela crise. Mas
como tem assinaldo o Dr. Eduardo Fagnani, no período entre 2003 e 2014, em
plena vigência da CLT, o estoque de empregos com carteira assinada subiu de
28 milhões para 50 milhões, a taxa de desemprego caiu de 13% para 4,8%,
o salário mínimo cresceu mais de 70% acima da inflação e a informalidade
declinou de 60% para 46%. Compare-se este quadro com a situação atual e
com as projeções para o futuro próximo. A diferença é um abismo.
Convém ponderar ainda os efeitos que já se fazem sentir da Emenda
Constitucional 95, a do Teto de Gastos, a mais violenta das medidas de suposta
“austeridade” (melhor dizendo, de “austericídio”), política desastrosa hoje con-
denada até pelo FMI. Facilmente se vê que a suposta austeridade é unilateral,
pura hipocrisia: não há corte de despesas financeiras. Um estudo em cuja reali-
zação se associaram o Instituto de Estudos Socioeconômicos- INESC, a Oxfam
Brasil e o Center for Economic and Social Rights mostrou que a EC 95 coloca
em risco direitos sociais e econômicos de milhões de brasileiros. Em vista dis-
so, cabe afirmar que ela tem o mesmo sentido de um Ato Institucional como os
editados pela Ditadura, pois é um ato que anula direitos, cerceia a cidadania.
Não é difícil ver os resultados: aumento da taxa de desemprego, queda real
do salário mínimo, ampliação das desigualdades. O Brasil está a ponto de voltar
a galope para o mapa da fome, com um aumento significativo do contingente em

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

situação de extrema pobreza: 11, 2 % nos dois últimos anos. O corte de 69% nas
verbas do Programa de Aquisição de Alimentos sem dúvida tem a ver com isso.
Infelizmente não é surpresa verificar que a mortalidade infantil para crianças entre
um mês e quatro anos de idade também cresceu nos dois últimos anos.
Tem a ver com a configuração desse quadro escabroso uma rude e des-
pudorada reafirmação do espírito escravista de nossas elites, seu racismo visce-
ral. Cabe dizer que a nostalgia do escravismo teve recentemente um surto espan-
toso no país. Todos se recordam da frustrada Portaria MTB 1129/ 2017, com que
o governo atual quis alterar de modo perverso a definição do trabalho escravo
(ou análogo ao escravo) dificultando a fiscalização dessa prática hedionda e
criando para seus obstinados impositores facilidades, atenuantes, subterfúgios.
Apenas a reação indignada da opinião pública no Brasil e no exterior, o empe-
nho do MPT e a pressão de organismos internacionais, cujos apelos provocaram
uma intervenção do STF, impediram que a vergonhosa portaria passasse a ter
vigência. Mas não se conseguiu debelar a sanha escravista que a alimentava:
o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho tem insistentemente
denunciado o contínuo, tenaz e sistemático desmantelamento das políticas de
combate ao trabalho escravo no Brasil contemporâneo. Não se pode dar mais
clara demonstração do ânimo escravocrata que inspira o atual regime antirepu-
blicano imposto ao país pela minoria encastelada no governo.
Casa-se muito bem com esta sanha o obscurantismo hoje reinante nes-
sa esfera e cada vez mais difuso na sociedade. São muitas as suas expressões.
Ele se manifesta em nível governamental por uma série de políticas castra-
doras: ganham proporções de calamidade pública a redução escandalosa das
verbas para a educação e a cultura, assim como a asfixia financeira imposta à
ciência e à tecnologia, com sinistras consequências para o desenvolvimento
econômico do país.
Como se não bastasse, no campo educacional retrocessos são imple-
mentados com furor. Retira-se a garantia da universalidade do ensino básico
e da sua gratuidade; suprime-se a obrigação do Estado de garantir a educação
infantil para todos. Suspende-se de maneira perversa a obrigatoriedade do
ensino da cultura afrobrasileira. Manifesta-se, assim, o claro propósito de
restringir o acesso e inviabilizar a permanência de negros e indígenas nas
instituições de ensino superior, sintoma do inconformismo de segmentos do-
minantes com as políticas de inclusão. Busca-se com rude empenho limitar a
escola pública à preparação de mão de obra servil, desinformada, sem capital
cultural que habilite o alunado pobre para o exercício da cidadania: pretende-
se tornar privilégio de poucos o ensino das Humanidades (Filosofia, História,

35
Organizadora : Edelamare Melo

Sociologia, Artes etc.). O óbvio propósito dessa medida iníqua é tornar inal-
cançável para a maioria dos brasileiros tanto o conhecimento como o exercí-
cio do direito, a compreensão da ordem republicana. Quer-se, enfim, separar
a senzala da casa grande no campo da educação.
Ao mesmo tempo busca-se reintroduzir no ensino a censura, vetando
abordagem de temas como gênero e sexualidade, em nome de uma ordem
patriarcal perversa e de fundamentalismos incompatíveis com o estado laico
que a Constituição preconiza. Em suma, tenta-se mais uma vez agrilhoar as
consciências. Os novos censores que nisto se empenham desejam ainda pros-
crever o estudo e o debate de teorias em desacordo com a estreiteza de suas
convicções, pois a liberdade de expressão e de pensamento os ofende. Que-
rem que a educação de qualidade se torne cada vez mais restrita ao círculo dos
privilegiados e sequer se dão conta da contradição inerente a sua proposta,
pois sonham com um saber acrítico.
É fácil ver que tipo de trabalhadores desejam formar os proponentes
desse tipo bisonho de reforma educacional: sua triste utopia se resume à for-
mação de servos, em paralelo com a manutenção de escolas de elite isoladas
em torres de marfim.
Nada mais estúpido.
Mas o obscurantismo não se limita a este domínio, tem outras manifes-
tações. A intolerância religiosa hoje se tornou um novo cavalo de batalha do
racismo. Os grupos que a protagonizam unem-se com frequência ao crime orga-
nizado e ao que há de mais corrupto no inframundo político para promover sór-
didos ataques contra as religiões de matriz africana, que suas igrejas parasitam
e injuriam de todas as formas, não hesitando em valer-se de violência. Templos
de candomblé e umbanda são invadidos, sacerdotes dos terreiros são agredidos,
humilhados, injuriados, assassinados, não raro sob o olhar complacente de auto-
ridades que mal escondem sua conivência com tais abusos. Uma campanha de
deseducação conduzida pelo que prefiro chamar de empresas eclesiais dedicadas
ao esbulho e à exploração dos mais pobres busca de modo sistemático desvalo-
rizar os costumes, as artes, o saberes, a cultura do povo negro, que demoniza e
calunia, disseminando preconceitos, pregando ignorância.
Diante desse quadro, é impossível negar a continuidade de um éthos
escravocrata e mesmo de uma práxis escravista de que o Brasil tarda a livrar-
se. A herança dos séculos de cativeiro é perceptível em muitas instituições.
Marca a brutalidade de um Estado policial que oprime a população em cam-
panhas desvairadas contra o fruto de seus cárceres. É a juventude negra a
grande vítima tanto das organizações criminosas quanto dos repressores, for-

36
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

ças que não raro se aliam. Em defesa dos direitos da gente oprimida tombam
lutadores do porte de Marielle Franco. Mas eles renascem.
Não me reporto ao feio quadro acima descrito para nele me deter. Bem
ao contrário, o que tenho em vista é sua superação. Eu a enxergo com clareza
nos olhos dos companheiros aqui reunidos. Este Simpósio que reúne tantos
representantes ilustres da inteligência negra, tantas pessoas dignas, sérias e
realmente interessada em liberdade, em justiça, em igualdade, mostra bem
que é possível fazer outro Brasil. Vejo aqui mulheres e homens inspirados por
Marielle Franco, por Dandara, por Acotirene, por Zumbi, por Abdias Nasci-
mento, pelo que temos de melhor. Confio em sua força e no ânimo de muitos
outros que em nosso país se associam na luta contra o racismo, o sexismo, a
brutalidade escravista. Tenho afirmado e volto a afirmar a riqueza espiritual
do nosso povo negro, o esplendor das suas criações culturais. Nem mesmo
com a mais furiosa má fé se poderia negar que os negros, com seu trabalho,
suor e sangue, fizeram a riqueza material do nosso país; mas impõe-se tam-
bém reconhecer que sua contribuição vai além. Negras e negros do Brasil, na
esteira de seus ancestrais africanos, muito têm feito para formar o patrimônio
cultural desta nação: criam riqueza com seu trabalho e também com seus va-
lores morais, sua inteligência, suas artes e saberes.
Os herdeiros de Zumbi representam uma vanguarda criativa e genero-
sa, que pode, sim, vencer a barbárie hoje dominante. Seu compromisso com a
verdadeira civilização se demonstra neste simpósio brilhante onde se combate
a estupidez do racismo, da segregação, do sexismo. Aqui vozes poderosas se
levantam contra os pregadores do ódio, denunciam o obscurantismo, acusam as
armadilha da exploração e da ganância. Juntos cultivamos cidadania, exaltando
o valor do trabalho, a dignidade das mulheres e dos homens, a solidariedade, a
ética do ubuntu. O momento difícil que vivemos será superado.
Como bem sabemos, é a sanha escravista que ameaça o Brasil, é a pul-
são escravocrata que o vem arruinando e degradando. Mas ela será vencida. Os
brasileiros merecem o país justo sonhado por Dandara e Marielle Franco, por
Abdias Nascimento e Zumbi. É com o Brasil decente, equânime e livre entrevis-
to neste Simpósio que estamos comprometidos. Por ele nos unimos. Axé.
Ordep Serra

37
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

SIMPÓSIO INTERNACIONAL
“Da ancestralidade ao futuro. Riscos de
destruição das matrizes culturais para
futuras gerações. Alternativas de superação”

Miguel de Barros1

Palavras – chave: Religiosidades, Ancestralidades, Sítios Sagrados,


Pedagogia da Convivência, Governação Participativa
A sacralização de espaços e recursos naturais constitui uma das princi-
pais formas de conservação do ambiente, da manutenção das relações sociocul-
turais, mas também de soberania territorial, econômica, produtiva e identitária.
Essas práticas, são formas de organização e gestão autóctones baseadas
na comunidade, na qual se cruzam uma visão de durabilidade de processos de
integração e responsabilidade coletiva geracional através do binómio nature-
za e bem-estar alicerçados na cultura e na tradição, concretizada em pactos da
fé que se transitam em formas de rituais, de representação e da convivência
harmoniosa entre a natureza, o território e os espíritos. O elemento estrutural
é o significado espiritual especial para povos e comunidades (Wild e McLeod,
2008), ganhando consistência as suas funções de defesa e proteção (locais
de contato com o mundo espiritual) e curativas (plantas medicinais), bem
como sepultura dos antepassados, locais de peregrinação, com instituições de
governança, são diversificadas e pluriformes (Verschuuren, 2010), mas com
valor econômico incomensuráveis.
Deste modo, as religiosidades da matriz africana oferecem possibilidades
de socialização humana baseadas nas técnicas, saberes e modos de estar que
permitem o uso racional, sustentado dos recursos naturais em função de uma
máxima que salvaguarda a possibilidade das gerações vindouras puderem bene-
ficiar desses saberes enquanto patrimônios coletivos partilhados através de ritu-
ais, nas quais cada espaço e recurso tem uma função crucial para a construção e
consolidação identitária de uma comunidade e de um povo.
Nesta base, a cultura é o centro da construção de um contrato e seguran-
ça social edificado a partir de um universo cognitivo em que a visão religiosa
do mundo está diretamente ligada à coneção do que é a natureza e do seu

1
Guiné-Bissau Centro de Estudos Sociais Amílcar Cabral – CESAC ([email protected])

39
Organizadora : Edelamare Melo

papel na vida dos indivíduos e da sociedade em geral (Saraiva 2015). Ilhas,


areais e praias, colinas, florestas, árvores, nascentes, rios, mar... são pensados
como espaços onde habitam os espíritos que são devotados e apropriados
para um vasto número de ações rituais onde em alguns casos são construídos
santuários e deste modo regulando as formas do seu uso.
Um dos ativos principais deste processo é a construção de Comunida-
des Sustentáveis alicerçadas na utilização de uma ecologia de saberes tradi-
cionais na gestão do ecossistema através de sistema de conhecimentos autó-
nomo do mercado. No entanto a exclusão do saber tradicional e das culturas
autóctones fruto do colonialismo, impactou de forma decisiva na desfragmen-
tação dessas comunidades e da base dos modos de vida e dos conhecimentos
que a humanidade precisa para enfrentar as crises de múltiplas dimensões
(Lockhart, 2010). Ainda, apesar do papel fulcral que os sítios sagrados de-
sempenham na conservação da biodiversidade, a contribuição das religiões
de matriz africana para esse efeito foi e continua a ser negligenciada e subes-
timada pelas agências públicas e mundiais.
Em áfrica, a imposição de visões e modelos coloniais fundamentadas
em matriz religiosa e mercadológica destruiu ecossistemas, comunidades hu-
manas, alienou patrimônios culturais, classificou e hierarquizou as identida-
des, fomentou divisões e conflitos violentos, afetou de forma radical a capa-
cidade das populações desenvolvendo suas línguas, tecnologias, economias,
sistema de governança e seu bem-estar. Gerou individualismo, mercantilismo
e a privatização dos direitos de propriedade, impondo uma cultura reducionis-
ta, extractivista e mecanicista dos modos de vida, com impactos devastadores
no ambiente gerando destruição, pobreza, alienação e migrações forçadas.
Povos foram traficados, territórios anexados e vendidos, modos de pro-
dução foram descaracterizados, culturas essencializadas e identidades defi-
nhadas, quer pelo processo de escravatura, colonização, conversões religio-
sas forçadas (islamismo, catolicismo, evangelismos) em nome da pretensa
“salvação” e economias desestruturadas pelo liberalismo ocidental. Porém,
nenhuma das práticas gerou a dita “civilidade” e nem a ideia do “desenvol-
vimentismo”. Pelo contrário fomentou mais pobreza, calamidades naturais,
fragmentação das nações, conflitos interétnicos e religiosos, crises econômi-
cos, políticos e decadência de estados.
Ora, nos inícios da década de 90 do século passado, o mundo fazia sinal
de alerta devido a galopante crise ecológica, alimentar e tensões entre estados,
na qual se impunha uma nova racionalidade e na gestão dos recursos naturais,
na forma de consumos e produção energética, mas sobretudo num maior com-

40
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

promisso com as gerações presentes e futuras. A Cimeira do Rio (1992) inau-


gurou uma nova agenda conservacionista e desencadeou uma nova abordagem
a proteção ambiental, consensualizando que o mundo deveria mobilizar-se para
uma promoção de modos de vida que poderiam garantir sentido de fortaleza na
conservação capazes de conservar a diversidade biológica, fornecer serviços de
ecossistemas e combater a pobreza, tornando-se uma necessidade prática e ética.
Em países como a Guiné-Bissau que conta com 26% do seu territó-
rio designado áreas protegidas (dos quais 14% são costeiros e marinhos), a
grande novidade é que a identificação de todos esses espaços - os mais belos
e produtivos com maior densidade da concentração da biodiversidade -coin-
cidiu exatamente com territórios onde povos autóctones vivem e que eram da
culturalmente sagradas!
Alvo de grande cobiça, violações e expropriações através da industria
extractivista (pesca, madeira, minas, turismo, imobiliária) com a cumplicida-
de de estado através da prática de concessão de licenças de exploração, em al-
guns países usando o monopólio da violência contra os indígenas e atacando
esses Serviços culturais - valores religiosos, saber ancestral e herança cultural
– acompanhadas de contingentes de atores externos com cariz de uma nova
colonização, como por exemplo, as novas seitas europeias, sul americanas
(brasileira sobretudo) e os seus desdobramentos africanos.
Contudo, para além das funções produtiva, social e religiosa, os espa-
ços sagrados são constantemente sujeitos à lógicas de alienação que repre-
sentam fortes ameaças à continuidade da dinâmica e síntese da cultura de
povos autóctones e indígenas, sobre pretexto da “modernidade” e do “desen-
volvimento”. É o caso do povo e território Bijagó na Guiné-Bissau, espaço
de disputa entre modelos de econômicos, culturais e políticos resultantes da
globalização e requer um espírito de compromisso que esteja subjacente à
uma Pedagogia da Convivência: respeito mútuo pela religião do outro.
Contudo há questões fundamentais sobre as quais o mundo é hoje de-
safiado a debater e construir quadros de referência:

- em que medida a refundação de um modelo econômico permitiria sal-


vaguardar o direito coletivo de propriedades e uma racionalidade não
extractivista capaz de salvaguardar a integridade territorial e dos povos
indígenas com vantagens para o estado e para as comunidades locais,
sem que isso resulte na ameace o respeito pela diversidade religiosa?
- de que forma as aspirações sociais de mobilidade cultural e religiosa em
particular, podem oferecer conforto espiritual capaz de suportar as socie-

41
Organizadora : Edelamare Melo

dades nas suas funções sociais através da aquisição de maiores níveis de


escolaridade e consequentemente a ampliação do reino divino na terra sem
a alienação e coerção de povos e as suas cosmovisões ancestrais?
- em que medida são aceitáveis “missões evangelizadoras” baseada na
privação de direitos e reconhecimento da fé e que tipo de enfrentamen-
tos devem-se mobilizar para produzir convivências entre povos, civili-
zações e qual o papel que deve caber ao Estado?
- De que modo a transição para modelos de gestão comunitária das áreas
protegidas em regime de cogestão contribuem para a consolidação da so-
berania cultural e religiosa com impacto na conservação comunitária e o
reconhecimento da capacidade das comunidades com as suas estruturas es-
tarem integradas na governação partilhada dos espaços e recursos naturais?
- De que forma o reconhecimento dos sítios sagrados enquanto espaços
importantes para a vitalidade e sobrevivência das culturas dos povos
indígenas e tradicionais, devem ser integrados nas políticas públicas
de conservação e valorização de infraestruturas naturais para mitigação
dos efeitos climáticos a nível mundial e o saber holístico associado à
ancestralidade sem que sejam sujeitas a apropriação para fins comer-
ciais através de certificação de patentes para fins comerciais?
- Qual o papel das religiões no futuro no que respeita a conservação dos
patrimônios naturais, dos direitos jurídicos, sociais e culturais dos povos in-
dígenas, na emergência de uma economia social e solidária que valorize os
serviços de ecossistemas, que reconheça e proteja o lugar crucial das mu-
lheres “guardiãs e sacerdotisas dos saberes” e modos de vida sustentáveis?

42
Miguel de Barros
Organizadora : Edelamare Melo

44
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Subjetividades e marcas urbanas em PB:


valorizando a diversidade e empoderando
identidades não hegemônicas. TECNODEPENDÊNCIA,
REDES SOCIAIS, ARTE E SEXISMO

Ana Cristina de Sá Melo

A mulher nasce livre e tem os mesmos direitos do homem. As


distinções sociais só podem ser baseadas no interesse comum.1

Resumo
A aparente deficiência de representação das mulheres na ciência e tec-
nologia não se deve a fatores biológicos. Uma cultura de dominação mascu-
lina, centrada no homem branco ocidental, excluiu as mulheres, apesar das
suas importantes contribuições sem o devido reconhecimento histórico. O
maior acesso à educação e a liberdade das mulheres trabalharem ainda não
eliminou a desigualdade em relação aos homens, tanto na ciência como na
tecnologia. A cultura patriarcal, que se reproduz culturalmente, continua a
afastar as mulheres de campos considerados masculinos. A divisão social do
trabalho tem favorecido os homens. Existem inúmeras formas de se excluir as
mulheres, não só da criação da ciência e da tecnologia, mas também para im-
pedi-las de fazer uso da tecnologia a seu favor. A violência off-line e on-line
tem origens, objetivos e padrões semelhantes. Artistas e ativistas dos direitos
das mulheres sofrem, no Brasil e no mundo, violência on-line, com o objetivo
de silenciá-las e manter a exclusão.
Palavras-Chave: SEXISMO; CIÊNCIA; TECNOLOGIA; DESI-
GUALDADE; GÊNERO.
Ada Augusta King, atualmente conhecida como Ada Lovelace, nascida
em 1815, foi uma matemática e escritora inglesa. Era filha do Poeta Lorde
Byron. Sua mãe, temendo que a filha seguisse o caminho artístico do pai, o que
via como insanidade, encaminhou a filha para uma formação em matemática

1
Olympe de Gouges, nascida Marie Gouze, propôs a Declaração dos direitos da mulher e da cidadã à Assembleia
Nacional da França, em 1791, durante a revolução francesa. Foi guilhotinada em 1793. Condenada como contrarre-
volucionária e denunciada como uma mulher “desnaturada”.

45
Organizadora : Edelamare Melo

e lógica. Antes mesmo da invenção do computador, trabalhando junto com o


matemático Charles Babbage, que tentava construir um protótipo de um com-
putador analógico e mecânico, redigiu o que se considera hoje como o primeiro
programa de computador. Ao contrário de Babbage, que via sua invenção como
uma máquina de calcular sofisticada, Ada Lovelace especulou que o compu-
tador poderia, por exemplo, lidar com peças musicais com qualquer grau de
complexidade e extensão, algo muito comum hoje, mas totalmente inconce-
bível naquela época. Ada Lovelace só começou a ter um mínimo de reconhe-
cimento mais de cem anos depois de sua morte. Jamais publicou algo em seu
próprio nome. O artigo em que fez inserir o algoritmo considerado o primeiro
programa de computador faz parte de um conjunto de notas de rodapé de uma
tradução feita por ela de um artigo sobre uma palestra de Babbage. As notas
eram mais extensas do que o próprio artigo (Essinger, 2013a).
Numa troca pública de correspondências, Virginia Woolf (1920) rebate ar-
gumentos de que “as mulheres são inferiores aos homens em capacidade intelec-
tual, sobretudo naquele tipo de capacidade que se chama criativa”. A escritora
começa argumentando que é impossível exagerar os efeitos da educação e da
liberdade em prejuízo das mulheres. Prossegue perguntando como se explica o
fato de que as mulheres começam a se destacar mais e mais conforme vai haven-
do mais educação e mais liberdade. Seu interlocutor insiste na inexistência de
“mulheres brilhantes”. Virgínia Woolf contesta argumentando que o investimento
em educação, mesmo em famílias ricas, sempre favoreceu os homens, além do
fato de que as tarefas domésticas, criação dos filhos e cuidar do lar, exigiam suas
presenças em casa. Virgínia Woolf traz um outro argumento poderoso. Não são só
as mulheres que tem suas potencialidades intelectuais reprimidas por um sistema
desigual. Ela lembra que não surgiram grandes gênios entre os povos privados de
educação e mantidos na submissão, como por exemplo os irlandeses ou os judeus.
Isso mudou apenas no Século XX quando um judeu, Albert Einstein,
foi alçado ao título de um dos maiores gênios da humanidade, o que afasta
qualquer argumentação que se pudesse fazer de alguma deficiência intelectu-
al biológica dos judeus. Da mesma forma, a genialidade de Marie Curie, que
recebeu o prêmio Nobel de física em 1903, pelas suas descobertas no campo
da radiação das partículas, afasta o reprovável argumento de uma até então
alegada inferioridade intelectual biológica das mulheres. Marie Curie teve
que deixar sua terra natal, a Polônia, onde não havia a permissão de mulheres
frequentarem o ensino superior, para estudar na França, onde conheceu e se
casou com seu marido, Pierre Curie. É importante destacar que seu marido
lhe deu pleno apoio para seu desenvolvimento intelectual e, mais que isso,

46
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

permitiu que ela publicasse seus trabalhos dividindo o crédito. Um trabalho


escrito apenas por uma mulher não teria nenhuma repercussão naquela época.
Infelizmente, embora o prêmio Nobel e o destaque que merece Marie
Curie mostrem que a capacidade intelectual das mulheres não é inferior à
dos homens, na história deste prêmio houve apenas 49 mulheres vencedoras2,
contra 911 prêmios concedidos aos homens3. A maioria dos prêmios são prê-
mios “da paz” e de literatura. Prêmios referentes à área de ciências são exce-
ção absoluta. Apenas dois prêmios Nobel da física foram destinados a mulhe-
res, sendo que o segundo foi concedido em 1963, há mais de cinquenta anos.
Por que passados mais de cem anos da concessão do prêmio Nobel da
Física a Marie Curie isto é ainda uma exceção? Cem anos depois da afirmação
de Virginia Woolf de que se devia buscar a explicação no menor acesso das
mulheres à educação e à liberdade, as mulheres têm, teoricamente, ao menos
no ocidente, as mesmas possibilidades de educação e liberdade. Mas os des-
taques ainda são masculinos. Ela estava errada?
Descarta-se qualquer justificativa de ordem biológica ou genética para
o aparente menor destaque das mulheres na ciência e tecnologia. Qualquer
explicação só pode ser encontrada na forma em que nossa sociedade está
organizada e, nesta organização, em quais os papeis são destinados para as
mulheres. É o que veremos a seguir.
A dicotomia homem e mulher, masculino e feminino, do ponto de vista
da biologia, é espantosamente um conceito recente, surgido em torno dos sé-
culos XVIII e XIX. Até então predominava um modelo, herdado dos gregos,
que apenas reconhecia um único sexo biológico, ramificado em dois gêneros.
O que diferenciava o gênero masculino do feminino era o “grau de perfeição”,
tendo o corpo masculino servido de referência desta perfeição. Considerava-
se que homens e mulheres tinham, por exemplo, pênis e testículos, sendo que
nas mulheres estes não se exteriorizavam (Rohden, 2001a).
Com o aperfeiçoamento de ferramentas como o microscópio e a evo-
lução da fisiologia e da anatomia patológica, mostravam-se as muitas seme-
lhanças entre os organismos feminino e masculino. Entretanto, estes mesmos
médicos esforçavam-se em encontrar justificativas biológicas para evidenciar
os motivos da suposta inferioridade feminina. Procuravam as causas de pato-
logias no “predomínio do seu sistema genital”. Nessa época, começava a se
firmar a teoria da evolução de Darwin. O raciocínio era o de que os machos
adquiriam características sexuais no processo de luta pela posse das fêmeas.

2
https://www.nobelprize.org/nobel_prizes/lists/women.html, acessado em 08.10.2017
3
https://www.nobelprize.org/nobel_prizes/, acessado em 08.10.2017

47
Organizadora : Edelamare Melo

Assim, teriam se diferenciado delas, tornando-se superiores física e mental-


mente. Os médicos ginecologistas encontravam diferenças no tamanho do
crânio e cérebro masculino e feminino e nesta diferença encontravam preten-
sas razões para que a mulher fosse dominada pelas funções sexuais, sendo
mais instintivas e emotivas, ao passo que os homens seriam menos emocio-
nais, dominados pelo cérebro (Rohden, 2001b).
Os cientistas, homens brancos ocidentais, viam nas mulheres educadas
uma ameaça a sua própria situação profissional, aos homens (brancos) em ge-
ral, à família e à sociedade. Assim, agiram com as suas armas, possuidores do
monopólio do conhecimento, para impedir que mulheres dividissem o poder
e autoridade científicos (Rohden, 2001c).
Essa ideia de uma dicotomia essencial entre o masculino e o feminino, no
contexto de uma ciência criada e desenvolvida por homens ocidentais brancos,
estava inserida, contraditoriamente, numa ideia de que as ciências eram neutras,
objetivas, racionais e universais. Nos anos após 1970 começou-se a discutir
como o gênero seria uma variável no saber científico. Como afirmado acima, as
ciências da biologia e da medicina foram fortemente influenciadas por uma vi-
são masculina da natureza dos corpos masculino e feminino. A ciência, portan-
to, é produto de seu tempo e da sua localização espacial. No caso, a ciência que
prevaleceu é a ciência criada por homens brancos ocidentais (Hirata et al, 2009).
Desde o início dos anos 1970 passou-se a tentar resgatar a história de
mulheres que fizeram contribuições importantes para o empreendimento
científico, sem que lhes fossem dados os créditos. Há um esforço contínuo de
se fazer este reconhecimento tardio. Na medida em que se foram encontrando
estes indícios de exclusão, modificou-se o enfoque destas mulheres excepcio-
nais para o exame dos padrões gerais de participação das mulheres na ciência.
Muitos estudos demonstram as diversas formas que se erguem barreiras estru-
turais à participação das mulheres, entre as quais a discriminação sexual no
emprego e o tipo de socialização e educação que as meninas recebem.
Acreditava-se bastarem políticas de promoção da igualdade que per-
mitissem o acesso à educação e ao emprego para diminuir a desigualdade.
Essa abordagem localiza o problema nas mulheres (deficientes na formação,
desinteresse pela ciência). Surge daí uma tentativa de enquadrar as mulheres
num modelo masculino de ciência, de forma a que, para que elas se adaptem,
tenham que se masculinizar.
Não há diferença biológica entre homens e mulheres a justificar uma
alegada superioridade intelectual masculina em alguns campos do conheci-
mento. Há, contudo, diferenças reais na forma em que a sociedade se organi-

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

za, com papeis diferenciados por gênero. As mulheres, desde muito cedo, são
impelidas a assumir estes papeis (tal como os homens). Assim, não é justo
nem produtivo ter papeis pertinentes a gênero muito bem definidos e preten-
der que tudo o mais se arranje a partir do oferecimento de vagas nas univer-
sidades e, eventualmente, algum sistema de cotas nas empresas. O fracasso
dessas políticas que tratam apenas da parte final do processo desigual será
ainda maior a se considerar o conteúdo e o ambiente masculino da ciência.
O conhecimento científico é afetado pela sociedade em que é condu-
zida. Considerações sociais e políticas entram nas avaliações científicas da
verdade ou falsidade de diferentes teorias. Mesmo o que se considera “fato”,
que seria estabelecido por experiência e observação, tem um conteúdo social.
Mas foi apenas no fim do século XX que se começou a admitir que a ciência
desenvolvida no ocidente era inerentemente patriarcal (Wajcman, 2000a).
Bordieu (2002b) faz um alerta sobre a armadilha de se tentar compreen-
der a dominação estando o próprio observador inserido num contexto sexista:
“Como estamos incluídos, como homem ou mulher, no próprio
objeto que nos esforçamos por apreender, incorporamos, sob a
forma de esquemas inconscientes de percepção e de apreciação,
as estruturas históricas da ordem masculina; arriscamo-nos,
pois, a recorrer, para pensar a dominação masculina, a modos de
pensamento que são eles próprios produto da dominação”.

Por outro lado, a tentativa de se criar uma ciência “feminina” pode levar
a enganos semelhantes, como uma proposta de se criar uma ciência neutra,
que agregasse valores femininos e masculinos, ignorando que estes valores
não são naturalmente femininos e masculinos, decorrem da divisão do tra-
balho. Por outro lado, a própria ideia do que seja natural é construída cul-
turalmente. O que é considerado como masculino em algumas sociedades é
considerado feminino ou neutro em outras (Wajcman, 2000c).
Wajcman (2000d) afirma que a racionalidade e a intuição devem ser
vistas como produtos sociais historicamente específicos, e que devemos nos
envolver nas práticas sociais para redefini-las. A base de poder dos homens
não é simplesmente um produto das ideias que defendem ou da linguagem
que usam, mas de todas as práticas sociais que dão aos homens autoridade
sobre as mulheres.
Bordieu (2002c), também tratando da divisão social do trabalho, mas
acrescentando a influência de mecanismos simbólicos para a perpetuação da
dominação masculina, afirma que:

49
Organizadora : Edelamare Melo

“a força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dis-


pensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra
e não tem necessidade de enunciar em discursos que visem a
legitima-la. A ordem social funciona como uma imensa máquina
simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a
qual se alicerça: é a divisão social do trabalho, distribuição bas-
tante estrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos,
de seu local, seu momento, seus instrumentos (...)”.

Até aqui falou-se da participação das mulheres nas descobertas cientí-


ficas. Entretanto, tudo que foi dito também se aplica ao que se entende por
tecnologia, embora os conceitos de ciência e tecnologia muitas vezes se con-
fundam. Porém, para este artigo é importante um aspecto da tecnologia, que
se conhece como tecnologia da informação, com sua irmã no campo científi-
co, a ciência da computação.
Embora a tecnologia não possa existir sem uma ciência que lhe dê su-
porte, ela se apresenta como uma faceta prática do conhecimento. Em grande
parte, a tecnologia envolve a criação, o desenvolvimento e a produção de arte-
fatos úteis para a humanidade. A ideia de um inventor é a de um homem, mas
as mulheres vêm inventando artefatos úteis e que definem a própria civilização,
como a máquina de fiar algodão, sem a qual não teria sido possível tecer, e,
indo ainda mais longe, foram as mulheres africanas que há milênios inventaram
boa parte das ferramentas e técnicas que permitiram a agricultura de escala,
como a enxada, o arado, a polinização manual e a irrigação (Wajcman 2000e).
Mas se desde os primórdios da história da humanidade as mulheres
criam, porque não há este reconhecimento?
Wajcman (2000f) volta a Marx para tratar da divisão do trabalho. As
máquinas, na revolução industrial, foram desenvolvidas deliberadamente
para excluir da forma mais ampla possível o trabalho humano. A tecnologia
esteve, desde os primórdios da revolução industrial, a serviço do lucro. As
relações de produção se baseiam tanto na divisão de classes como na divisão
de gênero. O monopólio da criação, desenvolvimento e produção de máqui-
nas estava então, mais uma vez, nas mãos dos homens ricos e brancos. “A
primazia universalmente concedida aos homens se afirma na objetividade de
estruturas sociais e de atividades produtivas e reprodutivas, baseadas em uma
divisão sexual do trabalho de produção e de reprodução biológica e social,
que confere aos homens a melhor parte” (Bordieu, 2002d).
Enquanto na sua origem a tecnologia têxtil contava com hábeis artesãs
mulheres, com a industrialização desta atividade o número de trabalhadores
necessários diminui. Assim, diante da escassez de vagas, os próprios trabalha-
50
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

dores homens começaram a excluir as mulheres dos sindicatos, a fim de dimi-


nuir a concorrência por vagas. Embora por milênios a tecelagem tenha sido
uma atividade eminentemente feminina, realizada dentro de casa, a divisão
do trabalho por gênero mudou várias vezes durante o processo de industriali-
zação da produção têxtil, antes de resultar na exclusão das mulheres. Quanto
mais se recua na história, mais a atividade era controlada por mulheres. Ape-
nas no século XVII os homens tornaram-se tecelões profissionais, e muitas
vezes afirmava-se que os homens tinham força ou habilidade superior - o que
era necessário para certos tipos de tecidos. Assim, o aumento da demanda por
máquinas de tecelagem manuais, no final de 1700, trouxe mais empregos para
homens, em prejuízo das mulheres.
O controle da “tecnologia-chave” da indústria têxtil, com toda a sofistica-
da maquinaria, passou a estar na posse dos homens. As mulheres, excluídas das
“tecnologias-chave” ficam relegadas ao acessório, ao periférico. O que aconte-
ceu na indústria têxtil tem paralelo com o que acontece atualmente na ciência da
computação. Apesar das mulheres terem sido tecelãs por milênios, a industriali-
zação, que tornou a fabricação de tecido muito mais lucrativa, retirou-as do seu
processo de fabricação. Da mesma forma, a programação de computadores, ao se
revelar lucrativa, retira de cena as mulheres, como veremos mais adiante.
Hoje é senso comum que a criação de tecnologia de celulares e com-
putadores, bem como a programação destes computadores, pelo menos no
ocidente, é uma atividade masculina. Mas nem sempre foi assim. Além da
pioneira da programação, Ada Lovelace ter sido uma mulher, há uma extensa
lista de mulheres que se destacaram nesta área, especialmente até os anos oi-
tenta4. Pode-se mesmo afirmar que talvez o ser humano não tivesse chegado
à lua se não fossem pelo menos duas mulheres.
A primeira mulher que podemos destacar na área de tecnologia é a atriz
austríaca Hedy Lamarr. Junto com seu então marido, compositor, patenteou,
na década de quarenta, uma tecnologia que, décadas mais tarde, serviria de
base para a tecnologia de wi-fi e telefones celulares. Hoje ela é considerada a
mãe do telefone celular.
Em 1945, na criação do primeiro computador totalmente eletrônico, o
Eniac, seis mulheres tiveram importância crucial na programação desta máquina:
Marlyn Meltzer, Ruth Teitelbaum, Frances Spence, Kathleen Antonelli, Jean Bar-
tik e Betty Holberton. Embora a construção do ENIAC não tivesse terminado sem
suas contribuições, nenhuma delas foi convidada para o jantar de inauguração.

4
https://courses.cs.washington.edu/courses/csep590/06au/readings/p175-gurer.pdf, acessado em 09.09.2017

51
Organizadora : Edelamare Melo

Em 1952, a Contra-Almirante Grace Hopper criou um dos primeiros


compiladores do mundo (em seu tempo livre). Compilador é uma linguagem
de programação que facilita a programação, pois a torna mais próxima da lin-
guagem humana, diferente do que se fazia até então, que era programar usan-
do números. Ela teve a ideia de um código para usar instruções baseadas na
língua Inglesa, e seu trabalho de design de linguagem de programação levou
à criação do COBOL, usado até hoje, principalmente por bancos.
Talvez a mais surpreendente história seja a de Dorothy Vaughan5, uma
matemática negra, que se tornou programadora de computadores na NASA.
Ela chegou ao Laboratório Aeronáutico Memorial de Langley em 1943, du-
rante o auge da Segunda Guerra Mundial, deixando sua posição como pro-
fessora de matemática. Dois anos depois, o presidente Roosevelt assinou a
Lei Executiva 8802, proibindo a discriminação racial, religiosa e étnica na in-
dústria de defesa do país. Assim o Laboratório começou a contratar mulheres
negras para atender a crescente demanda por processamento de dados de pes-
quisa aeronáutica. Dorothy Vaughan foi designada para a segregada unidade
“West Area Computing” um grupo totalmente negro de mulheres matemáti-
cas, que originalmente precisavam usar instalações para banheiros separados.
Ao longo do tempo, tanto individual como em grupo, a West Computers se
distinguiu com contribuições para praticamente todas as áreas de pesquisa em
Langley. As profissionais desta área eram conhecidas por “computadores”.
Dorothy Vaughan dirigiu a West Computing por quase uma década. Em 1958,
quando o NACA realizou a transição para a NASA, as instalações segregadas, in-
cluindo o escritório West Computing, foram abolidas. Dorothy Vaughan e muitos
dos antigos Computadores do Oeste juntaram-se à nova Divisão de Análise e Com-
putação (ACD), um grupo de integração racial e de gênero na fronteira da computa-
ção eletrônica. Dorothy Vaughan tornou-se uma programadora especialista em FOR-
TRAN. Mas é impossível mencionar Dorothy Vaughan sem falar de outra mulher
negra excepcional, Katherine Johnson, embora ela não tenha sido programadora de
computadores, mas matemática. Entre os anos de 1953 e 1958, Johnson trabalhou
como “computador humano” para o Comitê Consultivo Nacional de Aeronáutica
(Naca), órgão que viria a ser a Nasa. Em 1962, a Nasa começou a usar computa-
dores eletrônicos pela primeira vez, um modelo da IBM. No entanto, o astronauta
Glenn se recusou a entrar no foguete antes que Johnson verificasse a rota criada pelo
computador. Outra contribuição importante de Johnson foi o cálculo da trajetória do
voo do Apolo 11, o foguete que levou os homens à Lua pela primeira vez, em 1969.
Essas duas mulheres, juntamente com Margaret Hamilton, de quem tra-
taremos a seguir, foram essenciais para a ida do ser humano à lua, como muito
5
https://www.nasa.gov/content/dorothy-vaughan-biography, acessado em 09.09.2017

52
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

bem descrito no livro Estrelas Além do Tempo, de Margot Lee Shtterly, cujo
nome original é o adequado “Hiden Figures” (Figuras Escondidas), que foi
transformado em filme em 2016.
Margaret Hamilton criou o programa de computador que auxiliou as ma-
nobras espaciais que levaram o ser humano à Lua. O programa era tão robusto
e bem pensado que, quando a quantidade de informações se tornou excessi-
va para a capacidade limitada dos processadores da época, graças a um erro
de operação do astronauta, ao invés de simplesmente travar, como acontece
com qualquer computador moderno, o programa continuou rodando, apenas
interrompeu os dados menos relevantes. O código de programação escrito por
Margaret e sua equipe formava uma pilha de papel mais alta que ela mesma. 6
Elsie Shutt (nascido em 1928) foi uma programadora e empresária america-
na que fundou a Computation Incorporated (CompInc) em 1957. Ela foi a primei-
ra mulher a estabelecer uma empresa de software nos Estados Unidos. Mas a lei
de Massachusetts exigiu que ela abandonasse sua empresa depois de engravidar.
No gráfico abaixo vemos que a porcentagem de mulheres que mani-
festam interesse em estudar ciência da computação caiu de 4,2% em 1982, o
auge do interesse tanto para homens como para mulheres, para apenas 0,3%
em 2007, ao passo que os homens tiveram um outro pico de interesse em
1999, chegando a 6,5% em 1999, proporção que em 2007 caiu para 2,1%.7

Faruk Ates (2017a) conta em artigo on-line que James Damore, um enge-
nheiro do Google, escreveu um memorando de 10 páginas argumentando que
os esforços da empresa para melhorar a diversidade teriam sido equivocados.
Damore baseou sua tese nas ideias da Psicologia Evolutiva e na teoria dos “cinco
grandes traços de personalidade”, argumentando, em essência, que entre homens

6
http://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Espaco/noticia/2015/07/conheca-programadora-que-tornou-ida-da-huma-
nidade-lua-possivel.html Acessado em 30.08.2017
7
http://femalecomputerscientist.blogspot.com.br/2010/08/women-in-cs-its-not-nature-its-culture.html acessado em
25.08.2017

53
Organizadora : Edelamare Melo

e mulheres existem diferenças psicológicas (verdadeiras). Estas seriam, portan-


to, determinadas pela biologia, o que explicaria as diferenças entre homens e
mulheres em seus interesses e representatividade subsequente no campo da ci-
ência da computação e programação (embora não se tenha fornecido nenhuma
evidência histórica). Não há problema, comenta Ates, em se acreditar na corrente
de pensamento que se quiser. O problema é usar um texto pretensamente cientí-
fico para justificar um comportamento discriminatório, quando há toneladas de
outros estudos científicos em sentido contrário. E simplesmente ignorá-los.
Nos anos 60, o trabalho de programação era considerado um “trabalho de
mulher”, aos homens caberia a parte “difícil”, o hardware. Era como se a orga-
nização de mulheres no lar servisse bem para a tarefa de programar. Vimos algo
parecido com a tecelagem. As mulheres poderiam fazer o trabalho repetitivo de
tecer, em suas próprias casas, enquanto vigiavam as crianças. A tecelagem nun-
ca foi considerada arte, mas uma versão pobre desta, o artesanato, ainda que
peças esteticamente belíssimas tenham sido tecidas por mulheres. Da mesma
forma, a parte “nobre” do trabalho na ciência da computação era a criação das
máquinas e dos microchips que as compunham. O software era uma tarefa me-
nor que poderia ser deixada para as mulheres. Entretanto, nos anos seguintes,
a cultura pop, filmes e videogames, ajudaram a definir a tecnologia como um
“brinquedo masculino”. Quando tiveram que decidir em que sessão da loja os
jogos eletrônicos ficariam, decidiram coloca-los com os brinquedos dos me-
ninos. A mensagem foi clara: “A tecnologia é para meninos, e não meninas”.
Essa mensagem foi reforçada com os dois “garotos propaganda” da tecnologia:
Steve Jobs e Bill Gates. Aos poucos, o recrutamento de mulheres neste setor foi
sendo evitado, através de testes de aptidão que tendiam a favorecer os homens.
Piadas sexistas eram comuns no setor de tecnologia (Ates, 2017b).
Mais uma prova de que a aparente “inaptidão” das mulheres para a matemá-
tica e o raciocínio lógico é uma questão cultural e não está na natureza delas é que
estas relações de gênero dependem do país. No ano de 2011, nos EUA, apenas 18%
dos graduandos em Ciência da Computação e Engenharia eram mulheres, enquan-
to na Índia esse número foi de 42%. Em 2005, na Índia, olhando para Ciência da
Computação sozinha, as mulheres formaram 55% do total de bacharéis nesta área.
A diferença cultural é fundamental: nos EUA, a ciência da computação é cultural-
mente definida como um campo de “macho”, mas na Índia tanto os homens como
as mulheres veem o campo da tecnologia como algo para todos os sexos, e as pes-
soas aspiram a trabalhar com o mesmo interesse (Ates, 2017c).
É fácil perceber que aconteceu no ocidente um fenômeno parecido com
o experimentado por mulheres tecelãs. Quando o desenvolvimento de softwa-

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

re parecia uma atividade menor e pouco lucrativa, que envolvia um processo


maçante e praticamente artesanal, permeado de pequenos detalhes, a divisão
social do trabalho por gênero atribuiu às mulheres esta tarefa. Contudo, quan-
do em meados da década de 1980, com a criação do multimilionário mercado
do sistema operacional MS-DOS desenvolvido pela Microsoft tornou-se uma
realidade, as mulheres começaram a ser excluídas e desestimuladas a partici-
par desta área, que começou a ser rotulada de “masculina”.
Em pesquisa realizada especialmente para ilustrar este artigo, setenta
e cinco estudantes mulheres e professoras da área de ciência da computação
e correlatas responderam a um questionário eletrônico. Elas descreveram a
reação das pessoas ao tomarem conhecimento de sua área de formação. No
campo aberto recebeu-se muitas frases indicativas da ideia de ser masculina a
área de tecnologia: “percebo um certo espanto, como se as áreas de tecnologia
fossem mais voltadas aos homens”; “Quando eu disse que iria fazer ciências
de computação, professores e amigos tentaram me dissuadir, porque aquela
área era muito masculina e não era para mim”; “sou lésbica cisgenero, mas
não sou afeminada. As pessoas infelizmente ligam a computação como uma
área para homens, e acabam por julgar minha sexualidade por isso também.
Dizem que é bem a minha cara, que combina comigo, mas sem dúvida nenhu-
ma não afirmariam isso pra uma mulher mais afeminada”.
Reportou-se, anteriormente, à política de admissão nas grandes empresas
de tecnologia que desfavoreciam a contratação de mulheres. Também se mencio-
nou o ambiente sexista, que desestimula a permanência daquelas que conseguem
furar o bloqueio. Assim, tratou-se do acesso à formação universitária e profis-
sional. Mas existem outros mecanismos de exclusão das mulheres do mundo da
tecnologia, que desestimulam até mesmo o uso da tecnologia a seu favor.
A revolução tecnológica da informação trouxe para a cultura um novo
elemento: as redes sociais, como facebook e twitter. Estas tecnologias - em-
bora como toda ferramenta podem ser bem ou mal utilizadas - têm-se mostra-
do uma alarmante via para a prática da violência de gênero. A violência contra
as mulheres on-line é semelhante à violência off-line, conquanto tenha as suas
particularidades, podendo, em alguns aspectos, ser ainda mais nociva.
O espaço virtual, também conhecido por ciberespaço, da mesma for-
ma que no espaço “real”, é impregnado de práticas que tem o objetivo de
criar, reforçar e naturalizar o domínio masculino. Este domínio é assumido
por homens brancos, cisgeneros. Embora o assédio seja um fenômeno global,
a internet continua reproduzindo um modelo de abuso herdado dos primeiros
anos da internet. É cada vez mais difícil separar as fronteiras da violência on

55
Organizadora : Edelamare Melo

-line da off-line. Na pesquisa já mencionada, à pergunta se a pessoa já sofrera


alguma forma de violência direta ou indireta, presencial ou virtual, em razão
da sua área de formação, 31% respondeu que raramente (uma ou duas vezes)
e 13% respondeu que frequentemente (três vezes ou mais). Por outro lado,
38% das mulheres responderam que foram alvo de assédio moral ou sexual
no ambiente acadêmico ou profissional e 25% responderam que sim, pelo me-
nos uma vez. No campo aberto da pesquisa, entre outros relatos de violência
real e simbólica, encontra-se o de uma das mulheres que reportou ter sofrido
ameaças de um estudante que tentou difamá-la em rede social, chegando a
afirmar que ela merecia levar um tiro.
Além da violência direta, com ofensas, xingamentos, campanhas de ódio,
existem formas mais sutis de violência contra as mulheres. Uma destas formas é o
controle masculino da conversação. Policiar as maneiras pelas quais as mulheres
interagem verbalmente com os homens é uma forma de violência que mantém
sistemas de controle que favorecem os homens e a masculinidade, resultando em
silenciamento e apagamento deliberado (Poland, 2016a). Mais uma vez a pes-
quisa parece corroborar esta afirmação, pois 74% das mulheres pesquisadas res-
ponderam afirmativamente à pergunta se ela tem a impressão de que tem que se
esforçar mais do que os homens para ser ouvida e ter a sua opinião considerada
numa discussão profissional ou acadêmica envolvendo computação.
O estereótipo de que as mulheres falam demais é, de fato, uma ramifica-
ção do fato de que os homens tendem a dominar todas as discussões casuais
e profissionais. A proeminência das vozes masculinas na conversa se estende
até o quanto eles interrompem as mulheres. Os homens tendem a ser sociali-
zados para se afirmar em conversa, inclusive interrompendo outros oradores
- especialmente as mulheres - para se posicionarem como o indivíduo com
mais autoridade na discussão. A maioria dos estudos sobre padrões linguísti-
cos e gênero constata que os homens usam a interrupção para assumir o con-
trole de uma conversa. On-line, como off-line, os homens tendem a dominar
conversas de grupos mistos. Os homens escrevem a maioria dos artigos para
os boletins de notícias (mais de 60% dos créditos e aparecimento na câmera
para as organizações de notícias são de homens), e é mais provável que eles
tenham precedência em conversas ocasionais em fóruns e mídias sociais. Em
geral, as mulheres não só falam ou escrevem menos do que os homens quan-
do se comunicam on-line, mas também recebem menos respostas positivas
aos tópicos que eles criam (Poland, 2016b).
Mais uma vez a pesquisa parece confirmar estas assertivas, pois, res-
pondendo à pergunta “você já sentiu ser ignorada numa discussão com ami-

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

gos sobre assuntos relacionados à tecnologia da informação e seus desdo-


bramentos (redes sociais, aplicativos, videogames etc”, 50% das mulheres
responderam que sim, frequentemente e 30% também sim, mas raramente.
No campo aberto, assinalaram frases como “E é aí que eu tenho que aumentar
a voz, ser incisiva, a verdade que cansa e muito”; “Só tenho a dizer que eles
ignoram o que digo totalmente”; “Geralmente minha opinião é a última a ser
levada em consideração em minha área”; “Isso acontece principalmente no
trabalho, aconteceu de eu sugerir algo e ser ignorado e na sequencia um ho-
mem sugerir a mesma coisa e acharem a ideia muito boa”.
Embora as mídias sociais e os fóruns ocasionais possam parecer o maior
espaço de assédio devido à facilidade de interação imediata, as táticas abusivas
são comuns em todos os espaços on-line, inclusive os acadêmicos. Nos sites
de notícias, durante as conversas pessoais, nas redes sociais, nas salas de aula
on-line, as mulheres estão constantemente sujeitas a estratégias conversacionais
e retóricas que tentam posicionar os homens como atores poderosos e mulheres
como participantes subordinadas, se não observadores silenciosos ou invisíveis.
O uso de memes como uma estratégia de mensagens on-line geralmente incor-
pora aspectos sexistas e feministas da comunicação. Os cibersexistas frequen-
temente criam e compartilham arquivos de imagem com estereótipos, piadas
sexistas ou outros comentários sobre uma imagem escolhida (Poland, 2016c).
Os cibersexistas também dependem fortemente do anonimato - ou do
anonimato percebido - para conduzir suas atividades on-line. O abuso de gê-
nero e as ameaças são um pouco mais fáceis de combater quando as pessoas
envolvidas nessas atividades o fazem sob seus nomes reais. Os assediadores
costumam usar o anonimato para dizer que o que eles publicam não significam
o assédio, pois não retratariam suas opiniões verdadeiras (Poland, 2016d).
Os abusadores sexistas cibernéticos muitas vezes usam o conceito de
trolling como uma maneira de não assumir as responsabilidades para suas
próprias ações, enquadrando a misoginia violenta e outros comportamentos
como meras brincadeiras irreverentes. Além da percepção de falta de penali-
dades para o ciberespaço, a capacidade de recrutar outros rapidamente criou
condições para mais e mais exemplos extremos de abuso on-line, tais como
atividades de mobbing e campanhas coordenadas de assédio dirigidas a indi-
víduos ou grupos pequenos de mulheres alvo (Poland, 2016e).
A trollagem, se definida como distrações e perturbações irritantes, mas
inofensivas, não descreve a cultura generalizada de abuso e assédio on-line
experimentados por mulheres. Apesar disso, o abuso e o assédio do ciber-
sexista são frequentemente definidos como trollagem, como se fossem uma

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Organizadora : Edelamare Melo

brincadeira inocente. Essa definição errada leva a uma desconexão profunda


da maneira como discutimos o abuso on-line. Muitas vezes, somos propensos
a rotular qualquer comportamento agressivo como trolling - não importa quão
prejudicial é - e simplesmente encorajar as mulheres a não alimentar os trolls,
como se ignorar um problema o fizesse desaparecer. (Poland, 2016f).
A origem do termo “Troll” vem da rede de fóruns Usenet, dos anos 1990,
uma referência à expressão trolling for suckers (“lançar iscas para otários”, em
português). Seu significado original é fisgar pessoas em fóruns e sites por meio
de ofensas ou palavras sem sentido com o único objetivo de deixá-las nervosas.
Por exemplo, entrar num grupo religioso no Facebook só para dizer que Deus não
existe e assistir às reações das pessoas por diversão. Mas embora mesmo como
brincadeira a trollagem possa ser uma perversa forma de perpetuação da cultura
sexista, a prática foi se tornando tão agressiva que passou a configurar crime.8
Um caso de trollagem criminosa que explodiu recentemente foi o cha-
mado Gamergate. Tudo começou com uma história da vida privada que se
tornou pública e virou alvo de escrutínio e uma revolta contra corrupção na
imprensa. Em agosto, o ex-namorado da programadora de jogos Zoe Quinn
publicou um texto em vários fóruns acusando-a de o ter traído com um jor-
nalista de videogames. Vários gamers tomaram as dores do ex e descontaram
na programadora sua insatisfação com a indústria. Zoe então publicou uma
carta contando que sofreu uma série de ameaças de estupro e morte e que teve
dados pessoais seus e de amigos próximos divulgados na internet. Ainda em
agosto, o ator Adam Baldwin cunhou a hashtag #Gamergate – em referência
ao escândalo Watergate, que derrubou o presidente americano Richard Nixon
nos anos 1970 – ao pedir maior transparência no jornalismo de videogames.
No mesmo dia, Anita Sarkeesian, uma jornalista conhecida por fazer
vídeos criticando a forma como mulheres são representadas nos jogos, contou
que deixou de sair de casa após ser alvo de uma enxurrada de mensagens de
ódio. Ela sofre ameaças desde 2012, quando criou um canal no YouTube. O
movimento cresceu, o FBI foi acionado para investigar as ameaças virtuais.
Até que, em outubro de 2016, o assunto virou manchete do The New York
Times depois que Anita cancelou uma palestra na Universidade de Utah por
causa de um e-mail com uma ameaça do “mais mortal massacre escolar da
história do país”. O caso, extremamente complexo, continua a ser debatido
nos Estados Unidos. Muitas vezes as ameaças não são reais, mas outras vezes
são. Como se proteger senão levando à sério todas as ameaças?

8
http://revistagalileu.globo.com/Revista/noticia/2015/02/quem-sao-os-trolls-e-por-que-ninguem-esta-livre-deles.
html, acessado em 10.09.2017

58
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

O antídoto comumente vendido está concentrado na fórmula “não alimen-


te os trolls”. Mas mesmo que as mulheres fiquem off-line (ou nunca aproveitem
as atividades on-line), as ameaças de violação, os comentários sexualmente
degradantes e as declarações prejudiciais permanecem on-line, acessíveis a
qualquer pessoa que esteja procurando um alvo com nomes de mulheres. O
assédio permanece visível para os empregadores, amigos, familiares e estra-
nhos, alguns dos quais podem optar por continuar o abuso ou, sem resposta ou
refutação, acreditar que o que já foi postado sobre uma mulher é verdadeiro.
Desse modo, a própria empregabilidade também pode ser afetada pela vio-
lência on-line, reduzindo ainda mais as chances de as mulheres conseguirem um
emprego. Numa sociedade tecnodependente como a que se está formando ao longo
dos últimos cinquenta anos, é praticamente impossível viver sem estar conectado.
Excluir-se do mundo on-line significa excluir-se de boa parte do mundo atual.
Campanhas de ódio, cyberbulling, assédio on-line, trolling são reali-
dades enfrentadas por escritoras, artistas e blogueiras no Brasil e no mundo.
Mas não quaisquer escritoras, artistas, e sim, por exemplo, as que tratam de
temática feminista. Enquanto as mulheres assumem o papel que a sociedade
sexista espera delas não há confronto. Basta que o discurso ameace minima-
mente a dominação masculina para que todas as armas virtuais sejam aciona-
das na tentativa de amedrontar e silenciar.
Temos alguns exemplos recentes. Em 2015 a professora universitária e
blogueira Lula Anorovich descreveu em seu blog “Escreva Lola Escreva” a
campanha de ódio que vem sofrendo, desde que começou seu blog feminista
há vários anos, e as ameaças e perseguições que resultaram em um boletim
de ocorrência policial9. Lola narra detalhadamente toda a sequência de xin-
gamentos, ameaças e todo tipo de violência virtual que sofreu, bem como as
providências que tomou, algumas com resultado parcial, outras com frustran-
te desfecho. Infelizmente o pesadelo de Lola não terminou (mas, felizmente,
nem a disposição dela de continuar lutando). Basta uma pesquisa na internet
para encontrar dezenas de vídeos, textos e imagens com ataques violentos à
professora, inclusive ameaças veladas e explícitas.
Outro exemplo brasileiro de violência virtual pode ser encontrado no
episódio envolvendo a escritora brasileira Clara Averbuck em 2017. Ela con-
tou publicamente ter sido vítima de violência sexual por um motorista de
Uber, que se aproveitou do seu estado de embriaguez alcoólica. Após este
relato, começou a ser agredida on-line, conforme ela mesmo contou em seu

9
http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/search?q=boletim, acessado em 11.09.2017

59
Organizadora : Edelamare Melo

blog. Vários internautas, inclusive mulheres, a acusaram de apenas buscar


fama. Na sua página do facebook, ao postar o texto acima, publicado na re-
vista virtual “Donna”, Clara Averbuck recebeu inúmeros ataques de conteúdo
violentamente sexista.
Um exemplo ainda mais recente envolve uma artista plástica consagra-
da mundialmente, Adriana Varejão. Um quadro de 1994, que compunha uma
exposição organizada por uma entidade privada, foi envolvido numa falsa
polêmica criada por um grupo organizado que tenta fazer prevalecer sua ide-
ologia aproveitando-se de valores pretensamente moralistas. A autora foi acu-
sada de fazer apologia à zoofilia, como se pintar um quadro seja corroborar
seu conteúdo, como se a obra se confundisse com o artista. As mesmas armas
virtuais utilizadas em dezenas de situações, principalmente contra mulheres
que defendem direitos humanos e, em especial, os direitos das mulheres, foi
acionada para atingir a artista brasileira, com xingamentos direcionados espe-
cificamente às mulheres, bem como memes e gravuras.
A submissão das mulheres ao poder e dominação masculinos provavel-
mente teve início por meio de um acaso aleatório da natureza. O organismo
masculino produz vinte vezes mais testosterona que o organismo feminino.
Este hormônio torna os músculos mais fortes. Os homens primitivos compe-
tiam entre si pelas fêmeas. A força física era um critério de seleção natural. Esta
maior força física levou a um efeito colateral da seleção: as mulheres, fisica-
mente mais fracas, foram subjugadas pelos homens e, em consequência, tive-
ram também a sua inteligência desprezada por estes, através de mecanismos de
violência real e simbólica, que vem sendo reproduzidos há milhares de anos.
Evidente que a força física não é mais um fator relevante na competição
pelas mulheres. Contudo, pela perpetuação da cultura de dominação e por
meios simbólicos arraigados, a subjugação continuou ocorrendo. Assim, as
mulheres continuaram ocupando um espaço residual na sociedade, assumin-
do tarefas recusadas pelos homens na divisão social do trabalho.
A tecnologia pós revolução industrial, contudo, encerra de vez a im-
portância da força masculina como mecanismo de submissão. As máquinas
substituem a força animal e a força humana. A tecnologia tem o potencial
de criar ferramentas que tornam possível a igualdade física. Embora a força
física já não seja tão determinante para a dominação, o simbolismo contido
na eliminação desta diferença como vantagem masculina é suficiente para
criar uma resistência. Talvez por isso exista um inconsciente (e muitas vezes
consciente) movimento para excluir das mulheres o domínio da tecnologia, e,
assim, dar prosseguimento à submissão feminina.

60
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Para superar a desigualdade em geral e em especial na tecnologia não


bastam políticas inclusivas tradicionais, como cotas para mulheres em cursos
universitários e nas empresas. É necessária uma transformação cultural pro-
funda que elimine a naturalização da dominação masculina.
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61
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

OUTRAS ÁGUAS DE MARÇO

Milsoul Santos

Outro dia eu fiquei matutando e me perguntando...


Se Tom Jobim fosse uma cria do Complexo do
Alemão ou da Maré, como ele escreveria as
suas águas de março?
Penso que, por certo, seriam outras águas
de março e Tom Jobim escreveria assim:
É pó, é pedra / é o fim do irmãozinho
é um resto de corpo / é um pobre neguinho
é um bocado de vício que o deixa pior
é a noite sinistra / é o caos sol a sol
é a barriga roncando / é a velha peleja
é a polícia chegando / é a bala certeira
é minha gente gritando / é a maior choradeira
é a ira aquecendo / é a alma sedenta
é Keto, Jeje e Nagô / é a fé curandeira
é a batalha sem fim / da negona guerreira
é meu povo estudando / e tirando de letra
invadindo a facul com a mira certeira
é daquele jeitão / na função sem bobeira
é o livro na mão pra fazer bagaceira
é a inversão de papel / é a reparação
é a frieza pulsante / é a disposição
é o quilombo moderno / é o novo caminho
é o Griot ensinando tudo pro novinho
é estreito, é reto, é Dandara chegando
é Zumbi com o exército estrategiando
é o morro acordado / é o asfalto roncando
é a luz do amanhã / é o Gueto mandando
é Bicudo, é Bicuda / é a cara amarrada
é a Favela formal e informal dando as cartas
é o Terreiro cuidado / revitalizado
é o intolerante calado, enjaulado
é o Preto Velho em paz no divã
é Amor sem miséria / manhã pós manhã.
São OUTRAS ÁGUAS DE MARÇO fechando o verão,é promessa de vida
no meu coração
63
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

O FUNDO PATRIMONIAL DA REPARAÇÃO DA ESCRAVIDÃO

Antonio Gomes da Costa Neto1

O presente trabalho visa complementar a pesquisa de Santos (2018)


sobre a reparação da Escravidão Negra no Brasil, cujo embate teórico, fi-
nanceiro, social vem sendo desenvolvido no plano internacional e nacional,
constitui-se um dos maiores embates e desafios enfrentados pelos Estados.
Segundo Santos (2018) a Convenção de Durban (2001) prevê o reco-
nhecimento expresso das medidas de reparação, apresenta às diversas normas
legais que recepcionaram as medidas para a consecução desse direito, posto
isso fundamenta seu posicionamento nos conceitos do direito a verdade, me-
mória, o não esquecimento, alteração das instituições e justiça.
Hodiernamente, elenca alguns processos de reparação, entre esses as
ações afirmativas (laboral e educacional), reconhecimento das terras quilom-
bolas (material e simbólica), Comissão Nacional da Verdade da Escravidão
Negra do Brasil do Conselho Federal da OAB (direito subjetivo ao reconhe-
cimento), além dos processos educacionais (desconstrução do racismo).
As questões epistemológicas relevam como causa fundante o colo-
nialismo, inicia-se pela escravidão moderna ou colonial, cujo objetivo prin-
cipal daquela empreitada foi à busca incessante do enriquecimento material e
da expansão religiosa (COSTA NETO, 2019; RIBEIRO, 1983; TODOROV,
1999 [1982]). Logo, a relação causal para se estabelecer o direito à reparação.
O processo da escravidão moderna ou colonial para se constituir como
verdade utilizou-se de paradigmas como o racismo pelo viés religioso (GROS-
FOGUEL 2012, 2016), do mito da pureza de sangue (BONFIM, 2014; CAR-
NEIRO, 2005; SICROFF, 1982) e foi largamente utilizado nas Américas.
Sustentado em uma ordem legal, institucional, econômica e evangelizado-
ra, de forma perene esteve presente durante séculos na América, e os processos
de escravidão os quais foram extintos por meios legais, todavia, o racismo perma-
nece na sociedade (BARNADAS, 1990; GERENDER, 2000; RIBEIRO, 1983).
Entretanto, dilemas como civilização e progresso, as teorias biológicas,
sociais e o racismo científico, cultural e da ordem estatal buscaram demons-
trar que os conceitos de raça justificariam as discriminações sociais, jurídicas
e políticas por meio de discursos para estabelecer as diferenças raciais.
1
Mestre em Educação e doutorando em Ciências Sociais (UnB)

65
Organizadora : Edelamare Melo

O racismo reverberou em leis e costumes, na ordem social e econômica, em que


a prática de exclusão da população negra tem sido a regra mantenedora, dessa forma
a reparação é um dos procedimentos e mecanismos os quais devem ser recepcionados
pelos Estados, razão pela qual a escravidão deve ter o processo de reparação.
A reparação
Estabelecido o nexo causal entre o direito subjetivo a reparação da
escravidão, enfrentamos os problemas de se constituir o direito, porém, as
práticas racistas ao permaneceram na sociedade buscam de todas as formas
possíveis impedirem a correção dessas injustiças.
Os mecanismos de reparação apontados por Santos (2018) têm o objeti-
vo de contribuir para as políticas antirracistas, bem como podem ser inseridos
no tema da reparação, porém, para esse fito o racismo de igual sorte deve ser
compreendido como um problema não solucionado.
A reparação leva o Estado a reconhecer certas práticas – racismo institu-
cional – significa combater as medidas de exclusão, por meio de pesquisas e da
imposição de um direito subjetivo em favor da população negra, também incide
em reconhecer a existência de normas desfavoráveis aos povos originários.
Significa ter o Estado à obrigação de estabelecer o antirracismo como
Política de Estado, por meio de mecanismos capazes de refletir nas Políticas
Públicas de forma inequívoca e com critérios de avaliação com condições de
demonstrar a eficácia social (COSTA NETO, 2019).
Como bem acentuou Santos (2018) a Convenção de Durban reconhece
o direito a reparação, porém, a medida adotada para esse fim é o multicultura-
lismo como mecanismo reparatório, ou seja, políticas focais, por certo, não são
medidas de Estado e sim mecanismos de manutenção de uso recorrente para
procrastinar as práticas antirracistas (COSTA NETO, 2019; JONES, 1973).
Por sua vez, no aspecto da defesa do patrimônio – racismo cultural – os
processos de propostas antirracistas ao recepcionam o multiculturalismo, conse-
quentemente, políticas de transversalidade de inclusão da agenda deveriam ser
capazes de suplantar práticas racistas e promover a desconstrução do racismo.
Como bem acentua Grosfoguel (2007) o multiculturalismo ocidental
não questiona as hierarquias étnico-raciais, deixa quase intacta as situações
sociais, consolidam o modelo de diversidade como forma simples de admi-
nistrar os problemas gerados pelas sociedades multiculturais (HALL, 2003).
Logo, são medidas que precisam ser superadas (COSTA NETO, 2019).
E por derradeiro a Reparação em relação aos indivíduos - racismo individu-
al - quando a sociedade deve reconhecer que as práticas e os crimes da escravidão

66
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

são frutos de ideologias e práticas racistas voluntárias, conscientes e intencional-


mente ofertadas em relação aos povos de origem africana (COSTA NETO, 2019).
Por certo, ao se reconhecer essas práticas leva-nos a discutir os critérios de
reparação, tanto econômicas e sociais, e de mecanismos efetivos de consecução
de políticas antirracistas, de modo e evidenciar o direito subjetivo, em que a busca
de se evitar o reconhecimento a favor dos negros e povos originários é uma marca
constante, razão pela qual Estado utilizam-se de políticas multiculturais.
Modelos de Reparação
Seguindo os critérios de Santos (2018) sobre as formas de reparação,
nosso interesse é o de estabelecer os processos econômicos, pois os mecanis-
mos de combate ao racismo por meio do multiculturalismo tendem a mini-
mizar seus efeitos de modo a não modificar as condições dos prejudicados ao
utilizar-se tão somente de políticas focais.
Partimos da premissa do direito a verdade, ou seja, o discurso legitimador
do racismo e das práticas colonialistas baseadas na legislação, religião e ciência,
todas as formas de aferir o lucro em favor dos conquistados, a exploração e prá-
ticas de racismo, razão pela qual a omissão do não reconhecimento do racismo.
As normas internacionais de reconhecimento hodiernas discorrem sobre as
práticas imprescritíveis e dos crimes contra a humanidade, com direito a repara-
ção que devem ser realizados pelos Estados, bem como sustenta que não devem
ser repetidas, ou seja, no modelo capitalista qualquer situação que repercuta em
valores monetários reflete na vida da sociedade, pois interfere no lucro.
Portanto, a base da reparação deve ser sobre o lucro obtido com a escravidão,
pelo colonialismo e os efeitos decorrentes desses processos, todavia, qualquer situ-
ação que Estados partes não se resolveria com discussões teóricas em processos em
tribunais internacionais em curto prazo, como decorre do pleito da Comunidade do
Caribe (CARICOM) no plano de 10 pontos (Ten Point Action Plan2).
A reparação por meio de fundos patrimoniais
Sugere nesse ensaio que o processo econômico-pecuniário da repara-
ção pode ser obtido por meio de fundos constituídos com essa finalidade, os
denominados fundos patrimoniais de financiamento e manutenção com fins
institucionais da preservação da memória.
Os fundos patrimoniais de memória são aqueles destinados a preservação,
financiamento e manutenção em favor daqueles prejudicados pelo processo da
escravidão moderna ou colonial, ou seja, são recursos para promover além da
reparação garantir a longevidade dessa informação (COSTA NETO, 2019).

2
http://caricomreparations.org/

67
Organizadora : Edelamare Melo

Não se trata apenas de geração de recursos sem uma contrapartida, há ne-


cessária intervenção em favor da sociedade, pois tem como fito expor os horrores
da escravidão, divulgar a memória, promover a defesa do patrimônio cultural, e
um dos principais mecanismos são a inserção de recursos porventura recuperados.
Os fundos patrimoniais, além de recursos da reparação da escravidão, tam-
bém são oriundos de doações, por essa razão são fiscalizados pelo controle gover-
namental, pelo conselho de doadores, pela sociedade civil e tem a função de se
manterem com fins institucionais, divergente das políticas focais multiculturalistas.
Notadamente, os recursos recebidos são aplicados para a longevidade
da instituição, sejam esses públicos ou privados, em que as práticas antirra-
cistas devem ser empregadas no modelo institucional, porém, esses recursos
seriam geridos e administrados em favor do direito a reparação, não se trata
de operações pontuais, evitando-se os mecanismos de patrimonialismo.
A origem dos recursos
Estabelecidos os fundamentos da reparação, necessário se faz identificar os
recursos disponíveis para a consecução da reparação, ou seja, tanto a discussão
jurídica de longo prazo e a de curto prazo, afinal, atribuir tão somente os efeitos
de futuras decisões pecuniárias seria contribuir para a não concretização.
Porém, no tocante ao Estado brasileiro há recursos disponíveis em fun-
dos constitucionais, além daqueles por meio de doações, e de mecanismos de
repatriação de valores obtidos por meio dos órgãos de Estado em favor da so-
ciedade, nas palavras do intelectual Luiz Carlos Gá “Brasil sem recorte racial
não nos interessa”, ou seja, precisamos identificar os recursos e solicitá-los.
Podemos remeter ao caso envolvendo o Supremo Tribunal Federal3 (BRA-
SIL, 2016) e os autos da ADPF n. 568, em que se versava sobre a destinação de
US$ 682.560.000,00 (seiscentos e oitenta e dois milhões e quinhentos mil dóla-
res) destinados a cumprir um acordo de repatriação de valores, cujas discussões
sequer levantaram a hipótese de políticas de combate ao racismo.
Por certo a indicação dos valores em favor de um fundo patrimonial de re-
paração da escravidão representaria uma política antirracista, eis que esses haveres
devem ser fiscalizados pelo órgão ministerial, corte de Contas, organismos doado-
res, sociedade civil, pelo Poder Judiciário e tem o objetivo de promover a reparação.
O tema assume relevância quando Gá aponta como recorte étnico-racial, ou
seja, qualquer discussão sobre valores em favor da população deve reconhecer o direi-
to à reparação, tanto simbólica e patrimonial, tem por objetivo demonstrar que a es-
cravidão foi uma atrocidade e o racismo ainda permeia a sociedade, afinal a discussão
desses valores sequer foi ventilada a hipótese em favor da reparação da escravidão.

3
Houve uma proposta pioneira no Supremo Tribunal Federal, nos autos do Mandado de Segurança n. 33826, o qual
versava sobre a reparação da escravidão, cujo pleito era o de garantir a Capoeira como Esporte de Exibição nas
Olímpiadas do Brasil, todavia, não se concretizado.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Considerações
A proposta do ensaio foi ampliar o trabalho de Santos que discorreu so-
bre a reparação da Escravidão, essa apresenta os mecanismos que estão sendo
desenvolvidos em favor da população negra, ou seja, como reparar!
Acrescentamos a proposta de criação do fundo patrimonial da repa-
ração da escravidão, cujo objetivo é o de gerir recursos para manutenção e
custeio dessas atividades de modo a implementar políticas antirracistas.
Trata-se da divergência das políticas multiculturalistas utilizadas pelos organismos
internacionais e recepcionadas pelos diversos governos, pois de pouco impacto ou mudan-
ça, eis que evitam tratar dos efeitos econômicos, pois alteraria a destinação de recursos.
O fundo patrimonial da reparação deve ser inserido nos locais de recursos
oriundos de valores difusos, tem como fito promover a sustentabilidade dos pro-
cessos de desconstrução do racismo, cujos fins institucionais devem ser geridos e
administrados em favor da reparação, evitando políticas focais e o patrimonialismo.
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Racial e Ambiental (IARA), Antonio Gomes da Costa Neto, Humberto Adami Santos Júnior,
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

ORIXALIDADE

Milsoul Santos

Sou morte, nascimento, comunicação, alquimia, tecnologia, criatividade, intuição,


intenção, dom, genialidade.
Sou ação, precisão passado, presente, futuro e por isso sou atemporalidade.
Sou raio furioso lascando em banda uma árvore.
Sou trovão acariciando tempestade.
Sou mar calmo e mar bravo em constante equilíbrio nas profundidades.
Sou rio aparentemente inofensivo, mas tome muito cuidado com onde me pisa e
acautele a sua vaidade.
Sou palavra enfeitada de mandinga e treinada na vadiagem.
Sou o velho no menino novo, sou a maioridade da novidade.
Sou água, fogo, fumaça, sêmen, suor, sexo, sangue, amor, cores, sabores e sou cachaça.
Sou a folha que adoece e sou a folha que cura.
Sou as tranças que guardam as sementes e mapeiam a fuga.
Sou chegada e no mesmo sou saudade.
Sou a bomba que mora na parte interna do seu peito esquerdo e que bombeia vida por
toda a sua humanidade.
Eu sou o que você não sabe, o que você finge não saber e sou o que você pensa que
sabe, sim, sou tudo mais que é ancestralidade.
Eu,
eu sou Orixalidade.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

EPISTEMOLOGIA DO NTU:
UBUNTU, BISOIDADE, MACUMBA,
BATUQUE E “X” AFRICANA

Bas´Ilele Malomalo1

Introdução
Foi-me pedido, no âmbito do Simpósio “Negro (a), Afro-religioso (a), Qui-
lomboloba: Racismo e Intolerância Religiosa no Brasil e seus Reflexos no Mundo
de Trabalho”, desenvolver uma reflexão sobre “Ubuntu e religiosidade africana”.
Acabei optando pelo título de “Epistemologia do Ntu: Ubuntu, Bisoidade, Ma-
cumba, Batuque e “X” Africana” por acreditar expressar de perto alguns de meus
últimos trabalhos que se realizam no terreno das epistemologias do sul global
subalterno cujas epistemologias africanas continentais e diaspóricas são partes.
A tese que tenho defendido é que a filosofia africana (que deve ser sempre compre-
endida no plural e para além da disciplina da Filosofia), na qualidade de campo de pro-
dução de conhecimento e política de mudança social, coloca-se como um caminho de su-
peração da crise ecológica-planetária, vista como uma crise ontológica. Por ser uma crise
local-global-complexa, as respostas têm que ser igualmente locais-globais-complexas.
Nesse sentido é que se deve trabalhar com teorias e políticas assentes nos
pressupostos de intersecionalidades e complexidade. No caso de meus estudos, ca-
tegorias como raça, classe, gênero, migração, geração, espiritualidade e meio am-
biente são cruciais e devem ser tratadas numa perspectiva da complementaridade.
O significado do Ntu na epistemologia do Ntu
O que é Ntu? A resposta a essa pergunta tem que partir das bibliotecas
africanas que nos informam que é um termo usado entre alguns povos da
África central e austral que traduz a sua cosmovisão.
Kagame (1956) e Ramose (2011) são dois filósofos africanos que se
debruçaram sobre os significados do Ntu do ponto de vista da filosofia da
1
Doutor em Sociologia, Docente no curso de Bacharelado em Humanidades e no Programa de Mestrado Interdisci-
plinar em Humanidades, Instituto de Humanidades e Letras/Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira, São Francisco do Conde, Bahia, Brasil; líder do Grupo de pesquisa África-Brasil: Produção de
conhecimento, Sociedade civil, Desenvolvimento e Cidadania Global; pesquisador do Centro dos Estudos das Cul-
turas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra (CLADIN-Unesp), da Rede para o Constitucionalismo Democrático
Latino-Americano/Brasil, Member of United Nations - Harmony with Nature e integrante e fundador do Instituto da
Diáspora Africana no Brasil (IDDAB). Contato: [email protected].

73
Organizadora : Edelamare Melo

linguagem. Para Kagame (1956), o Ntu é o sufixo que é utilizado pelos povos
africanos, no caso ele estudava os banyaruanda, nomear o Ser. Este, para ele,
se traduz nessas quatro categorias Ki-Ntu (Coisa), Ha-Ntu (Espaço-Tempo),
Ku-Ntu (Modalidade do Ser) e Mu-Ntu (Ser Humano).
Ramose (2011) vai corrigir Kagame afirmando que esqueceu de uma
outra categoria primordial que é Ubu-Ntu. Ubu é o prefixo que traduz o mo-
vimento-força ou energia presente nas quatro categorias mencionadas. Essas
em si são as “entidades” que traduz a manifestação do “Ser”. Nesse senti-
do, Ubu-Ntu é o Ser-sendo, o Ser-Força-em-movimento. A física moderna
comprovou essa verdade metafisica defendendo que toda Matéria é feita de
energia. Essa é composta de átomos e partículas. Como se sabe a teoria de
big bang continua a sustentar a ideia de que o que deu início ao Universo se-
ria a explosão da energia primordial (HAWKING, 2015). E cada vez mais a
ciência moderna vem mostrando quanto à Energia está na base de tudo o que
existe (NTUMBA, 2014).
Essa concepção da Realidade é chamada da Filosofia da Força-Vital
(JANH, 1970; DIAGNE, 2014; TEMPLS, 2007). Em outras palavras, para a
filosofia africana tradicional e moderna, o que está na base de tudo o que existe
é o Ntu. Quando está em movimento é o Ubuntu. Todo mundo concorda que
cada povo ou zonas culturais africanas nomeia essa ideia de Força-Vital a partir
de suas línguas. Bilolo (1986) e Obenga (2005) afirmam que os egípcios anti-
gos traduziram a filosofia da Força-Vital em “Ntw”, “Onto”, Ser-Preexistente.
Todavia, não é um Ser imóvel; é o Ser-Devir a partir do qual tudo o que existe
procede, sem se confundir com Ele: o Noun, visto como Água primordial.
Ntumba (2014), na sua filosofia de bisoidade (Biso vem de Lingala e sig-
nifica Nós) alega o que existe deve ser interpretada como o Real-Total, Pro-
cessual, Multiforme e Plural. Como tudo procede desse Ser-preexistente, que é
Energia, primordial, o que que mantém cada entidade em suas manifestações é
a Solidariedade Cósmica, a Comunhão Participativa, que identifico em Ntumba
como Biso-Cósmico. Os povos yorubas perceberam o Ubuntu em termos de Axé
presente em todas as entidades e cujos orixás são guardiões e manifestações
plenas (SODRÉ, 2017, 2005). Porém, o Exu é visto como o orixá do movimento
que anima a Vida. O que existe de fato, me referenciando em Ntumba (1997), é
a complementaridade radical entre todas as entidades que existem e venho cha-
mando, em termos pedagógicos, de Comunidade-do-Sagrado-Ancestral, Comu-
nidade Universo-Natureza e Comunidade-dos-Bantu (Seres-Pessoas).
Interpreto Ubuntu como o Ser-em-movimento, aberto para o Outro e que
se concretiza nessas categorias ontológicas: Ki-ntu (ser-força-coisa), Ha-ntu

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

(ser-força-lugar-espaço), Ka-Ntu (ser-força-modalidade) e Mu-ntu (ser-força


-pessoa). Ubu é que faz a ligação entre todos os seres. Essa ligação acontece
através da Solidariedade Cósmica, Movimento-Comunhão ou Participação pro-
cessual. O Exu, na filosofia nagô, é a entidade do movimento que nos conecta
com o Biso-Nós-cósmico. Ntumba chama isso de Biso de Nós. Ubuntu seria en-
tão a Realidade-Total, processual, multiforme e global Para Ramose, Ubu-Ntu,
Ser-Sendo que se manifesta em todos seres particulares que formam o mundo.
Ubuntu, como defende Ramose (2011), é a categoria ontológica e epistemo-
lógica da filosofia africana. Considero o Ntu como a categoria com maior extensão
para interpretar as realidades particulares africanas que existem. Macumba e Batu-
que fazem parte dessas realidades. O ponto comum entre todas as realidades par-
ticulares que expressam a Realidade-Total é que para ser compreendidas precisam
da linguagem. São nomeadas pelos bantu para ter sentidos ou passar a pertencer
a cultura. Por isso, intitulei esse ensaio de “Epistemologia do Ntu: Ubuntu, Bi-
soidade, Macumba, Batuque e “X” Africana”. O “X Africana” remete ao adjetivo
plural em latim que significa tudo que tem relação com a África e as africanidades
continentais e diaspóricas. O “X” nos informa que há outros elementos culturais
africanos que correspondem à lógica do Ntu-Axé. Sem a compreensão da noção de
complementaridade radical que liga cada elemento da cultura africana ao Ntu-Axé
não há condições para a sua interpretação objetiva e justa.
O ponto comum entre a macumba e o batuque, em primeiro lugar é que com-
portam significados plurivalentes que fogem a lógica racista da razão indolente.
São ambos instrumentos músicas, danças, expressões da ontologia biocêntrico-cós-
mica africana. Expressam e são parte do Ubuntu na sua qualidade do movimento
pleno. Por isso, qualquer nomeação não lhe cabe. São traduções artísticas, políticas,
sociais, culturais e religiosos dos povos africanos que os inventaram.
Percebi isso exatamente quando investiguei um poema de Solano Trin-
dade (2007) chamado “Macumba” (MALOMALO, 2014, 2016, 2018). Como
bem cultural negro que pertencem as bibliotecas populares negras, aquele
poema me levou a considera-la como uma obra epistemológica de alta qua-
lidade. Possibilitou-me cunhar o que chamo de epistemologia ou filosofia de
macumba. Essa é uma ferramenta teórico-metodológico de produção de co-
nhecimento e saberes, como uma ferramenta político-pedagógica de enfrenta-
mento do racismo. Para tanto considero esses três de seus passos:
(1) macumba é um bem cultural negro;
(2) seu conhecimento passa pelo que chamo de ´desmacumbização´,
entendida aqui como todo esforço de desconstrução da cultura do preconcei-
to. do o racismo, da braquitude acrítica, racista;

75
Organizadora : Edelamare Melo

(3) o terceiro passo é da macumbização. Isto é, o movimento, o proces-


so que nos leva a saborear e conhecer a cultura do Outro. Solano Trindade
(2007), na minha leitura, com o seu poema citado quer deixar esse recado:
macumba é um canto, uma estética de amor. Macumba é amorização consigo
mesmo e para com Outro. Mveng (1974), estudioso da arte negra, afirma que
essa é uma liturgia cósmica da celebração da Vida sobre a Morte – Mveng. Ou
seja, o encontro com Outro: o Sagrado, o Ancestral, a Natureza, o Universo,
o/a Muntu é um encontro com o Nós-Cósmico libertador.
Natureza e origem da crise ecológica
A crise atual, como dito, é uma crise ontológica, global e planetária,
por isso é uma crise ecológica no sentido de mexer negativamente com todos
os sistemas vitais (BOFF, 1999; MORIN, 2011). Visto do ponto de vista das
populações africanas (entendida sempre como do continente e das diásporas,
no nosso caso a diáspora negra no Brasil), a crise é epistemológica (epis-
temicídio), social, cultural, estética, política, ética, psicológica, espiritual e
ambiental. Afeta de modo particular: pessoas não brancas, negras, indígenas,
mulheres, LGBTI, crianças, suas culturas, seus territórios e meios ambientes.
Ntumba (2014), o teórico da filosofia de bisoidade (biso, significa nós em
Lingala, uma língua falada na RDCongo e Congo Brazza Ville), dizia sempre
que a crise atual existe porque a humanidade rompeu com o biso-ecológico, ou
parafraseando Ramose, fez ruptura com o Ubuntu, isto é, rompeu com os ciclos
da vida do sagrado-ancestral (mundo da cultura), da vida dos bantos (comunidade
dos humanos) e da vida universo-natureza (meio ambiente).
O que causou ou causa a crise do ponto de vista de africanos/as (entenda-
se sempre: continentais e diaspórico/as)? A resposta a essa pergunta igualmente
depende do paradigma escolhido. Depende da forma como as teorias escolhidas
concebe seus agentes. Nesse sentido, as principais teorias que vêm alimentando
minhas leituras e reflexões a são essas com suas categorias fundamentais:

• Teoria marxista: classe dominante vs classe dominada


• Teoria das relações raciais: raça branca vs raça negra
• Teoria da branquitude: branco vs negro
• Teoria de gênero: homem vs mulher
• Teoria de geração: velhos vs mais novos
• Teoria ambiental: homem contra meio ambiente

Do ponto de vista do paradigma que construo e que leva em conta as in-


tercionalidades e complexidades das relações de poder entre esses agentes para
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

se interpretar a crise atual. Trata-se de um paradigma que busca que evitar as


generalidades para olhar a realidade na sua concretude e particularidades. O que
se percebe nesse contexto é que homens brancos, pertencentes a classes e cul-
turas dominantes (capitalista, cristã, islâmica, patriarcal), em cumplicidade com
homens brancos e mulheres brancas da elite e não elite, criaram mecanismo de
dominação de homens e mulheres (e LGBTI) não brancos e do meio ambiente.
Dentro da sociologia (MALOMALO, 2017), os agentes significam in-
divíduos e instituições sociais. Desse ponto de vista, para se compreender a
crise global que afeta as populações negras e o meio ambiente, é preciso olhar
pelas instituições dominantes, como organizações religiosas (hinduísmo, cris-
tianismo, islamismo), o Estado burguês, as empresas capitalistas, as famílias
tradicionais e seu modo de reprodução no contexto capitalista ou socialista (o
socialismo realmente existente) (MÉSZÁROS, 2006).
Esses agentes, enquanto pessoas e instituições colonizadoras e opresso-
ras, são vistos como fabricadores e fábricas de Kindoki, feitiço-do-mal. Para
se salvar da crise ecológica, é preciso, do ponto de vista da epistemologia do
ntu, acionar o Nkisi, fazer o axexé, o feitiço-do-bem. Em outras palavras, exe-
cutar ritos de encantamentos para que as energias que constituem a força da
vida voltem a fluir, isto é, a “ubuntuizar-se”, seguir seu fluxo como ser-sendo.
Numa perspectiva sóciogenética ou sociohistórica, a crise que afeta a popu-
lação negra pode ser interpretada considerando essa divisão: a dominação estran-
geira árabo-muçulmana (início séc. VII) e dominação ocidental-europeia (desde
séc. XV e desde XIX e Séc. XXI) (MOORE, 2007; KI-ZERBO, 2006).
Como se implementou e se tem manifestado a dominação contra africanos/as e
seus descendentes? É preciso levar-se em com os sistemas de dominação e seus modos
de operar. Destacam-se o escravismo: tráfico transariano, mediterrâneo, índico, atlân-
tico e escravidão de corpos negros (VII-XIX, salve os contextos históricos); o papel do
islamismo e cristianismo e suas estratégias de diabolização do outro; o mercantilismo/
capitalismo, colonialismo europeus (XV-XIX), o neocolonialismo (XX-XXI). Com
isso, quero afirmar que a dominação contra os corpos negros tende a ser complexa,
multidimensional, intergeracional, colateral e por isso douradora.
Em outras palavras, a manifestações da dominação negra ao longo da
história pode ser capturada a partir do seu elemento principal que é o racismo
civilizacional (MOORE, 2007; THESÉE, 2008), estrutural, epistemológico,
auto, cordial, interpessoal, institucional, cultural, religioso, ambiental. É pre-
ciso acrescentar ao racismo, visto do ponto de vista da interssecionalidades,
o peso do patriarcado, do achismo, sexismo sobres as mulheres negras e de
situação de imigração sobre os/as imigrantes africanos/as contemporâneos/as.

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Organizadora : Edelamare Melo

O conceito do genocídio imposto a população negra pode ser compre-


endida a partir de categorias de “vida nua”, de “homo saccer” de Agamben
(20015) e de “necropolítica” de Mbembe (2011, 2014). Ou seja, conforme
essa última a modernidade ocidental através de suas instituições (estado, em-
presa, escolas, igrejas) criou mecanismo de controle de vidas negras. A pri-
meira categoria de Agamben nos interpela a pensar no sentido de que como
as vidas negras são condenadas à morte por uma única razão de ter nascido e
nascido em corpos negros. Flauzina (2017) sinaliza isso muito bem no seu es-
tudo revelando como isso se passa no Brasil dentro da cumplicidade entre as
instituições estatais, judiciário e a polícia para controlar os corpos de negros.
O encarceramento em massa de corpos da juventude negra se coloca como a
melhor opção feita pela elite dominante brasileira.
Quem causa as formas de dominação citadas e quem beneficia delas?
Os estudos críticos da braquitude nos revelam como a branquitude acrítica,
isto é, racista e machista trabalham no sentido a manter os privilégios dos/
as brancos/as mediante o controle das estruturas subjetivas e objetivas-insti-
tucionais negras. A branquitude acrítica se diferencia da branquitude crítica.
Sendo essa última antirracista e progressista. Mas as teorias de conflito, do
feminismo ou das relações raciais mostram que as classes, raças grupos domi-
nantes são de homens, heterossexuais, conservadores brancos que comandam
as instituições para manter a sua hegemonia e seus privilégios históricos.
A sociologia crítica observa igualmente que a dominação só se man-
tem pelo fato de encontrar meios de se reproduzir entre os dominados/as.
Dessa forma é que se encontra pessoa negras que praticam o autoracismo ou
heterorracismo contra pessoas do grupo seu pertencimento racial. Tudo isso
não tem nada a ver com algo de natural; trata-se de um processo de naturali-
zação construído social e culturalmente com a participação intensa do grupo
dominante. Esse comportamento tem a ver com as consequências ou efeitos
negativos da dominação racial.
Entre outros resultados do racismo contra pessoas negras, pode-se citar
as desigualdades sóciorraciais em todos setores da vida; invisibilidade, falta
de representatividade no campo da política, de educação, de economia, do
mercado de trabalho. Tratam-se de política da negação do ser negro, da iden-
tidade-reconhecimento negro. Políticas liberais e neoliberais que rejeitam a
política de reconhecimento e redistribuição. Interessa a classe dominante a
prática de genocídio contra a população negra, especialmente conta a juven-
tude negra. É a mesma necropolítica brasileira que se fundamenta na explora-
ção da mulher negra; ataque aos lugares sagrados negros; pratica a invasão de

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

seus territórios. Seus resultados perversos são a falta de autoestima; disputas


internas; pobreza política; morte de africanos/as no país; a injustiça social,
racial, ambiental, cognitiva e de gênero.
Do ponto de vista da teoria africana de Ubuntu-macumba-bisoidade,
a dominação contra pessoas negras é vista como o nkindoki, ou melhor do-
minação-kindoki racial, isto é, forças negativas contra o/a ntu (palavra bantu
sem gênero), isto é, negação de qualquer manifestação da vida (ntu-vida).
Nkindoki, entre os bakongo é o contrário do nkisi (inquice). Trato o primeiro
como feitiço-do-mal e o segundo como feitiço-do-bem. O kindoki-doracismo
nega a vida-ntu e o nkisi promove a vida-ntu na sua plenitude.
Epistemologia do Ntu como saída da crise ecológica
Como sair da crise ecológica do ponto de vista dos povos oprimidos? Acio-
nar as epistemologias libertárias e, particularmente, a epistemologia do Ntu que é
parte das epistemologias negras do Sul global subalterno. Olhar pela história ne-
gra de resistência e pelas bibliotecas negras para ter respostas. Fazer uso da razão
cosmopolita/intercultural contra a razão indolente, que é reducionista, simplista,
racista, sexista e instrumentalista (MORIN, 2011; SANTOS, 2003; SODRÉ, 2017)
Defendo que as epistemologias africanas se colocam como caminho de
superação da crise atual. Muniz Sodré nos alerta que trabalham no sentido a
buscar a “verdade seduzida”, isto é, seus métodos e linguagens não se pautam
nas epistemologias racionalistas, positivistas e instrumental. Nelas o Ubuntu,
o Axé opera como o locus interpretativo.
Tenho denominado o meu trabalho de epistemologia do Ntu (Axé), por
entender que o que chamei de epistemologia de macumba ou batuque é par-
te desse grande movimento. O termo ntu tem uma extensão maior em termos
analíticos. Ubu-Ntu, como afirma Ramose, é o Ser-sendo, ou seja, o devir, a
manifestação do Ntu, a Vida, a Força vital, o Real-Total (MALOMALO, 2018)
Desse ponto de vista, compreendo que fazer a ciência é como se fosse
fazer um axexé, ebó, nkisi. Da mesma forma que os nganga nkisi (médico,
zelador do nkisi), babalorixá, ialorixá zelam pelo Nkisi, pelo Axé, o cientista
ubuntuista faz a ciência com razão, consciência e ética. O fim da ciência para
ele/ela é a emancipação cósmica. Como ele/ela parte do princípio da biocen-
tricidade ou ontologia biocenótica, realidades que ele/ela estuda devem ser
abordadas com cuidado. A ética do cuidado para com o Outro é fundamental.
Por isso, é um/a zelador/a da verdade seduzida e não instrumental.
Dentro das discussões epistemológicas, uma disciplina para se firmar
como ciência tem que anunciar o seu objeto ou campo de investigação, o seu

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Organizadora : Edelamare Melo

método e a/as teoria/as que a sustentam. Tem mais uma outra dimensão que
tem a ver com os princípios que devem guiar as atividades cientificas.
A epistemologia do Ntu tem por objeto ou sujeitos de investigação a
cultura negras e pessoas negras. Isso não quer dizer que não possa e deva
estudar outras realidades não negras.
A sua abordagem metodológica é interdisciplinar e intercultural. A in-
terdisciplinaridade não significa nem a negação de disciplinaridade, nem da
transdisciplinaridade. Respeita-se o método disciplinar quando não é sim-
plista e reducionista. Dependendo de contexto de estudos recomenda-se a
pratica da transdisciplinaridade nas pesquisas individuais e coletivas. A in-
terculturalidade sinaliza a necessidade de compreender não somente que toda
prática científica é um processo cultural, mas especialmente que os grandes
resultados são alcançados quando trabalhamos numa perspectiva do Exu, das
encruzilhadas, da interseccionalidades.
Os princípios de investigação são de ordem técnicas e éticas. Na pers-
pectiva da epistemologia do Ntu, esse é o seu princípio fundante: toda ciência
ubuntuista ou bisoista ou macumbista deve se movimentar, isto é,
(1) partir da vida;
(2) passar pela vida;
(3) desenvolver-se para a vida.
Em outras palavras, a construção de campo de investigação, os méto-
dos, as teorias e princípios a ser usados na epistemologia do ntu, partem da
cultura negra e em diálogo com outras culturas. Como toda teoria ou todo
paradigma só se explica pela linguagem, fazendo uso de conceitos, a episte-
mologia do ntu se fundamenta na linguagem negra.
O/apesquisador/a da ciência do ntu está na encruzilhada do mundo
acadêmico, vista por nós como escola da crítica e autocrítica radicais, e do
mundo não acadêmico, cultural, artístico, religioso. O ponto comum entre os
agentes que trabalham no mundo da academia e do mundo não acadêmico
seus esses três princípios: os saberes e conhecimentos partem da vida das
pessoas negras, da cultura negra, estruturam-se mediantes elas e têm por fina-
lidade a expansão de vidas negras e do cosmos.
Porque o nome de epistemologia do ntu? É porque Ntu é o conceito
com grande extensão analítica que engloba todos os elementos epistêmicos
da cultura africana: filosofias ancestrais ou contemporâneas como Ubuntu,
Bisoidade, Macumba, Batuque, Exu.
A ética, a política e a estética que ditam a linguagem da ciência ubun-
tuista correspondem a lógica da cultura negra. Nessa a ciência, a arte, a cultu-

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

ra, a religião, o social e o político cruzam-se com os fins de celebrar a vitória


da vida sobre a morte.
Recomendações a partir da exposição
Que lição tirar de toda essa minha exposição?
1. Nós já temos os diagnósticos sobre o que causa a crise que nos afeta:
conhecemos seus agentes, a sua maneira de processar e a quem beneficia.
2. Africanos/as e seus/suas descendentes têm um remédio para o mun-
do e para a sua comunidade: a sua filosofia ancestral preservada em espaços
negros e acadêmicos não negros, como os terreiros.
3. O que se precisa é implementar essa filosofia em todas as esferas da
sociedade brasileira, africana e mundial.
4. Filosofia do Ntu-Axé é o caminho, e a filosofia de Ubuntu, Bisoidade,
Macumba, Batuque, Jongo, Samba, e “africana ´X´” são parte desse caminho.
5. Em termos concretos o que isso quer dizer? Ubuntu-Bisoidade-Macum-
ba é um convite de transformação ontológica, epistemológica, estética, espiritual,
jurídica, política, ética para a emancipação biocósmica ou ubuntuista-bisoista.
De forma especial, a transformação deve partir da parte de quem causa
a crise: a branquitude racista-machista e anti-ecológica.
Deveria haver a reconciliação e transformação da parte da parcela da
população negra ainda alienada pelos efeitos da dominação do racismo-nkin-
doki que acabamos de descrever.
Cabe aos/as intelectuais, ativistas e lideranças negros/as e brancos/as
antirracistas continuar a trabalhar pela emancipação, cobrar do Estado e da
sociedade (setor privado e sociedade civil) racistas os cumprimentos das leis
que regem um Estado democrático e multirracial, especialmente leis que pro-
movem o patrimônio civilizacional negro, o patrimônio biocêntrico que se
manifesta pela ubuntuidade ou bisoidade, isto é, a complementaridade radical
entre o sagrado-ancestral, o muntu-pessoa e o universo-natureza.
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MULTICULTURALISMO E EDUCAÇÃO:
A CONTRIBUIÇÃO DO CIENTISTA DA RELIGIÃO
NO DEBATE SOBRE A INCLUSÃO DAS
AFRICANIDADES NO ENSINO BRASILEIRO1.

Bas´Ilele Malomalo2

Resumo
A Lei 10.369/2003 e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana
inauguram uma nova página na história da democracia e da construção de uma educação
multicultural no Brasil. Esse trabalho pretende refletir sobre a contribuição do cientista
da religião no debate da inclusão das africanidades religiosas no currículo nacional.
Palavras-chaves:
Ciência da Religião, Multiculturalismo, Educação
Title
Multiculturalism and Education: The contribution of the religion scientist
to the debate over the inclusion of africanities at the Brazilian educational system.
Abstract
 The law 10.369/2003 and the curricular national standards for the education of the
ethnical and racial relations and for the teaching of the African and Afro-Brazilian History
and Culture, inaugurate a new page at the history of democracy and the construction of a mul-
ticultural education in Brazil. This work aims to reflect over the contribution of the religion
scientist to the debate over the inclusion of africanities at the Brazilian educational system.
 Keywords:
Religion Science, Multiculturalism, Education

1
Exto publicado em: MALOMALO, Bas´Ilele. Multiculturalismo e educação: a contribuição do cientista da religião
no debate sobre a inclusão das africanidades no ensino brasileiro. In: Religião & Cultura: Ensino religioso no Brasil:
Balanço, desafios, perspectivas, vol VI, n. 11, p. 107-122, jan/jun. 2007.
2
Bas´Ilele Malomalo, nascido na República Democrática do Congo, é Filosofo, Teólogo, Mestre em Ciências da
religião – Área concentração Ciência sociais, e Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia pela
Unesp; pesquisador do Centro de Estudos das Culturas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra da UNESP (CLA-
DIN) e Secretário Diretor Geral do IDDAB – Instituto do Desenvolvimento da Diáspora Negra no Brasil.

87
Organizadora : Edelamare Melo

Introdução
A Lei 10.639/20033, que estabeleceu o ensino obrigatório da História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana, abriu uma nova página na história da edu-
cação e da construção da democracia no Brasil4. As “Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”5 que acompanharam essa lei
explicitam melhor essa nossa observação.
A obrigatoriedade de inclusão da História e Cultura Afro-Bra-
sileira e Africana nos currículos da Educação Básica trata-se de
decisão política, com fortes repercussões pedagógicas, inclusi-
ve na formação de professores. Com esta medida, reconhece-se
que, além de garantir vagas para negros nos bancos escolares, é
preciso valorizar devidamente a história e cultura de seu povo,
buscando reparar danos, que se repetem há cinco séculos, à sua
identidade e a seus direitos. A relevância do estudo de temas
decorrentes da história e cultura afro-brasileira e africana não
se restringe à população negra, ao contrário, diz respeito a todos
os brasileiros, uma vez que devem educar-se enquanto cidadãos
atuantes no selo de uma sociedade multicultural e pluriétnica,
capazes de construir uma nação democrática6.

Uma dessas novas páginas é o início da construção de uma educação multi-


cultural que há de levar em conta a contribuição do negro na formação da identida-
de nacional. Consciente de que uma lei só se efetiva através de ações, o movimento
negro se tem mobilizado para a publicação de material didático e para a formação
de professores sobre a temática étnico-racial conforme a referida lei e diretrizes.
Temos participado intensamente nesse processo da construção da edu-
cação multicultural tanto como cientista da religião, isto é, como filósofo,
teólogo e sociólogo de formação, e como educador popular ligado a essas
organizações sociais do movimento negro de São Paulo: o Centro Atabaque
Cultura Negra e Teologia e o Nupe, Núcleo Negro da Unesp para Pesquisa
e Extensão. Ambas são grupos de pesquisas e formações com forte ligação
com a população afro-brasileira. São elos acadêmicos do movimento negro

3
BRASIL, Lei No 10.639/2003. In: Diretrizes curriculares nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais
e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, p. 35. Daqui para adiante será identificado como
Lei 10.639/2003.
4
BRASIL, Pluralidade Cultural. In: Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos: apresentação dos
temas transversais/Secretaria da educação Fundamental, p. 117-160.
5
BRASIL, Diretrizes curriculares nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História
e Cultura Afro-Brasileira e Africana, pp. 5-33. Daqui para adiante será identificado como Diretrizes.
6
Diretrizes, p. 17.

88
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

contemporâneo. Através da primeira organização, em 2005, participamos da


publicação do livro “Nossas Raízes Africanas”7 e do Programa de Formação
de Agentes Multiplicadores da Pastoral Afro (PROFAMPA), que foi um pro-
grama de formação sobre a temática étnico-racial para os educadores popula-
res ligados às Igrejas cristãs8. Pelo segundo grupo, participamos, no mesmo
ano, do “Programa São Paulo Educando pela Diferença para Igualdade” que
visava a formação de professores da rede do ensino estadual realizado pelos
pesquisadores das temáticas negras da UNESP e da UFScar em parceria com
a Secretaria de Estado da Educação de São Paulo9.
Observamos duas coisas importantes nessas duas experiências de formação
de educadores. Primeiro: há uma grande receptividade da proposta de formação
pelo multiculturalismo a partir das africanidades negras. A diferença entre os dois
programas é que, a proposta pedagógica do Centro Atabaque além de incorporar
conteúdos “profanos”, tem discutido também os temas religiosos, as religiosidades
negras africanas e afro-brasileiras. Essa realidade já no segundo programa quase foi
inexistente. O ponto comum entre os dois programas é que, entre seus organizado-
res e os monitores ou pesquisadores-professores, reconheceu-se a importância de
se introduzir a temática religiosa no debate sobre a educação das relações raciais.
Podemos falar, então, do segundo ponto. Como cientista da religião,
temos aproveitado desses espaços formativos para introduzir um debate so-
bre as religiões negras com intuito de levar os formandos-professores a uma
reflexão no que diz respeito a uma educação multicultural. As práticas, os
saberes africanos e afro-brasileiros ligados ao campo religioso, os mitos de
criação, as espiritualidades, as teologias, as formas de organizações religiosas
dos africanos e de seus descendentes que temos trabalhado, sempre em reli-
gação com a sua cultura religiosa predominantemente cristã ocidental, têm
trazido resultados surpreendentes: a participação e a grande vontade de se
mudar a situação de discriminação no qual a maioria de negros se encontra.
A religião se tem apresentado, nessas circunstâncias, como um instrumento
de desconstrução das práticas discriminatórias e de construção de um novo
agir social fundamentado no princípio do reconhecimento das diferenças e de
promoção da igualdade entre as pessoas, de sexo, raças, condições sociais e
religiões diferentes que buscam construir o Brasil como nação10.

7
V. C. de SOUSA JUNIOR, Nossas raízes africanas, 2004.
8
O Grupo de pesquisa Identidade do Instituto Superior da Igreja Luterana no Brasil e os Agentes Pastoral Negros
(APNs) do Rio Grande do Sul foram parceiros.
9
SECRETARIA DE ESTADO DE EDUCAÇÂO – SÂO PAULO. Programa São Paulo Educando pela diferença
para a igualdade. São Paulo, 2005 (Apostila Modulo II).
10
O. IANNI, A idéia de Brasil moderno, pp. 177-180.

89
Organizadora : Edelamare Melo

Essa também é a nossa convicção: a religião é um campo fértil para se discu-


tir a questão da cidadania multicultural. A nossa modesta hipótese, portanto, é essa:
o cientista da religião é um dos profissionais habilitados para contribuir de maneira
competente no debate que diz respeito à construção de uma nação brasileira de-
mocrática. O debate sobre o multiculturalismo e a educação iniciado, no Brasil,
pelo movimento negro, e que vem sendo consolidando com a publicação da Lei
10.639/2003, é um terreno fértil onde esse cientista do sagrado poderia desempe-
nhar dignamente o seu papel político educador. A elasticidade do seu objeto de estu-
do, a religião, e o pluralismo teórico-metodológico do seu campo de conhecimento
se apresentam para ele como armas simbólicas plausíveis para uma intervenção efi-
caz e eficiente nesse debate republicano. Em todo caso, o profissional da religião há
de contribuir de duas formas nesse debate: lutando, de um lado, pela introdução das
africanidades religiosas ou religiosidades africanas no curricular nacional, e de ou-
tro lado, pela inclusão de uma pedagogia de caráter multicultural e transdisciplinar.
O argumento que explicita essa nossa hipótese se articula em torno de
três pontos. O primeiro define o profissional da religião tratado nesse artigo a
partir da realidade do seu oficio de cientista. O segundo analisa a questões do
ensino das africanidades, dos saberes africanos e afro-brasileiros tomando a
discussão da educação das relações raciais, tal como apresentada pelas Dire-
trizes, como pano de fundo. O terceiro apresenta os elementos sugerido pelas
diretrizes para o ensino das africanidades e busca tecer um breve comentário
sobre a intervenção política pedagógica do cientista da religião nesse debate
sobre o multiculturalismo e educação no Brasil.
1. Ofício do cientista da religião
Cientista da religião, que cientista é esse? Bourdieu, Chamboredon e
Passeron, ao escrever sobre le métier de sociologue¸ queriam não somente
refletir sobre as bases epistemológicas da disciplina da sociologia, mas de
todo campo das ciências sociais11. O nosso objetivo, nessa parte, é de com-
preender o oficio do cientista da religião a partir de dentro, isto é, a partir da
problemática da construção e conquista do seu objeto e da empregabilidade
de seus métodos de estudo. Portanto, entre tantas outras disciplinas que com-
poem o campo das ciências da religião, como a teologia, a história, a filosofia,
a psicologia, nos interessa as ciências sociais, especificamente a sociologia
da religião. Por isso falaremos do cientista social da religião ou do cientista
da religião em geral, e do sociólogo da religião de modo específico, para nos
referir ao profissional que se ocupa do fato social.
11
P. BOURDIEU; J-C. CHAMBOREDON; J-C. PASSARON, Le métier de sociologue, 1983.

90
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Como qualquer cientista, a vocação do cientista social da religião é,


como falam os filósofos, atingir a verdade. Interpretar o social, os fatos so-
ciais com objetividade cientifica. Assim, Bourdieu e seus companheiros12
acham que o oficio do cientista social, especialmente do sociólogo, consiste
em transformar os fatos banais da realidade cotidiana em realidades socioló-
gicas. Para isso, conforme os mesmo autores, é preciso classificar o objeto ou
os objetos de estudos em termos de campos. A aplicação dos conceitos cien-
tíficos a essas realidades sociais banais faz com que as disciplinas adquirem
o sentido científico conforme seus “pontos de vista”, o olhar científico da re-
alidade social. Sendo cada disciplina portadora de teorias construídas pelos
seus agentes científicos para a interpretação da realidade social.
Portanto, são as teorias, os conceitos, os métodos que constituem o ponto
de vista específico das disciplinas de ciências sociais ou humanas na abordagem
de seus objetos de análise. O cientista da religião é um cientista social, um profis-
sional, que tem a ciência como ofício. Quer dizer é uma pessoa comum treinada
para usar dos instrumentos e das técnicas científicas para interpretar o mundo.
Com Edgar Morin, diríamos que o seu campo de investigação é a “cultura das hu-
manidades” que busca explicar a “condição humana”13, o significado da vida. De
modo especial, o seu objeto de estudo é o “fenômeno religioso”. Para Filorama
e Prandi, o específico do fato religioso é a sua autonomia relativa14. Quer dizer,
a sua capacidade de se relacionar com outros campos que formam a “condição
humana”: a mente, a sociedade, a cultura, a economia, a política etc. Essa elasti-
cidade da religião é que confere ao seu campo do conhecimento, as ciências da
religião, o estatuto multidisciplinar.
Dessa forma, cabe falar do cientista da religião no “plural”. Quer di-
zer, este representa, portanto, todos os profissionais formados no campo das
ciências da religião, nos cursos de graduação ou pós-graduação com especia-
lizações em suas áreas de concentração e área afins, tais como a teologia, a
história, a literatura, a geografia, a economia, a linguística, a psicologia, a so-
ciologia, a antropologia, a sociologia, a ciência política, a linguística. De outro
lado, falarmos dele no singular, no sentido específico de cada disciplina, por
exemplo, do sociólogo, do filósofo da religião ou do teólogo. O cientista da
religião de quem se trata aqui, diríamos como Edgar Morin, é por vocação um
profissional “transdisciplinar”: um estudioso da religião que trabalha com os
princípios de “religação” de saberes, da cultura científica e da cultura das hu-

12
Ibidem..
13
E. MORIN, Complexidade e transdisciplinaridade: A reforma da universidade e do ensino fundamental, 1999.
14
G. FILORAMA; C. PRANDI, As ciencias das religiões, 1999.

91
Organizadora : Edelamare Melo

manidades15; que incorpora o princípio da “complexidade” na interpretação do


fato religioso. Esse princípio não está longe daqueles que regem a filosofia da
educação multicultural chamada por Boaventura Sousa de Santos de “herme-
nêutica diatópica”16: a interpretação da vida por uma cultura determinada em
diálogo com outras culturas. No caso desse nosso trabalho, entendemos que
o cientista da religião “diatópico”, é aquele cientista social, que apesar de ser
formado numa disciplina determinada das ciências sociais ou humanas, busca
incessantemente interpretar o fato sócio-religioso para além de sua cultura so-
cial e acadêmica, da sua tradição mundana e teórica. Apesar das limitações de
suas condições antropológicas que lhe condicionam como ser humano e pes-
quisador, esse cientista se distingue pela sua determinação de construir pon-
tes, estabelecer religações interculturais e transdisciplinares na interpretação
do fato religioso. Citaremos os estudiosos, como Cheik Anta Diop, Bimweni
Kweshi, Jean Marc Ela, Lenardo Boff, Ivone Gebara, Rubem Alves, Roger
Bastide, Boaventura de Sousa Santos, Edgar Morin, Pierre Bourdieu, Marx
Weber, Karl Marx, Émile Durkheim, como aqueles cientistas que fizeram e
fazem parte dessa tradição da hermenêutica diatópica. Na perspectiva dos es-
tudos das relações raciais, aplicar esse princípio dialógico significa analisar
os bens culturais religiosos africanos e afro-brasileiros em diálogo com outras
culturas que formam a identidade nacional brasileira com intuito de educar
pela democracia cidadã e multicultural17. É nesse contexto que emerge e se
pode entender o papel político educativo do cientista da religião.
2. Africanidades negras como campo de construção da educação
multicultural
O desenvolvimento do papel político do cientista da religião no campo
da educação multicultural passa pelo entendimento mínimo dos estudos das
relações raciais por este profissional, sobretudo quando nunca tinha entrado
em contato com esses estudos. O que estes revelam na realidade brasileira é a
existência de um tratamento diferenciado entre os agentes negros e brancos.
No espaço de sala de aula, os alunos negros são vítimas de uma violência
simbólica do racismo, preconceito e discriminação, o que, em grande parte,
compromete não somente o seu rendimento escolar, mas todo processo da
construção da sua identidade e à realização de sua cidadania plena. Para os
cientistas das relações raciais e do multiculturalismo, as desigualdades exis-
15
Ibidem.
16
B. de S. SANTOS, Introdução: as tensões da modernidade ocidental. In: _____ (Org.), Reconhecer para libertar,
pp. 443-458.
17
P. GOERGEN, Pós-modernidade, ética e educação, 2001.

92
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

tentes entre negros e brancos na escola não encontram a sua justificativa so-
mente nas diferenças econômicas desses alunos, mas também e de maneira
incisiva, no racismo que se manifestas nos conteúdos dos livros didáticos e na
postura discriminatória dos professores e alunos não negros18.
Para superar essa situação da negação da cidadania dos negros nas esco-
las, os ativistas do movimento negro e os estudiosos das relações raciais têm
sugerido debates públicos em torno do multiculturalismo e da educação19. A Lei
10.639, as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Ét-
nico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana” e
os programas de formações de professores citados acima são exemplos concre-
tos de uma das conquistas desses agentes negros na sua luta pelo reconhecimen-
to dos direitos da população negra no campo da educação. Como reivindicações
fazem parte da luta pelo multiculturalismo no campo da educação20.
Mas o que entendemos por multiculturalismo? Boaventura de Sousa San-
tos e João Arriscado Nunes reconhecem que o “multiculturalismo” é um con-
ceito contestado, assim é preciso exorcizá-lo antes de qualquer uso. Para se sair
do malentendimento, esse autor adota a definição do “multiculturalismo eman-
cipatório”21. Stuart Hall compartilha essa concepção e faz essas distinções:
Multicultural é um termo qualificativo. Descreve as característi-
cas sociais e os problemas de governabilidade apresentados por
qualquer sociedade na qual diferentes comunidades culturais
convivem e tentam construir uma vida em comum, ao mesmo
tempo em que retêm algo de sua identidade “original”. Em con-
trapartida, o termo “multiculturalismo” é substantivo. Refere-se
às estratégias e políticas adotadas para governar ou administrar
problemas de diversidade e multiplicidade gerados pelas socie-
dades multiculturais22.

Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva reconhecem que o multiculturalis-


mo na educação brasileira é um jogo de negociação das diferenças23. Portan-
to, negociações e construções da cidadania plena dos negros. É nessa mesma

18
SECRETARIA DE ESTADO DE EDUCAÇÃO – SÂO PAULO. Programa São Paulo Educando pela diferença
para a igualdade. São Paulo, 2005 (Apostila Modulo II).
19
TERCEIRO SEMINÁRIO RELAÇÕES RACIAIS E EDUCAÇÃO : Saberes, Políticas e Perspectivas, 03 a 07 de
novembro de 2003; SECRETARIA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA, ALFABETIZAÇÃO E DIVERSIDADE,
pp. 205-229.
20
L. A . GONÇALVES; P. B. G. e SILVA, O Jogo das diferenças: o multiculturalismo e seus contextos, 2001.
21
B. de S. SANTOS; J. A . NUNES, Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igual-
dade. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. (Org.), Reconhecer para libertar, pp. 25-66
22
S. HALL, Da diáspora : Identidade e Mediações culturais, p. 52.
23
L. A . GONÇALVES; P. G. e SILVA, Op.cit.

93
Organizadora : Edelamare Melo

perspectiva que, na sua luta pela educação multicultural, os intelectuais ne-


gros têm adotado duas formas de estratégias nesses últimos tempos: a trans-
formação do currículo nacional que é hegemonicamente branco e a luta pela
inserção de uma nova pedagogia de inclusão ou uma pedagogia multicultural.
O que está em jogo em todo isso é o que Morin tem chamado de “reforma do
ensino educacional”24, isto é, a reforma da escola que passa pela reforma do
pensamento e da pedagogia. Para tanto Morin cogita uma nova missão para
a educação cidadã: “A missão desse ensino é transmitir não mero saber, mas
uma cultura que permita compreender nossa condição e nos ajude a viver, e
que favoreça, ao mesmo tempo, um modo de pensar aberto e livre”25. A liber-
dade é o longo sonho que tem caracterizado as lutas dos movimentos negros,
na África e nas diásporas negras americanas, pelo estabelecimento de uma
nação multicultural e democrática26. A teologia da libertação tem muito a nos
ensinar nesse sentido, e a teologia da libertação negra muito mais. A esses
ingredientes teológicos sobre a liberdade e libertação, o cientista da religião,
sobretudo o sociólogo, tem que acrescentar outros elementos. Assim, com o
economista Amartya Sen há de interpretar a liberdade como um caminho para
o desenvolvimento social, político, econômico e cultural27.
A educação desempenha um papel fundamental no processo da libertação
do negro. Tendo em conta o contexto brasileiro, Petronilha Beatriz Gonçalves e
Silva pensa que a realização de uma educação multicultural no país começaria
pela “aprendizagem e ensino das africanidades brasileiras” na formação dos
professores e dos alunos. Mas o que significa africanidades brasileiras?
Ao dizer africanidades brasileiras estamos nos referindo às raí-
zes da cultura brasileira que têm origens africanas. Dizendo de
outra forma, estamos, de um lado, nos referindo aos modos de
ser, de viver, de organizar suas lutas, próprios dos negros brasi-
leiros, e de outro lado, às marcas de cultura africana que, inde-
pendentemente da origem étnica de cada brasileiro, fazem parte
do seu dia-a-dia28.

Nas “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações


Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africa-
na” cuja professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva foi relatora, pode-se

24
E. MORIN, A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento, 2001.
25
E. MORIN, Complexidade e transdisciplinaridade: A reforma da universidade e do ensino fundamental, 1999.
26
M. PAIXÂO, Manifesto anti-racista: idéias em prol de uma utopia chamada Brasil, pp. 11-12.
27
Cf. A. SEN, Desenvolvimento como liberdade, 2000.
28
P. B. G e SILVA, Aprendizagem e ensino das africanidades. In: MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o
racismo na escola, p. 155.

94
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

dizer que as “africanidades” se relacionam aos saberes, às produções culturais


e sociais que os africanos e seus descendentes vêm produzindo desde o surgi-
mento do homem nos territórios dos seus ancestrais e a formação das diásporas
negras. Sendo assim, nós entendemos que o desenvolvimento do papel educa-
dor político do cientista da religião não se limita somente na análise das “afri-
canidades brasileiras”, mas também as manifestações culturais e históricas dos
povos africanos ligados ao campo da religião, as “as africanidades” tout court.
Desse modo, cabe-nos de introduzir o outro conceito, o das “africanidades ne-
gras” para falar dessas duas manifestações culturais; dos “saberes afro-brasi-
leiros” para designar as culturas afro-brasileiras e dos “saberes africanos” para
designar especificamente as produções culturais dos povos africanos.
Nesse sentido, o lugar reservado por Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva para
o ensino das africanidades afro-brasileiras vale também para os saberes africanos:
No âmbito escolar e acadêmico, as Africanidades Brasileiras cons-
tituem-se no campo de estudos, logo, tanto podem ser organizados
enquanto disciplina curricular, programa de estudo abrangendo dife-
rentes disciplinas, como a de investigações. Em qualquer caso, carac-
terizam-se pela interrelação entre diferentes áreas de conhecimentos,
que toma como perspectiva a cultura e a história dos povos africanos
e dos descendentes seus nas Américas, como em outros continentes29.

Nesse sentido, os conteúdos e as metodologias que devem ser empregados


para o estudo e ensino das africanidades negras estão relacionados às suas respecti-
vas disciplinas. Numa palavra, o seu estudo requer uma abordagem multidiscipli-
nar e seu ensino uma modalidade transdisciplinar. Nesse sentido acreditamos que
o cientista da religião por ser um profissional treinado numa pedagogia, nos con-
teúdos e métodos multidisciplinares, poderia se sair melhor no ensino das africa-
nidades negras. O exercício do seu papel político na educação nacional passa por
essa tomada de consciência das vantagens que lhe oferece o seu campo de estudo.
3. Intervenção do cientista da religião no ensino brasileiro
O cientista da religião tem um papel fundamental a desempenhar na cons-
trução de uma educação multicultural no país. O seu diálogo com o campo dos
estudos das relações raciais e do multiculturalismo é o primeiro passo nessa di-
reção. O outro passo é estabelecer o que ele deve fazer no âmbito de ensino
das africanidades religiosas. A sua tarefa seria analisar os fenômenos religiosos
negros presentes nas disciplinas que estudam as culturas negras, os saberes afri-

29
P. B. G. e SILVA, art. citado, p. 161.

95
Organizadora : Edelamare Melo

canos e afro-brasileiros. Tomando em conta os contextos de produção desses


conhecimentos, o que ele há de investigar são as idéias, as visões do mundo,
as linguagens que os Estudos Africanos e os Estudos Afro-Brasileiros vêm pro-
duzindo em relação à cultura e história africanas e afro-brasileiras. Os Estudos
Afro-Brasileiros tendem sempre a iniciar suas investigações tomando como pon-
to de partida o contexto africano por causa da sua relação histórica sem, todavia,
perder de vista sobre suas peculiaridades históricas, suas “situações históricas”30;
as invenções e criações da cultura africana na diáspora31.
Portanto, querer pensar as “africanidades religiosas” requer do investiga-
dor da religião uma visão heurística diatópica que busca religar a pré-história
africana à história dos últimos descendentes do “homo sapiens” nos territórios
africanos32 e de seus descendentes dispersos nas diásporas americanas. O proce-
dimento metodológico da complexidade de Morin se impõe nesse sentido como
instrumento científico indispensável para esse cientista do sagrado, que além do
uso plausível do recorte histórico que deve fazer, é convidado a bem tratar dos
acontecimentos sociais segundo a sua relevância histórica. O que Weber dizia
referente ao sociólogo, diz respeito também a qualquer cientista dos bens religio-
sos independentemente de sua especialidade: “A conceituação da sociologia en-
contra seu material [...] nas realidades da ação consideradas também relevantes
do ponto de visto da história [...] com isso, pode prestar um serviço à imputação
causal histórica dos fenômenos culturalmente importantes”33.
A caça do material, para a identificação e a construção das africanidades
religiosas como objeto de pesquisa e de ensino da parte do cientista da religião,
de modo especial do sociólogo, não se limita ao diálogo que há de estabelecer
entre a sociologia e a história, mas implica também uma aproximação com ou-
tras disciplinas do campo das ciências humanas e das ciências da natureza. Até
porque, no entendimento da Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, que é tam-
bém o no nosso, os conteúdos a serem discutidos embarcam todas as disciplinas
que compõem o currículo nacional: História, Antropologia, Geografia, Sociolo-
gia, Matemática, Ciências, Psicologia, Educação física, Educação Musical, Arte
Plástica34, acrescentaremos o Ensino religioso, a Filosofia e a Teologia.
Como se pode observar a complexidade temática do Ensino da História
e Cultura Afro-Brasileira e Africana requer ao mesmo tempo uma abordagem
multidisciplinar e um ensino transdisciplinar. As Diretrizes retratam em linhas

A. GRAMSCI, Cadernos do cárcere : Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política, 2000.


31
C. MOURA, Dialética radical do negro no Brasil, 1994 ; S. Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, 2004.
32
J. KI-ZERBO, História geral da África: metodologia e pré-história da África, p. 157-218.
33
M. WEBER, Economia e sociedade: Fundamento da sociologia compreensiva, 2004.
34
P. B. G. e SILVA, art. citado, pp. 161-169.

96
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

gerais os conteúdos que deveriam fazer parte do currículo nacional. Essas Di-
retrizes dividem esses conteúdos em quatro partes. A primeira reúne os temas
relacionados à História Afro-Brasileira, a segunda à História Africana, a tercei-
ra à Cultura Afro-Brasileira e a quarta à Cultura Africana. Caberá ao cientista
da religião ressaltar os elementos relevantes ligados ao seu campo de estudo,
mostrando sobretudo aqueles que detêm o poder simbólico eficiente e sufi-
ciente35 no processo da construção democrática de uma educação multicultural
brasileira; a educação que valoriza as diferenças e luta pela igualdade racial.
Por uma questão metodológica, a seguir, procederemos na apresentação
das orientações dos conteúdos do ensino das africanidades negras sugeridos
pelas referidas diretrizes. Em seguida, faremos alguns comentários relativos à
intervenção do cientista da religião. Gostaríamos de dizer que se trata somen-
te de breves comentários e não de estudos detalhados. Estes dizem respeito,
de modo particular, às ciências sociais, a sociologia, disciplina que é o nosso
oficio na atualidade. O que não impede que outros cientistas da religião, te-
ólogos, historiadores, filósofos possam se servir também deles. Começamos
pela primeira parte das diretrizes, a História Afro-Brasileira.
O ensino de História Afro-Brasileira abrangerá, entre outros con-
teúdos, iniciativas e organizações negras, incluindo a história dos
quilombos, a começar pelo Palmares, e de remanescentes de qui-
lombos, que têm contribuído para o desenvolvimento de comunida-
des, bairros, localidades, municípios, regiões (exemplos: associa-
ções negras recreativas, culturais, educativas, culturais, educativas,
artísticas, de assistência, de pesquisa, irmandades religiosas, gru-
pos do Movimento Negro). Será dado o destaque a acontecimentos
e realizações próprios de cada região e localidade36.
Datas significativas para cada região e localidade serão devi-
damente assinaladas. O 13 de maio, Dia Nacional de Denún-
cia contra o Racismo, será tratado como o dia de denúncia das
repercussões das políticas de eliminação física e simbólica da
população afro-brasileira na pós-abolição, e de divulgação dos
significados da Lei Áurea para os negros. No 20 de novembro
será celebrado o Dia nacional da Consciência Negra, entenden-
do-se consciência negra nos termos explicitados anteriormente
nesse parecer. Entre outras datas de significado histórico e polí-
tico deverá ser assinalado o 21 de março, Dia Internacional de
Luta pela Eliminação da Discriminação Racial37.

35
Cf. P. BOURDIEU, O poder simbólico., 2002; P. BOURDIEU; J-C PASSERON, A Reprodução: elementos para
uma teoria do sistema de ensino, 1975.
36
Diretrizes, p. 20.
37
Diretrizes, p. 21.

97
Organizadora : Edelamare Melo

Em relação à História Afro-Brasileira, o cientista da religião pode inter-


vir de maneira relevante analisando as organizações religiosas negras no tempo
colonial, após-abolição e em nossos tempos. Um dos pressupostos teórico-me-
todológico é de evitar o “dualismo filosófico ocidental” que separa o profano
do sagrado38, assumindo a “complexidade” como instrumento de análise das or-
ganizações religiosas e de seus ritos profanos39 como elementos indispensáveis
para apreender a História dos afro-brasileiros como uma história de resistência40
que constrói o multiculturalismo emancipatório e a educação cidadã brasileiros
a partir de “protestos de rua”41. Dessa forma, há a possibilidade de se estudar o
ativismo religioso das organizações religiosas negras na transformação da socie-
dade brasileira e construção do poder simbólico negro, da sua identidade étnica42.
A segunda parte das diretrizes fala sobre a História da África:
Em História da África, tratada em perspectiva positiva, não só de de-
núncia da miséria e discriminações que atingem o continente, nos tó-
picos pertinentes se fará articuladamente com a história dos afrodes-
cendentes no Brasil e serão abordados temas relativos – ao papel dos
anciãos e dos griots como guardiões da memória histórica; - à história
da ancestralidade e religiosidade africana; - aos núbios e aos egípcios,
como civilizações que contribuíram decisivamente para o desenvolvi-
mento da humanidade; - às civilizações e organizações políticas pré-co-
loniais, como os reinos do Mali, do Congo e do Zimbabwe; - ao trafico
e à escravidão do ponto de vista dos escravizados;
- ao papel de europeus, de asiáticos e também de africanos no trafico; - à
ocupação colonial na perspectiva dos africanos; - às lutas pela indepen-
dência política dos paises africanos; - ás ações prol da união africana
em nossos diais, bem como o papel da União Africana, para tanto; - às
relações entre as culturas e as histórias dos povos do continente afri-
cano e os da diáspora; - à formação compulsória da diáspora, vida e
existência cultural e histórica dos africanos e seus descendentes fora da
África; - à diversidade da diáspora, hoje, nas Américas, Caribe, Europa
e Ásia; - aos acordos políticos, econômicos, educacionais e culturais
entre África, Brasil e outros países da diáspora43.

As Diretrizes recomendam que se estuda a História dos africanos e de


seus descedentes numa perspectiva dialógica, sempre em diálogo com outras

38
B. de SANTOS, art. citado.
39
C. RIVIÈRE, Os ritos profano, 1997.
40
C. MOURA, Op.cit.
41
L. A. GONÇALVES; P. B. G e Silva, Multiculturalismo e educação: do protesto de rua a propostas e políticas. In :
Educação e pesquisa, pp. 109-123.
42
B. MALOMALO, Poder simbólico alternativo e a identidade étnica no Brasil, 2005.
43
Diretrizes, pp. 21-22.

98
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

histórias da humanidades, sobretudo de suas diásporas. Não só isto. O negro


deve ser estudado, como afirma o sociólogo Guerreiro Ramos, “a partir de
dentro” como sujeito da história e não como um mero objeto44. Como edu-
cador, o cientista do sagrado há de assumir a postura do afro-optimismo e
não o seu contrário que tem prevalecido até então, o afro-pessimismo. Outra
grande novidade que trará para o ensino multicultural é o resgate das civi-
lizações africanas e de seus heróis mostrando a ligação que aquelas e estes
têm com o mundo do sagrado45. A beleza, a estética negra, os saberes negros
devem ser apresentados de maneira positiva sem nenhuma ideologia etnocên-
trica. Nem o eurocentrismo, nem o afrocentrismo deve prevalecer. Pois cada
“ismo” mata o espírito científico. Somente a africanidade, como saber aberto
deve guiar o seu espírito. A historiografia africana é um aliado indispensável
nesse empreendimento, sobretudo a corrente da egiptologia realizada pelos
estudiosos como Cheik Anta Diop, Théophile Obenga e companhia. É uma
corrente cientifica multidisciplinar e transdisciplinar que aborda o negro a
partir de dentro e na lógica da complexidade e do diálogo46.
Já a terceira parte das Diretrizes dá dicas sobre Cultura Afro-Brasileira: “O
ensino de Cultura Afro-Brasileira destacará o jeito de ser, viver e pensar mani-
festado tanto no dia-a-dia, quanto em celebrações como congadas, moçambiques,
ensaio, maracatus, rodas de samba, entre outros”47. Em relação aos elementos cul-
turais afro-brasileiros, o cientista da religião poderia desvendar as “religações”
existentes entre a religiosidade negra com a poesia, a literatura afro-brasileiras, a
capoeira, música negra, o rapp, o maracatu, por exemplo.
Enfim, a última parte das Diretrizes fala da Cultura Africana:
O ensino da Cultura Africana abrangerá: - as contribuições do
Egito para a ciência e filosofia ocidentais; - as universidades
africanas de Timbuktu, Gao, Djene que floresceram no século
XVI; - as tecnologias de agricultura, de beneficiamento de culti-
vos, de mineração e de edificações trazidas pelos escravizados,
bem como a produção cientifica, artística (arte plástica, literatu-
ra, musica, dança, teatro), política, na atualidade48.

44
G. RAMOS, Introdução crítica à sociologia brasileira., 1995.
45
CENTRE D´ÉTUDES DES RELIGIONS AFRICAINES, Religions Africaines et projet de socété. In : Cahier des
Religions Africaines, p. 23-28.
46
C. A . DIOP, Origem dos antigos egípcios. In: G. Mokhtar (Org.). História Geral da África, A África antiga, 1983;
Th. OBENGA, Fontes e técnicas especificas da historiografia da África Panorama Geral. In: KI-ZERBO, Joseph.
História geral da África: metodologia e pré-história da África, 1982, p. 91-104; Egiptologia. Disponível em : http ://
www.ankhonline.com..
47
Diretrizes, p. 22.
48
Ibidem.

99
Organizadora : Edelamare Melo

Apesar das influências do fenômeno da globalização, do hibridismo nas culturas,


pode-se dizer que tanto as culturas africanas como a cultura afro-brasileira continuam
conservando umas de suas características “genéticas”, que definem suas identidades:
a sua ligação com o mundo do sagrado49. O cientista social da religião pode confirma a
veracidade ou a falsidade dessa afirmação no quadro de seus estudos. Temos a certeza
que não lhe será difícil mostrar a lógica “conservadora” da cultura africana, mesmo
nesse nosso período da alta modernidade, isto é, o modo como essa cultura continua
conservando a sua visão cósmica, a “religação” entre o mundo invisível, do sagrado,
dos antepassados e o mundo do visível, do profano, até os dias de hoje. A economia,
a arte, a política, a sexualidade só podem ser compreendidas na África se levar-se em
conta essa visão cósmica do mundo do mundo africano em que o sagrado e o profano
coexistem50. Não será também uma tarefa difícil ao cientista da religião comprovar a
lógica dialógica presente nessa cultura, isto é, a sua capacidade, elasticidade em dialo-
gar com o diferente, as culturas ocidentais, orientais por exemplo.
Essa visão cósmica da realidade faz também parte do imaginário religioso dos
afro-brasileiros que frequentam as religiões de orixás e que ocupam os territórios ur-
banos e rurais, os quilombos. A preservação da cosmovisão africana nesses grupos é
devida à sua “resistência” à dominação da cultura ocidental. O estudo comparativo das
“Religiões Africanas no Brasil”51, nesse sentido, desempenharia um papel fundamen-
tal para o ensino multicultural e das relações interétnicas nas salas de aulas52. Dito em
outras palavras, a arte, a música, a poesia, os mitos, o corpo, os territórios, a história
ligados, vistas como religiosidades negras ou africanidades religiosas se apresentam
como “bens culturais”, objetos de análise, cujo cientista da religião poderia apreender
os sentidos, os significados que dizem respeito à “condição humana” para se iniciar
uma discussão em torno da educação multicultural para negros e brancos no Brasil. É
nesse sentido é que pensamos que o ensino religioso poderia servir de espaço para a
construção de uma sociedade democrática onde o mito da democracia racial não fun-
ciona somente como um mero instrumento da dominação da elite brasileira.
Conclusão
Com Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva pode-se concluir dizendo
que a aprendizagem e o ensino das africanidades fazem parte de uma pedago-
gia anti-racista que têm como exigências:

49
M. C. FAIK-NZUJI, La puissance du sacré; l´homme, la nature et l´art en Afrique, 1993.
50
CENTRE D´ÉTUDES DES RELIGIONS AFRICAINES, Religions Africaines et projet de socété. In : Cahier des
Religions Africaines, p. 23-28.
51
R. BASITIDE, As religiões Africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das interpretações de civilizações, 1989.
52
TERCEIRO SEMINÁRIO RELAÇOES RACIAIS E EDUCAÇÃO : Saberes, Políticas e Perspectivas, 03 a 07 de no-
vembro de 2003; SECRETARIA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA, ALFABETIZAÇÃO E DIVERSIDADE, pp. 205-229.

100
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

• Diálogo, em que seres distintos miram-se e procedem a intercâmbios,


sem sentimentos de superioridades ou inferioridades, isto é, estabele-
cem um diálogo intercultural ou multicultural emancipatório na pers-
pectiva de Santos (2003).
• A reconstrução do discurso e da ação pedagógica, no sentido de que
participem do processo de resistência dos grupos e de classes postos à
margem, bem como contribuam para a formação da sua identidade e de
sua cidadania;
• e estudos da recriação das diferentes raízes da cultura brasileira,
que nos encontros e desencontros de umas com as outras se refizeram
e, hoje, não são mais gêges, nagôs, bantus, portugueses, japoneses, ita-
lianas, alemãs; mas brasileiras de origem africana, europeia, asiática53.

A tomada de consciência da parte do cientista da religião da sua iden-


tidade no cenário das ciências das humanidades e o uso político dessas é o
primeiro passo para se discutir o alcance da contribuição desse profissional
sobre o debate em torno da educação multicultural. O segundo passo será de
estabelecer um diálogo com os estudos das relações raciais, sobretudo o cam-
po das ciências da educação, sociologia, filosofia da educação e a pedagogia.
Só dessa forma, incorporando as exigências de uma pedagogia anti-racista é
que ele poderia intervir na construção de uma educação democrática tendo
as africanidades religiosas negras como objetos científicos e armas políticas.
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53
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101
Organizadora : Edelamare Melo

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

TEOLOGIA E ESPIRITUALIDADE
AFRO-ANCESTRAL EM DEFESA DE PESSOAS
HOMOAFETIVAS E DESAMPARADAS

Bas´Ilele Malomalo1

Dedico esse texto ao meu amigo


F. Vitor Macedo Pereira

Introdução
O texto que vou apresentar fará parte de uma mesa redonda que se denomi-
na: “Teologia e Espiritualidade Afro-Ancestral: Resistir, (Re)Existir e Transformar em
Tempos de Crise”. Como organizadores/as da referida mesa redonda, pensamos em
discutir sobre as religiões, teologias e espiritualidades africanas focando nas formas de
suas elaborações e vivências nos espaços moldados pelos valores civilizatórios africa-
nos e/ou que estão em permanente diálogos com outras religiões como religiões indíge-
nas, o islã, o cristianismo e o espiritismo na África e no Brasil. Tensionar a questão do
pluralismo religioso, e destacar como as comunidades religiosas lideradas por pessoas
negras podem se tornar espaços de resistência, re-existência e transformação em tem-
pos de crise. A mesa visa igualmente a troca de experiências de resistências feitas pelos
africanos e seus descendentes no continente africano e na diáspora negra no Brasil.
O texto apresentado inscreve-se na tradição da oralidade africana.
Quando falamos de tradição em relação à história africana, refe-
rimo-nos à tradição oral, e nenhuma tentativa de penetrar a histó-
ria e o espírito dos povos africanos terá validade a menos que se
apóie nessa herança de conhecimentos de toda espécie, paciente-
mente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao
longo dos séculos. Essa herança ainda não se perdeu e reside na
memória da última geração de grandes depositários, de quem se
pode dizer são a memória viva da África. (BÂ, 2010, p. 167).

1
Graduado em Filosofia e Teologia, é doutor em Sociologia pela UNESP, estagiário pós-doutorado pelo Instituto da Biociência/
Departamento de Educação/UNESP-Botucatu, docente e líder do Grupo de pesquisa África-Brasil: Produção de conhecimento,
Sociedade civil, Desenvolvimento e Cidadania Global/UNILAB/CNpq, pesquisador do Centro de Ciência e Tecnologia para
Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (INTERSSAN-Unesp), do Centro dos Estudos das Culturas e Línguas Africanas
e da Diáspora Negra (CLADIN-Unesp), da Rede para o Constitucionalismo Democrático Latino-Americano/Brasil e expert da
plataforma Harmony with Nature/ONU e fundador do Instituto da Diáspora Africana no Brasil (IDDAB).

105
Organizadora : Edelamare Melo

Iniciarei a escrita do meu texto com duas histórias, ouvidas junto do


meu mestre espiritual Sheik Modibo Dadiarra, fundador da Comunidade Ma-
dinatu Munawara (CMM). Ambas me foram contadas no dia 17 de setembro
de 2019, quando estávamos na mesa conversando sobre a espiritualidade. A
primeira tem a ver com a história de um jovem senegalês, Ndemba, que as-
sumiu a sua identidade homoafetiva feminina - por isso vou nomear ‘ele’ de
‘ela’ -, e por causa disso vem sendo perseguida. A segunda é a história do
Dagui, um jovem que tinha se envolvido com o álcool e as drogas, e se viu
interpelado para assumir a sua paternidade.
As duas histórias têm a ver com as teologias e espiritualidades africanas. Di-
ria ancestrais e islâmicas, uma vez que o meu mestre é uma pessoa que vive nesses
dois mundos, africano e islâmico. Ademais, seus/suas discípulos/as são de diversas
tradições religiosas do mundo. As reflexões a seguir terão um pouco do sabor do
cristianismo que é uma das religiões do pertencimento do narrador desse texto.
Divido a minha escrita em cinco seções. A primeira começa a falar da di-
vindade que é o tema principal da teologia refletindo sobre “Deus/a da palavra
que se fez história”. História cósmica, que trato na segunda seção, quando falada
é a teologia e quando vivida é a espiritualidade africana. Mas chamo desde já a
atenção pelo fato de que essa separação é somente pedagógica, pois no mundo
africano teologia e espiritualidade devem andar juntas. Na terceira seção, destaco
o aspecto do imperialismo, colonialismo e colonialidade nos modos de se fazer
e viver a teologia-espiritualidade africana. Os duplos e múltiplos pertencimentos
religiosos, existentes em nossas vidas de africanos/as, têm muito a ver com as
histórias de dominação imperialista árabo-muçulmana e cristã-ocidental que afri-
canos/as enfrentaram no passado e que têm repercussões no presente.
No meio às dominações estrangeiras, nasceram também as tradições africa-
nas de resistências. Ainda na terceira e, especificamente, na quarta e quinta seção
ocupo-me de uma tradição de resistência africana dentro do Islã, o muridismo.
Defendo que a CMM, fundada e liderada pelo Sheik Modibo Dadiarra é a radica-
lização e modernização do muridismo, enquanto um islã não somente negro, mas
pan-africanista e genuinamente plural em que se busca viver o amor incondicio-
nal pelo Outro/a, entenda-se com isso: Comunidade-Divino-Ancestral, Comuni-
dade-Universo-Natureza e Comunidade-dos-Bantu/Seres-Humanos.
Deus/a da palavra que se fez história
Dizer que Deus/a Africano/a é Deus/a que se fez história não quer dizer
que essa afirmação deve, como o fazem muitos/as teólogos/as africanos/as,
partir dos textos judaico-cristãos ou islâmicos, uma vez que os textos africa-

106
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

nos são anteriores aqueles e têm seu valor único. Os textos africanos que me
inspiram encontram-se, por exemplo, nas escritas de Hamadou Ampaté Bâ.
A tradição bambara do Komo ensina que a Palavra, Kuma, é uma
força fundamental que emana do próprio Ser Supremo, Maa Ngala,
criador de todas as coisas. Ela é o instrumento da criação: “Aquilo
que Maa Ngala diz, é!”, proclama o chantre do deus Komo.
O mito da criação do universo e do homem, ensinado pelo mestre
iniciador do Komo (que é sempre um ferreiro) aos jovens cir-
cuncidados, revela-nos que quando Maa Ngala sentiu falta de um
interlocutor, criou o Primeiro Homem: Maa. (BÂ, 2010, p. 170).

Deus/a Africano/a fez-se história e é/existe fazendo-se história. E já


adianto, trata-se da História cósmica (OBENGA, 1980), isto é, em que todas
as Comunidades de Vida participam: Comunidade-Sagrado-Ancestralidade,
Comunidade-Universo-Natureza e Comunidades-Bantu. Ubuntu, o Ser-Sen-
do (RAMOSE, 2011), que traduzimos por “Existo porque Nós Existimos”
(MALOMALO, 2014), traduz melhor esse movimento histórico cósmico.
A primeira história, que me foi contada pelo meu mestre, ocorreu no mês de
setembro deste mesmo ano. Trata-se da perseguição de Ndemba. Jovem senegalês
–como avisado que vamos identificar como ‘ela’, em Dakar, que para assumir a
sua identidade homoafetiva, vestiu-se como se sentia confortavelmente de mulher.
Isso acarretou raiva da parte do público fundamentalista, de maioria muçulmana,
que a perseguiu para matá-la. Apavorada, ela acabou entrando em contato com o
meu mestre espiritual que, em seguida, acionou outros discípulos para auxiliá-la
na sua fuga. No momento que estava me contando a história, garantiu-me que es-
tava num lugar seguro; mesmo assim estava a tomar providências para fazer sair
Ndemba do território senegalês rumo a um país vizinho. Será lá acolhida por um
ativista muçulmano homoafetivo que tem auxiliado nesses casos.
A segunda história aconteceu nos anos setenta. É a história do Dagui.
Um jovem senegalês que tinha seus 20 anos que bebia álcool, usava algumas
drogas e namorava uma menina que era cristã. Essa situação de Dagui fazia
com que não fosse respeitado e rejeitado pelo seu marabo, seu líder religioso.
Aconteceu um dia que a namorada dele teve um bebê, um menino, e Dagui
não queria realizar o batizado da criança. Como frequentava o espaço religio-
so do meu mestre, por ser rejeitado pelo seu maraabo, aquele lhe disse que ia
batizar a criança, fazer uma cerimônia e dar nome a ela. No dia que o Sheik
Modibo Dadiarra foi para comprar um carneiro para o batizado, Dagiu furtou
o botijão de gás para vendê-lo na vizinha, e acabou sendo pego por outros
discípulos. Esses amarraram-no numa árvore até a chegada do mestre. Aos

107
Organizadora : Edelamare Melo

gritos do público para castigar o Dagiu, que poderia envolver surras, expul-
são ou até apedrejamento, o mestre não sabia o que fazer diante da tamanha
incompreensão da situação. Logo me disse que ouviu uma voz que lhe disse
para perguntar ao seu discípulo porque teria furtado o gás, mesmo sabendo
que teria ido comprar a ovelha para o batizado. O discípulo respondeu que
não sabia porque estava fazendo aquilo, e implorou ao mestre para perdoá-lo.
O que foi feito; e no dia seguinte, o mestre, Dagui e outros discípulos foram
até a casa do pai da namorada para pedir a autorização para batizar a criança.
Teologia e espiritualidade africana
Nós pensamos e acreditamos que teologia é uma fala ou discurso so-
bre o sagrado. Rubem Alves, um dos teólogos brancos mais críticos que eu
admiro, compreende a Teologia, em geral, como “variações sobre a Vida e a
Morte”. Em outras palavras, conforme o teólogo protestante: “É assim que
entendo a teologia. Falar sobre a vida, suas coisas mais simples e mais gra-
ves, com amor, usando símbolos/memórias que uma tradição enfiou na minha
carne. É por isso que não tenho alternativas...” (1985, p. 7).
Contrariando, o mestre Rubem Alves, digo que alternativas sempre
temos, quando nos situamos numa tradição de insurgência, de resistência e
busca de liberdade absoluta. É isso que os povos negros sempre buscaram e
fizeram: encontrar alternativas para além de projeto de morte imposto a eles
pelos imperialistas e isso não somente no campo teológico.
Para me restringir no campo da resistência negra no campo teológico,
trago duas definições do teólogo metodista africano, Gabriel Setiloane, que
escreve desde África do Sul, e Marcos Rodrigues da Silva, que escreve desde
a diáspora negra brasileira.
Falando de modo muito bem resumido, então, a Teologia Africana é
uma tentativa de verbalizar a reflexão a respeito da Divindade (fazer
teologia) a partir da perspectiva do ambiente e da cultura do povo
africano. Esse ambiente e cultura são vistos e julgados, não somente
como ingredientes, mas como algo que determina as respostas finais
que essa teologia dá a perguntas referentes à natureza da Divindade
e da humanidade; aos imperativos que derivam daí, referentes às
relações humanas, individuais e em comunidades; e a perguntas so-
bre a morte e a vida depois da morte. (SETILOANE, 1992, p. 54).

Na mesma perspectiva de Setiloane, Marcos Rodrigues da Silva (1998, P.


9-10) pondera que “o pensamento teológico afro-americano toma como referên-
cia básica as experiências de Deus vividas pelas comunidades negras no conti-

108
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

nente”; e em seguida, destacando que essa teologia é uma experiência de fé numa


sociedade marcada pelo racismo e pela opressão sobre tantos e de maneira parti-
cular sobre os negros, chama atenção sobre as particularidades da teologia negra.
O pensamento teológico afro-americano, embora tenha um pon-
to de partida comum determinado pelo racismo, pela opressão,
marginalização e exclusão da comunidade negra no continente,
está atento também às particularidades geográficas e às práticas
do cotidiano. A comunidade negra vive realidades que fazem
dela um todo. Entretanto, ela constitui também uma realidade
plural, presente em todos os espaços do continente. Estes fatores
fazem com que o pensamento teológico define uma ótica pró-
pria, priorizando acontecimentos e experiências que caracteri-
zam este modo de fazer e lhe dão sentido. (SILVA, 1998, p. 10).

O ponto comum entre os membros de CMM é que nós acreditamos


nas divindades ancestrais africanas; e nossa diferença é que temos membros
que são muçulmanos, cristãos, crentes de outras espiritualidades. Nesse sen-
tido, o sagrado sobre o qual se fundamenta a fala nossa teológica expressa-se
em muitas línguas, expressões culturais: Nzambi, Ngala, Olodumaré, Orixás,
Deus, Deusa, Yavé, Allah, Divindades, Ancestralidade.
Espiritualidade, de outro lado, é Ubuntu, Ser-sendo. O Grande-Movimen-
to-da -Vida; o Viver o/do Mistério da Vida. A Vida, conhecida pelos povos afri-
canos com o nome de Ntu ou Axé, é Energia/Força que se manifesta através do
Movimento de três comunidades de Vida: Comunidade-Sagrado-Ancestral, Co-
munidade-Universo-Natureza e Comunidade-dos-Bantu/Seres-Humanos.
Espiritualidade não é só do domínio do racional, mas sobretudo do sen-
tir e viver. Ela é experiência. Praticar a espiritualidade africana é deixar-se
guiar pela Comunidade-Sagrado-Ancestral que guia as outras duas: Comuni-
dade-Universo-Natureza e Comunidade-dos-Bantu.
Em termos concretos, a partir das duas histórias que acabei de contar.
Teologia-espiritualidade significa falar/experimentar sobre a Vida-Ntu-Axé.
No mundo africano, tem a ver com os ensinamentos que brota das três Comu-
nidades e pensar como se relacionam. O meu mestre com a força da palavra
me contou aquela duas histórias querendo me ensinar algo na vida concreta.
Quando o/a mestre fala, os/as discípulos/as escutam. Escutam para
aprender se tornar pessoas boas, cheias de ética espiritual, aberto ao Ntu, por
isso, o ser-humano é um Mu-Ntu. Pessoa que só se realiza em comunidade;
pessoa voltada para a busca do Maat, a justiça, harmonia divino-ancestral e
socioambiental (NTUMBA, 2014; OBENGA, 2005; BILOLO, 1986)

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Organizadora : Edelamare Melo

Quando meu mestre acabou de me contar as histórias, disse-me essa é a fé. Esse
é Deus. Na primeira história Deus/a se manifesta através de nós quando protegemos
os/as perseguidos por causa de diferença de identidade sexual. Ele se manifesta igual-
mente no perdão que quem se encontra numa posição de superioridade deve conceder
a quem, por muitos motivos que podem nos escapar, cometeu erros. Amor, perdão e
solidariedade incondicional são realidades históricas e não pura fantasia.
Colonialidade e reinvenção de espiritualidade africana na CMM
Temos que buscar interpretar a noção da colonialidade (BERNARDINO-
COSTA, Joaze ; MADOLNADO-TORRES, Nelson ; GROSFOGUEL, 2018;
MALOMALO, 2017) procurando situar sua gênese e sentido semântico nas e
dentro das dominações exercidas pelos impérios árabo-muçulmano (a partir do
século VIII) e europeu (a partir do século XV) para compreender as domina-
ções estrangeiras nos territórios africanos. Dominações que se fizeram de for-
ma paulatina, mas que tiveram impactos duradouros que se refletem até hoje.
O racismo é um dos elementos que acompanharam as colonizações árabo-mu-
çulmanas e europeias. Transformaram africanos/as e suas culturas em não humanos e
em culturas diabólicas. Apropriaram-se das terras africanas. Escravizaram e traficaram
africanos/as, ou ainda impuseram-nos/as o trabalho forçado, uma forma de escravidão
moderna camuflada. Saquearam o seu patrimônio material e cultural e os/as obrigaram
a menosprezaram a si mesmos/as, suas culturas, suas divindades.
Só que quaisquer forma de dominação gera, geralmente, resistência da
parte dos/as dominados/as. Essa pode ser lenta, mas acaba por aparecer um
dia, quando as condições históricas permitem-na. Dessa forma, é que a África
dominada pela cultura árabo-muçulmana ou euro-cristã, reagiu para assegu-
rar a sua existência coletiva.
Dentro das formas de resistências que os povos africanos travaram contra
seus opressores, a resistência religiosa foi uma delas e foi e tem sido uma das mais
eficientes, tendo-se em conta a não separação do mundo sagrado e mundo pro-
fano entre esses povos (SODRÉ, 2005). Conseguiram dessa forma, de um lado,
a depender de lugares, salvaguardar as religiões de seus ancestrais sem ceder às
imposições das religiões estrangeiras, o cristianismo e o islã. De outro lado, le-
vando-se em conta o contexto de dominação que sofriam, souberam reinterpretar
as religiões de seus opressores, criando novas formas de religiosidades africanas,
conhecidas como islã negro ou cristianismo negro (BASTIDE, 1989).
Esse hibridismo é que explica, em parte, porque uma parte de africanos/as
vivenciam dois ou múltiplo pertencimento religioso sem que seja um problema.
Continua sendo africano/a tradicionalista e/ou muçulmano/a e/ou cristão/ã.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Temos igualmente no mesmo continente, pessoas que rezam somente


o credo de seus dominadores. São os fundamentalistas tradicionalistas e/ou
muçulmanos/as e/ou cristãos/ãs. No caso das histórias contadas, esse grupo
de africanos/as usa da religião negando os direitos de existir para os/as outros/
as. Seu Deus é deus da vingança, da morte.
Espiritualidade pan-africana da Comunidade Madinatu Munawara
O Sheik Modibo Dadiarra é da linha teológico-espiritual que segue a
tradição da resistência africana. Pertence à irmandade muçulmana africana
sufista muride. Essa foi fundada pelo Cheikh Ahmadou Bamba Mbacké, cha-
mado de Khadimou al-Rassoul (em arábe que significa servidor do profeta) e
Serigne Touba (chefe religioso e fundador de Touba, em 1887).
A doutrina do muride é assente em quatro princípios fundamentais: a
fé em Deus, imitação do profeta Mohammad, a aprendizagem do Alcorão e o
amor ao trabalho. Os murides assimilaram o islã às tradições do povo wolof,
tal o caso do amor ao trabalho, o apego elevado a ajuda mútua e solidariedade.
O Sheik Modibo Dadiarra é o fundador da Comunidade Madinatu Munawa-
ra. Além dos quatro princípios já apresentados que rege o muridismo, percebe-se
nele a liberdade especial em interpretar o islã à luz das tradições e à modernidade
africanas. O Ndeup, uma prática religiosa terapêutica do povo wolof semelhante
ao Candomblé é usado nos processos de manutenção da vida da comunidade.
Em muitas das nossas conversas o mestre sempre me disse que além
da fé, solidariedade cósmica, a serenidade e a paciência são valores impor-
tante para a vida espiritual. Nesse sentido é o mestre Sheik Modibo Dadiarra
prega que somos somente instrumentos de Deus/as nessa terra. A religião, e
quaisquer uma delas, é vista como caminho de salvação do cosmos, e do ser
humano. Além disso, em CMM impera o pluralismo religioso. O/a Deus/a
aqui existente é Ubuntu, Ser-sendo, Movimento de Abertura para o Outro/a.
É anti colonialidade, anti racismo, anti sexismo.
Os dois casos analisados apontam a figura de um/a Deus/a da Vida que
ama os/as homoafetivos/as, perdoa incondicionalmente e celebra a vida dos/as
que conseguem, em um momento, retomar o caminho da valorização do outro/a.
O caso da jovem homoafetiva, Ndemba, será resolvido dentro da rede
de solidariedade que o meu mestre tem e participa como liderança religiosa e
que se preocupa pelas pessoas oprimidas pelas tradições religiosas fundamen-
talistas, sejam elas africanas ou estrangeiras. Há muitos outros casos ligados
à defesa da vida e direitos de homoafetivos/as que ele me tem contato. Mas
prefiro ficar com esse único que acabei de relatar.

111
Organizadora : Edelamare Melo

O segundo caso foi contado somente a metade, e vou retomar a histó-


ria. Quando meu mestre perguntou a Dagui por que o teria roubado mesmo
sabendo que ele se preocupava com ele e com o batizado do filho dele que
tinha nascido. Ao pedir perdão e prometer a mudança na sua vida, meu mestre
mandou soltar o Dagui. Isso criou revoltas da parte dos fundamentalistas que
alegavam que ele incentivava o mal.
No dia seguinte, o mestre, o Dagui e outros discípulos pegaram o carro e se
foram para a casa do pai da namorada para pedir a permissão para realizar o bati-
zado e o casamento. Quando chegaram, o pai da moça se recusou a recebê-los, e o
mestre com seus discípulos ficaram a esperar na rua desde de manhã cedo até duas
horas da tarde. Os discípulos cantavam louvores a Allah, e uma multidão se aglo-
merava para entender o que estava a acontecer. Uma parte dela admirava a gene-
rosidade do mestre em acompanhar o seu discípulo que foi renegado pelos pais
e pelo próprio marabou perante o mal cometido; e uma outra reprimia o mestre.
Acontece que o tio da moça, depois de conversar com o pai dela, veio con-
versar com o Sheik Modibo Dadiarra que o receberia na sua casa, que ficava bem
perto, para a realização do ritual. O mestre se dirigiu com toda sua comunidade e
procedeu primeiro ao batizado e depois ao casamento do Dagui com a namorada.
A criança recebeu o próprio nome do mestre. Realizou-se o casamento. Imolou-se
o carneiro e esse foi cozido e consumido pela comunidade presente. O pai e a mãe
da namorada, emocionados, acabaram vindo na casa do tio para a festa.
Desde então Dagui nunca mais consumiu drogas e nem bebeu mais o
álcool. Teve seis crianças com a esposa. Tornou-se um homem responsável e
trabalhador. Acabou se mudando para os Estados Unidos. Quando chegou lá
comprou para o seu mestre a primeira televisão de cor. Cada vez que voltava
para Dakar, procurava para o seu mestre, e em cada viagem que fazia entrega-
va um envelope de dinheiro para o mestre e sua comunidade.
A CMM no mundo, África e Brasil
O texto apresentado sinaliza uma forma especial de africanos/as vivenciar
sua espiritualidade nos contextos pós-coloniais marcados pela colonialidade. A
CMM é uma comunidade que tem seus/suas discípulos/as espalhados/as pelo
mundo, na África e no Brasil. O contato com a sua teologia e espiritualidade
dá-se pelo contato com o seu fundador, Grand Papa, Sheik Modibo Dadiarra, o
instrumento de Deus, enviado e seu Pelegrino nas diásporas negras.
Para o meu mestre, o que importa é que cada um/a de seus filhos e filhas
se torne Grand Papa ou Grand Maman, enviado ou enviada de Deus/Deusa,
não importa o nome que Esse/Essa receba.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Sheik Modibo Dadiarra, não somente porque vivenciou o tempo da co-


lonização, mas é o guardião das tradições africanas do passado e do presente
que luta contra todas formas de opressões, especialmente que afetam as popu-
lações negras. Sua família foi convertida ao islã e não é por causa disso que
tinha que renegar as tradições de seus/suas ancestrais.
O que importa, para ele, é se colocar como instrumento de Deus/Deusa
e isso não depende de formato de religião onde a pessoa se encontra.
A religiosidade africana que ele ensina é aquela que preserva e reinter-
preta a tradição dos/as ancestrais, o islã e, muitas vezes, o cristianismo a partir
da nova realidade histórica.
Por isso luta contra qualquer opressão que nega a humanidade do outro.
No caso, o racismo, a homofobia, o machismo ou degradação ao meu ambiente.
A CMM através do seu fundador é igualmente uma comunidade de fé
e cura de vidas.
Na diáspora brasileira, a CMM tem recebido brasileiros/as negros/as e
brancos/as. O seu líder tem zelado para que os valores civilizatórios africa-
nos, que se expressam pela espiritualidade africana, ancestral e do islã negro,
prevaleçam e guiem a vida das famílias de seus/suas filhos/as.
Considerações finais
O trabalho espiritual realizado pelo Sheik Modibo Dadiarra e a CMM,
no Brasil, na África e no mundo, condiz com os princípios e objetivos que o
simpósio “Indígenas, Negros, Quilombolas e Religiosos de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Discriminação e seus Reflexos nas Relações de Traba-
lho, Produção e Consumo” pretende divulgar e atingir.
A população que o meu mestre e a nossa comunidade atendem direta
ou indiretamente é composta de trabalhadores/as, especialmente de camadas
mais pobres, oprimidas e discriminadas pela sua condição social, de sexo,
raça, etnia ou religião.
A voz de CMM e da sua liderança religiosa fazem-se entender no Brasil
pela diáspora africana contemporânea – não só a senegalesa – que reside e traba-
lha nas cidades brasileiras. A maioria constitui família, residência e trabalha aqui.
A CMM e sua liderança são representantes, na atualidade, dos/as afri-
canos/as islâmicos/as e cristãos/ãs que foram escravizados/as no Brasil. Sua
missão é de travar a resistência africana integrando descendentes de africa-
nos/as da diáspora escravizada com a diáspora africana contemporânea re-
sidente atualmente no Brasil e com o continente africano. Tudo isso numa
perspectiva pan-africana libertária.

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Organizadora : Edelamare Melo

Referências Bibliográficas
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Obenga, Théophile. L´Égypte, la Grèce et l´école d´Alexandrie: histoire interculturelle dans l´antiquité
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____. Pour une nouvelle histoire. Paris: Présence Africaine, 1980.
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Sheik Modibo Dadiarra, fundador da Comunidade
Mandinatu Munawara (CMM)
Organizadora : Edelamare Melo

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

La discriminación por razones


étnicas y culturales

Cayetano Núñez González 1

1. Nota introductoria
Abordar un tema tan complejo sobre la discriminación por razones étnicas
en el trabajo pasa, de manera inexorable, por valorar cuáles son las repercusiones
jurídicas que dichas conductas conllevan. Dicho de otra forma, parece imprescindible
evaluar cuál es la dedicación, alcance y efectividad de las normas que tutelan a las
personas que sufran dichas actitudes peyorativa. En este sentido, es imprescindible
una aproximación inicial a los derechos constitucionales en juego, concretando cuál
es el bien jurídico protegido. Múltiples son las causas y las formas de discriminación
proscritas por el Derecho, que en la mayoría de las ocasiones son susceptibles de ser
pluriofensivas y vulnerar varios derechos fundamentales a la vez.
En el tratamiento del tema que aquí se va a desarrollar, parece relevante
partir de un derecho que no sólo es parte indisoluble del ser humano: el derecho a
su diversidad, a ejercer con libertad e igualdad sus propios rasgos culturales, a una
diversidad cultural que, cuando no se tutela, vulnera derechos tan fundamentales
como la dignidad, la igualdad, el honor, la libre determinación de la personalidad,
su integridad corporal… Parece por ello importante realizar una breve revisión
conceptual y normativa2 que, en principio, pueda servir como aproximación pero
que, en definitiva, puedan a posteriori ser utilizadas como base para conocer y
realizar propuestas sobre el tratamiento que reciben en el mundo del trabajo.
Quiero por tanto empezar este trabajo destacando el valor de la cultura
y su relación estructural con las personas, así como poner en evidencia
el inevitable reflejo que tiene la cultura en todos los actos de la vida: sus
manifestaciones definen y diseñan la personalidad del ser humano.
2. La diversidad cultural como bien jurídico protegido
Las personas son, básicamente, culturales: cada una ha nacido en una
comunidad de vida en la que ha socializado, interiorizando unas maneras

1
Doctor en Derecho, Profesor Titular de Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social de la Universitat de València (Es-
paña). Investigador del Instituto Internacional Derecho y Sociedad (Lima, Perú). Investigador del Instituto Polibienestar y
del proyecto de Investigación sobre la violencia en el trabajo y género (VITRAGE) de la Universitat de València.
2
Este texto está basado en partes de mi monografía Interculturalidad y Derecho del Trabajo. Una aproximación a la
gestión no discriminatoria de la diversidad cultural en la empresa, Tirant lo Blanch, Valencia 2009.

117
Organizadora : Edelamare Melo

de pensar, de sentir y de actuar, ayudando en su devenir a su transmisión,


conservación y transformación3.
La cultura es considerada como el conjunto de los rasgos distintivos
espirituales y materiales, intelectuales y afectivos que caracterizan a una
sociedad o a un grupo social y que abarca, además de las artes y las letras,
los modos de vida, las maneras de vivir juntos, los sistemas de valores, las
tradiciones y las creencias4. Son estos elementos los que perfilan la identidad
cultural, dando forma a la personalidad humana, cuya consideración y libre
ejercicio están directamente vinculados con el respeto a la dignidad, razón por la
que el pluralismo se considera fundamento del orden político y de la paz social.
La diversidad cultural se refiere a la multiplicidad de formas en que se
expresan las culturas de los grupos y sociedades (artículo 4 Convención UNESCO
2005)5, manifestándose por la pluralidad del lenguaje, de las creencias religiosas,
de las prácticas del manejo de la tierra, en el arte, en la música, en la estructura
social, en la selección de los cultivos, en la dieta y en todo número concebible de
otros atributos de la sociedad humana6. “La cultura adquiere formas diversas a
través del tiempo y del espacio. Esta diversidad se manifiesta en la originalidad
y la pluralidad de las identidades que caracterizan los grupos y las sociedades
que componen la Humanidad. Fuente de intercambios, de innovación y de
creatividad, la diversidad cultural es, para el género humano, tan necesaria como
la diversidad biológica para los organismos vivos. En este sentido, constituye
el patrimonio común de la humanidad y debe ser reconocida y consolidada en
beneficio de las generaciones presentes y futuras”7.
En esta línea, puede afirmarse que las diferencias culturales vienen
determinadas “por el modo de concebir el sentido de la vida o la muerte,
de la felicidad, de la justicia y la organización social, nacidas de distintas
cosmovisiones que justifican la existencia de diferentes normas y valores”8.
La diversidad cultural es “una manifestación típica de las sociedades
multiétnicas, en las que suelen plantearse los problemas relacionados con la
multiculturalidad, considerando que estos problemas no proceden tanto del

3
RODRIGO ALSINA, M., “La comunicación intercultural”, Estudios interculturales, textos básicos para el forum
2004, http://www.blues.uab.es/incom/2004/cas/rodcas1.html
4
Conferencia Mundial sobre las Políticas Culturales (MONDIACULT, México, 1982), de la Comisión Mundial de
Cultura y Desarrollo (Nuestra Diversidad Creativa, 1995) y de la Conferencia Intergubernamental sobre Políticas
Culturales para el Desarrollo (Estocolmo, 1998).
5
Artículo 4 de la Convención sobre la protección y promoción de la diversidad de las expresiones culturales de la UNES-
CO, aprobado en París el 20 de octubre de 2005 y ratificado por España el 25 de octubre de 2006 (BOE 12 febrero2007).
6
http://www.prodiversitas.bioetica.org/cultural.htm
7
Artículo 1º (“La diversidad cultural, Patrimonio Mundial de la Humanidad”) de la Declaración Universal de la
UNESCO sobre la diversidad cultural de 2002.
8
CORTINA, A., Ciudadanos del Mundo. Hacia una teoría de la ciudadanía, Alianza Editorial 2005, p. 188.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

hecho de que haya diversas culturas, sino del hecho de que personas con
distintos bagajes culturales hayan de convivir en un mismo espacio social,
sea una comunidad política, sea una comunidad humana real en su conjunto,
donde la mayoría de las veces una de las culturas es la dominante”9.
La idea es crear un marco jurídico que permita el libre desarrollo de la
personalidad humana en todas las dimensiones sociales, incluida la laboral,
tutelando la condición humana en el doble sentido de no interferir en su
ámbito interior y de proporcionarle las condiciones que necesita para vivir
con dignidad. “La integración es, ante todo, igualdad de derechos (que no
uniformidad) y, por tanto, no sólo no discriminación, sino igualdad”10.
3. Dignidad humana, identidad cultural y libre desarrollo de la
personalidad
La diversidad cultural proporciona a las personas su identidad personal,
diferenciándola de otras personas o grupos al incorporarse de manera
indisoluble a su forma de ser y de pensar: el respeto a la diferencias está, por
esta causa, en íntima relación con la dignidad humana, lo que tiene suficiente
valor en sí mismo11 como para alejarlo del tráfico mercantil y no permitir su
medición en términos económicos.
Si los derechos humanos “son el núcleo básico, ineludible e irrenunciable
del status jurídico del individuo”12, y “la proyección positiva, inmediata y vital
de la dignidad de las personas”13, su satisfacción no debería alcanzarse a través
de un quid pro quo mercantil que implique la renuncia de aquellos elementos y
circunstancias que nos definen como personas: el origen racial o étnico, social
o nacional, las convicciones religiosas o ideológicas, el género, la lengua o las
manifestaciones de sus tradiciones, incluida la apariencia física. Expresado en
otras palabras, “para obtener el reconocimiento como seres humanos, iguales
en dignidad y derechos, no se nos puede exigir que dejemos de ser humanos”14.
El respeto a la diversidad cultural, el derecho a ser diferente, es “el
derecho de todas las personas a un trato que no contradiga su condición de ser
igual y libre, capaz de determinar su conducta en relación consigo mismo y su
9
En este sentido, CORTINA, A., ob .cit. (2005-a), pp. 178-179.
10
DE LUCAS, J., ob. cit. (2005), p. 256.
11
Este enlace con el sentido kantiano del fin en sí mismo lo plantea CORTINA, A., Conferencia en el Congreso
Nacional del voluntariado celebrado en Granada el 2 de diciembre de 2005, ejemplar fotocopiado.
12
Respecto de los derechos fundamentales, GARCÍA-PERROTE, I. y MERCADER UGUINA, J.R., “Conflicto y
ponderación de los derechos fundamentales de contenido laboral”, en El modelo social de la Constitución Española
de 1978 (SEMPERE NAVARRO, A., Director), MTAS, Madrid 2003, p. 251-252.
13
GARCÍA-PERROTE, I. y MERCADER UGUINA, J., ob. cit. (2003), p. 251.
14
DE LUCAS, J., “La herida original de las políticas de inmigración. A propósito del lugar de los derechos humanos
en las políticas de inmigración”, ISEGORÍA 26/2002, p. 70.

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Organizadora : Edelamare Melo

entorno, esto es, la capacidad de autodeterminación consciente y responsable


de la propia vida”15 y el libre desarrollo de su personalidad. La dignidad ha
de permanecer inalterada cualquiera que sea la situación en que la persona se
encuentre, constituyendo, en consecuencia, un mínimum invulnerable que todo
estatuto jurídico debe asegurar, de modo que las limitaciones que se impongan
en el disfrute de derechos individuales no conlleven un menosprecio para la
estima que, en cuanto ser humano, merece la persona”16. Lo que implica “una
explícita interdicción de que determinadas diferencias sean la razón que hayan
situado históricamente, tanto por la acción de los poderes públicos como de la
práctica social, a sectores de la población en posiciones, no sólo desventajosas,
sino contrarias a la dignidad de la persona que reconoce el artículo 10.1 CE17.
La dignidad, “como rango o categoría de la persona del que se proyecta el
derecho al honor no admite discriminaciones por razón de nacimiento, origen
racial o étnico, opiniones o creencias, considerando que el odio o el desprecio
a todo un pueblo o a una etnia es una perversión jurídica incompatible con
el respeto a la dignidad humana, rechazo predicable sobre las conductas que,
proyectadas sobre un solo individuo, encuentran su motivación en la pertenencia
de este a un grupo racial, étnico, religioso o cultural determinado” 18.
4. Igualdad en la diversidad
Desde luego que para lograr la dignidad personal es necesario un ejercicio
pleno de los derechos económicos, sociales y culturales19. Ahora bien: para que
coadyuven a conseguir un estatus personal que permita disfrutar de los derechos
humanos en condiciones de justicia, igualdad y libertad, es imprescindible
superar la clásica concepción jurídica abstracta de estos derechos.
Esto significa que su ejercicio deberá tener en cuenta la posición social
y la especificidad cultural de cada persona, posición sólo compatible con una
comprensión de la sociedad en la que no quepan los etnocentrismos y donde
no existan jerarquías culturales que limiten el derecho a ser diferente. Desde
esta perspectiva, “su concepción ideológica debe incorporar las complejas
adaptaciones que la diversidad exige a la organización moderna de la sociedad”20.
15
STC 53/1985, de 11 de abril, FJ 8.
16
STC 192/2003, de 27 de octubre de 2003, FJ 7º, citando las SSTC 120/1990, de 27 de junio, FJ 4ª y 57/1994, de
28 de febrero, FJ 3.
17
Tal y como afirma la STC 3/2007, de 15 de enero, FJ 2, haciendo también referencia a las SSTC 128/1987, de 16
de julio, FJ 5; 166/1988, de 26 de septiembre, FJ 2; 145/1991, de 1 de julio, FJ 2; 17/2003, de 30 de enero, FJ 3.
18
STC 13/2001, de 29 de abril FJ 7.
19
Un instrumento interesante, aun cuando falta por ver cuál va a ser su eficacia, es el Protocolo Facultativo del Pacto
Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales de 1966, Resolución de la Subcomisión de Derechos
Humanos de la ONU 2001/6 de 15 de agosto de 2001, adoptado por la Asamblea General del 10 de diciembre de 2008.
20
BARBERÁ, “El desafío de la igualdad”, Temas Laborales 59/2001, p. 259.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Como se ha destacado, la igualdad no es identidad ni homogeneidad,


puesto que no prescinde de elementos diferenciadores21. La diversidad, por su
parte, no se contrapone a la igualdad, sino a la identidad homogénea: significa
que, de hecho, las personas se encuentran en situaciones y condiciones
diferentes y que la identidad de toda persona viene dada por sus diferencias.
Por eso, las políticas públicas democráticas no pueden caer en “el fobotipo de
mostrar las diferencias culturales como un peligro para la universalidad de los derechos
humanos”22 y “la presentación de cualquier diferencia cultural como patología”23. Ese
camino sólo conduce a la uniformidad, mediante la llamada lógica de la identidad,
que se limita a reducir las cosas a unidad, buscando una fórmula que sólo admite a las
personas si están dentro de una categoría, negando o reprimiendo la diferencia24. Este
modelo, llamado de asimilación cultural, está regido por conductas autoritarias que
imponen la cultura propia sobre las demás y eliminan la diferencia25, lo que significa
excluir el pluralismo y desconsiderarlo como valor superior del ordenamiento jurídico.
La cultura construye la identidad personal, y tiene la suficiente entidad
como para ser considerado “un derecho humano universal”26. Se incorpora
así a la esfera jurídica personal (individual y colectiva), bajo la comprensión
de que su ausencia tiene consecuencias dramáticas: “lo peor que se le puede
quitar a una persona es su autoestima, excluyéndole del ámbito económico,
del ámbito político y, desde luego, del ámbito cultural”27.
Una “identidad cultural infravalorada o no reconocida lesiona al
individuo, en tanto que su identidad se forja en un contexto, en una relación
dialéctica con una lengua y una cultura y eso forma parte de las fuentes de su
yo”28. Esta es la razón que hace incompatible la asimilación con el pluralismo.
El tratamiento de la diferencia, para ser respetuoso con los derechos humanos,
debe regirse por el principio de igual dignidad y respeto de todas las culturas29.
“Se trata de aceptar la paradoja de que somos iguales y diferentes”30. Incluir

21
AÑÓN ROIG, M.J., Igualdad, diferencias y desigualdades, México 2001, pp. 23-24.
22
DE LUCAS, J., ob. cit. (2002), p. 76.
23
AÑÓN ROIG, M.J., “La multiculturalidad posible: la mirada del Derecho”, Cuadernos Electrónicos de Filosofía
Del Derecho 8/2003, www.uv.es/CEFD/Index_8.htm, p. 21.
24
“En el discurso occidental estas dicotomías se estructuran en torno a la dicotomía buena/mala, pura/impura. La pri-
mera parte de la dicotomía se eleva sobre la segunda porque designa lo unificado, idéntico a sí mismo, mientras que
la segunda parte se ubica fuera de lo unificado como lo caótico, sin forma, en transformación, que siempre amenaza
con traspasar el borde y romper la unidad de lo bueno”, YOUNG, ob. cit. (2000), pp. 168-169.
25
ELÓSEGUI ITXASO, M., “Asimilacionismo, multiculturalismo, interculturalismo”, Claves de la razón práctica
74/1997, p. 24 ss.
26
ELÓSEGUI ITXASO, M., ob. cit., p. 31.
27
CORTINA, A., ob. cit. (2005-b).
28
AÑÓN ROIG, M.J., ob. cit. (2003), p. 4.
29
Artículo 2.3 Convención UNESCO 2005.
30
RODRÍGUEZ ALSINA, M., ob. cit. (1999), p. 60.

121
Organizadora : Edelamare Melo

comienza por respetar las creencias y costumbres de cada persona renunciando


a implantar las propias, “porque integrar es incompatible con convertir”31.
Una sociedad puede ser multicultural, en su nivel más sencillo de tolerancia;
o superar esa fase y ser intercultural, potenciando no sólo la comprensión
mutua, sino también el diálogo y el intercambio entre culturas (sobre estos
conceptos, infra 1.3.1). Pero una sociedad asimilacionista es democráticamente
insostenible, porque atenta al corazón mismo de los derechos humanos, al
pretender “vaciar toda identidad diferente, en aras del abstracto reconocimiento
de quien solo es persona si se asemeja a ese molde, pretendidamente vacío
pero hecho a nuestra medida que es el canon occidental”32. La materialización
jurídica de esta idea fuerza es fundamental para impedir que puedan establecerse
privilegios entre culturas, basados en un mayor rango o jerarquía de unas sobre
otras: todas son igualmente dignas y merecedoras de respeto33, teniendo en
cuenta que la única forma de comprenderlas correctamente es interpretar sus
manifestaciones de acuerdo con sus propios criterios culturales34.
La sociedad ha querido poner límites al criterio de las mayorías: los
derechos humanos, cuyo ejercicio, al menos el ejercicio de su contenido
esencial, debe ser siempre objeto de respeto y protección. En este sentido,
deben tenerse en cuenta los derechos de las minorías, en su condición
abstracta o universal de persona, y en su condición específica de persona con
una identidad diferente a la del grupo hegemónico: una sociedad democrática
se compromete en la defensa de las minorías a ser diferentes, no forzándolas
a ajustarse a la “normalidad artificial construida por la mayoría”35.
Los derechos humanos son un “mínimo ético imprescindible y común a
todos los seres humanos, en virtud de su dignidad humana, lo que les convierte
en patrimonio necesario de toda la humanidad”36. Esta es la razón por la que no
deben ser objeto de intercambio, sino actuar como “inmunidades”37 o límites
al ejercicio del poder38, sea este público o privado. Su privilegiada posición de
31
DE LA VILLA GIL, L.E., “Inmigración y Gobierno”, en Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social. Cincuenta
estudios del profesor Luis Enrique de la Villa Gil. Homenaje a sus 50 años de dedicación universitaria, Ediciones
CEF, Madrid 2006, p. 1751, publicado originalmente en AAVV Derechos y libertades de los extranjeros en España.
XII Congreso Nacional de Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social, Gobierno de Cantabria, Santander 2003,
Tomo I, pp. 255-281.
32
DE LUCAS, J., ob. cit. (2002), p. 69.
33
Algunas reflexiones sobre la igual dignidad de todas las culturas pueden verse en CORTINA, A., ob. cit. (2005-a), pp. 206 ss.
34
Así se pronuncia el artículo 9 del Convenio 169 sobre pueblos indígenas y tribales de la OIT (1989).
35
GARRIDO PÉREZ, E., “El tratamiento comunitario de la discapacidad: desde su consideración como una anoma-
lía social a la noción del derecho a la igualdad de oportunidades”, Temas Laborales 59/2001, pp. 173.
36
LÓPEZ ÁLVAREZ, A., “Derechos fundamentales e inmigración”, La inmigración en la Comunidad Valenciana:
un estudio multidisciplinar, Tirant lo Blanch, Valencia 2006, pp. 12-13.
37
FERRAJOLI, L., Derecho y razón, Trotta, Madrid 1989, p. 911.
38
Son la oposición de la verdad al poder, utilizando las palabras de FOUCAULT, La verdad y las formas jurídicas,

122
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

ser un “interés público y primario”39 les permite fijar “principios de justicia


material destinados a informar todo el ordenamiento jurídico”40. De esta forma,
su contenido esencial proporciona un escudo que debería blindarlos ante la
negociación (contractual, parlamentaria o de otra índole), en su consideración
básica para la realización de todo plan de vida, “sin que pueda quedar librado
este campo de exclusión al consenso fáctico de las partes negociadoras”41.
Desde esta perspectiva, tutelar su ejercicio es una obligación de orden público,
ya sea “a través de derechos positivos que generan expectativas de derechos, ya sea
como inmunidades frente al poder, es decir, como derechos negativos que obligan al
legislador y a la administración a no privar a las personas, de manera arbitraria, de
recursos básicos que hayan obtenido o tengan un legítimo interés en obtener”42.
5. Diferencia y desigualdad.
Ahora bien, teniendo en cuenta la Declaración Universal de los Derechos
Humanos de 1948, hablar de justicia y de dignidad significa que toda persona
tiene derecho a disponer, al menos, de un mínimo vital para vivir dignamente,
incluyendo el derecho a participar de la cultura de su sociedad, no importa
dónde se encuentre.
En este sentido, es importante tomar en consideración la distinción
entre diferencia y desigualdad. “Las diferencias -sean naturales o culturales-
son los rasgos específicos que distinguen y al mismo tiempo individualizan
a las personas y que, en cuanto tales, deben ser tuteladas por los derechos
fundamentales. Mientras que las desigualdades –sean económicas o sociales-
son en cambio las disparidades entre sujetos producidas por la diversidad
de sus derechos patrimoniales, así como sus posiciones de poder y sujeción.
Las primeras concurren, en su conjunto, a formar las diversas y concretas
identidades de cada persona; las segundas, a formar las diversas esferas
jurídicas. Unas son tuteladas y valoradas, frente a discriminaciones o
privilegios, por el principio de igualdad formal en los derechos fundamentales
de libertad; las otras son, si no removidas, al menos reducidas o compensadas
por aquellos niveles mínimos de igualdad sustancial que están asegurados

GEDISA, Barcelona 1980, p. 64.


39
RODRÍGUEZ PIÑERO, M., “Constitución, derechos fundamentales y contrato de trabajo”, Relaciones Laborales
1-2/1996, p. 13.
40
ZAGREBELSKY, G., ob. cit. (2002), p. 93.
41
GARZÓN VALDÉS, E., “El consenso democrático: fundamento y límites del papel de las minorías”, Cuadernos
Electrónicos de Filosofía del Derecho Número 0/1998, http://www.uv.es/CEFD/Index_0.html
42
PISARELLO, G., “Derechos sociales, democracia e inmigración en el constitucionalismo español: del origi-
nalismo a una interpretación sistemática y evolutiva”, en La universalidad de los derechos sociales: el reto de la
inmigración, Tirant lo Blanch/PUV, Valencia 2004, p. 55.

123
Organizadora : Edelamare Melo

por la satisfacción de los derechos fundamentales sociales. En ambos casos


la igualdad está conectada con los derechos fundamentales: a los de libertad
en cuanto derechos al igual respeto de todas las diferencias; a los sociales en
cuanto derechos a la reducción de las desigualdades”43.
Que la diferencia no se convierta en desigualdad está, en la mayoría de las
ocasiones, conectada con la satisfacción simultánea de ambos tipos de derechos.
En realidad, la diferencia no sería un problema si no fuera por la consideración
social que de ella se tiene, que es lo que puede convertirla en un elemento de
riqueza, convivencia y cohesión social o, en el otro extremo, de trato peyorativo,
desigual, discriminatorio, de sometimiento y base de relaciones de dominación.
Puede así afirmarse que “la diferencia tiene que ver con la identidad de las
personas y las desigualdades con la disparidad de condiciones sociales”44.
Hay en esta afirmación una relación implícita entre la desigualdad de
trato que provoca la diferencia y la posición económica que el sujeto o colectivo
disfruta en la sociedad en la que se encuentra. Son las consecuencias de las
relaciones sociales de dominio y opresión entre grupos las que “dan lugar al
modelo, según el cual lo característico y/o específico del grupo dominante es la
norma y la diferencia estaría representada por los rasgos del grupo dominado;
la distribución se ha realizado a partir de una medida o regla considerada injusta
y de ahí surge una desigualdad y puede dar lugar a una discriminación”45.
En esta mercantilización de los derechos humanos, el ejercicio de los
derechos en virtud de la capacidad económica de las personas es, quizás, una
de las principales razones de la “crisis de la democracia representativa, del
alejamiento constante entre el pueblo y sus representantes, de la deslegitimación
de un sistema que se llama pluralista pero que siempre desconoció el supuesto
político que lo caracteriza desde el punto de vista del poder: la presencia y la
participación igual, real y efectiva, en el mismo marco institucional, de todos
los grupos sociales y de sus reales posibilidades de influir en las decisiones
políticas fundamentales, con independencia del grado de riqueza que posean”46.
6. La interculturalidad como proceso de inclusión social
Los derechos humanos han pasado de ser derechos de exclusiva
reclamación ante los poderes públicos, a ser derechos también aplicables ante la
esfera privada, lo que tiene una virtualidad mayor, si cabe, en el derecho a no ser

43
FERRAJOLI, L., en Derechos y garantías: la ley del más débil, Trotta, Madrid 2004, p. 82.
44
AÑÓN ROIG, M.J., ob. cit. (2001-b), p. 18.
45
AÑÓN ROIG, M.J., ob. cit. (2001-b), p.26.
46
DAMIANI BUSTILLOS, L.F., “De la subversión social a la subversión política”, Cuadernos para el debate agosto
1991, Ediciones Primera Línea, Caracas, pp. 45-46.

124
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

discriminado47. No obstante este tránsito tan significativo, para que los derechos
humanos sean justiciables48 y se puedan disfrutar materialmente, es necesario, de
un lado, que los poderes públicos faciliten el ejercicio progresivo, irrenunciable,
indivisible e interdependiente de todos ellos, con independencia de cuál sea su
naturaleza; y, de otro, que lo hagan alentando la construcción de unas relaciones
sociales y, por supuesto, de un ordenamiento jurídico (también jurídico-laboral),
en el que la identidad cultural forme parte del derecho a la igualdad49.
Considerando que el primero de los derechos humanos es el derecho a tener
derechos, sólo un disfrute integral de todos ellos permitirá el reconocimiento de los
seres humanos como sujetos, pero no en el sentido de una universalidad uniforme,
“sino precisamente desde su carácter insustituible, desde su diferencia, su otreidad”.
Al amparo de esta idea, me parece que conviene superar el modelo
que propone un tratamiento jurídico neutro que ignora la diversidad, en un
vivir y dejar vivir, pero cada una en su cultura, que normalmente ha estado
vinculado con la creación de ghettos50. “Una sociedad multicultural moderna
requiere adoptar, por parte de todos los grupos, pautas y referencias comunes
que faciliten la convivencia política y hagan posible el diálogo intercultural”51,
considerando al otro como alter ego, y teniendo en cuenta que para comprender
sus intereses es preciso comprender su cultura52. La apuesta es conseguir que
entre los grupos sociales con distintos códigos culturales53 y sus conjuntos
de valores, de creencias y de comportamientos54, exista un proceso abierto
de diálogo que admita la posibilidad real de intercambio55, fomentando una
interacción cultural basada en el derecho a la inclusión56.
La diversidad cultural es hoy una realidad que requiere construir
una convivencia para la integración, donde en el desarrollo de la identidad
ciudadana, promover y facilitar el diálogo intercultural sean prioridades
declaradas que contribuyan a la cohesión social y a la aceptación de identidades
culturales y de creencias diferentes dentro de la ciudadanía europea57.

47
VALDÉS DALRÉ, F., “La prohibición de discriminación: una cualificada expresión del moderno ius gentium”,
Relaciones Laborales 5/2008.
48
Término utilizado por FERRAJOLI, L., Los fundamentos de los derechos fundamentales, Trotta, Madrid 2001.
49
AÑÓN ROIG, M.J., ob. cit. (2003), CEFD, p. 7.
50
Idea expresada por CORTINA, A., Conferencia “Tolerancia y solidaridad” Universitat de València, 29 de marzo de 2007.
51
ÁLVAREZ DE FORRONSOLO, I., ob. cit., http://www.uv.es/CEFD/Index_0.html
52
CORTINA, A. ob. cit. (2005-a), p. 184.
53
Utilizando la expresión de AÑÓN ROIG, M.J., ob. cit. (2003), p. 2.
54
Vid. CEAR-Euskadi, Inmigración y empresa. Dodecálogo de recomendaciones para un tándem económicamente
eficiente y socialmente responsable, CEAR (2006), http://www.cear.es/DodecalogodeRecomendacio.pdf
55
ELÓSEGUI ITXASO, M., ob. cit., p. 25.
56
JAHANBEGLOO, R., “En defensa de la diversidad”, Diario El País 29 de octubre de 2006, Edición Digital.
57
Exposición de Motivos del Real Decreto 367/2007, de 16 de marzo, por el que se crea y regula la Comisión Na-
cional para el Fomento y Promoción del Diálogo Intercultural (BOE 24 marzo 2007).

125
Organizadora : Edelamare Melo

El diálogo intercultural, entendido como “presencia e interacción


equitativa de diversas culturas”58, es todavía un proyecto más que una realidad
de hecho59, un esfuerzo que es necesario materializar en unas “reglas jurídicas
que utilicen de manera selectiva el derecho como vía de diferenciación al
objeto de conseguir una igualación real y efectiva”60.
Ahora bien, la configuración jurídica de la diversidad va a depender de
la concepción ideológica que predomine61, lo que determinará la elección del
modelo jurídico encargado de regular la nueva sociedad plural62.
El diseño de un ordenamiento jurídico intercultural no puede ser ciego
a las diferencias, porque entonces la igualdad sirve para ocultar una realidad
discriminatoria63. En este sentido, debe crear una esfera de tutela que no sólo
garantice el respeto a la dimensión interna de la identidad cultural, sino que
facilite (incluso que fomente) el libre ejercicio de sus manifestaciones externas.
El Derecho tiene que incentivar la convivencia, reflejando las
necesidades de la nueva sociedad y colaborando a construir unas relaciones
más humanas. Valorar jurídicamente las diferencias, en el doble plano
descrito, implica además rechazar la doctrina que clasifica los derechos
humanos por generaciones64. A mi juicio, y así parece deducirse de su original
manifestación en la Declaración Universal de 1948, todos los derechos
humanos tienen idéntico valor, alcance y reconocimiento, porque su conexión
con la dignidad personal y el libre desarrollo de la personalidad es un valor
espiritual y moral inherente a la persona, cuyo respeto goza del mayor nivel de
protección65. Proteger el derecho al voto sin permitir el ejercicio del derecho a
la alimentación, a la salud, a la vivienda, a la educación, a un medio ambiente
sano o a la identidad cultural es un espejismo, una ficción democrática que se
manifiesta en el distinto rango que se otorga a cada uno de los derechos que
en modo alguno contribuye a hacer efectivo el derecho a la igualdad.

58
Artículo 4.8 Convención UNESCO 2005.
59
FORNET-BETANCOURT, R., “Supuestos filosóficos del diálogo intercultural”, http://www.ensayistas.org/criti-
ca/teoria/fornet
60
VALDÉS DALRÉ, F., ob. cit. (2008), p. 3.
61
En sentido similar, GARCÍA-PERROTE ESCARTÍN, I. y MERCADER UGUINA, J.R., ob. cit. (2003), p. 255.
62
Ver FERRAJOLI, L., ob. cit. (2004), pp. 73 y ss..
63
SEMPRINI, A., Le multiculturalisme, Presses Universitaires de France, París 1997, p. 66.
64
Una interesante y relativamente reciente reflexión crítica sobre esta doctrina puede verse en HERREÑO HER-
NÁNDEZ, A.L., ¿Todo o nada? Principio de integralidad y derechos sociales, ILSA, Bogotá 2008, pp. 25 ss.
65
Vid. STC 192/2003 de 27 de octubre.

126
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

AS BARREIRAS DE ACESSO AO UNIVERSO DO TRABALHO


PARA A MULHER NEGRA E AFRO-RELIGIOSA. De que
mulher negra falamos? Qual a sua história?

Edelamare Melo1

De que mulher negra falamos? Qual sua história e sua contribuição para
a identidade feminina brasileira? Estas são perguntas que devemos sempre
nos fazer quando falamos da mulher negra e afro-religiosa no universo do
trabalho. Não deveria, mas, não raro, a escolha de credo/ crença/ orientação
religiosa tem sido levada em conta pelas empresas na hora da contratação.
Daí a importância de nos debruçarmos sobre o tema das barreiras de acesso
da mulher negra e afro-religiosa no universo do trabalho porque é fato, a vio-
lência do preconceito, do racismo, da intolerância e da discriminação racial
e religiosa é sentida como algo único e solidário por quem a sofre na medida
em que afeta, de forma contundente, a sua dignidade.
Trata-se de um preconceito velado, que restringe o acesso ao mercado
de trabalho de afro-religiosos, em especial as mulheres negras, porque sobre
elas pesa tríplice discriminação: gênero, étnico-racial e orientação religiosa,
que se agrava quando agregamos a estes fatores outros fatores que também
trazem consigo as marcas do preconceito, do racismo, da intolerância e da
discriminação: orientação sexual ou identidade de gênero.
Apesar da existência de vedação constitucional e legal expressa para
tal prática, o fato é que, no país, 80% das pessoas de religiões de matriz afri-
cana, em sua significativa maioria mulheres, sofrem restrições no mercado de
trabalho, seguida das mulheres muçulmanas, com 70%2.
Refletindo sobre este quadro nos remetemos a Abdias Nascimento3, que
apresenta um iter histórico pós-abolicionista que persiste até os dias atuais, lem-
brando que, antes de 1950, no Brasil, a discriminação racial para acesso ao
emprego era uma prática corrente, sancionada pela lei consuetudinária, tanto as-

1
Doutora em Direito pela Universidad Pablo de Olavide (Sevilla, Espanha). Subprocuradora Geral do Trabalho.
Membro do Conselho Superior do Ministério Público do Trabalho. Coordenadora do Grupo de Trabalho Comunida-
des Tradicionais do Ministério Público do Trabalho.
2
Dados disponíveis em: https://extra.globo.com/emprego/intolerancia-religiosa-reduz-chances-no-mercado-de-tra-
balho-15876508.html. Acesso em 18.11.2018
3
NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um racismo mascarado. 3ª edição. São
Paul. Perspectivas, 2016, pp 62-63 p. 97

129
Organizadora : Edelamare Melo

sim que os anúncios de oferta de emprego continham uma explícita advertência:


“não se aceitam pessoas de cor”, situação que, pensava-se, seria revertida após
a promulgação, em 1951, da Lei Afonso Arinos4 - Lei no 1.390, de 3 de julho de
1951-que proibiu a discriminação racial no Brasil, constituindo-se no primeiro
diploma normativo brasileiro a incluir entre as contravenções penais a prática de
atos resultantes de preconceito de raça e cor da pele. Sobre este iter normativo
pertinentes ontem, como hoje, as observações de Abdias Nascimento, quanto aos
mecanismos de seleção no mercado de trabalho na sua relação com a nossa pseu-
do-democracia racial e as cicatrizes que se perpetuam como marcas indeléveis,
que só quem as sofre sabe o quem elas significam em suas vidas:
As feridas da discriminação racial se exibem ao mais superfi-
cial olhar sobre a realidade social do País. A ideologia oficial
ostensivamente apoia a discriminação econômica- para citar um
exemplo- por motivo de raça. Antes de 1950, a discriminação
em empregos era uma prática corrente, sancionada pela lei con-
suetudinária. Em geral, os anúncios procurando empregados se
publicavam com a explícita advertência: “não se aceitam pes-
soas de cor”. Mesmo após a lei Afonso Arinos, de 1951, proi-
bindo categoricamente a discriminação racial, tudo continuou
na mesma...Depois da lei, os anúncios se tornaram mais sofis-
ticados que antes: requerem agora “pessoas de boa aparência.
Basta substituir “boa aparência” por “branco” para se obter a
verdadeira significação do eufemismo. Com lei ou sem lei, a
discriminação contra o negro permanece: difusa, mas ativa”5.

É fato histórico inconteste que as negras e negros ao chegarem no Brasil


na condição de escravizados e escravizadas tiveram expropriadas, confisca-
das e negadas a sua condição humana, a sua família, sua dignidade, além de
terem que testemunhar as tentativas de negação da identidade do seu povo.
Foram mais de cinco milhões de seres humanos transportados por mais de
seis mil quilômetros em condições subumanas nos porões de navios negrei-
ros, chamados de tumbas porque nesta travessia muitos deixaram suas vidas
entre os anos de 1525 e 18516. A situação mais vexatória nesta época era a
da mulher negra que, neste transito negreiro, sofriam abusos sexuais seja por
seus pares, seja pelos membros do exército colonizador.

4
Lei Afonso Arinos, Lei 1390, promulgada por Getúlio Vargas em 3.7.1951. Batizada de Lei Afonso Arinos em
homenagem a seu autor, vice-líder da bancada da conservadora União Democrática Nacional (UDN) na Câmara.
Leia mais: https://acervo.oglobo.globo.com/fatos-historicos/criada-lei-afonso-arinos-primeira-norma-contra-racis-
mo-no-brasil-10477391#ixzz5Wa1MVF5m
5
NASCIMENTO, Abdias. Ob. Cit.
6
PRANDI, Reginaldo. Povo Negro. Revista USP. p. 64-83, dezembro/fevereiro: 1996

130
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Neste contexto, a história destas mulheres e de seus espaços de luta e


resistência para preservação da sua identidade de gênero, racial e religiosa se
confundem. Foi no candomblé7, nos terreiros e nos quilombos que estas lutas
foram travadas. Foi nesses espaços que os escravizados encontraram forças
para resistir à desumanidade da escravidão, na qual não poucos sucumbiram.
Foi por meio da resistência dessas mulheres africanas negras e escravizadas
que, por meio da religião, dentro das senzalas, foram desenvolvidas estraté-
gias de resistência e luta para preservação da cultura, história e religiosidade
do povo negro traficado de diversas regiões da África. Povo negro escraviza-
do que trouxe consigo elementos culturais e religiosos que ensejaram reações
e transformações nas estruturas sociais, culturais, étnicas, econômicas e polí-
ticas do país, conformando a nossa identidade nacional ao lado da influência
do colonizador europeu, mas ignorada porque se pretendeu varrer da nossa
história a “mancha negra”, a exemplo do que ocorreu com o processo de
branqueamento da nossa população por meio da abertura de nossas portas
apenas ao imigrante branco no período pós-“abolicionista”.
Como observa Neris8, citando Prandi e Bastide:
A capacidade de resistência do pouco que sobrou das culturas
das nações dependia da capacidade de absorção pela cultura
branca, a origem negra foi apagada ou disfarçada até meados

7
Candomblé é uma palavra derivada da língua bantu: ca [ka]=uso, costume, ndomb=negro, preto e lé=lugar, casa,
terreiro e/ou pequeno atabaque. A reunião dos três vocábulos resulta em “lugar de costume dos negros”, por extensão, lu-
gar de tradições negras, tradições entre as quais, destacam-se, no sentido atual as práticas religiosas que incluem a música
percussiva [A TARDE, 1980]. Outra interpretação informa que kandombele significa “adorar” [Ngunz’tala, 2006] [Fonte:
https://www.portalsaofrancisco.com.br/historia-geral/candomble]. O candomblé é uma religião anímica porque tem, por
base, a anima (alma) da Naturezao. Sendo de origem totêmica e familiar, é uma das religiões de matriz africana mais
praticadas, tendo mais de três milhões de seguidores em todo o mundo, principalmente no Brasil.[...] Os sacerdotes afri-
canos que vieram para o Brasil como escravos, juntamente com seus orixás/nkisis/voduns, sua cultura, e seus idiomas,
entre 1549 e 1888, tentaram dar continuidade à sua cultura e religiosidade em terras brasileiras. Foram os africanos que
implantaram suas religiões no Brasil, juntando várias em uma casa só para a sobrevivência das mesmas, e nisto consiste
o seu diferencial em relação às práticas religiosas em África onde cada nação cultuava uma determinada divindade.
Embora confinado originalmente à população de negros escravizados, inicialmente nas senzalas, quilombos e terreiros,
proibido pela igreja católica, e criminalizado mesmo por alguns governos, o candomblé prosperou nos quatro séculos,
e expandiu consideravelmente desde o fim da escravatura em 1888. Estabeleceu-se com seguidores de várias classes
sociais e dezenas de milhares de templos. Em levantamentos recentes, aproximadamente 3 milhões de brasileiros (1,5%
da população total) declararam o candomblé como sua religião. Na cidade de Salvador existem 2.230 terreiros regis-
trados na Federação Baiana de Cultos Afro-brasileiros e catalogados pelo Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA,
[Universidade Federal da Bahia. Mapeamento dos Terreiros de Candomblé de Salvador. Fonte: Wikpedia. Disponível
em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Candombl%C3%A9]. Por conta do histórico de perseguições e de discriminação, o
sincretismo entre a religiosidade africana e o catolicismo sempre foi um dos aspectos mais destacados do Candomblé, que
continuou a cultuar seus Orixás, resguardando-os sob a aparência de santos católicos. As religiões de matizes africanas
são ancoradas nos princípios da oralidade, temporalidade, senioridade, na ancestralidade, não necessitando de um texto
básico para defini-las.
8
NERIS, Júlia Simões. “Intolerância Religiosa nas relações de trabalho: proteção ao povo de Santo”. In: Revista
Eletrônica do Tribunal Regional do Trabalho da Bahia, Ano V, n. 9, Out. de 2017.

131
Organizadora : Edelamare Melo

do século XX. A religião era uma expressão de resistência que


simbolizava a reconstrução de elementos familiares e societá-
rios africanos que haviam sido roubados dos povos escravizados
e substituídos por padrões ibero-brasileiros (PRANDI, 1996),
os locais de culto se tornavam casas de acolhimento a doentes,
emancipados, prostitutas e outros sujeitos marginalizados pela
sociedade, vistos como seres sem alma. As senzalas, terreiros e
confrarias acabaram tendo um papel marcante na aplicação dos
conhecimentos médicos tradicionais, passados através das ge-
rações até chegarem ao Brasil, por meio da utilização de ervas,
orações, entre outros. Tornou-se assim um elo de união entre as
camadas sociais mais baixas que se sentiam protegidas e cuida-
das nesses ambientes de um modo que não poderiam na casa dos
seus senhores, onde havia a precarização da medicina ou mesmo
ausência dela para os menos abastados (BASTIDE, 1989).

Assim, à hora de tratarmos das barreiras de acesso da mulher negra e


afro-religiosa ao mundo do trabalho faz-se necessário identificar de que sujei-
to falamos e qual sua história.
Falamos da mulher negra e afro-religiosa que traz consigo os signos de
uma identidade herdada de suas ancestrais: mulheres negras africanas escra-
vizadas, que, com sabedoria, migravam para o mundo material as característi-
cas míticas das divindades femininas, que cultuavam e cuja sensualidade não
ameaçava a sua maternidade, tanto assim que, tendo a si negado o direito de
ser mãe de filhos de escravos, não sucumbiu. Ao contrário, fez desta imposi-
ção um signo de liberdade e de autonomia.
Falamos de mulheres que, sendo autônomas, sempre prescindiram da
presença masculina, seja no regime poligâmico no qual viviam em terras afri-
canas, seja como escravizadas porque, lá, no longínquo continente africano,
já eram livres do jugo masculino. Não obstante, a independência em relação
à figura masculina, estas mulheres não abandonavam seus companheiros à
sua própria sorte e com eles compartilhavam suas lutas, seu trabalho e sua
divindade. Deidades que representavam a tradição, mas, que, para ela, mu-
lher negra escravizada, seu tempo era o presente: o tempo do aprisionamento
da escravidão, mas, também, tempo de resistência e luta pela liberdade, pela
preservação de sua cultura e religiosidade, de sua identidade enfim.
Mulheres que sabiam fazer prevalecer seus desejos e proteger seus filhos
porque, com suave e estratégica naturalidade, se permitiam a dissimulação como
instrumento de luta e defesa. Estas mulheres, que, com insustentável leveza de ser
e estar, transitavam entre o mundo mítico e real como transitavam, com indepen-
dência e liberdade, entre as esferas pública e privada, na sua terra natal. Como es-

132
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

cravizadas conseguiram agregar aspectos africanos, europeus e indígenas na cons-


trução de uma identidade que tinha por marca o feminino na sociedade brasileira.
Falamos de uma mulher que, com maestria, conduzia sua vida e que
fez da sua cultura e religiosidade instrumentos de resistência e de conquista
de espaços para a defesa dos seus. Ontem, como hoje, esta é a mulher negra
e afro-religiosa.
É a partir desta realidade que examinamos a hipótese de preconceito, ra-
cismo, intolerância e discriminação no universo do trabalho vivenciada pelas
mulheres negras, segundo a sua auto- identificação étnico-racial e religiosa.
A motivação deste trabalho provem de nossa indignação quanto a si-
tuação da mulher negra e afro-religiosa, cuja história, cultura e religiosidade
são invisibilizadas e sua imagem é estigmatizada – como cantado e decantado
no imaginário popular- como mulheres submissas, incultas, supersticiosas, tra-
balhadoras e cuidadoras de crianças e de seus senhores/empregadores quando,
em verdade, sua história é outra: é a história de mulheres fortes, líderes e mães
que, com sua sabedoria ancestral, força e independência, permearam a imagem
feminina em períodos marcados por uma lógica preconceituosa, sexista e racista.
É importante salientar que, diversamente das sociedades ocidentais, na
qual cabia tradicionalmente à mulher o espaço doméstico, resguardado da vida
pública e voltado para a criação dos filhos e administração interna do lar, nas
sociedades africanas a mulher ocupava um espaço na divisão do trabalho que lhe
proporcionava independência, não obstante a prevalência do regime poligâmico.
No que se refere ao mundo do trabalho - na esfera pública ou privada-
dele também participava a mulher africana, que o ocupava como um espaço
privilegiado de sociabilidade. Como observam Josélia Ferreira dos Reis e
Rita de Cássia Santos Freitas9:
O mundo do trabalho na sociedade tradicional ioruba também não
era apartado das mulheres que, ocupando o espaço público com tan-
ta habilidade quanto o doméstico e, segundo, Bernardo, muitas ve-
zes lucravam com a produção de seu marido a ponto de “amealhar
fortunas consideráveis – o que as torna, muitas vezes, mais ricas
do que seus próprios maridos” (IDEM, p.34), posto que compra-
vam dele a produção, para revender na feira e o lucro resultante
desta venda ficava para a mulher. Desta forma, o espaço privilegia-
do da sociabilidade africana, era de domínio feminino. O mercado,
lugar de negócios, também era lugar para troca de bens materiais

9
REIS, Josélia Ferreira dos; e FREITAS, Rita de Cássia Santos. De Matriz Africana: O Papel das Mulheres Negras
na Construção da Identidade Feminina. Fazendo Gênero 9. Diásporas, Diversidades, Deslocamentos 23 a 26 de
agosto de 2010.

133
Organizadora : Edelamare Melo

e simbólicos (músicas, orações, danças, receitas para curar o cor-


po, receitas para aconchegar os corações); (AMARAL, R., 1998).
Bernardo concorda, para ela, a mulher é “mediadora, não só das
trocas de bens econômicos, como também das de bens simbólicos”.
Mas não se limitavam somente ao mercado e à casa. A política e a
administração pública também eram espaços por onde circulavam
mulheres competentes, exemplos desta ocupação foi a organização
dos reinos fon e nagô-ioruba, onde acumulavam a administração do
palácio real, postos de comando importantes além da fiscalização
do próprio Estado. (Silveira, 2000, p.88 apud BERNARDO). As so-
ciedades Ialodê e Gueledé eram respectivamente responsáveis pela
representação feminina nos espaços políticos e simbólicos. Enquan-
to a primeira representava os interesses das comerciantes, a segunda
se encarregava dos rituais de fecundidade e fertilidade.

Salientam as autoras citadas, que, na sociedade africana tradicional, a


existência de diferenças não equivalia, necessariamente, à presença de de-
sigualdades, da mesma forma que a relação entre gêneros não conduzia ao
“aprisionamento a um determinado espaço”. Para a mulher africana, desta-
cam, o trânsito entre o público e o privado era livre e se constituía na base de
sua identidade. Esta característica, pontuam, foi reconstruída no Brasil, ainda
que sob o pálio do regime de escravidão. Confira-se10:
No Brasil colonial as características tradicionais da sociedade
africana acabarão por influenciar e permitir o transito da mulher
negra nos espaços público/privado na realidade da diáspora, que
teve como duas características a criatividade e o sincretismo para
resistência e reorganização. Seja como ama de leite, ama seca ou
cozinheira, ela ocupará o espaço privado, não se abstendo, no
entanto, de transitar pelo público como vendedora de quitutes,
escrava de ganho, etc. Desta circulação livre, ainda, se beneficiam
os integrantes de diversas etnias que acabam por se organizar para
a compra da liberdade, movimento identificado principalmente
nos espaços urbanos, como citam Amaral e Bernardo.

As autoras ressaltam que, chama a atenção o fato de que, dentre as diversas


funções desempenhadas pela mulher negra no período colonial, o cuidado com
o outro sempre esteve presente, “seja na alimentação para as quituteiras, seja no
cuidado de crianças, no caso das amas, ou no cuidado espiritual e de saúde das
mães de santo e benzedeiras, ou seja, mantém-se ainda a troca material e simbó-
lica”, tal e como elas vivenciavam como pessoas livres na África.

10
Idem

134
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

O cuidado como atribuição feminina estará presente e não objetará


a liberdade feminina. A independência africana estará presente mes-
mo quando o mais cruel dos modos de vida persistir: a escravidão. É
da preservação - a duras penas - da sua cultura, que a mulher negra
permitirá a si e à sua religião o reconhecimento e o espaço público11.
Não é à toa que, no Brasil, o cargo de Ialodê12 ganhará uma ressig-
nificação como título religioso do candomblé para as mulheres de
grande importância. Seu papel foi extremamente importante para a
resistência: ‘(...)as ganhadeiras-escravas ou forras anônimas, à me-
dida que circulavam pela cidade, faziam circular também notícias,
informações, músicas, orações...recriando, no Brasil, o papel femi-
nino de mediadora de bens simbólicos; porém, mais do que isso,
articulando escravos e libertos da alienação promovida pelo sistema
escravagista’. (BERNARDO, 2003:p.39)

Ainda segundo o escólio de Josélia Ferreira dos Reis e Rita de Cássia


Santos Freitas13, a relativa independência destas mulheres negras escraviza-
das conduz a uma singular característica de formação dos grupos familiares:
a matrifocalidade, consequência do impedimento de formação de grupos co-
esos de escravos dado o temor dos senhores de rebeliões.
Assim, remetendo ao temor produzido ante a possibilidade da emer-
gência dos filhos de escravos como sujeitos de direitos, Bernardo14, citado
por Reis e Freitas15, observa que a lei do ventre livre “com o seu pecúlio,
nada mais fez do que acentuar uma forma alternativa de família, que tem suas
origens na diáspora e seus desdobramentos na escravidão e no pós-abolição”,
de modo que, se na África, ressalta, as mulheres viviam com seus respectivos
filhos em casas conjugadas à grande casa do esposo, num sistema poligâmico,
no Brasil rompeu-se a relação da mulher com o homem, permanecendo a mãe
com seus filhos, florescendo a matrifocalidade, cuja vivência sofre significa-
tiva diferenciação conforme se trate de mulheres negras e brancas. Para estas
a família matrifocal representaria uma vivência sofrida, enquanto que para
aquelas foi encarada com satisfação e autonomia.
Da conjugação da autonomia, satisfação e matrifocalidade, das quais
desfrutavam as mulheres negras escravizadas, surgiram importantes persona-
gens para a defesa da identidade feminina de matriz africana: as mães de santo,
que, juntamente com suas comunidades, emergirão no cenário nacional ga-

11
REIS, Josélia Ferreira; FREITAS, Rita de Cássia Santos. Ob.Cit.
12
Líder comunitária na sociedade tradicional ioruba
13
REIS, Josélia Ferreira; FREITAS, Rita de Cássia Santos. Ob.Cit.
14
BERNARDO, T. apud REIS, Josélia Ferreira; FREITAS, Rita de Cássia Santos. Ob.Cit.
15
Idem

135
Organizadora : Edelamare Melo

nhando notoriedade a partir do final do século XIX e no início do século XX,


pela premente necessidade de resistir e lutar contra a violência e pelo direito
de cultuar os deuses de seus antepassados. Para tanto sua maior arma era a con-
ciliação, o acolhimento e o cuidado com o outro, características muitas vezes
atribuídas ao feminino – e que não significam, necessariamente, passividade,
ressaltam Reis e Freitas. Nas palavras de Amaral16, citado pelas autoras:
Enfrentando violências extremas, as comunidades negras organiza-
das em torno das mães-de-santo (as famílias de santo) foram capazes
de resistir e de preservar seus valores. Estas mulheres souberam, ain-
da, abrir espaço na cultura que lhes negava o direito à diferença, sem
deixar de receber entre os seus quaisquer pessoas que a elas recorres-
sem em busca de conselhos e ajuda espiritual, não discriminando, por
sua vez, raça, cor, gênero, ideologia, religião ou classe social.

Neste passo convém destacar os traços distintivos específicos, àquela épo-


ca, entre o ser mulher branca e o ser mulher negra. Neste período, segundo a cul-
tura então vigente, as mulheres brancas se circunscreviam ao ambiente domésti-
co, sequer se lhes reconhendo a maternidade quando do anuncio do nascimento
de uma criança. Estas mulheres eram anônimas ou anuladas, salvo na condição
de consumidoras de produtos de baixo custo para tratar da sua saúde reprodutiva,
ou melhorar o seu aspecto (caso dos cosméticos). De outra parte, sua visibilidade
pública ocorria no caso do cometimento de infrações penais. Diversamente, a
mulher negra, via de regra mães de santo, eram retratadas como líderes religio-
sas que recebiam políticos e intelectuais em seus templos. Assim, a imagem da
mulher negra, líder religiosa, articulada a políticos e intelectuais, se contrapôs
àquela do homem negro, retratado como “feiticeiro” ou como criminoso, o que
não exclui relatos de prisões de negras por roubo, ou vítimas de agressões de
agentes dos aparelhos institucionais, destacam Reis e Freitas17.
Como observa Amaral18, citado por Reis e Freitas19, a religiosidade per-
meia a história das mulheres negras uma vez que “(...) a cultura afro-bra-
sileira foi sustentada, em grande parte, pela força feminina nos terreiros e
irmandades, de onde se espraiou pela sociedade, passando a constituir alguns
dos mais marcantes valores da cultura nacional”.
Portanto, do que se trata aqui, é de ressaltar a importância e a influência
da mulher de origem africana e afro-religiosa na construção de uma identidade

16
AMARAL, R. apud REIS, Josélia Ferreira; FREITAS, Rita de Cássia Santos. Ob.Cit
17
REIS, Josélia Ferreira; FREITAS, Rita de Cássia Santos. Ob.Cit.
18
AMARAL,R. apud REIS, Josélia Ferreira; FREITAS, Rita de Cássia Santos. Ob.Cit
19
REIS, Josélia Ferreira; FREITAS, Rita de Cássia Santos. De Matriz Africana: Ob.Cit

136
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

de gênero, étnico-racial e religiosa, e as formas como esta presença fortaleceu as


práticas religiosas e a sociabilidade de matriz africana na sociedade brasileira.
Esta situação sofreu radical transformação com o advento do processo de
industrialização e modernização da sociedade, ocorrido na Década de 30. Neste
período as mulheres brancas dos estratos médios e médio-alto se aliam à Igreja
Católica e ingressam no mercado de trabalho; e, no rastro das ideias feministas
que estavam em voga, lutam pelo sufrágio feminino. Inversamente, as mulheres
negras continuam levando e lavando roupas nas fontes ou vendendo seus doces,
salgados, frutas e flores pelas ruas e mercados. A década de 30 marca, assim, a
emergência do movimento feminista, e também, como destacam Reis e Freitas20,
[...] a reviravolta na sociabilidade e na expressão das mulheres
negras, posto que as mulheres brancas e de camadas sociais que
permitiam o acesso a educação e a melhores condições de vida
emergiam no cenário por via dos movimentos feministas, as mu-
lheres negras continuavam a ocupar os papéis tradicionais que
anteriormente proporcionavam uma brecha estratégica no mun-
do do trabalho e na sociabilidade. Não é difícil concluir que as
condições para ocupação no mundo do trabalho de lugares mais
qualificados se tornassem favoráveis para as mulheres brancas,
ainda que com as restrições conhecidas pelo recorte de gênero
que permeia os estudos sobre trabalho.

No Centenário da Abolição Abdias do Nascimento21 fez a seguinte ava-


liação crítica, que, cremos, ainda permanece atual, embora seja constrangedor
reconhecer a triste realidade que vivencia a população negra, em especial as
mulheres negras e afro-religiosas.
[...]como esquecer que a República, logo após a abolição, cassou
ao ex-escravo seu direito de votar, inscrevendo na Constituição
que só aos alfabetizados se concedia a prerrogativa desse direito
cívico? Como esquecer que, após nosso banimento do trabalho
livre e assalariado, o código penal de 1890 veio definir o delito
de vadiagem para aqueles que não tinham trabalho, como mais
uma forma de manter o negro à mercê do arbítrio e da violência
policiais? Ainda mais, definiram como crime a capoeira, a própria
expressão cultural africana. Reprimiram com toda a violência do
estado policial as religiões afro-brasileiras, cujos terreiros se vi-
ram duramente invadidos, os fiéis e os sacerdotes presos, pelo
crime de praticar sua fé religiosa. Temos vivido num estado de

20
REIS, Josélia Ferreira; FREITAS, Rita de Cássia Santos. Ob.Cit
21
NASCIMENTO, Abdias. 13 de maio: Dia de Denúncia contra o Racismo, Minas Gerais, n. 1.098, 7 maio 1988.
(Suplemento Literário).

137
Organizadora : Edelamare Melo

terror: desde 1890, o negro vem sendo o preso político mais igno-
rado desse País[...]

Passados tantos anos da chama “abolição” da escravidão, fato é que, os


jovens negros são as maiores vítimas de homicídios nos quais corpos negros
matam corpos negros, as mulheres negras são as maiores vítimas de feminicídio
– mais uma vez corpos negros destruindo corpos negros-; as mulheres negras
ocupam os postos de trabalho mais precarizados com percepção de salários in-
feriores ao homem ou mulher não negros, embora muitas vezes os superem
em nível de escolaridade e, as religiões de matriz africana, em um triste e
preocupante retrocesso histórico, estão sendo objeto de perseguição, inclusive
por estamentos do Estado, que, tem utilizado de forma arbitrária seu poder de
polícia, invadem os terreiros e apreendem objetos de culto, sem falar da ação
de criminosos que, em nome de um “Cristo”, que em nada e por nada reflete as
lições do verdadeiro Messias, perseguem os religiosos desalojando-os de seus
territórios de identidade com violência e grave ameaça: no caso a pena capital...
Dada a sua carga que traz consigo pedimos vênia para trazer uma re-
flexão de Sueli Carneiro22 sobre a utopia perseguida pela povo negro para
alcançar uma igualdade de direitos para além do gênero, raça, cor, etnia, ou
qualquer outro fator discriminatório fundados nas reminiscências da escravi-
dão, mas ainda atuais: a objetificação e demonialização de sua história, cultura
e religiosidade. Objetificação, porque aqui chegaram como um nada e, nada,
não possui direitos, não possui história, não possui cultura. Demonialização,
porque suas manifestações de cultura e religiosidade não se enquadravam no
modelo eurocêntrico da cristandade, a quem pertence a construção do mito do
satânico, do demoníaco a partir da figura do “anjo caído”. A afetação do negro
à figura do demônio também encontrou reforço no livro bíblico do Gênesis
que considera os negros descendentes de Cam, o filho de Noé amaldiçoado por
Deus. Neste caso, como ressalta Giralda Seyferth23 “a maldição bíblica é trans-
formada em maldição de cor da pele — e a possibilidade de branqueamento em
três gerações[...] redime a negra no fenótipo ariano do seu descendente!
Assim, a utopia desde sempre perseguida pela população negra segun-
do Sueli Carneiro24

22
CARNEIRO, Sueli. “Enegrecer o Feminismo: A Situação da Mulher Negra na América Latina a partir de uma
perspectiva de gênero”. Disponível em: http://latitudeslatinas.com/download/artigos/enegrecer-o-feminismo-a-situ-
acao-da-mulher-negra-na-america-latina-a-partir-de-uma-perspectiva-de-genero.pdf. Acesso em 10/11/2018
23
SEYFERTH,Giralda. A Invenção da Raça e o Poder Discricionário dos Estereótipos. Comunicação apresentada na
mesa redonda “Racismo e Identidade Social”, 45a Reunião Anual da SBPC, Universidade Federal de Pernambuco,
Recife, 11a 16-7-93. Anuário Antropológico/93 Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995, p. 185
24
CARNEIRO, Sueli. Ob.Cit.

138
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

[...]consiste em buscar um atalho entre uma negritude redutora


da dimensão humana e a universalidade ocidental hegemôni-
ca que anula a diversidade. Ser negro sem ser somente negro,
ser mulher sem ser somente mulher, ser mulher negra sem ser
somente mulher negra. Alcançar a igualdade de direitos é con-
verter-se em um ser humano pleno e cheio de possibilidades e
oportunidades para além de sua condição de raça e de gênero.
Esse é o sentido final dessa luta25.

Neste passo, e para compreender a realidade vivenciada pelas mulheres negras


e afro-religiosas faz-se necessário a abertura de um parágrafo para referir ao passado e
à realidade atual que elas vivenciam em razão de sua orientação religiosa.
Estes seres humanos, independente do seu gênero, aqui chegaram com
seus corpos negros escravizados e denegridos em sua condição humana e eram
obrigados à conversão pelo batismo à religião cristã, oportunidade na qual tam-
bém se lhes eram atribuídos nomes cristãos, com o que pretendia-se romper toda
a sua ligação com sua ancestralidade, cultura, história, e religiosidade, que não
convertia para a ideia de dois mundos: o céu e a terra, mas, de um único mundo,
coeso e harmônico criado e regido por um único Deus: o mundo da natureza.
Portanto, as religiões de matriz africana são monoteístas e, como as
demais que professam a esta crença, se assenta na idéia de um Deus único,
Olodumare. As religiões de matriz africana não acreditam na existência de
uma força maligna, que se opõe à uma força benigna, e que nega a ideia de
Deus e do sacrifício de seu único filho: Jesus. Não obstante, por ignorância
e desconhecimento, o senhor de escravos – como hoje os neopentecostais o
fazem - lhes incutia a ideia cristã de pecado a ser redimido. No caso dos se-
nhores escravocratas apelava-se pela redenção pelo trabalho forçado.
Neste aspecto, Abdias Nascimento26, na sua célebre obra “O Genocídio
do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado”, ressalta a impor-
tância do papel exercido pela Igreja Católica como o “principal ideólogo e
pedra angular para a instituição da escravidão em toda a sua brutalidade”.
Destaca o autor o papel desempenhado por seus missionários na colonização
da África que “não se satisfez com a conversão dos “infiéis”, mas prosseguiu,
efetivo e entusiástico, dando apoio até mesmo à crueldade, ao terror do de-
sumano tráfico negreiro”. À continuação cita uma pregação aos escravos do
padre jesuíta Antônio Vieira27, tido e havido como exemplo de piedade e de
caridade na Bahia de 1633:
25
Idem
26
NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio... pp 62-63.
27
VIEIRA, Antonio apud NASCIMENTO, Abdias, ob. Cit.p.62

139
Organizadora : Edelamare Melo

Escravos, estais sujeitos e obedientes em tudo a vossos senhores,


não só aos bons e modestos, senão também aos maus e injustos
[...] porque nesse estado em que Deus vos pôs, é a vossa vocação
semelhante à de seu Filho, o qual padeceu por nós, deixando-vos o
exemplo que vos haveis de imitar. [...] Deveis dar infinitas graças
a Deus por vos ter dado conhecimento de si, e por vos ter tirado de
vossas terras, onde vossos pais e vós vivíeis como gentios, e vos ter
trazido a esta, onde, instruídos na fé, como cristãos e vos salveis.

Em outro Sermão, também citado por Abdias, o Padre Antonio Vieira


verbera que “Um etíope que se lava nas águas do Zaire, fica limpo, mas não
fica branco: porém na do batismo, sim, uma coisa e outra”. Quanto a esta
observação Abdias observa que, segundo a oratória do Padre Antonio Vieira:
“[...] as águas do batismo cristão possuíam as diversas virtudes justificativas
do escravizamento do africano e, mais, ainda, tinha o poder mágico de erradi-
car a própria raça- um desraçado limpo e branco!”28
Observa Abdias Nascimento que se o desejo maior dos cristãos era a
salvação pela imitação de Cristo- caminho direto para o céu- o ramo protes-
tante teria atuado na mesma direção traduzindo-se em mera ideologia à servi-
ço do opressor. Neste passo o autor evoca as palavras proferidas àquela época
pelo Pastor inglês Morgan Goldwin29:
O Cristianismo estabeleceu a autoridade dos senhores sobre seus
servos e escravos em tão grande medida como a que os próprios
senhores poderiam havê-la prescrito[...]exigindo a mais estrita
fidelidade[...] exigindo que se os sirva com o coração puro como
se servissem a Deus e não aos homens [...] E está tão longe de
fomentar a resistência que não permite aos escravos a liberdade
de contradizer ou a de replicar de forma indevida a seus senho-
res. E lhes promete a recompensa futura no céu, pelos leais ser-
viços qu.e tenham prestado na terra.

Atualmente este processo de conversão e redenção, a partir da ideia de


pecado e de luta contra o demônio, é reeditado pela igrejas de denominação
neopentecostal – diríamos nós de forma mais perversa- , como se constata do
estudo realizado por Vagner Gonçalves da Silva30, professor do departamento
de antropologia da USP, que classifica estas ações segundo os seguintes crité-

28
Idem
29
GOLDWIN, Morgan apud NASCIMENTO, Abdias, ob.cit. p.63
30
SILVA, Vagner Gonçalves da. Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras: Significados do ataque aos símbolos
da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo. In: Mana vol.13 no.1 Rio de Janeiro Apr. 2007. Disponível
em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-93132007000100008&script=sci_arttext. Acesso em 16.11.2018

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

rios: 1. Ataques feitos no âmbito dos cultos das igrejas neopentecostais e em


seus meios de divulgação e proselitismo, que têm como ponto de partida uma
teologia assentada na idéia de que a causa de grande parte dos males deste mun-
do pode ser atribuída à presença do demônio, que geralmente é associado aos
deuses de outras denominações religiosas. Segundo esta visão cabe aos fiéis dar
prosseguimento à obra de combate a esses demônios iniciada por Jesus Cristo:
“Para isto se manifestou o Filho de Deus: para destruir as obras do diabo” (1
João 3:8).; 2. Agressões físicas in loco contra terreiros e seus membros, que,
insulados pela crença antes referida, invadem terreiros visando destruir altares,
quebrar imagens e “exorcizar” seus freqüentadores, o que geralmente termina
em agressões físicas; 3. Ataques às cerimônias religiosas afro-brasileiras rea-
lizadas em locais públicos ou aos símbolos destas religiões existentes em tais
espaços, quando os adeptos ficam mais expostos a esses ataques, que englobam
desde a simples distribuição aos presentes de panfletos com propaganda contra
esses cultos até a tentativa de interrupção forçada dos rituais, com uso de violên-
cia física, inclusive; 4. Ataques a outros símbolos da herança africana no Brasil
que tenham alguma relação com as religiões afro-brasileiras, são estigmatizados
e combatidos. Outra face da desqualificação desses símbolos é paradoxalmen-
te, a sua “incorporação” nas práticas evangélicas, porém dissociando-os de sua
relação com as religiões afro-brasileiras. Neste contexto, como observa o autor,
surge a capoeira de Cristo, evangélica ou gospel, em cujas letras não há refe-
rências aos orixás ou aos santos católicos; 5. Ataques decorrentes das alianças
entre igrejas e políticos evangélicos com a crescente eleição de candidatos
evangélicos ou de aliados dessas igrejas. Neste caso, a batalha contra outras
denominações religiosas se reflete ou se ampara no campo da representação po-
lítica, de modo que, políticos evangélicos, aproveitando-se do poder decorrente
desta investidura, articulam ações antagônicas ao desenvolvimento das religiões
afro-brasileiras; e, finalmente, 6. As reações públicas (políticas e judiciais) dos
adeptos das religiões afro-brasileiras, que ainda estão muito longe de represen-
tar um movimento articulado que faça frente à organização dos evangélicos
neopentecostais, que cada vez mais se empenham em ocupar espaços estraté-
gicos nos meios de comunicação e nos poderes Legislativo e Executivo, mas,
também, no poder Judiciário, no Ministério Público e na Defensoria Pública.
Ainda é Vagner Gonçalves da Silva31 quem destaca como principal ca-
racterística do neopentecostalismo, derivada da sua crença no sentido de que
é imperativo eliminar a presença do demônio do mundo: “classificar as ou-

31
GONÇALVES, Vagner. Ob. Cit.

141
Organizadora : Edelamare Melo

tras denominações religiosas como pouco engajadas nessa batalha” ou “como


espaços privilegiados da ação dos demônios, os quais se “disfarçariam” em
divindades cultuadas nesses sistemas”, com destaque para as religiões de
matriz africana, cujos deuses são vistos como manifestações dos demônios.
Outra face desse processo que é destacada pelo autor “é a ‘incorporação’
da liturgia afro-brasileira nas práticas neopentecostais de algumas igrejas”.
Desta herança e situação atual de perseguição aos afro-religiosos tem-
se que as mulheres negras e afro-religiosas são alvos constantes de precon-
ceito, racismo, intolerância e discriminação de gênero – como toda e qualquer
mulher- e étnico-religiosa.
Assim, o tema da igualdade no trabalho na perspectiva das relações
de gênero, étnico-raciais e religiosas no Brasil tem relevância conjuntural e
histórica, uma vez que o trabalho foi inicialmente utilizado no país como fer-
ramenta de redenção, opressão e aprisionamento da população negra. Nesse
sentido, poder ressignificá-lo como catalisador da igualdade é um passo rele-
vante para as relações étnico-raciais e religiosas no país.
Desde esta perspectiva, o conhecimento sobre as formas como as desi-
gualdades de gênero e étnico-raciais-religiosas se produzem e reproduzem é
condição para que elas possam ser enfrentadas, razão pela qual, para compre-
ender a realidade da mulher negra no universo do trabalho é preciso conhecê-la
a partir de quem as vivi, porque só elas podem falar de suas dores e cicatrizes,
suas angústias, tristezas, decepções.... A nós, que ouvimos, resta exercitar a
capacidade da empatia, de se colocar no lugar do outro para aferir o que sen-
tiríamos se estivéssemos naquele lugar de vida. No caso, no lugar da mulher
negra e afro-religiosa que, ontem, como hoje, no seu cotidiano, enfrenta todas
as formas de preconceito, racismo, intolerância e discriminação de gênero, cor,
raça, etnia e orientação religiosa, ainda que possua escolaridade, capacidade e
qualificação técnica para ocupar um posto de trabalho e, que, pelo só fato de
sua identidade, é preterida por alguém que seja não-negra, não-afro-religiosa.
Preconceito, racismo, intolerância e discriminação que se manifestam
sob as mais variadas formas de violência física e/ou moral e que se estendem
aos seus filhos.
Neste momento é imperativo reconhecer e afirmar a intrínseca relação
entre desigualdades de gênero, étnico-raciais e religiosas no contexto da edu-
cação superior, do mercado de trabalho e renda, da pobreza, do acesso a bens
e serviços públicos de qualidade, da exclusão digital e da violência, as quais,
à sua vez, se articulam com a situação de classe, geracional, regional, e com a
dinâmica temporal destes fenômenos na realidade brasileira. Reconhecendo,

142
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

de plano, esta articulação, será possível construir mecanismos que permitam


a conformação desta perversa distribuição desigual socioeconômica, cultu-
ral e política, o que exige um efetivo compromisso com o rompimento das
desigualdades étnico-raciais e de gênero, e com a desconstrução de papéis
pré-concebidos e estereótipos, por intermédio da ação formativa, educativa
e afirmativa, que possuem caráter reparador de lesões perpetradas a séculos.
Dito isto, imagine a situação de ser apedrejada por intolerância religio-
sa – como ocorreu com uma menina de 11 anos - Kailane Campos-, no Subúrbio
do Rio de Janeiro. Na oportunidade Kailane declarou que esta não foi sua maior
cicatriz, mas, sim, o medo de morrer. “Achei que ia morrer. Eu sei que vai ser
difícil. Toda vez que eu fecho o olho eu vejo tudo de novo. Isso vai ser difícil de
tirar da memória”32. Seu pecado, seu crime, foi estar vestida de branco e carregar
contas no pescoço, que, para o candomblecista, não são apenas símbolos de
proteção, são manifestações de atributos próprios, características individuais
que emanam para além delas, mas, por meio delas, se expressam.
Imagine perder uma oportunidade de trabalho pelo só fato de sua cor de
pele e/ou sua religião; Imagine não ser atendida por um médico pelo só fato de
sua cor e/ou religiosidade; Imagine ser agredida em um transporte público pelo
só fato de usar indumentárias próprias de sua religião; Imagine-se como mãe/
pai vendo seu filho ou filha sofrer diuturnamente bulling em razão de sua cor da
pele e/ou religião, de seu cabelo; Imagine não ter sossego quando seu filho(a)
negro(a) sai às ruas com o risco de não voltar porque vitimado por uma desas-
trosa ação policial que lhe tolhe a tenra vida; Imagine ser preterida em uma
promoção na empresa em razão da sua cor de pele e/ou religiosidade; Imgine
perceber salário inferior ao pago a uma pessoa não-branca, seja ela homem ou
mulher; Imagine seu empregador lhe sugerir alisar seus cabelos ou cortá-lo
como condição para permanência no emprego, ou, ainda, sofrer pressões para
deixar o emprego por meio de imputações de fatos falsos, tais como a respon-
sabilização pelo sumiço de produtos de trabalho que nunca sumiram...
Imagine ser submetida(o) a tantas outras formas de violação de direitos
com as quais diuturnamente vivem e convivem as mulheres negras, notada-
mente a exigência de, a cada fração de segundo de sua vida, ter que lutar contra
as mais variadas formas de preconceito, racismo, intolerância e discriminação
e de ter que se afirmar e reafirmar como um sujeito de direitos que, como tal,
merece respeito e tratamento aos seus iguais na sua condição humana...Imagine
não ter paz, estar sempre em alerta, porque não sabe de onde virá o próximo

32
Confira-se reportagem e vídeo em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/06/menina-vitima-de-intole-
rancia-religiosa-diz-que-vai-ser-dificil-esquecer-pedrada.html

143
Organizadora : Edelamare Melo

ato de preconceito, racismo, intolerância e discriminação...Imagine viver em


uma pseudo-democracia racial e ser detentor, por força da natureza, da cor
“negra”, vocábulo que a língua portuguesa adjetiva com sentidos negativos e
estigmatizantes, e que o racismo associa à pessoa negra...
Consoante Abdias Nascimento33, “na mais proeminentemente autoriza-
da tradução inglês-português, o New Appleton Dictionary of the English and
Portuguese Language” “negro” apresenta as seguintes definições:
Black(black).I.s. preto, negro (cor, raça); mancha; luto.-in bl.(-
com.) com saldo credor do lado do haver, sem dívidas. II.a.,pre-
to; negro; escuro; sombrio; lúgubre; tétrico; tenebroso; sinistro;
mau; perverso; hostil; calamitoso; desastroso; mortal; maligno.
III.vt e vi., enegrecer; pintar de preto; engraxar (sapato, etc.) de
preto; desenhar em negro; manchar; difamar[...]

Imagine ser visto como exteriorização destes sentidos e significados e


levar consigo esta carga negativa atribuída à palavra “negro”, por aqueles
beneficiários do mito da “democracia racial”, uma democracia cuja artificio-
sidade, no dizer de Abdias Nascimento34:
[...] se expõe para quem quiser ver; só um dos elementos que
constituíram detém todo o poder em todos os níveis político-e-
conômico-sociais: o branco. Os brancos controlam os meios de
disseminar informações; o aparelho educacional; ele formulam
os conceitos, as armas e os valores do país. Não está patente
que neste exclusivismo se radica o domínio quase absoluto des-
frutado por algo tão falso quanto essa espécie de “democracia
racial”? Os efeitos negativos desse exclusivismo se expressam
de formas várias, inclusive no veículo condutor de uma cultura e
sua cosmovisão: a língua.

Agregue-se a tudo o que até aqui foi dito a necessidade de alguém negar
a sua identidade de cor e religiosidade para se incluir no universo que lhe ex-
clui por força do preconceito, do racismo, da intolerância e da discriminação
de gênero, raça, cor, etnia, religiosidade. Isto é um fato que foi identificado
em um censo do IBGE, e que foi objeto de análise pelos repórteres do Estado
de São Paulo, Edison Veiga e Rodrigo Burgarelli, em 7 de março de 2017 ,
cuja reportagem recebeu o seguinte título: ‘Faltam’ 2,5 milhões de mulheres
pretas e pardas no País, segundo IBGE35. Intrigados com referidos dados es-

33
NASCIMENTO, Abdias. Ob. Cit. pp 54-55.
34
Idem. p. 54
35
VEIGA, Edison, e BURGARELLI ,Rodrigo. O Estado de S. Paulo. ‘Faltam’ 2,5 milhões de mulheres pretas e

144
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

tatísticos os jornalistas empreenderam uma pesquisa para tentar compreender


o fenômeno destacando como premissa que, historicamente, as mulheres de-
claram ser mais brancas que o sexo oposto, diferença que se manteve mesmo
durante o expressivo crescimento do número de brasileiros que afirmavam
serem pardos ou pretos na última década: a proporção cresceu de 45% para
55% de 2001 para 2015. Na PNAD referida na reportagem, 53% das mulhe-
res se declaram não brancas, ante quase 56% dos homens. Noticia, ainda, a
reportagem, que, para o então pesquisador da Coordenação de População e
Indicadores Sociais do IBGE Leonardo Athias, “não há pesquisa suficiente no
Brasil para conseguir entender exatamente porque as mulheres parecem ter
tendência de se imaginarem, na média, mais brancas do que são”.
Aponta a reportagem que uma das causas para este fenômeno seria a
questão cultural posto que, nos Estados do Norte e do Nordeste como Ron-
dônia, Piauí, Roraima e Bahia, a proporção de brancos, pretos e pardos é
praticamente igual, diversamente do que ocorre em Estados do Sul e do Su-
deste, como Santa Catarina, Paraná e Rio. Outro fator a ser considerado na
hipótese, salienta a reportagem, é a escolaridade. Quanto mais anos de estudo
a mulher possui, maior a chance de ela se declarar não branca. A maior di-
ferença proporcional entre mulheres e homens que se declaram brancos está
no grupo que não concluiu o ensino fundamental: as brancas têm 3,2 pontos
porcentuais a mais. Entre a população com curso superior completo, o gráfico
se inverte – 26% das mulheres declararam ser negras ou pardas, número su-
perior aos 23% referente aos homens dessa escolaridade.
Para compreender o processo de transformação na percepção da pró-
pria raça realizou-se processo de escuta com mulheres que viveram essas
mudanças ou eram símbolos para esse grupo. Perguntadas sobre as razões
que explicariam a diferença entre homens e mulheres na hora de declarar sua
raça, a resposta foi praticamente unânime, destaca a reportagem: “É difícil
para a mulher assumir-se preta ou parda. Há um discurso cultural dominante,
uma construção do padrão de beleza com base em um embranquecimento”,
avaliou a jornalista consultada pela reportagem, Viviane Duarte, criadora do
projeto Plano Feminino.
A reportagem é finalizada com avaliações da advogada Mayara Sou-
za, fundadora do grupo Negras Empoderadas, e da atriz Taís Araújo. Afirma
Mayara que “A mulher negra está na base da pirâmide social, por ser mulher
e por ser negra. É natural que ela tente se afastar dessa imagem” [...] ; e, ao

pardas no País, segundo IBGE.7.3.2017. Disponível em: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,faltam-2-5-mi-


lhoes-de-mulheres-pretas-e-pardas-no-pais-segundo-dados-do-ibge,70001689376. Acesso em 15.11.2018

145
Organizadora : Edelamare Melo

seu turno, Taís Araújo pontua: “Ser mulher negra neste País é muito difícil.
Entendo profundamente as pessoas que tentam se aproximar de uma realida-
de que não é delas”. Ou seja, trata-se de uma triste rota de fuga dos estigmas
que recaem sobre a mulher negra. Uma tentativa de negar aquilo que se lhe
imputa como características negativas.
A partir deste contexto tentemos refletir sobre as seguintes narrativas
de preconceito, racismo, intolerância e discriminação nas relações de trabalho
e como elas podem afetar a saúde da mulher negra, sua qualidade de vida, sua
autoestima, sua dignidade, enfim.
Primeira narrativa: Larissa Neves, estudante de psicologia, quando ti-
nha 18 anos conseguiu emprego como recepcionista em uma empresa mul-
tinacional, mas acabou tendo que sair por não suportar os ataques e piadas
preconceituosas por ser negra. Relata Larissa que “Na época eu estava come-
çando meu processo de transição, tinha parado de relaxar o cabelo e cortei ele
bem curtinho. Quando ele começou a crescer começaram a dizer que minha
aparência não era compatível com o trabalho, me questionaram se eu não iria
relaxar o cabelo. Até que um dia eu estava na sala e começaram, além de fazer
piada, a colocar objetos do escritório na minha  cabeça”36.
Segunda narrativa, dentre muitas outras...

História 1: Meu primeiro emprego depois de me tornar uma mãe


solteira37
Eu lembro bem dessa experiência, pra ser bem sincera nunca
consigo esquecer. Eu tinha 24 anos, um filho de três meses para
sustentar e nenhuma grana no banco. Tinha saído de uma expe-
riência de trabalho precário antes da gravidez e pedia a todos
os santos por um emprego. Quando esse emprego apareceu e eu
agradeci aos céus e fui com toda a minha dedicação trabalhar
agradecida e pela certeza de que agora eu ia poder cuidar e suprir
toda as necessidades do meu filho. Sou pedagoga e fui contratada
por uma empresa relativamente nova, para elaborar projetos pe-
dagógicos; no escritório todas as pessoas eram brancas, eu ia ser
a primeira negra por ali; No final de uma agitada primeira sema-
na de trabalho (duas vezes me ligaram propondo que eu chegas-
se mais cedo pois havia muito que escrever) vivi uma das mais
dolorosas experiências da minha vida: Uma das sócias proprietá-

36
THÂMARA, Thamyra. Mulher negra ainda é mais discriminada no trabalho. Homens brancos ganham mais que
mulheres brancas, mulheres brancas ganham mais que homens negros. e mulheres negras ganham menos que todos.
In: Maré Online. Disponivel em: http://redesdamare.org.br/mareonline/2017/11/29/mulher-negra-ainda-e-mais-dis-
criminada-no-trabalho/. Acesso em 15.11.2018
37
SANTIAGO, Viviana. Diário de Uma Mulher Negra no Mercado de Trabalho. In: geledes.org.br.21.8.2017. Dispo-
nivel em: https://www.geledes.org.br/diario-de-uma-mulher-negra-no-mercado-de-trabalho/. Acesso em 11.11.2018

146
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

rias  me chama para conversar: tece elogios a minha prática, que
minha escrita era muito boa, que eu era muito educada e tinha
maneiras excelentes ao telefone (?!) mas ela precisava fazer uma
observação: eu tinha um cheiro que incomodava as pessoas, que
algumas pessoas já tinham pedido sua intervenção…me dizia
que sabia que era uma situação constrangedora; Eu me lembro
de ficar ali, sem palavras, prendendo o choro, mas vinha mais:
ela me diz que está chateada com a situação, mas eu precisava
entender que tentavam manter o escritório num nível muito alto,
pois recebiam muitas pessoas muito importantes, mas ela gosta-
va muito do meu trabalho, por isso, me informa, ela decidiu en-
tender que as vezes,  algumas pessoas tem um cheiro muito forte
e me oferece um dos seus desodorantes. Eu lembro muito bem
da minha sensação, sentia uma vergonha, os olhos ardendo, das
lágrimas que eu tentava reprimir, a voz não saia…  Me senti tão
humilhada; na volta pra casa arrasada, a sensação de vergonha
e de estar inadequada me seguindo a cada passo, a vontade de
não voltar ao trabalho no outro dia… Mas desistir não era uma
opção, tinha um filho pra criar e alimentar, não podia abrir mão
do salário. E assim engoli as lágrimas e voltei ao trabalho às 7h
da manhã seguinte. Depois de algumas semanas, toda a equipe
viajou e eu fiquei sozinha no escritório, nessa tarde, por volta das
14h um dos sócios chega e precisa resolver muitos assuntos de
pagamento, e ele me perguntou se eu podia ir ao banco descontar
um cheque. O banco ficava a uns 10 minutos de caminhada do
escritório, fui, com uma sensação de inquietude, porque eu esta-
va fazendo aquela tarefa? Eu havia sido contratada para escrever
projetos, será que ele pediria isso à coordenadora branca caso ela
estivesse sozinha no escritório? Fui ao banco, enfrentei uma fila
enorme e saquei o dinheiro. Nova caminhada até o escritório.
Entreguei o dinheiro e voltei a minha sala para trabalhar. Um mi-
nuto depois o sócio chega a minha sala, irado, diz que está faltan-
do dinheiro. Me pergunta se  eu não vi. Eu disse que não, ele me
diz que quer o dinheiro completo, e decide ir comigo até o banco
para pedir que o atendente do caixa lhe entregue a diferença. Vou
com ele. Na rua ele vai irritado, reclamando. Ao chegar ao banco,
informo ao atendente do caixa o que aconteceu, ele me diz que
só pode me entregar a diferença de valor no final do dia, quando
conferir seu caixa e observar que está sobrando. Informo isso ao
chefe, que decide voltar ao escritório e me deixa no banco espe-
rando. E eu esperei, esperei por muito tempo, por horas. Até o
banco fechar, até que o banco fechou e não havia quase ninguém
lá dentro. Um gerente se aproxima e ao me ver ali em pé perto do
caixa, pergunta o que estava havendo, diante da explicação, ele
pergunta quanto é que está faltando. Eu informo, ele se espanta,
puxa sua carteira, tira 10 reais e me entrega. Fico mais uma vez

147
Organizadora : Edelamare Melo

paralisada. Uma vergonha, me sentindo tão humilhada. Pego seu


dinheiro e volto ao escritório. Já era noite. Entrego o dinheiro e
aviso que se não houver mais nada, vou organizar minhas coisas
para ir pra casa. Quando chego ao ponto de ônibus, meu celular
toca. O chefe pede que eu volte ao escritório. Chegando lá em
cima, vou a sua sala e ele está irado, me perguntando pelo dinhei-
ro. Onde foi que guardei? Eu digo que entreguei a ele e que vi
quando ele colocou no bolso da camisa. Ele apalpa o bolso, deve
ter sentido o dinheiro, porque olha para mim e somente diz seco:
desculpe, lembrei. Eu desço mais uma vez, vou chorando o ca-
minho inteiro, agora não tinha nenhuma duvida, ele achava que
eu tinha roubado o dinheiro. Ele achava que eu, a única pessoa
negra do escritório, tentei por duas vezes naquele dia roubar seu
dinheiro. Fui durante todo o caminho chorando, perto de casa,
enxugo meu rosto, quando abro o portão, minha irmã vem sorri-
dente me entregar meu bebê; às pressas termino de me recompor. 
É dia 05 de agosto: estavam me esperando para comemorar meu
aniversário.

As terceira e quarta narrativas foram colhidas no trabalho de Júlia Si-


mões Neris38 que tem como título “Intolerância Religiosa nas relações de
trabalho: proteção ao povo de Santo”, única bibliografia encontrada sobre a
intolerância religiosa nas relações de trabalho contra a mulher adepta de re-
ligião de matriz africana, o que comprova a invisibilidade desta problemática,
tributária do medo das vítimas da banalização da violência, que, de fato e de
direito, já é vivenciada com o acirramento dos discursos de ódio e das perse-
guições por eles sofridas por grupos evangélicos fundamentalistas e sectários.
A esta circunstância - que também justifica a ausência de estatísticas- se
soma a postura dos candomblecistas no sentido de preferirem não buscar o
auxílio do aparato do Estado para não expor a sua religião por medo de repre-
sália, notadamente o assédio, mas, também, por nele não acreditar dada a falta
de respostas institucionais em relação as graves violações de direitos sofridas
diuturnamente. Como observa a autora39:
Essas pessoas compõem uma zona cinzenta na sociedade, a qual
torna senso comum o conhecimento acerca da existência do pre-
conceito, mas não se dimensiona os danos provocados tanto
à coletividade quanto ao indivíduo gerados pela intolerância.
Quando analisamos a ocorrência de abuso de direitos por parte
de empregadores ou colegas de trabalho contra candomblecis-

38
NERIS, Júlia Simões. Ob.Cit
39
Idem. p.185

148
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

tas, o silêncio acerca do preconceito pode surgir por diversos


motivos segundo os entrevistados: medo do desemprego, medo
de agravamento da situação de assédio.

Vejamos as narrativas:
Terceira narrativa:
No processo número 01786-2013-016-10-00-6, TRT-10, julgado
em primeira instância pela Magistrada Luiza Fausto Marinho de
Medeiros e em sede de recurso teve como relator Maria Regina
Machado Guimarães, é possível analisar com maior profundidade
a ocorrência, no caso concreto, desse tipo de conflito entre o po-
der diretivo do empregador e a liberdade de crença do empregado.
Segundo consta nos autos, a Autora foi vítima de despedida sem
justa causa motivada por circunstâncias discriminatórias de cunho
religioso, dado o fato de a ela terem sido atribuído os caracteres de
“Macumbeira” e “Mão de Santo” por colega de profissão (coorde-
nadora do colégio o qual a Autora era professora). A partir disso, foi
vítima de constrangimento pelos demais colegas. A Autora susten-
ta ainda, afirmação reiterada por testemunhas, que foi questionada
pela empregadora sobre a verdade dos boatos acerca de suas práti-
cas religiosas e, mediante confirmação, seria despedida.

Quarta narrativa
Gilmara Santos, professora de filosofia de escola particular em
Salvador-Ba, na constância do contrato de emprego, era even-
tualmente vítima de comentários de conotação depreciativa
como “Macumbeira” e “Mulher do torço” por parte de colegas
de trabalho e estudantes. Em dado momento, isso chegou a ser
suscitado por alguns colegas com caráter vexatório em reuniões
de professores, em seu período de iniciação no Candomblé, no
qual as vestes características da religião eram mais expressivas.
A partir de então, Gilmara passou a ter de se posicionar constan-
temente em face do preconceito dentro da escola, trazendo para
a sala de aula discussões sobre religiosidade e tolerância. Além
disso, houve casos de alguns pais tirarem as crianças da escola
devido à presença da educadora, pois, nas palavras dela, alega-
vam que a diretora estava “colocando gente que tem parte com
o diabo para dar aula” e não manteriam as crianças na escola se
Gilmara continuasse a ministrar aulas na instituição. A resposta
da escola foi não permitir o preconceito, perpetuando o contra-
to de emprego de Gilmara e lhe dando discricionariedade para
trabalhar o tema religiosidade dentro da disciplina por ela mi-
nistrada. Ela relata ainda que a escola tinha inúmeros estudantes
candomblecistas que não se apresentavam enquanto tal, filhos de

149
Organizadora : Edelamare Melo

babalorixás inclusive, pois não se sentiam protegidos ou iden-


tificados. A partir do momento que ela começou a se reafirmar
enquanto mulher negra e candomblecista, essas crianças encon-
traram espaço para manifestar seu credo sem vergonha ou medo.

Porque é assim, para enfrentar a questão relativa às barreiras de acesso


da mulher negra e afro-religiosa no mundo do trabalho, é necessário fixar uma
premissa necessária, a saber: a questão do gênero é uma variável teórica que não
pode ser alijada de outros eixos de opressão – raça, cor, etnia, orientação sexual,
identidade de gênero e orientação religiosa- , portanto, não admite uma única
forma de enfrentamento, tão pouco que se olvide do fato de que vivemos em uma
sociedade multirracial, pluricultural e racista. Como salienta Sueli Carneiro40 :
“A origem branca e ocidental do feminismo estabeleceu sua hegemonia na equa-
ção das diferenças de gênero e tem determinado que as mulheres não brancas e
pobres, de todas as partes do mundo, lutem para integrar em seu ideário as espe-
cificidades raciais, étnicas, culturais, religiosas e de classe social”.
Portanto, para que possua utilidade prática o enfrentamento da questão
objeto deste estudo é necessário considerar que à variável gênero outras de-
vem ser agregadas outras tão estigmatizantes como o gênero: raça, cor, etnia,
orientação sexual, identidade de gênero e religião. Isto porque, a mulher negra,
ademais de enfrentar os agravos decorrentes do fato de ser mulher, enfrenta ou-
tros embates que não se restringem ao enfrentamento da hegemonia masculina,
mas, também, de um sistema de privilégios para a mulher branca e de formação
eurocristã, que a ela não são extensíveis por uma série de fatores históricos: a
escravidão negra no Brasil e seus efeitos deletérios para a construção de uma
cidadania; sócio-econômicos, a exclusão social e produtiva decorrente da falta
de acesso a bens e serviços que lhes assegure condições de vida digna; cultu-
rais, marcado pela cultura cristã e pelo eurocentrismo, que nega a identidade da
cultura negra herdada dos nossos ancestrais africanos escravizados pelo sim-
ples fato que aqui chegaram como objetos, portanto tidos como destituídos de
cultura, história, tradição, religiosidade, afetos e emoções; e políticos, a falta
de representatividade, que conduz à falta de legitimação dos seus direitos e o
cerceio de garantia e de direitos fundamentais, e culturais.
Desde esta perspectiva tem-se que as lutas das mulheres tal e como
propugnadas pelos movimentos feministas para ter caráter de universalida-
de exigem transversalidade e interseccionalidade para abarcar não apenas
as questões de gênero, mas, também, étnico-raciais, religiosas, culturais, de

40
CARNEIRO, Sueli. Ob.Cit.

150
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

orientação sexual e identidade de gênero pela elementar razão de que vive-


mos em uma sociedade multirracial, pluricultural e racista.
De mais a mais, não existem mulheres e “mulheres”. Existem mulheres
de diversas cores e matizes etno-raciais, religiosas, culturais, de orientação
sexual e identidade de gênero.
Sueli Carneiro41, citando Lélia Gonzalez, faz referência a dois tipos
de dificuldades para as mulheres negras, a saber: a inclinação eurocentrista
do feminismo brasileiro, que omite a natureza central da questão racial nas
hierarquias de gênero e universaliza a cultura ocidental para o conjunto das
mulheres sem proceder à necessária mediação com base na interação entre
brancos e não brancos; e - o que nos parece ser consequência do primeiro- o
distanciamento da realidade vivenciada pela mulher negra e afro-religiosa,
negando toda a sua história de lutas e resistências na qual estas mulheres
são e foram protagonistas em razão da dinâmica de uma memória cultural
ancestral que não se confunde, em nada e por nada, com o eurocentrismo que
orienta este tipo feminismo.
Em sequência, com Patrícia Collins, destaca a autora citada os temas
fundamentais que caracterizariam o ponto de vista feminista negro: o legado
de uma história de luta, a natureza interconectada de raça, gênero e classe e o
combate aos estereótipos ou “imagens de autoridade.
Confira-se:
“[...] por um lado, a inclinação eurocentrista do feminismo bra-
sileiro constitui um eixo articulador a mais da democracia ra-
cial e do ideal de branqueamento, ao omitir o caráter central da
questão da raça nas hierarquias de gênero e ao universalizar os
valores de uma cultura particular (a ocidental) para o conjunto
das mulheres, sem mediá-los na base da interação entre brancos
e não brancos; por outro lado, revela um distanciamento da rea-
lidade vivida pela mulher negra ao negar “toda uma história feita
de resistência e de lutas, em que essa mulher tem sido protago-
nista graças à dinâmica de uma memória cultural ancestral (que
nada tem a ver com o eurocentrismo desse tipo de feminismo)”.
Nesse contexto, quais seriam os novos conteúdos que as mulhe-
res negras poderiam aportar à cena política para além do “toque
de cor” nas propostas de gênero? A feminista negra norteame-
ricana Patricia Collins argumenta que o pensamento feminista
negro seria “(…) um conjunto de experiências e idéias compar-
tilhadas por mulheres afro-americanas, que oferece um ângulo
particular de visão de si, da comunidade e da sociedade… que

41
CARNEIRO, Sueli. Ob.Cit.

151
Organizadora : Edelamare Melo

envolve interpretações teóricas da realidade das mulheres ne-


gras por aquelas que a vivem…” A partir dessa visão, Collins
elege alguns “temas fundamentais que caracterizariam o ponto
de vista feminista negro”. Entre eles, se destacam: o legado de
uma história de luta, a natureza interconectada de raça, gênero e
classe e o combate aos estereótipos ou “imagens de autoridade”.

Assim, ainda uma vez com Sueli Carneiro42, temos que um feminismo
negro “tem como principal eixo articulador o racismo e seu impacto sobre as
relações de gênero, uma vez que ele determina a própria hierarquia de gênero em
nossas sociedades”. Neste sentido observa a autora que, para a mulher negra:
[...] se impõe uma perspectiva feminista na qual o gênero seja uma
variável teórica, mas como afirmam Linda Alcoff e Elizabeth Pot-
ter, que não “pode ser separada de outros eixos de opressão” e
que não “é possível em uma única análise. Se o feminismo deve
liberar as mulheres, deve enfrentar virtualmente todas as formas
de opressão”. A partir desse ponto de vista, é possível afirmar que
um feminismo negro, construído no contexto de sociedades mul-
tirraciais, pluriculturais e racistas – como são as sociedades latino
-americanas – tem como principal eixo articulador o racismo e seu
impacto sobre as relações de gênero, uma vez que ele determina a
própria hierarquia de gênero em nossas sociedades.

Portanto, como salienta Sueli Carneiro, “a unidade na luta das mulhe-


res em nossa sociedade não depende apenas da capacidade de superar as
desigualdades geradas pela histórica hegemonia masculina”. Requer mais
como pressuposto de legitimação da luta. Requer, ou melhor dito, exige
“[...] a superação de ideologias complementares desse sistema
de opressão, como é o caso do racismo, que estabelece uma in-
ferioridade social dos segmentos negros da população em geral
e das mulheres negras em particular, operando como fator de
divisão na luta das mulheres pelos privilégios que se instituem
para as mulheres brancas”. Nessa perspectiva, a luta das mu-
lheres negras contra a opressão de gênero e de raça vem dese-
nhando novos contornos para a ação política feminista e anti-ra-
cista, enriquecendo tanto a discussão da questão racial, como
a questão de gênero na sociedade brasileira. Esse novo olhar
feminista e anti-racista, ao integrar em si tanto as tradições de
luta do movimento negro como a tradição de luta do movimento
de mulheres, afirma essa nova identidade política decorrente da

42
CARNEIRO, Sueli. Ob.Cit.

152
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

condição específica do ser mulher negra. O atual movimento de


mulheres negras, ao trazer para a cena política as contradições
resultantes da articulação das variáveis de raça, classe e gênero,
promove a síntese das bandeiras de luta historicamente levanta-
das pelos movimento negro e de mulheres do país, enegrecendo
de um lado, as reivindicações das mulheres, tornando-as assim
mais representativas do conjunto das mulheres brasileiras, e, por
outro lado, promovendo a feminização das propostas e reivindi-
cações do movimento negro. Enegrecer o movimento feminista
brasileiro tem significado, concretamente, demarcar e instituir
na agenda do movimento de mulheres o peso que a questão ra-
cial tem na configuração, por exemplo, de políticas demográfi-
cas, na caracterização da questão da violência contra a mulher
pela introdução do conceito de violência racial como aspecto
determinante das formas de violência sofridas por metade da
população feminina do país que não é branca; introduzir a dis-
cussão sobre as doenças étnicas/raciais ou as doenças com maior
incidência sobre a população negra como questões fundamentais
na formulação de políticas públicas na área de saúde; instituir a
crítica aos mecanismos de seleção no mercado de trabalho como
a “boa aparência”, que mantém as desigualdades e os privilégios
entre as mulheres brancas e negras.

Vistas as coisas a partir da perspectiva do feminismo negro, o que nos


moveu neste estudo foi o desejo de enfrentar as barreiras de acesso da mulher
negra e afro-religiosa no mundo do trabalho em uma perspectiva crítica que
considere todos os fatores de opressão aos quais ela é submetida para lograr um
emprego e, assim, de alguma forma, contribuir para retirar da invisibilidade as
situações de preconceito, racismo, intolerância e discriminação por elas diutur-
namente vivenciadas a partir das categorias: raça, classe, gênero, mas, também
- porque fatores de agravamento do preconceito, do racismo, da intolerância
e da discriminação- a cultura e religiosidade herdada dos nossos ancestrais
africanos escravizados, orientação sexual e identidade de gênero. Situação tri-
butária de um triste passado de uma sociedade colonial escravagista.
Mais uma vez invocamos as lições de Sueli Carneiro43 como suporte à
tarefa que nos propomos e para fixar premissas que entendemos necessárias
para o enfrentamento do objeto deste estudo, agora desde uma perspectiva
histórica: as barreiras de acesso da mulher negra no mundo do trabalho.
No Brasil e na América Latina, a violação colonial perpetrada
pelos senhores brancos contra as mulheres negras e indígenas e

43
CARNEIRO, Sueli. Ob.Cit.

153
Organizadora : Edelamare Melo

a miscigenação daí resultante está na origem de todas as constru-


ções de nossa identidade nacional, estruturando o decantado mito
da democracia racial latino-americana, que no Brasil chegou até as
últimas consequências. Essa violência sexual colonial é, também,
o “cimento” de todas as hierarquias de gênero e raça presentes em
nossas sociedades, configurando aquilo que Ângela Gilliam define
como “a grande teoria do esperma em nossa formação nacional”,
através da qual, segundo Gilliam: “O papel da mulher negra é ne-
gado na formação da cultura nacional; a desigualdade entre homens
e mulheres é erotizada; e a violência sexual contra as mulheres ne-
gras foi convertida em um romance”. O que poderia ser considera-
do como história ou reminiscências do período colonial permanece,
entretanto, vivo no imaginário social e adquire novos contornos e
funções em uma ordem social supostamente democrática, que man-
tém intactas as relações de gênero segundo a cor ou a raça insti-
tuídas no período da escravidão. As mulheres negras tiveram uma
experiência histórica diferenciada que o discurso clássico sobre a
opressão da mulher não tem reconhecido, assim como não tem dado
conta da diferença qualitativa que o efeito da opressão sofrida teve e
ainda tem na identidade feminina das mulheres negras.

É dizer, as mulheres negras possuem desde perspectiva histórica pon-


tos de partida absolutamente diferentes não apenas em relação aos homens
– negros e não negros-, mas, também, em relação às mulheres não negras e
eurocristãs, especificidades que precisam ser priorizadas, mas que não são
consideradas no mundo do trabalho, via de regra. Suas barreiras de acesso ao
trabalho são o preconceito, o racismo, a intolerância e a discriminação, que
mais se agravam quando à condição de mulher negra se agregam as condi-
ções de afro-religiosa e integrante da comunidade LGBTQIAP+
Porque é assim, o lugar que se destina à mulher negra, ainda hoje na
sociedade brasileira, pede que voltemos o olhar para o nosso passado colo-
nial para tentar entender um presente que, no cotidiano, ainda a desvaloriza
e, muitas vezes, as aloca em lugares de subalternidade e submissão. Passado
colonial cuja ação escravizadora transformava homens e mulheres em merca-
dorias; fomentou a estigmatização da mulher negra, a partir da objetificação
sexual, expondo-as, também, à violência física e sexual, ao assédio moral e
ao cinismo, que ainda hoje persistem, lamentavelmente...
Referências Bibliográficas
Carneiro, Sueli. Enegrecer o Feminismo: A Situação da Mulher Negra na América Latina a
partir de uma perspectiva de gênero. Disponível em: http://latitudeslatinas.com/download/
artigos/enegrecer-o-feminismo-a-situacao-da-mulher-negra-na-america-latina-a-partir-de-u-
ma-perspectiva-de-genero.pdf. Acesso em 10/11/2018

154
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Nascimento, Abdias. 13 de maio: Dia de Denúncia contra o Racismo, Minas Gerais, n. 1.098,
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155
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

MANIFESTO POÉTICO DA LUTA ANTIRRACISTA

Milsoul Santos

Racismo é a prática mais genocida de todos os tempos, fato. Cumprindo o


seu maior objetivo, segue invisibilizando o povo preto, de África à diáspora, num
número incalculável; por isso,na hora do feio, do demonizado, do rejeitável, do
odiável, do tenebroso, do fodido, do desgraçado, em primeiro, se não único lugar,
vem desenhado “preto” em nosso pensamento, enquanto colonizado. Tudo foi
programado e a corda, ainda,só quebra do lado mais afro! Esse negócio de esquerda
e de direita, situação e oposição, quando contempla, sempre tenta branquificar as
lutas pretas. Isso ocorre porque ocupamos quase nada das cadeiras que governam.
Apesar de sermos a maioria no país, ainda somos minoria no comando da caneta.
Vejam; vejam o que os europeus fizeram com os nativos, exterminaram
milhares de originários, destruíram diversas tribos. Sim, vejam, diariamente, irmãos
matarem outros irmãos por trocados. Na tela da TV tem Preto favela contra Preto
favela e Preto favela contra Preto fardado. E tem gente da gente que, só porque está
estudando numa universidade ou melhorou o seu salário ou passou no concurso
público ou acessou um cargo na prefeitura ou no estado, já não coloca mais os
pés na favela, fica na primeira pessoa do singular, pousando de ser intelectualóide
diferenciado, enquanto a mídia faz piada, funerárias e floriculturas vendem e
nossas mães prosseguem enterrando seus filhos, nossos irmãos assassinados. Se
for gordo e tiver uma vida sexoafetiva que não seja hétero, sofre; se for gordo, tiver
uma vida sexoafetiva que não seja hétero e for preto, sofre dobrado; se for mulher,
o machismo a agride, se essa mulher for preta, o machismo junta-se ao sexismo,
com suporte do racismo e faz com que essa mulher sofra seu bocado.
Racismo é estruturante e, sobretudo, é extremamente estruturado. É,
meu preto; é, minha preta, racismo não dá intervalo. E no bê-á-bá do degradê
de melanina fui guiado para me sentir inferior, fraco, incapacitado; entre tantos
absurdos, nos ensinam a fugir para o moreno escuro e moreno claro. E eu queria
tanto falar de paz, mas minhas palavras jorram sangue para todos os lados. A
luta antirracista é uma luta para todos, seja alvo ou privilegiado, porque racismo
provoca dor, dor que produz revolta, revolta que forma indignados, indignados
cada vez mais estratégicos, estratégicos cada vez mais articulados, articulados
cada vez mais Xangô, Xangô cada vez mais machado, machado de dois gumes,
dois gumes bem afiados que cortam de dois lados. Justiça seja feita. Nesse acerto
de contas, inevitável, eu desejo o menor dos estragos.
157
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

70 ANOS DE DECLARAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS:


SOBRE O PRECONCEITO, O RACISMO,
A INTOLERÂNCIA E OUTRAS DROGAS AFINS

Edelamare Melo1

Resumo
No marco dos 70 anos da Declaração dos Direitos Humanos, pretende-
se demonstrar que, como as drogas, o preconceito gera dependência – senão
química, comportamental-, afetando o nosso modo de ser e estar no mundo,
condicionando nossas reações a ponto de colocar em risco a nossa própria hu-
manidade no sentido de que, movidos pelo preconceito, estabelecemos proces-
sos discriminatórios que infirmam a condição humana do outro, a quem não
vemos como igual, mas, sim, como um ser inferior ao qual se nega direitos
elementares como o direito à vida, à igualdade, à liberdade...ou simplesmente, o
direito de, como nós (os detentores do preconceito) termos direito à felicidade,
tal e como nos albores do liberalismo foi concebido pelo naturalismo, raciona-
lizado pelo racionalismo e interiorizado pelo individualismo - elemento central
do liberalismo, que descansa na ideia de propriedade e na afirmação de que a
natureza do homem implica a propriedade sobre sua pessoa e, por tanto, sobre
suas capacidades e o fruto delas: seu trabalho, sendo livre para dela se valer para
perseguir a constante e eterna meta da felicidade. Contudo, a realidade da vida
demonstrou a insustentabilidade destes paradigmas liberais, o que conduziu às
suas releituras em especial sob a forma do liberalismo igualitário, que tem ser-
vido de justificação para políticas de ação afirmativa, notadamente aquelas de
recorte étnico-racial. Mas não se pretende cuidar do preconceito e da discrimi-
nação sob o viés do liberalismo igualitário e de sua pretensão de enfrentar suas
consequências de exclusão por meio de ações afirmativas, que já demonstraram
ser meros paliativos para a questão senão acompanhadas de medidas e políticas
estruturantes que propiciem condições efetivas de inclusão social considerando
a questão que a subjaz: no caso brasileiro, a renitência da pobreza, da miséria e
de seus agravos, fruto de um processo histórico e cultural de negação de direitos

1
Doutora laureada em Direito pela Universidade Pablo de Olavide (Sevilla, Espanha) Subprocuradora Geral do
Trabalho. Membro do Conselho Superior do Ministério Público do Trabalho. Coordenadora do Grupo de Trabalho
Comunidades Tradicionais do Ministério Público do Trabalho.

159
Organizadora : Edelamare Melo

a um significativo contingente de seres humanos submetidos às mais variadas


formas de escravidão, entendida esta como forma limitativa do direito à liberda-
de em seus mais variados matizes. Para alcançamos os objetivos que nos propo-
mos –no caso demonstrar que o sistema de valores do indivíduo informa todo o
seu agir, inclusive como agente produtor e aplicador do direito impregnando-o
com seus conceitos e preconceitos- lançamos mão dos métodos indutivo, dialé-
tico e sócio-histórico, com análise de dados qualitativos de natureza bibliográ-
fica e documental, que conduziu à conclusão no sentido de que preconceito,
racismo, intolerância e discriminação são frutos do sistema de valores e crenças
do indivíduo que informam todo o seu agir, seja para afirmar direitos, seja para
negá-los pelo só fato de existir entre ele e o outro a diferença. Desta realidade o
direito se alimenta, produzindo e reproduzindo um sistema de valores que, não
raras vezes, obsta a realização concreta dos direitos fundamentais à igualdade e
à liberdade porque fruto da ação daqueles que, dizendo-se representar a maioria,
consolida um sistema normativo que, ainda que não declaradamente excluden-
te, propicia a negação de direitos e a discriminação negativa.
É dizer instrumentaliza-se o Direito, na sua produção e na sua aplicação
para favorecer determinados grupos em detrimento de outros que são vítimas de
preconceito e discriminação em razão de sua cor, raça, credo/crença religiosa,
gênero, orientação sexual, identidade de gênero, condição econômica ou social.
Palavras chave: Direitos humanos, preconceito, racismo, discriminação.
I - Introdução
À primeira pode causar alguma perplexidade o título destas minhas refle-
xões, que, sim, terão um viés jurídico, mas, também, sociológico e filosófico.
Este título tem sua razão de ser porque fruto de um processo observatório do
agir humano em face do que lhe é diferente, notadamente quando este diferente é
objeto de preconceito por fatores diversos, sendo os mais relevantes desde sempre,
a cor, a raça, a etnia, o gênero e aquela que motiva as guerras das guerras: a religião.
As distintas formas de preconceito nos levam a negar um espaço de convivência
qualificado a todos porque importa em uma recusa em aceitar o diferente em face de
padrões tidos por ideais naquela sociedade específica, olvidando da importância da
alteridade na coexistência entre os seres humanos, e da importância do outro- igual
ou diferente- para a constituição de cada qual como assinala Maria do Céu Patrão
Neves (2018) ao afirmar que nós nos fazemos na relação com o outro.
Assim, a relação preconceito-droga se justifica em razão das altera-
ções que o primeiro provoca no nosso modo de pensar e agir. Se é certo que
o preconceito produz um sentimento de repulsa ao outro (porque ignoramos

160
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

a sua importância para a nossa constituição), não é menos certo que, este
sentimento, produz alterações em nosso sistema biológico e deflagra reações
físicas e comportamentais que, não raras vezes, conduz a prática de verda-
deiras atrocidades que vão de encontro à humanidade humana, permitam-nos
a redundância ou a licença poética, acadêmica, como se queira.
Não é novidade que, se é certo que sofremos influência do meio no qual vive-
mos – que informa nosso sistema de valores e crenças-, não é menos certo que também
somos seres biológicos havendo uma intrínseca relação entre o nosso corpo físico e o
nosso corpo emocional, que também determinam, ou se se prefere, influenciam nos-
sas reações e condutas aos variados estímulos que recebemos em nossa vida diuturna.
Explico: nosso sistema biológico reage às provocações do meio ambiente na
sua inteireza e complexidade por meio de reações químicas que provocam do êxta-
se, da alegria, da felicidade, à tristeza, à depressão, ao amor, ao ódio..., das lágrimas
ao sorriso...e respondemos a este influxo enquanto seres sociais de formas diversas.
Ora contendo estes impulsos porque social, moral, cultural, ética e/ou juridicamen-
te reprováveis; ora nos entregamos a eles agindo, muitas vezes, como bestas-feras.
Mas também temos a capacidade de empatizar, de nos colocarmos no lugar do ou-
tro, de tentar sentir como o outro...o que se constata como uma dificuldade, notada-
mente no campo do preconceito que conduz a perversas formas de discriminação.
Estas relações entre comportamento, conduta humana e o funcionamen-
to do sistema biológico, em especial do sistema cerebral, são objeto de estudo
pela neurociência, dando azo de algum tempo a estudos que buscam estabele-
cer relações entre a neurociência e o direito, a ética articulando-os sob as con-
signas neurodireito, neuroética. Entre nós Atahualpa Fernandez e Manuella
Maria Fernandez (2010) têm se dedicado a esta temática, observando que:
Os estudos da natureza da mente e do funcionamento do cérebro co-
meçam a chegar à filosofia moral e ao direito de uma maneira cada
vez mais contundente; de forma direta ou indireta, não param de
lançar novas luzes sobre questões antigas acerca da racionalidade
humana, da moralidade, do bem e do mal, do justo e do injusto, do
livre-arbítrio, da “rule of law” e das relações entre os indivíduos.

No mesmo texto ora citado, evocam P. Churchland2, que afirma:


Aqueles que supõem que ciência e humanismo estão divorciados
tendem a ver as novas teorias neurobiológico-psicológicas como

2
P. CHURCHLAND apud FERNANDEZ, Atahualpa; FERNANDEZ, Manuella Maria, FERNANDEZ, Atahualpa;
FERNANDEZ, Manuella Maria. Neuroética, “neurodireito” e os limites da neurociência. In: Âmbito Jurídico, Rio
Grande, XIII, n. 83, dez 2010. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revis-
ta_artigos_leitura&artigo_id=8691>. Acesso em dezembro/2018

161
Organizadora : Edelamare Melo

uma irreparável perda de nossa humanidade. Mas também se


pode ver de outra forma.(...). Pode ser de um profundo aumento
na compreensão de nós mesmos, o qual contribuirá a aumentar
em vez de diminuir nossa humanidade. Em qualquer caso, é um
erro mirar a ciência como proposta em oposição ao humanismo.

Advirta-se, porque necessário, que não se pretende realizar uma abor-


dagem na seara do neurodireito ou da neuroética, mas, sim, demonstrar que,
como as drogas, o preconceito gera dependência – senão química, compor-
tamental-. Atua como verdadeira droga que afeta o nosso modo de ser e es-
tar no mundo, condicionando nossas reações a ponto de colocar em risco a
nossa própria humanidade no sentido de que, movidos pelo preconceito, pelo
racismo, e pela intolerância, estabelecemos processos discriminatórios que
infirmam a condição humana do outro, a quem não vemos como igual, mas,
sim, como um ser inferior ao qual se nega direitos elementares como o direito
à vida, à igualdade, à liberdade...ou, simplesmente, o direito de, como nós
(os detentores do preconceito, do racismo e da intolerância) termos direito à
felicidade, tal e como nos albores do liberalismo foi concebido pelo natura-
lismo, racionalizado pelo racionalismo e interiorizado pelo individualismo
- elemento central do liberalismo, que descansa na ideia de propriedade e
na afirmação de que a natureza do homem implica a propriedade sobre sua
pessoa e, por tanto, sobre suas capacidades e, o fruto delas: seu trabalho sendo
livre para dela se valer para perseguir a constante e eterna meta da felicidade.
A realidade da vida demonstrou a insustentabilidade destes paradigmas li-
berais, o que conduziu às suas releituras em especial sob a forma do liberalismo
igualitário, que tem servido de justificação para políticas de ação afirmativa, nota-
damente aquelas de recorte étnico-racial, sendo certo a existência de opiniões que
vão desde a defesa, passando por posições intermediárias até a rejeição de referi-
das políticas, motivo pelo qual é razoável afirmar a inexistência de consenso en-
tre a teoria política e moral do liberalismo igualitário e a justificação de políticas
de ação afirmativa de recorte étnico-racial no contexto das democracias liberais.
Contudo, também não é nossa pretensão cuidar do preconceito e da
discriminação sob o viés do liberalismo igualitário e de sua pretensão de en-
frentar suas consequências de exclusão por meio de ações afirmativas, que
já demonstraram ser meros paliativos para a questão senão acompanhadas de
medidas e políticas estruturantes, que propiciem condições efetivas de inclu-
são social considerando a questão que a subjaz: no caso brasileiro, a renitên-
cia da pobreza, da miséria e de seus agravos, fruto de um processo histórico
e cultural de negação de direitos a um significativo contingente de seres

162
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

humanos submetidos às mais variadas formas de escravidão, entendida esta


como forma limitativa do direito à liberdade em seus mais variados matizes.
Explico, escraviza-se quando se nega o direito a todas as formas de liberda-
de, não apenas do direito de ir e vir porque à base da escravidão está a inferiori-
zação do outro para submetê-lo a partir da afirmação de uma superioridade étnico
-racial, cultural, de gênero, religiosa, de condição econômica-social... Se escraviza
quando se nega o direito sacrossanto à liberdade. Escraviza-se sempre que se põe
mordaças à livre expressão das liberdades e se impõe ao outro o enclausuramento
forçado em razão da irracionalidade do preconceito e da discriminação.
É desta escravidão – a qual submeto o outro pela violência física ou moral,
esta por meio do assédio, uma de suas formas mais indignas- que afeta o direito
de ser, estar e viver conforme seus valores e crenças à qual me refiro: a escravi-
dão que, ainda que não aprisione o corpo, nega ao outro condições de existência
digna em um ambiente de respeito, não de tolerância àquele que, a um só tempo
é um meu igual, mas, também, um meu diferente em razão de sua raça, cor, etnia,
gênero, crença, credo religioso, ideologia política, condição econômica e social,
para falar apenas de alguns fatores que geram o preconceito e a discriminação.
É desta realidade que nos ocupamos enquanto cientistas do Direito, ci-
ência do dever ser (porque apoiada no postulado da liberdade) que tem como
matéria prima a conduta humana.
Para alcançamos os objetivos que nos propomos –no caso, demonstrar
que o sistema de valores do indivíduo informa todo o seu agir, inclusive como
agente produtor e aplicador do direito impregnando-o com seus conceitos e
preconceitos- lançamos mão dos métodos indutivo, dialético e sócio-históri-
co, com análise de dados qualitativos de natureza bibliográfica e documental.
II - Preconceito, discriminação e outras drogas afins
A Declaração Universal de Direitos Humanos se traduziu em uma reação
às atrocidades cometidas no curso da Segunda Grande Guerra tendo como eixo
central o direito à proteção da dignidade da pessoa humana, o que representa a
maior conquista jurídica e social do pós-guerra. Por ocasião da celebração dos
seus 20 anos Roberto Bobbio (1992, p.25) proferiu discurso no qual asseverou:
[...] o problema grave de nosso tempo, com relação aos direi-
tos do homem, não é mais o de fundamentá-los, mas sim o de
protege-los. [...] Não se trata de saber quais e quantos são esses
direitos, qual é a sua natureza e o seu fundamento, se são direitos
naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas, sim, o modo
mais seguro de garanti-los, para impedir que, apesar das solenes
declarações, eles sejam continuamente violados.

163
Organizadora : Edelamare Melo

Vivemos hoje um momento de incertezas e de regressão dos Direitos


Humanos. Estão em tela de juízo, de ponta a ponta, e em dimensões mundiais,
a liberdade de expressão, de organização, de participação social pacifica, a
agenda do trabalho decente, moradia adequada, seguridade social, acesso
universal à educação e à cultura, o direito à dissidência política, à igualdade
independente de gênero, raça, cor, etnia, origem, orientação sexual, identida-
de de gênero, liberdade de culto, a criação artística, enfim tudo o que se insere
na categoria direitos humanos. Não por outra razão à hora de proferir discurso
por ocasião da diplomação do Presidente eleito para governar a República
Federativa do Brasil no período de 1.1.2018 a 31.12.2022, a Ministra Rosa
Weber –do Supremo Tribunal Federal e Presidente do Tribunal Superior Elei-
toral- proclamou, de forma firme e contundente, a necessidade de respeito à
primazia dos Direitos Humanos, da Constituição Federal e do risco aos quais
estão expostas estas instituições democráticas em razão do fomento ao pen-
samento único, à proscrição das minorias e da diversidade inerente ao existir
humano. Confira-se ao que nos interessa passagens do histórico discurso da
Ministra se se considera o marco político no qual proferido:
[...] esta sessão realiza-se sob o signo de uma data de singular im-
portância na história da luta permanente do Povo pela conquista
e preservação de seus direitos básicos.Refiro-me ao Dia Mundial
dos Direitos Humanos, hoje celebrado! Há exatos 70 anos, pre-
cisamente em 10 de dezembro de 1948, a 3ª Assembleia Geral
das Nações Unidas, reunida extraordinariamente em Paris, pro-
mulgou a Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana,
que o Brasil subscreveu, a proclamar, já em seu preâmbulo, que
o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da
família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui
o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. Tam-
bém neste ano de 2018 se comemoram os setenta anos da Decla-
ração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, aprovada
na IX Conferência Internacional Americana, em Bogotá, em abril
de 1948, documento revestido de inexcedível relevo no contexto
do sistema interamericano em que nos inserimos, a antecipar, de
modo significativo, em oito meses, a consagração, em nível glo-
bal, dos direitos humanos no âmbito das Nações Unidas. Nele
proclamou-se que todos os seres humanos nascem livres e iguais
em dignidade e direitos, sem distinção de raça, língua, crença,
origem nacional, orientação sexual, identidade de gênero ou
qualquer outra condição, porque, nunca nos esqueçamos, os di-
reitos fundamentais da pessoa humana, além de universais, são
essencialmente inexauríveis. Esses importantes estatutos das li-
berdades públicas reverberaram, em conjuntura histórica de tem-

164
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

pos especialmente sombrios, a repulsa à degradação da condição


humana, e às atrocidades que dela sempre decorrem, em respeito
à necessidade de fazer prevalecer a ideia essencial de que cada
indivíduo é detentor de igual dignidade e senhor de direitos e li-
berdades inalienáveis, entre os quais o direito à vida, o direito
à liberdade, o direito à segurança em sua projeção global, e o
direito a ter direitos. É o que solenemente estampa o Artigo 1º
da Declaração Universal das Nações Unidas: “Todas as pessoas
nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de
razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com
espírito de fraternidade”, ecoando o que reconheceu, com prima-
zia, a Declaração Americana de abril do mesmo ano de 1948. Em
país de tantas desigualdades, como o nosso, Senhoras e Senhores,
refletir a sobre as declarações de direitos não constitui mero exer-
cício teórico, mas necessidade inadiável que a todos se impõe,
governantes ou governados. Daí o significado ímpar desta data, o
Dia Mundial dos Direitos Humanos, e a ênfase que se deve atri-
buir ao que expressa também o Artigo II da Declaração das Na-
ções Unidas:“Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos
e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de
qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião
política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza,
nascimento, ou qualquer outra condição”. Nessa linha, enfatizo
que a democracia não se resume a escolhas periódicas, por voto
secreto e livre, de governantes. Democracia é, também, exercício
constante de diálogo e de tolerância, de mútua compreensão das
diferenças, de sopesamento pacífico de ideias distintas, até mes-
mo antagônicas, sem que a vontade da maioria, cuja legitimidade
não se contesta, busque suprimir ou abafar a opinião dos grupos
minoritários, muito menos tolher ou comprometer-lhes os direitos
constitucionalmente assegurados. Em uma democracia, Senhoras
e Senhores, maioria e minoria, como protagonistas relevantes do
processo decisório, hão de conviver sob a égide dos mecanismos
constitucionais destinados à promoção do amplo debate, sem pré-
compreensões estabelecidas, nos foros políticos e sociais adequa-
dos. Mais do que isso: a todos os cidadãos, sem qualquer exclu-
são, se assegura um núcleo essencial de direitos e garantias que
não podem ser transgredidos nem ignorados, pelas instâncias de
poder nem pelas instituições da sociedade civil, pelo simples fato
de não refletirem em dado momento histórico a vontade dos gru-
pos majoritários. Vale insistir, Senhoras e Senhores, na asserção
de que o princípio democrático, expressão vital de nossa crença
inabalável na autoridade da Constituição da República, reside não
só na observância incondicional da supremacia da ordem jurídica,
mas também no respeito às minorias, em especial àquelas estig-
matizadas pela situação de vulnerabilidade a que se acham injus-

165
Organizadora : Edelamare Melo

tamente expostas. Em uma república democrática, a Constituição


e as leis a todos irmanam, nivelam e igualam, com lapidarmente
observou João Barbalho, eminente Ministro do Supremo Tribunal
Federal e integrante do Congresso Constituinte de 1890/1891. Os
sistemas de governo constituem, sem dúvida, modelos em per-
manente evolução. As reformas políticas, por isso mesmo, hão
de ser implementadas sempre com o elevado propósito de aper-
feiçoamento das instituições da República, jamais com o intento
menor de inibir o dissenso ou excluir forças políticas com ideo-
logia diversa. A democracia, não nos esqueçamos, repele a noção
autoritária do pensamento único. É da essência mesma do regime
democrático a convivência de opostos, pois dessa pluralidade re-
sulta a realização de um dos princípios estruturantes do Estado
Democrático de Direito, como expressamente o proclama nossa
Constituição (art. 1º, V). 7. A necessidade de conferir garantia à
estabilidade desses direitos essenciais é, em país regido por uma
Constituição democrática, como a nossa, uma das funções mais
relevantes e irrenunciáveis do Poder Judiciário: o exercício da ju-
risdição das liberdades. Como diz o artigo VIII da Declaração
Universal de 1948: “Toda pessoa tem direito a receber dos tri-
bunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que
violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela
constituição ou pela lei” [...]3.

Como se vê, não por acaso, o discurso da Presidente do Tribunal Su-


perior Eleitoral se pautou na defesa das minorias e da repulsa ao pensamento
único, não por acaso...
É fato que o processo eleitoral que antecedeu à diplomação do presidente
eleito foi marcado pelo discurso de ódio, pela repulsa às minorias, por uma ideo-
logia carregada de racismo, homofobia, sexismo, e pela tentativa de imposição de
um pensamento único – que foi rechaçado com contundência pelo Supremo Tri-
bunal Federal por ocasião de ação estatal de tolhimento da liberdade de expressão
nas universidades4 - ; pela anunciada e prometida implementação de uma política

3
Discurso proferido pela Ministra Rosa Weber por ocasião da diplomação do Presidente eleito para exercer as
funções de chefe de governo e chefe de Estado da República Federativa do Brasil. Tribunal Superior Eleitoral,
10.12.2018.
4
Foi noticiado na imprensa, gerando comoção, o fato de que, na campanha eleitoral de 2018 para Presidência da Repúbli-
ca, universidades públicas de ao menos nove estados brasileiros foram alvos de operações autorizadas por juízes eleitorais
para averiguar denúncias de campanhas político-partidárias que estariam acontecendo dentro das universidades. O Minis-
tério Público Federal judicializou a questão e,em voto histórico, a Ministra Carmém Lúcia deferiu liminar, em 27.10.2018,
vedando tal prática abusiva. No despacho, a ministra também suspendeu os efeitos de decisões que determinaram o reco-
lhimento de documentos, a interrupção de aulas debates ou manifestações de professores e a alunos universitários.”(...)
para, ad referendum do Plenário deste Supremo Tribunal Federal, suspender os efeitos de atos judiciais ou administrativos,
emanado de autoridade pública que possibilite, determine ou promova o ingresso de agentes públicos em universidades
públicas e privadas, o recolhimento de documentos, a interrupção de aulas, debates ou manifestações de docentes e dis-

166
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

de armamento da sociedade civil aparelhada por uma “inovadora” política públi-


ca de segurança pública centrada no encarceramento, que a história já demons-
trou ser ineficiente para a contenção da violência, senão aparelhada de medidas
estruturais e estruturantes de acesso universal à uma educação de qualidade, à
saúde pública, à assistência, ao fomento ao emprego e renda, que não desleixam
da garantia dos direitos fundamentais sociais do trabalhador, hoje mitigados por
uma reforma trabalhista que se pretende aprofundar, e cujos resultados são a
redução dos níveis de emprego, que fez migrar, para a linha abaixo da pobreza,
o segmento social que se encontrava na linha da pobreza; pelo influxo para a
implementação de uma Escola sem partido, que foi rechaçada no Congresso na
sua atual composição, que nada mais é que uma escola de partido que rechaça
a implementação de uma cultura de paz apoiada no respeito à diferença, pilar de
uma convivência social pacífica e, que, para inibir todas as formas de preconceito,
racismo, intolerância e discriminação, perpassa pelo conhecimento da diversida-
de inerente à sociedade.
Este quadro parece ser agravado quando a futura ministra do “Ministério da
Família, Cidadania e Direitos Humanos” propala o discurso de que a salvação da
nação está na igreja...isto em um Estado Democrático e de Direito que se afirma
laico, até que ocorra uma ruptura com a ordem jurídico-constitucional em vigor.
Assim, ontem, como hoje, para além de discussões acadêmicas sobre a
natureza e o fundamento dos direitos humanos o problema que, desde sempre,
inquieta e angustia, diz respeito à sua eficácia e efetividade, ao modo mais se-
guro para garanti-los e evitar que sejam violados sem solução de continuida-
de, notadamente se consideramos nosso ambiente político, desde algum tem-
po marcado pela fragilidade e pela ameaça de fortalecimento de discursos que
defendem a restrição de direitos, supostamente em favor de uma questionável
“maioria”, que, na realidade, representa algo em torno de 25% da população
brasileira, se consideramos que o presidente eleito contou com cerca de 57
milhões de voto e que somos algo em torno – para mais ou para menos - 220
milhões de brasileiros diversos e diferentes em sua cor, raça, etnia, gênero,
orientação sexual, identidade de gênero, orientação política e religiosa, con-
dição econômico-social, para os quais o presidente eleito deverá governar,
como anunciou por ocasião de sua diplomação. Oxalá assim seja!

centes universitários, a atividade disciplinar docente e discente e a coleta irregular de depoimentos desses cidadãos pela
prática de manifestação livre de ideias e divulgação do pensamento nos ambientes universitários ou em equipamentos sob
a administração de universidades públicas e privadas e serventes a seus fins e desempenhos (...)”, escreveu a ministra.
Posteriormente, em 31.10.2018, o Supremo Tribunal Federal confirmou, à unanimidade a ordem liminar. Disponível em:
https://g1.globo.com/politica/noticia/2018/10/31/maioria-do-stf-confirma-decisao-que-suspendeu-acoes-dentro-de-uni-
versidades.ghtml. Acesso em 10.12.2018

167
Organizadora : Edelamare Melo

Portanto, hoje, mais do que nunca, o desafio a enfrentar é buscar formas


alternativas e idôneas para garantir a efetividade dos direitos humanos, que
seguem sendo continuamente violados, como ocorre no Brasil, onde, no Esta-
do do Rio de Janeiro, no ano de 2017, foram registradas 431 vítimas de LGB-
Tfobia5 e, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), em relatório
divulgado pela Anistia Internacional, 62 ativistas dos direitos humanos foram
assassinados no Brasil6. Um Estado no qual, segundo uma pesquisa do Instituto
Ipsos, realizada no começo de abril de 2018, 66% dos brasileiros acreditam que
os direitos humanos protegem mais os bandidos do que as vítimas, percepção
que, na região Norte, alcança 79%; e, que, 54% concordam com a frase “os
direitos humanos não defendem pessoas como eu”7.
Mas não só: Assistimos com uma inércia pouco justificável dos poderes
públicos, e com uma sociedade anestesiada pelo discurso nacionalista, a
ataques xenofóbicos contra os imigrantes venezuelanos praticados por bra-
sileiros principalmente nas cidades fronteiriças. Prática xenófoba que possui
“raízes profundas no profundas no discurso hegemônico de seguranca na-
cional e na falta de política migratória no acolhimento desses indivíduos”
(Mello, 2018, p.243)8.
Este o contexto no qual se impõe a pergunte: O que dizer da garantia
de direitos humanos em um pais onde as mulheres negras continuam sendo a
maioria das vítimas da violência doméstica e obstétrica e da mortalidade ma-
terna? Onde, também, a maioria da população carcerária é negra e feminina.
Onde estas mesmas mulheres assistem à morte violenta de seus filhos, muitas
vezes pela ponta da bala de um seu igual negro, mas integrante do corpo de
segurança pública do estado: é o corpo negro matando o corpo negro.
Balas que são deflagradas na eterna luta contra o tráfico, mas que ceifa,
em grande medida, vítimas inocentes: jovens corpos negros do sexo masculi-
no. Ou seja, desigualdades educacionais, a insegurança no mundo do trabalho
e a violência afetam a juventude de maneira mais acentuada, como explica
a antropóloga Regina Novaes (2018)9. Para ela, “a construção da juventude

5
Universa: Rio registra 431 vítimas de LGBTfobia no estado em 2017. Disponível em: https://universa.uol.com.br/
noticias/redacao/2018/12/11/rio-registra-431-vitimas-de-lgbtfobia-no-estado-em-2017.htm. Acesso em 10.12.2018
6
Carta Capital. Como o Brasil lida com os Direitos Humanos. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/
sociedade/como-o-brasil-lida-com-os-direitos-humanos. Acesso, 11.12.2018
7
Idem
8
MELLO, Bruna Peneluppi. Os limites das fronteiras in: Direitos Humanos no Brasil 2018. Relatório da Rede
Social de Justiça e Direitos Humanos. Organização STEFANO, Daniela e MENDONÇA, Maria Luisa. 1ª Edição.
São Paulo: Outras Expressões, 2018, p.
9
NOVAES, Regina. Jovens como sujeitos de direitos?. In: Direitos Humanos no Brasil 2018. Relatório da Rede
Social de Justiça e Direitos Humanos [...]

168
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

como um ‘sujeito de direitos’ se deu em um momento histórico em que as


noções de direitos de cidadania e direitos humanos já não eram mais conside-
radas como pertencentes a áreas claramente distintas”.
Isto sem falar do significativo, crescente e assustador, aumento da vio-
lência sofrida pelos travestis e transexuais negras que vivenciam múltiplas
formas de discriminação. Como observa o psicólogo Richarlls Martins, da
Rede Brasileira de População e Desenvolvimento, e autor do artigo Entre
normas e práticas: panorama dos direitos da população LGBTI10.
Se por um lado apresentamos um positivo arcabouço legal de
princípios na garantia de direitos pautado no reconhecimento
das iniquidades que constituem a sociedade brasileira, por ou-
tro, há um abismo na tradução destes pilares em escopo legal e
na institucionalização de políticas publicas.

Ou seja, não há como negar que, no curso de uma trajetória constitucional


que, em 2018, completou 30 anos, não consolidamos direitos fundamentais. Tal
e como no período que lhe antecedeu - um militarismo marcado por um regime
ditatorial, e, com antecedência a este, em um salto histórico, o regime escrava-
gista-, temos que, a evolução dos direitos humanos no Brasil é lenta e cheia de
percalços das mais diversas naturezas, sendo certo que as vítimas de sua violação
seguem sendo os integrantes dos grupos em situação de vulnerabilidade social.
A raiz dessa escalada de negação de direitos humanos aos grupos vulne-
ráveis- desde perspectiva de uma abordagem qualitativa, não quantitativa- é,
sem sombra de dúvidas, o preconceito, o racismo e a intolerância, que, na
atualidade, saíram fortalecidos em razão do discurso sectário que se fez pre-
sente na campanha presidencial ao governo brasileiro.
Portanto, no que se refere aos direitos humanos, não é demais afirmar que,
nesta escalada de negação de direitos, ele passou a ser um problema para ele
mesmo. É dizer, sua existência como marco limitador da atuação estatal na esfera
juridicamente protegida do cidadão, ou conjunto de cidadãos, passou a ser um
problema para quem deveria garanti-los de forma incondicional: o Estado.
Lurdes Bandeira e Anália Soria Batista (2002) no atualíssimo ensaio
sobre Preconceito e Discriminação como formas de violência observam que:
A sensibilidade cada vez maior de cientistas sociais para com a com-
preensão da multiplicidade na unidade, isto é, “das múltiplas faces do
povo que é um”, e especificamente com a visibilidade da violência nas

10
In: Direitos Humanos no Brasil 2018. Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos […]

169
Organizadora : Edelamare Melo

diversas relações sociais, associou-se à proliferação de movimentos


sociais de afirmação identitária, em sociedades acostumadas a silen-
ciar as diferenças, os particularismos e as singularidades, até então
vividos sob intensas formas de discriminação. Tais movimentos reve-
laram o início de uma nova fase de reivindicações sociais expressas
nas demandas dos direitos sócio-culturais pelo respeito à diferença e à
alteridade, como partes constitutivas dos direitos humanos, bem como
da reflexão e do debate no campo das ciências sociais. Diversas mani-
festações de afirmações identitárias, declarando o orgulho de ser ne-
gro, de ser homossexual, de ser mulher, de ser indígena, entre outras,
denunciavam a existência de preconceito, discriminação e exclusão
nas várias esferas da sociedade e preencheram as agendas da refle-
xões sócio-antropológicas. Marchas e declarações colocavam a nú a
presença inquietante da violência nas relações sociais, como também
reações se manifestavam contra os sujeitos-objetos de violência. De
fato, os diversos movimentos tentavam enfrentar as atribuições identi-
tárias negativas, opondo, ao sentimento de vergonha e do silêncio que
tinha sido construído através de sociabilidades baseadas na negação
da alteridade, o sentimento de orgulho. O sentimento de vergonha que
se desejava combater, por ser homossexual, negro, mulher, velho, in-
dígena, deficiente, pobre, entre outros, revelava a luta contra a atribui-
ção social de um valor negativo à diferença do outro: o preconceito.

Preconceito que é fruto do sistema de valores e crenças do indivíduo e


que informa todo o seu agir, seja para afirmar direitos, seja para negá-los pelo
só fato de existir entre ele e o outro a diferença. Desta realidade o direito se
alimenta, produzindo e reproduzindo um sistema de valores que, não raras
vezes, obsta a realização concreta dos direitos fundamentais à igualdade e à
liberdade porque fruto da ação daqueles que, dizendo-se representar a maio-
ria, consolida um sistema normativo que, ainda que não declaradamente ex-
cludente, propicia a negação de direitos e a discriminação negativa.
É dizer instrumentaliza-se o Direito, na sua produção e na sua aplicação
para favorecer determinados grupos em detrimento de outros, que são vítimas
de preconceito e discriminação em razão de sua cor, raça, credo/crença religiosa,
gênero, orientação sexual, identidade de gênero, condição econômica ou social.
Como bem dizia, com muita ênfase, meu Mestre Calmon de Passos, o
Direito é um objeto cultural, é algo construído pelo homem, não lhe é dado
pela natureza, embora esta natureza imprima sua nota distintiva específica
naquele ser que produz a norma jurídica: o ser humano com seu contexto e
historicidade. É este ser que, sendo criação da natureza, portanto produto de
um ambiente naturalmente diverso, encontra descomunal dificuldade em com
ela –a diversidade- viver e conviver.

170
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

É dizer, se, segundo o paradigma liberal, enquanto seres criados somos


iguais e livres, enquanto seres viventes é-nos difícil aceitar este princípio não
superado por qualquer outra corrente ideológica.
Igualdade e liberdade que, no plano da sua concretude normativa, se faz
realidade quando se afirma a necessidade de tratar os iguais na medida da sua
igualdade, melhor dizendo da sua desigualdade, porque esta é a realidade da
vida humana, seja nas suas inter-relações subjetivas com seus pares, seja com
os demais seres da natureza com os quais o homem se põe em relação em um
primeiro momento para garantir sua sobrevivência.
A diferença, que está presente em todos os planos e altiplanos da exis-
tência humana é fato....mas, porque a dificuldade em aceitar a nossa intrínseca
diferença, aquele traço distintivo específico que nos faz únicos, seja pela nossa
ancestralidade, gênero, orientação sexual, idade, raça, cor, credo, condição físi-
ca, cultural, social e econômica, seja por nossos sistemas de crenças e valores;
seja por nosso especial modo de ser e estar no mundo, na nossa solidão de ser
individual ou na nossa condição de ser social, dentre muitos outros fatores que
nos torna diferentes uns dos outros, salvo quanto ao fato de sermos humanos?
Creio que o pluralismo explica esta realidade e, por isso, é que, neste
viés a um só tempo normativo, sociológico e filosófico, que devemos en-
frentar o tema sem perder de vista que, sim, o modo de ser preconceituoso
e discriminatório conforme avança na existência e experiência humana, se
torna uma droga que como toda e qualquer substância alucinógena tem a
potencialidade de gerar dependência no nosso modo de ser e estar no mundo.
Como no vício da droga, a interiorização e a apropriação de determina-
do valor que afirmo como verdade incontestável e que serve de fundamento
“legitimante” – a superioridade étnico-racial, religiosa, de gênero, e outras
tantas- do preconceito ou da discriminação, cega, inebria, tira o foco, vicia,
nos faz presumir sermos detentores de sobrenatural condição, força e verda-
de que nos empodera, a tal ponto, que vemos no outro um ser diferente a ser
submetido, subjugado, inferiorizado, a ser escravizado e reduzido na sua con-
dição humana.... Assim, preconceito, racismo, intolerância e discriminação
geram um êxtase, libera adrenalina, endorfina a tal ponto que crescemos dian-
te do outro a ponto de – senão contidos- nos conduzir ao que vimos à época
de Hitler – para falar de fato mais recente- e ao que vemos hoje na prática de
grupos fundamentalistas e sectários de qualquer natureza....
Como observa Maria Auxiliadora Minahim (2018):
Em Roma, já se considerava que as ofensas à dignidade humana
atingiam a personalidade em seu tríplice aspecto: corpo, condi-

171
Organizadora : Edelamare Melo

ção jurídica e honra. A preocupação antecipada dos romanos


não impediu o mundo de testemunhar episódios escabrosos e
uma prática cotidiana de desprezo pelas pessoas em razão da
diferença de pele, religião ou origem. É possível afirmar que o
racismo é uma ideologia que está sempre ligada ao colonialis-
mo, à escravidão, ao totalitarismo político, aos genocídios, aos
crimes nazistas e aos regimes do apartheid.

Assim, a guerra de hoje, como a maioria das guerras de ontem, não é


movida por outra coisa que não a dificuldade de aceitar e respeitar a diferen-
ça.... A droga do preconceito, do racismo, da intolerância e da discriminação
faz mal...dá ressaca, a ressaca da culpa...isto se, algum dia, tomamos consci-
ência do vício que orienta nosso pensar e agir...
Porque é assim é imperioso refletir sobre como este modo de ser e estar
preconceituoso, racista, intolerante e discriminatório se imiscui na produção
normativa estatal e na gestão e aplicação do direito posto e pressuposto.
Esta reflexão se faz impositiva porque, como sustento, de fato e de direito,
temos uma ordem jurídica que se afirma orientada pelo princípio democrático,
mas, que, em realidade, traduz-se em um conglomerado e emaranhado de normas
simbólicas e aplacatórias de reclamos sociais, políticos e culturais por igualda-
de material, melhor dizendo, pelo direito a receber tratamento igual à hora dos
processos de concepção, criação e aplicação do direito por parte de todos – aqui
incluído o Estado, seus órgãos e agentes; e a sociedade civil organizada.
Neste sentido é a literalidade dos postulados dos artigos 5º da Cons-
tituição da “República”: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segu-
rança e à propriedade [...]”, e do art. 3º, IV que estabelece como objetivo da
República “promover o bem de todos, sem preconceitos, de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
Mas assim não é, como demonstram as estatísticas e os números que são
utilizados e instrumentalizados por muitos para falar de uma realidade que não
se quer ver e tão pouco enfrentar para transformá-la: a realidade do preconcei-
to, do racismo, da intolerância, da discriminação e de outras drogas afins...
Não é assim, notadamente no campo da aplicação do direito, porque
a ordem jurídica posta entranha o preconceito e a discriminação e gera um
sistema que a garante por meio de instrumentos e mecanismos que asseguram
a ineficácia e ausência de efetividade normativa de normas que, em tese, pre-
tendiam concretizar o ideal da igualdade, da não discriminação.

172
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

É sintomático que, no campo do preconceito, do racismo, da intolerância


e da discriminação negativa, cuide-se dos chamados “crimes de ódio”. É dizer,
prática de conduta motivada por preconceito, racismo, intolerância e discrimina-
ção, que, ao fim e ao cabo, criminaliza um sentimento: o ódio contra um seu igual
em direitos, deveres e liberdades, que é o que está ínsito no racismo, na xeno-
fobia, na misoginia, na homofobia e em outras tantas formas de discriminação.
Sim! Temos um sistema jurídico garantístico da igualdade e com vocação
para a prevenção e repressão às formas ilícitas de discriminação. Mas ele não
possui, de fato, a efetividade que se propõe, conclusão a que se chega da simples
leitura de algumas normas que integram o Estatuto (jurídico) da Igualdade no Es-
tado brasileiro. Vejamos: - Lei 7.853/89, de 24 de outubro de 1989. Lei anti-dis-
criminação contra pessoas com deficiência. Propugna por igualdade de tratamento,
justiça social, respeito e apoio às pessoas portadoras de deficiências, na sua inte-
gração social; - Lei 9.029/95 de 13 de abril de 1995; Lei anti-discriminação contra
origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, idade e sexo. Pretende coibir a
exigência de atestados de gravidez, esterilização e outras práticas discriminató-
rias para efeito de admissão ou permanência da relação jurídica de trabalho; - Lei
7.716/89; Lei anti-discriminação contra raça e cor, que objetiva punir crimes de
discriminação e preconceito de raça, cor, etnia, religião, ou procedência nacional.
Temos ainda, e não podemos olvidar, dos sistemas garantísticos da in-
fância e da juventude, e dos idosos, sem falar daquelas que pretendem assegu-
rar igualdade de tratamento independentemente de gênero/ orientação sexual/
identidade de gênero.
Neste último rincão do preconceito e da discriminação estamos a passos
lentos no que toca à criminalização de condutas homofóbicas destacando-se
apenas a Lei Estadual 10.948/2001, do Estado de São Paulo, que estabele-
ceu diferentes formas de punição (de natureza não penal) a diversas atitudes
discriminatórias relacionadas aos grupos de pessoas que são perseguidas por
homofóbicos e intolerantes. No mais encontra-se em tramitação há cerca de
seis anos no Congresso Nacional o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 122/2006
que tem como proposta a criminalização da discriminação gerada por diferen-
tes identidades de gênero e orientação sexual.
Ainda a título de simples reflexão sobre a eficácia e efetividade das
normas que tentam conter este sentimento de ódio – portanto algo que se in-
sere no campo da subjetividade do sujeito, dos valores que ele elege como
conducentes do seu modo de agir ou não agir- motivado pelo preconceito e
pela discriminação trazemos a lume uma norma, que, da sua leitura, emerge
sua natureza simbólica e aplacatória de um sentimento de injustiça de grupos

173
Organizadora : Edelamare Melo

historicamente discriminados: os negros que passaram a receber este rótulo


na época escravagista, porque, como ouvi recentemente, na África não exis-
tiam negros, existiam etnias (fon, yorubá, hausssá, dentre outras tantas que
povoam o continente, com sua história, cultura e identidades próprias).
Falamos do Estatuto da Igualdade Racial - Lei Nº 12.288, de 20 de Ju-
lho de 2010, que tem por finalidade normativa “garantir à população negra a
efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos indivi-
duais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de
intolerância étnica” (art.1º). O fundamento de validade de referido diploma
legal é o artigo 5º, XLII da Constituição Federal de 198811 segundo o qual “A
prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena
de reclusão, nos termos da lei”.
Com tal dispositivo o legislador constituinte impôs ao legislador ordi-
nário a criação de leis que punissem as ações que atentassem contra todas as
formas de discriminação racial.
Sobre este impulso normativo determinado pelo Constituinte, observa
Maria Auxiliadora Minahim (2018) que
Trata-se mandado de criminalização o que indica a reprovação pela
ordem jurídica nacional de condutas atentatórias à igualdade entre
as pessoas. A partir de então, houve uma preocupação crescente em
criminalizar as condutas discriminatórias. Esse fato pode ser visto
de três formas, de um lado como reflexo do repúdio da sociedade
brasileira à distinção entre seres humanos e à consideração do outro
ser inferior por ser diferente em suas características. De outro lado,
a farta edição de leis pode também ser interpretada como ineficácia
do direito para atingir os fins propostos na norma ou como incom-
petência do Estado brasileiro para fazer valer as proibições. Pode-se
ainda interpretar o fato, como o uso puramente simbólico da lei para
aplacar as aspirações de alguns grupos, sabendo-se de antemão de
sua inefetividade para mudar o contexto social.

Importante registrar que a Lei 7.716 foi editada sob o influxo da Con-
venção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discrimina-
ção Racial, de 1963, que conclamou aos países a tomarem:
“todas as medidas necessárias para eliminar rapidamente a dis-
criminação racial em todas as suas formas e manifestações, e a
prevenir e combater doutrinas e práticas racistas e construir uma

11
BRASIL. Presidência da República, Casa Civil, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. www.
planalto.gov.br

174
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

comunidade internacional livre de todas as formas de segrega-


ção racial e discriminação racial12”. (Adotada pela Resolução n.º
2.106-A da, em 21 de dezembro de 1965).

Referida lei define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de


cor. Posteriormente, foram introduzidas alterações pelas Leis nº 9.459 de 13
de maio de 1997 e 12.288 de 201013, esta conhecida como como o Estatuto da
Igualdade Racial. Ambas ampliaram o rol dos crimes constantes da Lei 7.716
e aumentaram a proteção contra a discriminação racial e religiosa.
A Lei 9459/97 modifica o artigo 20 da Lei 7716 para nela incluir a ex-
pressão “discriminação, etnia, religião ou procedência nacional‎” e acrescenta
parágrafo ao art. 140 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Eis
a redação atual do artigo-Lei que dispõe sobre os crimes de racismo:
Art. 1º: Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes
de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou
procedência nacional”.

Sobre a previsão do preconceito como crime merece referência a crítica


trazida por Maria Auxiliadora Minahim (2018), a seguir transcrita:
Como se vê, o legislador fala em preconceito e discriminação,
de forma que é importante distinguir uma expressão de outra. O
preconceito é um sentimento, ideia, opinião ou sentimento des-
favorável formado sem conhecimento abalizado, ponderação ou
razão. O preconceito racial consiste em sentimento, assimilado de
forma acrítica em razão de desvios culturais ou “da generalização
apressada ou imposta pelo meio, conduzindo geralmente à intole-
rância.”14 É possível afirmar que o preconceito não pode ser objeto
de Lei, na medida em que esta não tem o poder, nem aptidão para
mudar sentimentos, ou questões que dizem respeito à subjetivida-
de da pessoa, a menos que estes se revelem em atos exteriores. O
que a lei pode determinar é que alguém aja como se não tivesse
tais afetos. A discriminação racial é o preconceito determinando
atitudes, políticas, restringindo oportunidades e direitos no conví-
vio social. A discriminação se concretiza no ato de estabelecer di-
ferenças, de tratar de modo desigual às pessoas, em razão das suas
características raciais, religiosas, atingindo o princípio constitu-

12
UNESCO. Convenção da ONU sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial. Disponível em:
unesdoc.unesco.org/images/0013/001393/139390por.pdf
13
Brasil, Presidência da República, Casa Civil, Lei 12.288/2010. Disponível em: www.planalto.gov.br
14
ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Breves Considerações sobre Racismo e Intolerância Racial.Disponível em :
ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Breves Considerações sobre Racismo e Intolerância Racial. http://www.revista-
persona.com.ar/Persona70/70Andreucci.htm.

175
Organizadora : Edelamare Melo

cional da igualdade. Há várias formas descritas na lei de manifes-


tar racismo ou discriminação. É importante destacar que algumas
dessas condutas podem constituir outro crime ou, até mesmo, ser
um indiferente penal. Para que sejam consideradas como um dos
tipos da Lei 7716 e se a motivação for distinta daquela descrita nos
artigos da lei, ou seja, se a ação não for praticada por discrimina-
ção ou preconceito, pode não haver crime de racismo. (...) O bem
jurídico, o valor tutelado na Lei é o direito à dignidade humana
(art. 1º, III) e o direito à igualdade (art. 5º), ambos consignados na
Constituição de 1988.

Referida normatividade, fechando seu ciclo conceitual, procede à defi-


nição do que entende por discriminação racial, desigualdade racial e desigual-
dade de gênero e raça, e o faz nos seguintes termos:
I - discriminação racial ou étnico-racial: toda distinção, exclu-
são, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência
ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou
restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de
condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos
campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer ou-
tro campo da vida pública ou privada;
II - desigualdade racial: toda situação injustificada de diferencia-
ção de acesso e fruição de bens, serviços e oportunidades, nas
esferas pública e privada, em virtude de raça, cor, descendência
ou origem nacional ou étnica;
III - desigualdade de gênero e raça: assimetria existente no âm-
bito da sociedade que acentua a distância social entre mulheres
negras e os demais segmentos sociais;

A sua vez, o Código Penal (art.208) cuida dos crimes contra o sentimento
religioso concretizando, por este meio, o disposto no artigo, 5º, VI da Consti-
tuição da República, segundo o qual “é inviolável a liberdade de consciência
religiosa e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e
garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”.
Ressalte-se, ainda, neste campo da intolerância (melhor dito, desrespei-
to religioso), que a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, alterada pela Lei nº
9.459, de 15 de maio de 1997, considera crime a prática de discriminação ou
preconceito contra religiões. Eis as condutas que, neste contexto, são tipifica-
das como crime de preconceito ou discriminação religiosa:
“Impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a
qualquer cargo da Administração Direta ou Indireta, bem como das

176
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

concessionárias de serviços públicos” (art.3º) ; “Negar ou obstar


emprego em empresa privada” (ar.4º); “Recusar ou impedir aces-
so a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou
receber cliente ou comprador” (art. 5º); “Recusar, negar ou impe-
dir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino
público ou privado de qualquer grau” (art. 6º); “Impedir o acesso
ou recusar hospedagem em hotel, pensão, estalagem, ou qualquer
estabelecimento similar” (art. 7º); “Impedir o acesso ou recusar
atendimento em restaurantes, bares, confeitarias, ou locais seme-
lhantes abertos ao público” (art. 8º); “Impedir o acesso ou recusar
atendimento em estabelecimentos esportivos, casas de diversões,
ou clubes sociais abertos ao público” (art. 9º); “Impedir o aces-
so ou recusar atendimento em salões de cabeleireiros, barbearias,
termas ou casas de massagem ou estabelecimento com as mesmas
finalidades” ( art. 10); “Impedir o acesso às entradas sociais em
edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou escada de acesso
aos mesmos” (art. 11) ; “Impedir o acesso ou uso de transportes
públicos, como aviões, navios barcas, barcos, ônibus, trens, metrô
ou qualquer outro meio de transporte concedido” (art. 12); “Im-
pedir ou obstar o acesso de alguém ao serviço em qualquer ramo
das Forças Armadas” (art. 13); “Impedir ou obstar, por qualquer
meio ou forma, o casamento ou convivência familiar e social” (art.
14); “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de
raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (art.20); e; “Fa-
bricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas,
ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica
ou gamada, para fins de divulgação do nazismo” (art. 20,§ 1º).

A simples leitura dos enunciados normativos dá conta da realidade viven-


ciada por aqueles que professam uma fé que não se insere no contexto daquelas
professadas por grupos religiosos sectários e fundamentalistas que tentam impri-
mir um pensamento único de religiosidade, de fé, por meio da violência física,
se for necessário, como temos visto com as ações terroristas do Estado Islâmico,
mas, também, aqui, com as violências perpetradas contra templos e religiosos
de matriz africana, e até mesmo católicos, por um suposto “Exército de Cristo”,
formado por evangélicos sectaristas e fundamentalistas, em sua maioria egressos
do sistema prisional onde são doutrinados e convertidos à fé “cristã”.
Não obstante esta avalanche de normas, em grande parte destituídas de
efetividade real tendo em vista a finalidade que as justificaram: atender recla-
mos de proteção por parte de grupos vulneráveis e minorias étnico-raciais e
religiosas - no contexto da Década Internacional de Afrodescendentes (2015-
2024), a ONU destaca as manifestações brasileiras de intolerância religiosa
e alerta para a grave violação de direitos fundamentais de que são vítimas os

177
Organizadora : Edelamare Melo

afro-religiosos e seus templos religiosos em razão de práticas de racismo reli-


gioso, inclusive no mundo do trabalho, motivo pelo qual, durante a apresen-
tação de seu relatório anual sobre a liberdade de religião ou crença, o relator
especial da Organização das Nações Unidas, Heiner Bielefeldt, lembrou que
a intolerância religiosa não se origina diretamente das próprias religiões, isto
porque “Os seres humanos são os únicos, em última análise, responsáveis
pelas interpretações de mente aberta ou intolerantes”15.
Na oportunidade lembrou que, em diversos países, grupos não estatais
também promovem a intolerância religiosa, alertando que em alguns casos
uma combinação das duas situações pode ser observada.
Segundo dados da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República, no Brasil, nos últimos cinco anos, a intolerância religiosa com
práticas de preconceito, discriminação e assédio, que tipificam racismo reli-
gioso, cresceu 3.706%, sendo seu principal alvo as religiões de matriz africa-
na e, portanto, os afro-religiosos.
Na imprensa especializada podem ser encontrados relatos e notícias que de-
monstram que os dados não se apartam da realidade cotidiana dos afro-religiosos,
como se vê das denúncias publicadas no site “dossiê da intolerância religiosa”16.
Este quadro se faz ainda mais grave se a vítima desta forma de precon-
ceito e de discriminação é a mulher negra. Pior se torna o quadro se agrega-
mos ao racismo e à intolerância religiosa o fator orientação sexual, identidade
de gênero e condição econômica-social... Diferente não é a situação das pes-
soas com deficiência, das crianças e adolescentes e dos idosos de raça negra,
que integram a camada social denominada de baixa renda, estes em razão de
sua natural condição de vulnerabilidade.
É dizer ser pobre, negro e afro-religioso no Brasil – e mais recentemen-
te, em razão de imigração forçada decorrente de conflitos armados, ser negro
muçulmano e/ou refugiado, que também é vítima de práticas xenofóbicas- é
razão bastante em si para justificar as práticas preconceituosas e discrimi-
natórias que, ainda quando constituam crime, são elididas e reduzidas pelos
aplicadores do direito- com especial destaque para os órgãos garantísticos dos
direitos fundamentais, como são os aparatos policiais, ministeriais e jurisdi-
cionais- a meros conflitos interpessoais de baixa densidade, o que prova a
velada rejeição social a estes grupos.

15
Intolerância religiosa é incentivada por governos e favorece crimes de ódio, alerta relator da ONU. In: ONU-
BR- Nações Unidas Brasil, 28.10.2016. Disponível em: https://nacoesunidas.org/intolerancia-religiosa-e-incentiva-
da-por-governos-e-favorece-crimes-de-odio-alerta-relator-da-onu/ . Acesso em 16.5.2017
16
Dossiê da intolerância religiosa. Disponível em : http://intoleranciareligiosadossie.blogspot.com.br/

178
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Ao fim e ao cabo, temos a prática diuturna de condutas tipificadas


como crime que são esvaziadas na sua aplicação pelos operadores do direito
em razão dos valores que informam o seu agir – como posso eu que professo
determinado valor aplicar uma norma que, para mim, o nega? .... Melhor
então fechar os olhos e, na prática, descriminalizar a conduta qualificando-a
como comportamento, que, quando muito, gera, para alguns, um desconforto,
uma mínima censura moral e/ou ética...
Assim é com a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, alterada pela Lei nº
9.459, de 15 de maio de 1997 - Estatuto da Igualdade Racial- ; com o Estatuto
da Criança e do Adolescente; com o Estatuto do Idoso; com a Lei 11.340/2006
– Lei Maria da Penha, e, porque não dizer, com o Código Penal, que, muitas
vezes, é utilizado para afastar a incidência normativa específica e mais gravosa,
e aplicar a norma geral mais branda. Caso típico é a transmutação do crime de
racismo em mera prática injuriosa não qualificada, quando muito.
Com este proceder se nega efetividade real às normas que tentam coibir
práticas preconceituosas e discriminatórias que, em verdade, atentam contra
a dignidade da pessoa humana, e, por esta razão, foram elevadas à categoria
de crime com penas mais gravosas para garantir uma convivência social mi-
nimamente harmoniosa entre os diferentes....
Não tem sido assim. No Brasil é inegável o fato de que nossa sociedade
é racista e preconceituosa e, portanto, fomentadora de conflitos inter-raciais,
de gênero, orientação sexual e religiosos. Contudo, esta realidade é invisibi-
lizada – notadamente pelos meios de comunicação de massa- para garantir
uma salvaguarda para uma pseudodemocracia racial, religiosa e de gênero,
que dados de organizações internacionais desmentem.
Como é de conhecimento, os altos índices de criminalidade e de crimi-
nalização afetam os negros, em especial os negros do sexo masculino que
pontificam em primeiro lugar nas estatísticas de mortes violentas, em sua
maior parte em razão do recrudescimento do tráfico de drogas, em especial
nos municípios da zona rural e nas favelas e guetos das nossas metrópoles
vitimizando, em sua maioria, jovens adolescentes. Este só fato é suficiente
para pré-conceber o negro como autor de infração penal.
Como destacam Lurdes Bandeira e Anália Soria Batista (2002), neste tema
“[...]os aportes jurídicos contemplaram dois pressupostos: pri-
meiro, o de erradicar as diferenças, ou seja, visibilizar o valor de
ser igual, de ser o mesmo, diante da lei, da Justiça, do Estado, no
seio dos quais deve inscrever-se a pluralidade ou a tolerância ao
semelhante; segundo, o de cidadania, de ser reconhecido como

179
Organizadora : Edelamare Melo

cidadão, por si e diante de todos, pois pertencer a um grupo ou a


uma raça não pode ser objeto de julgamento ou discriminação. A
propósito, os judeus, no contexto da Antiguidade das tradições
ancestrais, separavam a humanidade em judeus e estrangeiros...
assim como os gregos dividiam o mundo em gregos e bárbaros,
escreveu Hannah Arendt. Hoje ainda se divide a população bra-
sileira em negros e brancos, ricos e pobres, mulheres e homens,
etc., não como signo do direito à diferença, mas como signo de
suspeição. Tais divisões remetem a uma violência moral exerci-
da nem sempre de maneira explicita ou visível na relação com o
outro, muitas vezes recoberta por boas intenções. A diversidade
do real - as diferenças, objeto de diabolização, seja por exces-
so, seja por ignorância- na maioria das vezes convive à margem
dos procedimentos jurídico-legais, pois essas diferenças não são
percebidas como relações discriminatórias pela lei, que exige
não apenas evidências, mas também a presença da prova.

Mas não apenas o ser humano de raça negra e do sexo masculino é obje-
to de preconceito, discriminação e estigmatização. A mulher, os afro-religio-
sos, as pessoas com deficiência, as crianças e idosos, os integrantes do grupo
LGBTQI+, os nordestinos, os negros refugiados, também o são.
A mulher é tida como fomentadora da prática de crimes sexuais pelo só
fato de ser mulher que possui uma especial leveza de ser que a sensualiza; os inte-
grantes do Grupo LGBTQI+ pelo só fato de sua orientação/ identidade sexual ser
tida por muitos, em razão de credo religioso, como doentes que precisam de cura.
Estes são estigmatizados como pessoas promiscuas que de tudo fazem para garan-
tir um segundo de prazer...; os afro-religiosos que, por sua fé monoteísta ancestral
de culto aos Orixás, são tidos como tribais que cultuam forças demoníacas e, por
isso, atentam, com suas práticas litúrgicas, aos valores estabelecidos pelo influ-
xo do cristianismo na sua vertente sectária e fundamentalista capitaneada pelos
neopentecostais; as crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade pelo
só fato de estarem em contextos que a propicia; as pessoas com deficiência pela
sua vulnerabilidade que demanda quebra de barreiras físicas, sociais, e culturais,
e, muitas vezes, cuidados de terceiros para que lhes seja assegurada existência
digna, situação que também é compartilhada pelos idosos17.

17
Sobre estes temas são interessantes as discussões travadas no XXV CONGRESSO DO CONPEDI – CURITIBA, no
Grupo SOCIEDADE, CONFLITO E MOVIMENTOS SOCIAIS, com destaque para os seguintes trabalhos: “Violência
Institucionalizada: Os conflitos que permeiam a sociedade do Século XXI”, escrito por Albo Berro Rodrigues e Ivo dos
Santos Canabarro, que aborda a questão de violência religiosa no Brasil, através de uma análise histórica, demonstrando
a existência de preconceito étnico e violência existentes no Brasil; “Instrumentos para a captação de demandas sociais
e o exemplo das influências culturais nas políticas públicas voltadas para o grupo LGBT”, cujos autores Marco Antonio
Turatti Junior e Felipe Ferreira Araújo, abordam a necessidade de articulações de ações governamentais que percebam os

180
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Note-se, que o preconceito e a discriminação ostensivas operam de forma


incomensuravelmente mais gravosa quando os integrantes dos grupos tradi-
cional e historicamente discriminados encontram-se em extratos econômicos-
sociais marcados pela vulnerabilidade, sendo certo que, fora deste ciclo – desta
gaiola dourada- , pessoas que ostentam a mesma condição que justifica o pre-
conceito e a discriminação, quando muito, são toleradas, isto porque o precon-
ceito segue presente de forma implícita e velada, como se constata, não raras
vezes, por meio de gracejos e insinuações de duvidoso bom gosto...
Enfim, seja como seja, o só fato de ser “diferente de mim” é o fator de-
terminante do preconceito e da discriminação, não para igualar em direitos e
liberdades, mas, sim, para inferiorizar em direitos e liberdades.
Vale, portanto, a regra protetiva dos meus iguais, a qual, por sua vez,
contamina todo o sistema de produção e aplicação do direito porque, não por
a caso, estes grupos porque tidos como minoritários – o que não é verdade
quando se fala dos negros e das mulheres – carecem de representatividade
política e institucional para fazer valer o seu direito à igualdade.
Portanto, porque inferiorizados em razão de sua raça, cor, gênero, religião,
orientação sexual, identidade de gênero, idade, condição física, ou condição econô-
mica e social, determinados grupos de pessoas são destinatários de um não-direito, de
uma justiça parcial representada pela minoria que se faz, em tese, maioria, fundamen-
talmente em razão da sua condição econômica-social que lhes propicia acesso a bens e
serviços aos quais a maioria inferiorizada por fatores vários não tem acesso, ou, quan-
do tem, este é obstacularizado por barreiras sociais, econômicas, culturais, religiosas,
de raça, cor, gênero, idade, orientação sexual, identidade de gênero, condição física.
Fato é que, com ou sem acesso, o que se lhes disponibiliza padece do
vício da falta de qualidade, como também é fato que as ditas minorias raciais,
religiosas, de orientação sexual ou condição física – para citar algumas – situ-
am-se dentro das maiorias étnicos-raciais e de gênero da população brasileira,
segundo censos oficiais a ela relativos.
Como se vê, o panorama é dantesco se trazemos o foco para a efetivi-
dade do sistema garantístico da igualdade e da liberdade... e, porque é assim,
esta é a questão que nos inquieta e que tentaremos responder à continuação.
Como afirmam os existencialistas o homem não é uma ilha, é ele e suas
circunstâncias, circunstâncias pessoais ligadas a seu pertencimento a deter-

problemas e demandas sociais, visando a melhoria da qualidade de vida dos grupos vulneráveis, neste caso voltadas ao
grupo LGBT; “Cristo gay crucificado: movimento LGBT, religião e liberdade de expressão”, de autoria de Ricardo Adria-
no Massara Brasileiro e Thiago Lopes Decat, que, sob a ótica da Teoria do Direito e perspectiva crítica da teoria liberal,
analisam dois casos recentes afetos às comunidades LGBT ocorridos no Brasil – em 2011 e 2015

181
Organizadora : Edelamare Melo

minados grupos sociais, culturais, políticos, econômicos, religiosos, dentre


muitos outros.
E, exatamente porque é assim, na sua atividade diária, no seu viver e
conviver, ele não se afasta de tudo o que determina a sua condição individual
e social. Esta condição que o distingue dos demais, por assim dizer, e sem
cunho pejorativo de qualquer natureza, impregna todo o seu agir, inclusive a
sua ação política de formulação, produção e aplicação do direito.
No campo do preconceito, do racismo, da intolerância e da discrimi-
nação, que estigmatizam certos e determinados grupos sociais, este modo de
ser e estar no mundo do indivíduo atua de forma mais incisiva, e, porque não
dizer, com força tal que afeta a realização concreta do princípio da igualdade.
Elegemos quem são nossos iguais e discriminamos aqueles que entendemos
não fazer parte do grupo, do coletivo dos nossos iguais.
Não há, neste campo, ou em qualquer campo da ação humana, a tão propa-
lada imparcialidade e neutralidade, tema que que foi objeto de nossa tese de dou-
torado sobre a neutralidade e independência dos entes reguladores (Melo, 2006).
Não somos neutros e imparciais, mesmo à hora de formular e aplicar o
direito.
Nossos conjuntos de valores informam o nosso agir, muitas vezes de forma
muito insidiosa. E, porque é assim, a nossa tendência natural é criar condições
para fazer valer nossos valores e nossas crenças, fazendo com que, não raras ve-
zes, nos apartemos do ideal de igualdade, da liberdade, do respeito.
Por tanto, é fato, que nosso sistema (pessoal) de valores afeta o nosso
agir porque está presente com muita força e energia no nosso inconsciente...
Neste campo é que se insere a importância exata – ou pelo menos próxima –
do pluralismo cultural.
A questão que se põe, portanto, é a seguinte: os fatores determinantes
de práticas discriminatórias e preconceituosas seriam fruto do pluralismo cul-
tural, que é acolhido no nosso sistema constitucional, notadamente em razão
da formação histórica da nação brasileira?
Como já afirmei o direito é objeto cultural, ocorre que não há uma
cultura, existem várias culturas porque somos fruto de várias culturas: a indí-
gena, a negra africana, a européia, a asiática, a judaíca - para citar apenas al-
gumas - , que, à sua vez, são produto de um complexo cultural que informam
seus sistemas de valores, os quais a ordem jurídica hierarquiza, ou melhor
dito, prioriza para garantir, pelo menos em tese, um sistema de convivência
harmônica. Valores fundamentais deste sistema são a liberdade e a igualdade,
o direito a vida e a uma existência digna, para simplificar.

182
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Sendo assim, como conciliar diversos sistemas de valores que infor-


mam culturas também diversas, cada qual com sua concepção de mundo, de
vida, de igualdade e de liberdade? O acolhimento do pluralismo cultural,
religioso, político foi a resposta encontrada por nossa Constituição, não para
fomentar conflitos, mas, sim, para promover o respeito entre diferentes de
modo a propiciar uma convivência pacífica. Portanto, embora o pluralismo
cultural responda à questão da diversidade, não é ele a causa do preconceito e
da discriminação. Estes são produto do agir humano.
A questão relativa à prevenção e repressão a formas negativas de dis-
criminação – porque todo preconceito é pré-conceito relativo a algo ou al-
guém que fundamenta referidas formas de discriminação- no aspecto que
reclama ação pública estatal para igualização de condições de vida digna com
grupos historicamente não-discriminados – portanto, inclusão sócio-política e
econômica- ganha especial relevo na atualidade brasileira, onde há um agra-
vamento de práticas ilícitas discriminatórias e em relação às quais as políticas
inclusivas e afirmativas não respondem a contento.
A pergunta é, este Estado brasileiro que agora aí está sob gestão de
grupos que orientam sua ação política por ideais liberais, enfrentará, de forma
efetiva e não simbólica, o problema, a grave chaga social, da discriminação
de grupos historicamente desfavorecidos por meio da formulação e imple-
mentação de políticas públicas que sirvam de antídoto à droga social do pre-
conceito, da intolerância, do racismo e da discriminação? É do seu interesse
promover ações afirmativas aparelhadas com medidas estruturais na educa-
ção, saúde, assistência, emprego e renda aptas a permitirem a inclusão social
e produtiva de grupos historicamente excluídos deste acesso?
Para responder a esta questão é necessário termos compreensão do sen-
tido e significado da liberdade e da igualdade na República Federativa do
Brasil, que se afirma um estado democrático e de direito. Isto porque, só a
partir desta compreensão é que poderemos desenhar o que podemos esperar
– pelo menos em tese- em tema de superação das barreirais sociais, culturais
e econômicas que obstam a migração da desigualdade para a igualdade de
modo a propiciar a realização concreta da igualdade material tratando os desi-
guais na medida de sua desigualdade. No caso os grupos menos favorecidos.
Antes, porém, e a partir do que até aqui refleti e afirmei, ouso afirmar
que a discriminação e o preconceito são sistêmicos e estão, em grande medi-
da, institucionalizados como prática na nossa vida cotidiana. Como é de ci-
ência comum – pelo menos por aqueles que sofrem os dissabores do precon-
ceito, do racismo, da intolerância e da discriminação - o sistema não reage de

183
Organizadora : Edelamare Melo

forma efetiva ao assédio discriminatório presente nas instituições, ao revés,


o alimenta e busca justificativas para sua existência e permanência, muitas
vezes invertendo as regras do jogo para transformar a vítima da discriminação
em autor, no agente provocador da discriminação, notadamente quando esta
envolve conduta tipificada como crime...
Afirmo o que afirmo porque por trás das instituições estão os homens,
eles que a constroem, e, neste processo, não se aparta de suas circunstâncias
de vida, de seus valores, de sua cultura, de suas crenças, ainda que estas sejam
preconceituosas e discriminatórias. Isto é da natureza humana.
O homem não é neutro e imparcial, portanto suas instituições não são
neutras e imparciais, ainda que se afirme, em tese, que o sejam. Como dis-
se, cuidou-se longamente desta questão em tese doutoral (Melo, 2006), na
qual sustentou-se a inexistência de neutralidade e imparcialidade dos entes
reguladores, bem assim da técnica. Esta, porque o que dela é produto sofre
o influxo do subjetivismo18 de quem a aplica, detém ou conhece, em função
de determinados fins que o sujeito se propõe. É dizer instrumentalizamos a
técnica, a ciência, o Direito conforme sejam os nossos interesses e sistema
de valores, como instrumentalizamos as instituições, ainda que a pretexto de
fazer com que ela cumpra os objetivos que justificaram a sua criação.
Neste caso, não raro, com a omissão de enfrentamento de determinados
problemas sociais – como é o caso do preconceito, do racismo e da intole-
rância, inclusive de natureza religiosa. Tal omissão de agir é justificada para
não aflorar determinadas questões que imporão a tomada de posição pró-i-
gualdade, portanto em desfavor de grupos que patrocinam a discriminação
atentatória da dignidade da pessoa humana e que se encontram no ápice das
instâncias do poder estatal...
Não devemos fugir desta realidade e, por isso, faz-se necessário elencar
algumas questões que estão aí na ordem do dia de quem sofre a ação negativa
do preconceito e da discriminação e, que, não são tratadas nas instituições
com a seriedade e compromisso que a situação e os fundamentos de uma Re-
pública que se afirma um Estado Democrático e de Direito exigem.
É fato a existência de barreiras sociais de acesso e permanência no mun-
do do trabalho em razão de credo/crença religiosa, gênero, raça, cor, orientação
sexual, identidade de gênero, condição física....; é fato o assédio, ou, como pre-

18
Sobre o tema do subjetivismo consulte-se as aportações de FOUCAULT, que foram objeto de excelente análise
desde perspectiva das diferenças e reconhecimento étnicos por Laira Correia de Andrade e Paulo Raimundo Lima
Ralin no estudo “Reconhecimento, Diferença E Subjetividade Etnica” apresentado no XXV CONGRESSO DO
CONPEDI – CURITIBA - Grupo SOCIEDADE, CONFLITO E MOVIMENTOS SOCIAIS Disponível em: http://
www.conpedi.org.br/publicacoes/02q8agmu/09gc6o3b/u298hAykM5NvFvvd.pdf. Acesso: Maio/2017

184
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

ferem os espanhóis, e particularmente concordo, o acosso moral no mundo do


trabalho fundado em questões de raça, cor, gênero, orientação sexual, credo/
crença religiosa, notadamente em unidades educacionais que deveriam velar por
formação cidadã vocacionada para a realização concreta da democracia racial,
religiosa, de gênero, só para citar algumas. Situação que também está presente no
mundo do consumo, mas, também, da prestação de serviços públicos essenciais,
notadamente nas áreas da educação, saúde, assistência e emprego e renda.
Aqui a proposta dos agentes da discriminação, do preconceito e do acos-
so moral é impedir o pensar e o agir crítico responsável, é inibir que se ponha
em tela de juízo suas infundadas razões de preconceito, racismo, intolerância
e discriminação; é impedir a conscientização, capacitação e qualificação do
cidadão, do trabalhador, do consumidor, do educador, do empresário, do mé-
dico de hoje e de amanhã para o enfrentamento de questões racistas, sentido
amplo, pela compreensão racional de suas causas e consequências, inclusive
para a saúde do ser humano e sua dignidade.
Tudo se justifica porque preciso manter meu rebanho sobre o efeito e
dependência da droga na qual se constitui a irracionalidade do preconceito,
do racismo, da intolerância e da discriminação nele fundada, que, em grande
medida, notadamente no campo político das instâncias legislativas, constitui-
se no principal apelo para a investidura em um munus que deveria servir à
democracia, à república e aos valores que a informam.
Portanto, para me manter no poder, no comando, preciso, da letargia, da
cegueira, da ignorância... porque sem elas não consigo manipular para incitar a
prática de condutas motivadas pelo preconceito, pela intolerância, pelo racismo
e tipificadas como crime, mas, que, deverão ser tratadas como simples inciden-
tes sociais indignos de submissão às regras estritas – notadamente aqueles de
natureza penal- do estatuto constitucional e infraconstitucional da igualdade.
Assim, agentes da violação a direitos humanos fundamentais serão tra-
tados com parcialidade conivente pelos agentes da aplicação do direito, por-
que ambos egressos do mesmo sistema – inclusive educacional - que patroci-
na a manutenção do status quo do preconceito, do racismo, da intolerância e
da discriminação, e do seu sistema de valores.
Prova desta questão é a praticamente impossibilidade de implementa-
ção na rede de ensino – incluindo o terceiro grau- e que permitiria um enfren-
tamento sério efetivo das questões ligadas ao racismo- da Lei 10.639/ 2003,
que altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as dire-
trizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede
de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”.

185
Organizadora : Edelamare Melo

É assim porque esta história e cultura é demonializada por grupos sectários


e fundamentalistas religiosos, de forma que membros deste segmento social e
religioso – mas, também, político como demonstra a ascensão à chefia do Exe-
cutivo da República de um representante deste segmento que, inclusive, entregou
a pasta de direitos humanos a uma pastora evangélica que, como já dito em outro
lugar deste texto, entende que a solução para a nação é a igreja, a sua igreja, por
óbvio- que se encontram espalhados em todos os setores sociais, econômicos,
políticos e educacionais e de serviços públicos essenciais, usam da pressão e do
assédio para impedir a aplicação de referido estudo. A questão é elidida, é invisi-
bilizada... e cai em um vazio que o silêncio eloquente explica e justifica.
Também as questões de gênero, orientação sexual e identidade de gê-
nero sofrem o influxo desta ação nefasta que tenta, a todo custo, impedir que
elas sejam discutidas em salas de aula...mais uma vez os grupos sectários e
fundamentalistas religiosos patrocinam esta ação onde quer que estejam...
Neste processo, as pessoas jurídicas que se constituem em operadores
do sistema econômico ou público-estatal passam a ter crença e credo religio-
so, passam a adquirir contornos de instituições racistas, homofóbicas, xeno-
fóbicas...ou seja, passam a ser instrumentalizadas para finalidades ilícitas...
mas onde está o Estado que tudo vê e nada vê, que tudo faz e nada faz para
evitar barreiras que tais no acesso e permanência no trabalho, e/ou no gozo de
direitos e garantias fundamentais, individuais, sociais ou coletivas?
Considerações finais
Ao estudioso e pesquisador do Direito, ao cientista do Direito e das
demais ciências sociais gera certa perplexidade este estado de coisas que pro-
duzem anomalias tais como: escolas e empresas confessionais que dissemi-
nam valores antidemocráticos e atentatórios a dignidade da pessoa humana,
portanto a direitos humanos fundamentais em um estado republicano e de-
mocrático, que tem o compromisso constitucional de garanti-los.
Órgãos policiais, jurisdicionais e ministeriais, dentre outros que integram
o sistema orgânico de garantia de direitos fundamentais, fazem de conta que
estas situações se constituem em quimeras e, por isso, não as enfrentam dado o
receio de causar fissuras em um tecido social já esgaçado e no qual se consolida
como algo normal práticas preconceituosas e discriminatórias, estas de natureza
negativa e que visam inferiorizar determinados segmentos sociais dando-lhes o
não-direito e a parcialidade como resposta às agressões das quais são vítimas.
Sendo assim se trafica e institucionaliza, com certa tranquilidade, a dro-
ga social na qual se constituem o preconceito, o racismo, a intolerância e a

186
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

discriminação fundada em raça, cor, idade, gênero, orientação sexual, identi-


dade de gênero, credo/crença religiosa, condição física, social, econômica e
cultural... e por aí vai.
Este é o quadro do preconceito, do racismo, da intolerância e da dis-
criminação que hoje vivenciamos neste Brasil que se constitui em uma repú-
blica democrática...mas... onde estão os valores republicanos e democráticos
que lhe cumpre guardar, velar e preservar de tais ações nefastas? Entender
esta relação entre preconceito, racismo, intolerância, discriminação e ação
estatal pro-igualdade exige situá-la em um determinado marco que não pode
prescindir da educação como única ferramenta idônea a vencê-los e superá
-los rumo a uma democracia que, como tal, possa ser qualificada.
Uma democracia em que o respeito aos direitos fundamentais não seja
um discurso vazio e meramente simbólico, mas, sim, um valor apropriado por
todos e cada um de nós. Educação sentido amplo que promova a cultura da
paz e do respeito entre iguais.
Em 1995, a UNESCO (1995) lançou a Declaração dos Princípios sobre
a Tolerância, definindo-a nos seguintes termos
A tolerância é o respeito, a aceitação e a apreço da riqueza e da
diversidade das culturas de nosso mundo, de nossos modos de ex-
pressão e de nossas maneiras de exprimir nossa qualidade de seres
humanos. É fomentada pelo conhecimento, a abertura de espírito,
a comunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e de
crença. A tolerância é a harmonia na diferença. Não só é um dever
de ordem ética; é igualmente uma necessidade política e jurídica. A
tolerância é uma virtude que torna a paz possível e contribui para
substituir uma cultura de guerra por uma cultura de paz.

Contudo, para fazer realidade o princípio da tolerância – melhor dito do res-


peito à diferença- é necessário, antes de quaisquer ações afirmativas, que se mude
o paradigma educacional a partir da conscientização dos seus agentes no sentido
de que o espaço educacional não está posto para o fomento à cultura do ódio, do
racismo, da intolerância, do preconceito e da discriminação, como hoje ocorre sem
qualquer ação reativa do Estado àqueles que o utilizam de forma ilícita.
É dizer, a mudança de paradigma para aceitação da diferença reclama
uma mudança cultural, o que apenas é possível por meio da educação, in-
clusive de massa. Para tanto reclama-se um Estado pró-ativo que promova
ações que fomentem o respeito à diferença, inclusive por meio de propagan-
das institucionais pro-igualdade. Ou seja, faz-se necessário a construção de
um espaço público pro-igualdade.

187
Organizadora : Edelamare Melo

Mas não só. É necessário levar tratamento e condições de vida digna


para os guetos e favelas dos grandes centros urbanos, mas, também, para os
municípios, hoje, em sua maioria, tomados pelo tráfico que se constitui em
poder paralelo ao poder do estado.
É necessário levar serviços públicos de qualidade que permitam o aces-
so dos grupos historicamente discriminados e excluídos – e nos quais se
concentra a maioria vitimada por processos preconceituosos, racistas, intole-
rantes e discriminatórios – a uma educação básica que lhes permita acesso às
universidades, trabalho, emprego e renda dignos, capacitação e qualificação
que lhes permita inclusão social e produtiva sem necessidade de cotas, que
muitas vezes não são preenchidas por falta daquela condição básica essencial:
educação básica e fundamental de qualidade. Enquanto tal não ocorrer, sim,
faz-se necessário, políticas e ações afirmativas pró-inclusão social, política e
econômica das vítimas de preconceito, intolerância, racismo, que fundamen-
tam as perversas formas de discriminação em razão de raça, credo/ crença
religiosa, cor, etnia, gênero, orientação sexual, identidade de gênero, idade...
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190
MÃE STELLA DE OXOSSI
Terreiro Opó Afonjá/ Bahia
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Empoderamento e Contribuição da Mulher


do Terreiro de Candomblé

Egbom Sandra Maria Bispo de Yemanjá1

A presente reflexão tem como objetivo versar sobre o empoderamento


das mulheres do Candomblé e sua contribuição ao fortalecimento da sociedade
por meio de seus vários papéis sociais. Desde líder, educadora, conselheira,
empreendedora, até ações políticas em defesa dos direitos básicos e defesa e dos
espaços religiosos. Ações tomadas sempre com sabedoria, coragem e compromisso.
Podemos também lembrar a intensa participação dessas mulheres nas festas e rituais
internos aos Terreiros de Candomblé até as festas públicas que lhe são confiadas,
como a da Boa Morte e a de Iemanjá, por exemplo, em um corajoso processo de
sobrevivência e manutenção de tradições. È notória, historicamente, a intensa
participação de mulheres na constituição das Irmandades Religiosas enquanto
núcleos de resistência e de luta pela sobrevivência. A Irmandade Nossa Senhora
do Rosário dos Homens Pretos, em Salvador, exemplifica toda uma atuação de
enfrentamento a um modelo de sociedade de base estruturalmente racista e machista.
Nessa caminhada de resistência, essas heroínas agem com empenho e
determinação, inclusive com investimento logístico e financeiro nas interven-
ções para mudar a sua situação social de suas comunidades. Nessa dinâmica
de atuações e intervenções, aflora uma relevante contribuição para a constru-
ção de uma imagem positiva da mulher via o exercício de uma religiosidade
que tem como essência a observância ancestral da cultura de matriz africana.
No interior dos templos religiosos, os ritos e normas praticadas de forma lú-
cida e responsável, o aprender fazendo, as lendas contadas como forma de
transmissão de saber, os aconselhamentos individuais e os projetos sociais
bem desenvolvidos, influenciam no despertar de uma mulher forte, criativa,
que detém o fazer, o saber e muitas vezes o poder em um mundo ainda ma-
chista. Importante citar que a mulher, em um terreiro de Candomblé, dado a
sua sensibilidade, favorece uma maior sociabilidade entre os membros comu-
nitários, inclusive estimulando-os, a partir dos saberes e fazeres rituais, um
tipo de conhecimento que muitas vezes pode ser utilizado, fora do terreiro, no
sustento familiar (por exemplo, com o comércio de quitutes tradicionais). Ou

1
Ya kekerê do Terreiro de Oxumaré, Professora de Metodologia do Ensino Superior e Educação Infantil, Socióloga,
Psicopedagoga Institucional, Produtora Cultural.

193
Organizadora : Edelamare Melo

seja, favorece a formação de empresas domésticas e comerciais, o que contri-


bui para a maior arrecadação tributária e fiscal, além de preservar receitas e
saberes ancestrais. A atuação dessas religiosas também auxilia a constituição
de famílias extensivas, ou seja, todos da comunidade religiosa estão ligados
por laços afetivos de axé. A difusão desses saberes revela a cultura e um mo-
delo de religiosidade de um povo, reafirmando a herança simbólica que era
específica do candomblé. Ao estabelecer elos entre os Terreiros e a sociedade
como um todo, introduz de diversas formas e maneiras, o cardápio sagrado
com autorização dos orixás, somente o que é permitido. Esses elos estabe-
lecidos trazem em si os utensílios de trabalho, as indumentárias do povo de
santo e outros elementos que estimulam uma relação de produção, venda e
mercado consumidor. Basta visitarmos as feiras para verificarmos esse ponto,
a exemplo de São Joaquim em Salvador, na Bahia.
Pela própria característica de um espaço de Terreiro, a atuação das mu-
lheres de Candomblé denota atitude de inclusão, o respeito à diversidade e
às diferenças, a luta pelo direito de pensar e agir de toda uma população
feminina marcada pelo resquício da Escravidão Oficial. Mesmo na moderni-
dade, valem destacar as várias formas e maneiras, artimanhas e armadilhas
historicamente construídas na tentativa de excluir e negar o grande potencial
inteligente e criativo da mulher. Nessa onda perversa de exclusão, percebe-
se dentre outros meios, a tentativa de manter uma invisibilidade socialmente
forjada, que insiste em não dar vez e nem voz às mulheres. Esse ser feminino
vivendo em uma sociedade tecnológica, informatizada, vem contribuindo de
forma marcante para o desenvolvimento de uma geração mais justa, humana,
em que predomine o respeito aos Direitos Humanos.
Considero fundamental tentar romper as oposições estabelecidas pelas
ideologias globalizantes que tenta a todo custo negar o direito a diversidade,
as diferenças, reforçando cada vez mais o racismo, o machismo e a intole-
rância religiosa. É urgente caminharmos no estímulo às nossas crianças e
jovens, exercitando a solidariedade e respeito, ensinando a compreensão que
é a essência da comunicação humana. Também consideramos necessário fa-
zermos uma autorreflexão sobre nosso conhecimento, quanto à complexidade
do ser humano para melhor atuarmos em favor de um mundo de paz. Como
sujeito histórico que vivencia o Candomblé e considera fundamental com-
preender que todos nós somos seres políticos, encontramos na religião nossa
sensibilidade, que não é exclusivamente masculina nem feminina, mas que
inclui as estruturas diversas de todo e qualquer ser humano. Acreditamos que
o despertar da sensibilidade e a educação tanto na família, como nas escolas,

194
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

será o grande caminho de mudança, pois a sensação de impunidade ajuda a


aumentar à revolta e a violência.
Neste ponto, confesso o quão difícil é falar sobre a questão da impu-
nidade, da violência contra a mulher em todos os níveis, da intolerância re-
ligiosa e o perverso processo de discriminação e exclusão, do silêncio en-
surdecedor, a ética hipócrita, dentre outros aspectos que afetam as mulheres.
Principalmente, se a mulher for negra e possuir um alto potencial, ela é vista
como inimiga e perigosa. O processo de tentativa de exclusão da mulher é tão
grave que muitas vezes se constrói um grupo paralelo para atuar dentro dos
terreiros de Candomblé para tolher o poder feminino. Por vezes, mantém-se
uma hierarquia herdada (com seus respectivos cargos) apenas para legitimar
a inclusão feminina, mas exclui-se a participação das mulheres das decisões
mais importantes. Precisamos de coragem para repensar nossa prática religio-
sa, pois somente assim podemos manter o que já conquistamos e aumentar o
empoderamento feminino no Candomblé. A sociedade atual, através de leis
justas e dignas, pode contribuir para a construção de atitudes mais inclusivas,
no sentido de frisar a importância de termos direitos e deveres de maneira
igualitária. Apesar disso, não basta somente tomar conhecimento dos direitos
constitucionais. Acredita-se que as mais difíceis barreiras são as barreiras das
atitudes cotidianas. É preciso que, de fato, nos tornemos acessíveis e prati-
quemos a inclusão no nosso dia a dia. Estamos em uma sociedade dita demo-
crática, ninguém deve ser excluído por preconceito, perversidade ou ignorân-
cia racista e machista. Há de haver um despertar de consciência que nos leve
a uma mudança de atitude, a uma prática mais respeitosa e, por consequência,
a uma maior comunhão entre os seres humanos e as forças do bem.

195
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

A atuação do Ministério Público Federal


na proteção à igualdade étnico-racial e à
liberdade religiosa

Ela Wiecko V. de Castilho

Introdução
No contexto do Simpósio Nacional sobre Racismo e Intolerância
Religiosa no Brasil e seus Reflexos no Mundo do Trabalho coube-me comentar
a atuação do Ministério Público Federal (MPF) na proteção à igualdade
étnico-racial e à liberdade religiosa.
Este artigo reproduz basicamente o conteúdo da exposição oral feita no
Painel 5, mas traz alguns outros dados e informações sobre a atuação judicial
e extrajudicial do MPF, no período de 2000-2018. Trata-se de uma abordagem
exploratória que aponta para um campo inexplorado de pesquisa, o qual deveria
merecer atenção da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU)
na Década Internacional de  Afrodescendentes, iniciada em 1º de janeiro de
2015 com término previsto em 31 de dezembro de 20241. Especialmente porque
todos os Ministérios Públicos, a despeito de terem a missão de defesa de direitos
individuais e coletivos indisponíveis, entre eles dos direitos das populações em
situação de vulnerabilidade e das minorias, praticam o racismo institucional.
Entende-se por racismo institucional:
o fracasso das instituições e organizações em prover um servi-
ço profissional e adequado às pessoas devido a sua cor, cultura,
origem, racial ou étnica. Ele se manifesta em normas, práticas e
comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano de tra-
balho, os quais são resultantes da ignorância, da falta de atenção,
do preconceito ou de estereótipos racistas. Em qualquer caso, o
racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais
ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso
a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e or-
ganizações (PCRI, 2007).

1
A Assembleia Geral da ONU, por meio da Resolução n. 68/237, de 23/12/2013, proclamou a Década Internacio-
nal com o tema: “Afrodescendentes: reconhecimento, justiça e desenvolvimento”. O principal objetivo consiste em
promover o respeito, a proteção e a realização de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais de afrodes-
cendentes, como reconhecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

197
Organizadora : Edelamare Melo

O marco inicial escolhido para a pesquisa corresponde ao ano em que a


Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), do MPF, criou um Grupo
de Trabalho para discutir a questão da discriminação racial em geral, no contexto
das reuniões preparatórias da III Conferência Mundial de Combate ao Racismo
de Durban (2001). Na sequência houve uma reunião realizada em Goiânia, em
2002, cujos resultados foram relatados na publicação Discriminação e Ações
Afirmativas: O Ministério Público Promovendo o Debate.
Na mesma época, o MPF aderiu ao Programa de Combate ao Racismo
Institucional (PCRI) do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD), fazendo parte do Comitê Supervisor Nacional, por intermédio da
PFDC. A adesão impulsionou a realização, em 2005, da Pesquisa sobre Perfil
Racial e Percepção do Racismo entre membros, servidores, estagiários e
trabalhadores terceirizados do MPF, tendo sido contratado como consultor
o professor de antropologia da UnB José Jorge de Carvalho. No relatório
final ele analisou os dados e apresentou conclusões e recomendações para a
superação do racismo institucional no âmbito do MPF (PFDC, 2006).
Embora o GT tenha encerrado em 2004, a PFDC continuou dando
especial tratamento no combate ao racismo e à discriminação racial, seja através
da instauração de Procedimentos Administrativos para acompanhar políticas
públicas de combate ao racismo e projetos de lei em tramitação no Congresso
Nacional, seja através da promoção na Procuradoria Geral da República,
nos anos 2005, 2006 e 2007, do evento chamado “Semana de Debates sobre
Racismo e Desigualdade Racial”, que contou com a participação de órgãos
públicos e especialistas no assunto, visando informar e sensibilizar membros
e servidores sobre as peculiaridades que envolvem as populações negras no
Brasil (PFDC, 2010).
A PFDC também vem atuando, por meio de outros grupos de trabalho,
com a perspectiva étnico-racial. Assim, no GT Alimentação Adequada, em que
há preocupação com a inclusão dos quilombolas em programas estatais; no GT
Comunicação Social, com a discriminação racial nos programas televisivos e
na internet, resultando em Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) e Ações
Civis Públicas (ACP); e no GT Educação, com vistas à implantação do ensino
de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena (PFDC, 2010).
Em 2018, o tema do racismo voltou a ter foco próprio, pela instituição
do Grupo de Trabalho Enfrentamento e Prevenção ao Racismo, com o objetivo
de atuar no combate à discriminação e no fortalecimento de políticas públicas
voltadas à promoção da igualdade racial, bem como atuar transversalmente
com outras frentes de trabalho já implementadas pela PFDC, como o

198
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

enfrentamento à criminalização e ao extermínio da juventude negra. O GT


é interinstitucional, pois conta com a participação de promotoras de Justiça.
A atuação do/as Procuradores/as da República de todo país na busca
da igualdade étnico-racial é objeto de coordenação e revisão pela PFDC.
Todavia, quando a questão é submetida no enfoque criminal, os casos são
objeto de revisão da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF.
Nas bases de dados do MPF encontramos, por exemplo, TAC firmado
em 18/10/2003 pelo MPF no Rio Grande do Sul, Ministério Público Estadual,
Departamento de Polícia Federal e empresas de serviços de internet, com
vistas à prevenção e ao combate da prática de racismo e outras formas de
discriminação, via internet; a ACP ajuizada em 28/6/2005 pelo Procurador da
República Alessander Wilckson Cabral Sales, no Ceará, visando a instituição,
pela Universidade Federal do Ceará, de sistema de cotas para afro-brasileiros,
já que a instituição de ensino superior não havia atendido recomendação
anteriormente expedida com tal finalidade; a Recomendação, expedida em
29/9/2009, pela Procuradora Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC),
Silmara Cristina Goulart, em Minas Gerais, ao Presidente da Empresa Federal
de Processamento dedados (SERPRO) que se negara a cadastrar a Associação
e Resistência Religiosa e Cultural de Cultos Afro Brasileiros Ilê Axé Alafin
Odé, para celebração do convênio com o governo federal.
Considerando o propósito do Simpósio, solicitei pesquisa, em 13/8/2018,
à Coordenadoria de Biblioteca e Pesquisa da Procuradoria Geral da República.
Com os termos “intolerância, religião e africana”. Foram recuperados pelo
Sistema Único2 21 procedimentos, dos quais 11 não foram visualizados em
razão de sigilo. Com os termos “ação civil pública, intolerância e religião”,
mais 10 procedimentos. Na Justiça Federal foram localizadas 7 ações civis
públicas, nenhuma delas relativa aos procedimentos antes localizados.
Observo que a recuperação de dados pelo Sistema Único apresenta
problemas variados. Entre eles, a ausência de registros de inteiro teor das
manifestações ministeriais. Mas o objetivo que norteou a pesquisa não foi a de
fazer levantamento quantitativo ou qualitativo exauriente, apenas identificar
casos de atuação do MPF para uma avaliação preliminar sobre as demandas
encaminhadas e a resposta institucional oferecida.
Vejamos de que tratam os procedimentos que puderam ser visualizados
em algum grau. A apresentação seguirá a ordem cronológica de instauração.

2
Sistema de informação para agilizar e unificar o trâmite de documentos judiciais e administrativos do Ministério
Público Federal, visando, entre outras coisas, proporcionar meios de responder a questões estratégicas que possibi-
litem ter uma noção quantitativa e a melhoria qualitativa da gestão.

199
Organizadora : Edelamare Melo

Em 2012, foi instaurado inquérito civil (IC) na PR/Bahia com base em


uma representação do Departamento de Polícia Metropolitana de Salvador,
noticiando atos de intolerância religiosa em alguns terreiros de candomblé
daquela cidade e Região Metropolitana. Outros órgãos trouxeram notícias
de atos semelhantes, praticados entre 2006 a 2014 em várias localidades no
estado. O Procurador da República Edson Abdon Peixoto Filho promoveu
o arquivamento, em 2016, considerando que foram adotadas medidas pelos
órgãos competentes para prevenir e reprimir a prática de violência e de
intolerância religiosa contra os templos e praticantes das religiões de matriz
africana. A PFDC homologou o arquivamento.
Em 2013, duas manifestações foram recebidas pelo Sistema de
Atendimento ao Cidadão (SAC) alegando intolerância religiosa em um artigo
publicado no sítio da UOL por Gregório Duvivier. Uma delas foi feita por
Edmar Barbosa Bonfim, nos seguintes termos: “Como sacerdotisa de matriz
africana, cidadã cumpridora de meus deveres, defendo a liberdade religiosa
de nossa Carta Magna, e solicito uma retratação do escritor, do veículo que
a publicou, tendo em vista as palavras de tom totalmente pejorativo”. As
duas manifestações foram autuadas como Notícia de Fato (NF) apensadas e
encaminhadas a um ofício criminal da PR/SP. O membro do MPF promoveu
o arquivamento na Justiça Federal.
No mesmo ano mais uma manifestação pelo SAC gerou NF, instaurada
pela PRDC/SP. Aponta prática de discriminação e intolerância religiosa
praticada por Robson Pinheiro, autor do livro “Tambores de Angola”. O
Procurador da República, Jefferson Aparecido Dias, indeferiu liminarmente a
instauração de inquérito civil, sob fundamento de que as informações trazidas
pelo livro são fruto de liberdade de expressão e manifestam opinião pessoal
do autor, sem instigar a prática de racismo ou intolerância.
Em 2015, manifestação reclamou que o Pastor Lucinho, de Belo
Horizonte/MG, propagara discurso de ódio contra religiões de matriz africana,
e apresentou link de um vídeo em que o pastor alicia jovens em Governador
Valadares para causar desordem em um encontro de seguidores daquelas
religiões. A manifestação foi autuada como NF, tendo sido requisitada a
instauração de inquérito policial. Em 2016, o Procurador da República Eduardo
Morato Fonseca, em Belo Horizonte, ofereceu denúncia pela prática do crime
de racismo (art. 20, § 2º, da Lei n. 7.716/1989). Em março de 2018, um
Juiz Federal absolveu o réu porque “a despeito das palavras de baixo calão
e da intolerância, para haver o crime, seria indispensável que tivesse ficado
demonstrado o especial fim de supressão ou redução da dignidade do diferente”.

200
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Também em 2015, manifestação pelo SAC de Luiz Fernando Martins


da Silva, solicitando apuração da prática de crime de ódio na página do
Facebook “Igreja Internacional” e ajuizamento de ação civil pública, gerou
NF na Procuradoria do Município de Teresópolis/RJ, com posterior requisição
de inquérito policial. O relatório do delegado de polícia concluiu que a
página tem conteúdo humorístico, ausente dolo de injúria racial, preconceito
religioso, ultraje ou vilipêndio a culto religioso. O Procurador da República
Paulo Cezar Calandrini Barata promoveu então o arquivamento na Justiça
Federal. Todavia, em outra manifestação, formulada por Barbara Copque,
distribuída ao Procurador da República no Rio de Janeiro, Daniel Prazeres,
este não conseguiu acessar a publicação no Facebook denominada “Igreja
Internacional”, mas constatou na página imagens discriminatórias contra
católicos. Requereu judicialmente quebra do sigilo de dados telemáticos da
página. Não constam registros de andamento posteriores a esse requerimento.
Ainda em 2015, várias manifestações foram direcionadas ao MPF contra
a Igreja Universal Reino de Deus (IURD). Um procedimento preparatório (PP)
foi instaurado na PR/Ceará, com base em manifestação de Verônica da Costa
Silveira sobre a possível existência de um exército comparável a uma milícia,
denominado “Gladiadores do Altar”, incitando o ódio contra outras religiões. A
ele foram apensados procedimentos oriundos do Maranhão (Fórum Estadual de
Religiões de Matriz Africana do Maranhão), e de Santa Catarina. A Procuradora
da República Nilce Cunha Rodrigues promoveu o arquivamento, sob o argumento
de que o vídeo referido pelos representantes revela apenas um grande número de
fiéis do sexo masculino demonstrando sua fé e religiosidade dentro do ambiente
do templo da religião que professam. A decisão foi homologada pelo Núcleo de
Apoio Operacional da PFDC da 5ª Região (NAOP).
Um IC foi instaurado, na PR/Bahia, com base em representação de
James Amorim de Araújo, à qual foram juntadas representações do Coletivo de
Entidades Negras (CEN) e de religiões de matriz africana, noticiando prática
de intolerância religiosa por parte da IURD e preocupação com os possíveis
desdobramentos da formação do grupo denominado “Gladiadores do Altar”. O
procurador Leandro Bastos Nunes arquivou o inquérito porque os representantes
não trouxeram informações solicitadas nem se manifestaram sobre a resposta da
IURD. O arquivamento foi homologado pela PFDC, em abril de 2018.
Em 2016, a titular da PRDC no Rio de Janeiro, Ana Padilha Luciano
de Oliveira, indeferiu a instauração de IC requerida por Daniel Borges
Diniz Vieira com o objetivo de apurar prática de intolerância religiosa no
Blog Ministério do Louvor Infantil Quelly Silva contra religiões de matriz

201
Organizadora : Edelamare Melo

africana, ao tratar da comemoração de São Cosme e Damião. A procuradora


avaliou que o radicalismo da blogueira não configurou discurso de ódio apto
a reivindicar a atuação do MPF.
De outra parte, a referida PRDC instaurou PP, a partir da representação
da Sociedade de Economias Unificadas Afro Beneficência Brasileira, à
vista de notícia veiculada na imprensa de que as religiões de matriz africana
não teriam representatividade no centro ecumênico da Vila Olímpica
Paraolímpica. Foram expedidas duas Recomendações ao Comitê Olímpico
Internacional para que assegurasse a igualdade de acesso a todos os cultos
religioso. A homologação do arquivamento pelo NAOP da 2ª Região ressaltou
que, embora a situação do tratamento discriminatório às religiões de matriz
africana ter sido regularizada três dias após o início do evento, não foram
noticiados novos relatos de atos discriminatórios concretos.
Ainda em 2016 foi instaurado um IC pela PRDC/SP, a partir de um
ofício da Ouvidoria Nacional da Igualdade Racial, para apurar possível
discriminação contra religiões de matriz africana praticada pelo Padre Ironi
Spuldaro em missa veiculada ao vivo pela página eletrônica da Comunidade
Canção Nova, na rede Facebook, em 2016. A Procuradora da República
Lisiane Braecher promoveu o arquivamento por entender que as manifestações
do clérigo encontram-se no âmbito de sua liberdade de crença e de expressão,
sem caracterizar intolerância religiosa ou discriminação, apenas divergência
de crença. O arquivamento foi homologado pelo NAOP da 3ª Região.
Em 2017, com base em manifestação de Daniel Horn Majczak, residente
em Curitiba, foi instaurada NF para apurar eventual prática de crime contra a
honra em comentários na plataforma YouTube por usuário identificado como
“A verdade que liberta”, em vídeo destinado a promoção do Candomblé.
Em 2018, a Promotoria de Justiça de Osasco encaminhou documentação
recebida de Jadson Maurício dos Santos, sacerdote de Umbanda, em que
solicita providências em face da discriminação e preconceito contra os
praticantes das religiões de matriz africana e profanação de seus templos por
pessoas de religião evangélica, em Campinas e Osasco. A documentação foi
autuada e distribuída a um dos ofícios da PR/SP e houve declínio de atribuição
para a PRDC/SP, onde encontrava-se em tramitação.
Vejamos agora as ações civis públicas localizadas na pesquisa.
No final de 2004, a PRDC/SP, pela Procuradora da República Eugênia
Augusta Gonzaga, o Instituto Nacional de Tradição e Cultura Afro-brasileira
(Intecab) e o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e da Desigualdade
(Ceert), pelo Advogado Hédio Silva Júnior, propuseram ACP com pedido de

202
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

antecipação de tutela para garantia do exercício de direito de resposta coletivo


em face de Rede Record de Televisão, Rede Mulher de Televisão e União. Isso
porque aquelas redes veiculavam programas de caráter religioso produzidos
pela Igreja Universal do Reino de Deus com menosprezo às religiões afro-
brasileiras, chamando “pais e mães de santo” como “pais e mães de encosto”
e mostrando “sessões de descarrego”. A União foi acionada tendo em vista
sua omissão na fiscalização das concessionárias de rádio e televisão por atos
atentatórios à cidadania, à dignidade da pessoa humana e à liberdade de
crença religiosa. O pedido objetivou a exibição de 30 programas televisivos
com duração de duas horas cada, a serem exibidos em 30 dias consecutivos
no horário de 21 às 23 horas.
O pedido antecipatório foi parcialmente deferido pela Juíza Federal
Marisa Cláudia Gonçalves Cucio para garantir o direito de resposta coletivo
às associações autoras, determinando-se que as rés fornecessem todo o apoio
técnico e material necessário para a produção e gravação de um único programa,
com duração de uma hora, para exibição, por elas, durante 7 dias, nos mesmos
horários dos programas tidos como ofensivos, com três prévias chamadas aos
telespectadores. Essa decisão liminar não logrou ser executada, pois embora
não suspensa pela relatora no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, o foi por
cautelar concedida pelo relator no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
A sentença, proferida em 2015, relata a sucessão de recursos e de
obstáculos processuais opostos, visando impedir o reconhecimento do direito
de resposta coletivo. Nesse trâmite a União foi excluída do feito. No mérito,
o Juiz Federal Djalma Moreira Gomes julgou parcialmente procedente o
pedido, determinando a produção pelas rés de quatro programas, os quais
deverão ser exibidos em 8 oportunidades em cada uma das emissoras, pelos
quais serão feitos pelos autores os esclarecimentos por eles considerados
importantes, por serem capazes de promover o restabelecimento da verdade
segundo práticas e tradições das religiões afro-brasileiras. Os horários das
apresentações devem ser compatíveis com aqueles em que regularmente eram
exibidos os programas “Mistérios” e “Sessão de Descarrego”. Foi concedida
tutela específica para que a produção do primeiro programa ocorresse dentro
de 30 dias e as exibições com início em 45 dias e término em 75 dias, a contar
da data da intimação da sentença. Fixada multa, por emissora, por dia de
atraso na produção ou exibição dos programas, podendo ser convolada em
suspensão de toda a programação em caso de recalcitrância.
As rés opuseram embargos de declaração parcialmente acolhidos para
explicitar a abrangência do direito de resposta, os parâmetros para a produção

203
Organizadora : Edelamare Melo

dos programas, a priorização do conteúdo informativo e cultural, as chamadas


para o direito de resposta e a não condenação em honorários advocatícios. Novos
embargos de declaração sobre o tema das chamadas comerciais foram rejeitados.
Seguiram-se as apelações, com pedido de efeito suspensivo da tutela,
o que foi concedido. Em abril de 2018, a sentença de primeiro grau foi
mantida. As rés continuaram a resistir, tendo interposto recursos especiais e
extraordinários.
Todavia, o Gabinete da Conciliação do TRF3 conseguiu articular um
acordo. Além da obrigação de veicular quatro programas de televisão na
Record News, estabeleceu R$ 300 mil de indenização para cada uma das
autoras da ação, Itecab e a Ceert. As duas entidades serão responsáveis pela
concepção e produção dos programas, que serão pagas pela Record.
Para Daniel Teixeira, coordenador de projetos do Ceert: “É uma grande
vitória poder mostrar a riqueza de valores religiosos que o país tem e passar
uma mensagem de paz entre as crenças e contra a intolerância religiosa”
(FIORATTI, 2019).
Em 2005, o MPF na Bahia ajuizou ACP contra Edir Macedo Bezerra,
Editora Gráfica Universal Ltda. e Igreja Universal do Reino de Deus, objetivando
a suspensão definitiva, em todo o território nacional de tiragem, venda, revenda,
entrega gratuita ou qualquer outro tipo de circulação da obra “Orixás, caboclos
e guias, deuses ou demônios?”, com a estipulação de preceito cominatório
para caso de descumprimento. Em 2017, o Juiz Federal Rodrigo Britto Pereira
Lima revogou a liminar e julgou improcedente os pedidos porquanto “embora
determinados trechos da obra literária em questão sejam intolerantes, tenho que
a mesma se insere no cenário do embate entre religiões e decorre da liberdade de
proselitismo, essencial ao exercício, em sua inteireza, da liberdade de expressão
religiosa”. O MPF interpôs apelação em abril de 2018.
Em 2011, o MPF e o Ministério Público Estadual da Bahia ajuizaram
ACP, com pedido liminar, em face de Ademir Oliveira dos Passos, para que o
requerido fosse compelido a abster-se de praticar qualquer ato impeditivo da
prática religiosa do candomblé e de seus liturgias, como derrubar, reformar,
alterar, construir na área do terreiro Zô Ogodô Malê Bogun Seja Hundê,
no município de Cachoeira, ou contígua a ele, sob pena de multa diária de
R$ 50.000,00. Em 2014, o Juiz Federal Carlos D’Ávila Teixeira revogou a
liminar e extinguiu o processo com resolução de mérito, tendo em vista a
homologação de acordo celebrado entre as partes.
Em 2014 o MPF, no Rio de Janeiro, pelo Procurador Regional
dos Direitos do Cidadão, Jaime Mitropoulos, a partir de representação da

204
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Associação Nacional de Mídia Afro, ajuizou ACP, com pedido de tutela de


urgência, em face de Google Brasil Internet Ltda. por não ter retirado da rede
mundial de computadores 15 vídeos que veiculam proposições, imagens e
abordagens expondo pessoas e grupos ao ódio e ao desprezo por motivos
fundados na religiosidade de matrizes africanas, configurando práticas de
intolerância religiosa nos meios de comunicação. A ação foi precedida de
audiência pública que debateu o papel da mídia e do Estado frente a possíveis
violações aos princípios da liberdade religiosa e do Estado laico. Após análise
dos conteúdos questionados foi expedida recomendação para que a Google
retirasse os conteúdos da Internet, mas houve recusa sob o argumento de
que constituíam manifestação da liberdade religiosa e que não violavam as
práticas da empresa. Em sentença de 2015, o Juiz Federal Eugenio Rosa de
Araújo acolheu o pedido de retirada definitiva dos vídeos, mas rejeitou o de
indenização por dano moral coletivo.
Em 2016, os Procuradores Regionais dos Direitos do Cidadão no Rio de
Janeiro, Renato Freitas Souza Machado e Ana Padilha Luciano de Oliveira,
propuseram ACP, com pedido de tutela de urgência, em face de Igreja
Universal do Reino de Deus, de Guaracy dos Santos e de Google Brasil Internet
Ltda. tendo em vista conteúdos divulgados através do canal do YouTube e
perfil de Facebook que disseminam a intolerância e a discriminação contra
as religiões de matriz africana. A IURD promove periodicamente o evento
religioso denominado “Duelo dos Deuses”, conduzido pelo Bispo Guaracy.
O culto é itinerante e reúne centenas de fiéis em diversas cidades do Brasil.
Cada evento é filmado e editado na forma de programa que passa a compor a
programação do canal de Youtube TV IURD. Os eventos incluem sessões de
exorcismo nas quais o Bispo conduz o que alega ser a expulsão de entidades
demoníacas do corpo de um ou mais presentes. Os supostos demônios
declinam seus nomes, identificando-se como divindades das religiões afro-
brasileiras, tais como Ogum de Ronda, Xangô da Pedreira, Iansã do Fogo,
entre outras. Houve pedido de medida cautelar para quebra do sigilo de dados
cadastrais de conexão e de usuário dos(s) responsável(is) pela postagem de
vídeo excluído, e de vídeos hospedados em endereços do YouTube; retirada
de vídeos acessíveis em diversos endereços eletrônicos. Ao final, pedido de
condenação em danos morais coletivos causados, a partir de recomendação
dirigida a IURD e não atendida.
A Juíza Federal da 24ª Vara Cível da Seção Judiciária do estado do
Rio de Janeiro declinou da competência para a Seção Judiciária do estado
de São Paulo, mas ali o Juízo Federal da 26ª Vara Cível suscitou conflito,

205
Organizadora : Edelamare Melo

decidido pelo STJ, em 2017, para declarar a competência do juízo suscitado.


Retornando os autos ao juízo inicial, dado o tempo decorrido sem notícia
nos autos sobre eventual alteração dos fatos, a Juíza Federal Maria Cristina
Ribeiro Botelho Kanto indeferiu a liminar. O feito encontra-se em trâmite, que
deverá ser longo, pois o réu Guaracy dos Santos reside nos Estados Unidos.
Por fim, vale ressaltar o posicionamento do Ministério Público Federal
pelo não provimento do Recurso Extraordinário interposto pelo Ministério
Público do estado do Rio Grande do Sul, o qual defende a inconstitucionalidade
da Lei estadual n. 11.915/2003 (com as alterações da Lei n. 12.131/2004), que
veda o sofrimento e sacrifício de animais, mas permite excepcionalmente o
sacrifício ritualístico nos cultos e liturgias das religiões de matriz africana. A
Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão Deborah Duprat e o Procurador
Regional da República Walter Claudius Rothenburg subscreveram Nota
Técnica e a encaminharam a Procuradora-Geral da República com o propósito
de oferecer argumentos adicionais para eventual apresentação de memoriais.
A data do julgamento no STF está marcada para o dia 28/3/2019.
Considerações Finais
A atuação do MPF na proteção à igualdade étnica-racial e à liberdade
religiosa é relativamente recente, impulsionada pela Conferência de Durban,
em 2001.
A pesquisa exploratória revelou dificuldades para a obtenção de dados
e informações consistentes porque a informatização de todas as unidades do
MPF em um sistema único só veio a se completar em dezembro de 2014. A
padronização dos temas e subtemas data de 1º/12/10, a partir de recomendação
da Resolução n. 63 do CNMP. Todavia, a padronização das tabelas não garantiu
a plena consolidação das informações do sistema, porque falta ainda a adoção
efetiva de um procedimento de trabalho padrão em todas as unidades.
No entanto, os resultados da pesquisa parecem expressar adequadamente
o grau de atuação do MPF no tema da proteção à expressão das religiões
de matriz africana. Uma atuação pontual, reativa, sem coordenação ou
priorização, que alcança efetividade quando conta com o suporte das entidades
afro-brasileiras.
As ações civis ou criminais que buscam a retirada de conteúdos escritos
ou audiovisuais disponibilizados pela internet encontram as dificuldades
conhecidas de investigação para apurar a autoria das postagens e a má-vontade
dos provedores de fornecer os dados cadastrais dos usuários. A paradigmática
ação visando obter o direito de resposta coletivo tramitou por 15 anos. O

206
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

reconhecimento de danos morais coletivos tem sido praticamente inexistente,


assim como o reconhecimento do preconceito e da discriminação praticada
em desfavor dos/as seguidores/as das religiões afro-brasileiras, como o
Candomblé e a Umbanda.
A utilização do sistema de justiça para a repressão e a reparação dos
danos morais, portanto, não nos deve entusiasmar como solução. A despeito
disso, não é de ser desprezada, pois a simples propositura de uma ação
pode gerar efeitos simbólicos relevantes. A atuação conjunta do MP com as
entidades da sociedade civil traz um fortalecimento mútuo e maiores chances
de êxito nos mecanismos escolhidos, seja a realização de audiências públicas,
recomendações, ajustamentos de conduta, ações criminais ou civis.
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
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ões de matrizes africanas. Inclusive neste vídeo que colocarei o link para a análise de vocês
ele confessa que aliciou jovens para causar desordem em um encontro de vários centros de
religiões de matrizes africanas em Belo Horizonte (MG). Autuada 20 de maio de 2015. Re-
presentado: Vinicius Zaneli Maganha. Representado: Lúcio Barreto Júnior. Disponível em
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Representante: Daniel Horn Maiczak. Representado: A verdade que liberta. Disponível em
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Organizadora : Edelamare Melo

cujo conteúdo é a marcha de uma espécie de exército conhecido como Gladiadores do Altar.
Espécie de milícia religiosa. Fanatismo. Solicitação de investigação. Representada: Igreja
Universal do Ceará. Representante: Verônica da Costa Silveira. Disponível em sistema Único
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nistro Marco Aurélio. Recorrente Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Re-
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210
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

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de jan. 2019.

211
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

QUILOMBISMO E REPARAÇÃO DA ESCRAVIDÃO

Elisa Larkin Nascimento1

Introdução
No século passado, mais precisamente no ano de 1980, o então profes-
sor catedrático da Universidade do Estado de Nova York, nos Estados Unidos,
Abdias Nascimento participava do 2º Congresso de Cultura Negra das Amé-
ricas, no Panamá. Nesse conclave, ele apresentou sua “proposta aos irmãos
afrodescendentes do Brasil e das Américas”: o quilombismo. Assumindo o
princípio básico da democracia em um país de maioria negra, ele foi muito
além de propor ideias e princípios de organização e protagonismo coletivo
do povo negro para enfrentar e combater o racismo. O quilombismo é uma
proposta de organização do Estado brasileiro, em bases democráticas plurais
que contemplem a diversidade demográfica e cultural de seu povo.
Naquele momento histórico, o Brasil vivia o período conhecido como
Ditadura Militar (1964-1985), cuja opressão e censura tirou Abdias do país
por 13 anos (1968-1981). Seu livro O Quilombismo (Nascimento, A., 1980)
foi publicado um ano após a anistia e o início do retorno ao país dos exilados
da ditadura militar. O cenário político e o palco das ideias efervesciam. Ain-
da faltava quase uma década para a promulgação da Constituição Cidadã. O
foco da agenda política era a construção do Estado democrático de direito;
construíam-se as bases conceituais da Carta de 1988. A luta do movimento
negro focalizava direitos formais como, por exemplo, o voto ao analfabeto, a
revogação da vadiagem como figura do direito penal e a substituição da Lei
Afonso Arinos por uma legislação eficaz de combate à discriminação racial.
Dois anos antes, Abdias havia publicado o seu livro O Genocídio do Negro
Brasileiro (Nascimento, A., 1978), trazendo ao debate público um termo en-
tão considerado absurdamente ousado e exagerado. Passados quase 40 anos, a
vida da população negra no Brasil hoje se parece, de forma bastante decepcio-
nante, com a daquele momento. A implantação de medidas de ação afirmativa

1
Mestre em Direito e em Ciências Sociais pela Universidade do Estado de Nova York, Doutora em Psicologia pela
USP, preside o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO), que trabalha com relações étnico-ra-
ciais e história e cultura de matriz africana. Coordena o tratamento técnico para preservação e difusão do acervo
museológico e arquivístico de Abdias Nascimento, sob a guarda do IPEAFRO. Curadora de exposições educacionais
e artísticas com base nesse acervo, é autora de diversos livros e trabalhos publicados.

213
Organizadora : Edelamare Melo

e a criação de órgãos oficiais encarregados de sua execução trouxeram mu-


danças importantes, mas as desigualdades continuam flagrantes. A violência
contra a população negra e favelada continua, reconhecida por organismos
internacionais como a ONU e a Anistia Internacional, ambas as quais recente-
mente promoveram campanhas específicas na tentativa de combater o flagelo
da juventude negra. O preconceito, a agressão aos fiéis e a violência contra
os terreiros e templos da religiosidade de origem africana crescem e se in-
tensificam. O que não mudou é a necessidade de refletirmos sobre a situação
e pensarmos os caminhos possíveis para enfrentar esse grave empecilho ao
desenvolvimento sustentável com justiça social: o racismo.
Ao realizar este Simpósio Nacional Indígenas, Negros, Quilombolas e Re-
ligiosos de Matriz Africana: Preconceito, Racismo, Discriminação e seus Re-
flexos nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo, o Ministério Público
de Trabalho sublinha essa necessidade e exemplifica a saudável tendência, con-
quistada ao longo de décadas pelo movimento negro em suas diversas ações e
abordagens, de instituições oficiais assumirem o debate e formularem políticas
internas e públicas de enfrentamento à discriminação, ás desigualdades e ao ra-
cismo institucional. Em 1980, quando Abdias Nascimento formulou sua tese do
quilombismo, soava absurda a ideia de algum órgão governamental sequer re-
conhecer a existência da discriminação racial; a discussão sobre a questão racial
girava em torno da persistente negação de racismo na sociedade brasileira. Cer-
tamente, o caminho protagonizado pelo ativismo negro ao longo dessas décadas
resultou em sensíveis mudanças. Mas ainda há muito a fazer.
Reparação da escravidão
Desde o século XVII, a ideia da reparação da escravidão existiu e foi
promovida de diversas formas nos Estados Unidos, bem como no Brasil e
em Cuba (Araújo, 2017). Assim como a Lei Áurea no Brasil de 1888, a 13ª
Emenda à Constituição, que aboliu a escravidão nos Estados Unidos em 1865,
não continha nenhuma medida de restituição à população negra por 250 anos
de trabalho não remunerado. Ao final da Guerra Civil houve uma política
efêmera, parte do programa de Reconstrução da região devastada pela guerra,
que envolvia prover a famílias de pessoas antes escravizadas um pequeno
terreno em áreas que o governo federal tomara dos rebeldes escravistas. Ape-
sar de permanecer vívida a sua memória no imaginário nacional2, tal política

2
Cultiva-se nas escolas e no folclore nacional a frase “40 acres and a mule”, que se refere a essa política, como forma
de consolidar a consciência dominante do suprematismo branco, que se considera generoso para com os negros e
livre de qualquer dívida histórica com relação à escravidão.

214
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

nunca foi implantada de forma significativa, pois Andrew Johnson, sucessor


de Abraham Lincoln, revogou a medida imediatamente ao assumir a presi-
dência. O sistema de sharecropping que prevaleceu deixou o povo negro des-
tituído de qualquer meio de subsistência e vulnerável à ira racista dos brancos
sulistas derrotados. Com sua eloquente defesa do direito dos descendentes
de escravos a uma compensação, o jornalista Frederick Douglass conseguiu
deflagrar o movimento que culminou na apresentação de um projeto de lei na
Câmara dos Representantes (Vaughan, 2017). No bojo dessa iniciativa, pro-
liferou uma série de organizações em busca de reparação na forma do paga-
mento de pensões às famílias dos libertos. O maior movimento, que abrangia
300 mil pessoas espalhadas pelo território nacional – um número enorme para
o final do século XIX – era liderado por uma valente mulher negra chama-
da Callie House. A Associação Nacional pela Ajuda Mútua, Alívio e Pensão
para Ex-Escravos (MRB&PA) gerou um novo projeto de lei, apresentado em
1899, e em 1915 processou o governo federal no caso Johnson vs. McAdoo
(Perry, 2010). Perseguida sem tréguas, Callie House se mostrou indomável,
mas acabou sendo presa em 1918 e o movimento suprimido em 1922.
Na década dos 1970, o movimento pela reparação ressurgiu no bojo do
Black Power e do Pan-Africanismo. No seu Manifesto Negro apresentado em
nome da Conferência Nacional de Desenvolvimento Econômico Negro em
1969, James Forman exigiu meio bilhão de dólares em reparação à popula-
ção negra (Lechtreck, 2012). Várias organizações levaram a demanda adiante
nas décadas seguintes, notadamente a TransAfrica sob a liderança de Randall
Robinson (2000). Novamente em 1995, houve uma iniciativa coletiva de pro-
cessar o governo dos Estados Unidos: Cato vs. United States. Hoje, a questão
está em evidência como nunca, com destaque, inclusive, na campanha políti-
ca para as eleições presidenciais de 2020.
A 3ª Conferência Mundial Contra o Racismo, a Intolerância, a Xeno-
fobia e Outras Formas de Intolerância, realizada pela ONU em 2001 definiu
a escravidão como crime contra a humanidade, assim estabelecendo a base
jurídica para o direito à reparação. O Brasil teve atuação destacada e influente
na construção desse marco histórico, em parte através de sua representação
oficial, mas sobretudo pela atuação dos movimentos e organizações negras da
sociedade civil. Esse processo abriu o caminho para as políticas domésticas
de ação afirmativa e de ensino das relações étnico-raciais e da história afri-
cana e afro-brasileira no início do século XXI. A participação brasileira na
Conferência da ONU se deu no contexto da forte presença de delegações de
toda a chamada América Latina e do Caribe. A população negra dessa região

215
Organizadora : Edelamare Melo

se organizava coletivamente a partir de 1977, quando se realizou em Cali,


Colômbia, o 1º Congresso de Cultura Negra das Américas. Na segunda reu-
nião desse movimento, Abdias Nascimento lançou sua tese do quilombismo.
A terceira edição foi organizada pelo IPEAFRO e realizada em São Paulo em
1982. Foi a primeira ocasião em que o Brasil recebeu uma representação do
partido de Nelson Mandela, o Congresso Nacional Africano da África do Sul.
No Brasil, a demanda da reparação integra o discurso e as iniciativas de
organizações negras há décadas. Mais recentemente, a Comissão da Verdade
da Escravidão Negra no Brasil, empossada pelo Conselho Federal da OAB
em 2015, vem advogando o tema, desdobrando-se em comissões estaduais e
municipais em diversos estados e regiões do país. Em julho de 2019, a As-
sembleia Legislativa do Estado de São Paulo sediou o encontro Reparação Já,
sob a liderança da Organização pela Libertação do Povo Negro3. No Rio de
Janeiro, onde a região Pequena África abriga o Cais do Valongo, nominado
Patrimônio da Humanidade pela UNESCO, a Câmara dos Vereadores apro-
vou uma lei sobre a gestão econômica e cultural do respectivo território, cujo
texto se baseia em proposta de autoria do Movimento pela Reparação4. For-
mou-se uma comissão sob a liderança do Movimento pela Reparação para o
Povo Negro e Povos Indígenas, com a participação de ativistas negros, nota-
damente o veterano Yedo Ferreira, no intuito de definirem, em conjunto com
as autoridades municipais, as matrizes dessa gestão5.
No presente trabalho, procuro explorar intersecções e campos de diá-
logo entre as teses do quilombismo e da reparação. Longe de pretender pro-
duzir uma tese ou fechar conclusões, meu objetivo é compartilhar com os
participantes do Simpósio algumas observações, no intuito de contribuir para
o debate e a discussão.
Quilombismo e Tradição dos Orixás
Os objetivos deste Simpósio coincidem com a tese do quilombismo ao
abordarem o racismo em seus diversos aspectos: o cultural e o simbólico in-
terligados com o histórico, o social, o jurídico, o econômico e o político. Esse
fato reflete uma evolução na luta de combate ao racismo, pois a ampla abor-
dagem vem contrabalançar o peso da tendência de tratar-se o racismo como
um conjunto de desigualdades raciais mensuráveis por estatísticas. As pes-
quisas realizadas nessa linha têm fundamental importância no sentido de dar

3
https://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=366043, acessado em 18.set.2019.
4
Lei n. 6.613, de 13 de junho de 2019, publicada no Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro em 14/06/2019.
5
https://pretitudes.blogspot.com/2019/07/ngola-janga-territorio-livre.html, acessado em 18.set.2019.

216
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

suporte técnico à formulação de políticas públicas endereçadas à eliminação


de tais desigualdades. Ao mesmo tempo, entretanto, tal enfoque corre o risco
de contribuir para esvaziar o racismo de sua função ideológica de dominação,
sua natureza e efeitos psicológicos e seu impacto concreto e marcante como
dimensão do imaginário social.
O aspecto cultural e simbólico hoje se delineia em diversos campos,
merecendo cada vez mais atenção o da religiosidade. Comunidades tradicio-
nais e terreiros de candomblé, umbanda e outras religiões de origem africana
sofrem, desde sempre, violenta agressão física, simbólica, retórica, psico-
lógica, social e econômica, perpetrada pela igreja católica no seu papel de
instituição do poder constituído, e mais recentemente por certos cultos pen-
tecostais evangélicos. Existe um amplo movimento inter-religioso de defesa
da liberdade de culto e contra a intolerância, que sob a liderança das religiões
afro vem realizando caminhadas há 12 anos, com considerável repercussão
política e social (Santos e Esteves Filho, 2009; Santos, et.al, 2016).
Como a maioria das ações do movimento negro, o processo de organiza-
ção das comunidades-terreiro no enfrentamento dessa violência tem como pri-
meira característica seu valor educativo. O projeto Tradição dos Orixás exem-
plifica esse processo no Estado do Rio de Janeiro na segunda metade da década
dos 1980. Um de seus objetivos era educar para a convivência democrática a
sociedade que então construía a “Nova República” e a Constituinte de 1988,
ano do centenário da Abolição da Escravatura. Nesse mesmo ano a Comissão
Ojuobá do projeto Tradição dos Orixás entrega ao então Procurador-Geral da
República, Aristides Junqueira, sua Ação Pública contra a Intolerância Reli-
giosa. O projeto integrava, assim, o esforço da sociedade civil que resultou em
marcos importantes do sistema jurídico brasileiro que convergem para a luta
e proposta do combate ao racismo. Conforme comenta o Ogã Uilian Portella:
“Aquilo não era uma discussão religiosa pura e simplesmente, era uma orga-
nização social discutindo políticas públicas em todos os ângulos” (Gomes e
Oliveira, 2019, p. 47). O Tradição dos Orixás era um fórum para pensar o seu
tempo. E hoje a luta contra o racismo religioso continua à frente dos esforços
de se reconstruir e consolidar um Estado democrático de direito cujo desman-
telamento assistimos diariamente no cenário político atual.
A proposta do projeto – de levar para a arena política o combate ao ra-
cismo religioso e a riqueza de significados e simbolismos oriundos da tradição
africana no Brasil – dava continuidade a uma longa história de luta, parte da
qual está documentada nas páginas do jornal Quilombo (2003) do Teatro Ex-
perimental do Negro, fundado por iniciativa de Abdias Nascimento em 1944.

217
Organizadora : Edelamare Melo

Desde seu primeiro número, o jornal trazia matérias sobre a liberdade de culto.
Décadas depois, voltando do exílio, Abdias Nascimento vinha somar sua ex-
periência à atuação da nova geração do movimento negro que levava adiante a
luta de resistência. Na tese do quilombismo, Abdias frisava a necessidade for-
talecer a transmissão de valores africanos às sucessivas gerações na Diáspora.
O quilombismo tem como objetivo construir ações e legados de com-
bate ao racismo a partir das tramas culturais, filosóficas, artísticas e episte-
mológicas tecidas pelos povos negros em África e sua diáspora. Isto significa
recuperar, estudar, ressignificar e disseminar os valores semióticos e episte-
mológicos africanos como ferramentas para construir um desenvolvimento
sustentável com justiça social no mundo contemporâneo. Novamente, a ideia
dá continuidade a uma longa trajetória de luta contra aquilo que Jayro Pereira,
citando Muniz Sodré, aponta como o “semiocídio ontológico praticado pelos
evangelizadores, que se constituiu no pressuposto do genocídio físico”. (Go-
mes e Oliveira, 2019, p. 188), Abdias Nascimento e o TEN brandiam os sig-
nos estéticos da matriz africana como armas de enfrentamento nos anos 1940.
Nesse caminho eles não estavam sozinhos. Desde os idos dos 1930 os poetas
anticolonialistas africanos e antilhanos do movimento da Negritude percor-
riam veredas semelhantes (Césaire, 2010). Mas a afirmação da cultura negra
era vista como “racismo às avessas”, e aliados da esquerda se recusavam a
reconhecer a legitimidade da negritude e do combate à discriminação racial
com frente de luta política. Com o acirramento da guerra fria nos anos 1960
e 1970, lideranças e movimentos de libertação optaram pela estrita adesão ao
legado europeu do marxismo, o chamado “socialismo científico”, rechaçando
as referências à ancestralidade africana como recursos legítimos de organiza-
ção política. Chegando ao páis no final dos anos 1970, Abdias Nascimento se
deparou com um movimento negro identificado à esquerda ocidental, cujas
propostas ignoravam largamente os valores africanos enquanto mobilizadores
de uma luta política. Abdias manteve sua postura ao propor, no quilombismo,
um modelo de luta construído a partir da própria experiência histórica e dos
próprios valores culturais e filosóficos ancestrais africanos. Ao estabelecer
diálogo entre setores do movimento negro e as casas de santo, o projeto Tra-
dição dos Orixás colocava em prática esse princípio do quilombismo.
A partir de 1983, Abdias Nascimento atuava – na legislatura anterior à
Constituinte – como único deputado federal a levar ao Congresso propostas de
políticas antirracistas, tratando a questão racial como tema urgente e fundamen-
tal à construção da democracia e da Nação brasileira. Para ele, fazia parte da
demanda democrática a inclusão e o reconhecimento dos valores africanos como

218
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

referências dessa nacionalidade. Num contexto em que todas as sessões do Con-


gresso são abertas com a frase “Sob a proteção de Deus”, Abdias abria os seus
pronunciamentos dizendo “Sob a proteção de Olorum” e neles incluía referências
às divindades africanas, situando-as no cenário político. Talvez o maior movi-
mento daquela época tenha sido a campanha pela eleição direta, o Diretas Já, que
em 1984 levou centenas de milhares de pessoas às ruas em comícios inéditos e
inesquecíveis. A organização pluripartidária definiu o amarelo como cor do mo-
vimento e pediu para todos o vestirem para marcar sua adesão. Abdias apropriou
esse signo para realçar o protagonismo do povo negro e da matriz africana no
cenário político, invocando o amarelo de Oxum (Nascimento, A., 1984, p. 13):
Faço questão de registrar nos Anais desta Câmara a substancial parti-
cipação organizada do negro no movimento mais importante do atual
momento político: a luta pelas diretas já. (...) O negro continua pre-
sente, de forma organizada, vestindo o amarelo da esperança demo-
crática e da fraternidade, do amor e da criatividade de Oxum. Aliás,
tanto se ressaltaram, nessa caminhada cívica, as três qualidades de
nossa mãe Oxum, que bem poderíamos proclamá-la a patronesse es-
piritual das diretas já. Oraiêiê-ô! Axé quilombolas da libertação!

Tratava-se, nas palavras de Sérgio Dias (2019, p. 51), de “uma forma de


ver o mundo a partir de um olhar afrocentrado e forçar a amplitude do próprio
movimento negro, alicerçando-o em uma memória, na nossa originalidade e
ancestralidade”. Nas décadas seguintes, essa estratégia quilombista veio se
alargando no ativismo antirracista.
Quilombismo e genocídio
Quando escreveu o livro O Genocídio do Negro Brasileiro, cuja pri-
meira edição saiu em 1978, o professor Abdias Nascimento denunciava as
condições da população negra no Brasil, apresentando ao mundo o que ele
classificou como genocídio. Abdias vinha apontando a matança do negro pela
sociedade brasileira desde os seus primeiros ensaios e trabalhos, especial-
mente no campo da arte, à frente do Teatro Experimental do Negro.
De lá para cá, o assassinato das populações negras continua em curso.
Segundo o Fórum de Segurança Pública, somente em 2018 foram quase 70
mil mortes violentas no Brasil. Destas, 75% foram homens negros, em sua
maioria jovens. Dos mais de 1.200 casos de feminicídio (morte de mulheres
por seus companheiros), 60% foram mulheres negras, sendo 6 em cada 10
mortes dentro de casa. Conclui-se que a cada 23 minutos um jovem negro
morre violentamente, somando mais de 70 mortes a cada dia.

219
Organizadora : Edelamare Melo

No Rio de Janeiro, cidade onde o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro


-Brasileiros (IPEAFRO) está instalado e atua há quase 40 anos, o cenário é
ainda mais dramático. A Polícia Militar do Rio de Janeiro continua a exercer
seu papel com cada vez mais afinco e voracidade, chancelado pela política
de segurança pública atual do governador Wilson Witzel (PSC), que é a de
“mirar na cabecinha e... bum!”. Com essa narrativa, diga-se, ele foi eleito
democraticamente com ampla votação, inclusive, de pessoas que são justa-
mente os alvos de sua política assassina. Este é um dos paradoxos do racismo
à brasileira: difuso, evasivo, mascarado, complexo, implacável e persistente.
A vítima mais recente dessa cruzada racista foi a menina Ágatha Vitória
Sales Felix, de apenas 8 anos, morta com um tiro nas costas no Complexo
de Favelas do Alemão (RJ), em uma operação policial em 20 de setembro
de 2019. A morte dela se soma às 1.249 pessoas mortas pela polícia nos oito
primeiros meses do ano. Destas, 16 crianças6.
Ao realizar este Simpósio, o Ministério Público do Trabalho contribui para uma
importante tendência que se situa no elenco das conquistas do movimento negro e da
população negra ao longo dessas décadas: a formulação e implantação de políticas in-
ternas e públicas por parte de órgãos governamentais e instituições da sociedade civil
no intuito de enfrentar e superar os efeitos da discriminação racial que impera desde
a fundação da nação. Sendo assim, consideramos imprescindível que este Simpósio
faça um apelo ao Ministério Público do Rio de Janeiro para que tome as providências
necessárias diante da política assumidamente assassina do atual governo estadual. Tal
política de segurança identifica o povo preto e pobre como o inimigo a ser combatido
em solo e abatido desde o alto por atiradores alojados em helicópteros. Na sua guerra
contra essa população, o governo mata e depois atribui, cinicamente, ao narcotráfico
a culpa pelas mortes ocorridas. Para a máxima autoridade estadual e policial, o estado
de guerra justifica, ao arrepio da lei, a matança direta e o desprezo oficializado dos di-
reitos dos cidadãos. Este Simpósio também precisa se posicionar contra a proposta de
excludente de ilicitude e outras que tramitam no Congresso Nacional, travestidas de
projeto anticrime. Caso aprovado, o conjunto de medidas apresentadas sob este título
eufemístico constituirá um grave retrocesso civilizatório, com a institucionalização do
assassinato como política de Estado – isto é, a oficialização da barbárie que já preva-
lece, mas ainda sem o endosso das normas jurídicas do país.
No livro O Genocídio do Negro Brasileiro, Abdias Nascimento caracte-
rizou as bases históricas e empíricas do processo de racismo que culmina no
atual cenário, e apresentou um conjunto de propostas para enfrenta-lo. Em O

6
https://www.oabrj.org.br/noticias/nota-oabrj-sobre-morte-menina-agatha-complexo-alemao, acessado em
21.set.2019.

220
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Quilombismo, ele previu que a tentativa de se construir um Estado democráti-


co de direito com justiça social, sem a devida atenção a esse processo, estaria
fadada ao fracasso. A proposta do Estado quilombista que ele esboçou indica
possíveis caminhos para evitar tal fracasso.
Muito recentemente, 40 anos após a publicação de O Genocídio do
Negro Brasileiro, destacados cientistas sociais, historiadores, jornalistas e
intelectuais vêm chegando a um consenso bastante sólido sobre o papel da
escravidão como pedra fundamental da estruturação da sociedade brasileira7.
Segundo esse consenso, o sistema escravista e sua herança de racismo consti-
tuem o principal determinante das atuais desigualdades e injustiças, das quais
o quadro de violência contra a população negra e quilombola, os povos indí-
genas e as mulheres se destacam como a mais grave característica. Ou seja,
o trabalho desse intelectual negro, raramente citado nos tratados acadêmicos,
forma a base do pensamento atual sobre o tema.
Quilombismo e reparação
A proposta do Estado quilombista recolhe e resume a da reparação da es-
cravidão, à medida em que reconhece e cobra a dívida gerada pelos séculos de
trabalho não remunerado, além das violações sistemáticas da condição humana
dos povos e das pessoas escravizadas. No ideário quilombista, a prioridade é
a reparação coletiva, direcionada às comunidades quilombolas através da de-
marcação e legalização de suas terras, bem como políticas públicas de proteção
e desenvolvimento da ocupação comunitária dessas terras, dentro da tradição
ancestral; direcionada à população negra através de políticas públicas de reco-
nhecimento e preservação de seu legado histórico e cultural, ensino da história
e cultura africana e afrodiaspórica, ação afirmativa consolidando o acesso dos
negros à educação, ao mercado de trabalho privado e ao serviço público, à se-
gurança alimentar e habitacional e aos serviços de saúde e segurança pública.
São direitos asseguradas no Brasil pela Constituição de 1988 que até o atual
momento carecem de aplicação e de garantia na prática para as populações em
questão. O respeito ao Estado democrático de direito implica no cumprimento
desses princípios constitucionais, que teria como consequência a superação de
desigualdades em vários campos. Mas não seria a solução final do problema.
A reparação através da remuneração pecuniária aos descendentes de afri-
canos escravizados é uma proposta que vem merecendo cada vez mais atenção
nos Estados Unidos. Um sintoma da extensão dessa visibilidade está no pro-

7
Uma das referências mais destacadas desse consenso é o trabalho de Jessé de Souza (2017).

221
Organizadora : Edelamare Melo

cesso pré-eleitoral de 2020, em que uma mulher branca candidata, Marianne


Williamson, anuncia um plano de reparações como parte de sua plataforma
política8. Em junho de 2019, uma audiência pública na Câmara dos Represen-
tantes explorou a questão da reparação em consequência do projeto de lei H.R.
40, de autoria da deputada negra Sheila Jackson Lee (D-TX), que propõe a
criação de uma comissão para estudar e desenvolver propostas de reparação9.
O exemplo das reparações pagas pela Alemanha aos descendentes de ju-
deus e de pessoas escravizadas durante o período do nazismo indica a potencial
viabilidade da proposta. Até 1990, a Alemanha havia desembolsado o equiva-
lente a US$ 40 bilhões em compensação às vítimas judias do regime nazista10.
Em 2013, o país assumiu um novo compromisso, o de investir US$ 1 bilhão
nos cuidados de idosos judeus vítimas da perseguição, escravização e dos cam-
pos de concentração11. De acordo com um analista da proposta de reparações
para os afrodescendentes nos Estados Unidos, o exemplo da Alemanha sugere
que há possibilidade de se encontrar uma solução política quando o lado que
perpetrou o crime apresenta a proposta ao lado das vítimas (Craemer, 2018).
Certamente, a proposta cabe nos princípios do quilombismo, cuja abor-
dagem, entretanto, é muito mais ampla. O quilombismo parte do princípio da
agência histórica dos próprios afrodescendentes, protagonistas das estratégias
e ações de sua própria libertação. E vai mais longe, situando o combate ao ra-
cismo e a construção do Estado democrático de direito com justiça social como
alvos desse protagonismo. Não é à toa que o ensaio apresentado no Panamá em
1980 (Nascimento, A., 2019, p. 271-312) abre com a afirmação da necessida-
de de recuperação e valorização da memória do protagonismo do povo negro
no palco da história mundial como base para a consolidação de sua identidade
positiva com autoestima, condição necessária para que o povo negro assuma
seu papel de liderança na construção do Estado quilombista. A demanda da re-
paração pode ser uma estratégia para financiar a preparação de quadros para de-
sempenharem esse papel. Mas a ênfase do quilombismo é no projeto maior que
contempla o conjunto da população em seus diversos segmentos étnico-raciais:
a construção de um Estado democrático de direito que atenda às necessidades e
respeite os direitos e o legado histórico-cultural de todos os seus cidadãos.

8
https://www.marianne2020.com/issues/the-reparations-plan, acessado em 19.set.2019.
9
https://www.nytimes.com/2019/06/19/us/politics/slavery-reparations-hearing.html?partner=IFTTT, acessado em
20.set.2019. https://www.congress.gov/bill/116th-congress/house-bill/40, acessado em 20.set.2019.
10
https://www.latimes.com/opinion/story/2019-07-19/reparations-germany-hr40-holocaust-slavery, acessado em
20.set.2019.
11
https://www.spiegel.de/international/germany/germany-to-pay-772-million-euros-in-reparations-to-holocaust-
survivors-a-902528.html, acessado em 20.set.2019.

222
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

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223
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

História da sexualidade,
corporeidade e gênero.

Elisia Santos

A proposta deste trabalho é revisitar os conceitos sobre sexualidade,


corporeidade e gênero. Estas temáticas têm ganhado bastante visibilidade na
área das ciências humanas e da saúde.
Para Goellner o corpo é construído com o passar dos diferentes tempos,
espaços, conjunturas econômicas, grupos sociais, étnicos, raciais, neste sentido
nosso corpo é “mutável” e “receptivo” às intervenções históricas, sociais, cul-
turais e científicas, sociais e culturais, apesar de seguirmos normas e padrões
estabelecidos por uma sociedade hegemônica e muitas vezes heteronormativa.
Por conta disso nosso ponto de discussão neste primeiro capítulo é pensar no
corpo e sua influência nas representações de gênero e das sexualidades.
O movimento feminista é fundamental para construção do conceito de gê-
nero na década de 70, atualmente é uma categoria bastante estudada por diversos
campos da ciência, para além das ciências humanas. O conceito de gênero refere-
se à construção social do sexo podendo então separar a dimensão biológica da
social. Este pensamento se apoia na ideia de que há machos e fêmeas na espécie
humana, mas o ser homem e o ser mulher são construídos culturalmente.
Não podemos esquecer a clássica frase de Simone de Beauvoir no livro O Se-
gundo Sexo, publicado em 1949, um marco dentro do movimento feminista que afir-
ma: “Não se nasce mulher, torna-se mulher” (BEUAVOIR, 1980). Nesta frase deixa
claro que a mulher não tem um destino biológico determinista com funções e papéis
consolidados, estas são formadas dentro do seio da sociedade, da mesma forma que
o homem. Contudo, aquelas ficam aprisionadas ao papel de dona-de-casa, esposa e à
maternidade, outra opção seria os conventos e senão fosse uma “boa” moça o prostí-
bulo. Porém, a própria Simone rompe com o que seria este destino feminino.
Homens e mulheres existem dentro uma cultura e são moldados a partir
desta, não há uma naturalidade nos papéis e funções, no senso comum as con-
dutas ditas femininas ou masculinas são consideradas como naturais aos cor-
pos. Para Antropologia, ciência que estuda as diversidades culturais a dimen-
são biológica da espécie humana não é essencialmente um fator explicativo.
Compreender o conceito de gênero, corpo e de sexualidade em suas
interfaces é ir além do que denominamos masculino/feminino. Desejamos,

225
Organizadora : Edelamare Melo

nesta primeira etapa do módulo proporcionar um olhar mais cuidadoso para


as construções de gênero, que se naturalizam e normatizam a sexualidade,
reduzindo toda análise ao sexo, ou melhor, dizendo, desejo heterossexual,
gerando, assim, desigualdades, indiferenças e inúmeras violências.
Iremos trabalhar os três conceitos, o primeiro será o de gênero. Este que re-
flete o modo como diferentes culturas, em diversos períodos históricos, classificam
atributos pessoais, os papéis sociais, labor, atividades de trabalho na esfera pública
e privada, e os encargos destinados a homens e a mulheres no campo da política, da
religião, da educação, do lazer, dos cuidados com saúde, da sexualidade etc.
O conceito de gênero é oriundo do movimento feminista anglo-saxão e
suas teóricas e as pesquisadoras de diversas disciplinas. Naquele momento, o
movimento tinha por finalidade evidenciar na linguagem o caráter essencial-
mente social das discriminações baseadas no sexo.
O conceito consegue mais expressividade na década de 70, como objeto
de análise das ciências sociais, atualmente, há ele perpassa diversas disci-
plinas, principalmente aquelas que fazem alguma interface com o campo da
sociologia, saúde ou do direito. Dentro das ciências sociais, os estudos de
gênero foram e são responsáveis por estudos sobre corpo e sexualidade.
No Brasil, as feministas introduzem o conceito na década de 80, na inten-
ção de evidenciar que “o conceito de gênero se configurava num construto social
e histórico, produzido sobre as características biológicas” (LOURO, p.21,1997).
Para esta autora, para compreender a condição e as relações de homens
e mulheres numa determinada sociedade, precisaríamos estar atentos não exa-
tamente a seus sexos, mas o que socialmente se construiu sobre os sexos.
Pois, o conceito de gênero é construção e seu significado está para além
das diferenças biológicas entre os sexos, para Louro:
(...) o conceito pretende se referir ao modo como as característi-
cas sexuais são compreendidas e representadas ou, então, como
são trazidas para a prática social e tornadas parte do processo
histórico. (LOURO, p.22,1997).

Podemos observar que ao longo da história as mulheres começaram a


questionar este padrão que só (re) produziam desigualdades sociais e culturais
entre os sexos. Essa narrativa foi e é reforçada, quando perceberam que em todos
os setores sociais havia uma reprodução destas construções que gerava diversas
formas de hierarquia de gênero, em geral com destaque para o gênero masculino.
As autoras Scott (1995) e Butler (2003) discutem que precisamos rejeitar
o determinismo biológico implícito no uso de expressões como “sexo” ou “dife-

226
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

rença sexual”, pois a palavra exerce poder sobre os corpos que ainda estão cons-
truindo seu gênero, identidade de gênero e sexualidade, faz-se necessário pensar
possibilidades de resistência a essas formas de poder exercidas pelo discurso
(...) através do aprendizado de papéis, cada um/a deveria co-
nhecer o que é considerado adequado (e inadequado) para um
homem ou para uma mulher numa determinada sociedade, e res-
ponder a essas expectativas. (LOURO, p.24,1997).

Segundo hooks (1984) gênero é instrumento basilar do patriarcado ca-


pitalista de supremacia branca, pois em diferentes tempos históricos, contex-
tos sociais, culturais, econômicas, religiosas e políticas tiveram desigualdades
oriundas dessa relação. O binarismo masculino-feminino criou polos opostos
– homem x mulher – que se convivem num sistema de dominação-submissão.
Por conta disso, a ideia de dominação-submissão é retroalimentada ao assina-
lar a superioridade de apenas um dos polos (masculino),
(...) entender processos de construção/reconstrução das práticas
das relações sociais, que homens e mulheres desenvolvem/vi-
venciam no social” (Bandeira e Oliveira, 1990, p.8), tem redun-
dado em algumas questões que precisam ser melhor clareadas.
Em primeiro lugar, o conceito tem uma história, pois ao longo
dos séculos, as pessoas utilizaram de forma figurada “os termos
gramaticais para evocar os traços de caráter ou os traços sexuais
(Scott, p. 72, 1995)

Não tem como discutir gênero e não adentramos o conceito de sexua-


lidade e corpo, as culturas constroem modelos de sexo, sexualidade, corpo
e identidades de gênero que estão intimamente afetados e atravessados uns
pelos outros. Na nossa cultural, temos o péssimo hábito de colocar como
“normal” a relação heterossexual e qualquer comportamento, gosto ou prática
sexual que transcorra esse binarismo é visto como desvio da norma.
A sexualidade deve ser o ápice do amor, ternura e intimidade, que integra o que
sentimos, é ser-se sensual e ao mesmo tempo sexual sem preconceitos e padrões.
A sexualidade é uma experiência pessoal e subjetiva.
Sendo assim a sexualidade pode ser percebida no desenvolvimento huma-
no, “potencialmente geradora de bem-estar, crescimento, de auto-realização, mas
também e, simultaneamente, de conflitos e sofrimento” (Vilar, 2002, p. 14).
A sexualidade vem sendo discutida e resignificada com o passar dos
anos, para Weeks (2003), existem cinco dimensões que são cruciais para a
organização social da sexualidade:

227
Organizadora : Edelamare Melo

1. Sistemas de família e parentesco: Nesta primeira dimensão é discu-


tido o tabu do incesto, que foi uma forma de regular a sexualidade. Na
sociedade ocidental contemporânea é natural a proibição de relaciona-
mento entre parentes de primeiro grau;
2. Organização econômico-social: Na segunda dimensão é analisado
o labor condicionado a vida sexual. Exemplificando, a imersão das mu-
lheres no mundo de trabalho teve consequências inevitáveis nos pa-
drões de vida familiar e levando um maior reconhecimento da autono-
mia sexual das mulheres;
3. Formas de regulação social; formais e informais: A regulação for-
mal da sexualidade passa por constantes mudanças, principalmente as
relacionadas com a religião numa normatização através da medicina,
educação, psicologia, intervenção social e práticas de promoção da saú-
de. A regulação informal tem uma maior dificuldade de romper com os
padrões consensuais dos grupos hegemônicos, assim acaba por reforçar
certas convenções sociais, através de rituais de humilhação pública.
4. Contextos políticos: é o controle do poder executivo, legislativo ou
do judiciário em intervenções morais em relação à sexualidade.
5. E por último, mas não menos importante às culturas de resistência: são
os grupos de oposição e resistência aos códigos morais impostos socialmente.

A influência destas dimensões é determinante para todas as mudanças


ocorridas nas sociedades ocidental e oriental, que puderam ter alterações nos
cenários e processos de socialização sexual. Assim sendo, a sexualidade é
largamente influenciada pelas normas sociais, deveras a influência é recípro-
ca, estamos na era da liberdade sexual e da emancipação feminina. Desde a
Antiguidade que a sexualidade é objeto de estudo e preocupação moral de
homens brancos, pois na Grécia Antiga, o papel que se desempenhava na re-
lação sexual era todo masculino e a mulher apenas, uma propriedade.
E falar se sexualidade é discutir o corpo na sociedade. A forma como
usamos o corpo está relacionado a um conjunto de sistemas simbólicos, idios-
sincrasias e nossas identidades, nosso corpo se inscreve a cultura que perten-
cemos ao mesmo tempo em que se originam e se propagam significações que
constituem a existência coletiva e individual.
Este corpo é um ser agente que adquire significado na experiência so-
cial, sendo “ele próprio um discurso a respeito da sociedade, passível de leitu-
ras diferenciadas por diferentes agentes sociais” (VICTORA, p.75, 2001). As
práticas e representações femininas a respeito da maternidade, sexualidade,

228
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

e contracepção esta relacionadas à compreensão dos significados, pois, é no


discurso social que percebemos as diversas leituras dos sujeitos sociais e a
possibilidade de contínua (re) interpretação.
Estes corpos organizam-se numa dinâmica, que permitem sempre novas
possibilidades de resistência aos ditames da normatividade, desse modo, pode-
mos compreender as atitudes em relação ao corpo e à sexualidade em seu contex-
to histórico específico, explorando as condições historicamente variáveis que dão
origem à importância atribuída à sexualidade num momento particular e apreen-
dendo as várias relações de poder que modelam o que vem a ser visto como com-
portamento normal ou anormal, aceitável ou inaceitável.” (WEEKS, p.43, 2010)
Corpo, gênero e sexualidade estão imbuídos numa série de conceitos
e ideias que serão discutidos no decorrer deste módulo. Estas categorias são
moldadas, ganham formas, e estão imbricadas com os mecanismos de poder,
presente nos discursos e práticas sociais.
Infelizmente na nossa sociedade podemos observar a mercantilização do cor-
po por baixo dos panos patriarcais, do falso moralismo e escravidão sexual. Vive-
mos numa sociedade do espetáculo, em que o corpo e o sexo são a sua apoteose.
Muitos nem querem discutir sexualidade e pouco se importa com os de-
sejos alheios, mas estão preocupados em exaltar corpos que eles consideram
perfeitos, dietas excessivas, receitas para se chegar ao orgasmo, propagandas
sensuais em outdoors e cartazes, silicone, produtos eróticos para ser sensuais
etc. Desta maneira a sexualidade tem uma referência e modelo jamais alcançado.
Precisamos discutir estes conceitos para não acabarmos saturados no
vazio que muitas vezes é preenchida pela angústia que consome nossa felici-
dade e ânsia de vida.
Nossa proposta neste trabalho é estudar estas categorias e as descons-
truções para assim, trazer reflexões sobre o caráter mutável do que é natura-
lizado dentro da vida social. Acreditamos que uma das tarefas mais delicadas
para você leitora e leitor será lidar com determinadas pressuposições que são
provenientes de grupos hegemônicos e não consideradas universais.
As ideias e concepções sobre corpo, sexualidade e gênero são extrema-
mente variadas e, como intelectuais que somos, não devemos ser generalistas.
Esperamos que você possa fazer uma reflexão antropológica e refinar a sua
prática da intervenção sobre o seu corpo e os alheios.
A questão de gênero ganhou maior visibilidade em meados dos anos
de 1990, principalmente no ramo da educação. Este tema conseguiu grandes
avanços no âmbito do Estado, das políticas públicas e de várias medidas con-
tra a discriminação da mulher.

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Organizadora : Edelamare Melo

Infelizmente ainda são poucas as investigações que abordam o impacto


da discriminação de gênero, mas os impactos são percebidos em sua magni-
tude no nosso dia a dia.
Na sociedade como um todo, as relações de gênero ganham pouca rele-
vância, temos poucas pessoas formadas que conseguem tem uma visão apro-
fundada sobre as dimensões de gênero no dia-a-dia. Acreditamos que a maior
dificuldade é oriunda de pouca reflexão das desigualdades entre os sexos, que
desemboca em poucas políticas públicas inclusivas.
Para pensar gênero, precisamos discutir sexo e corpo dentro de um con-
texto histórico. Existe um caminho repleto de valores e cultura em cada tem-
po. Falar de masculino ou de feminino acarreta num julgamento de valor, na
referência a uma conjuntura cultural e social.
No século XX o movimento feminista denuncia o eterno feminino e o
eterno masculino. Friedan afirma que, neste momento, há uma angústia do
eterno feminino, de uma mulher sedutora. Contrapondo a esta ideia está
a de uma mulher do “lar”. A antropóloga Margareth Mead, ainda no século
XX, afirmava que homem e mulher são constructos socais, cujos atributos e
papéis são variáveis, estes são transmitidos pela socialização, contudo não é
a essência do ser humano,
não temos mais bases para falar desses aspectos do comportamento
como sendo determinados pelo sexo... O material estudado sugere
que podemos dizer que muitos, se não todos, os traços de perso-
nalidade que identificamos como masculino ou feminino são tão
determinados pelo sexo quanto as vestimentas, maneiras ou o tipo
de chapéu que uma sociedade a um determinado período designa
para cada sexo” (MEAD, 1968, p.259-260).

Mead, mesmo sem categorizar, estava discutindo a questão de gênero,


que foi a base da revolução dos anos 30. Ela que propõe a ideia da desnatura-
lização das identidades sexuais, muito próximo do pensamento de Simone de
Beauvoir, autora da frase clássica do movimento feminista:
“Não se nasce mulher, torna-se mulher” (BEAUVOIR, 1980, p.129).
Esta é uma das frases mais famosas do seu livro: O Segundo Sexo, que
como MEAD, afirmava que a essência humana não é determinada, mas mu-
tável no processo social. Este livro instrumentaliza a segunda onda feminista
nos anos 60 e 70, que foi marcada pelas reivindicações de direitos ao corpo
e ao prazer. Questionada sobre seu livro, Simone afirmou que esperava que
seus escritos servissem para que as mulheres lutassem por seus direitos e me-
lhorassem suas vidas:
230
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Devem passar à ação coletiva. Não o fiz pessoalmente até agora


porque não havia movimento organizado com o qual eu estivesse de
acordo. Mas, apesar disso, escrever O Segundo Sexo foi realizar um
ato que ultrapassava a minha própria libertação. Escrevi esse livro
por interesse pelo conjunto da condição feminina e não apenas para
compreender o que era a situação das mulheres, mas também para
lutar, para ajudar as outras mulheres a se compreenderem. Aliás,
nestes vinte anos, recebi enorme quantidade de cartas de mulhe-
res, dizendo que meu livro as tinha ajudado muito a compreender
sua situação, a lutar, a tomar decisões. Tive sempre o cuidado de
responder-lhes. Encontrei algumas delas. Sempre tentei ajudar as
mulheres em dificuldades. (SCHWARZER, 1986, p. 41)

O sexo biológico, como conhecemos no senso comum, o nascer femini-


no ou masculino, não exerce coerção sobre a identidade sexual, isto é, sobre
os comportamentos de gênero e a sexualidade.
O gênero engendra a tangibilidade do corpo e dos comportamentos no
espaço público, contudo, o masculino e o feminino não existem senão através
das reincidências, como as normas de comportamento.
Contudo, as concepções tradicionais de gênero, corpo e sexualidade
estão desmoronando. A feminilidade e a masculinidade, na atualidade, estão
sendo vistas como múltiplas. O gênero torna-se o resultado de decisões indi-
viduais e a identidade de homem ou de mulher ou de outra coisa, independe
de seu sexo biológico.
Corpo, Gênero e Sexualidade padecem de três problemas de ‘interpretação’:

1. Religioso: as religiões monoteístas tendem a ter uma visão conserva-


dora e misógina;
2. Masculina: dominação masculina como hegemônica;
3. E família tradicional: excluindo todas as diversidades existentes.

Contudo, as concepções tradicionais de gênero, corpo e sexualidade


estão desmoronando. A feminilidade e a masculinidade, na atualidade, estão
sendo vistas como múltipla. O gênero tornasse o resultado de decisões indivi-
duais e a identidade de homem ou de mulher ou de outra coisa, independen-
temente de seu sexo biológico.
Esta que envolve a questão do sentimento, que poder ser volátil e even-
tualmente revogável, pois
(...) a identidade performativa de gênero não é apenas a repetição
de um modelo já dado, mas uma improvisação teatral realizada

231
Organizadora : Edelamare Melo

através de um plano e encenação, do qual cada ator apropria-se


de acordo com sua vontade, deslocando-o segundo seu próprio
estilo. O gênero é apenas um recurso, uma caixa de ferramentas
à disposição dos indivíduos. Ele não é uma coerção, mas uma
proposta, semelhante a um papel desempenhado por um ator
num palco de teatro. (BRETON, 2014, p.20)

Esta caixa imposta de gênero é extremamente contestada, inclusive Mu-


rat (2006) afirma que as polaridades do masculino e do feminino estão com
os dias contatos, pois temos no nosso universo social múltiplas definições so-
ciais com diversas nuances ou exceções, entre elas o terceiro sexo, que quebra
a lei de gênero clássico ao apresentar os hermafroditas e os intersexuados que
contêm os atributos dos dois sexos que subvertem a anatomia e as categorias
socialmente em uso. (MURAT, 2006, 11)
Nestas discussões temos questões mais profundas que a anatomia. São
os sentimentos e sua identidade, afinal o corpo feminino ou masculino não dá
conta do homem ou da mulher social que estas pessoas são.
O filosofo Foucault (1987) em História da Sexualidade, afirma que o sexo,
que é um desejo natural, foi regulado por uma sociedade extremamente reguladora
e moralista, ancorados por um discurso religioso judaico-cristão, exemplificando:

• O tabu do incesto;
• A ordenação política e social;
• A exogamia;
• A monogamia;
• Os acordos políticos e;
• O casamento.

Posteriormente este discurso religioso foi substituído pela ciência com


posturas muito próximas da teológica. O sexo ainda é confundido com gêne-
ro. Este que é marcado por um olhar idiossincrático, lido e interpretado pela/
na cultura, Maria Luiza Heilborn pontua que:
Cumpre agora identificar os processos pelos quais a identidade
sexual constitui-se na cultura ocidental em uma das dimensões
centrais da identidade social das pessoas. Essa afirmação filia-se à
perspectiva construtivista, que sustenta que a sexualidade não pos-
sui uma essência a ser desvelada, mas é, antes de tudo, um produto
de aprendizado de significados disponíveis para o exercício dessa
atividade humana (HEILBORN, 1996, p. 138).

232
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Por conta disso, não cabe mais compreender a sexualidade como um


imperativo biológico, não podemos permanecer numa linha unívoca e essen-
cialista, devemos conhecer o conjunto de conhecimentos sexuais hegemô-
nicos, mas também estudar os que são subalternizados, para que possamos
dialogar e construir novas leituras e formas de estar no mundo.
Nesse longo caminho, podemos perceber que as sexualidades e desejos
não hegemônicos precisam ser reconhecidos, legitimados e respeitados. Falar
do pensamento moderno, suas dualidades e implicações quanto a gênero, corpo
e sexualidades, é caminhar para superação de obstáculos. O antropólogo Stu-
art Hall afirma que precisamos tomar o corpo como uma tela de representação
(HALL, 2006), para pensarmos novas experiências e possibilidades existenciais.
Levando sempre em consideração, que este novo ainda pode está car-
regado de julgamentos de valor e de controvérsias, pois o mundo ocidental
ainda insisti em estabelecer uma diferença entre homem e mulher através de
socializações específicas.
Precisamos, enquanto intelectuais orgânicos que somos, compreender o cor-
po, sexualidade e gênero como capítulo político a ser escrito na sociedade contem-
porânea. Pois, o sexo, assim como o corpo, é a solidificação de significados sociais
que não mais representam uma identidade, mas todo um projeto pessoal e político.
O transexual e o transgênero são os indivíduos pós-modernos, eles es-
tão para que possamos discutir seu papel social, retificar sua origem e quebrar
preconceitos. O corpo deles é uma construção cirúrgica, hormonal, plástica e
tecnológica que veio para repensar os padrões. Eles assumem uma identidade
que circula, com um habitáculo provisório de uma identidade que abomina
toda e qualquer fixação e escolhe uma forma de nomadismo de sua presença
na sociedade. (LE BRETON, 2012; 2013).
Este discurso é para que possamos considerar que por dentro da lógica
de regulação (sexual), existem lutas e contratos que subvertem a lógica insti-
tuída e estruturam novos arranjos sociais e afetivos.
Diante disso, este eixo sexo-gênero-sexualidade, é para quebrar o pre-
conceito e a discriminação que naturaliza o uso da violência simbólica, física,
psicológica e material com a pretensa superioridade daquele que discrimina.
Estes eixos precisam ser refletidos como movimentos que levam a movimen-
tos sociais extremamente importantes para nossa sociedade.
A construção social baseia-se em qualquer entidade institucionalizada,
ou não, ou um artefato pautado sob um sistema social, desenvolvido a partir das
relações sociais de indivíduos numa cultura ou sociedade específica, estabele-
cendo de uma certa forma uma organização e coerção social naquele espaço.

233
Organizadora : Edelamare Melo

A dualidade do masculino e do feminino, fortalece estereótipos e cria


uma hierarquia sobre essa construção binaria, como essa dualidade foi cons-
truída, avalia-se que pode então ser desconstruída e reconstruída de outra
forma, que não seja nociva a nenhum ser.
A construção do feminino e do masculino foi criada, com bases solidas, as quais
perduram, e trazem consequências, como o paradigma do patriarcado, que foi cons-
truído a partir da ideia do que é “tipicamente” feminino e “tipicamente” masculino.
As logicas de construção de papeis sociais de gênero determinam diversos
aspectos na vida dos homens e das mulheres que se perpetuam até o tempo das atua-
lidades. Às mulheres o lugar social que alcançam é no meio privado, estão fadadas
a serem donas de casa. Diversamente, para o homem, o seu espaço social é o meio
público, o estar na rua. Enquanto a mulher produz as atividades domésticas, está
na pratica na cozinha, ao homem é reservado o meio do espaço público, está nos
escritórios, praticando as atividades fora de casa.
As paletas de cores são constituídas socialmente também para serem demarca-
das algumas para homens e outras para mulheres, as mulheres são reconhecidas por
usarem rosa, enquanto aos homens a cor demarcada para ele é o azul. A construção das
cores interfere muito no imaginário infantil das crianças, criando já uma distinção de
gênero a partir das cores que eles utilizam. Os chás de fralda e de bebês das crianças,
até mesmo antes deles nascerem já determina a cor a partir do sexo biológico que a
criança vai ter, já estagnando a questão do sexo biológico a prerrogativa de gênero.
As atividades a serem executadas pela lógica binaria de gênero, tam-
bém é atribuída desde cedo, quando se dá brinquedos como bonecas, cozinhas
para as meninas, e aos meninos são lhe dados carros, armas, demarcando
também uma forma de se comportar no mundo.
As meninas devem carregar a postura de serem belas, comportadas, tí-
midas, arrumadas, recatadas, gentis, dóceis, delicadas, vaidosas, sensíveis, en-
quanto os meninos ficam com as características de serem bravos, viris, ocupa-
dos, insensíveis, brutos, largados. Sempre determinando às mulheres um lugar
de subserviência aos homens, estando no mundo para servir aos homens.
A construção social do gênero é algo que vem se dando há muito tempo,
se construindo sob bases misóginas, sexistas e patriarcais, que tem uma lógi-
ca de hierarquização sobre os gêneros, e admitindo papeis engendrados para
determinados gêneros, sem nem mesmo admitir a compreensão de um estudo
que não esteja dentro dessa lógica binaria e segregacionista.
A diversidade sexual é o termo usado para determinar uma maneira inclusi-
va a todas as diferentes formas de sexualidade. Enquanto a orientação sexual re-
fere-se à direção ou inclinação do desejo afetivo de uma pessoa para com a outra.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

A diversidade sexual e orientação sexual são múltiplas, e cada uma carrega


suas definições e compreensões, devendo todas serem respeitadas e compreendi-
das no âmbito da diversidade. Pretende-se então fazer uma espécie de glossário,
para a compreensão das mais diversas sexualidades e orientações sexuais.

• Agênero ou não binária: O sujeito que não se identifica ou não perten-


ce aos gêneros binários, ou seja, masculino e/ou feminino
• Binarismo: Visão dualista de ser/estar no mundo, classificado como
um gênero masculino ou feminino.
• Bissexual: O indivíduo que sente atração sexual por mais de uma pes-
soa de gêneros diferentes
• Cisgênero: A pessoa que se identifica com sua identidade de género
igual à do seu sexo biológico.
• Gay: Termo inglês utilizado para definir o indivíduo que se relaciona
com pessoas do mesmo sexo.
• Homossexual: Pessoas que sentem atração de forma física e afetiva
por pessoas do mesmo sexo ou gênero.
• Intersexual: Ser que possui variação de características sexuais incluin-
do o fator cromossômico, gônada ou órgão genitais.
• Intergênero: É muito semelhante ao intersexual, mas essas pessoas não pro-
curam se identificar nem como homem nem como mulher, sem designar sua
orientação sexual, mas um conceito voltado para a identidade de gênero.
• Lésbica: Mulher que tem atração por outras mulheres.
• Panssexualidade: É a característica dada a pessoas que se sentem atra-
ído por todas as diversidades sexuais, tanto homem, quanto mulheres,
como também por pessoas que não se identificam com o seu gênero.
• Transexual: Pessoa que possui a identidade de gênero oposta ao seu
sexo biológico.
• Transhomem: Individuo que possui sexo biológico de mulher, mas se
identifica como homem
• Transmulher: Ser que possui sexo biológico de homem, mas se iden-
tifica enquanto mulher
• Travesti: Pessoa que utiliza hormônios e faz modificações no corpo
através de intervenção cirúrgica, não sendo uma regra dada, para se re-
conhecer numa identidade de gênero diferente a do seu sexo biológico.

A compreensão de todas as temáticas que permeiam as questões de gênero,


sexualidade, e diversidade perpassa por diversas categorias de analise que devem

235
Organizadora : Edelamare Melo

ser compreendidas para a noção total da temática na atualidade, os termos são


categorias importantes para entender e classificar os indivíduos na sociedade.
A partir de uma junção dos três pontos abordados, desde a construção
social de gênero, a sexualidade como construto histórico e a temática da di-
versidade sexual e orientação sexual/afetiva, faz-se necessário o entendimen-
to de três eixos centrais que perpassam por todas essas categorias:

• Expressão de gênero: como o indivíduo se apresenta, desde a sua


aparência até os seus comportamentos, de acordo com as expectativas
padrão da sociedade sobre a aparência e o comportamento que é deter-
minado para cada gênero.
• Identidade de gênero: o gênero com o qual o sujeito se identifica, po-
dendo ou não estar de acordo com o gênero que lhe foi atribuído ao seu
nascimento e/ou seu sexo biológico.
• Orientação sexual: é a atração sexual/afetiva por alguma pessoa, for-
ma de vivenciar internamente à sexualidade.

Sobre a base da compreensão das temáticas da sexualidade, corporei-


dade, gênero, sexo biológico, se permite uma compreensão da sociedade que
se vive e a temporalidade que se trata, podendo se ter uma compreensão do
contexto global e local.
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Relação da violência de gênero com o


aumento da criminalização feminina
e baixa empregabilidade de mulheres
egressas do sistema penitenciário da Região
Metropolitana do Rio de Janeiro

Flavia da Silva Pinto

Justificativa
A população carcerária feminina no Brasil é a quarta maior do mundo,
com quantitativo atual de 42 mil mulheres presas (INFOPEM, 2018), no livro
Encarceramento em Massa a antropóloga Juliana Borges demonstra que esta
população cresceu mais de 500%, nos últimos 10 anos. O Rio de Janeiro tem o
quantitativo, atualmente, de 2.229 mulheres (BNMP 2.0), distribuídas em 6 pri-
sões entre, presídios e penitenciarias. Deste coletivo 64% são mulheres negras,
de origem pobres da favela, possuem baixa escolaridade, a maioria foi vítima
de abuso sexual, físico e psicológico e muitas são LGBTQI+. Os estudos sobre
o perfil desta população, ainda são muito insipientes, o que demonstra uma
necessidade de aprofundamento de analises menos superficiais e incompletas
deste grupo social para que seja possível a construção de uma política pública,
a médio e longo prazo, que posso fortalecer a inserção deste grupo social no
mercado de trabalho, fator fundamental para sua emancipação social e inter-
rupção do ciclo da violência sofrida pelas mulheres no sistema patriarcal.
Ao observar o perfil das mulheres encarceradas percebe-se um padrão que se
repete onde a maioria tem: a mesma origem, a mesma cor de pele, o mesmo nível
de escolaridade e vitimização dos diferentes tipos de violências de gênero, o que
leva a crer que tal regularidade não deve ser tratada como similaridades ou coin-
cidências uma vez que esta é uma forma simplista de tratar os fenômenos sociais.
De acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano de 1995, de
1.3 bilhões de pessoas na pobreza no mundo 70% são mulheres, o que de-
monstra que a “pobreza tem o rosto de uma mulher”. Estudos realizados em
176 países demonstram que mulheres com formação escolar até o secundário
se veem forçadas a recorrer ao tráfico de drogas para a sua subsistência e de
seus filhos. Os altos índices de desemprego também é um fator considerável
para envolvimento das mulheres com atividades ilegais o que as coloca em
241
Organizadora : Edelamare Melo

posição de maior vulnerabilidade para absorção no submundo do crime o que


explicaria o aumento da criminalização da pobreza.
Estudos sobre as mulheres egressas do sistema penitenciário são tão incipien-
tes quanto da população presidiaria. No entanto é sabido que, aproximadamente
80% das mulheres , ao tornarem-se presas, são abandonadas pela família, sofrendo
a ruptura dos laços afetivos e sociais, principalmente com suas(eus) filhas(os) que
passam a depender do acolhimento de outras pessoas, familiares ou não, que serão
também, os responsáveis pela decisão de levar ou não suas crianças para visitação
as suas mães dentro do cárcere. Esta questão também interfere diretamente na in-
serção social na vida pós cárcere. Diferente do universo feminino, os homens não
são tão brutalmente abandonados pela família, o que lhes assegura maiores chances
de reintegração social. É sabido que existem ofertas de abrigos, em sua maioria
de administração evangélica, para homens egressos do sistema prisional e/ou com
problemas de dependência substancia química, no entanto a existência desta rede
é menor ou praticamente inexistente para a mesma população feminina, fator que
também influencia na empregabilidade e reintegração social destas pessoas.
Outra questão bem diferente entre o universo carcerário masculino e fe-
minino é a orientação sexual. Apesar de não haver estudos que demonstrem,
podemos arriscar dizer que a população carcerária feminina se constitui de
80% de pessoas LGBTQI+, sendo muitas(os) desses “homens trans”, embora
este conceito não seja por estas pessoas usado, tão pouco conhecido e com-
preendido. A questão de orientação homoafetiva e da transexualidade é tam-
bém outro fator que irá influenciar na ressocialização e integração no merca-
do de trabalho formal ou informal da população feminina após sua libertação.
OBJETIVO
Coletar, observar e analisar, cientificamente dados que possam perceber
como a violência de gênero sofrida por estas mulheres na infância, adolescên-
cia e vida adulta colaboraram para a sua inserção no submundo da ilegalidade,
na inserção no tráfico de drogas e na vida ou ato criminal, que possam ajudar a
compreender o aumento criminalização feminina e entender como este ciclo da
violência, que não é interrompida ao se tornarem presidiarias, interferem na em-
pregabilidade e retorno com os vínculos familiares destas mulheres, compreen-
dendo estes fatores estruturantes para a integração social deste grupo de pessoas.
Pretende-se ter como campo de aplicação da pesquisa as unidades peniten-
ciarias Nelson Hungria e Talavera Bruce, onde a instituição Casa do Perdão, cuja
a proponente é ministra religiosa, realiza atendimento religioso a mais de 15 anos
mantendo com as duas unidades encontros permanentes quinzenais.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Histórico
A Casa do Perdão é um Terreiro de umbanda fundado em 23 de Abril de
1999, cadastrado junto a Secretaria de Administração Penitenciaria do Rio de
Janeiro – SEAP, para oferta de assistência afro religiosa no sistema prisional ca-
rioca, desde 2004. Nos últimos 12 anos, assistindo apenas mulheres no Presidio
feminino Nelson Hungria e na Penitenciaria Talavera Bruce, ambos localizado no
Complexo Penitenciário do Gericinó, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
O atendimento consiste em oferta de ensinamentos, rezas, cânticos e pa-
lestras sobre a religiosidade e cultura milenar africana e indígena. Em virtude
de ter formação na área das ciências sociais e atuar há 21 anos como ativista
social na área dos direitos humanos, as palestras trazem, também, os temas In-
terseccionais sobre o racismo, sexismo, violência de gênero, cidadania LGBT-
QI, liberdade religiosa, que são transversais ao processo histórico de formação
social brasileira, sendo estes temas presentes na vida destas mulheres.
Neste sentido, busca-se ofertar além do conhecimento religioso, abordar
assuntos que sejam utilizados pelas futuras egressas do sistema prisional, na
conquista de sua cidadania na vida extra cárcere. A cosmologia africana e indí-
gena, da qual deriva a tradição filosófica e religiosa umbandista e candomble-
cista, não trazem em sua cultural milenar o uso do dogmatismo e proselitismo
em sua pratica ritualística, seja nas atividades religiosas internas ao espaço
religioso ou em formato de apresentações, quando são transmitidas através de
palestras, como é feita dentro das unidades prisionais em que a instituição atua.

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Organizadora : Edelamare Melo

De acordo com informações do Departamento Nacional de Administra-


ção Penitenciaria - DEPEN, a Casa do Perdão é a única instituição de matriz
africana, cadastrada oficialmente, para oferta de assistência afro religiosa no
sistema prisional em todo o país. Ao longo destes 15 anos de atendimento,
a instituição teve, durante os anos de 2006 há 2012, assento no Conselho da
Comunidade, órgão previsto na Lei de Execuções Penais – LEP, composto
paritariamente por sociedade civil e poder público, com a finalidade de fisca-
lizar o sistema prisional. Como conselheiros a Casa do Perdão, através de sua
representante, teve a oportunidade de visitar, quase todos os presídios da re-
gião metropolitana do Rio de Janeiro. Atualmente o conselho está desativado.
Esta experiencia possibilitou verificar as diferenças entre as unidades
masculinas e femininas, principalmente em dois aspectos que mais chamaram
a atenção: a questão da massiva presença evangélica neopentecostal em todo
o sistema prisional, fato que faz com que cada presidio tenham as chamadas
celas evangélicas e destine este espaço as presas e presos, evangelizados e
considerados com “ bom comportamento”. As internas e internos que utilizam
e cela evangélica usufruem de “privilégios” não possíveis para as/os demais,
como por exemplo, ter um tempo maior de banho de sol, são mais escolhidas/
os para trabalhar na cadeia e desta forma reduzir seu tempo de prisão, tem
acesso livre para circular nos espaços internos das unidades penitenciaria,
em quase todas as cadeias, e no caso especifico da população feminina, são
as internas destas celas que receberão uma quantidade maior de absorventes
menstruais, doados pela Igreja Universal do Reino de Deus - IURD. Serão
elas também, que faram a distribuição do excedente, onde as mesmas, quase
sempre priorizam as presas igualmente evangélicas.
Outra questão que despertou a atenção foi a chamada reinserção social,
através da empregabilidade e moradia para os egressos e egressas do sistema
penitenciário. A forma com esta reinserção será conquistada tem haver direta-
mente com as condições de sobrevivência que está presa ou preso teve no seu
período em reclusão. Questões de impacto direto como as que envolvem não ter
rompido o vínculo familiar, receber visita ou recursos financeiros e materiais
da família, ter uma casa ou abrigo para morar após sua reclusão, rede de apoio
para sua moradia e sustento em sua vida fora da prisão. No caso do público
masculino, estes comumente não são abandonados pela família, filhos, esposas,
mães e amantes, realidade radicalmente diferente das mulheres em situação
de cárcere, que, são 80% abandonadas pela família, filhas(os), companheiros,
conforme relato das próprias internas. Aquelas que tem orientação homoafetiva
ou transexual, só recentemente tiveram autorização para receber visita regular

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

e intima de suas companheiras, mas tão somente aquelas(es) que forem unidos
ou casados judicialmente, o que é pouco comum no universo homoafetivo.
Todos estes fatores interferem diretamente na empregabilidade, moradia
e reinserção destas internas e internos no momento em que se tornam egres-
sas(os) do sistema. A perspectiva de objeto de estudo, é realizar observância
sobre o universo feminino, levando em consideração, todos os aspectos que
podem interferir interseccional mente na vida destas mulheres ou homens
trans. Entende-se por homens trans, pessoas nascidas geneticamente mulhe-
res, mas que se identificam psicologicamente e socialmente como homem.
O termo homem trans é um conceito considerado por grande parte do movi-
mento LBTQI como politicamente correto, porem nem todas as pessoas que
podem ser consideradas como homens trans, consideram esta terminologia
adequadas e aplicáveis para identifica-los ou representar.
Em virtude da população carcerária dos presídios feminino serem cons-
tituídos de mulheres, de diferentes orientações homoafetivas e de homens
trans, utilizaremos em todos os momentos o feminino e masculino, contem-
plando o gênero de identificação socialmente escolhida pelos homens trans, e
por esta razão quando usarmos as palavras no masculino é preciso que se en-
tenda que não estamos falando de pessoas nascidos biologicamente homens,
mas tão e somente estaremos nos reportando aos homens trans, que estão
cumprindo pena nas mesmas unidade prisionais que as mulheres.
Ao longo de todos estes anos de atuação junto ao sistema prisional ca-
rioca, a instituição foi procurada por mulheres e homens trans recentemente
saídos do cárcere, solicitando ajuda institucional e humana para sua sobrevi-
vência temporária que auxiliasse na reconstrução de suas vidas após o perío-
do prisional em virtude de não terem vinculo familiar, não terem para onde ir,
morar e sem condições de sobreviver. Em virtude da Casa do Perdão ser um
terreiro de tradição matriarcal, sempre foi ofertado o acolhimento, porem em
virtude da falta estrutura física, administrativa e financeira, houve bastante
dificuldade de ajudar estas pessoas com ações concretas para além do acolhi-
mento humano, sendo limitados em oferecer auxilio com orientações, alimen-
tação, abrigamento de algumas noites, mas, depois, as mesmas iam embora,
por necessitarem de uma estrutura mais definida de acolhimento temporário,
que pudesse oferecer toda rede de apoio que estas pessoas necessitam nesta
situação como: trabalho, ocupação, atendimento médico, acompanhamento
psicológico, assistência social, alojamento, dentre outros.
Cansados de acumular a frustação de não poder ajudar, a instituição está
em processo embrionário de busca por parceiros e investidores para o desen-

245
Organizadora : Edelamare Melo

volvimento de uma infraestrutura física, administrativa, medica e ocupacional


para acolher um pequeno número de mulheres e homens trans egressas(os) do
sistema prisional, que estejam nas condição acima descritas, dentro do terreiro.
Sabedores de que esta iniciativa não resolverá todas as questões que atraves-
sam as inúmeras vulnerabilidades interseccionais desta população, constata-se
a necessidade de aprofundar e desenvolver pesquisas cientificas que possam
produzir dados estatísticos a serem utilizados, há médio e longo prazo, no de-
senvolvimento de políticas públicas que revertam a atual situação que é de bai-
xíssima empregabilidade e ressocialização destas pessoas, além de contribuir
na ruptura do silenciamento deste debate dando visibilidade a esta questão.
É desconhecido estudos que possam demostrar o percentual exato da orien-
tação homoafetiva das penitenciarias femininas, no entanto, foi percebido durante
a longa presença nas penitenciarias que em torno de 80 % das internas e internos
são pessoas lésbicas e transexuais, estimativa considerada real pelas próprias in-
ternas. Chama atenção o fato de homens trans serem respeitados nesta condição,
sendo tratado pelo gênero masculino o tempo todo pelas suas amigas e amigos de
cela, desenvolvendo códigos de condutas, como por exemplo, não ser permitido
que as namoradas do “sapatão”(assim são chamados os homens trans na cadeia,
em virtude desta população não acessar o conhecimentos das terminologias con-
sideradas politicamente corretas), tirem a roupa na frente de outro sapatão.
Chama atenção, também, o fato de como estas pessoas terão sua identi-
dade de gênero tratadas quando estiverem livres, vivendo fora do ambiente do
cárcere, onde parece haver uma respeitabilidade para se comportarem e serem
tratados(as) como se identificam, e neste contexto entender como o psicológi-
co será afetado depois de passarem de 04 a 20 anos sendo tratados pelo nome
social na cadeia inteira e como a mudança na forma de tratamento, na socie-
dade extra muro pode afetar a sua saúde emocional, que é fundamental para
o seu bem estar existencial e consequente empregabilidade e ressocialização.
Pesa o fato de saber que para além do uso do “nome social”, pelo qual es-
colheram ser chamados, tem o fato público do preconceito com esta população,
sendo o Brasil um dos países que mais mata população LGBTQI+ no mundo,
logo manter este identidade social, fora do cárcere pode custar a própria vida
destas pessoas, e afetar sua empregabilidade, uma vez que pessoas com ves-
timenta e postura consideradas “masculinizada”, ou simplesmente por serem
lésbicas podem facilmente não serem “aceitas “ em ambientes formais de tra-
balho, reforçando assim o ciclo da exclusão e pobreza no universo feminino.
Como existem poucos estudos sobre perfil da população carcerária fe-
minina, é muito difícil utilizar percentuais estatísticos exatos, e para algumas

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

questões, até que se desenvolva a linha de pesquisa investigativa cientifica,


será utilizado as impressões observadas durante estes 12 anos de contato com
este público. Desta forma é possível dizer que estas pessoas ao se tornarem-se
egressas(os) do sistema prisional terão as seguintes características, algumas
cruzando várias delas: mulheres, negras(os), pobres, lésbicas, transexuais,
ruptura do vínculo familiar e ex-presidiárias, ou seja todas as categorias não
respeitadas pela sociedade patriarcal e cristã brasileira que faz com que estas
pessoas sejam alvos de preconceito e exclusão.
Consequentemente permanecem vítimas de exclusão dentro do sistema
patriarcal ao qual a sociedade brasileira se estrutura desde o período colonial ini-
ciado com a invasão portuguesa, que trouxe consigo o sistema econômico mer-
cantilista, capitalista, euro-cristão e patriarcal que reproduz ao longo destes 519
anos , o ciclo da violência contra as mulheres, que vão desde a subalternização
, escravização, estupro , negação do direito a autonomia do uso do corpo e das
decisões sobre os mesmos, pobreza e exclusão. Não por acaso o Brasil mantem a
marca de 4° país em população carcerária feminina no mundo, 5° em feminicídio,
trazendo a estatísticas no Mapa da Violência 2019 de 263.067 casos de violência
doméstica, ou seja um registro a cada 2 minutos e 66.041 casos de violência se-
xual, contabilizando o total de 180 estupros por dia, sendo 53,8% crianças até 13
anos de idade, ou seja 4 meninas de até 13 anos estuprada por hora, mais de 60%
dos crimes ocorreram em casa e foram praticados por familiares.
Como a maior parte da população carcerária feminina relata ter sido víti-
ma de algum tipo de abuso e violência na infância, adolescência e vida adulta,
sendo algumas delas encarceradas por terem assassinado ou agredido o agres-
sor, é necessário pesquisar melhor esta relação de vitima e criminosa, buscando
entender como a ausência de uma politica preventiva e protetiva da violência
de gênero pode evitar a criminalização em massa do universo feminino.
É, também, importante observar como um pais que registra, desde a in-
vasão portuguesa, 519 anos de existência, sendo 400 escravizando, estuprando e
explorando pessoas negras, conta hoje com apenas 131 anos de não escravização
oficial, segue mantendo uma politica de encarceramento em massa como estraté-
gia para justificar a criminalização da pobreza, que na verdade é prova inconteste
de um estado que não desenvolve políticas de combate a pobreza e prevenção da
violência e por isso segue aprisionando as(os) pobres, quase todas(os) pretas(os).
A condição da mulher presidiaria passa inevitavelmente pela questão re-
ligiosa uma vez que a tradição evangélica é a religião mais presente no sistema
penitenciário, no entanto, esta jovem tradição religiosa, com pouco mais de 500
anos de fundação, traz em sua filosofia e cosmovisão, um forte discurso patriar-

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Organizadora : Edelamare Melo

cal, proselitista e dogmático em suas práticas, sendo publicamente defensoras de


posturas homofóbicas e machistas que corroboram com o sistema patriarcal que
é produtor dos ciclos de violência de gênero. Neste sentido está forte presença
evangélica no ambiente penitenciário contribui para ampla disseminação do pre-
conceito, uma vez que este universo é constituído em sua maioria por pessoas
LGBTQI+, não sendo esta uma orientação aceita pela religião evangélica.
Para melhor compreender a presença massiva evangélica dentro do sis-
tema prisional, é necessário avaliar o processo histórico de formação da so-
ciedade brasileira, que resulta na questão do racismo religioso.
Dentre todos os problemas que esta população enfrenta em sua trajetó-
ria de vida, além dos que vai enfrentar ao sair do cárcere para conquista da sua
cidadania, emancipação social e interrupção do ciclo da violência, que passa
pelo enfrentamento e superação do racismo, sexismo, desemprego, abandono
familiar, moradia, recuperação da guarda dos filhos, não pode ser a orien-
tação homoafetiva transformada em mais um problema para estas pessoas
que precisam muito mais do que ser demonizadas e criticadas, amparadas e
respeitadas na sua livre escolha de amar e se relacionar social e afetivamente.
Desde o processo de invasão euro-cristã portuguesa, e não coloniza-
ção, como equivocadamente é retratado nos livros escolares que não imple-
mentam a lei 10639 e 11645, que torna o ensino da Historia da África e dos
Povos Indígenas nos currículos escolares, assunto bem detalhado no livro
Levanta Favela, Vamos Descolonizar o Brasil (Pinto, Flavia), a ser lançado
em outubro de 2019 pela Editora Conexão 7, aprofunda a disseminação do
pensamento cristão e patriarcal presente no comportamento social da cultura
brasileira, reforçando a imagem de demonização da mulher, do corpo negro,
das outras praticas religiosas e da homo afetividade.
Sendo publicamente aceita e respeitada estão postura evangélica radical e fa-
nática neopentecostal, no ambiente público brasileiro, que muito difere da postura
dos evangélicos tradicional como luteranos, metodistas, dentre outros, encontram
espaço livre dentro do sistema penitenciário, principalmente por haver pouca pro-
cura de outras tradições religiosas para ofertar de assistência religiosa voluntaria
para esta população. É importante considerar que o fato de serem maioria não ou-
torga aos líderes evangélicos utilizarem o discurso do ódio, demonizando a orienta-
ção homoafetiva destas pessoas, como é relatado por muitas internas.
Diante das possibilidades aqui expostas o objetivo do trabalho é apro-
fundar o estudos da violência de gênero que atravessam a população carcerária
feminina e perceber como elas são reforçadas para mantê-las na pobreza, no
desemprego, na marginalidade, encarceradas e invisibilidades socialmente.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

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Meirelles, Renato & ATHAYDE, Celso. Um país chamado favela: a maior pesquisa já feita
sobre favela brasileira. São Paulo: Edita Gente, 2014. Historia dos Estados Unidos

Tiburi, Márcia. Feminismo em Comum, Para Todas, Todes e Todos . Rio de Janeiro: Rosa
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Brasil. Lei 11645 de 10 de março de 2008. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-


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Sites e links consultados


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https://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/86969-rio-de-janeiro-conclui-cadastro-de-mais-de-
56-mil- presos-no-bnmp em 17/09/2019

http://www.forumseguranca.org.br/publicacoes/atlas-da-violencia-2019/ em 17/09/2019

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

O catolicismo e a diversidade étnico-racial


e religiosa na pós-modernidade

Frei David Santos OFM

I. Introdução
Em 16 de maio de 2018, num encontro com religiões não cristãs, o Papa
Francisco disse que o “diálogo e colaboração são palavras-chave nos dias de
hoje” e é importante ver cada vez mais os líderes religiosos “se compromete-
rem em cultivar a cultura do encontro e dar exemplo de diálogo colaborando
efetivamente ao serviço da vida, da dignidade humana e da tutela da criação”.
Assim o Papa Francisco dá continuidade à EXORTAÇÃO APOSTÓLICA
“EVANGELII NUNTIANDI” do PAPA PAULO VI, especialmente no núme-
ro 20 Esta leitura nos revela que o diálogo religioso continua sendo o grande
desafio que ainda não foi plenamente abraçado pela Igreja, para se libertar do
domínio totalitário da cultura europeia dentro dos espaços eclesiais e pregar o
evangelho à todas as culturas, com a liberdade de filhos de Deus, a partir dos
valores de cada cultura, mantendo o cerne do vigor evangélico. Poucos Car-
deais, Bispos, Padres, Religiosos/as e suas respectivas Congregações levam-
no a sério e o colocam em prática, no dia-a-dia, com dedicação e compro-
misso com o Reino de Deus. Por quê? Infelizmente a resposta é muito fácil
e chocante: exigia e exige que as culturas que predominavam e predominam
dentro da Igreja abrissem mão de seu poderio cultural europeu, na forma de
evangelizar e celebrar, dando espaço para a diversidade cultural criada por
Deus e desejada pelos documentos eclesiais. Que permitissem que as culturas
oprimidas, especialmente a indígena e a afro-brasileira fossem protagonistas
no serviço de evangelizar e gerar o diálogo com Deus. Este é um problema
verificado só na Igreja Católica? Não. Todas as Igrejas cristãs desrespeitavam
e desrespeitam, na base de suas estruturas, a rica diversidade cultural, criada
e doada à humanidade por Deus que é o senhor de todas as culturas.
II. De cada 10 líderes negros norte-americanos, 9 foram “gestados” nos
espaços religioso-cristãos
Este tema é de vital importância para o aprofundamento do ser Igreja na
atual fase de busca e construção de comprometimento e identidade com a comu-

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Organizadora : Edelamare Melo

nidade afrodescendente e indígena, nas Igrejas e fora das Igrejas, em nível nacio-
nal. As Igrejas, mais uma vez, erram e não dão espaço para o novo! Os cristãos em
geral estão descobrindo algo fantástico: este povo afro-brasileiro é marcadamente
religioso! Se a Igreja Católica não lhes permite espaço, buscam, sem perda de
tempo, em outras expressões religiosas. Este é um dos fatores através dos quais
a Igreja Católica está, cada vez mais, em queda livre... A religião está na flor da
pele deste povo negro! Eles têm grande potencial para viver a fé, mas ela está
formatada equivocadamente para os pertencentes ao poder branco. Percebemos
que, antigamente, nos quatro cantos do Brasil, havia uma tentativa de articulação
da luta pelos direitos dos afrodescendentes nas respectivas Paróquias, Dioceses e
Arquidioceses nas quais vivenciavam sua fé.
Fazendo-se uma retrospectiva histórica da luta dos negros nos EUA vamos
constatar que, de cada 10 líderes negros norte-americanos, com diferente inten-
sidade na aplicação de sua pedagogia de liderar, 9 foram “gestados” nos espaços
religioso-cristãos. É o caso do Pastor Luther King, Malcon X e outros grandes
exemplos a serem seguidos. Lá nos EUA, a tática usada pela comunidade afrodes-
cendente fez as estruturas das Igrejas a se colocarem a serviço da causa do povo
negro, consciente ou inconscientemente. Na década de 80 cresceu aqui no Brasil
a articulação dos afrodescendentes dentro dos espaços religiosos. Com a constata-
ção de que esta foi também uma estratégia que garantiu conquistas da comunidade
negra cristã norte americana. A tendência hoje é de retomada e investimento neste
caminho? Ou as estruturas contrárias são as mesmas e, mais uma vez não irão dei-
xar o novo florescer? Não temos dúvidas: consciente ou inconscientemente este é o
caminho que trará, mais rapidamente, as vitórias que almejamos – uma Igreja sendo
instrumento de Deus na construção da diversidade étnica na Igreja e na sociedade.
Todos os cristãos: brancos e negros estaremos mais próximos e em sintonia com as
exigências proféticas do Reino de Deus, se optar por este caminho!
III. Os afro-brasileiros e as Religiões Evangélicas
É possível um trabalho conjunto da Católica Católica com os movi-
mentos cristãos evangélicos negros, em atitude de abertura? Ao se tratar deste
tema no Brasil, uma grande pergunta fica no ar: se nos EUA a Igreja Batista
foi o principal instrumento que lutou pela libertação dos afrodescendentes,
porque, aqui no Brasil, a Igreja Batista não cumpriu o mesmo papel? E os de-
mais Evangélicos? Seria fundamental se fazer esta pergunta a todos os nossos
irmãos evangélicos. Uma tentativa de resposta é esta: o poder central batista
(que era branco) dificultou, ao longo destes anos a vinda de Pastores Batistas
negros que eram conscientes dos direitos do povo negro. Só enviaram como

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Missionários para o Brasil pastores e leigos brancos que tinham posturas con-
tra o investimento na retomada da consciência e dos direitos do povo negro
no Brasil. Os poucos negros que aqui vieram como Missionários Batistas não
tinham consciência de negritude relativamente bem elaborada.
Por volta dos anos 80 surgem pessoas batistas negras e outros evangélicos
que tentavam fazer um trabalho de evangelização nesta linha. Organizavam-se
em várias partes do Brasil. No Paraná editavam um informativo impresso com as
demandas por evangelização dos batistas negros. Nas assembleias dos Agentes
de Pastoral Negros participavam batistas negros e outras denominações.
O Jornal da Igreja Evangélica do Reino de Deus (que tem uma grande
tiragem), na edição 304/1998 dedicou uma página inteira discutindo o racis-
mo no Brasil e colocando em debate, dois expoentes da reflexão racial brasi-
leira: Aroldo Macedo, Diretor da Revista Raça e Ivanir dos Santos, secretário
executivo do CEAP-Rio.
A Igreja “Assembleia de Deus” tem tido uma ou outra pessoa preocupada
com este aspecto da evangelização. O ritmo dos cantos evangélicos adaptado
dos ritmos das ricas culturas afros, com letras religiosas, tem sido cada vez mais
comum nestas Igrejas e em outras pentecostais que atuam em todo o Brasil.
O ritmo do samba, além de ter entrada em várias Igrejas ocupa boa parte das
programações evangélicas nas rádios e televisões no Brasil e conquista grande
parte da comunidade negra, inclusive multidões de Católicos negros!
O estilo musical GOSPEL (dos negros dos EUA), inclusive com seu
visual estético afro tem ocupado bons espaços nos corais que se apresentam
nas Igrejas e televisões, caindo de cheio no gosto do povo e tem sido cada vez
mais comum no Brasil. Em que podemos aprender com as Igrejas evangéli-
cas, sem nos contagiar com possíveis equívocos?
Cresceu no Rio de Janeiro a articulação através dos encontros de CA-
POEIRISTAS EVANGÉLICOS. Conseguiram reunir pastores e leigos afro-
descendentes de várias religiões evangélicas e uniram com qualidade a refle-
xão evangélica com elementos simbólicos da cultura afro-brasileira.
Nos anos 90 surgiu, no Brasil, uma articulação de evangélicos afrodes-
cendentes, provenientes de mais de 5 denominações religiosas. Seus objetivos
foram o de refletir o evangelho a partir dos valores culturais; avaliar a prática
das Igrejas Evangélicas no tocante ao racismo inconsciente ou conscientemente
praticado no interior das Igrejas; avaliar possíveis passos de avanço enquanto
negros e evangélicos que deveriam ser dados, etc. Tiveram algumas dificulda-
des institucionais para manter esta novidade profética e dar continuidade a este
valor do Reino de Deus. Por que tudo para o povo negro é mais difícil?

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Organizadora : Edelamare Melo

Entre as Igrejas Evangélicas, a que teve um trabalho de negritude razoável


foi a Metodista. Conseguiram elevar à categoria de MINISTÉRIO o trabalho de
luta contra o racismo, surgindo assim oficialmente o MINISTÉRIO DE COM-
BATE AO RACISMO DA IGREJA METODISTA. Realizam cursos, encontros,
seminários, etc. Já realizaram alguns encontros de pastores evangélicos negros
metodistas. Num dos Concílios a Igreja aprovou que todas as instituições de en-
sino do 1º, 2º e 3º graus pertencentes à instituição deveriam dar prioridade, na
concessão de bolsas de estudo, a estudantes afrodescendentes e mulheres. Infeliz-
mente a estrutura da Instituição, percebendo o avanço deste povo de Deus, “cor-
tou as asas de cada líder” e os trabalhos desapareceram quase que completamente.
Na década de 80 um grupo de 16 pessoas, afrodescendentes, que eram
Metodistas, Batistas e Católicas organizou um grupo de estudo, com apoio
do ISER (Instituto Superior do Estudo das Religiões) com o objetivo de se
produzir uma “TEOLOGIA NEGRA DE LIBERTAÇÃO” a partir dos líderes
populares dos movimentos sociais negros. O grupo encontrava-se dois dias
integrais por mês, com o intuito de estudar e debater as questões comuns à
comunidade afrodescendente cristã em geral, a partir do prisma da teologia da
libertação. As reuniões aconteceram, em sua maior parte, nas dependências
da Faculdade Metodista Bennett, próximo ao Largo do Machado, na cidade
do Rio de Janeiro. O primeiro negro Doutor em Teologia no Brasil, desta
nova geração, Geraldo da Rocha, foi participante deste grupo experimental.
Um dos momentos de auge dos Metodistas negros aconteceu no dia
28 de junho de 1997, quando o Ministério Regional de Combate ao Racismo
da Igreja Metodista realizou um importante encontro no Rio de Janeiro, cujo
título foi: “COMO A IGREJA COMBATE O RACISMO”?
IV. Como a Igreja trataram os negros nestes 518 anos?
Em 1994 estávamos preparando fundamentadas pesquisas para trabalhar,
com bons conteúdos, a celebração dos 300 anos do martírio de Zumbi dos Pal-
mares. Decidi buscar resposta para uma pergunta: como a vida religiosa tratou
os Quilombolas do Quilombo dos Palmares, em 1690? Fui pesquisar em Recife,
Pernambuco, com esta pergunta bem definida. Tinha uma expectativa de encon-
trar posturas corajosas, no estilo de Francisco de Assis, que foi até o Sultão em
busca da paz. O que encontrei deixou-me chocado: uma carta do Guardião do
Convento Franciscano de Recife, cobrando do Governador da época os salários
dos 12 frades colocados a serviço das tropas que foram destruir os Quilombos dos
Palmares e matar os Quilombolas. Quais as responsabilidades e compromissos
que esta descoberta traz a nós continuadores da Vida Religiosa no Brasil de hoje.

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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Para compreendermos a postura omissa da Igreja hoje, podemos e de-


vemos olhar para a história. Ao longo destes séculos, a Igreja católica e todos
os cristãos foram influenciados e formados por quatro projetos de evangeliza-
ção/reino de Deus. São eles:
1. Primeiro projeto
No período colonial, entre os anos de 1500 e 1842, a proposta deste
projeto era a de promover a fé cristã, baseada na leitura do Evangelho a partir
da ótica do opressor, tendo como foco a cultura europeia. Sendo assim, tudo
o que se originava da cultura negra era menosprezado pela cultura branca do-
minante. O lugar ocupado pelo negro era o de escravo e a escravidão roubava
do negro o direito de constituir família, de vivenciar suas tradições culturais,
de resgatar suas raízes e possuir os direitos iguais aos demais cristãos.
Este projeto, do ponto de vista do colonizador, era anunciado como
sendo a grande Boa Nova, mas da ótica do povo escravizado e oprimido,
significava MÁ NOTÍCIA: a extinção dos seus direitos de cidadãos, de seus
valores culturais, religiosos e humanos.
Infelizmente, a Vida Religiosa e a Igreja estabeleceram um forte vínculo
com o Império, no sentido de ratificar esta proposta anti-evangelizadora. Elas não
tinham como foco a dimensão libertadora e salvífica, trazidas por Jesus Cristo.
Preocupavam-se com os privilégios obtidos para a Vida Religiosa e para a Igreja a
partir desta parceria. Em outras palavras: a Igreja apoiava o Império nas lutas ar-
madas contra os escravizados negros e outros invasores. A vida Religiosa e a Igreja
investiram na destruição dos Quilombos dos Palmares, no assassinato de Zumbi,
além de estar conivente com o assassinato de todas as demais lideranças do povo
negro, nos quatro cantos do Brasil. Um dos exemplos foi o julgamento injusto do
líder Manoel Congo, que fez uma forte revolta nos engenhos da cidade de Vassou-
ras, Rio de Janeiro, fundando um Quilombo que foi rapidamente exterminado pelo
falso herói Nacional Chamado de Duque de Caxias. Manoel congo foi enforcado
no dia 6 de setembro de 1839. A Igreja limitou-se a colocar um religioso para
legitimar o enforcamento, dando-lhe a extrema unção. Todos os líderes do povo
negro que lutaram contra a escravidão e libertação de seu povo foram dizimados
para intimidar o surgimento de novas lideranças. Hoje, alguns religiosos mal in-
formados têm a coragem de dizer que o negro não lutou contra a escravidão. O
Império concedia à Igreja poder e status para que esta também pudesse influenciar
politicamente nos rumos do país, e ajudar na manutenção da escravidão.

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Organizadora : Edelamare Melo

2 - Segundo projeto
No segundo projeto, denominado romano-europeu, a partir de 1842 até
1968, a luta era pela retomada da europeização da vida religiosa e da Igreja no
país e isto significava combater as irmandades e todas as organizações leigas.
Passar por cima dos grupos e das culturas consideradas inferiores, a fim de que
prevalecesse o processo de ocidentalização. Para isso, abrem-se as portas para os
imigrantes europeus, ao mesmo tempo em que se busca a perseguição e elimina-
ção dos quilombos, pelo perigo que ele representava ao projeto de europeização
do país. Os negros, neste caso, só teriam vez se entrassem no esquema da euro-
peização, que tinha como um de seus instrumentos a ideologia do embranqueci-
mento. Os negros que procuravam defender sua cultura, principalmente através
da vivência da fé nas religiões afro (um dos poucos espaços de resistência), eram
impiedosamente perseguidos e mortos. Foi nesta fase que a ideologia determinou
que as religiões afro fossem coisas do demônio e proibidas de funcionar.
Os colonizadores e missionários europeizavam/catequizavam negros e
índios e, aqueles que se rebelavam eram massacrados pelos colonizadores
sem a defesa da vida Religiosa ou da Igreja. No máximo, iam ministrar o sa-
cramento da extrema unção para os injustamente condenados à morte.
Ainda fazendo referência à ideologia do embranquecimento do país,
proibindo a entrada de negros e só permitindo brancos, lembramos o decreto
Nº 7967, artigo Nº 2, de 18 de setembro de 1945, assinado pelo então Pre-
sidente Getúlio Vargas que diz: “Atender-se-á, na admissão dos novos imi-
grantes, a necessidade de preservar e desenvolver na composição étnica da
população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia,
assim como a defesa do trabalhador nacional”.
Em 1960, com a Lei Afonso Arinos que punia todas as atitudes de discrimi-
nações raciais, as Congregações Religiosas do Brasil, por pressão do advogado da
CRB Nacional, começaram a tirar de seus estatutos e normas internas a proibição
de se permitir a entrada de negros(as) e mestiços(as) na vida religiosa.
3 - Terceiro projeto
A partir de 1968, com a Conferência de Medellin e Puebla, a compre-
ensão de vida religiosa em missão profética consistia em trabalhar a evange-
lização baseada na situação concreta e histórica do povo oprimido, afirmando
e defendendo que este era o verdadeiro rosto de Deus, configurando assim, o
terceiro projeto de evangelização.
Concluíram que este povo oprimido reúne principalmente negros/as e
índios, entre o grande volume de marginalizados. Foi então que começaram

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

a surgir os grupos de base formados por negros católicos que em 1980, fun-
daram articulações de negros(as) católicos em todos os seguimentos. A Arti-
culação dos Franciscanos Negros desembocou na luta tenaz pelas Ações Afir-
mativas e cotas nas universidades brasileiras, uma das principais conquistas
do povo negro nos últimos 150 anos!
Depois de um grande trabalho de pressão da base negra católica, formada em
grande parte por Religiosas e Religiosos negros/as, a CNBB assume na Campanha
da Fraternidade de 1988 o tema: “A Fraternidade e o Negro!” graças a grande mobi-
lização dos grupos pastorais negros de base. Esta iniciativa projetou o trabalho dos
negros católicos no sentido de conquistar um espaço para levar toda a sociedade a
refletir a condição socioeconômica sub-humana de homens e mulheres negros ex-
cluídos institucionalmente dos espaços de decisão da sociedade e da Igreja.
4 - Quarto projeto
Finalmente, a proposta do “quarto projeto de evangelização” é o que se tem
de mais recente no tocante à postura da Igreja em relação às questões raciais. O
retorno ao conservadorismo, a valorização da oração sem o compromisso da ação
enquanto escolha mais eficaz para a solução dos problemas começam a ganhar
mais impulso. A tendência dos grupos de base foi de esmorecimento quase total.
Alguns têm optado por realizar trabalhos mais internos, na tentativa de não perder
os espaços já conquistados anteriormente. O projeto latino-americano perde sua
força na medida em que os agentes negros que tiveram um bom “pique” no co-
meço perderam-se no caminho, com conflitos onde o negro era o “revoltado”. Os
negros católicos comprometidos, principalmente religiosos e religiosas, tentam
trabalhar a causa do negro fora da Igreja. Focam na luta por políticas públicas,
contra a continuação da discriminação racial, através dos veículos de comuni-
cação, de iniciativas junto ao poder público, atuando também junto ao processo
educacional, no sentido de promover a cultura negra e de conscientizar a partir da
compreensão da unidade respeitando a diversidade.
V - Como os negros católicos organizaram-se nestes 518 anos?
A organização religiosa só é possível ser plena na liberdade. A primeira
grande experiência de liberdade religiosa foi experimentada nos quilombos
reunidos dos Palmares. A comunidade quilombola, por ser radicalmente livre
do domínio do pensar político e religioso dos colonizadores, tinha total liber-
dade e motivo para rechaçar a influência da Igreja Católica e todos os seus
símbolos religiosos. No entanto, não foi isto que aconteceu. O povo quilom-
bola foi capaz de distinguir os valores religiosos emanados dos evangelhos,

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Organizadora : Edelamare Melo

tais como a justiça, o respeito à diversidade que trazia a Igreja Católica da


prática dos que se diziam “donos” da fé católica.
Os Quilombolas naquele novo espaço de liberdade poderiam fechar-se so-
mente em sua compreensão religiosa tradicional africana. Entretanto, eles sabiam
diferenciar Jesus Cristo e seu Evangelho da prática dos cristãos colonizadores em
terras brasileiras. OS QUILOMBOLAS REPROVAVAM a prática religiosa dos
cristãos, pois não valorizavam a justiça e o respeito ao diferente, mas, por outro
lado, souberam perceber o potencial libertador trazido por Jesus e seu Evangelho
e o abraçaram. Na guerra contra os palmarinos, em 1645, chefiado por BLAER
- REIJEMBACH, o escrivão da tropa invasora relata que encontrou no centro do
Mocambo GRANDE PALMARES uma casa religiosa, com imagens de Santos
Católicos, entre elas a imagem do MENINO JESUS, e ricamente adornadas com
objetos religiosos africanos. A inculturação, tão discutida hoje na Vida Religiosa
e na Igreja, já era algo normal, praticada no espaço de liberdade chamado QUI-
LOMBO. Os Sacerdotes eram escolhidos entre os mais capazes, que possuíam
espírito de liderança, sabedoria e profundo conhecimento da natureza. A inti-
midade com o DEUS PAI TODO-PODEROSO, chamado de OLORUM - OLO
+ ORUM (senhor do orum, ou seja: senhor de todos os espaços terrestres e ce-
lestes), era a principal qualidade nos Sacerdotes. Já entendiam como normal e
natural o Sacerdócio casado, bem como o Sacerdócio feminino, dimensões ainda
hoje, em pleno século XXI, negada pela principal religião ocidental.
VI – Conclusão
O clima e o momento é muito positivo para debater o diálogo religioso
ou o macro ecumenismo. Um exemplo, para concluir, está na postura positiva
do Papa. Pessoas de diferentes religiões se uniram com o Papa na Praça São
Pedro em uma reflexão sobre a importância da abertura inter-religiosa, com as
religiões não cristãs. Este encontro ecumênico promovido pelo Papa foi também
para comemorar os 50 anos da declaração apostólica “Nostra aetate”. “A Igreja
olha com estima para os crentes de todas as religiões, apreciando o seu empenho
espiritual e moral. A Igreja aberta ao diálogo com todos é, ao mesmo, tempo,
fiel à sua crença” e respeitosa com a crença dos irmãos, disse o Papa Francisco.
Neste ano de 2018 a Igreja/CNBB comemora os 30 anos da primeira
Campanha da Fraternidade com o tema sobre o negro. De lá para cá, o que
mudou dentro da Igreja, com referência ao diálogo intereligioso? Uma litur-
gia Inculturada Afro foi oficializada?
O maior espetáculo da terra, o carnaval brasileiro e mais especialmen-
te os desfiles das Escolas de Samba, trazem dicas de como a Igreja deve se

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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

inculturar. Como exemplo, vamos ler a letra da Escola de Samba Imperatriz


Leopoldinense, do carnaval de 2015 e vamos nos perguntar: é ou não uma
proposta de reflexão que poderia partir da Igreja? E porque não parte? Veja-
mos o conteúdo da música:

“AXÉ, NKENDA! Um ritual à liberdade”


(E que a voz da Igualdade seja sempre a nossa voz!)

Foi um grito que ecoou, “axé-nkenda”!


A luz dentro de você... Acenda!
Nada é maior que o amor, entenda
A voz do vento vem pra nos contar
Que na mãe áfrica nasceu a vida
Pura magia, “baobá” abençoado...
Tanta riqueza no triângulo sagrado...
Mistérios! Grandeza!
O homem em comunhão com a natureza!
Tristeza e dor,
Na violência pelas mãos do invasor
E o mar levou...
Nossa cultura um novo mundo encontrou

Põe pimenta pra arder, arder, arder!


Sente o gosto do dendê, o iaiá, oyá
Tem acarajé no canjerê,
Tem caruru e vatapá (é divino o paladar)
Capoeira vai ferver! Vem ver! Vem ver!
Abre a roda que ioiô quer dançar.. Sambar..
Traz maracatu, maculelê..
É festa até o sol raiar

Liberdade!
Sagrada busca por justiça e igualdade
E com arte eu semeio a verdade
O despertar para um novo amanhecer
Faço brotar a força da esperança
Deixo de herança um novo jeito de viver!
Vamos louvar o canto da massa

259
Organizadora : Edelamare Melo

Unindo as raças pelo respeito


Vamos à luta pelos direitos
Uma “banana” para o preconceito.
“Mandela”! “Mandela”!
Num ritual de liberdade
Lá vem a imperatriz! Eu vou com ela
Eu sou “madiba”! Sou a voz da igualdade.
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261
Organizadora : Edelamare Melo

264
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Religiões Afrodiaspóricas: negros batistas e


pentecostais em Salvador (1882-1930)

Gicélia Cruz1

1. Introdução
As últimas décadas apresentaram um crescimento no número de negros
evangélicos no Brasil. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatís-
tica (IBGE), censo de 2010, no Brasil, existem cerca 22.784.825 de negros
e pardos, que se declararam evangélicos; na Bahia 1.896.361 e em Salvador
439.2232. Esses dados mostram que os africanos diaspóricos, aderiram às dis-
tintas práticas religiosas na interlocução da nova realidade que lhe foi imposta
pelo processo de colonização. Essa temática tem sido objeto de análise de
muitos estudiosos da História das Religiões Afro brasileiras.
Compreender como se configurou, dentro das religiões afroatlânticas na
Cidade de Salvador, no período entre 1882 e 1930, a adesão de negros ao protes-
tantismo e pentecostalismo, é importante visto que estes sujeitos já tinham expe-
riências de práticas religiosas tanto nas religiões de matriz africana, catolicismo,
islamismo, bem como de outras. Convém também conhecer o contexto socio-
econômico, cultural, religioso e educacional em que este negro estava imerso
quando em 1882, chega o trabalho batista na capital baiana, e logo no início do
século XX, chegam os pentecostais. Nesse sentido, percebe-se a ressignificação
da espiritualidade e fé do afro brasileiro, merecendo tal contexto ser pesquisado.
A partir da Lei Federal 10.639/2003, torna-se obrigatório o ensino da
História da África e Cultura Afro brasileira na sala de aula, ou seja, a partici-
pação do negro na construção da história do Brasil. Assim sendo, é importan-
te no que diz respeito ao universo religioso, que tal protagonismo negro tam-
bém seja tema de estudos, posto que as especificidades configuram diferentes
identidades, processos e trajetórias históricas afro brasileiras.
A seguir, faremos um breve resumo sobre a presença da religião protes-
tante no Brasil. O primeiro momento se dá nos séculos XVI, XVII com as

1
Mestranda em Educação e Contemporaneidade – Linha 1(UNEB/Salvador) - Bacharel em Teologia(Seminário
Teológico Batista do Nordeste) – Licenciada em História (UNIJORGE/Salvador) –– Especialista em Educação de
Jovens e Adultos(UFBA) – Especialista em História e Cultura Afro brasileira e Indígena(Instituto Federal da Bahia)
2
IBGE: Censo 2010. Disponível em: < http://www.ibge.gov.br/cidadesat/link.php?uf=ba>. Acesso em: 20 nov 2012.

265
Organizadora : Edelamare Melo

invasões francesas e holandesas, a expulsão desses europeus calvinistas e a


Coroa Portuguesa juntamente com a Igreja Católical proibiram a entrada de
outras religiões. Fato este que durou cento e cinquenta anos até a chegada da
Família Real, em 1808; que na fuga da guerra contra a França, teve apoio da
Inglaterra na travessia, e como uma das formas de paga, abriu os portos brasi-
leiros para entrar, além das mercadorias inglesas, a fé protestante. Porém, na
Constituição de 1824, o catolicismo passa a ser religião oficial.3
O protestantismo chega à Bahia no início do século XIX. Ele é dividido
em dois momentos: o de comércio com a chegada dos anglicanos em 1815,
que vêm para dar assistência religiosa aos seus súditos que comercializavam
em Salvador, por isso o culto religioso era realizado em inglês; e o de missão
em 1882 com os batistas, que chegam com objetivo de evangelizar os nativos.
Porém, a Igreja Católica reagiu de forma contundente diante da “instalação de
uma nova comunhão religiosa no território brasileiro”4.
Com a chegada dos batistas em 1882 e dos pentencostais em 1927,
tem-se o registro através de livros, cartas de missionários e documentos ad-
ministrativos das igrejas, dos primeiros negros protestantes na Bahia. Nesse
sentido, analisar o negro evangélico dentro de um contexto histórico onde
existe diversidade, significa não restringir a experiência religiosa da diáspora
ao candomblé. O que não constitui negar a relevância do candomblé enquan-
to uma religião de matriz africana, mas perceber as diferentes trajetórias da
população afro-brasileira.
A historiografia baiana relata alguns exemplos dessa diversidade quan-
do apresenta negros católicos com suas irmandades onde a presença da cultu-
ra africana era percebida5, a exemplo da Sociedade Protetora dos Desvalidos,
a Irmandade da Boa Morte e Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretos. A Revolta dos Malês6, quando em 1835, africanos islami-
zados, juntamente com os negros escravizados e libertos nascidos na Bahia,
realizaram um dos maiores levantes que se tem conhecimento na cidade de
Salvador7; como também relatos de negros judeus no período proposto à ser
pesquisado. Nesse sentido, observa-se que o africano escravizado procurou
diferentes formas para ressignificar sua espiritualidade.

3
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm (Acessado 10.09.2019)
4
SILVA, Elizete da. Conflitos religiosos na Bahia século XIX. Nº 21. Feira de Santana: Sitientibus, 1999. p.51-67.
5
https://hibridos.cc/po/rituals/igreja-nossa-senhora-do-rosario-dos-pretos/ (Acessado 19.09.2019); http://spd.org.br/
(Acessado 19.09.2019)
6
REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil - A História do Levante dos Malês em 1835. São Paulo: Cia das Letras,
2003
7
REIS, João José. SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo:
Companhia da Letras, 1989. p. 100

266
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

O protestantismo chega efetivamente no Brasil quando, ao apoiar a tra-


vessia da Coroa Portuguesa à sua colônia na América, a Inglaterra beneficia-
se de acordos assinados em troca do ‘favor’ prestado. Surge então, o Tratado
de Aliança e Amizade e de Comércio e Navegação, permitindo, de forma le-
gal, a entrada de vários comerciantes, artistas franceses e imigrantes, além de
viajantes naturalistas de várias regiões do Velho Mundo, que têm permissão
de estudar o que o país desconhecido parecia prometer em novidades.8
No Artigo 9º Tratado de Aliança, o Príncipe Regente de Portugal diz
que não haverá Inquisição na colônia. Os artigos 12 e 23 do Tratado de Co-
mércio e Navegação declaravam:
1º) Que os vassalos de S.M. Britânica residentes nos territórios e
domínios portugueses não seriam perturbados, inquietados, per-
seguidos ou molestados por causa da sua religião, e teriam per-
feita liberdade de consciência, bem como licença para assistirem
e celebrarem o serviço divino em honra do Todo Poderoso Deus,
quer dentro das suas casas particulares, quer nas suas particula-
res igrejas e capelas da sua religião, sob as únicas condições de
que estas se assemelhassem externamente a casa de habitação,
também que o uso dos sinos não fossem permitido para o fim
de anunciarem publicamente as horas do serviço divino. Sendo-
lhes vedado, entretanto, pregar ou declamar publicamente contra
a religião Católica ou procurar fazer prosélitos ou conversões.
2º) que seria permitida em Goa, e suas dependências a livre tole-
rância de todas e quaisquer seitas religiosas.9

Quando da assinatura do tratado que permitia liberdade religiosa aos


súditos britânicos, o Arcebispo de Nisibis, que estava no Rio de Janeiro, pro-
testou agressivamente contra as medidas do governo de D. João, ameaçando,
inclusive, com a volta da inquisição para cuidar dos interesses da religião
católica e refrear o progresso dessa heresia entre os brasileiros10.
Os primeiros trabalhos do protestantismo de missão foram realizados nas pro-
víncias do Rio de Janeiro e São Paulo. Sendo que em 1858, oficialmente, foi criada a
primeira igreja protestante brasileira, onde o culto era todo realizado em português:
a Igreja Congregacional. Existem relatos de missionários protestantes que por aqui
passaram e foram embora, e de outros que permaneceram. Pode-se assim entender
como estava o ambiente do Brasil Império para receber a nova religião.

8
LISBOA, Karen M. A Nova Atlântida de Xpix e Martius: natureza e civilização na Viagem pelo Brasil. Vol. II. São
Paulo:Hucitec, 1997. p.29
9
RIBEIRO, Boanerges. Protestantismo no Período Monárquico. São Paulo: Pioneira, 1973.
10
SILVA, Elizete da. Conflitos religiosos na Bahia século XIX. Nº.21. Feira de Santana: Sitientibus, 1999 , p.51-67.

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Organizadora : Edelamare Melo

Henry Koster, autor de Viagens ao Nordeste do Brasil anos 1815-1816,


foi um dos que chegou na primeira levada de imigrantes protestantes, e sugere
que, “a cultura brasileira, impregnada pelo catolicismo, excluía totalmente
qualquer possibilidade de aceitação, ou até mesmo tolerar, a presença pro-
testante”.11 Já F. Biard, escreveu Dois anos no Brasil, relata nessa obra, a
preocupação de que o Brasil fosse invadido por sulistas norte-americanos que
estavam fugindo da Guerra da Secessão.12
Daniel P. Kidder escreveu os livros Reminiscências de Viagens e Per-
manências nas Províncias do Norte do Brasil e Reminiscências de Viagens
e Permanências das Províncias do Sul do Brasil e diversos outros trabalhos,
além de colaborar com o rev. James C. Fletcher na redação de O Brasil e
os Brasileiros. Em sua viagem à Bahia, relata que essa província tornou-se
importante no comércio escravagista e que “esse tráfico negreiro, que tem no
lucro seu principal objetivo, provoca sentimentos de repulsa13.
No que tange ao tema educação, este também deve fazer parte deste tex-
to, visto que esta era oferecida pelos protestantes norte-americanos e contribuiu
bastante para a implantação do protestantismo no Brasil. Assim um público alvo
e seleto foi alcançado: a elite brasileira, que era em grande parte branca, liberal e
não estava interessada na religião protestante, mas sim na educação diferenciada
do ensino católico, que os missionários protestantes ofereciam, o que repercutiu
favoravelmente e favoreceu instalação definitiva do novo credo religioso, já que
os próprios missionários foram acolhidos como representantes do liberalismo e
do progresso almejados; porém a evangelização foi destinada à massa pobre14.
O Teólogo José Carlos Barbosa15, em sua obra Negro não entra na Igre-
ja, espia da banda de fora, faz relatos de que no início, os escravos iam acom-
panhados dos seus senhores, já que esses eram fiés da nova religião. Depois
alguns escravos e libertos passaram a ir sozinhos aos cultos, a exemplo do
que aconteceu numa Igreja Presbiteriana em 1879 na cidade de São Paulo,
onde cinco escravas por nome: Felismina, Lucinda, Benedicta Justina, Joana
e Leonor, passaram a frequentar a igreja sem a presença dos seus senhores.
Porém, alguns donos de escravos procuravam impedi-los de participar das

11
BARBOSA, José Carlos. Negro não entra na igreja, espia da banda de fora. Vol. 1. Piracicaca: UNIMEP, 2002.
p. 35.
12
Ibid. p. 35.
13
Ibid. p. 39
14
bid. p.56.
15
Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Metodista de Piracicaba (1980), graduação em Teo-
logia pela Universidade Metodista de São Paulo (1984), Mestrado em História pela Universidade de Brasília (1988)
e Doutorado em História da América - Universidad de Sevilla (1995). Atualmente é professor do Centro Universitá-
rio Metodista Izabela Hendrixhttps://www.escavador.com/sobre/2277187/jose-carlos-barbosa

268
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

igrejas protestantes. Um exemplo foi o de uma escrava que esperou quatro


anos até seu dono lhe dá a carta de alforria para que assim, pudesse frequentar
os cultos religiosos. Alguns senhores protestantes estrangeiros e brasileiros
procuravam alforriar seus escravos, mas essa não era a regra16.
Segundo Silva(2003):
Os anglicanos da Christ Church, situada no Rio de Janeiro, não
só eram donos de escravos, como fizeram batizar nos ritos da
Igreja Anglicana os escravinhos nascidos em seu poder. Segun-
do uma prática dos senhores de escravos brasileiros que batiza-
vam suas peças aos magotes, dando-lhes nomes cristãos, os an-
glicanos também buscaram cristianizar seus escravos. No livro
de registros de batismo da Christ Church em 24 de janeiro de
1820, está assentado o batismo de Thereza, filha de Louisa – es-
crava negra, nativa de Manjoula, África- propriedade de James
Thonton, um comerciante inglês17.

Em 1815, chegam os primeiros protestantes à Bahia: os anglicanos. Fi-


xando residência em Salvador, instalaram-se no bairro da Vitória. O protes-
tantismo nesse caso era o de capelania, ou seja, os missionários prestavam as-
sistência espiritual aos fiés e não tinham a intenção de evangelizar os nativos.
Os cultos eram realizados nos lares e no idioma dos estrangeiros. A localidade
conhecida como Corredor da Vitória, concentrava um considerável número
de comerciantes ingleses, por isso ali foi construído um templo conhecido
como Igreja dos Ingleses, mas que oficialmente era registrado como sendo S.
George Church ou da Bahia Bristish Church.18
O relato feito pelo Rev. Martyn, no seu diário pessoal, é um exemplo
seguro de como o clero anglicano percebia o campo religioso baiano no início
do século XIX e ao mesmo tempo deixa entrever as representações tecidas
sobre a cultura baiana, marcada pelo catolicismo:
Martyn escandalizou-se com as manifestações da fé católica não es-
condendo o seu desprazer ante a figura de um frade postado diante
de uma Igreja a recolher esmolas enquanto passantes beijam-lhe a
mão ou tiravam respeitosamente o chapéu. Concluiu que naquele
país “há cruzes em abundância, mas quando será ali sustentada a
doutrina da cruz?19

16
Idem. pp.158-159
17
SILVA, Elizete da. Visões Protestantes sobre a escravidão(1860-1890). Revista de Estudos da Religião, n.1/2003/p.
1-26.
18
SILVA, Elizete da. Conflitos religiosos na Bahia século XIX. Nº.21. Feira de Santana: Sitientibus, 1999 ,, p. 51-67.
19
SILVA, Elizete da. Visões Protestantes sobre a escravidão(1860-1890). Revista de Estudos da Religião, n.1/2003. p. 1-26.

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Organizadora : Edelamare Melo

Na Bahia, os súditos britânicos, membros da Saint Church, não só deso-


bedeceram à ordens de S.M. Britânica ao participarem do rentável comércio
negreiro que se fez na Bahia no século XIX, mas também eram proprietá-
rios de escravos que utilizavam como mão-de-obra doméstica ou em alguns
empreendimentos de caráter manufatureiro que mantinham em Salvador. Os
escravos dos ingleses, eram na sua maioria islâmicos, pois na Revolta dos
Malês, ocorrida em Salvador em 1835, dos 160 acusados, 45 eram escravos
de ingleses residentes no bairro da Vitória. Esses acontecimentos e outras
situações mostram um povo aguerrido, que não se dava por vencido. Essa era
uma das características da população negra e mulata de Salvador.
O aspecto social-econômico da província da Bahia ao longo do século
XIX, e em destaque para Salvador e Recôncavo, estava assentado na questão
racial. A cor da pele podia ser decisiva na classificação social dos indivíduos.
A elite considerava-se branca mesmo que para isso fosse preciso ocultar ou
negar, ainda que longínqua ascendência negra. Mesmo sendo pobre, o branco
tinha melhor acolhida na Santa Casa de Misericórdia da Bahia.20
No século XIX, os negros e pardos, escravos e libertos, formavam a maior
parcela da população na Cidade da Bahia. Porém, sua situação era de total aban-
dono e por que não dizer, de miséria. Walter Fraga Filho, explica de forma preci-
sa, a situação dessa população, quando muitas vezes os mestiços, e em especial os
mulatos, podiam alcançar certos prestígios na carreira militar, eclesiástica ou no
funcionalismo público, mas a discriminação que sobre eles recaia podia fechar-
lhes as portas da ascensão social e reduzi-los à pobreza.21
Essa era a realidade da sociedade baiana quando da chegada do pro-
testantismo, a qual não mudou ao longo dos anos; pois mesmo tendo protes-
tantes abolicionistas, não havia entre eles um discurso forte para que houves-
se uma mudança significativa na questão da escravidão negra.
Só no final do século XIX, com a chegada dos batistas na Bahia, o
protestantismo toma impulso, e em 15 de outubro de 1882 é organizada a
Primeira Igreja Batista do Brasil, localizada à rua Maciel de Baixo, centro de
Salvador, onde havia uma grande concentração de pobres que moravam nos
cômodos inferiores ou lojas dos grandes sobrados. Segundo Walter Fraga Fi-
lho (1996), somente na freguesia da Sé, uma das mais populosas de Salvador,
30% dos moradores das lojas, livres e escravos, dedicavam-se ao serviço de
ganho. Além desses, havia pedreiros, sapateiros, marceneiros, carpinteiros,
funileiros, quitandeiros, alfaiates, lavadeiras, costureiras, saveiristas e calafa-

20
FILHO, Walter Fraga. Mendigos, Moleques e Vadios. São Paulo/Salvador: HUCITEC, 1996. p. 30.
21
Idem p. 24

270
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

tes. Em meados do século XIX, 78,6% dos moradores das lojas eram mestiços
e negros22. A relevância desses dados está em possibilitar identificar as pri-
meiras conversões a exemplo do latoeiro ou funileiro, chamado João Batista,
citado na obra História dos Batistas no Brasil23. Seria esse primeiro o negro
ou mestiço baiano protestante? Tendo em vista que essas atividades eram
desenvolvidas por esse segmento da população?
Na década de vinte do século passado, começa o evangelismo pentecostal
na Bahia, sendo pioneira a Igreja Assembléia de Deus, que se instala na cidade de
Canavieiras em 1927. Expandindo-se para outros municípios vizinhos, abre frentes
missionárias em Itabuna, Belmonte, Itapebi, Macote, Pau Brasil, Camacã, Santa
Luzia Arataca, Jaçari, Itaimbé, Palmira, Curaçá, Valente e Valença. Chegando à ci-
dade de Salvador em 1930, instala-se à Rua Carlos Gomes nº 402. Esses fatos estão
documentados no acervo histórico da igreja que também identificam: o seu primei-
ro pastor negro Teodoro Feliciano Santana, nascido em 7 de setembro de 1888, no
município baiano de Santo Antonio de Jesus; registram também em 28 de maio de
1930, na cidade de Salvador, a primeira conversão de um descendente de africanos,
que tinha por nome Heliodoro24. O teólogo Marcos Davi25, questiona a aproxima-
ção do afro-brasileiro com as Igrejas Pentencostais, onde há uma concentração de
quase 9 milhões de negros professando essa vertente do protestantismo.
O II e III Congresso Baiano de Pesquisadores negros, (UEFS,2009) e
(UNEB, 2011), publicou em seu Caderno de Resumos, a Análise das Repre-
sentações de Negritude e Africanidades no Protestantismo do século XIX26,
onde faz-se uma análise sobre o crescimento de negros que se declaram evan-
gélicos e qual sua relação com o tema escravidão.
Diante de tais informações faz-se necessário compreender em que me-
dida a conversão desses negros ao cristianismo protestante e pentecostal, in-
fluenciava suas relações sociais nas quais estavam imersos, principalmente
com as outras religiões as quais já conviviam há quase 400 anos. Nesse sen-
tido na busca da eficácia no resultado do estudo proposto é importante refletir
sobre estas prerrogativas acima elencadas, trazendo como exemplo o primei-
ro convertido no trabalho batista, um latoeiro, tornando-se um frequentador
assíduo da igreja e letrado o suficiente, este é indicado para fazer o curso de

22
FILHO, Walter Fraga. Mendigos, Moleques e Vadios. São Paulo/Salvador: HUCITEC, 1996. p. 26.
23
PEREIRA. J. Reis. História dos Batistas no Brasil:1882-1982. 2º edição. Rio de Janeiro: JUERP,1985. p. 23-2
24
História da Igreja Assembléia de Deus na Bahia. 2ª ed. Rio de Janeiro: CPAD, 1982
25
OLIVEIRA, Marco Davi de. A religião mais negra do Brasil. São Paulo: Mundo Cristão, 2004.
26
CRUZ, Gicélia da. Caderno de Resumos do Congresso Baiano de Pesquisadores negros: outros caminhos das
culturas afro-brasileiras: confluências, diálogos e divergências, de 24 a 26 de setembro de 2009, Feira de Santana/
Realização: Associação de Pesquisadores negros da Bahia ET AL., - Salvador: EDUNEB, 2009, pp.138,139.

271
Organizadora : Edelamare Melo

teologia, tornando assim o primeiro pastor negro batista no Brasil.


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273
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES étnico-raciais:


UM DIREITO DO BRASIL1

Iêda Leal de Souza2

“A nossa escrevivência não pode ser lida como “história de ninar os


da casa-grande”, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos.”
“A verdadeira medida de um homem não se vê na forma como
se comporta em momentos de conforto e conveniência, mas
em como se mantém em tempos de controvérsia e desafio. ”
Martin Luther King

Por que a Educação para as relações etnicorraciais é um tema funda-


mental que deve ser debatido em todos os espaços da nossa sociedade, espe-
cialmente nos espaços escolares do nível básico à pós-graduação? “Porque
não se nasce racista, torna-se”.
E o racismo é um embrião do Capitalismo, que é o cerne da divisão de
classes, onde há exploração do trabalho da população negra; o extermínio da
juventude negra passa por assassinatos ou encarceramentos em massa, mas-
sacres por exploração de terras.
Tudo isso para manter o “status quo” de uma elite branca. Combater o
racismo é lutar contra a exploração de pessoas e em prol da distribuição dos
frutos da produção humana. Isso é socialismo. Então cabe a nós, classe traba-
lhadora, levantar essa bandeira de luta.
Mas o que fazer para implementar esse debate de maneira efetiva? Para
alcançar a sociedade e conseguir de forma objetiva mais pessoas com capaci-
dade política e pedagógica para colaborar na luta antirracista precisamos de
um trabalho sistemático, que vai além de ações afirmativas. Urge compreen-
dermos que o racismo não é uma luta pequena, mas de grande escala.
No âmago do racismo permanecem a exploração da mão de obra da classe
trabalhadora, o conservadorismo em oposição ao respeito às diferenças, a imposi-

1
Artigo públicado na Revista Xapuri Socioambiental do mês de janeiro/2017. https://www.xapuri.info/cidadania/
educacao-para-as-relacoes-etnicorraciais-um-direito-do-brasil/
2
Coordenadora Nacional do MNU. Secretária de Combate ao Racismo da CNTE. Tesoureira do SINTEGO. Vice
-Presidenta da CUT-GOIÁS. Coordenadora do Centro de Referência Negra Lélia Gonzales. Conselheira da Conse-
lho Nacional de Direitos Humanos

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Organizadora : Edelamare Melo

ção de uma religião dita universal em contraposição às mais variadas religiões ou


posições filosóficas que divergem de crenças religiosas, a exploração por meio de
um padrão de vida a ser seguido (negro é mão de obra barata, não podendo ocupar
espaços de decisões políticas) e a agressividade ao meio ambiente.
Diante desse quadro, precisamos construir a união da classe trabalha-
dora por meio das forças conjuntas dos movimentos sindicais, movimentos
sociais, estudantis, movimentos dos sem-terra e sem-teto, moradores de rua e
representantes políticos que verdadeiramente defendam e coloquem em práti-
ca uma plataforma socialista. Sem isso, não avançaremos.
Uma situação que tenta dar maior visibilidade aos negros no Brasil é o
projeto de cotas na educação e no serviço público. Mesmo se tratando de um
projeto momentâneo, merece toda a nossa atenção, bem como todos os cuida-
dos necessários por parte do governo para garantir a entrada e a permanência
dos negros no ensino superior e para que também os editais dos próximos
concursos respeitem a legislação das cotas, de modo a garantir o direito ao
ingresso nos serviços públicos.
As ações afirmativas não configuram privilégios, mas sim atos neces-
sários, que devem ser realizados por nossos governantes, a fim de atenuar a
grande desigualdade e toda a destruição que é causada nas vidas dos negros 
no Brasil. Essa é uma dívida que precisa ser paga imediatamente!
Precisamos que o artigo 5º de nossa Constituição seja amplamente divul-
gado, pois é fundamental importância o teor de seu inciso XLII, o qual determina
que a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito a
pena de reclusão, nos termos da lei. Denunciar é o mínimo que devemos fazer.
A destruição da prática racista se dará quando houver de fato o enten-
dimento e o conhecimento de como se opera o racismo e a compreensão de
seus malefícios. E sendo assim, precisaremos preparar as crianças, instrumen-
talizar os jovens e reeducar os adultos para outra prática, onde possam todos
enxergar no próximo uma possibilidade de viver a diversidade com respeito,
para que possamos construir uma sociedade igualitária.
Lembremos que existem outros temas que são importantes  como o ex-
termínio da nossa juventude, a violência contra as mulheres, a forma absurda
como é tratada a comunidade indígena, do mesmo modo que a falta de re-
presentatividade dos homossexuais nos espaços e a crescente configuração
homofóbica que nossa sociedade tem apresentado;   o descaso  com o meio
ambiente, que ocasiona um imenso dano a nossas vidas; a falta de projetos
para amparar nossos idosos, que nos leva à triste conclusão de que não pode-
mos projetar nossas vidas para além do momento atual.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Diante desse quadro, nosso desafio consiste em ter o domínio de como


se dá o racismo em nossa sociedade, sua forma perversa de agir, e dar cabo
a ele de forma definitiva, usando do nosso poder de conhecer para destruir.
Faz-se, portanto, necessário o estudo e a prática diária das variadas for-
mas de defesa que possuímos, para sobreviver e construir um mundo bem me-
lhor, uma vez que todas as formas de preconceito só serão destruídas quando
forem enfrentadas de maneira sistemática, por intermédio de ações diárias de
empoderamento político e pertencimento racial da sociedade brasileira.
Conhecer e divulgar a história de luta do povo Negro no Brasil constitui
um caminho para o enriquecimento de nosso currículo e nos capacita para
falarmos sobre nós, de nós e para nós.
Keywords: Relações etnicorraciais, Relações, Relações.

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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

O CORPO RACIALIZADO FEMININO


DE SEXUALIDADE DISSIDENTE:
As percepções de um corpo avesso

Lara Jennyfer Batista Ferreira1

Introdução
Estes escritos têm como intuito ligar os estudos sobre as relações de
corpo-mente e ambiente, baseadas no conceito de corpomídia de Helena Katz
e Christine Greiner - que entendem o lugar do corpo como um território em
constante comunicação com suas percepções, reações, pensamentos e am-
bientes, com as perspectivas específicas que acometem o corpo racializado
e feminino de sexualidade dissidente na nossa sociedade, assinalando então
uma certa localização especificamente do corpo feminino negro não-heteros-
sexual na contemporaneidade, que perpassa principalmente a marginalização.
A partir desses pontos, propõe-se uma reflexão sobre como esses corpos foram
marcados por sua sociedade - ocidental de epistemologias brancas, em lugares comuns
que exigem pesquisas com foco específico para clarificar tais históricos, desenvolvi-
mentos e repercussões desse grupo atravessado por tantas interseccionalidades. É im-
portante assinalar que a racialização perpassa inúmeros corpos e perspectivas, porém
o artigo se propõe a analisar as identidades negras, deixando de abordar por exemplo
recortes com perspectivas de um corpo indígena ou asiático.
Esse é um campo de estudo que apenas a partir do século XX começa
a se desenvolver, principalmente no mundo ocidental, e por isso existe uma
enorme gama de pesquisas a serem feitas. Sendo assim, é também proposição
deste trabalho abrir um diálogo entre as diversas áreas de conhecimento para
que esse corpo não mais sofra perante a marginalização, e sim, a partir da
consciência de sua posição, consiga achar sua cura pessoal e coletiva.
Corpo de qual não se fala, pois foge da modernidade. É oposto ao ser
universal neutro e oficial.
A modernidade nasce com o “descobrimento”, a colonização das Améri-
cas; junto se estabelece uma exploração transnacional e sistemática dos corpos

1
Lara Ferreira é estudante de Artes Cênicas da Universidade de Brasília. Seu trabalho perpassa estudos políticos e as
artes performáticas buscando construir relações gesto-imagem-corpo-ação-palavra por meio de uma estética que aborda
a liberdade identitária e diversificada através de epistemologias sul globais. Para mais informações: likidah.tumblr.com

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Organizadora : Edelamare Melo

não-brancos. Além disso, a modernidade consolida o conceito de racionalidade,


conceito que Foucault poderia definir como um poder-saber, pois é um conceito
que categoriza os saberes dos corpos e automaticamente passa a categorizar esses
corpos. Toda a razão, a certeza, a racionalidade se tornam posse do homem branco
heteronormativo a partir da construção do Estado, assim esse sujeito acaba por
ocupar o centro das relações de poder, agregando a si todos os símbolos de valora-
ção do indivíduo e o detendo entendimento completo de sua subjetividade, sendo
então visto como ser complexo e completo em todas suas facetas.
Então, dicotomicamente, por meio de um binarismo característico da
modernidade imposta, irmã do cristianismo, se formam as periferias, o que
deve ser escondido, controlado, o corpo racializado, feminino de sexualidade
dissidente e de identidade de gênero oposta a normatividade cisgênera, a qual
a modernidade em seus diversos artifícios “deixa” morrer. Transformando a
existência destes corpo e de seus símbolos em um eterno sobreviver.
Não se criam parâmetros para existência desses corpos que fogem do
padrão e eles adoecem perante a legalidade e jurisdição do Estado.
O domínio patriarcal heteronormativo é intrinsecamente social e histó-
rico, logo está dentro de todas as relações que estabelecemos cotidianamente
onde o homem branco assume, na maioria das situações, um status de poder
que o confere legitimidade, humanidade e autoridade. Então os padrões da
proteção e legitimação desses corpos brancos masculinos acabam por se fir-
mar dentro tanto de relações cotidianas quanto das jurisdições, pois suas legi-
timações são tão profundas que o próprio acesso a constituição das jurisdições
de uma nação fica em grande parte sob domínio desses corpos padronizados.
Ochy Curiel, escritora colombiana, em La Nación Heterosexual: Análisis
del discurso jurídico y el régimen heterosexual desde la antropología de la do-
minación (2013) fez um belíssimo trabalho ao situar o local de extermínio do
corpo racializado feminino e não-heterossexual dentro da nação colombiana e da
Constituição que institucionaliza a nação. Tomarei desse trabalho uma breve aná-
lise para o contexto brasileiro - que além de ter sua constituição escrita na mesma
época e contexto, se firma nas mesmas bases cristãs e patriarcais.
Temos uma constituição que é assumidamente “fraterna, pluralista e
sem preconceitos, fundado na harmonia social” mesmo que esteja “sob a pro-
teção de Deus”, automaticamente remetendo a princípios cristãos de vida e
sociedade. A Constituição Brasileira foi desenvolvida a partir de proposições
de um grupo de 559 congressistas, nos quais menos de 10% são mulheres,
e onde menos de 25% correspondem a maior parte das características que
compõe a maioria do povo brasileiro: feminino, jovem, não-branco e pobre.

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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

E daí já conseguimos ter uma primeira ideia de toda a hipocrisia das falsas
liberdades, igualdades, autonomias e direitos sociais que, em suma, foram es-
critos na Constituição Brasileira para aqueles que vão, de fato, ser atendidos
pelas determinações constitucionais, os homens brancos e heteronormativos.
Esse movimento pode ser percebido através da própria aplicação de políticas
públicas que perpassa conceitos de população, sujeito e família, presentes em
nossa Constituição e mais uma vez ligados a valores cristãos.
Assim quando partimos para a análise da afetividade e das trocas dentro de
nossas relações sociais, análise crucial para esse trabalho quais são as represen-
tações de troca, amor e afetos que nos permeiam e que podemos esperar que nos
permeiem desde a infância até o presente momento da vida adulta?
O primeiro contexto em que estamos inseridas é o familiar, e particular-
mente o da família tradicional brasileira que é em princípio heterossexual. E
mesmo que grande parte das famílias brasileiras fujam de um padrão higienizado
de família, quando nós ligamos a noção de família a uma análise da imagem
difundida no imaginário popular por meio de representações gráficas e audiovisu-
ais, visualizamos na maioria das vezes representações de famílias brancas. Logo,
quando buscamos as imagens e símbolos que representam a família tradicional
brasileira, partimos para a análise de dois importante constitutivos da nossa for-
mação e da nossa consolidação imagética de representatividades no mundo: a
educação básica e as representações de arte e entretenimento.
Dentro da educação básica tem-se uma perspectiva histórica que mos-
tra como o ensino sempre foi direcionado para as altas classes, baseado em
princípios cristãos (Loureiro, M.C.S. 2008). Observando um retrato do pre-
sente, o ensino tem se desenvolvido muito mais pluralmente se comparado
aos seus anos anterior, mas ainda enfrentamos diversas questões que partem
da regência do conhecimento a partir de perspectivas da modernidade branca,
firmando-se pelo racionalismo de Descartes e a teleologia de Hegel. Enquanto
oculta filosofias, visões e pesquisas que partem de corpos negros, femininos e
de sexualidade dissidente. A criança, pequeno corpo avesso, feminino e negro,
passa por grande parte da educação básica entendendo que sua percepção não
é importante, que seus sentimentos são irrelevantes para o contexto de sala de
aula, reprimindo-os, e caso seja não-heterossexual, provavelmente seu primei-
ro contato com relações homossexuais serão sexualizadas ou criminalizadas.
Além disso, a probabilidade de desestabilização de seu contexto familiar
é enorme, afinal homens negros estão sempre na mira do Estado. E, caso esses
homens não estejam diretamente na mira no Estado, ainda existe uma série de
questões e abusividades sobre os casais heteronormativos que só se tornam mais

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Organizadora : Edelamare Melo

complexas se analisadas pelo recorte de raça. Assim, ver a sua representação de


família como “errada” ou tomá-la como parte de sua responsabilidade pessoal se
torna um mecanismo comum para os pequenos corpos negros e femininos.
Agora, se viramos os olhos para a arte/entretenimento, será difícil ver em
uma televisão casais despadronizados. Caso se ache, será praticamente impossível
achar representações não estereotipadas dos casais não-padronizados e relativa-
mente fácil encontrar padrões de preconceito. ( COLLING, Leandro. 2010).
E aí resta a pergunta, onde se firma/onde se encontra/ onde se discutem
as experiências, as vivências, as necessidades, as invisibilidades desse corpo
negro feminino e não-heterossexual se a casa é um espaço institucionalizado,
se a escola é um espaço institucionalizado, se as representações são institu-
cionalizadas e as próprias relações também são? Sobra a elas, sobra a nós, a
violência em diferentes níveis e/ou o adoecimento.
Os exemplos e estereótipos sobre qual a criança cresce
Se olharmos para algumas teorias sociológicas, e então cito em parti-
cular A Construção da realidade social (2004) de Thomas Luckmann e Peter
Berger, conseguimos situar a importância da primeira socialização para as
crianças. É nesse momento em que se absorvem os conceitos do mundo e se
interioriza, tornando todos os estereótipos (positivos e negativos) cheios de
significados subjetivos e pessoais. A criança que carrega em seu corpo esses
significados sociais de ser racializada e feminina (desconsiderando nesse pri-
meiro momento sua sexualidade) mesmo que não os entenda, estará à mercê
de dois processos descritos a seguir.
O primeiro é a própria interiorização que acontece a nível muito pessoal
e se torna ainda mais efetiva quando há identificação. A criança olha para o
corpo negro e sabe que é seu semelhante, a criança olha para a repressão do
corpo negro e sabe seu lugar de obediência onde sua voz se torna cada vez
mais silenciada, podendo se considerar também “feia e inútil”. Nesse ponto
é importante assinalar que o processo de internalização de papéis de negras
de pele escura e negras de pele clara passa por diversas diferenças onde em
grande parte as negras de pele mais clara estarão associadas a sexualização
de seus corpos, enquanto as negras retintas estarão ligadas aos estereótipos
de empregada - e diversas vezes tratada como tal. (GONZALES, Lélia. 1984)
Assim, aos poucos criança absorve diversas ideias, como também a
ideia de que se encarar os homens na rua será provocada e sexualizada mesmo
que contra sua vontade. Aos poucos também começa a entender que deve en-
tregar sua afetividade e compreensão aos homens, pois algum deles a espera -

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

mesmo que ela não queira, pois logo chegam os assuntos sobre maternidade e
namoricos, constituindo base psicológica para a heteronormatividade. Para a
mulher negra resta o papel de cuidar, amasiar, esperar e doar o corpo ao outro.
E aqui, nesse momento da interiorização, se coloniza a mente e o corpo, por
mais sutil que seja, esse movimento sempre cria repercussões.
Então se torna aberto o segundo processo que é o de violação desse corpo
criança, ou seja, se o corpo criança negro e feminino não corresponde às expec-
tativas já delimitadas pela sociedade, ela é repreendida. Essa repressão pode re-
percutir tanto em um endurecimento para esconder tais características quanto em
uma extravagância violenta, mas também em várias outras possibilidades ainda
não documentadas e estudadas detalhadamente. Além disso, a violação também
pode vir de uma sexualização desse corpo, enquanto agressão verbal ou violência
física. De qualquer forma as reações raramente serão positivas, pois a repressão
e a sexualização em si são negativas para qualquer corpo, e consequentemente
essas violências ficarão guardadas no corpo como características específicas.
Nesse processo a reprodução dos padrões apreendidos é no mínimo difícil de
ser negada e ressignificada, especialmente quando falamos sobre como esses padrões
se estabelecem dentro de um relacionamento, seja ele romântico ou não. Quando
chegamos a fase da adolescência essas questões se tornam ainda mais delicadas, pois
a adolescência é uma fase de grande experimentação sexual e é importantíssima para
a construção da noção de sexualidade. Então o corpo negro feminino, geralmente,
está desenvolvendo melhor o entendimento de sua não-heterossexualidade, mas an-
tes disso, já havia desenvolvido seu entendimento do que é a submissão, do seu lugar
de não-amor e do que é o amor romântico - esse sonho vendido pelas ruas como
promessa de felicidade, construção social do tipo dominante-dominada em que cada
um deve comprimir seus papéis para que a relação se cristalize.
O corpo negro feminino de sexualidade dissidente amadurece “escolhen-
do” seguir ou não os padrões de feminilidade que lhes são impostos. Quanto
mais distantes desse padrão de feminilidade mais sujeitos esses corpos estarão
a invisibilização e a violência (física e psicológica) que também vem em par-
te da deslegitimação de estereótipos ligados a não-normatividade de corpos
dissidentes. Essa não-normatividade também acaba por gerar noções coletivas
banhadas em preconceitos como a de “se você é mulher, gosta de mulher e se
veste como homem é porque você tem inveja de não ter um pau”. Afinal, a pa-
dronização estética é extremamente ligado a concepção do que é ser mulher na
nossa sociedade, majoritariamente regida por epistemologias brancas.
De qualquer forma não podemos nos esquecer que o próprio sucumbir a
feminilidade é prejudicial a saúde mental do corpo auto-intitulado mulher. Susan

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Organizadora : Edelamare Melo

Bordo, a partir da ideia de que o corpo deveria ser reconhecido como uma cons-
trução cultural e um locus de controle social, estuda doenças que seriam eminente-
mente encontradas em mulheres que performance a feminilidade, como a histeria
e a anorexia. Assim, assinala que “observando estes distúrbios, vemos o corpo das
doentes como uma construção ideológica emblemática da definição de feminilidade
de cada período em que formam mais reincidentes.” (GREINER, Christine, 2010).
A criação de um corpo regrado e não-humano
A dor e a violência então perpassam esse corpo negro e feminino de
sexualidade dissidente de várias maneiras ao longo de sua vida, provocando
diversas mágoas, angústias e tensões diárias. Consequentemente se desenvol-
vem somatizações, blindagens e couraças emocionais nesses corpos específi-
cos. “A expressão corporal é a visão somática da expressão emocional típica
que é vista a nível psíquico como carácter. Defesas aparecem em ambas as
dimensões, no corpo como couraça muscular.” (LOWER, Alexander, 1976).
Para o corpo negro feminino de sexualidade dissidente foram relegados
os sentimentos negativos e a baixa auto estima enquanto o corpo universal
branco masculino relegou a si mesmo a auto estima e os sentimento positivos.
E a partir dessa divisão também se cria um corpo específico, regrado e oposto
ao ideal de o que é humano, definido pela modernidade capitalista e branca.
Um corpo que a margem da legalidade do Estado, adoece.
“Cada sentimento-mapa parece engendrar respostas adaptativas
na forma de estados corporais e vice-e-versa. Os mapas da má-
goa (ou sentimentos de mágoa) estão, por exemplo, associados a
estados de desequilíbrio funcional. A facilidade de ação se reduz.
Não raramente estes mapas estão associados a presença da dor, de
sinais de doenças, ou de desacordos fisiológicos, indicando uma
coordenação diminuta das funções vitais”

GREINER, Christine. O corpo em crise. 2010. P.43


Sobreviventes de um constante estado de regulação, docilização e deses-
tabilização - que partem das ações do corpo social enquanto agentes do poder,
esses corpos são criados em outros/novos estados de percepção e vivência, tanto
física quanto mental, pois ambas as percepções estabelecem uma rede de trocas.
Nesse sentido os conceitos - amor, raiva, autoestima, ego, memória tam-
bém se tornam vazios e passíveis de ressignificação, pois são pautados na lógica
de percepção do corpo universal, e porque as próprias noções de sucesso e pro-
gresso causaram sua marginalização. Entretanto, como são esses conceitos, que
vão estar presentes durante todo nosso processo de socialização primária, eles

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

acabam por resultar em uma internalização por vias de identificação que nos auto
induz a imagem de subalternidade - e que também nos relega ao silêncio.
Ao longo da vida nos formamos algozes de nós, através de auto con-
troles e auto sabotagens que nos relega mais uma vez a raiva, o medo e nos
priva de amor, auto estima e memória. Todas essas marcas passam a estar em
nossos corpos e mentes. O estado de tensão se torna uma constante e a possi-
bilidade de somatização negativa desses estados é recorrente.
Considerações Finais
O corpo é único e mantém relações únicas com a mente e o ambiente.
Entender isso, é também entender que o corpo de cada mulher negra de se-
xualidade dissidente é único, mas existem questões que nos perpassam em
padrões que se repetem historicamente e socialmente. Essas questões pa-
dronizadas, principalmente enquanto violências, nos colocam em um lugar
específico e comum por dividirmos esse locus social, e cabe a nós, corpas
racializadas de sexualidade dissidente , estudarmos as reverberações sociais
da violência em nossos corpos. Pois somente partir de novas epistemologias
nossas e a partir do resgate de epistemologias negras e indígenas ancestrais
que teremos a possibilidade de desconstruir as caixas terminológicas e sociais
que nos prendem em um ciclo repetitivo de relações violentas conosco e com
o ambiente. O termo mulher, o termo negra, o termo lésbica, bissexual ou
transsexual não nos cabe. Somos muito mais complexas e ancestrais que as
definições modernas brancas fabricadas para docilizar os corpos que se mos-
traram opostos a certas formas de dominação dos corpos e das mentes
E por conta das violências e dominações que permeiam esses corpos, o
corpo avesso que está às margens sociais precisa constantemente se adaptar
às mudanças sociais, culturais, políticas e econômicas para conseguir sobre-
viver. E a partir dessas metamorfoses os corpos marginalizados provocam
também um giro de percepções e conceitos, colocando em xeque a si mesmas,
criando novas territorializações e agindo como operadores de desestabiliza-
ção de conceitos e práticas da modernidade branca. As percepções negras
não-heterossexual, nesse sentido e vários outros, se tornam revolucionárias, e
esse é um dos vários motivos pelo qual precisamos conduzir nossas próprias
produções e definir nossos próprios novos conceitos.
Como cita Angela Davis “quando a mulher negra se move, as estruturas se
movem com ela”. É necessário nos movermos em meio a lama que nos chafurda,
pois a vida nunca foi fácil para aquelas que tentam sobreviver em um país que
passou por tantos percalços como o Brasil, desde a colonização até o pós-ditadu-
ra. Estamos a margem, mas isso só nos coloca em uma posição de maior urgência

287
Organizadora : Edelamare Melo

em criar demandas por nós, por nossas ancestrais e por nossas descendentes. Aqui
escolho as Artes como uma das grande possibilidade de novas territorializações
na mesma medida em que, com o olhar e a pesquisa artística, podemos dar visi-
bilidade a planos não explorados. Criar novos discursos é uma disputa de narrati-
vas, é uma disputa de poder, pois a arte:
“ é autônoma, mas guarda contato a partir de seus pontos de par-
tida: o caos, o território e o corpo. É sempre o gesto que dá poder
a imagem. O que ele comunica não é só para o outro, mas para
si mesmo uma comunicabilidade e não um significado pronto.
Toda escritura é dispositivo de poder. A escritura do gesto não é
exceção. (Greiner, Christine. Corpo em crise. 2010,p.106).

Além de encarar as Artes como dispositivo de disputa de narrativa e


de poder, ao entendermos esses campos como lugar de ressignificações isso
também nos gera a possibilidade de entender as Artes como possibilidade de
comunicação com o outro por meio do questionamento de símbolos comuns.
Somado a esse processo, ainda existe a possibilidade de entender as Artes
como possibilidade de comunicação e transformação entre nós mesmas, atra-
vés da busca de metodologias que fujam de uma lógica eurocêntrica e que
busquem atender demandas tão específicas quanto às demandas de comuni-
cação e transformação da mulher racializada latina de sexualidade dissidente.
É por nós que todas as lutas em instâncias de significação precisam ser
travadas. Assim, é necessário que sejam inscritas novas metodologias, no-
vas significâncias e novas subjetivações para esses corpos, a fim de que, em
diálogo com diversas áreas do conhecimento, encontremos curas pessoais,
coletivas e novos rostos possíveis.
Ressignificarmos a fim de tirarmos de nós um pouco do silêncio e da
dor que nos foi reservado, tanto a nível psicológico quanto a nível físico.
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Louro, Guacira Lopes. Um corpo estranho - Ensaio sobre sexualidade e teoria queer. Belo
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289
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Breve análise da Reforma Trabalhista sob a


ótica da discriminação racial indireta

Luana Angelo Leal1

Introdução
O mercado de trabalhe o brasileiro é historicamente marcado por
diversas desigualdades, dentre as quais destaca-se para os fins do presente
estudo a desigualdade racial2: negros3 recebem cerca de 44% a menos do
que brancos, representam o maior número de desempregados, maior índice
de analfabetismo e maior presença no trabalho infantil4. Esta desigualdade
é causada e perpetuada pelo racismo presente na sociedade brasileira, cujo
combate é um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil,
conforme redação do art. 3º da Constituição Federal, e um dos princípios que
regem as relações internacionais do Brasil, conforme art. 4º, CRFB.
Considerando que a Constituição Federal é a norma superior no or-
denamento jurídico brasileiro, o combate à discriminação mostra-se como
basilar para a constituição de uma “sociedade livre, justa e solidária”, como
estabelece nossa Carta Maior, devendo estar refletido nas demais legislações
para possibilitar a redução das desigualdades sob diversos aspectos. Assim,
no caso da legislação trabalhista, também deve ser guiada pelo princípio do
repúdio ao racismo, criando normas que proíbam a discriminação racial nas
relações de trabalho e promovam a redução da desigualdade racial.
A Lei nº 13.467/2017, também chamada de Reforma Trabalhista, tra-
mitou em regime de urgência no Congresso Nacional e foi aprovada e sancio-
nada em apenas 7 meses, alterando mais de uma centena de dispositivos da

1
Mestranda em Teorias Jurídicas Contemporâneas pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (PPGD/UFRJ) e bolsista CAPES. Integrante do grupo de pesquisa Configurações Institucionais e Relações de
Trabalho (CIRT/UFRJ). Integrante do Curso de Extensão Jurista Luiz Gama (UFRJ). E-mail: [email protected].
2
Sem ignorar o relevo das demais formas de desigualdade e discriminação (sexo, orientação sexual, identidade de
gênero, origem, idade e etc.), o presente estudo também pode ser observado a partir da ótica destas outras modali-
dades e suas interseções.
3
A partir da nomenclatura adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estatística em que o termo “negro” re-
presenta o somatório da população autodeclarada como preta e parda, bem como por sua utilização nas referências
bibliográficas consultadas.
4
IBGE. As cores da desigualdade. Retratos: a revista do IBGE. Rio de Janeiro, nº 11, maio/2018, p. 14-19. Disponível
em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/17eac9b7a875c68c1b2d1a98c80414c9.
pdf . Acesso em 17 set. 2019.

291
Organizadora : Edelamare Melo

Consolidação das Leis do Trabalho. As normas da referida lei são genéricas,


não estabelecem qualquer previsão específica para os trabalhadores e traba-
lhadoras negras, no entanto, questiona-se: é possível que estas normas afetem
desproporcionalmente a população negra?
Para responder a esta pergunta, o presente estudo aborda a teoria da discrimi-
nação com alguns de seus principais conceitos para análise da legislação laboral, con-
centrando-se nos efeitos gerados pela norma, a partir da obra O que é discriminação?
(2017) de Adilson José Moreira. Por fim, o estudo analisa alguns dispositivos inclu-
ídos pela Reforma Trabalhista, correlacionando-os com dados sobre a desigualdade
racial no Brasil para verificar a potencialidade de impacto desproporcional para os tra-
balhadores e trabalhadoras negras e, consequentemente, gerando discriminação racial.
Aspectos sobre a discriminação racial nas relações de trabalho
A discriminação é um conceito com múltiplos significados. O primei-
ro deles, chamado de discriminação direta, compreende atos intencionais e
individuais que contrariam o tratamento igualitário, pois sujeitam uma pessoa
de grupo minoritário a tratamento desvantajoso que não seria dispensado a
alguém do grupo dominante5. No entanto, a discriminação mostrou-se mais
complexa do que os critérios de intencionalidade e arbitrariedade.
Com a percepção da insuficiência deste conceito, outra teoria foi for-
mulada, passando a contemplar os casos em que não é possível identificar um
agente, pois não há qualquer conduta explicitamente discriminatória, mas sim
um impacto desproporcional sobre um determinado grupo. Deste modo, uma
discriminação que poderia nem mesmo ter sido imaginada quando da criação
da norma ou execução do ato, ocorre no caso concreto. Assim passou-se a de-
senvolver a noção de discriminação indireta, que retrata os casos em que a con-
cessão de um tratamento igual para pessoas desiguais gera um impacto despro-
porcional de caráter coletivo6. Este é o significado atribuído pela Organização
Internacional do Trabalho, na Convenção nº 111 (Discriminação em Matéria
de Emprego e Ocupação), que vigora no Brasil desde 1969, e que, apesar de
não adotar expressamente a nomenclatura da discriminação indireta, define dis-
criminação como toda distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito
destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento no emprego.
Deste modo, não preciso que haja uma conduta expressamente discriminatória,
bastando a constatação de um efeito discriminatório para determinado grupo.

5
MOREIRA, Adilson José. O que é discriminação? Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito: Justificando,
2017, p. 17-18.
6
Na mesma obra, p. 103-104.

292
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

A concepção de discriminação indireta nos alerta para o fato de que


a aparência de neutralidade de uma norma (ou ato) não é suficiente para des-
caracterizar seu potencial discriminatório. Isto ocorre porque o Direito está
baseado nos pressupostos de um modelo liberal da igualdade, cujo principal
requisito é a generalidade das normas, o que significa que elas devem ser
feitas para toda a população do Estado. No entanto, apesar disto, as normas
são pensadas para um determinado grupo normativo, que representa o padrão
cultural universal: o homem branco heterossexual. O mecanismo que univer-
saliza esse sujeito específico é chamado de privilégio, e representa ao mesmo
tempo uma vantagem social concedida ao grupo dominante e uma estrutura
de exclusão para o grupo socialmente subordinado, especialmente em decor-
rência da formação de redes de relacionamentos entre pessoas do grupo domi-
nante que auxiliam na perpetuação de posições sociais através do favoritismo
e da formação de estereótipos sobre o grupo subordinado7.
Porém, a discriminação indireta também mostrou limitações, uma vez que
não enxergava as correlações entre distintas formas de discriminação, invisibili-
zando as discriminações específicas sofridas por mulheres negras, de modo que as
feministas negras desenvolveram a concepção de discriminação interseccional, que
abrange a análise das conexões entre o racismo, sexismo e opressão de classe8.
Com o desenvolvimento do estudo sobre a discriminação ao redor do mundo,
começou-se a perceber que a discriminação ocorre independentemente de condutas
discriminatórias e que os impactos desproporcionais são causados não por acaso, mas
em razão de existência de uma base social, ideológica, cultural e psicológica que re-
produz sistematicamente padrões discriminatórios. Assim desenvolveu-se o conceito
de discriminação estrutural, que identifica a discriminação como um padrão normal
de funcionamento da sociedade que está organizada sobre desigualdades estruturais
e subordinação de grupos minoritários9. No que tange a discriminação racial, Silvio
Luiz de Almeida trabalha o conceito de racismo estrutural compreendendo que existe
uma base racial que orienta toda a sociedade, suas instituições e indivíduos. Isto faz
com que a única forma de reduzir as desigualdades seja por meio do combate efetivo
ao racismo, com adoção de práticas antirracistas que promovam a igualdade real, caso
contrário ele tende a se reproduzir e perpetuar nas estruturas da sociedade10.
Por fim, mais uma modalidade de discriminação que cabe aqui destacar é
a discriminação organizacional que abrange a reprodução do racismo na prática

7
Na mesma obra, p. 41 e 146-148.
8
CRENSHAW, Kimberle W. (2004). A intersecionalidade na discriminação de raça e gênero. In: VV.AA. Cruza-
mento: raça e gênero. Brasília: Unifem, p. 7-16.
9
MOREIRA, Adilson José. Obra citada, p. 136-137.
10
ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018, p. 36-37.

293
Organizadora : Edelamare Melo

rotineira das empresas em decorrência de uma cultura institucional que perpetua – e


não combate – as desigualdades estruturais decorrentes do privilégio branco. Esta
teoria também explica a criação de “perfis profissionais ideais” que correspondem
às características do grupo dominante, também mantidos pelo favoritismo intragru-
po, das quais os membros de grupos minoritários são rejeitados ou desconsiderados
devido a perpetuação de estereótipos.
Considerando a predominância de pessoas brancas em cargos de che-
fia e gerência de empresas11, o racismo se reproduz e perpetua nas relações
de trabalho por meio destes modelos mentais socialmente construídos que
reduzem as chances de contratação de pessoas negras, independentemente de
seu mérito, inteligência ou aptidão para o trabalho. Isto pode ser observado
na campanha “Teste de Imagem”, desenvolvida pelo Governo do Paraná, em
que profissionais de setores de recursos humanos atribuíam significados di-
ferentes para pessoas negras e brancas em situações idênticas, reproduzindo
padrões estereotipados12, o que é um sinal da presença do racismo na fase pré-
contratual, quando sequer foi constituída uma relação de trabalho, o que pode
auxiliar na compreensão dos números do desemprego no Brasil, que apontam
para uma predominância negra.
Ademais, conforme o art. 2º da Convenção 111 da OIT, os países sig-
natários firmam compromisso de adotar uma política nacional que promova a
igualdade de oportunidades e de tratamento, em prol da eliminação da discri-
minação. Neste aspecto, as políticas de ação afirmativa ganham relevo pois,
além de inserirem pessoas negras em locais sociais de onde normalmente são
afastadas, possibilitam a integração entre membros de grupos diversos, con-
tribuindo para redução gradativa da força dos estereótipos e ampliação das
redes de relacionamento13.
Atualmente vigora a Lei nº 12.711/2012 que determina reserva de va-
gas para negros em concursos para ingresso nos cursos de graduação de univer-
sidades federais e instituições federais de ensino técnico de nível médio, e a lei
nº 12.990/2014 que estabelece a reserva de vagas para negros em concursos pú-

11
Conforme dados da pesquisa “Perfil social, racial e de gênero das 500 maiores empresas do Brasil e suas ações
afirmativas”, realizado pelo Instituto Ethos (2016, p. 22), cujos resultados apontam que pardos representam menos
de 5% dos cargos de Conselho de Administração e do Quadro Executivo e pouco mais de 6% dos cargos de gerência
(pretos representam menos de 1% nestas funções), ao passo que negros representam 58% dos trainees, 57% dos
estagiários, 35% do quadro funcional e 25% dos cargos de supervisão, revelando a desigualdade ocupacional entre
negros e brancos no setor privado, em que negros tem menor acesso aos cargos de gestão e comando.
12
CAMPANHA com profissionais de RH retrata racismo institucional. O Estado de São Paulo, 17 nov. 2016. Dis-
ponível em: https://emais.estadao.com.br/noticias/comportamento,campanha-com-profissionais-de-rh-retrata-racis-
mo-institucional,10000088984 Acesso em: 18 set. 2019.
13
MOREIRA, Adilson José. Obra citada, p. 124-125.

294
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

blicos federais. Estas medidas são basilares para uma mudança gradativa do ce-
nário da inserção da população negra no mercado de trabalho, porém, é preciso
mais e Coordenadoria Nacional de Promoção de Igualdade de Oportunidades e
Eliminação da Discriminação no Trabalho do Ministério Público do Trabalho
(COORDIGUALDADE-MPT) defende inclusive a aplicação analógica da lei
nº 12.990/2014 para o setor privado, com a possibilidade de reserva e anúncio
de vagas específicas para a população negra, o que ampliaria a capacidade de
mudança, dado o número de empregos neste setor14.
Todavia, o racismo não afeta apenas o momento da contratação, mas
todo o curso do contrato de trabalho. Uma das formas de expressão da discri-
minação racial no local de trabalho são as microagressões, que são pequenas
manifestações de desprezo buscam ofender, rebaixar e/ou invalidar pessoas
negras, gradualmente minando sua autoestima, podendo até mesmo ensejar a
dispensa voluntária do(a) trabalhador(a) quando a convivência no ambiente
de trabalho torna-se insustentável15. Outro exemplo de racismo durante o con-
trato de trabalho se dá quando há pressão social para que o(a) trabalhador(a)
de grupo minoritário se assemelhe ao máximo ao padrão do grupo normativo.
Deste modo, a cultura institucional da empresa tenta gradativamente apagar
a identidade do(a) trabalhador(a), que se sente pressionado(a) a dissimular
sua identidade pessoal para evitar discriminação (omitindo sua religião ou
orientação sexual, por exemplo) ou tentativa de aproximar-se esteticamente
do grupo dominante, como meios para evitar a discriminação, manter-se na
empresa e avançar na carreira16.
1. Análise de alterações promovidas na CLT Reforma trabalhista sob a
ótica da desigualdade racial
A Lei nº 13.467/2017 promoveu mudanças em uma série de aspectos da
legislação trabalhista, fixados de forma genérica. Apesar da mudança ter sido gené-
rica, destinada a todos(as) os(as) que são afetados(as) por esta legislação – trabalha-
dores(as), sindicatos e empregadores(as) –, a aparente neutralidade da norma incide
sobre uma realidade estruturalmente desigual, onde o racismo se reproduz de forma
sistêmica, de modo que tem severo potencial de aprofundar a desigualdade racial
nas relações de trabalho em decorrência de seu impacto desproporcional para a
população negra, majoritariamente trabalhadora ou desemprega. O presente estudo

14
COORDIGUALDADE-MPT. Nota Técnica GT de raça nº 001/2018, de 06 de agosto de 2018. Disponível em: https://mpt.
mp.br/pgt/publicacoes/notas-tecnicas/nota-tecnica-gt-de-raca-no-01/@@display-file/arquivo_pdf. Acesso em 18 set. 2019.
15
MOREIRA, Adilson José. Obra citada, p. 13 e 158.
16
Na mesma obra, p.126.

295
Organizadora : Edelamare Melo

aborda algumas mudanças centrais divididas nos seguintes eixos: Direito Processu-
al do Trabalho, Direito Material do Trabalho e Direito Coletivo do Trabalho.
As mudanças no Direito Processual do Trabalho podem afetar gra-
vemente o acesso à justiça para os trabalhadores, em especial para negros e
negras. A Justiça do Trabalho já é considerada uma justiça para desemprega-
dos, tendo em vista a não regulamentação da proteção constitucional contra
dispensa sem justa causa (prevista no art. 7º, I, CRFB), de modo que os traba-
lhadores sentem-se inseguros de ajuizar a ação durante o contrato de trabalho
(e muitas vezes até mesmo depois) e a proteção aos direitos trabalhistas se dá
de forma reparatória. Dados divulgados pelo Tribunal Superior do Trabalho
apontam queda brusca no número de ações trabalhistas ajuizadas a partir de
dezembro de 2017 (início estatístico da vigência da Reforma Trabalhista),
e no ano de 2018 os números continuaram reduzidos, abaixo do padrão dos
mesmos meses nos anos anteriores17.
Um dos aspectos que indica que a Reforma Trabalhista dificulta o
acesso à justiça é o aumento nos custos do processo judicial trabalhista, den-
tre os quais o primeiro que se pode destacar são as mudanças na gratuidade de
justiça. Originalmente na Justiça do Trabalho bastava a declaração de próprio
punho do(a) trabalhador(a) indicando que não possui recursos para arcar com
os custos sem prejuízo de seu sustento. Agora, também é necessária a com-
provação de insuficiência de recursos para o trabalhador que receba salário
superior a 40% do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previ-
dência Social, conforme art. 790-B. A Reforma também limita o alcance da
gratuidade de justiça, que não abrange as novas custas criadas18.
Outro aspecto do encarecimento do processo trabalhista é a criação de
novos custos. Agora a legislação trabalhista também prevê possibilidade de ho-
norários de sucumbência advocatícios (Art. 791-A) e periciais (art. 790-B), o que
significa que a parte que perder o processo deverá pagar um percentual para o
advogado da parte vencedora ou para o perito, mesmo que seja beneficiário de
justiça gratuita. Isto é um empecilho a acesso à justiça uma vez que os honorários
sucumbenciais incidem sobre pedidos indeferidos, o que gera receio da formula-
ção de determinados pedidos, devido ao risco de indeferimento por divergência
judicial, de cálculo ou dificuldade probatória. A sucumbência agora também in-

17
PRIMEIRO ano da reforma trabalhista: efeitos. TST, 05 nov. 2018. Disponível em: http://www.tst.jus.br/noti-
cias/-/asset_publisher/89Dk/content/id/24724445. Acesso em: 18 set. 2019.
18
Isto estabelece uma diferenciação entre o acesso à justiça do beneficiário de gratuidade no processo civil e no
processo do trabalho, visto que no processo civil, apesar da existência de sucumbência com responsabilização do
beneficiário da gratuidade, a obrigação de pagamento pode ficar suspensa pelo prazo de até 5 anos e só será cobrada
caso o credor comprove que não há mais insuficiência de recursos, conforme art. 98º, §3º, CPC.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

cide sobre os honorários periciais, até mesmo para os beneficiários da gratuidade


de justiça – em flagrante desproporção aos demais ramos do Judiciário.
No caso de o reclamante não comparecer à audiência, além do arqui-
vamento do processo, a reforma agora prevê a condenação em custas judiciais,
até mesmo para o beneficiário da gratuidade de justiça (art. 844, §2º, CLT). Isto
é extremamente complexo, porque a distribuição populacional em uma cidade
também segue critérios raciais, que alocam a população negra predominantemen-
te nos bairros periféricos e mais distantes dos centros, como é o caso do Rio de
Janeiro19, agravado por dificuldades de deslocamento e transporte insuficiente,
prejudicando de maneira desproporcional esta população, o que é mais um exem-
plo do impacto desproporcional da legislação trabalhista na população negra.
Também houve significativa mudança no que tange a indenização por da-
nos morais, agora chamados de danos extrapatrimoniais – nomenclatura que tenta
afastar a concepção de impacto subjetivo inerente ao dano moral20 –, a Reforma
Trabalhista criou um capítulo próprio na CLT com os artigos 223-A a 223-G, que
estabelecem regramento específico para as relações de trabalho. A principal modi-
ficação é a fixação de limites para a indenização de acordo com o salário recebido
pelo(a) empregado(a) (art. 223-G, §1º, CLT), o que pode ensejar que uma mes-
ma ofensa (aqui incluídas condutas de discriminação, que ensejam reparação por
dano moral) dirigida a empregados(as) que recebem salários distintos, faça com
que empregados(as) com maiores salários possam receber maiores indenizações.
Considerando as desigualdades ocupacionais no mercado de trabalho brasileiro, é
possível imaginar um impacto desproporcional na população negra.
No que tange ao Direito Material do Trabalho, a Reforma Trabalhista
cria a nova modalidade do contrato intermitente de trabalho, em que o(a)
trabalhador(a) fica à disposição do empregador(a) aguardando a convocação
para o serviço, sem pagamento de salário quando não há prestação de servi-
ços, na forma do art. 443, §3º, CLT. É um contrato que assegura os direitos
trabalhistas, porém possui tamanha flexibilidade que prejudica a estabilidade
das relações de trabalho, dada a incerteza do salário.
Ademais, também houve alteração na regulação da terceirização, mas
que não consta na Consolidação das Leis do Trabalho. Foi modificada a Lei
nº 6.019/74, que dispõe sobre o trabalho temporário, para estabelecer a ter-
ceirização (quando uma empresa presta serviços para outra) ampla e irrestrita,

19
COSTA, Camila. 5 mapas e 4 gráficos que ilustram segregação racial no Rio de Janeiro. BBC Brasil, 10 nov. 2015. Disponível
em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/11/151109_mapa_desigualdade_rio_cc. Acesso em: 17 set. 2019.
20
DELGADO, Mauricio Godinho; DELGADO, Gabriela Neves. A reforma trabalhista no Brasil: com os comentá-
rios à Lei n. 13.467/2017. São Paulo: LTr, 2017, p. 144-145.

297
Organizadora : Edelamare Melo

visto que pode ser utilizada até mesmo na atividade-fim da empresa princi-
pal, o que anteriormente era vedado pela súmula 331 do Tribunal Superior
do Trabalho. Esta alteração, como muitas outras, teve a constitucionalidade
questionada no Supremo Tribunal Federal, por meio da Arguição de Descum-
primento de Preceito Fundamental nº 324/DF, que já foi apreciada e a Corte
entendeu pela constitucionalidade desta transferência de serviços.
Esta alteração pode ter impacto negativo nas relações de trabalho e
prejudicar especialmente a população negra tendo em vista sua significati-
va representação nestes contratos de trabalho, conforme estudo desenvolvido
pelo  Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada que destaca a desigualdade
salarial entre empregados terceirizados e os empregados contratados pela em-
presa principal, o número expressivo de acidentes de trabalho e até mesmo
mortes envolvendo trabalhadores terceirizados21.
A Reforma Trabalhista cria novas exigências para a reconhecimento
de identidade de funções entre empregados e a consequente concessão da
equiparação salarial, que é o mecanismo jurídico para reparar o ato discrimi-
natório de pagamento de salários distintos para trabalhadores que realizam as
mesmas funções – o que também pode ter aspecto racial, se considerarmos
a diferença de renda entre trabalhadores negros e brancos. Agora o art. 461,
CLT exige que a comprovação da identidade de funções se dê no mesmo
estabelecimento (reduzindo a anterior previsão que abrangia a “mesma loca-
lidade”, que era interpretada como o Município ou Região Metropolitana22) e
estabelece limites temporais (trabalhadores contemporâneos com diferença
de tempo de serviço para o mesmo empregador de no máximo 4 anos e dife-
rença de tempo na função de no máximo 2 anos).
Um aspecto benéfico trazido por esta norma é a previsão de aplicação
de multa caso reste comprovado que a diferença salarial se deu em função de
discriminação racial ou sexual, conforme previsão do §6º do art. 461, no en-
tanto, a norma estabelece limite indenizatório no valor de 50% (cinquenta por
cento) do teto máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência So-
cial, o que é um valor pouco expressivo (atualmente equivale a menos de três
mil reais) e que não representa potencial inibitório da prática discriminatória.
Sob o prisma do Direito Coletivo do Trabalho, a Reforma Trabalhista
também enfraquece os sindicatos com o fim da contribuição sindical com-

21
PELATIERI, Patrícia [et. al]. As desigualdades entre trabalhadores terceirizados e diretamente contratados: análise
a partir dos resultados de negociações coletivas de categorias selecionadas. In: CAMPOS, André Gambier (org).
Terceirização do trabalho no Brasil: novas e distintas perspectivas para o debate. Brasília: Ipea, 2018, pp. 33-48.
22
DELGADO, Mauricio Godinho; DELGADO, Gabriela Neves. A reforma trabalhista no Brasil: com os comentá-
rios à Lei n. 13.467/2017. São Paulo: LTr, 2017, p. 172.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

pulsória, sem qualquer período de adaptação, na forma do art. 545, CLT, re-
duzindo drasticamente a arrecadação dessas instituições protetivas da classe
trabalhadora, que em 2018 apresentaram queda de cerca de 90% no mês de
recolhimento da contribuição sindical (abril) de 2018 se comparado com o
mesmo mês do ano anterior, conforme Nota Técnica do Departamento Inter-
sindical de Estatística e Estudos Sócio Econômicos23.
É válido lembrar que a força dos trabalhadores está em sua organização
coletiva através do sindicato, que é a instituição com legitimidade para nego-
ciar cláusulas específicas para a categoria – por meio de contratos ou acordos
coletivos –, configurando um espaço de disputa em que os trabalhadores e tra-
balhadoras negros poderiam levar suas reivindicações antidiscriminatórias. Po-
rém, com recursos reduzidos torna-se cada vez mais difícil a negociação, como
fica evidenciado pela queda significativa de cerca de 25% se comparadas com
anos anteriores24. Ao mesmo tempo em que enfraquece a entidade sindical por
redução de seus recursos financeiros, a reforma aumenta seu poder de negocia-
ção ao estabelecer que a negociação coletiva prevalece sobre a previsão legal
em uma série de hipóteses elencadas no novo art. 611-A, CLT.
2. Conclusão
Após breve análise de alguns dispositivos de Direito Material, Processual
e Coletivo do Trabalho incluídos pela Reforma Trabalhista correlacionados com
dados sobre a desigualdade racial no Brasil, é possível perceber o potencial lesi-
vo destas normas para a população negra sob os diversos aspectos da legislação
laboral, tendo em vista principalmente a desigualdade salarial e ocupacional que
atinge os trabalhadores e trabalhadoras negras no mercado de trabalho. A partir
do Direito Processual do Trabalho os possíveis impactos estão representados pela
limitação ao acesso à justiça das camadas mais pobres devido à elevação os custos
do processo do trabalho sem isentar os beneficiários da gratuidade de justiça.
No Direito Material do Trabalho são ampliadas as exigências para
verificação da identidade de funções e consequente equiparação salarial; os
valores de indenização para danos morais (agora chamados de “extrapatri-
moniais”) são limitados com base no salário recebido pelo(a) empregado(a)
ofendido; é criada uma nova modalidade contratual extremamente flexível e
sem garantia sequer de pagamento do salário mínimo mensal e é ampliada a
possibilidade de terceirização da atividade-fim das empresas.
23
DIEESE. Nota Técnica: Subsídios para o debate sobre a questão do Financiamento Sindical. São Paulo, nº 200,
dez/2018, p. 5. Disponível em: https://www.dieese.org.br/notatecnica/2018/notaTec200financiamentoSindical.pdf.
Acesso em: 18 set. 2019
24
Na mesma obra, p. 7-8.

299
Organizadora : Edelamare Melo

No Direito Coletivo do Trabalho a Reforma Trabalhista proporciona o


enfraquecimento das entidades sindicais por redução de sua fonte de custeio, o
que impacta diretamente nas condições de negociação coletiva. De outro lado, a
Reforma também amplia a responsabilidade dos sindicatos enfraquecidos quanto
a negociação coletiva em razão de sua capacidade de afastar disposições legais.
Logo, um espaço coletivo que pode promover pautas antidiscriminatórias e alte-
rar a realidade social de uma categoria vem sendo cada vez mais minado.
Diante do exposto, com base no referencial teórico adotado sobre a re-
produção e perpetuação da discriminação racial no Brasil de modo sistêmico
e estrutural, o presente estudo alerta para o potencial lesivo das normas da Re-
forma Trabalhista sob a ótica das desigualdades raciais, visto que, apesar das
mudanças efetuadas na legislação laboral, a realidade social que fundamenta
os estudos das teorias da discriminação pouco mudou. Deste modo, tais mu-
danças podem gerar impacto desproporcional para a população negra gera a
consequente configuração de ato de discriminação indireta da parte do Esta-
do, uma vez que não considera as disparidades existentes em sua população
que afetam o mercado de trabalho e sujeitam uma aplicação diferenciada das
normas trabalhistas. Assim, os dispositivos legais aqui analisados poderão ser
objeto de estudos futuros para investigação empírica sobre a concretização ou
não do efeito discriminatório sugerido pela teoria.
Considerando que os preceitos da Constituição da República estabelecem
o combate ao racismo e a promoção de uma sociedade igualitária como princípios
que regem nacional e internacional a atuação do Brasil e que a Convenção 111 da
OIT proíbe os efeitos discriminatórios, é preciso que as legislações infraconsti-
tucionais deixem de ser abstratamente pensadas como universais e passem a ser
pensadas e interpretadas a partir da realidade social, que afeta pessoas concretas
de maneiras diversas, sob pena de perpetuação das desigualdades sociais.
Referências bibliográficas
Almeida, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

Brasil. Projeto de Lei nº 6787, de 2016 (da Câmara dos Deputados), PL 6787/2016. Altera o
Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 - Consolidação das Leis do Trabalho, e a Lei nº
6.019, de 3 de janeiro de 1974, para dispor sobre eleições de representantes dos trabalhadores
no local de trabalho e sobre trabalho temporário, e dá outras providências. Brasília: Câmara
dos Deputados [2016]. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichade-
tramitacao?idProposicao=2122076. Acesso em: 17 set. 2019.

Brasil. Decreto-Lei nº 5.452, de 01 de maio de 1943, Aprova a Consolidação das Leis do


Trabalho.

300
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Brasil. Decreto nº 62.150, de 19 de janeiro de 1968. Promulga a Convenção nº 111 da OIT


sôbre discriminação em matéria de emprêgo e profissão. Brasília, DF: Presidência da Repú-
blica

Campanha com profissionais de RH retrata racismo institucional. O Estado de São Paulo,


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301
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

PEDAGOgIAS CIVILIZATÓRIAS DE TERREIROS:


A AFROCENTRALIDADE COMO PROJETO POLÍTICO
CONTRA O RACISMO RELIGIOSO 

 Luís Cláudio de Oliveira

Introdução
Nesta comunicação pretendo contribuir com o debate sobre pedagogia
para a garantia de direitos, iluminando-o com algumas considerações extra-
ídas do meu livro O tradição dos Orixás: valores civilizatórios afrocentra-
dos, escrito conjuntamente com a antropóloga Edlaine de Campos Gomes. 
No centro desta conversa estão as tensões existentes na arena de interes-
ses da fé religiosa de integrantes do campo evangélico e do campo afro-bra-
sileiro, evidenciadas tanto na imprensa corporativa como nas redes sociais,
e a pedagogia de perspectiva afrocêntrica como instrumento de salvaguarda
do patrimônio material e imaterial representado nos terreiros de candomblé.
Creio ser pertinente esclarecer que o título do livro releva o título do
Projeto. À época, a visão do grupo que o desenvolveu era influenciada pela
concepção que atribuía o candomblé à nação ketu /Nagô cuja língua matriz é
o yorubá e na qual se cultuam os orixás, dado que no Rio de Janeiro era esse o
grupo predominante. Posteriormente o grupo faria autocrítica, reconhecendo a
coexistência da nação Angola/Congo, com línguas de matriz banto e os cultos a
inquices, assim como a nação Jeje/Fon tem como língua o ewe e cultua voduns.
Igualmente, esclareço que vejo o candomblé como um sistema cosmo-
gônico forjado no plano de uma “dialogia” – termo que aprendi com o pro-
fessor Muniz Sodré –, que articula conhecimentos de diversas religiosidades
africanas trazidas ao Brasil no curso da diáspora negra. A literatura em geral
relaciona três grupos étnicos aportados no litoral nordeste e sudeste do nosso
país cujas vivências na tradição africana, ainda que incompleta por se trata-
rem de jovens escravizados, deram origem a esse sistema. Os educadores
Denise Botelho e Wanderson Flor do Nascimento precisam que
Os bantos (vindos da região centro-sul do continente, sobretudo
dos atuais Congo, Angola e Moçambique), os Iorubás (vindos
dos atuais Nigéria, Benin e Togo) e os Fonewés (conhecidos
como Jêjes, vindos dos atuais Benin e Togo). Cada um desses

303
Organizadora : Edelamare Melo

grupos foi formado por diversos povos com culturas, divindades


e costumes diferentes. Aqui no Brasil, esses povos se articulam
entre si e fundam novos cultos onde as divindades que eram cul-
tuadas separadamente no continente africano vão ser reunidas
nas religiões aqui criadas com as heranças africanas. Nasceram,
nesse processo, diversos cultos que em termos de classificação
chamaremos de candomblés. Esses candomblés se organizaram
em torno dos três grupos, dando origens aos cultos iorubás (can-
domblés Ketu, Ijexa, Efon, Nagô etc.), fons (candomblés Jeje
Mahin e Jeje Mina) e bantos (candomblés Angola/Congo). (BO-
TELHO; NASCIMENTO, 2010, p.76).

Vale a pena ainda situar que esse sistema pressupõe a existência de


uma divindade central criadora. Os candomblés bantos a chamam de Nzam-
bi, os iorubas de Oludumare, e os fons de Mawu. As demais divindades exer-
cem um papel auxiliar na perpetuação da humanidade e de toda a existência.
Traficantes de Jesus
O primeiro ponto a destacar diz respeito à própria relevância social e
política do tema, pois se trata de refletir sobre situações em que tais ten-
sões no Brasil atual – tensões que mantem correspondência com a sociedade
brasileira no passado – têm levado a ações extremadas por parte de indivíduos
ou grupos que se mostram dispostos a tirar vidas em nome da fé. Refiro-me
aos numerosos casos denunciados e relatados pelo Brasil afora em que delin-
quentes armados invadem terreiros e obrigam os integrantes desses templos
a destruírem o seu patrimônio material, principalmente imagens e alguidares,
ou os expulsam e proíbem o seu retorno.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Conforme publicado em 16 de janeiro de 2019 pelo jornal O Globo,


os dados do Disque 100, canal do Ministério da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos que concentra denúncias de discriminação e violação de
direitos, indicam que foram feitas 213 notificações de “intolerância religiosa”
a pessoas ou a espaços litúrgicos de matrizes africanas, de janeiro a novembro
de 2018. A reportagem mostra que o número é 47% maior do que o registrado
em todo o ano de 2017, quando foram recebidas 145 denúncias. Se em 2014
elas correspondiam a 15% do total de denúncias, ao final de 2018 representa-
ram 59% do número total de reclamações. 
É preciso sublinhar que hoje, diferentemente das incursões punitivas
do Estado que interditavam os Terreiros e reprimiam os cultos nas primeiras
décadas da República, o que se vê é a proliferação de ações organizadas em
paralelo às forças oficiais de repressão e cuja motivação tem sido recorrente-
mente atribuída à “intolerância religiosa”.
Se nos três últimos anos os ataques contra os seguidores dessas reli-
giões aumentaram, no ano de 2019 um novo cenário passou a fazer parte do
noticiário. Floresceu, em telejornais, a exibição de imagens dessas ações
violentas com a utilização de armas de fogo por parte de traficantes que se
dizem convertidos a denominações do campo evangélico. Estes tornaram-se
conhecidos como “traficantes de Jesus”.
A imprensa tem divulgado que a Polícia Civil e o Ministério Público
Federal se articulam na repressão aos ataques dessas quadrilhas e investi-
gam os grupos religiosos que atuam nas prisões com autorização do Estado.
Recentemente, uma ação desencadeada pela Iyalorixa Palmira de Iansa, do
Ile Omo Oya Legi, em Mesquita, Baixada Fluminense criou um programa
de capacitação para o exercício de capelania no sistema prisional do Rio de
Janeiro. A iniciativa visa intervir diretamente onde se supõe estar o núcleo de
conversão dos aprisionados, que uma vez em liberdade, amealhando insuces-
sos nas tentativas de reintegração social, voltam-se contra os terreiros para, na
sua interpretação, subverter a ordem do incomensurável mal ali representado.
A arena dos meios eletrônicos de comunicação
O segundo ponto, então, de destaque é como veículos de comunicação
têm se posicionado acerca dessas práticas de violência. 
Restringindo-me às duas principais emissoras de televisão que dispu-
tam o mercado da comunicação de massa no país, a Tv Globo e a Tv Record,
suponho que ambas embaçam a questão central da garantia do direito à alteri-
dade.  Uma, desloca a unidade de análise das agressões do que pode ser inter-

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Organizadora : Edelamare Melo

pretado como racismo religioso para o que se tem chamado de “intolerância


religiosa”. A outra, isola a natureza racista dessas agressões, ora atribuindo
aos traficantes por si mesmos o falseamento das pregações do evangelho, ora
promovendo o silêncio sobre o assunto.   
A Tv Record mantém a sua programação nos moldes do que parece
reputar como o seu principal expectador: o público evangélico.  Ignorando
parcialmente nos telejornais as denúncias de ataques a Terreiros, e ignoran-
do totalmente as imagens desses ataques, procura neutralizar possíveis rea-
ções sobretudo por meio dos conhecidos programas de louvor. 
A Tv Globo, ao contrário da principal concorrente, noticia em foco,
mas sempre com referência à “intolerância religiosa”, consolidando assim
essa unidade de discurso. O termo passa a ser correntemente reproduzido
pelos seus telespectadores e assimilado pelo conjunto da sociedade, incluin-
do setores expressivos do movimento negro e suas lideranças, assim como
adeptos dos cultos afro.  E mais. No âmbito do Rio de Janeiro, a região da
Baixada Fluminense é a que tem frequentado mais constantemente os noticiá-
rios como principal arena de manifestação do cerceamento do direito ao livre
exercício da fé religiosa. Transparece-se para os telespectadores que esses são
episódios pontuais e que a Baixada e São Gonçalo, na Região Metropolitana
são praticamente os únicos lugares do Rio de Janeiro onde eles ocorrem. 
Mobilização e resistência
O terceiro ponto é como os adeptos dos cultos afro vêm se mobilizando
e resistindo à violação desse direito desde as duas últimas décadas do século
passado, portanto desde a década do centenário da abolição da escravidão. 
Ressalto a década de 1980 e a região da Baixada Fluminense e São Gonça-
lo na região Metropolitana como recorte para esta intervenção. Foi a partir
desse período e lugar que se desenvolveu uma experiência marcante para a
história das lutas contra o racismo no Brasil. 
Para o livro enunciado acima foram realizadas 17 entrevistas entre 2010
e 2016, totalizando aproximadamente 490 páginas transcritas e 10 horas de
gravação em vídeo. Esse material permitiu a criação de um documentário
com o mesmo título. Os autores procuraram mais registrar do que analisar o
percurso do projeto Tradição dos Orixás e os seus desdobramentos ou inter-
ferências no pensamento do movimento negro e de suas lideranças do Rio de
Janeiro e posteriormente no Brasil.
A investigação realizada se deu a partir das memórias daqueles que
foram os seus interlocutores à época, especialmente o idealizador do projeto,

306
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

o baiano Jayro Pereira de Jesus, e igualmente de integrantes de comunidades


de Terreiros, entre os quais os próprios militantes do movimento negro que,
naquele contexto, se iniciaram no Candomblé.
Um primeiro aspecto a ser aqui ressaltado para referir a esse contexto
de época é o acompanhamento sistemático da imprensa escrita da movimen-
tação ruidosa que aquele grupo produzia em cidades da região. Jornalistas
como Tim Lopes, repórter investigativo do Jornal do Brasil, Francisco Alves
pela Revista Isto É e Carlos Nobre de O Dia demostraram perceber a inova-
ção de um ativismo negro que falava “de dentro” dos terreiros e não mais tão
somente sobre os terreiros. Ao que se sabe, até os anos 1980 o movimento
negro não havia incorporado em sua narrativa de afirmação do negro como
sujeito de uma história de resistência ao ódio racial, a defesa do espaço do
terreiro como guardião atávico da tradição africana.
Antes, porém, de seguir com as ponderações acerca da aliança entre
movimento negro e terreiros, aqui é importante sublinhar, brevemente, como
os evangélicos chegaram antecipadamente a essas comunidades e expuseram
a sua visão sobre os cultos e demais procedimentos litúrgicos afro-brasileiros.
Televangelismo e mensagens de fé
Desde o final dos anos 1970 pastores evangélicos que faziam sucesso com a
veiculação de programas religiosos pelos meios de comunicação social eletrônicos
(TV e rádio) nos EUA comercializaram e passaram a exportar os seus programas para
emissoras brasileiras e outras da América do Sul. O teólogo e sociólogo norte-ameri-
cano Hugo Assmann, no livro A Igreja Eletrônica e seu impacto na América Latina,
publicado pela Editora Vozes em 1986, revela que os pastores Rex Humbard, Jimmy
Sweaggart e Pat Robertson assinaram contratos com a TV Tupi, o SBT, a Rede Record
e a Rede Bandeirantes. A partir de então, tem início uma nova forma no Brasil de
“levar a palavra”, ou seja, divulgar as escrituras sagradas e converter fiéis. A venda de
publicações de autoria desses pastores e a realização de concentrações “evangelísti-
cas” em estádios de futebol se tornariam instrumentos complementares de um projeto
político-pedagógico eficiente para o convencimento e a conversão de grandes massas.
A partir de então, líderes de igrejas evangélicas no Brasil passam a criar
a sua versão do novo modelo de divulgação de mensagens de fé. Inaugura-
vam-se assim os programas, inicialmente radiofônicos em frequência AM,
especialmente preparados para o contato dos líderes de igrejas com os fiéis.
No Rio de Janeiro, a Rádio Copacabana (desde os anos de 1950), Rádio Boas
Novas e Rádio Relógio foram as primeiras a se tornarem integralmente reli-
giosas, dedicando-se a sua programação basicamente às curas e ao exorcismo.

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Organizadora : Edelamare Melo

Na segunda metade dos anos 1970, no Rio de Janeiro, passam a surgir


e a proliferar igrejas de diferentes denominações, sobretudo nos bairros mais
distantes da zona Oeste, subúrbios e Baixada Fluminense. A orientação funda-
mentalista da interpretação bíblica seria consolidada como o centro do televan-
gelismo brasileiro, e o tripé salvação-milagre-coleta de fundos se tornaria a base
do que a partir dos anos 1990 sereia referido como teologia da prosperidade.
Do ponto de vista do consumo de bens e serviços básicos, a década de 1980
é reconhecidamente um período de grandes dificuldades para as famílias de tra-
balhadores no Brasil. Sabe-se que a Tv, presente na maior parte dos domicílios,
era muitas vezes a única fonte de entretenimento da maioria da população empo-
brecida. Nessa situação, programas de variedades com apresentações musicais,
entrevistas e pregações, como o “Reencontro” do pastor batista Nilson Fanini,
veiculado pela TV Educativa do Rio de Janeiro, retransmitido em todo o país e
com versão radiofônica provavelmente conferiam um alento para os telespectado-
res. Isto sobretudo com a súplica à “salvação em Cristo” alicerçada na narrativa
fundamentalista e individualista que a normatiza. Foi também por meio da Tv
que se projetaram outros líderes como R R Soares, e Edir Macedo, que na década
seguinte contribuiriam para o despontar da busca de um novo adepto: as propos-
tas de cura e de prosperidade passariam incorporar jovens de classe média.
A partir dos anos 1990 veio a expansão do campo neopentecostal no Brasil,
inclusive com capilaridade internacional, que pode ser medida pela rápida aqui-
sição de rádios, jornais e canais e redes de TV, com a massificação de programas
nos canais laicos, e a crescente presença nos espaços públicos, tanto os destinados
ao lazer à cultura (praças, cinemas, teatros, estádios de futebol etc) como aqueles
de arena do exercício do Poder Público (criação de uma “bancada evangélica” no
Congresso Nacional e ampliação do número de deputados e vereadores nas unida-
des federativas. De acordo com os dados disponíveis no IBGE (2010)1, os evangé-
licos somam 42,3 milhões de fiéis, ou 22,2% da população brasileira. Percebe-se
claramente que todo esse investimento germinou resultados muito satisfatórios.
O pentecostalismo nasceu em fins do século XIX nos EUA, expandin-
do-se para outros continentes, como já citei acima, influenciando, no Brasil,
a criação da pioneira Assembleia de Deus. O movimento neopentecostal se
inicia no Brasil nos anos 1970, período de criação da também pioneira Igreja
Universal do Reino de Deus2, precedente à Igreja Internacional da Graça,
Igreja Mundial do Poder de Deus e outras.

1
Cf. IBGE, 2010. Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/apps/atlas/pdf/Pag_203_Religi%C3%A3o_Evang_miss%-
C3%A3o_Evang_pentecostal_Evang_nao%20determinada_Diversidade%20cultural.pdf Acesso em 5 out 2019.
2
Lembro-me perfeitamente de ter avistado várias vezes o líder da IURD, Edir Macedo, em trajes sempre muito modestos,
circulando na primeira sede da Igreja, na rua da Abolição, bairro de mesmo nome, um subúrbio da capital do Rio de Janeiro.

308
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Basicamente pode-se dizer, acompanhando a pesquisa de Gomes (2011)


retratada no livro A era das catedrais: a autenticidade em exibição, que as
diferenças mais perceptíveis entre um e outro escopo estaria na ênfase dada
ao culto. A ênfase na “palavra de Deus”, com dedicação ao estudo e ensino,
na flexibilidade da pregação, na exploração dos dons espirituais dos fiéis e
na liberdade do espírito santo caberia às pentecostais tradicionais, enquanto
que as neopentecostais enfatizariam o milagre, a teologia da prosperidade e
focariam, mais do que as tradicionais, na arrecadação.
Pedagogia e afrocentralidade
Voltando à experiência do movimento negro junto aos terreiros nos anos
1980/90, de acordo com os militantes que se organizaram em torno do projeto
Tradição dos Orixás, havia àquela altura vários episódios conhecidos de pes-
soas que deixavam a sua religião herdada e se convertiam para o campo evan-
gélico, tornando-se seus novos fiéis. Esses acontecimentos, no entanto, não
foram os mais significativos para a decisão do grupo de estabelecer contatos
mais amiúdes com lideranças religiosas, nos terreiros. A principal motivação
foi convencê-las de que era necessário denunciar os ataques do fundamentalis-
mo neopentecostal e salvaguardar os terreiros como patrimônio afro-brasileiro.
Realizado o prognóstico oracular pela Iyalorixa Meninazinha do Ile
Omolu Oxun, localizado em São João de Meriti, para que o Tradição dos
Orixas progredisse, o grupo passou a visitar e mapear terreiros na Baixada
Fluminense. Alguns desses terreiros foram pouco a pouco se tornando pontos
de referência para reuniões do grupo de militantes. Nessas reuniões planeja-
vam-se ações de salvaguarda, que incluíam desde denúncias a órgãos do Po-
der Público, por meio do encaminhamento de requerimentos e de audiências
realizadas com representantes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciá-
rio, até o “trabalho de conscientização”.
Fruto inicial desse “trabalho de conscientização” foi a criação da Comis-
são Executiva dos Encontros Regionais da Tradição dos Orixas, simplificada-
mente denominada de “A Comissão”. Esta tinha como incumbência principal
a definição das diretrizes a serem seguidas para a realização dos 10 Encontros
Regionais, organizados em terreiros, a começar pelo Ilê de Omolu e Oxum, e
o I Encontro da Tradição dos Orixás, realizado na Universidade Federal Flu-
minense no ano do Centenário da Abolição. Nos três dias deste Encontro cir-
cularam pouco mais de 2.000 inscritos de diferentes unidades da federação,
contando com a presença de reconhecidas lideranças de outras esferas das lutas
sociais a propósito do sindicalista e ambientalista Chico Mendes.

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Organizadora : Edelamare Melo

É importante sobrelevar que as reuniões nos terreiros, e também os Encon-


tros, representaram um dado novo, para o qual chamo a atenção, no que refere
à criação de um ambiente de aprendizado tanto do movimento negro como das
comunidades dos terreiros. Os dois segmentos foram aos poucos gerando uma
interrelação nas esferas do político e do mítico. A cada reunião ou Encontro ia se
ampliando essa interrelação, que acabava por estabelecer desafios para o alcance
do que se tinha como objetivo comum. Militantes do movimento negro se viam
impelidos a rever o paradigma da luta política que enxergava os Terreiros como
patrimônio, mas não como espaços de aprendizado para o enfrentamento do racis-
mo; iniciados na tradição se viam na condição não mais tão somente de zeladores
de Axe, mas também no papel de autoridades civilizatórias.
Nessa aliança, a militância atraída pelo trabalho envolvente do Tradição dos
Orixás trouxe para o novo ambiente de “conscientização política” a literatura que
lhe servia de instrumento de análise, planejamento, organização e execução de po-
líticas. Neste particular, havia um embate teórico considerável entre os intelectuais
que se ocupavam de estudar teorias revolucionárias, do leito marxista, e o grupo
percursor da ação nos terreiros, já mais centrado na literatura que permitia a refle-
xão mais aprofundada dos fundamentos ali praticados. Lia-se autores como Marco
Aurélio Luz, Juana Elbein dos Santos, Raul Lodi, Roger Bastide entre outros.
O saldo desse embate teórico teve como resultado o aquecimento do debate
intelectual, abarcando indivíduos que ainda não conheciam esses entremeios, e,
por conseguinte, a melhor fluidez no pensamento político e na formulação de
narrativas para a valorização dos terreiros como instituição de direitos. Assim, é
provável que o Projeto Tradição dos Orixás tenha cumprido as suas finalidades,
alterando significativamente as percepções internas dos/as adeptos/as, no sentido
da sua autoestima, bem como as percepções externas, no sentido de demonstrar a
importância social e política dos terreiros para a sociedade brasileira.
Últimas considerações
Pode-se afirmar que com o Tradição dos Orixas a tradição afrocêntrica
ganhou visibilidade em uma sociedade onde a tradição eurocêntrica é preva-
lecente na memória oficial. Potencializou o papel cultural dos cultos afros,
exortando fiéis a se explicitarem na cena pública e assumir o combate ao
racismo religioso, ou ao que se convencionou mais recentemente qualificar
como “intolerância religiosa”.
Em encontro realizado no ano de 2016 pelos militantes remanescentes
do Tradição dos Orixás nesses mais de 30 anos, algo pesou na avaliação da
experiência recontada por meio de suas memórias.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Ensina Paulo Freire que


quando se descobre uma certa e possível especificidade do político,
percebe-se também que essa especificidade não foi suficiente para
proibir a presença do pedagógico nela. Quando se descobre por sua
vez a especificidade do pedagógico, nota-se que não lhe é possível
proibir a entrada do político (FREIRE; GADOTTI; GUIMARÃES,
1995 p.25).

Então, o que pesou na avaliação do grupo é que é necessário um ajuste


fundamental no que se desdobrou daquela experiência: o construto político da
ação não foi o bastante para o avanço pedagógico que se supunha haver alcança-
do. De fato, a aliança tramada naquele tempo criou raízes que parecem imprová-
veis retroceder. Militantes do movimento negro se tornaram autoridades civiliza-
tórias nos terreiros, e nestes se viu soerguerem novas lideranças políticas. E de
ambos os lados saíram novos intelectuais creditados na comunidade acadêmica.
Entretanto, no olhar desse grupo, os Terreiros não se constituíram em efetivos e
sistemáticos lócus pedagógicos de educação afrocentrada.
Frantz Fanon, psiquiatra martiniquense, indica no seu clássico Os Con-
denados da Terra que o esgotamento da ideologia do racismo exige uma rea-
ção atualizada com a evolução dos meios utilizados para a sua perpetuação.
Não basta, portanto, ter consciência de que se é vitimado pelo racismo e de
que é necessário combater os racistas. Mais que a iniciativa individual ou
coletiva de denunciar e exigir ser tolerado/a ou aceito/a, o grupo aqui referido
acredita que é preciso descontextualizar o racismo para encontrar o que de
fato o torna factível na sua duração.
A partir de 2003, com a configuração de um novo caráter do Estado
republicano no Brasil, mais afeito aos interesses dos setores social e cultural-
mente marginalizados, o universo cultural religioso de matriz africana pas-
sou a ter reconhecimento, tornando se objeto de políticas públicas efetivadas
pelas instituições do Estado nacional. Até 2014 o Estado pautou a equidade
étnico-racial em nossa sociedade na observância das diferentes contribuições
civilizatórias que estruturam as relações entre diferentes.
Todavia, o que se assisti exatamente no momento que vivemos é o re-
crudescimento dos assassinatos que vitimizam sobretudo mulheres pretas e
jovens pretas e pretos, com a autorização indireta ou esquivas do Estado. E
o que parece ser a asseveração do sucesso questionável do “trabalho de cons-
cientização” nos e com os terreiros é o fato de que parte significativa do “povo
do santo” desfilou e ainda desfila apoios nas redes sociais ao atual projeto de
poder governamental, que degola as conquistas até há pouco comemoradas.
311
Organizadora : Edelamare Melo

Talvez os escritos de Fanon amparem as nossas reflexões sobre esse efeito con-
trário não esperado pelo Tradição dos Orixás. Quem sabe a inoculação da subalter-
nidade e do servilismo continue a ser a arma de guerra de dominação do colonizador,
superior à espada e ao canhão, hábil em extrair do colonizado a sua dignidade humana,
o seu sentimento de pertencer a uma história própria, a uma cultura própria, a uma
tradição própria, enfim, a uma matriz civilizatória estruturada em valores próprios.
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312
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

DEPOIMENTO

Adna dos Santos (Mãe Bahiana)

Adna dos Santos, mais conhecida como Mãe Baiana, dirige o


Terreiro de Candomblé Ylê Axé Oyá Bagan, localizado no Núcleo
Rural Tamanduá, na Serrinha do Paranoá. O terreiro ficou
conhecido por ter sido alvo de um incêndio criminoso em 2015,
uma semana depois do Dia do Consciência Negra. Felizmente,
o espaço foi reinaugurado pouco menos de um ano depois.
Radicada em Brasília desde 1982, Mãe Baiana luta em prol da
liberdade religiosa e da emancipação do povo afro-brasileiro.

O Racismo está na estrutura da sociedade. O povo negro ainda é marcado


pelos efeitos do período colonial que ainda hoje impede que o povo negro tenha
uma vida digna sem ter que resistir a todo tempo. Quando falamos dos efeitos do
período colonial na vida da mulher negra, a marca é ainda mais evidente.
Precisamos usar todos os lugares de fala que conquistamos para refletir sobre
onde as mulheres negras estiveram em toda a sua construção. As mulheres negras
ao longo da história, exerceram um duro papel enquanto trabalhadoras intermiten-
tes, que labutaram sob o chicote de seus senhores, sendo estupradas, criando filhos
que não eram seus e vendo os seus próprios serem vendidos como mercadorias.
Para sobreviver a essa realidade violenta exigiu que fosse nutrida uma
Força de sobrevivência, resistência que é transmitida por gerações, carregan-
do um legado duro de perseverança, autossuficiência tenacidade e resistência.
Diante da opressão histórica sofrida pelas mulheres, as mulheres negras
sofrem uma opressão ainda maior devido a sua cor e a sua religião. Dentro
do candomblé, como em outras religiões, as mulheres também historicamente
lutam por uma participação mais efetiva.
Como tantas outras expressões negras, as religiões afro-brasileiras são
alvo de discriminação e de forte preconceito. Diariamente são noticiados ca-
sos de intolerância religiosa que resultam em incêndios de casas, invasões e
destruições de espaços sagrados.
O candomblé resiste, principalmente nas periferias brasileiras, onde a
maioria da população é negra e mestiça. Ele leva consigo uma especificida-
de um tanto curiosa, são as mulheres, negras, que lideram os Ilês, são elas
as referências religiosas, e por vezes políticas de suas comunidades. Essas
315
Organizadora : Edelamare Melo

Mulheres corajosas enfrentam o racismo religioso, e lidam com tantos ou-


tros desafios impostos à mulher negra de terreiro. As responsabilidades com
o Ilê, com os filhos e com a militância, o momento para cuidar dela mesma
não existe, apenas se sobrar tempo, demonstram uma generosidade sem igual
porque dedicam seu tempo, seu amor à sua missão.
Foram as mulheres responsáveis pela formação das primeiras casas de
candomblé no Brasil. Ocupando até hoje na maioria dos ilês, o mais alto
posto na hierarquia do candomblé e foi dessa liberdade conquistada, e de
suas vivências nos espaços públicos que as mulheres negras exerceram de
liderança, por vezes nem experimentadas por homens.
As religiões afro-brasileiras se transformaram em espaços de resistên-
cia, preservação, empoderamento e libertação da mulher negra, por meio do
conhecimento, constituído e incorporado, valorizando o arcabouço de saberes
de cada uma delas, enquanto repertório para a formação da comunidade, res-
peitando os conhecimentos ancestrais.
No espaço dos terreiros as mulheres tem obtido forças para resistir a
esse sistema que em sua estrutura impera o Racismo de todas as formas.

316
Mãe Bahiana diante do Incêndio do seu Terreiro Ylê Axé Oyá Bagan, em Brasília, em
27.11.2015. O fogo começou por volta das 5h30 do dia 27.5.2015 e destruiu o barracão
da casa. Cinco pessoas dormiam na casa, mas ninguém ficou ferido. Depoimento de Mãe
Bahiana: “Eu levantei e o fogo já estava muito alto, tomando conta de tudo. Como estou
arrumando tudo, lá dentro tinha muita louça, esteiras, as roupas dos santos, mas não tinha
velas acesas porque eu coloquei em outro local”, disse ela.1

1
Notícia disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2015-11/terreiro-de-candomble-e-incen-
diado-no-paranoa
Organizadora : Edelamare Melo

318
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

UNIVERSALIZAÇÃO DA NORMA MORAL ATRAVÉS


DA REGRA JURÍDICA: a disciplina do racismo e
intolerância religiosa pelo direito

Maria Auxiliadora Minahim1

1. Diferença e inclusão numa sociedade universalista


Têm sido usuais há algumas décadas, declarações de respeito às dife-
renças existentes entre os grupos humanos e a conclamação para aceitação
dessa diversidade como recurso capaz de dar efetividade as direitos humanos
e garantir a paz. Ocorre que, inobstante os discursos e tentativas legais de
promover a inclusão de todos em uma sociedade pacífica e solidária, a discri-
minação e os crimes de ódio ainda assombram por sua insubsistência.
O foco desse trabalho reside na análise da efetividade da legislação
nacional e estrangeira na prevenção dos crimes resultantes de preconceito
de “raça, cor, etnia, religião e procedência nacional”, incluindo, hoje, a ho-
mofobia. Tem-se em vista a possibilidade de instalação do multiculturalismo
através da regra jurídica com o apoio da norma moral.
Entende-se que o racismo, a exemplo de outras práticas discriminatórias,
exercidas em razão de atributos externos, de costumes e de valores distintos des-
preza a unidade da espécie humana, que partilha os mesmos atributos e angústias
diante da finitude da vida. Podemos ser surpreendentemente diferentes, mas no
fundo de nós existe o mesmo equivalente moral que traduzimos como dignidade
humana, cuja concretização exige atenção constante. O reconhecimento da natu-
reza universal da espécie depende, sobretudo, da aceitação mútua e do desenvol-
vimento de relações simétricas entre as pessoas, independentemente da compre-
ensão do outro como ser diferente daquele que o percebe.
Os trabalhos de Lévinas e Paul Ricouer sobre a ética da alteridade podem ser
um caminho que permita a aproximação do outro sem destruir sua identidade, ou
seja, reconhecendo suas diferenças. É nessa senda da pluralidade que, como diz Ma-
ria do Céu Patrão Neves (2017, p.83), se pode preservar cada pessoa, complemen-
tando-se reciprocamente e, assim, superar a dicotomia sem suprimir a diversidade.
No dizer de Habermas (2004, p.78), as diferenças pessoais, assim como
o fato de cada pessoa ser singular e insubstituível, devem ser inclusivas, con-

1
Professora Titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da UFBa. Mestre e Doutora em Direito Penal.

319
Organizadora : Edelamare Melo

cretizando-se no respeito às situações e aos projetos individuais de vida de


todos os indivíduos. Essa atitude revela uma moral que “entrecruza individu-
ação a uma universalização”.
Afinal, pode-se indagar, retirando de cada um de nós a cor, a instrução,
a idade, a nacionalidade, a profissão, restará sempre um mesmo núcleo co-
mum à espécie frágil, que se realiza no outro e dele depende por sua inerente
vulnerabilidade.
O novo chamamento que se faz a cada um na construção de uma so-
ciedade plural e igualitária convoca ao exercício da alteridade no sentido de
estabelecer um compromisso com a reciprocidade e, como afirma Maria do
Céu (2017, p.84), com a primordialidade dos deveres em relação aos direitos
(afinal o outro antecede ao eu). Ademais, embora o estabelecimento de direi-
tos tenha promovido uma sociedade mais equitativa, a autora lembra que é
necessária a instauração de uma “proporcionalidade indireta entre deveres e
direito”, o que pode mitigar o individualismo da sociedade contemporânea.
A instalação da ética do outro, enfim, permitiria a concretização dos con-
teúdos que vêm sendo afirmados nas Declarações Universais e legislações
nacionais sobre os Direitos Humanos.
2. O racismo no mundo dos fenômenos
Precede, à análise sobre a função e eficiência das norma moral e da
norma jurídica, um exame sobre alguns dos termos que são objeto da lei, a
exemplo de raça e racismo e seu consequente discriminatório. Afinal, o que
se proíbe no mundo relacional?
O racismo é identificado como qualquer ação, prática ou crença moti-
vada pela ideologia que os humanos podem ser divididos em entidades bio-
lógicas distintas e separadas designadas raça. Essa ideologia sustenta que
há uma ligação causal entre características físicas e traços da personalidade,
intelecto, moralidade e outros predicados culturais e comportamentais. Algu-
mas raças seriam superiores às outras por suas características inatas.
2.1. Interesses e crenças que sustentam o racismo
Há um conjunto de ideias distintas que pretendem justificar o racismo.
Alguns afirmam que a divisão dos seres humanos em raças resulta de um pro-
cesso de conteúdo meramente político-social do qual se destaca o interesse
econômico na subjugação.
Autores (ÉTIENNE BALIBAR, 2005, p. 11) defendem que esse fe-
nômeno se revela através de práticas distintas, mas que, apesar das mani-

320
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

festações assumirem diversas formas (afirmar que uma determinada cultura


é inferior, que certos grupos são inassimiláveis aos modelos institucionais de
um estado ou que há muitos imigrantes de um determinado país ou região), há
um núcleo comum a todas elas. Tal discurso tende a segregar, estigmatizar,
ameaçar grupos humanos, engendrando a opressão, a hostilidade e descon-
fiança mútuas. Nem todo ódio, nem toda violência, evidentemente constitui
racismo. O termo se refere a fato que tem suas especificidades, não devendo
ser tomado como resultado de pura estipulação social, visto que é caracte-
rizado sempre por um paradigma de exclusão. Outros pesquisadores falam
de diversas formas de manifestação do fenômeno racismo cultural, racismo
diferencialista e até mesmo de racismo sem raça, a exemplo de Pierre-André
Taguieff (2010, Passim) para ressaltar que há graves discriminações cujo nú-
cleo não é biológico, mas que reside na diferença cultural.
Étienne Balibar (2005, p. 13), filósofo francês, afirma que tal ideologia
é um dado permanente cujo fortalecmento em certos períodos revela a inca-
pacidade da humanidade de superar estruturas arcaicas da mentalidade cole-
tiva. . Uma dessas formas de anacronia diz respeito ao medo da diferença e à
angústia diante do outro que, por dissimilaridade, negaria o próprio eu. Não
é incomum à convivência humana a dificuldade em aceitar a diversidade, o
diferente perante o igual, como bem situa Maria do Céu Patrão Neves
David Hume já afirmava que, embora não sejam as únicas, a semelhança e a con-
tiguidade são duas características que mais contribuem expressivamente para a empatia.
A preocupação com a forma que represente a similitude é tão conhecida que
está presente até mesmo na criação de robôs aos quais se pretende dotar de aparência
humana com o fim de facilitar a interação com as pessoas. Estudos realizados reve-
lam que o fenômeno do antropomorfismo faz com que os humanos atribuam qualida-
des de sua espécie a tais máquinas. A razão para que isso ocorra, segundo pesquisas,
decorre da geração de uma forma de empatia, envolvendo uma percepção imaginada.
Promover o sentimento contrário – extinguir o diferente -, também tem
sido utilizado pela humanidade como recurso para tornar mais fácil a destrui-
ção do inimigo, do indesejado. Dave Grossman (2009, Passim) assegura que
é muito mais fácil matar alguém, se esse alguém tem uma aparência distinta
da sua. Assim, se for possível convencer às tropas que o inimigo não é real-
mente humano, mas sim uma forma inferior de vida sua destruição tende a
ser facilitada. Os humanos, acrescenta, são essencialmente tribais e tendem a
temer e a desvalorizar aqueles que não são membros da mesma “tribo”.
Tal desvalorização desempenhou um papel importante na economia de
alguns países na medida em que às raças consideradas inferiores eram atribui-

321
Organizadora : Edelamare Melo

das funções menos nobres, como o trabalho extenuante na lavoura de cana e


de café no Brasil e nas plantatações de tabaco e algodão na América do Norte.
As funções ligadas ao poder político e econômico, porém, eram reservadas
para a raça dominante que gozava da proteção e garantias jurídicas.
James O. Horton (s/p, s/d) pondera, aliás que a própria vinda de Colombo
para a América era parte de uma aventura capitalista. Em verdade, lembra o autor,
o descobridor não veio para colonizar, mas sim para encontrar uma rota mais curta
e lucrativa para a extração de riquezas do novo continente. Da mesma forma, na
América espanhola, a exploração e os saques de ouro e prata tornaram a Espanha o
pais mais rico da Europa ao tempo em que se dizimavam tribos indígenas.
O racismo, segundo o mesmo autor, foi o núlceo forte da construção do
império das potências europeias no século dezoiito, com base numa ideia criada a
partir da exacerbação das diferenças entre os europeus, os indianos e os africanos.
Foi o racismo e a suposta inferioridade de alguns grupos que serviram
de núcleo ao pensamento do nacional-socialismo e às ações mais abjetas
que a humanidade testemunhou na modernidade. Muitas experiências feitas
em prisioneiros em campos de concentração – utilizadas hoje pela medicina
- são o resultado de ações dos nazis, a exemplo de agentes neurotóxicos, a
cloquina antipalúdica, assim como das pesquisas sobre hipotermia, hipóxia,
desidratação e diversas outras 2.
2.2. Sobre a expressão racismo e algumas manifestações históricas
O fenômeno que hoje se designa como racismo data de muitos anos, pre-
cedendo de há muito o surgimento da expressão racismo. De acordo ainda
com Balibar (op. Cit, s/p) a expressão deriva de raça, termo em si mesmo con-
troverso. Os primeiros usos feitos do termo datam dos anos trinta por autores
alemães que fugiram de perseguições nazistas e se comunicavam em inglês3.
Após a derrota dos alemães na Primeira Grande Guerra, o partido na-
zista – vitorioso em 1933 - passou a explorar a arraigada postura antissemita
no país e a desenvolver práticas sistemáticas de discriminação, perseguição e
homicídios dos judeus não só na Alemanha, (AUDREY SMEDLE s/d), mas
também nos territórios ocupados.
Restam, todavia incertezas sobre o conteúdo da expressão como bem se
revelou na Conferência em Durban na África do Sul sob os auspícios da Unesco

2
Es ético utilizar los descubrimientos científicos nazis para salvar vidas? Frank Swaine BBC Future Disponível:
https://www.bbc.com/mundo/vert-fut-49240265. Acesso em: 17 ago. 2019
3
De acordo com Robert Miles. London, Routledge, 1989, p. 158, em 1928, na obra Race and Civilization, Friedrich
Hertz ainda se valia da expressão ódio racial, mas, em 1933 Magnus Hirschfeld usou o termo racismo, distinguin-
do-o de xenofobia. 

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

em 2001 que tinha como objetivo definir uma plataforma de atuação contra os
preconceitos de raça. No entanto, algumas delegações discutiram a assimilação
do sionismo a uma ideologia racista, outros discutiram antissemitismo como uma
forma moderna de antissionismo e outras delegações, ainda, reivindicaram para
os negros as mesmas indenizações devidas ao judeus pela ação genocida dos na-
zistas. Procurou-se também incluir a discriminação de castas praticada na Índia
como manifestação de racismo. No entender acertado de Balibar (op. Cit, s/p),
outros fenômenos se intercambiam com a segregação por motivo de raça, a exem-
plo de nacionalismo, imperialismo e intolerância religiosa.
A dificuldade de estabelecimento de um sentido comum para o ter-
mo raça, revela que ele não passa, como querem muitos, de mera construção
social e politica e, portanto, não é assunto relacionado à biologia. (Brian
Duignan, 2019, s/p). Esta revelação tornou-se possível após os avanços pro-
porcionados pelo sequenciamento do genoma humano quando se constatou
que não há correlação entre a variação genômica humana, a ancestralidade
biogeográfica e a aparência física das pessoas.
As leis norte americanas são um perfeito exemplo dessa afirmação porque cada
estado define quem é a pessoa negra valendo-se de diferentes critérios: na Virginia
um afro descente deve ter um sexto de ancestralidade africana, na Flórida, um oitavo
e, no Alabama, basta que se tenha um ancestral africano. Brian Duignan, op. cit., s/p
Lévi-Strauss (1999. p. 98) a propósito da crença evolucionista, opinião
afim do racismo biológico, afirma que ela ocorre, apenas porque o Ocidente
vê a si mesmo como finalidade do desenvolvimento humano, e as demais cul-
turas são avaliadas tendo como parâmetro seus próprios valores.
Apesar de todas essas constatações, aquele que tem a aparência e o
ethos distinto do que tem o poder, tem sido excluído e humilhado a despeito
de todos os discursos sobre os direitos humanos. Há uma suposição de que
basta a existência de leis que estabeleçam a igualdade entre todos para a ins-
talação do universalismo da espécie. As normas jurídicas funcionam, de certa
forma, como um álibi de intenções, que a prática desconfigura, na medida em
que a discriminação e o preconceito predominam sobre as leis.
3. Direito e racismo
A Constituição de Independência da Índia dispôs sobre a abolição da
‘intocabilidade’ e sua incriminação e também sobre discriminações positi-
vas em favor das Scheduled Castes e das Scheduled Tribes (Scs & STs) que
constituíam cerca de 23% da população estratificada da Índia. O sistema foi
abolido legalmente em 1950, mas há resistência às tentativas de programas

323
Organizadora : Edelamare Melo

inclusivos do governo, como o da criação de cotas na universidade. (SWATI


MATHUR E SUBODH GHILDIYAL, 2018).
Nos Estados Unidos, o movimento em favor dos direitos civis mitigou
o problema da segregação racial, revogando, por exemplo, as leis que limi-
tavam o direito de voto das minorias. A despeito da Constituição e de outras
providências legais, todavia as crenças e comportamentos de muitos america-
nos permanecem racistas. As raças consideras inferiores são frequentemente
feitas de bodes expiatórios em investigações sobre autoria de crimes. Pode-se
afirmar que, a exemplo da Inglaterra, os Bancos de Dados Genéticos são, ba-
sicamente, constituídos de DNA de imigrantes e minorias.
Não bastaram os dados científicos nem declarações internacionais
como manifesto de intenções em favor da igualdade de todos. Muitos países
passaram a criminalizar as práticas discriminatórias em razão de diferenças.
Na Costa Rica, busca-se aprovar Projeto de Lei Marco para prevenir e
sancionar todas as formas de Discriminação, Racismo e Intolerância. O pro-
jeto introduz una série de reformas no Código Penal, tendentes a tipificar os
delitos de ódio quando se trata de homicídios ou lesões.
Em 1972, foram criados diversos tipos penais na França para punir prá-
ticas discriminatórias, como a recusa em alugar propriedade ou em contratar
por motivos de raça ou religião.
Não obstante, o país da igualdade, liberdade e fraternidade apresenta
alto índice de intolerância longitudinal. Há um expressivo índice de rejeição
a algumas etnias e religiões, com os seguintes números: 34 para os romenos
ou ciganos, contra 61, para os muçulmanos e 78 para os judeus4.
No Brasil, a Constituição de 1988 estabelece, no art. 5º, XLII que o ra-
cismo é crime inafiançável e imprescritível, o que revela a intensidade da res-
posta que o Estado reservou para a prática das ações que constituem racismo.
Em 5 de janeiro de 1989, foi aprovada a Lei Nº 7.716 que define os crimes
resultantes de preconceito de raça ou de cor5. A impressão de reprovação é
ainda maior quando se sabe que o Supremo Tribunal Federal equiparou aos
crimes previstos na Lei 7716/89 a injuria por conotação racial (artigo 140 §3º,
do Código Penal) tornando o crime imprescritível e inafiançável. Valeu-se o
Tribunal de interpretação já feita pelo STJ, que reconheceu não ser taxativo o
rol dos crimes previstos na Lei nº 7.716/1989.

4
Vale lembrar que o índice varia de 0 a 100. (CNCDH 2017, s/p) conforme Les Essentiels du Rapport sur la lut-
te contre le racisme 2017. Disponível em: Dihttps://www.cncdh.fr/sites/default/files/essentiels_du_rapport_racis-
me_2017_-pour_impression_ok_1.pdf Acesso 15 set, 2019.
5
Posteriormente, foram introduzidas alterações pelas Leis n nº 9.459 de 13 de maio de 1997 e 12.288 de 2010,
ampliando as hipóteses de incriminação.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Ainda assim, as estatísticas de cor ou raça produzidas pelo IBGE mos-


tram que, em nosso país, não há igualdade salarial entre os diversos grupos.
Os brancos têm os maiores salários, sendo que a concentração dos menores
salários (40%) ocorre entre as mulheres, os pretos e pardos e os jovens dos
grupos vulneráveis. Da mesma forma, ocorre, ainda, uma expressiva desi-
gualdade de acesso ao ensino superior. Quase a totalidade (98,8%) dos pre-
sos em flagrante em Salvador são negros e pobres, ressalta pesquisa (midia//
http.4p. com). Por sua vez, as agressões e destruições de imagens e símbolos
dos terreiros de candomblé desnudam um sentimento de ódio e ignorância
incompatível com os valores republicanos que se pretendem instalados.
Os dados são apresentados como uma contraposição a afirmações tão
fortes como a de Boaventura de Sousa Santos (2003, p. 56) quando afirma
que, “(...) temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferio-
riza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos desca-
racteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e
de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”.
Apesar de se saber que o racismo é cientificamente falso, moralmente
censurável, socialmente injusto e legalmente proibido, a discriminação per-
siste como desafio.
4. Função das leis
As leis não podem mudar as pessoas, mas têm um papel a cumprir na
transformação de práticas não desejadas. Elas têm uma função importante
na contra motivação da realização das condutas proibidas, revelando poder
educativo, na medida em que expressam censura a comportamentos tão re-
provados que chegam a ser previstos como crimes. É possível objetar que o
direito não foi concebido para fins didáticos, sobretudo o direito penal, o que
exacerbaria sua função simbólica. A consequência do excesso de simbolismo,
por sua vez, pode implicar na falta de confiança da sociedade no sistema jurí-
dico e, consequentemente, no seu enfraquecimento. Resultaria, dessa forma,
em algumas leis que são feitas para valer e outras que são promulgadas para
aplacar a expectativa de alguns grupos.
O importante trabalho de Marcelo Neves (1994, p.32) sobre constitucio-
nalização simbólica oferece elementos que permitem a identificação de normas
destituídas de eficácia e de efetividade quando correlacionadas com um ambiente
político-social. O cerne da legislação simbólica, todavia reside em sua finalidade
já que serve a “políticas de caráter não especificamente normativo-jurídico”, (....)
preponderando, sobre o jurídico, o caráter político-ideológico.

325
Organizadora : Edelamare Melo

No caso específico da legislação contra descriminação no Brasil – e


aparentemente em muitos outros países - a legislação álibi pretende dar a apa-
rência de solução adequada a problemas sociais graves. Promete ser a respos-
ta de um Estado atento a questões sociais relevantes, embora, como assevera
Marcelo Neves (1994, pp. 38-39), essa realidade não possa ser alterada pela
lei em razão de outras variáveis não normativas presentes no processo.
Não se ignora que as leis, especialmente as leis penais, estão vinculadas
de certa forma a efeitos simbólicos, porém deve-se estar alerto para o fato que
o fenômeno do direito simbólico, se revela por uma oposição entre realidade
e aparência, entre manifesto e latente, entre o que é verdadeiramente querido
e o que é aplicado: “«Simbólico» se associa com engano, tanto no sentido
transitivo como reflexivo” (HASSEMER, 1995, p. 28).
Ocorre que somos educados a partir de uma perspectiva racista e cons-
truímos instituições nas quais o preconceito está presente disfarçado em ra-
cionalismos, mas quase sempre mantido fora do alcance dos olhares ou do
conhecimento de outrem. Os órgãos de aplicação do direito, porém deixam
escapar, talvez inconscientemente, pelo uso de próprios instrumentos ofereci-
dos pelo direito, a indiferença diante do tratamento injusto dispensado àquele
cuja aparência, costumes ou hábitos fundamentais são distintos. Ausência e
não recebimento de denúncia, penas ínfimas e prescrição são recursos que
revelam as estruturas arcaicas a que se refere Étienne Balibar, (supra) não
superadas da mentalidade coletiva.
5. Considerações finais
Retomam-se aqui as considerações já feitas no início desse trabalho, e
à ideia de alteridade: ser o outro perante o igual que é distinto numa relação
simétrica.
O ideal da modernidade de emancipação do homem, sustentado pelos
valores da liberdade, igualdade e fraternidade não se concretizou. Os massa-
cres e extermínios, a crueldade e a exclusão, embora possam assumir formas
distintas, são um recurso constante do dominador. O individualismo exa-
cerbado é compreendido como forma de realização e de concretização da
autonomia, o que fortalece a solidão e uma trajetória melancólica. Há uma
fantasia de que cada um constitui um projeto livre de si mesmo, o que até
pode incluir a aceitação do diferente enquanto não haja molestamento, ou
seja, desde que “sua presença não seja intrusiva”. Dessa forma, se o outro se
mantiver afastado, contido em seu próprio gueto social e cultural, sem amea-
çar o sujeito hegemônico, é até possível ter o discurso da aceitação.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

O jogo de censura à discriminação torna mais difícil a realização do


direito que se constrói, que se torna cada vez mais enfraquecido e puramente
simbólico.
Acolhe-se, por fim, com Lévinas e Ricouer que a ética da alteridade
precede a qualquer esforço para a integração de todos em uma sociedade de
iguais e que só será alcançado quando se tornar realidade a compreensão de
que é na outra pessoa que o eu encontra seu verdadeiro sentido. Essa compre-
ensão parece condicionar a instalação da sociedade fraterna e plural que as
Leis e declarações demoram a conseguir.
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328
Foto do acervo do Terreiro Ylè Alábásé. Reprodução autorizada
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

O DIREITO PENAL DA IGUALDADE RACIAL, DA


LIBERDADE RELIGIOSA E DO PATRIMÔNIO IMATERIAL
DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS DE TERREIRO
E DE QUILOMBO. A LEI 7716, E SUAS ALTERAÇÕES.
PRECEDENTES E JURISPRUDÊNCIA DO STJ E DO STF1

Maria Auxiliadora Minahim2

Resumo
O trabalho trata da discriminação racial no Brasil e da evolução do tra-
tamento legislativo dado ao tema no Brasil, detendo-se na análise da Lei 7716
e das alterações que esta sofreu ao longo do tempo. Procura distinguir os tipos
penais que se aproximam e interpretar seu alcance. Propõe reflexão sobre a
extensão da legislação e sua correlação com o compromisso do estado brasi-
leiro na afirmação da igualdade material.
Palavras-chave: Ideais de Solidariedade, Discriminação Social, Direi-
to Penal, Lei 7716.
Ideais de fraternidade
Por detrás das obrigações jurídicas de respeito ao outro em sua dignida-
de, estão sem dúvida, os ideais de solidariedade. Os preconceitos que levam
alguns a negar um espaço de convivência qualificado a todos resultam muitas
vezes da recusa em aceitar as diferenças de etnia, crença ou ascendência que
são distintos dos padrões tidos como ideais naquela sociedade específica.
É importante convocar Maria do Céu Patrão Neves3 quando se trata de fa-
lar da coexistência entre os seres humanos, e o destaque que a autora dá à questão
da alteridade na relação entre as pessoas. Na linha do pensamento de Lévinas, a
filosofa portuguesa, adverte para a importância do outro, igual ou diferente, na
constituição de cada qual: nós nos fazemos, afirma, na relação com o outro.
Nesse sentido, nem haveria como se falar em uma distinção absoluta
entre o eu e o outro. Bom que se advirta que o conceito de outro não se refere
a um outro especifico, mas a todos os outros.

1
Apresentação feita no Simpósio Racismo e Intolerância Religiosa, Procuradoria do Trabalho, Brasília, agosto de 2018.
2
Professora Titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da UFBa. Mestre e Doutora em Direito Penal.
3
Alteridade e Direitos fundamentais: uma abordagem Ética versão de trabalho, conferencia proferida no I Congresso
Internacional Direitos Fundamentais e Alteridade, Universidade Católica de Salvador. Disponível em: www.mpatraoneves.pt

331
Organizadora : Edelamare Melo

A consciência de si, como conclui Bordin4 ao interpretar o filósofo fran-


co-lituano, é o resultado da saída da própria individualidade da abertura para
o outro. Ou, ainda, como diz Vaz5 o “homem se torna ele mesmo (ipse), na sua
abertura constitutiva ao outro (alius vel aliud)”.
Dessa forma, é exatamente na relação com o outro e com o que ele apre-
senta de diferente que se pode alcançar outras dimensões além daquelas con-
tidas no indivíduo, como se ele se tratasse apenas de um projeto de si mesmo.
A busca pela convivência harmônica entre os diversos grupos humanos
não é uma inquietação apenas da filosofia; ela tem sido objeto de preocupação
de organizações internacionais e do Direito.
Assim, em busca de assegurar a aproximação entre os diferentes, a Con-
ferência Geral da UNESCO de 1995, conhecida como Declaração de Princípios
sobre a Tolerância ressaltou o dever dos Estados membros de fomentar o respeito
aos direitos humanos, “sem distinção fundada sobre a raça, o sexo, a língua, a
origem nacional, a religião ou incapacidade e também combater a intolerância”6.
A ideia de tolerância tem uma semelhança, uma aproximação, com a de
alteridade, porque ela não significa indulgência, clemência ou misericórdia, ou
uma atitude piedosa com o outro. Na verdade, representa a compreensão de to-
dos os outros como iguais e interdependentes, sobretudo no que o outro me apre-
senta de diferente, de desigual que merece ser respeitado exatamente como se
encontra. Essa compreensão é necessária para uma sociedade plural e pacífica.
O direito penal quer também participar da construção um mundo solidário,
apesar de todos os equívocos e da violência com que costuma se abater sobre os
indivíduos, sobretudo sobre os menos favorecidos. A pacificação social pela via
da força parece contraditória, por isso, tem-se afirmado que a segurança, pela via
penal, e a violência são “substancialmente a mesma coisa” afirma Zizek.7 Daí que
se procure legitimar a intervenção penal pela proteção de bens jurídicos que são
considerados essenciais para uma sociedade e pretender protegê-los contra ações
de terceiros que possam lhes causar danos. O direito penal só se justifica, ao privar
a liberdade de uma pessoa, na medida em que ele protege esses bens no interesse
de todos – ao menos no plano teórico. Dentre estes, destacam-se aqueles bens que
são o propósito da Lei 7.716/89 e do artigo 140 §3º do Código Penal, quais sejam:
a honra subjetiva de uma pessoa, a dignidade e a igualdade substancial.

4
BORDIN, Luigi. Judaísmo e filosofia em Emmanuel Lévinas. À escuta de uma perene e antiga sabe-doria. UFRJ.
Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 25, n. 83, 1998, p. 555
5
VAZ, H. C. L. Antropologia Filosófica. Vol. II, São Paulo: Loyola, 2004, p. 144
6
Unesco. Declaração de Princípios sobre a Tolerância. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/ima-
ges/0013/001315/131524porb.pdf. Acesso em: f
7
ZIZEK, Slavoj. A visão em paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 17

332
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

1. A punição do racismo no brasil


A ideia de proteger esses bens é muito antiga. Em Roma, já se consi-
derava que as ofensas à dignidade humana atingiam a personalidade em seu
tríplice aspecto: corpo, condição jurídica e honra. A preocupação antecipada
dos romanos não impediu o mundo de testemunhar episódios escabrosos e
uma prática cotidiana de desprezo pelas pessoas em razão da diferença de
pele, religião ou origem. É possível afirmar que o racismo é uma ideologia
que está sempre ligada ao colonialismo, à escravidão, ao totalitarismo políti-
co, aos genocídios, aos crimes nazistas e aos regimes do apartheid.
A punição do racismo é antiga no Brasil, porém, não tanto quanto deveria
ter sido. Data mais exatamente de 1951 e consta da Lei conhecida como Afonso
Arinos8, na qual foi considerada uma contravenção e, por isso mesmo, punida com
penas de privação da liberdade de curta duração, variando de meses a um ano. A
conduta consistia na prática de atos resultantes de preconceitos de raça ou de cor.
Até chegarmos ao atual Estatuto da Igualdade Racial, Lei 12.288 de
2010, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de
oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e
o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica. este país
já testemunhou até mesmo penas para os escravos de natureza distinta daque-
las destinadas aos homens livres. A Lei de 10 de junho de 1835, por exemplo.
penalizava com morte sumária os escravos assassinos de seus senhores.
No século passado, em 1963, ocorreu uma manifestação de caráter supra-
nacional: a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação Racial. Conclamou-se, nessa oportunidade, aos países a tomarem:
“todas as medidas necessárias para eliminar rapidamente a discrimina-
ção racial em todas as suas formas e manifestações, e a prevenir e combater
doutrinas e práticas racistas e construir uma comunidade internacional livre
de todas as formas de segregação racial e discriminação racial9”. (Adotada
pela Resolução n.º 2.106-A da, em 21 de dezembro de 1965).
Ainda com a lembrança do pesadelo de horrores da segunda guerra
mundial, pretendeu-se, então, conclamar cada pessoa para a contemplação e
respeito da diversidade e a possibilidade de enriquecimento recíproco propor-
cionado pelas diferentes culturas.

8
Brasil, Presidência da República. Lei nº 1.390, de 3 de julho de 1951. Inclui entre as contravenções penais a
prática de atos resultantes de preconceitos de raça ou de côr. Disponível em:https://www.jusbrasil.com.br/topi-
cos/12138061/lei-n-1390-de-03-de-julho
9
UNESCO. Convenção da ONU sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial. Disponível em:
unesdoc.unesco.org/images/0013/001393/139390por.pdf

333
Organizadora : Edelamare Melo

No Brasil, a primeira Constituição a tratar do tema foi a de 1967 que já


previa em seu artigo 150 §1: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção, de
sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. O preconceito de raça
será punido pela lei10” (BRASIL, 1967). É bem verdade, que a Constituição não
se referiu ao Direito Penal como fez a carta magna que lhe sucedeu.
A Constituição Federal de 198811, em seu art. 5º, inciso XLII, diz que: “A
prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de
reclusão, nos termos da lei”. Com tal dispositivo, obrigou ao legislador ordinário
a criar leis que punissem as ações que atentassem contra todas as formas de dis-
criminação racial. Trata-se mandado de criminalização o que indica a reprovação
pela ordem jurídica nacional de condutas atentatórias à igualdade entre as pessoas.
A partir de então, houve uma preocupação crescente em criminalizar as
condutas discriminatórias. Esse fato pode ser visto de três formas, de um lado
como reflexo do repúdio da sociedade brasileira à distinção entre seres humanos
e à consideração do outro ser inferior por ser diferente em suas características.
De outro lado, a farta edição de leis pode também ser interpretada como ineficá-
cia do direito para atingir os fins propostos na norma ou como incompetência do
Estado brasileiro para fazer valer as proibições. Pode-se ainda interpretar o fato,
como o uso puramente simbólico da lei para aplacar as aspirações de alguns gru-
pos, sabendo-se de antemão de sua inefetividade para mudar o contexto social.
2. A legislação incriminadora no Brasil
No Brasil, após a Convenção, foi aprovada a Lei Nº 7.716, de 5 de ja-
neiro de 198912, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de
cor. Posteriormente, foram introduzidas alterações pelas Leis n nº 9.459 de 13
de maio de 1997 e 12.288 de 2010.
Esta última é conhecida, como já foi dito, como o Estatuto da Igualdade
Racial. Ambas ampliaram o rol dos crimes constantes da Lei 7716 e aumen-
taram a proteção contra a discriminação racial e religiosa.
A Lei 945913 modifica o artigo 20 da Lei 7716 para nela incluir a expressão
“discriminação, etnia, religião ou procedência nacional‎” e acrescenta parágrafo
ao art. 140 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. A redação atual

10
BRASIL, 1967. Presidência da República Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos Constituição da República
Federativa do Brasil De 1967. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao67.htm
11
Brasil, Presidência da República, Casa Civil, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. www.
planalto.gov.br
12
Brasil, Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/LEIS/L7716.htm
13
Brasil, LEI 9459. Altera os arts. 1º e 20 da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes
de preconceito de raça ou de cor. www.planalto.gov.br/ccivil_03/ LEIS/L9459.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

do artigo-Lei que dispõe sobre os crimes de racismo ficou como exposta: “Art.
1º: Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou
preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.
Como se vê, o legislador fala em preconceito e discriminação, de forma
que é importante distinguir uma expressão de outra. O preconceito é um senti-
mento, ideia, opinião ou sentimento desfavorável formado sem conhecimento
abalizado, ponderação ou razão. O preconceito racial consiste em sentimento,
assimilado de forma acrítica em razão de desvios culturais ou “da generalização
apressada ou imposta pelo meio, conduzindo geralmente à intolerância.”14
É possível afirmar que o preconceito não pode ser objeto de Lei, na
medida em que esta não tem o poder, nem aptidão para mudar sentimentos,
ou questões que dizem respeito à subjetividade da pessoa, a menos que estes
se revelem em atos exteriores. O que a lei pode determinar é que alguém aja
como se não tivesse tais afetos.
A discriminação racial é o preconceito determinando atitudes, políticas,
restringindo oportunidades e direitos no convívio social. A discriminação se
concretiza no ato de estabelecer diferenças, de tratar de modo desigual às
pessoas, em razão das suas características raciais, religiosas, atingindo o prin-
cípio constitucional da igualdade.
Há várias formas descritas na lei de manifestar racismo ou discrimi-
nação. É importante destacar que algumas dessas condutas podem constituir
outro crime ou, até mesmo, ser um indiferente penal. Para que sejam consi-
deradas como um dos tipos da Lei 7716 e se a motivação for distinta daquela
descrita nos artigos da lei, ou seja, se a ação não for praticada por discrimina-
ção ou preconceito, pode não haver crime de racismo.
Assim ocorre com o artigo quarto que contém o tipo cuja realização
consiste em: “Negar ou obstar emprego em empresa privada . Pena: reclusão
de dois a cinco anos”. Se o motivo da negativa for, por outra razão que não o
racismo, a conduta será um indiferente penal. Da mesma forma acontece com
seu parágrafo primeiro que comina pena idêntica àquele que:
“por motivo de discriminação de raça ou de cor ou práticas resultantes
do preconceito de descendência ou origem nacional ou étnica: I - deixar de
conceder os equipamentos necessários ao empregado em igualdade de condi-
ções com os demais trabalhadores”.
Essa conduta, porém, pode vir a consistir um crime de perigo para a vida ou
a saúde de outrem (artigo 132 do Código Penal Brasileiro) se a ação não houver

14
ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Breves Considerações sobre Racismo e Intolerância Racial. http://www.revista-
persona.com.ar/Persona70/70Andreucci.htm).

335
Organizadora : Edelamare Melo

sido fundada em preconceito. A pena, nesse caso, é muito mais baixa - três meses
a um ano - porque a reprovação do comportamento é menor, embora aqui para
a caracterização do delito, deva ter ocorrido um perigo concreto e demonstrado
para a vida da vítima. Já o crime da Lei 7716 consumar-se-ia, aparentemente,
com a simples abstenção da conduta: bastaria o ato de preterição do empregado
para realizar o tipo. A redação do tipo não sugere, como no exemplo do Código
Penal, que se trata de crime de perigo. Da recusa em fornecer os equipamentos
podem resultar muitas consequências. É preciso registrar, todavia que, se antes
mesmo que o empregado venha a realizar uma ação que possa causar danos ou
perigo de dano a um bem jurídico de que seja portador, o equipamento lhe seja
oferecido, não se deve cogitar de considerar a existência de crime.
O bem jurídico, o valor tutelado na Lei é o direito à dignidade humana
(art. 1º, III) e o direito à igualdade (art. 5º), ambos consignados na Constitui-
ção de 1988.
Outro dispositivo gerou certa complexidade na compreensão da Lei.
Trata-se daquele introduzido pela Lei 9.459, a qual, além de inserir novos
crimes na “Lei do Racismo”, também acresceu, ao artigo 140, do Código Pe-
nal, o parágrafo terceiro, criando com isso a figura da injúria qualificada que
recebeu a seguinte configuração típica:
Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
[......]
§ 3º - Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça,
cor, etnia, religião ou origem.
Pena - reclusão de um a três anos e multa.
Ocorre que, a mesma lei alterou o artigo 20 da Lei 7716 para acrescen-
tar a seguinte conduta como sendo proibida com pena de reclusão de um a três
anos e multa: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de
raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.
O artigo 20 consiste em uma forma de crime de racismo que se realiza
através de discriminação que diminua o valor de grupos relativamente a outros
em razão de suas características antropológicas ou de sua cultura. Esse acréscimo
obrigou que fosse feita a distinção entre o artigo 20 e o artigo 140 §3º do Código
Penal já que ambos aparentemente se referem à mesma conduta. No entanto, a
doutrina já assinala a diferença entre as duas figuras: a injúria racial contida no
artigo 140, §3º, consiste em ofender a honra de alguém, pessoa determinada, se
valendo de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem; já o crime
de racismo atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, implica conduta
discriminatória a uma coletividade pelos motivos assinalados na Lei.

336
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

É importante repetir que todas as condutas previstas na Lei 7716 prati-


cadas com a vontade de impor uma humilhação, um tratamento diferenciado
em razão dos elementos nela descritos no artigo 1º, são formas de racismo
e não apenas aquela descrita no artigo 20. A distinção para a qual se chamou
atenção deve-se à semelhança, mas não identidade com a figura do artigo 140
§3º do Código Penal Brasileiro.
A Lei refere-se também, no artigo 1º, à prática de discriminação em
razão da procedência nacional. Pode-se entender que o dispositivo engloba
pessoas de nacionalidade brasileira, mas que são filhas de estrangeiros. Isto
porque, embora tenham nascido em território nacional, é possível que culti-
vem laços com a comunidade de seus antepassados que podem ser objeto de
tratamento desigual por terceiros. Assim, as colônias portuguesa, alemã, liba-
nesa e japonesa, por exemplo, podem ser vítimas de agressão preconceituosa.
Da mesma forma, o preconceito pode ser exercido contra grupos nacio-
nais regionais. O Ministério Público Federal (MPF) já denunciou pessoas, em
algumas ocasiões, em razão de discriminação contra nordestinos publicadas
no “Facebook”. Num dos casos, é afirmado que a receita do Brasil seria mais
expressiva se fosse cobrado imposto sobre jegues e burros do norte e nordeste
do país onde existiam em abundância.
No plano doutrinário, porém discute-se se a abrangência da expressão é su-
ficientemente ampla, permitindo tal interpretação. Alamiro Velludo “et ali” enten-
dem que não há dúvidas que este entendimento vige com relação ao artigo 140 §3º
o qual dispõe sobre injúria em razão da origem e não sobre procedência nacional.
Esta última expressão, mais propriamente, denota país de nascimento15.
3. Precedentes e jurisprudência do STJ e do STF, especialmente o
hc146303
O papel do Ministério Público e o da magistratura são fundamentais
para dar efetividade às leis e transformá-las em realidade. O texto legal lei
não pode se resumir a refletir intenções, mas deve, sim, ser um caminho hábil
a concretizar os ideais constitucionais.
Por isso mesmo, é bom que se faça referência à ação do Juiz como intér-
prete da norma no momento de sua aplicação e verdadeira concretização. Ape-
sar de estar submetido a limites nesse papel, cabe-lhe esta função, já que toda
norma carece de concreção de sentido, como bem coloca Ana Elisa Bechara16.

SALVADOR, Alamiro Velludo et alli. Legislação penal especial. Vol.2, 3ª edição, São Paulo: Saraiva, 2010. p.37.
15

BECHARA, ANA Elisa Liberatores Silva. Valor, Norma e Injusto Penal: Considerações sobre os elementos nor-
16

mativos do tipo objetivo no direito Penal Contemporâneo, São Paulo, Tese Apresentada à USP, para obtenção do

337
Organizadora : Edelamare Melo

As construções legais só se transformam em normas jurídicas “somente quando


da construção valorativa realizada por meio da interpretação”. O Poder Judiciá-
rio, ao menos nas denúncias recebidas, parece inclinado a julgar os artigos da Lei
7716 com severidade, do baixo índice de pessoas condenadas às penas privativas
de liberdade em razão do cometimento de crime de racismo,
Assim, ocorreu, em 2016, com a decisão do STJ17 que considera o
crime do artigo 140 § 3º, mesmo estando situado fora da Lei que define os
crimes de racismo, como sendo crime da natureza destes. As consequências
desse julgado são muito importantes uma vez que os crimes previstos na Lei
7716 são considerados inafiançáveis e imprescritíveis e, portanto, são amplia-
das as margens de intervenção do Estado na liberdade do cidadão.
A impossibilidade de se livrar solto mediante o pagamento de fiança e a per-
manência do direito de punir do Estado apesar do decurso de tempo são duas res-
trições impostas aos autores de crimes que são considerados de extrema gravidade.
O Direito Penal Internacional e a corte internacional de direitos humanos
consideram determinados crimes como imprescritíveis, a exemplo da tortura e
dos crimes contra a humanidade, como o genocídio, o extermínio, a escravidão,
a deportação e qualquer outro ato desumano contra a população civil, ou a perse-
guição por motivos religiosos, raciais ou políticos, quando esses atos ou persegui-
ções ocorram em conexão com qualquer crime contra a paz.
Como se sabe, a imprescritibilidade significa uma recusa do direito, em
face do caráter do crime, em esquecer o fato, esquecimento este que sustenta
a perda do direito de punir no direito penal. Assim, se a pena não é aplicada
dentro de um certo período, entende-se que ela perde sua necessidade, seja
porque a sociedade já está pacificada diante do fato, seja porque ela não serve
para prevenir a ocorrência de outros crimes, ou, ainda, porque o autor já pode
ser uma pessoa distinta daquela que praticou o ato.
A decisão em estender até o Código Penal as restrições relativas à fiança e à
imprescritibilidade revelam o acolhimento pelo direito de outros instrumentos na
luta contra o racismo até porque, não seria função do Judiciário, teoricamente, e sim
do legislador, afirmar a imprescritibilidade de crimes. No entanto, ao argumento de
que o §3º do artigo 140 do código penal descreve ação que traduz preconceito de
cor e que se trata de atitude que indica segregação e racismo, o STJ decidiu, por
consequência, que era crime inafiançável e imprescritível, ainda que não esteja na
lei que cuida da matéria, qual seja a Lei 771618. O réu pode, então, ser punido.

Título de Professor Titular, 2017, p. 308


17
STJ Agravo em Recurso Especial Nº 686.965 - Df (2015/0082290-3) Relator: Ministro Ericson Maranho (Desem-
bargador Convocado Do Tj/Sp, Publicação DJ 18/06/2015
18
Nota explicativa: Tal decisão foi tomada no Agravo em Recurso Especial 686.965/DF, em razão do fato que um

338
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

O STF já se pronunciou também de forma clara e precisa a favor de


condenação em caso de preconceito religioso. A decisão ocorreu no Recurso
Ordinário em Habeas Corpus (n.146303)19, negando o trancamento de ação
penal movida contra pastor que publicou na Internet vídeos e postagens que
ofendiam autoridades públicas e seguidores de crenças religiosas diversas –
católica, judaica, islâmica, espírita, wicca e umbandista, o qual também impu-
ta fatos ofensivos aos seus devotos e sacerdotes. O advogado do pastor arguiu
direito assegurado constitucionalmente ao livre exercício da religião, mas o
Tribunal entendeu que suas palavras alimentavam um ódio incompatível com
os princípios da sociedade democrática que se deseja instalada no Brasil.
4. Considerações finais
O ideal da igualdade propagado pela revolução Francesa sofreu, e sofre,
vulnerações frequentes apesar da ação de entidades supranacionais no sentido
de sua afirmação. Esse movimento repercute na legislação interna dos Esta-
dos que, sobretudo após a Segunda Grande Guerra, se tornaram sensíveis à
estabilização da paridade entre todos os humanos.
Por detrás dessa aspiração, pode-se dizer que reside a alteridade, como
no pensamento de Lévinas. que se traduz “em movimento ‘para-o-outro’ exa-
tamente no que o outro me apresenta de diferente, de desigual”. O filósofo
francês sugere que “o eu” não existe senão graças a uma relação, um encontro
com o outro. Nessa abertura em relação ao outro, é possível para “o eu” rom-
per com seu isolamento e transcender as limitações.
O Direito Penal Brasileiro, após a Constituição de 1988, criminalizou de
forma mais rígida as ações de discriminação e ampliou, paulatinamente, o rol das
condutas puníveis para incluir aquelas exercidas também em razão de etnia, reli-
gião ou procedência nacional além de raça e cor inicialmente previstas.
Não há um expressivo número de pessoas cumprindo pena privativa de li-
berdade em razão de ações realizadas por motivo de preconceito, embora se possa
encontrar decisões dos tribunais em favor do endurecimento da reação penal.
O Direito Penal quer prestar também a sua contribuição para a cons-
trução de um mundo no qual prevaleçam princípios eticamente idôneos para
uma convivência harmoniosa entre os diferentes. Reconhece-se, todavia, que

juiz do DF decidiu que uma pessoa que publicou nota em seu blog na rede mundial de computadores contendo a
expressão “negro de alma branca”, não se amoldava ao tipo penal previsto no art. 20, § 2º, da Lei 7.716/89, mas sim,
ao tipo penal do art. 140, § 3º do Código Penal pessoa . O STJ decidiu então que o mesmo tratamento da Lei 7716
deveria ser dado ao delito de injúria racial.
19
Supremo Tribunal Federal. Recurso Ordinário em Habeas Corpus. Relator Atual: Min. Dias Toffoli. Disponível
em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=371511

339
Organizadora : Edelamare Melo

este é um recurso subsidiário na medida em que o respeito e consideração ao


outro são atitudes que, mais facilmente, podem alcançar a conformidade entre
as pessoas.
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Brasilia, Revista de informação legislativa, v. 52, n. 208, p. 149-166, out./dez. 2015 edição
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Andreucci, Ricardo Antonio. Breves Considerações sobre Racismo e Intolerância Racial.


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Bechara, Ana Elisa Liberatores Silva. Valor, Norma e Injusto Penal: Considerações sobre
os elementos normativos do tipo objetivo no direito Penal Contemporâneo, São Paulo, Tese
Apresentada à USP, para obtenção do Título de Professor Titular, 2017.

Bordin, Luigi. Judaísmo e Filosofia em Emmanuel Lévinas - Faje. Disponível em:www.faje.


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340
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Toffoli. Agravo em Recurso Especial Nº 686.965 - Df (2015/0082290-3) Relator: Ministro


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341
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

O RESGATE DOS QUILOMBOS NO


CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO
LATINO-AMERICANO

Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega1

Agradecimentos às comunidades quilombolas que têm me ensinado


muito sobre a vida e a existência digna.
A história do afrodescendente nas Américas constitui um rastro de sofri-
mento causado pela desumanização, pelo negar direitos, em razão de um processo
escravocrata. O escravismo colonial foi determinante para construção e de toda
a história da América. E a resistência negra é determinante na estruturação desse
países, sobretudo a partir da revolução haitiana.
Entretanto, isso é negado até mesmo pelo pensamento mais avançado no
Brasil. Nega-se, na literatura especializada, a importância do negro na formação
econômica e cultural do Brasil. Isso é denunciado por Ordep Serra, em Olhos
negros do Brasil e por Jacob Gorender em Escravidão Reabilitada e em Es-
cravismo Colonial.
Há uma intencionalidade de ocultar as vias deixadas pelo escravismo na
formação do país e os rastros dos homens e mulheres, sujeitos desse processo cruel
construtor da aclamada democracia brasileira. Rastros forjados nos trilhos da his-
tória cuja marca indelével é uma estrutura jurídica de dominação e ocultamentos.
A escravidão no Brasil é a mais duradoura do continente. E dela resta-
ram as resistências que nunca desapareceram do cenário brasileiro, sejam elas
no campo cultural, no religioso ou nos quilombos. Os traços da resistência à
escravização perduram no negro brasileiro, nos quilombos e fora deles. O re-
conhecimento de direitos desses povos é consequência disso. Os quilombos,
assim como os terreiros, as terras de santos, são a resistência viva.
A nós, coube-nos tratar dos quilombos e seus sujeitos- as pessoas que
mantém alerta a memória da resistência e o significado de sua luta até os dias
atuais. Ele aparece tento no âmbito do direito como no da política, se é que se
pode separá-los. E não é uma ocorrência exclusivamente brasileira. Politicamente,

1
Mestre e Doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora Titular na Faculdade de Direito
da Universidade Federal de Goiás e Professora na Universidade de Ribeirão Preto. Coordenadora do Núcleo Emer-
gente Comunidades Tradicionais. CNPq Bolsista Produtividade em Pesquisa CNPq.

343
Organizadora : Edelamare Melo

a ressiginificação do quilombo pelo reconhecimento de suas subjetividades e terri-


torialidades específicas consigna-se nas constituições contemporâneas.
No direito, reconhece-se em documentos jurídicos nacionais e interna-
cionais. Identificam-se novos sujeitos de direito e institucionalizam-se políticas
públicas. Há uma tentativa de reconciliação com o passado projetando um futuro
diferente para os povos migrados a ferro da África subsaariana, em séculos atrás. É
preciso refigurar o quilombo e refazer os rastros, o caminho inverso. A reconstrução
dos rastros se dá para mostrar os rumos do futuro, relembrando o passado e atendendo
a um processo de resistência e luta, colocando-o firmemente no presente.
O “esquecimento por apagamento dos rastros” é um processo recorrente
nos muitos campos sociais e culturais, sobretudo institucionais, entre os quais o
jurídico e legitima a exclusão. A reconstituição dos rastros constitui uma função
mimética de “refiguração”. A história se dá como reefetuação do passado. O
rastro reefetua o passado no presente. Remontar o rastro é fazer o passado inteli-
gível como persistindo no presente (RICOEUR, 1994: 244, T.III).
Há, no caso dos afrodescendentes na América Latina, um apagamento
da memória para ocultar o que a sociedade não quer ver, aquilo que “suja” sua
história e portanto ocasiona o não direito. Não se enxerga o quilombo para
se esquecer o erro, ou o que dele sobra na consciência coletiva, como marcas
de preconceito e de negação. Reforça-se o equívoco da marginalidade dos
negros e os mantêm fora do espaço da cidadania.
Buscar o esquecido há de ser um apelo a lembrança, intensificando-a
para impor o respeito e para resgatar a humanidade, conferindo aos sujeitos
esquecidos a dignidade maculada no tempo e no contexto histórico. O revigo-
rar dessa dignidade se dá nas mediações interpessoais e institucionais.
Para o quilombo alcançar aquela dignidade, enquanto subjetividades
emergentes, precisa se afirmar institucionalmente num campo em que se
estruturam as ordens de reconhecimento. Essas ordens ainda não alcançam
esses excluídos, porque eles e elas são excluídos dos sistemas. O constitu-
cionalismo latino-americano tem dado início a um processo de lembranças e
reconhecimentos; importante mas insuficiente.
A ressignificação dos quilombolas e o seu resgate enquanto sujeitos de
direitos está diretamente ligada à reorganização política de cunho popular na
América Latina, que trouxe uma revisão dos modelos democráticos, em que
se fortalece a participação popular e se identificam novas subjetividades. As
várias constituições latino-americanas atuais promovem mudanças nas prá-
ticas política e jurídica, sobretudo no tratamento dispensado aos sujeitos de
direitos, identificando grupos vulneráveis.

344
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Nas duas últimas décadas do século XX, na América o horizonte cons-


titucional e com ele os horizontes político e jurídico mudam.
Das cartas políticas latinoamericanas contemporâneas que tratam da ques-
tão do afrodescendente, destacamos a contribuição do Brasil, da Colômbia, da
Nicaragua e do Equador. O texto constitucional colombiano de 1991 reconhe-
ceu, no art. 7, a diversidade “étnica e cultural da nação”, estabelecendo o prazo
de cinco anos para edição de lei conferindo às comunidades negras que tenham
ocupado terras baldias nas zonas rurais ribeirinhas dos rios da Bacia do Pacífico,
de acordo com as suas práticas tradicionais de produção, o direito à propriedade
coletiva sobre as áreas que a referida lei demarcar (art. 55 dispositivo transitó-
rio), o que foi regulamentado pelas Leis no 70/93 e 397/1997.
A Constituição da Nicarágua de 1987 garantiu às denominadas comunidades
da costa atlântica o direito a “preservar e desenvolver sua identidade cultural na
unidade nacional, dotar-se de suas próprias formas de organização social e admi-
nistrar seus assuntos locais conforme suas tradições”, reconhecendo-lhes as formas
comunais de propriedade das terras, uso, gozo e desfrute das águas e bosques des-
tas terras ( art. 89). Garantiu, ainda, o desenvolvimento de sua cultura e afirmando
que seus valores enriquecem a cultura nacional, constituindo dever do Estado a
criação de programas especiais para o exercício de seus direitos de livre expressão
e “preservação de suas línguas, arte e cultura” (art. 90). Também assegurou-se-lhes
o procedimento de titulação das terras por lei infraconstitucional, em 2003.
A Constituição do Equador de 1988 reconheceu aos povos negros ou
afroequatorianos o direito de conservar “a propriedade imprescritível das
terras comunitárias, que serão inalienáveis, não-embargáveis e indivisíveis,
ressalvada a faculdade do Estado para declarar sua utilidade pública”, man-
tendo-se a posse das terras e obtendo-se sua “adjudicação gratuita, conforme
a lei” ( arts. 84, itens 2 e 3 c/ art. 85). Nesse país, a ordem infraconstitucio-
nal garantiu direitos aos afro-equatorianos. A Lei dos Direitos Coletivos dos
Povos Negros ou Afro-equatorianos, de 2006, assegurou a preservação das
expressões culturais e artísticas dos povos negros ( art. 3), o reconhecimento
de direitos econômicos, sociais, culturais e políticos ( art. 9), a conservação
da biodiversidade em benefício coletivo ( art. 11), a caça e pesca para sub-
sistência com prioridade ante o aproveitamento comercial e industrial ( art.
12), os direitos sobre recursos genéticos e filogenéticos ( art. 14), a consulta
sobre planos e programas de prospecção e exploração de recursos naturais
que possam afetar referidas comunidades ambiental ou culturalmente (art.
15), a garantia do fortalecimento e organização, em áreas urbanas ou rurais,
dos sistemas e práticas de medicina natural tradicional ( art. 18) e o respeito

345
Organizadora : Edelamare Melo

de formas próprias de organização e integração social afroequatorianas, tais


como os palenques, comunas, comunidades urbanas e rurais, organizações de
base e demais formas associativas que se determinem (art. 24).
A Constituição Equatoriana de 2008 trouxe uma série de direitos coletivos
aos povos afroequatorianos (assim como aos indígenas, aos montubios, às comu-
nas), entre os quais a não discriminação étnica ou cultural, a propriedade impres-
critível das terras comunitárias, nos termos da Constituição anterior. Garantiu
ainda a manutenção da posse de suas terras e territórios ancestrais e a adjudicação
gratuita, a participação no uso, usufruto, administração e conservação dos recursos
renováveis que se achem em suas terras, a consulta prévia, livre e informada, de
caráter obrigatório, dentro de prazo razoável, sobre planos e programas de pros-
peção, exploração e comercialização de recursos não renováveis localizados em
suas terras, a não translação de suas terras ancestrais, a participação na definição
das políticas públicas a elas concernentes, bem como no desenho e decisão das
prioridades nos planos e projetos do Estado, consulta antes da adoção de medida
legislativa que possa afetar qualquer de seus direitos coletivos. Além disto, garan-
tem-se a esses povos, no art. 58, os direitos coletivos estabelecidos em lei, pactos,
convênios, declarações e demais instrumentos internacionais de direitos humanos”
e a possibilidade de constituir circunscrições territoriais para a preservação de sua
cultural, além das comunas como organização territorial( art. 60).
O Brasil tratou da questão quilombola, diretamente, depois da promul-
gação da Constituição de 1988, no artigo 68 do Ato das Disposições Consti-
tucionais Transitórias (ADCT), e nos artigos 215 e 216 do próprio texto. O
assunto foi regulamentado em Constituições Estaduais que reconhecem aos
remanescentes dos quilombos a propriedade de suas terras. Assim as Constitui-
ções do Pará (Art. 232), de Mato Grosso (Art. 251 e 33 do ADCT), da Bahia
(Art. 51), do Maranhão (Art. 229 do ADCT) e de Goiás (Art. 16 do ADCT).
O tratamento diferenciado da problemática quilombola na Constitui-
ção Federal e nas estaduais evidencia as dificuldades do nosso ordenamento
jurídico na concretização dos direitos coletivos dos quilombolas. Nas cons-
tituições, as comunidades quilombolas, ora foram tratadas como sobras de
um sistema de exploração, em outros momentos, como patrimônio cultural e
histórico, guardando relação com a ideia de resquícios de um passado perdido
e ainda em outra situação, como na Constituição Federal como uma comuni-
dade social, mas neste caso, restringindo a garantia dos direitos dos quilom-
bos à noção civilista de propriedade da terra.
É de se observar que essa apreensão jurídico-política da realidade não
instrumentaliza nem reafirma o sentido comunitário desse sujeito de direito.

346
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

São necessárias mediações institucionais tais a constituir um sentido das co-


munidades quilombolas que guarde relação com o modo de vida destes gru-
pos, observando a sua situação como sujeitos coletivos de direitos
Pondera-se, por fim, que o tratamento político normativo conferido às
comunidades quilombolas, no plano de suas experiências, da ressignificação
histórica, longe está de consagrar uma efetiva condição de existência jurídica
no plano de igualdades. O constitucionalismo democrático significa importante
avanço nesse sentido, mas fato de os quilombolas constarem do discurso norma-
tivo não importa em que, nas relações mediadas institucionalmente, sobretudo
no discurso do judiciário e nas política públicas, sejam afirmados e reconhecidos
como sujeitos de direito e tenham possibilidade de existência coletiva conforme
sua auto-atribuição e plena capacidade de realizá-la, nos seus muitos aspectos.
Isso pode ser observado nas várias frentes de conflito enfrentadas por essas
comunidades. Com relação ao reconhecimento estatal, notadamente com relação
ao Incra. A Terra de direitos faz uma análise segundo a qual em 5 anos o orçamen-
to para regularização dos territórios quilombolas caiu em 97%. Também analisa
dados de certificação/titulação concluindo que nesse ritmo seriam mais de 900
anos para que todas as comunidades já certificadas recebessem seus títulos de
propriedade. O próprio INCRA, no relatório disponibilizado na Internet informa
que entre 2005 e 2017 foram conferidos 116 títulos apenas. Num contexto em que
a propriedade privada tem uma função econômica/hegemônica por excelência a
consequência é a vulnerabilidade dos quilombolas e o acirramento dos conflitos,
pois a terra continua em disputa e o território pode ser afetado por isso.
Com isso, nas relações sociais vemos a violência contra os quilombolas
aumentar. Segundo o Caderno de Conflitos da Comissão Pastoral da Terra
houve 90 ocorrências de áreas de conflitos quilombolas em 2017, 99 em 2016.
Em 2017, registraram-se 22 assassinatos de quilombolas, em um núme-
ro absoluto de 71 assassinatos por conflitos no campo. Em 2016, 7 quilom-
bolas foram mortos de um total de 61. Em 2015, 1 quilombola de um total de
50 assassinatos. Há um crescimento da violência no campo, sendo muito mais
expressivo contra quilombolas.
As razões verificadas, em regra, são empreendimentos (Pequenas cen-
trais hidrelétricas, MG, SP, PA, GO), especulação imobiliária, expansão da
fronteira agrícola.
É urgente a necessidade de empoderamento das comunidades, fazendo
valer os seus direitos, como direito, à educação, à saúde, à inclusão digital. É pre-
ciso sobretudo garantir a propriedade sobre suas terras, e os direitos referentes à
autonomia sobre os seus territórios, como o direito de consulta.

347
Organizadora : Edelamare Melo

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348
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Comunidade LGBTI+: mapeando intervenções


em serviços públicos do Distrito Federal

Matheus da Silva Neves

Resumo
Este artigo tem como objetivo investigar a realidade contextual em que
ocorre serviços específicos para a população LGBT+, na rede pública do Dis-
trito Federal. A partir do contato inicial com gestores administrativos, um ques-
tionário foi desenvolvido, utilizando como base Intervention Mapping Appro-
ach e o framework EPIS. Direcionado para os profissionais da rede que atuam
como linha de frente do serviço, este instrumento investiga informações sobre
o design da intervenção, teorias e métodos, recursos/barreiras, resultados e
avaliação do processo. Compreender os mecanismos operantes da intervenção
em interface com os determinantes da mudança social se mostra um exercício
complexo, que demanda estratégias e adaptações aos contextos acessados. Os
resultados preliminares apresentam uma pluralidade no desenvolvimento e ma-
nutenção de intervenções disponíveis pelo Governo do Distrito Federal.
Palavras-chave:
Intervenção, LGBT+, Intervention Mapping
Abstract
This article aims to investigate the contextual reality in which specific ser-
vices are available for the LGBT+ population, in the public network of the Federal
District. From the initial contact with administrative managers, a questionnaire was
developed, based on the Intervention Mapping Approach and the EPIS framework.
Aimed at the professionals at the network who act as the front line of service, this
instrument investigates information about the design of the intervention, theories
and methods, resources/barriers, results and process evaluation. Understanding the
operative mechanism of the interventions in interface with the determinants of so-
cial change is a complex exercise that demand strategies and adaptations to the
context accessed. The preliminary results presents a plurality in the development
and maintenance of intervention available by the Federal District Government.
Key-words: Intervention, LGBT+, Intervention Mapping.

351
Organizadora : Edelamare Melo

Institucionalização dos Direitos LGBT


O processo de incorporação das políticas afirmativas no Brasil é fruto de
constantes transformações e eventos estruturais, que se organizaram a partir
dos anos 70 e 80, como parte de uma ampla redemocratização do país, após a
época da ditadura (Green & Quinalha, 2014). Fazendo uma breve linha do tem-
po, pela primeira vez, em 1995, o tema de discriminação sexual foi formalmen-
te mencionado, em um foro da Nações Unidas, na Conferência de Beijing. Com
a consolidação do debate no ambiente nacional, o Conselho Federal de Psico-
logia determinou em 1999 que nenhum psicólogo poderia “exercer ações que
favorecessem a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas”
(Resolução CFP Nº 001/99). Nos anos 2000, o Governo Brasileiro, em con-
sulta à sociedade civil organizada, levou o tema para a Conferência Regional
das Américas, no Chile, onde todos os países do continente comprometeram-se
com a temática de orientação sexual entres as formas agravadas de discrimina-
ção, estimulando os Estados ao combate e à prevenção da violência.
Em outubro de 2001, o Governo criou o Conselho Nacional de Com-
bate à Discriminação (CNCD) e em 2002, uma segunda versão do Programa
Nacional de Direitos Humanos (PNDH II) contemplou uma seção que se de-
dicava ao assunto, com quinze ações a serem adotadas pelo Governo Brasi-
leiro, que priorizavam: o combate à discriminação por orientação sexual, sen-
sibilização da sociedade para a garantia do direito à liberdade e à igualdade
de gays, lésbicas, travestis, transexuais e bissexuais (Brasil, 2002). Em 2003,
o CNCD congregou representantes de organizações da sociedade civil e dos
movimentos GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes) e foi instituída uma co-
missão temática permanente para receber denúncias de violações de direitos
humanos, baseadas em discriminação sexual. Concomitantemente, o CNCD
criou um grupo de trabalho com um propósito de desenvolver o Programa
Brasileiro de Combate à Violência e à Discriminação. Em conjunto com essas
ações, em 2003, Conselho Nacional de Imigração editou uma resolução ad-
ministrativa, que viabilizou o reconhecimento de união de pessoas do mesmo
sexo, para os efeitos de concessão de visto.
Em 2004, o Governo Federal do Brasil, por meio do Ministério da Saú-
de, assumiu um compromisso com a sociedade, desenvolvendo o Programa
de Combate à Violência e à Discriminação com GLBT (Gays, Lésbicas, Bis-
sexuais e Transexuais) e Promoção de Cidadania Homossexual. Esse pacto
social sinalizou o compromisso do país com a construção de uma cultura
igualitária. As prerrogativas se pautaram na promoção de cidadania de pesso-
as gays, lésbicas, travestis, transgêneros e bissexuais, a partir da equiparação
352
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

de direitos e combate à violência e discriminação homofóbicas. A ações esti-


puladas pelo Programa (Brasil, 2004) foram:
(a) apoio a projeto de fortalecimento de instituições públicas e não-go-
vernamentais que atuavam na promoção da cidadania homossexual e/
ou combate à homofobia;
(b) capacitação de profissionais e representantes do movimento homos-
sexual que atuavam na defesa de direitos humanos;
(c) disseminação de informações sobre sobre direitos, de promoção da
autoestima homossexual;
(d) incentivo à denúncia de violações dos direitos humanos do segmento.
A existência e perpetuação dos serviços disponíveis para pessoas
LGBT+ atualmente é reflexo de anos de luta e inserção nos âmbitos políticos.
Porém, a desqualificação e subalternização de sujeitos LGBT+ pela opressão
sistemática da matriz heteronomativa (Butler, 2003), nega o reconhecimento
e direito à cidadania dos sujeitos diversos. A atuação dos movimentos sociais
LGBTs têm reivindicado a afirmação dessas identidades subalternas, com
o objetivo de valorizar o processo de reconhecimento da diferença (Irineu,
2014). A partir desse processo histórico, compreende-se parte do contexto em
que se insere o objetivo deste trabalho.
Mapeamento de Intervenções
O processo de mapeamento de intervenções (Intervention Mapping Appro-
ach) proporciona extrema riqueza de detalhes, o que incide diretamente na ela-
boração de etapas cruciais do projeto; essa técnica apresenta uma abordagem de
planejamento, que abarca a importância do desenvolvimento de intervenções que
se fundamentam em teorias e evidências (Bartholomew et al., 2011; Kok, 2014).
Este processo de mapeamento se caracteriza por três perspectivas: abordagem eco-
lógica, participação dos sujeitos envolvidos e interessados (stakeholders) e o uso
de teorias e evidências. Dentro destas perspectivas, existem etapas de planejamento
que promovem uma estruturação metodológica para fomento e alcance dos objeti-
vos propostos: avaliação de necessidades; matrizes de objetivo de mudanças; sele-
ção de métodos baseados em teorias; incrementação do programa de intervenção;
adoção, implementação e sustentabilidade do programa; avaliação da intervenção.
A construção do questionário de coleta se pautou na adaptação destes aspectos.
Toda intervenção se baseia em uma teoria, mesmo que de maneira infor-
mal, isto é, pressupõe uma hipótese para a resolução de um problema (Moore
et. al., 2013). O processo de descrição da teoria que embasa a intervenção
possibilita maior percepção acerca dos fatores que influenciam sua aplica-

353
Organizadora : Edelamare Melo

ção. Segundo Green (2000), o uso de teorias assegura um acesso coeso aos
determinantes de efetividade da intervenção, o que previne uma interpretação
empobrecida do design e do processo de implementação. Essa investigação
das estruturas fundamentais da intervenção permite uma leitura congruente
de como os determinantes presentes impactam atores (pessoas envolvidas di-
reta e indiretamente com o funcionamento do programa) que desenvolvem e
recebem este conteúdo. Esse acesso viabiliza o aprimoramento em todos os
níveis, o que certifica uma operacionalização sinérgica dos recursos disponí-
veis diante das limitações e intempéries (Kok, Peters & Ruiter, 2017).
Neste projeto, o pressuposto teórico que estrutura parte do planejamento da
intervenção, se pauta na compreensão de gênero e sexualidade (Butler, 2003) como
construção social mediada pela subjetividade do indivíduo. A pesquisa se norteia a
partir do questionamento: “Como produzir uma intervenção para melhorar a qua-
lidade de vida da população LGBT+, frente ao preconceito?”. A proposta deste
artigo é fundamentar os aspectos operacionais da intervenção, a partir das informa-
ções coletadas e qualificadas dos profissionais envolvidos na rede socioassistencial.
A qualificação dessa avaliação possibilita a percepção das demandas
sob perspectivas diferentes, o que é necessário no processo de implementa-
ção, comparação de dados e enriquecimento da literatura. Existem, porém,
caminhos a serem construídos para que a desenvolvimento da intervenção seja
pautada em fatores contextuais da realidade do fenômeno. Não há somente
uma forma de criar e realizar uma avaliação do processo de pesquisa; escolhas
devem ser feitas a endereçar o contexto em que o objetivo e a metodologia
se relacionam. A escolha de um método de avaliação de processo deve servir
como instrumento para que o pesquisador consiga explicitar as escolhas de
pesquisa e os métodos abordados para a resposta (Grant, A. et al., 2013).
As etapas da pesquisa são monitoradas com o uso de um instrumento de
aprimoramento de processo, o framework que se baseia em evidências, EPIS:
Exploration, Preparation, Implementation, Sustainment (Aarons., Hurlburt,
& Horwitz., 2011). Os frameworks são desenvolvidos para avaliações de pro-
cesso e visam estruturar a complexidade para avançar a compreensão sobre
como intervenções funcionam (Moore et. al., 2013).
Desenvolvido e operacionalizado na área de saúde, as matrizes do EPIS fo-
ram adaptadas em forma de questionamentos sobre a direção da pesquisa, o que
possibilita um olhar metacognitivo sobre o processo. A escolha do EPIS possibilita
uma orientação simultânea do processo de implementação e dos fatores estruturais
da intervenção em si. Em outro estudo (Smith & Polaha, 2017), este método possi-
bilitou a medição e antecipação de barreiras no processo de implementação.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Na fase de Exploration e Preparation, a percepção dos recursos dis-


poníveis e barreiras existentes no cenário atual impactam diretamente o de-
senvolvimento do projeto. Operacionalizar essas estruturas como guias de
produção, auxilia o aperfeiçoamento da pesquisa e proporciona autenticidade
nas etapas propostas. É essencial para o planejamento de intervenções que os
desenvolvedores identifiquem possíveis desafios que irão afetar a aplicação
do programa, para adequação de fatores ineficazes e disfuncionais (Aarons et.
al., 2011). Para estes autores, essa fase consiste na aproximação de parceiros
internos e externos do serviço, ampliando as possibilidades de incorporar a
intervenção aos programas vigentes.
O objetivo deste artigo é investigar como acontece a prática de serviços
disponíveis para sujeitos LGBT+ na rede institucional do Distrito Federal, a partir
do relato de profissionais que atuam na linha de frente. Psicólogos, assistentes
sociais e médicos compõem o grupo de participantes do questionário, já que a in-
terface dessas áreas é essencial na percepção dos fenômenos de vulnerabilização
do sujeito e assistência estatal (fatores que influenciam diretamente a dinâmica
dos mecanismos da intervenção). Esse caráter multidisciplinar assegura uma per-
cepção diversa da complexidade do sofrimento de sujeitos em atendimento, o que
permite um tratamento de demanda mais específico e direto. A replicação dessa
dinâmica enquanto componente da relação entre atores, objetos e contexto é um
dos fatores de fortalecimento e robustez da intervenção.
Método
Participantes
O critério para a seleção dos participantes se pautou na escolha de
profissionais que atuam em serviços públicos disponíveis para população
LGBT+. No total, houve a participação de 5 profissionais que atuavam em
órgãos e departamentos vinculados ao Governo do Distrito Federal: CREAS
da Diversidade (Centro de Referência Especializada em Assistência Social),
Ambulatório Trans, Serviço Especializado em Abordagem Social (SEAS),
Subsecretaria de Atividade Psicossocial da Defensoria do Distrito Federal
(SUAP - DF) e o Centro de Saúde 06 - Adolescentro. Entre os serviços, par-
ticiparam desta coleta às seguintes profissões: Assistente Social, Médico En-
docrinologista, Educador Social, Psicólogo e Defensor Público. Para melhor
compreensão dos contextos de trabalho pesquisados, far-se á uma breve des-
crição das atividades dos órgãos nos quais estes profissionais atuam.
O Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS)
da Diversidade é uma unidade pública que oferta serviço especializado de pro-

355
Organizadora : Edelamare Melo

teção e atendimento a famílias e indivíduos (crianças, adolescentes, jovens,


adultos, idosos, mulheres) em situação de ameaça ou violação de direitos, tais
como: violência física, psicológica, sexual, tráfico de pessoas, atendimento da
família em que o adolescente está cumprindo medidas socioeducativas, afasta-
mento do convívio familiar devido à aplicação de medida de proteção; situação
de rua, de risco pessoal e social associados ao uso de drogas, vivência de traba-
lho infantil, discriminação em decorrência da orientação sexual e/ou raça/etnia.
O Ambulatório Trans do Distrito Federal está localizado no Hospital
Dia e presta atendimento à população travesti e transsexual de Brasília em
suas necessidades específicas. A equipe multiprofissional fornece assistência
em psicologia, psiquiatria, serviço social, endocrinologia e enfermagem. Os
serviços mais comuns são os de acompanhamento hormonal de pessoas tra-
vestis e transsexuais em transição.
O Serviço Especializado em Abordagem Social (SEAS) tem como ob-
jetivo assegurar trabalho social de abordagem e busca ativa que identifique
nos territórios, a incidência de situações de risco pessoal e social, por viola-
ção de direitos, como: trabalho infantil, exploração sexual de crianças e ado-
lescentes, situação de rua, uso abusivo de drogas, dentre outras. Dentro deste
serviço, há uma equipe especializada em abordagem social específica para
minorias sexuais, composta por profissionais LGBT+.
A Subsecretaria de Atividade Psicossocial (SUAP) integra a Defensoria
Pública e tem o objetivo de aprimorar o atendimento destinado à garantia dos
direitos da população em situação de vulnerabilidade social, assim como pro-
mover a qualidade do serviço por meio do atendimento técnico, formado por
psicólogos e assistentes sociais que prestam assistência integrada aos núcleos
de atendimento e à sua população assistida.
O Centro de Saúde 06 - Adolescentro produz trabalho em rede com ou-
tros serviços de diversos níveis de atenção da Secretaria de Saúde, bem como
o estabelecimento de parcerias com equipamentos sociais de outras secreta-
rias da administração do Distrito Federal. O serviço presta atendimento indi-
vidual e em grupo a adolescentes de 10 a 18 anos de idade nas modalidades:
psicologia, neurologia, assistência social, terapia ocupacional, psiquiatria,
nutrição, odontologia e ginecologia.
Instrumento
Foi estruturado um questionário que aborda aspectos contextuais da
prática, que visa acessar dinâmicas relacionais entre o profissional, a insti-
tuição e o serviço. O questionário apresenta uma seção sociodemográfica,

356
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

na qual o participante se identifica, informando a instituição proponente e há


quanto tempo atua nessa área. O questionário foi revisado com pares em um
teste-piloto, e adaptado antes de ser disponibilizado.
A percepção do trabalhador sobre as condições e o funcionamento da
própria rede, proporciona segurança no processo de ressignificação dos pres-
supostos teóricos que materializam a intervenção. A proximidade com a rea-
lidade social e burocrática desses profissionais permite a criação de caminhos
mais acessíveis e eficazes, que não poderiam ser percebidos de outra forma.
Desta forma, a interpretação desses atores sobre as necessidades da popula-
ção LGBT+ propicia um contexto mais genuíno no processo de aperfeiçoa-
mento dos mecanismos da intervenção.
O questionário (Tabela 1) foi estruturado a partir das matrizes do EPIS
(Aaron et. al., 2011) e de adaptações das perspectivas exploradas no Interven-
tion Mapping (Bartholomew et. al., 2011), buscando relacionar as interfaces
determinantes: profissionais (gestores e técnicos que atuam diretamente com
o público-alvo), instituição e serviço. Dentro dessas interfaces relacionais,
os objetivos buscam investigar os contextos que tangem o conhecimento e
a operacionalização de métodos e teorias, desenho das intervenções, imple-
mentação, resultados e avaliação do processo por parte dos profissionais.

PERGUNTAS OBJETIVOS
Como você descreve a atuação do Obter uma descrição dos proce-
seu trabalho? Quais serviços ofere- dimentos, protocolos e serviços
cidos? oferecidos.
Existe alguma base teórica/concei- Compreender o que estrutura con-
tual que abarque as técnicas/direcio- ceitualmente a técnica utilizada nos
namentos deste serviço? serviços.
Quais barreiras/limitações você per-
Acessar o contexto em que se pra-
cebe no desenvolvimento do seu tra-
ticam as intervenções oferecidas,
balho? (condições físicas, pessoais,
investigando possíveis barreiras.
sociais, internas ou externas)
Quais recursos você tem disponíveis? Como
facilitam o desenvolvimento do seu traba- Acessar o contexto em que se pra-
lho? (condições físicas, pessoais, sociais, ticam as intervenções oferecidas,
internas ou externas, ex: material de artes, investigando possíveis recursos.
computador, salas, pessoas, veículos, etc.)

357
Organizadora : Edelamare Melo

Quais impactos sociais você pode


Aferir qual a percepção destes
perceber a partir das intervenções
profissionais sobre as intervenções
realizadas no seu trabalho? (positi-
oferecem e aplicam.
vos e/ou negativos)
O que você considera como neces- Quais alterações são necessárias, a
sário para o aperfeiçoamento do seu partir da visão desses profissionais,
trabalho? Quais dispositivos pode- para um bom funcionamento das
riam ser agregados ou removidos? intervenções propostas
O que você considera como neces- O que este profissional entende
sário para atuação do profissional como necessário para uma atuação
que lida com pessoas LGBT+? (qua- ética e de qualidade para profissio-
lidades técnicas e pessoais) nais da área.
Tabela 1. Questionário Online desenvolvido como produto do framework, para
o mapeamento de atuação nos serviços disponíveis da rede do Distrito Federal.
Procedimentos
Os procedimentos metodológicos adotados neste artigo são:
(1) estruturação dos objetivos de investigação;
(2) acesso aos trabalhadores nos serviços disponíveis para sujeitos
LGBTs+ no Distrito Federal;
(3) co-construção de um questionário inspirado nos conceitos explora-
dos da Intervention Mapping Approach (Bartholomew et al. 2011) e no
framework EPIS (Aarons et. al., 2011);
(4) divulgação do questionário nos serviços disponíveis;
(5) construção de categorias temáticas;
(6) análise e interpretação do conteúdo das categorias utilizando a me-
todologia de Minayo (2007).
Análise
A análise de conteúdo de Minayo (2007), enquanto método, é um conjunto de
técnicas que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo
das mensagens. Na pré-análise, estes dados foram filtrados a partir das temáticas
prévias de coleta (design, métodos e teorias, implementação, resultados e avaliação
de processo), e possibilitaram uma primeira análise exploratória. Nesta etapa, foi re-
alizada uma leitura vertical e horizontal das respostas para a percepção de dinâmicas
relacionais entre o contexto e os elementos empíricos. A partir dessa leitura, reali-
zou-se o agrupamento de temas específicos que surgiram como tendências, para a
construção de categorias e interpretação do conteúdo. O último procedimento da aná-
358
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

lise foi a articulação dos conteúdos interpretados com a fundamentação teórica, para
subsídio das argumentações críticas-reflexivas. Os temas foram avaliados em uma
segunda instância, por colaboradores do grupo de pesquisa do Laboratório de Grupo,
Família e Comunidade da Universidade de Brasília. Compreende-se a utilidade desta
metodologia diante as especificidades da coleta e do número de participantes, o que
demonstra ser eficaz nos processos descritivos-interpretativos.
Resultados
A partir do dados obtidos, em interface com o objetivo de mapear aspec-
tos estruturais da relação entre profissionais, instituição e serviço, tendências
foram identificadas e qualificadas em nove categorias que englobam os aspec-
tos estruturais explorados pela Intervention Mapping Approach. Os trechos que
narram as falas foram sinalizados de 1 à 5, em referência a cada participante.
Essencialidade da Rede
Em relação aos procedimentos e protocolos que substanciam o serviço,
a partir das descrições utilizadas para explanar estes mecanismos, foi possível
perceber uma tendência nos discursos dos profissionais: uma visão expandi-
da e sistêmica das instituições. Os relatos contemplaram que os protocolos
institucionais visam acolher a pessoa em vulnerabilidade, com o objetivo de
vinculá-la aos serviços das redes. Isso se dá por meio de encaminhamentos,
acesso a benefícios, entre outros, conforme os trechos abaixo ilustram:
[1]“Atender casos encaminhados pelos núcleos, que necessitem
de acompanhamento psicossocial. [...] Realizar encaminhamen-
tos de assistidos aos órgãos competentes para casos específicos
[...]”.
[3]“Vinculação ao serviço de Assistência Social como CREAS
[...] através da vinculação, pode se pleitear auxílios vulnerabi-
lidade, auxílio aluguel, intervenção junto a defensoria pública
para troca do nome e processo transexualizador. ”;
[5]“Atuação coletiva com foco na fiscalização e implementação
de políticas públicas.”.

Visão e Postura de Acolhimento Expandida


No processo de inserção das pessoas em vulnerabilidade, a partir de alguns
relatos, observou-se uma postura de acolhimento para além do sujeito. Percebe-se no-
vamente uma visão estendida das disposições do serviço para particularidades de cada
pessoa, o que resulta em intervenções específicas alicerçadas em uma postura que se
atenta às necessidades do usuário. Os trechos a seguir descrevem esta perspectiva:

359
Organizadora : Edelamare Melo

[1] “Auxiliar nas demandas jurídicas do assistido de forma ex-


trajudicial[...]”;
[2] “Atendimento extensivo a familiares quando existe a deman-
da.”;
[3] “[...] visando a fomentar a informação de direitos e cuidado
com o outro.”;
[4]“Garantia de direitos de forma extrajudicial para população em vul-
nerabilidade social”.

Fundamentação Político-Legal
Sobre as bases teóricas/conceituais que fundamentam as técnicas e prá-
ticas, os serviços investigados relatam semelhanças. Observa-se que os dispo-
sitivos que oferecem inserção na rede a partir de serviços psicossociais e ju-
rídicos, relatam não possuir uma fundamentação teórica científica específica,
porém, pautam suas ações nos princípios e disposições legais que amparam
as políticas assistenciais:
[1] “Não existe uma base teórica.”
[2] “Quanto à adolescência utiliza-se técnicas de manejo de gru-
po e o acolhimento individual às demandas.”;
[3]“Sim, o SUAS (Sistema Único de Assistência Social), através
dele podemos direcionar cada caso.”;
[4]“Leis, decretos de garantia de direitos da população vulne-
rável”;
[5]“A nossa atuação tem enfoque nos marcos legais e constitucional.
Toda a atuação se desenvolve por intermédio de ferramentas jurídicas
extrajudiciais/administrativas e judiciais.”.

Recursos
Em relação a percepção de mecanismos que contribuem para o desen-
volvimento e sustentação das intervenções, observa-se que os participantes
relatam recursos materiais e subjetivos Os recursos materiais são ferramentas
físicas e instrumentais que possuem uma funcionalidade e finalidade direta
relacionada às demandas, como o objetos e cargos técnicos como pode ser
observado nos trechos seguir:
[2] “[...] equipe multidisciplinar para atendimento[...]”;
[3] “Temos uma van que nos auxilia no transporte no DF todo,
temos o Creas da Diversidade que nos dá o suporte necessário e
a sede do Instituto que é nossa base de trabalho além da coorde-
nação e supervisão”.
[4] “Estagiários de ensino superior dos cursos de psicologia e

360
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

serviço social que contribuem de maneira significativa para o


desenvolvimento do trabalho.”
[5] “[...] nosso corpo de apoio conta com uma assessora, uma analista e
uma estagiária, que, concomitantemente, também auxiliam outros dois
defensores do Núcleo de Direitos Humanos.”

Os recursos subjetivos podem ser ilustrados como habilidades e poten-


cialidades não materiais, individuais e indissociáveis a especificidade de cada
servidor, que podem se adaptar ao contexto, descritos no trecho a seguir:
[2] “São necessários [...], muita criatividade e, sobretudo persis-
tência. Há ainda, muito investimento pessoal, com, por exemplo,
a pesquisa sobre filmes e documentários em equipamentos pes-
soais [...]” ; “[...] Para que aconteçam ações, estas dependem da
iniciativa de pessoas sensíveis, que, muitas vezes, travam lutas
até pessoais para elas aconteçam.”

Sucateamento
Quando questionados sobre as limitações que impactam diretamente a im-
plementação de suas intervenções, é possível compreender sobre suas falas, a
percepção de mecanismos relacionais internos e externos ao serviço que afetam
suas práticas. Este contexto pode ser evidenciado a partir de alguns trechos:
[2] “[...] pela falta de investimento que não se está tendo nos
serviços públicos.;
[3] “Falta de pessoal nas equipes dos equipamentos públicos para
viabilizar algumas demandas [...]”;
[4] “[...]infelizmente percebe-se que os serviços não recebem o
investimento necessário para a atuação de total qualidade, infeliz-
mente faltam diversos recursos para o funcionamento dos serviços.
[...] reduzido pessoal para a quantidade de demanda de trabalho e
também a estrutura física necessita melhorar (computador, móveis,
salas).”;
[5] “Os maiores entraves são as condições de estrutura (recursos hu-
manos e estrutura física) e a falta de efetividade do poder público.”;
“Seria necessário mais servidores e servidoras, além de melhores
condições de trabalho. [...] seria indispensável o que o Núcleo de
Direitos Humanos tivesse uma unidade de atendimento Psicossocial
exclusiva.”.

Valores Morais
A percepção dos valores morais associados às vivências sexuais não-
normativas influencia diretamente a qualidade e eficácia dos objetivos que

361
Organizadora : Edelamare Melo

fomentam os atendimentos. Podemos observar que o preconceito é uma ver-


tente central na compreensão das demandas e suas possíveis resoluções:
[2] “As maiores barreiras que se verificam referem-se ao momento de
extremo conservadorismo e intolerância por que passamos no país…”;
[4] “O preconceito do dia a dia e a precariedade dos serviços
públicos.” (sobre a percepção dos impactos negativos).

Empobrecimento da Cultura Avaliativa


A ausência de descrição de instrumentos avaliativos por parte dos partici-
pantes não significa a total inexistência de medições do serviço, porém aponta
pouca percepção e domínio de sua importância. As narrativas mostram que não
há uma forma específica de avaliar os impactos, além da percepção singular dos
profissionais para aperfeiçoamentos pontuais nos protocolos de atendimento:
[1] “Sistematizar sugestões de Psicólogos e Assistentes sociais
para contribuir na melhoria do atendimento.”.
[2] “Em nossa pobre cultura de avaliação não se produzem indicadores
de monitoramento e avaliação. O serviço prescinde completamente a
isso. E nem haveria tempo para a medição de impactos, sobretudo so-
ciais, em ações que se iniciam agora. Os resultados [...] que se verificam
é a satisfação das pessoas às abordagens inclusivas.”.

Empatia / Interesse
O interesse e conforto pelo tema da diversidade, parece ser uma característi-
ca central da postura esperada do profissional. Os relatos consideram que uma pos-
tura sensível às diferenças é uma predisposição. Quando questionados sobre quais
aspectos necessários pra se trabalhar com pessoas LGBT+, eles relatam:
[2]“Ser uma pessoa com um mínimo de resolução de sua própria
sexualidade, que não se sinta agredido com a dos outros. Que se
interesse em aprofundar/estudar as questões relativas à sexualidade
e a gênero, sobretudo sobre o viés da riqueza da diversidade”
[3]“Primeiramente olhar com olhar justo, sem preconceitos, sem
julgamentos. A/O LGBTI é como qualquer outra pessoa.”
[4] “Identificação com a temática [...]”
[5] “[...]é indispensável empatia e comprometimento.”

Necessidade de Capacitação
Os participantes descrevem a importância de uma capacitação técnica
profissional para quem lida com sujeitos LGBT+, de maneira que a rede espe-

362
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

cializada possua profissionais sensibilizados e aptos tecnicamente. Os trechos


a seguir ilustram essa carência no serviço:
[4] “[...] cursos de capacitação e especialização e condições para
o desenvolvimento do trabalho de qualidade, com recurso ma-
terial e pessoal.”
[5] “[...] domínio técnico dos direitos das pessoas lgbt e dos me-
canismos e ferramentas existentes na rede de apoio.”

A partir dessas categorias, a análise interpretativa dos dados evidencia


fatores relacionais entre as tendências percebidas, a realidade contextual do
serviço e a literatura já produzida.
Discussão
Sobre a diversidade da amostra, percebe-se que os diferentes níveis de
gestão e distinções técnicas oferecem uma imagem ampliada do serviço. To-
dos os dispositivos públicos relatados integram uma mesma rede socioassis-
tencial do Distrito Federal, e ofertam serviços assistenciais, de saúde, judi-
ciais e extrajudiciais. A percepção de similaridades contextuais dos serviços
nos informa de uma necessidade estratégica do Intervention Mapping Appro-
ach, para ilustrar possíveis gaps relacionais entre o desenvolvimento das in-
tervenções e sua condução dentro dos setores, até o alcance ao público-alvo.
A definição da ação em rede se consolidou na assistência social com a re-
formulação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e da Norma Ope-
racional Básica (NOB), quando foi criado o Sistema Único de Assistência Social
(SUAS). Os eixos estruturantes do SUAS (Brasil, 2009) se pautam: na matricia-
lidade sócio-familiar (centralização da família como núcleo de desenvolvimento
social); descentralização político-administrativa e territorialização estabelecen-
do novas bases para a relação entre Estado e sociedade civil; financiamento;
controle social com participação popular e normas definidas para informação o
monitoramento e a avaliação além de política de recursos humanos própria.
No Distrito Federal, o serviço socioassistencial reflete a Essencialidade da
Rede. As intervenções em rede podem proporcionar um processo racional e mais
efetivo às ações do Estado, na potencialização dos recursos existentes na comu-
nidade, elemento crucial frente aos tempos de corte e austeridade fiscal. A partir
do conceito de gestão em redes, preconizados na PNAS (Brasil, 2004) é possível
assegurar a efetividade das políticas públicas, históricamente caracterizadas por
ações setoriais, desarticuladas, centralizadoras e hierárquicas; essa perspectiva
possibilita superar a fragmentação da atenção às necessidades sociais, parale-
lismo de ações, centralização das decisões, informações e recursos (Vitoriano,
363
Organizadora : Edelamare Melo

2011). O conceito de redes permite então, focalizar exatamente as relações entre


pessoas e grupos nas quais valorações e percepções atuam. Nas redes os indiví-
duos encontram-se envolvidos com outros em ação, mas também em avaliações,
julgamentos e, até mesmo, estigmas (Hita & Duccini, 2008).
A essencialidade do conceito de rede incide nos protocolos adotados
na execução do serviços. Podemos perceber um aspecto que fomenta a quali-
dade dos atendimentos a partir dessa essencialidade é a interdisciplinaridade
multiprofissional dos serviços, que integram saberes técnicos diversos para
a produção de interfaces processuais-metodológicas que possam qualificar e
resolver demandas de forma conjunta. Este conceito advém dos cenários de
saúde e organização hospitalar, como um recurso estruturante de uma mo-
dalidade de trabalho, que se configura na relação recíproca entre interações
técnicas e interpessoais dos agentes de áreas diferentes do trabalho (Peduzzi,
2001). Todos os entrevistados descrevem, em algum nível, a relação interins-
titucional e multiprofissional de seus serviços, o que demonstra a adoção de
componentes funcionais na criação de interfaces do conhecimento.
Os critérios teóricos que estruturam a execução destes serviços, possuem
Fundamentação Política-Legal nas diretrizes nacionais do Sistema Único de
Assistência Social supracitadas. No processo de resolução de demandas, os ser-
viços produzem encaminhamentos entre as instituições da rede para tratamento
específico, mas consoante as disposições das entidades psicossociais. Ou seja,
ao ser acolhido no serviço, a pessoa atendida passa a conhecer e integrar a rede
sistêmica de dispositivos públicos, o que torna imprescindível a criação de diá-
logos inter-institucionais entre gestores e diretrizes burocráticas para assegurar
o acolhimento e resolução de problemas. O fortalecimento e constante atualiza-
ção de informações pelas vias comunicacionais assegura funcionamento contí-
nuo e eficaz destes serviços, o que pode prevenir direcionamento e permanência
em espaços e processos burocráticos não resolutivos. Percebe-se, a partir das
narrativas, que os profissionais que oferecem atendimento técnico especializado
(Psicólogos, Assistentes Sociais e Médicos) se baseiam em “técnicas gerais” de
manejo de grupo e acolhimento individual das demandas, sem denominação
específica a ser descrita; também não houve relatos que descrevessem a instru-
mentalização (protocolar ou metodológica) de embasamento empírico na esco-
lha de decisões. Desta maneira, não significa que não há utilização de teorias es-
pecíficas, mas, que estas não seriam generalizadas nos protocolos institucionais,
e sim singulares as características individuais dos trabalhadores.
Ainda sobre a resolução de demandas, observa-se que a Visão/Postura Ex-
pandida de Acolhimento fomenta a noção de que outros fatores sistêmicos, para

364
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

além da relação serviço-usuário, podem influenciar na solução de demandas. Este


aspecto permite aos profissionais um olhar expandido sobre mecanismos que im-
pactam diretamente a eficácia de suas intervenções, já descrito na literatura como
um recurso essencial dos trabalhos em rede (Sluzcki, 1997; Uber & Boeckl, 2014).
A partir das narrativas, evidencia-se uma postura para além das obrigações preco-
nizadas em cada serviço, o que demonstra que há intencionalidade na disposição
oferecida no atendimento, como por exemplo, a preferência por caminhos inter-
ventivos extrajudiciais que não demandem atraso burocrático, o que proporciona
agilidade no serviço e evita o atraso do processo em instâncias jurídicas.
Porém, esta postura depende ativamente da mediação entre condições
físicas e subjetivas dos recursos disponíveis ao serviço e ao servidor. Para
a implementação e execução dos programas, a criatividade e a persistência
foram relatadas como facilitadoras das práticas diárias. Se percebe que o in-
vestimento pessoal se torna parte do instrumento de aperfeiçoamento das in-
tervenções, uma vez que as características individuais fomentam as direções
adaptativas frente às especificidades do sistema público. Como substancial
a estes recursos, os entrevistados relatam que a própria comunicação entre
a rede é indispensável pro acontecimento dos programas, o que a reafirma a
essencialidade sistêmica do serviço. O suporte institucional burocrático entre
os membros e entidades da rede também acontece com compartilhamento de
serviços (ações sociais conjuntas), de equipamentos (computador, van, salas)
e de pessoas (reuniões entre departamentos para atualização de serviços). A
prática de compartilhar recursos se mostra como uma estratégia que os depar-
tamentos firmaram para sua própria manutenção, frente à austeridade fiscal.
Em relação a essa escassez de recursos, as narrativas abordam um aspecto
comum: o processo de sucateamento dos serviços pautados em políticas assis-
tenciais. Este processo se mostra presente nos setores de educação, saúde e assis-
tenciais, descrito na literatura (Behring, 2003; Correia, 2005; Bravo, 2006; Cas-
tilho, Lemos & Gomes, 2017) como reflexo de políticas neoliberais, amparadas
sobre o discurso da austeridade fiscal. A crise econômica possibilita a reafirmação
hegemônica do mercado, na promoção de um estado mínimo que terceiriza seus
serviços, a fim de reduzir os custos. Observa-se no teor das narrativas, que esta
tendência de sucateamento atravessa os processos de implementação dos meca-
nismos interventivos nos serviços de saúde, socioassistenciais e jurídicos.
Este modelo de reforma estatal atinge diretamente as camadas da popu-
lação que não possuem recursos financeiros para acesso e permanência nos
serviços supracitados de forma privada, o que fomenta o aumento dos níveis
de desigualdade no Brasil (Domingues, 2017). Ressalta-se que a diminuição

365
Organizadora : Edelamare Melo

dos recursos também impacta diretamente na qualidade do serviço, o que


promove a popularização de discursos que invalidam as atuações de agentes
estatais e suas instituições. Logo, a solução apresentada seria a terceirização
do serviço por empresas privadas que obteriam “maior eficácia” na dissolu-
ção de problemas, o que traz retorno a modelos filantrópicos e clientelistas,
substanciados pela lógica do mercado (astilho, Lemos & Gomes, 2017), insu-
ficientes na redução ativa da desigualdade social.
Percebe-se que outro fator influencia ativamente a direção dos repasses
financeiros, que permeia o micro e macro-cosmo político das decisões: os
valores morais. A moralidade heteronomartiva fomenta espaços de signifi-
cações que direcionam o olhar e capital estatal para longe das demandas de
minorias sexuais. Discursos e comportamentos homofóbicos são reflexos de
estruturas maiores que consolidam normas e expectativas culturais, estrutura-
das sob a égide patriarcal heteronormativa (Rich, 1980; Warner, 1991; Butler,
2003). Essas prerrogativas sociais apresentam consequências similares na
redução da qualidade de vida, marginalização, agressões físicas, violência
psíquica, vulnerabilização social, susceptibilidade maior ao suicídio e uso
abusivo de substâncias (citado por Da Silva, Lordello & Murta, no prelo).
A perpetuação deste status quo mantém, essa população desassistida em
vulnerabilidade. Ainda, com mudanças constantes de gestão institucional, as prio-
ridades do serviço tendem a sofrer alterações, desde a suspensão até o encerra-
mento de programas vigentes. Um dos relatos afirma que é necessário “enfren-
tamento pessoal” à instituição, enquanto profissional, para que haja manutenção
das políticas em vigor nos serviços. Compreende-se \ambivalência gerada a essa
dependência central do capital público, o que restringe as possibilidades de ações
efetivas de asseguramento de direitos e enfrentamento à discriminação sexual. O
corte de verbas atuais e diminuição de investimentos em serviços socioassisten-
ciais representa um perigo direto na contenção dos ciclos contínuos de miséria e
violência em populações vulneráveis, especialmente minorias sexuais.
Neste sentido, capacitar profissionais que lidem com a diversidade pro-
move o desenvolvimento de recursos protetivos para esta comunidade, uma
vez que estimula a aproximação e permanência de minorias sexuais aos ser-
viços especializados. A preparação destes profissionais para a entrega de in-
formações sensíveis, influencia potencialmente a qualidade do atendimento,
o que promove mais segurança na performance técnica dos trabalhadores e na
ativação de possíveis atores como recurso protetivo (Miller & Bayer, 2012).
Um elemento central que pode ser desenvolvido na capacitação é a sen-
sibilização do profissional e a fomentação de um interesse genuíno pela mu-

366
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

dança de paradigma, resultante do preconceito. É imprescindível que não haja


espaço para instrumentalização da homofobia nos mecanismos institucionais.
Desenvolver um ambiente seguro e inclusivo à diversidade de pensamentos
precisa ser uma possibilidade dentro do serviço. Uma forma de assegurar
autenticidade nesse processo é a participação direta ou indireta de pessoas
LGBT+ no planejamento e execução da implementação, já descrito na litera-
tura como eficaz em evitar adversidades contextuais na entrega da interven-
ção (Bartos, Berger & Hergarty, 2014).
Este aspecto pode ser ilustrado pelo relato de um profissional que narra
a participação de sujeitos LGBT+ como facilitadora no processo de aborda-
gem e atendimento de minorias sexuais em situação de rua:
[3] “Nossa equipe é formada por LGBTIS, com dois gays, duas
trans e uma lésbica então a linguagem na abordagem e acolhi-
mento facilita a interlocução e recepção. A vivência também
conta bastante.”

A atuação legítima de profissionais LGBT+ na construção de diretri-


zes de ação, que substanciam as tomadas de decisões, pode evitar a rigidez
institucional relacionada as peculiaridades da vivência não-normativa, como
por exemplo, a sistematização do uso do nome social nos formulários e no
tratamento dos servidores ao público.
Em meio às adversidades percebidas em todos os níveis sistêmicos, com-
preende-se o porquê do empobrecimento da cultura de avaliação dos servi-
ços. Na gestão de recursos, é incontestável que a realização de monitoramento e
avaliação dos serviços formam um percurso de obrigatoriedades, e de ações que
endereçam os objetivos definidos previamente, onde nem sempre há possibilidade
de autonomia por parte da equipe ou gestores (Carvalho, et. al., 2012). Os relatos
que descrevem a ausência desses indicadores, justificam a falta de tempo dentro
dos serviços, o que alerta pra necessidade de instaurar mecanismos estratégicos
para consolidar sistematização das avaliações. Neste sentido, a produção cientí-
fica pode oferecer uma adaptação teórica para a ressignificação destas práticas,,
uma vez que o conhecimento construído nas instituições de ensino devem ser
testados e multiplicados em benefício da sociedade.
Embora seja uma das prioridades preconizadas nas normas operacio-
nais do SUAS e do SUS, supostamente há um empobrecimento desta cultura
no Distrito Federal. No SUS, por exemplo, Paim (2003) reitera o movimento
progressivo de iniciativas de avaliação em saúde no Brasil, nos últimos trinta
anos, e que pode-se afirmar que o interesse pela avaliação não se restringe ao

367
Organizadora : Edelamare Melo

âmbito acadêmico. É preciso, então, que seja de interesse das esferas gover-
namentais e da população a averiguação desses dados, por meio de estudos,
para o subsídio de financiamentos e a responsabilização dos gestores regio-
nais no processo de tomada de decisões administrativas. Logo, a dependência
da avaliação apenas na ponta do serviço impede uma construção robusta e
significativa de dados para estes aportes.
A interface produzida pelas etapas de Exploration e Implementation,
em conjunto com os conceitos abordados na Intervention Mapping Approa-
ch, possibilitou uma interpretação dos contextos em que se desenvolvem às
etapas cruciais de uma intervenção.
Considerações Finais
O processo de implementação é crucial na estabilização de um projeto,
e possibilita um território “seguro” para que o processo de intervenção ocorra.
Quando discute-se o desenvolvimento de uma intervenção complexa, o sucesso
em conseguir estruturar a base do projeto em andamento influencia as escolhas
temporais de custo e benefício; logo, possuir uma ferramenta de implementação
bem articulada com o design do projeto é uma forma de otimizar seus aspectos
operacionais e reduzir seus custos (Hoekstra et. al., 2014). Utilizar o EPIS como
componente estruturante para guiar o processo de exploração e implementação,
permite a percepção das potencialidades a serem desenvolvidas e a possíveis
barreiras a serem trabalhadas. Ainda, de acordo com as teorias discutidas so-
bre o embasamento de intervenções (Aaron et. al., 2011; Bartholomew et. al.,
2011; Moore, et. al., 2013), compreender o funcionamento da intervenção, em
interface com seus dispositivos e contextos operacionais (serviços, profissionais
e instituições) reflete sua efetividade, de forma que controle das variáveis deter-
minantes do processo conduz segurança nas etapas de implementação.
Os diferentes níveis de gestão envolvidos nos serviços podem oferecer
uma otimização do alcance e da qualidade do serviço. A partir das relações
institucionais, podemos promover uma malha na rede de serviços que possa
receber demandas que já estejam sobrecarregando os dispositivos existentes.
Em junção, as instituições podem expressar um poder interventivo enorme,
englobando interfaces de nível assistencial, psicológico e jurídico.
Qualquer pessoa pode se tornar um recurso protetivo e fortalecedor para
os que se encontram em vulnerabilidade. Nós, enquanto profissionais técnicos,
podemos contribuir tecendo caminhos que possam ser trafegados por todos.
Identificar especificidades que produzem sofrimento, qualificando em formato
de demanda, pode ser um dos primeiros passos na promoção de saúde (Poleja-

368
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

ck e. cols. 2016). O fortalecimento de ações como essa dependem diretamente


dos vínculos institucionais forjados a partir de conexões humanas, valorizando a
ideia de sujeito-interventor como também ator que possui protagonismo. As ma-
trizes dos serviços observados parecem se alinhar com as propostas elucidadas
no Brasil Sem Homofobia (Brasil, 2004), supracitadas na introdução.
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Do navio negreiro ao século XXI -


provocações democráticas à política brasileira.

Melillo Dinis do Nascimento1

1. Introdução
Construímos parte de nossa história a partir dos terríveis e dolorosos
preconceitos, dos racismos, das discriminações e de seus reflexos nas rela-
ções de trabalho, produção, consumo, cidadania e política. Não é possível
pensar o Brasil, com toda a sua complexidade2, sem considerarmos o fato de
que, em grande medida, somos o que somos em decorrência desses perma-
nentes conflitos, lutas de classes e de grupos sociais, em que se consolidou o
modo brasileiro de exploração e superação, fruto das nossas próprias relações
de poder e dominação. Desde os navios negreiros que construimos a nossa
luta contra o mundo da exclusão, da discriminação e do preconceito3.

1
Advogado em Brasília-DF (www.melillo.adv.br) e analista sênior do Inteligência Política (www.inteligênciapoli-
tica.com.br)
2
Há um permanente desafio de compreender o fenômeno da complexidade para o pensamento político, cf. ZOLO,
Danilo. Democracia y complejidad. Un enfoque realista. Buenos Aires: Nueva Visión, p. 231 e ss. Há uma comple-
xidade epocal, sistêmica e epistêmica. Ela é gerada e gera as formas que se relacionam os elementos de um sistema
social e político. Quando a quantidade dos mesmos aumenta, já não é possível relacionar cada um dos elementos no
mesmo momento, com cada um dos outros elementos, nem ao mesmo tempo, com cada um dos outros, criando as-
sim uma situação de complexidade que cresce em proporções geométricas. Luhmann (1998) sustenta (p. 47): “Com-
plejidad en el sentido mencionado, significa coacción de la selección. Coacción de la selección significa contingen-
cia, y contingencia significa riesgo. Cualquier estado complejo de cosas se basa en una selección de las relaciones
entre los elementos, los cuales, a la vez, son utilizados para constituirse y conservarse. La selección sitúa y cualifica
los elementos, aunque para éstos fueran posibles otras formas de relación. Designamos este ‘ser posible también de
otro modo’ mediante un término cargado de tradición, que es el de contingencia. La contingencia advierte sobre la
posibilidad de error aun en la mejor posibilidad relacional de los elementos”. Cf. LUHMANN, Niklas. Complejidad
y modernidad: De la unidad a la diferencia. Madrid: Ed. Trotta, 1998.
3
Adoto aqui como premisssa o pensamento clássico de Florestan Fernandes. Apesar da grande tradição sociológica
deste autor em seus textos, os temas que interessam para este artigo estão reunidos aqui: FERNANDES, Florestan.
Significado do protesto negro. São Paulo: Cortez, 1989. Há uma especificidade na dimensão racial que não é en-
globada pela problemática da classe, embora as duas devam caminhar juntas. São várias as dimensões de luta. Este
pensamento geralmente é mal interpretado. Quando se destaca apenas um aspecto há um isolamento prejudicial
à luta política. É apenas na conjugação que as especificidades podem ser defendidas. Nas palavras de Fernandes:
“Muitos acham que o potencial do negro é melhor aproveitado quando ele se afirma só como raça. Mas se ele se
afirmar somente como raça ele vai se isolar. O negro deve estar junto com os grupos que podem levar o protesto
social até o fundo, pois se o negro estiver presente ele irá dinamizar o espaço político das classes trabalhadoras. É
por isso que eu acho que é o momento de um lance entre raça e classe. Não para neutralizar o elemento raça, pois se
neutralizar não haverá grupo humano que vá apresentar as reivindicações que são específicas da população negra. É
imperativo que o negro entre como e enquanto negro, mas também substancialmente como negro que faz parte das
classes despossuídas e das classes trabalhadoras e assim ele pode viver os dois papéis políticos simultaneamente e
dar maior eficácia aos dois. Se ele tentar se isolar, ele vai falar sozinho, não aproveitando o espaço político que está

373
Organizadora : Edelamare Melo

Todavia, não me presto, neste pequeno artigo, a uma regressão histórica


nem a uma digressão sobre o presente. É muito e para atender as premissas
deste simpósio4, penso em deixar com os historiadores o que é a história.
Quero oferecer provocações democráticas ao futuro de nossa presença na so-
ciedade brasileira. Mesmo que ainda estejamos, quase sempre, com muitos
dos nossos depositados como carne no fundo deste navio que balança por
mares nunca dantes navegados.
2. Virou
A página virou. O capítulo acabou. Vivemos um outro livro. Provavel-
mente é um novo livro eletrônico cujos personagens e conteúdos mudam a
cada abertura do seu aplicativo de leitura. Quando não pulam constantemente
de um aparelho de leitura para outro. Ou do computador para o celular. E vi-
ce-versa. Estas expressões são importantes porque enfatizam o que temos no

surgindo; se falar unicamente como classe ele não levantará as bandeiras que são essenciais, porque a desproporção
que existe nos padrões de carreira entre brancos e negros é enorme. Ninguém pode negar isto. É preciso que o negro
coloque seus problemas, porque na desigualdade existem os mais desiguais; e as desigualdades que afetam o negro
o afetam em termos de classe mas também de raça” (FERNANDES, 1989, p. 74-75). Essa perspectiva talvez ajude a
compreender porque, para o autor, afirmar-se politicamente somente pela raça, no Brasil, pressupõe uma utopia (cf.
FERNANDES, 1989, p. 61). O protesto negro não deve isolar raça e classe, pois na sociedade brasileira as categorias
raciais não contêm, em si e por si mesmas, uma potencialidade revolucionária: os estoques raciais perdem o seu
potencial revolucionário e diluem seu significado político como limite histórico da descolonização e da revolução
democrática quando desvinculados da estrutura de classes da sociedade brasileira, da marginalização secular que
tem vitimado o negro nas várias etapas da revolução burguesa e da exploração capitalista direta (FERNANDES,
1989). Mas as limitações e os perigos do isolamento são também identificados da perspectiva das classes sociais. Ele
aponta que é imperativo que a classe redefina sua órbita, tendo em vista a composição multirracial das populações
em que são recrutados os trabalhadores – todos os trabalhadores possuem as mesmas exigências diante do capital,
mas existem trabalhadores que possuem exigências diferenciais, e é imperativo que encontrem espaço dentro das
reivindicações de classe e das lutas de classe (FERNANDES, 1989, p. 61-62). Em uma sociedade multirracial, na
qual a morfologia da sociedade de classes ainda não fundiu todas as diferenças existentes entre os trabalhadores, a
raça também é um fator revolucionário específico. Em suma, para Florestan Fernandes classe e raça se fortalecem
reciprocamente, e combinam forças centrífugas à ordem existente. No seu projeto político viceja a ideia de jogar
contra tal ordem (contra o capital) não só o dinamismo negador da classe, mas todos os dinamismos revolucionários
possíveis, entre eles a raça. Talvez essa seja a dimensão essencial para captarmos a atualidade do seu pensamento,
nas questões aqui propostas. Antes de tudo, é preciso enfatizar que os conflitos na sociedade brasileira devem ser
evidenciados, e não poderemos fazer isso enquanto colocarmos como bem incontestável uma suposta paz e harmo-
nia sociais. Os conflitos devem ser trazidos à tona porque é através deles que as camadas desfavorecidas podem
expressar seu descontentamento, apontando os elementos estruturais que obstaculizam a sua classificação social
como sujeitos portadores de direitos. Uma sociedade sem conflitos é, fundamentalmente, não uma sociedade harmô-
nica, mas uma sociedade que reprime os anseios sociais das camadas desfavorecidas. Mas as reflexões de Florestan
Fernandes nos ajudam a delinear ainda outro aspecto desses conflitos. Trata-se de uma perspectiva que preza pela
interseccionalidade, pelo não exclusivismo no âmbito das lutas políticas. Ainda que num primeiro momento uma
perspectiva como essa possa ser vista como desmerecendo as especificidades das questões em pugna – e já vimos
que não é o caso – é preciso pensar que, numa conjuntura como a atual, em que a defesa da fragmentação das lutas
tende a obedecer interesses voltados para a conservação do atual estado de coisas, a defesa da sua interpenetrabilida-
de (não só em termos de raça e classe, mas também de gênero, orientação sexual, etnia etc.) adquire um verdadeiro
caráter democrático – quiçá revolucionário, diria talvez Florestan Fernandes, sem temer assumir corajosa e esperan-
çosamente a defesa dos interesses e valores das camadas desfavorecidas.
4
Que infelizmente não conta com todas as tradições gregas que originaram o συμπόσιον.

374
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

presente: imprevisibilidades! Para usar a imagem do título, estamos navegan-


do por águas pouco ou nunca navegadas e sem as cartas náuticas necesssárias.
Perdemos o rumo e não temos coesão!
No Brasil, o pacto político que organizou o país não existe mais. Des-
truiu-se por si próprio, envolto em uma série de espasmos que modificaram-
no até ao ponto de desaparecer quase que completamente. Surgiu outro pacto:
o PRESIDENCIALISMO DE COLISÃO!
Como a realidade é complexa, especialmente a brasileira, a ideia é ex-
plorar um pouco dois conceitos a partir de uma realidade do poder: a gover-
nabilidade e a governança.
O poder é sempre uma experiência de força. Mesmo nos modelos mais
colaborativos, há, lá no fundo, um movimento permanente das forças que
colaboram. Quando não há colaboração, há maior evidência das tensões e
disputas das diferentes forças. O poder e seus atores ficam mais explícitos. As
ideias de governança e governabilidade estão relacionadas com as grandes
condições de organização dessas forças.
Governança tem origem na expressão inglesa “governance”. Tem a ver com a
capacidade de governar. Já “governabilidade” relaciona-se com as condições estrutu-
rais de um modelo político. Governabilidade é como se exerce o poder em um dado
momento histórico e em um território específico (sistema político, forma de governo,
relações entre poderes, sistemas partidários etc.). Aqui estão os condicionantes do
exercício da autoridade política. A governança vai qualificar o modo de uso dessa
autoridade. É o momento da tomada de decisões e de se levar adiante as políticas pú-
blicas em maior ou menor articulação com a política de um país.
As decisões são tomadas, quase sempre, a partir de movimentos que po-
dem ser paralelos, opostos ou isolados uns dos outros. De um lado, sempre
há uma decisão política-técnica e administrativa, que parte das instituições e
seus líderes. Do outro, há um conjunto de atores sociais que, intermediando
interesses na forma de políticas, expressam a sua participação nas decisões,
seja de forma organizada ou desorganizada. De um modo ou de outro, vão se
construindo, por meios formais e informais, os padrões de articulação, disputa
e cooperação entre atores sociais (e políticos) e arranjos institucionais que co-
ordenam e regulam transações dentro e através das fronteiras do sistema econô-
mico. Incluem-se aí, não apenas os mecanismos de agregação e articulação de
interesses, como também redes sociais informais, hierarquias e associações de
diversos tipos. Assim, a maior ou menor capacidade de governança dependeria,
por um lado, da possibilidade de criação de canais eficientes de mobilização e
envolvimento da comunidade na participação de políticas públicas e, por outro,

375
Organizadora : Edelamare Melo

da capacidade operacional da burocracia governamental, seja nas atividades de


atuação direta, seja na sua capacidade efetiva de regulação.
No Brasil, uma das “novas democracias”, que, nos anos 80, foram palcos
de profundas reformas políticas democráticas sem a necessária contrapartida de
inovação efetivas na área econômica e social, este quadro de relações entre a go-
vernabilidade e a governança sempre se deu em meio as instabilidades destes Es-
tados, decorrentes da incorporação das massas à dinâmica da composição política
antes que se obtivesse estabilidade na institucionalidade das regras dessa mesma
competição. Nosso país sempre tendeu à violação constantes das normas (im-
punidade, corporativismo desregulado, criminalidade e insegurança, corrupção,
extorsão de renda sob violência etc.) comprometendo a credibilidade da lei e ma-
ximizando os efeitos perversos oriundos das próprias tentativas de formalização
da intervenção estatal, numa situação de constante imprevisibilidade, de ausência
de “regras do jogo” fixas e confiáveis. Todo este quadro nos trouxe até aqui.
3. O fim de uma época
A maior probabilidade é que encerramos um momento histórico na política brasi-
leira. Após 30 anos da redemocratização (1988), o ano de 2018 finalizou o pacto político
denominado “Nova República”. O arranjo institucional que a caracterizava acabou. Isso
se deve a uma série de fatores, incluindo uma maior fragmentação partidária e maior
competitividade eleitoral. O Presidente Jair Bolsonaro quebrou o padrão de pelo menos
24 anos de polarização entre PT e PSDB nas eleições presidenciais. Poderia afirmar que
isto se deu em conjunto com seu partido político, o PSL. Mas não seria preciso. O nome
de seu partido, independentemente de seus quadros, não importou muito neste processo.
Apenas foi a via para se atingir o percurso legal do sistema eleitoral brasileiro.
Emergiu uma nova elite dirigente que não tem vergonha de mostrar a
sua visão de mundo, muito provavelmente no formato de um misto de libera-
lismo tropical e de um misto de atraso com conservadorismo5 e populismo6.

5
Estes conceitos na experiência brasileira, com um passado colonialista, patrimonialista, autoritário e escravocrata, assumem um
sentido completamente diferente dos países centrais. No Brasil, a extrema-direita (o que chamo de atraso) e o neoconservadoris-
mo emulam várias das características do pensamento conservador, mas sempre de uma maneira farsesca, as vezes quase cômica.
Dos movimentos da Europa Oriental reproduzem a luta contra o comunismo e o antagonismo às minorias, mas num país que
nunca teve um governo comunista, ou mesmo esteve sob a ameaça efetiva de um levante “vermelho”. Do debate norte-americano,
com meio século de atraso, ressuscitam o discurso sobre a necessidade de combater os “ativismos”, que teriam hegemonizado
as universidades por meio do “marxismo cultural” e seriam responsáveis pela degradação dos valores da “verdadeira” Nação
brasileira. Por fim, mas com o sinal contrário em relação aos partidos da Europa Ocidental, seu nacionalismo populista é neo-
liberal e cosmopolita, pretendendo preterir as indústrias e o emprego nacional pelo regresso as relações econômicas norte-sul,
num papel de clara subserviência aos interesses dos EUA. Portanto, nem todo conservador pertence e se identifica com a extre-
ma-direita, ainda que, em função da atual conjuntura política e econômica, tenham formado um grande bloco que veio a eleger
esse projeto. Na minha visão, a manifestação do atraso brasileiro, ultraliberal, neopentecostal e militarista, sequer é compatível
com o pensamento conservador. Ver CASTELLO-BRANCO, José Tomaz. Conservadorismo. In: João Cardoso Rosas e Ana Rita
Ferreira (Orgs.). Ideologias políticas contemporâneas. Coimbra: Almedina, 2016. Também LÖWY, Michael. Conservadorismo e
extrema-direita na Europa e no Brasil. Serv. Soc. Soc. 2015, nº.124, pp.652-664. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/sssoc/
n124/0101-6628-sssoc-124-0652.pdf. Acesso em 20 set. 2019.
6
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376
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

A burocracia de origem militar retornou ao quadro central do poder políti-


co como uma força auxiliar do presidente nesse novo arranjo institucional,
já que estão em última instância subordinados a ele. Mas, esse processo de
politização dos militares não é isento de oposições entre os generais. Espe-
cialmente quando se considera os que estão na ativa e os que, já reforma-
dos, foram participar da gestão federal. E sem contar o distanciamento entre
altos oficiais e parte da tropa, especialmente os de menor patente. Parcela
significativa do mercado deu um ar de futuro ao velho liberalismo. E, numa
reviravolta daquelas, reapareceram os temas morais como mobilizadores das
classes médias urbanas. Então, mais que retrocessos, eu diria que este novo
ciclo político, e de disputas, está começando.
3.1. O passado: o presidencialismo de coalizão
Após a presença de Collor de Melo (PRN, 1990-1992 – impeachment
com a assunção de Itamar Franco – PMDB – até 1994), houve a alternância
dos dois partidos socialdemocratas (PSDB7, 1995-2002, e PT8, 2003-2016
com dois anos de governo do MDB por conta do processo de impeachment de
Dilma Rousseff), cada qual com nuances mais próximas de posições denomi-
nadas de centro-direita ou de centro-esquerda.
Ao mesmo tempo, nesse período, por meio (i) da cooptação sistemá-
tica de outros grupamentos políticos que estavam mais que disponíveis no
mercado parlamentar e (ii) da captura organizada do Estado por interesses
vários, consolidou-se o que se chamou de “presidencialismo de coalizão”.
Para garantir a governança, a governabilidade adotou um modelo diferente.
A expressão, cunhada por Sergio Abranches, significa que: “O Brasil é o úni-

7
O Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) surgiu em 1987 como uma opção de centro-esquerda, e, de acor-
do com seus fundadores a agremiação nasceu alinhada com a ideologia socialdemocrata. Contudo, desde sua origem
o partido apresentou duas diferenças fundamentais em relação aos clássicos partidos socialdemocratas europeus: (a)
não tinha muitos vínculos com movimentos trabalhistas e (b) defendia um tipo de “liberalismo” de mercado. No
decorrer de sua história, o partido muda da centroesquerda para a centrodireita demonstrando mais claramente sua
verdadeira inclinação ideológica, fato que pode ser observado no posicionamento de sua bancada, no autoposiciona-
mento e nas políticas que foram implementadas nos anos em que esteve à frente do executivo federal. A análise dos
documentos do PSDB revela que a mudança do partido não foi de algo pragmático. O partido já apresentava simpatia
às políticas prómercado em seus manifestos desde sua fundação.
8
A minha tese é que o Partido dos Trabalhadores (PT) cumpriu no Brasil de forma concentrada todas as três fases
que caracterizaram os clássicos partidos socialdemocratas na Europa: (a) uma primeira apoiada nas lutas operárias,
com forte conteúdo ideológico socialista e de oposição extraparlamentar privilegiando a ação direta, especialmente
a grevista. Essa fase foi da fundação em 1980 até 1989. Uma segunda fase (b) é a da consolidação como partido
institucional, sendo a principal força de oposição dentro do parlamento e com grande peso de deputados e de profis-
sionais políticos. Ela ocorre durante uma década de fraca mobilização social, durante os dois governos FHC, entre
1990 e 2002. A terceira é (c) da ascensão ao poder, indo de 2002 até hoje, com a descaracterização do ideário “socia-
lista” fundador em prol de um pragmatismo que levou a alianças com velhos adversários e a adoção de métodos de
corrupção, além de uma política eleitoralmente bem sucedida de assistência social junto com uma aliança estratégica
com o setor financeiro e o agronegócio.

377
Organizadora : Edelamare Melo

co país que, além de combinar a proporcionalidade, o multipartidarismo e o


presidencialismo imperial, organiza o Executivo com base em grandes coali-
zões. A esse traço peculiar da institucionalidade concreta brasileira chamarei,
à falta de melhor nome, presidencialismo de coalizão”9.
Esta nova classificação do presidencialismo brasileiro adveio de seu
modo sui generis, pois, ao contrário do presidencialismo clássico norte-ame-
ricano, foi praticado no Brasil um sistema com características próprias, que
tinha como base o critério peculiar de o Poder Executivo buscar apoio do
Legislativo para obter a realização de suas iniciativas. Após a promulgação
da Constituição de 1988, o chamado “presidencialismo de coalizão” passou
a ser amplamente empregado no cenário político brasileiro. Possuía o Poder
Executivo prerrogativas de iniciativa legislativa, como as medidas provisó-
rias e os pedidos de urgência, que sujeitavam os parlamentares a analisar e
votar prioritariamente os projetos enviados por este poder. Mas, mesmo com
esses mecanismos, dificilmente o governo conseguiu aprovar leis sem que
desfrutasse de maioria expressiva entre os parlamentares.
Isso fez com que acontecesse um esfarelamento das forças políticas
nacionais. Os partidos desenvolveram um combate permanente por espaços,
devorando-se entre eles por questões menores da política, sublinhando suas
diferenças e intensificando o discurso demagógico para alcançar um apoio
popular superficial e volátil, por meio de atos e discursos cada vez mais agu-
dos acerca de qualquer tema com o apoio do marketing. Ao mesmo tempo, a
disputa por verbas públicas criou uma fragmentação partidária e a criação de
partidos políticos dos mais variados tipos. Nenhum dos novos partidos trouxe
algo de novo à política na forma de uma proposta ideológica ou de um projeto
nacional. Desta pobreza surgiu apenas mais miséria.
O “presidencialismo de coalizão” deu origem a uma “parlamentariza-
ção” do sistema presidencial nacional. A própria Constituição de 1988 já tra-
zia esta estrutura de governabilidade em sua essência. A grande influência do
Poder Legislativo na gerência do Estado cresceu no período. O Poder Execu-
tivo, para poder realizar sua função de administrar o Estado, foi buscar apoio
irrestrito dos parlamentares. Como forma de obter a coalizão com os partidos,
utilizou-se da distribuição de cargos da Administração como ministérios, pre-
sidências de empresas estatais, além das emendas de orçamento da União,
onde eram passados recursos às entidades que os parlamentares indicavam.

9
ABRANCHES, Sérgio Henrique. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados Revista de
Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, 1988, p. 5-34. Aqui, p. 21. Ver ECO, Umberto. Construir o inimigo e
outros escritos ocasionais. Lisboa: Gradiva

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Portanto, o florescimento do presidencialismo de coalizão no cenário


político nacional foi o palco ideal para o desvirtuamento de uma das bases
fundantes do sistema presidencial, isto é, o “princípio da separação dos po-
deres”. O “presidencialismo de coalizão”, viga mestra da política nacional no
período pós-Constituição de 1988, acabou tendo como elementos fundamen-
tais o “megapluripartidarismo” e a “infidelidade partidária”.
No ciclo inaugural da redemocratização brasileira (entre 1984-1988), o Brasil
passou de poucos partidos políticos registrados na Justiça Eleitoral para 35 partidos
políticos em 2017 (dos quais, 22 partidos nacionais com representação no Congresso
Nacional no ano de 2018), o que trouxe inúmeras críticas a sua representatividade e
sua funcionalidade. Isso se ampliou com os frequentes casos de troca-troca de parti-
dos, a existência das “legendas de aluguel”, o não seguimento de ideologias partidá-
rias, a fragmentação do quadro partidário, dentre outros casos, fatos que demonstra-
ram a fragilidade e a baixa credibilidade dos partidos políticos na sociedade brasileira.
Do ponto de vista da gestão do poder e da relação entre Executivo e
Legislativo, a governabilidade foi muito difícil, pois para o Executivo conse-
guir o apoio político de partidos e submeter o parlamento às suas frequentes
determinações, necessitava realizar uma coalizão de governo, que se tornava
cada vez mais complexa e onerosa. Para que a coalizão ocorresse, na maioria
das vezes, o chefe do Executivo sucumbia aos partidos, dando a estes, em
troca de apoio político, cargos no Executivo. Quando não se conseguia por
esses meios, utilizava-se o suborno.
Nessa quadra, partidos (p. ex., o MDB – mais antigo e o PSD – mais re-
cente) funcionaram como fiel da balança tanto no Congresso como nos principais
estados da federação. O instrumento principal dessa coalização foi o compartilha-
mento do poder político por meio da divisão do governo entre cúmplices, o que
desencadeou mais um ciclo de crise face à corrupção (no modelo brasileiro).
De fato, a corrupção, especialmente a corrupção pública, sempre existiu,
permanece nos dias atuais, e continuará existindo, em qualquer sociedade e tipo
de governo. Onde houver a combinação entre ser humano-poder-dinheiro, sem
controle estarão presentes os elementos necessários para a corrupção, exatamen-
te na interface entre as esferas pública e privada e no desequilíbrio entre tais
elementos. Certo também é que seu sentido se altera com o passar do tempo. Há
distintos contextos da corrupção pública. Em momentos, ela foi justificada pela
adoção de um projeto político que necessitava de recursos para sua concretiza-
ção. O tipo é (i) a corrupção para o poder. Em outro momento, (ii) a justificativa
era apenas o enriquecimento pessoal, o rent seeking, o crescimento dos recursos
de grupos ou corporações. O terceiro contexto era (iii) o da corrupção das prio-

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Organizadora : Edelamare Melo

ridades. Neste caso, muito comum no Brasil, os recursos públicos foram gastos,
com ou sem corrupção, privilegiando opções da máquina estatal que favoreciam
apenas um grupo muito restrito, e não toda a população, ou as parcelas da popu-
lação necessitadas das políticas públicas, como os mais empobrecidos.
De todo modo, em alguns períodos, estes contextos estavam, cada um
a seu modo, confundidos e unidos, ou separados e articulados, mas presentes
no cotidiano das relações público-privadas. Havia, como há, ilhas onde a
corrupção não estava (está) tão presente de uma forma sistêmica. Mas, no
oceano da vida brasileira, havia (como há) sempre continentes inteiros em
que a corrupção era ou é uma marca quase que indelével.
Nos últimos dois anos (2016-2018) aumentou a crise da política brasilei-
ra (impeachment em 2016) com (i) um executivo federal, com Michel Temer
(MDB) Presidente, sem quase nenhuma consistência política em termos nacio-
nais, mais empenhado em tentar escapar das várias denúncias, e (ii) a prisão de
Lula (o personagem mais relevante na política brasileira deste período que se
encerra – gostando-se ou não). Este quadro acirrou de forma muito polarizada a
percepção da população acerca da realidade, o que permitiu o surgimento de um
novo ciclo no modelo político brasileiro: o presidencialismo de colisão!
3.2. O presente: PRESIDENCIALISMO DE COLISÃO
O novo modelo político brasileiro, que denomino de presidencialismo
de colisão, coloca no centro das relações políticas a figura do “inimigo”. O
cenário é de beligerância, conflito e guerra permanente.
Quanto mais complexos são os desafios da gestão de um país, quanto
mais a sua questão social e econômica é complexa, quanto mais a sua de-
mocracia é instável, mais cuidado com o equilíbrio das forças e das relações
institucionais e nacionais é necessário para o governante. Não dá para colocar
tocar o terror do conflito todos os dias e em todas as direções.
Bolsonaro, todavia, foi eleito numa onda de polarização, desencanto
com a política e com os políticos, medo e tensão que se reproduziu no núcleo
de seu governo e no modo de fazer política. Não é mais prioridade a coalizão.
A colisão é a forma de enfrentar “tudo que está aí”.
Na lógica do atual Presidente do Brasil, se o modelo de coalizão deu
errado no passado, a única solução do presente é a colisão.
3.2.1. O inimigo como o centro da política
Há um inimigo em cada esquina. O perigo ronda todos o tempo todo.
É tempo de, sob a democracia brasileira, compreender que há uma lógica de

380
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

disputa permanente. Lá na sua origem, Bolsonaro desenvolveu esta percep-


ção do mundo. Reduzido por muitos anos ao limbo do parlamento, só conse-
guiu alguma proeminência quando participou de conflitos.
Da mesma forma, parcelas significativas das forças políticas, a maio-
ria subordinada à expressão “oposição”, passaram a adotar esta tática de guerra
permanente contra quem não pensasse da mesma forma que os seus cânones. Em
termos de partidos, o PT se transformou nesta máquina infernal de lutas internas
para conduzir outras lutas externas. E isto nasceu sob a égide do “nós contra eles”!
Piorou muito quando Lula saiu de São Paulo para Curitiba, sob a vara da Lava
Jato. Em termos de personagens, exemplo consistente da verborragia militante e
conflitante é Ciro Gomes, terceiro colocado nas últimas eleições presidenciais de
2018, que transformou expressões cabeludas em sua expressão da verdade.
O inimigo se transformou no novo polo central da política brasileira.
Não que o fenômeno seja apenas brasileiro. O termo “inimigo” não carece de
precisão. Ele necessita mais é de contextualização.
Os romanos o interpretavam como o “inimigo pessoal”. A hostilidade era contra
a pessoa (o indivíduo) na política. No período da inquisição, onde a ideia de inimigo
era motivada por uma visão de mundo em que o religioso e o estatal se confundiam
com frequência, a seletividade do poder político era, sobremaneira, punitivo. Assim,
os inimigos eram o estranho, o autor de delitos graves e o dissidente político. Vale res-
saltar, que nesta época não era suficiente eliminá-los, era preciso extinguir a existência
e demonstrar, como sempre, a magnitude do poder soberano10.
Na modernidade, o Estado, como guardião da sociedade, deveria manter o
controle por meio da vigilância, por meio de organização econômica e militar em
torno de estruturas colonizadoras com a consequente privação das vítimas como
pretexto para vigiar, disciplinar e neutralizar os “desfuncionados”. No Século
XX, com o crescimento das experiências totalitárias, o inimigo transformou-se
em uma estratégia de afirmação negativa, com a eliminação de milhões de seres
humanos como consequência da “inimigação” de grupos e povos.
No século XXI, a construção do inimigo político por meio do autorita-
rismo tornou-se “cool”. O controle da política passou a funcionar com base
em um autocontrole oferecido aos controladores. A liberdade deixou de ser
privada e passou a ter uma redução significativa por ação dos próprios cida-
dãos, que a entregou para as redes sociais e para o controle dos algoritmos.
Para a política, a metamorfose desses tempos determinou a valorização do
inimigo de uma outra forma.

10
Ver ECO, Umberto. Construir o inimigo e outros escritos ocasionais. Lisboa: Gradiva, 2011, p. 11-36.

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Organizadora : Edelamare Melo

Nesses tempos de autoverdade o inimigo é qualquer que não pense da


mesma forma. Ou que não seja aquilo que chamamos de nossa autoverdade.
E que nos seja diferente, por qualquer razão que se estabeleça como distinta e
necessária para nos colocar na condição de antagônicos, que nos faz desuma-
nos pela razão de desejarmos uma outra humanidade. Reduzimos o diálogo
político ao tiroteio virtual quando não real, potencializado pelas redes (anti)
sociais e mitigado pelo distanciamento da política com a sua capacidade de
estabelecer soluções mínimas para a maior parte das populações.
Bolsonaro foi o personagem para os tempos políticos brasileiros, como
Trump o foi para os EUA, ou López Obrador para o México, para ficarmos
apenas neste grande continente. São personagens distintos mas iguais na es-
sência de suas relações políticas: há um permanente inimigo!
3.2.2. O governo da porteira para fora: o inimigo
Houve um tempo do bate e assopra. Era assim a política. Agora é diferen-
te. Apenas se bate. Sem distinção quando se trata das instituições. Sejam elas
estatais ou sociais, a moda presente nas relações políticas é bater primeiro para
bater depois. Pouco juízo harmônico resta e o estremecimento ronda a tudo e a
todos. Basta pensar no permanente cabo de guerra entre o Executivo atual e o
Congresso Nacional. Ou entre o Judiciário e os demais poderes, que deixou de
ser “moderador” para se converter em um gerador de conflitos. O equívoco mais
frequente deste estilo é imaginar que o poder decorre exclusivamente dos resul-
tados eleitorais. Uma vez vitorioso tudo se pode fazer em nome de um movimen-
to de um grupo em ação política nacional. Ledo engano. Resultado: incoerências,
instabilidades e imprevisibilidades. Basta olhar para a economia e seus índices
mais nervosos, como o dólar e a bolsa de valores, que se pode constatar o óbvio.
Da mesma forma, os atores governamentais adotaram o estilo bate-bate
estaca com a maioria dos atores sociais e políticos. Um exemplo foi o bode ex-
piatório das universidades públicas. Muitas vezes o clima piora e o bate-cabeça
governamental explicita decisões ou indecisões de métodos para atingir os mes-
mos objetivos. Daí para uma mobilização nas ruas pode acender o fogo de uma
oposição que ainda está anestesiada. A Venezuela, os países árabes, o prefeito de
Nova York já estiveram na linha de tiro. O carnaval e suas danações, os temas da
cintura para baixo, o revisionismo histórico (não houve ditadura cívico-militar, a
escravidão ajudou muito a todos, especialmente os escravos), o globalismo e “o”
Paulo Freire também já pautaram o modo do fazer político do atual governo. A
questão, dada a superficialidade dos embates e sua pouca consistência social, é
que resta evidenciado que as cortinas de fumaça são apenas cortinas.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

3.2.3. O governo da porteira para dentro: o inimigo


Estruturado para dar errado, o governo acabou por se transformar em ilhas dis-
tanciadas, desarticuladas e em permanente disputa. Jair Bolsonaro tem dificuldades
para trabalhar com equipes: desconfiança destrutiva, equipe com poucos nomes com
reconhecida qualificação para os complexos desafios brasileiros, família do “barulho”
na política (os filhos desempenhando um papel incomum na democracia brasileira),
aliados determinados demais, submissão ao humor das redes sociais, áreas pirotécni-
cas (como Relações Exteriores, Educação e Direitos Humanos) e pouca capacidade de
articulação com os políticos tradicionais (o que muitos veem como uma vantagem),
a não ser quando eles se adequam aos padrões preferidos pelo ethos palaciano. Nem
os aliados do seu partido (o PSL) aguentam tanta tensão. O governo, para complicar,
prefere uma comunicação horizontal com a população, sem muitos filtros, em especial
pelo Twitter. Foi eleito com um conjunto de propostas desarticuladas. E, no governo,
Bolsonaro não conseguiu ainda levar adiante projetos nacionais, exceto a proposta de
reforma da previdência – o que é pouco ante ao grave quadro nacional.
A dependência de atores folclóricos como Olavo de Carvalho, um “guia”
de parcela inusitada de atores políticos, o modelo de lacração presente em quase
todas as declarações, posteriormente mediadas pelo porta-voz, a vontade perma-
nente do combate, e suas limitações mais instintivas fizeram do capitão um refém
do seu próprio personagem no exercício do mandato presidencial. Jair tenta ser o
Messias, seu segundo nome, com seguidores messiânicos tão imbuídos de con-
frontos quanto de irracionalidade. Fortalece sua militância mas afasta os demais!
Há ministérios em permanente guerra interna. Há grupo palacianos em total desa-
cordo com os rumos e os métodos. Onde está localizada uma maior quantidade de racio-
nalidade palaciana – a burocracia de origem militar – é alvo constante de uma artilharia
conhecida como “fogo amigo” e adotou uma prática de silêncio eloquente. As demissões
de cargos e de colaboradores são tão rápidas que os ascensoristas das repartições pú-
blicas estão sem saber bem como cumprimentar as autoridades (em Brasília, quando a
autoridade se transforma em ex-autoridade, há um código específico de tratamento, que
mistura desdém com piedade por parte dos ascensoristas). Confusão e colisão.
4. A política da colisão
A política da colisão é a antipolítica. Ao invés de cidadãos ou súditos
o que temos é uma torcida desorganizada diante do poder. Presente nas redes
virtuais, ela possui um único capitão quando se olha das arquibancadas: Jair
Messias Bolsonaro! Ou a favor ou contra. Os jogadores mudam conforme o
resultado do tiroteio, quando se olha a partir de dentro do campo. Um dia o
presidente da Câmara dos Deputados é amigo e, no outro, é inimigo. Num

383
Organizadora : Edelamare Melo

dia o vice-presidente é um ganho para a gestão e no outro é o pior traidor. As


vezes todas as possibilidades durante o mesmo dia.
As instituições são desprezadas neste modelo. Elas são também inimigas.
O conhecimento e a ciência são preteridas pela opinião do social influencer do
Twitter e pela participação da tiazinha do WhatsApp. Isto sem contar com os
milhões de perfis falsos que são acionados a serviço do “quanto pior melhor”.
Isto se alastra em todos os sentidos e a partir de amplos campos sociais
e políticos. Não dá para dizer que é algo inédito na história da política. O que
mudou foi a velocidade, pois mudou o tempo. Vivemos uma metamorfose e
não sabemos bem onde vamos parar. O Brasil também. Os países vizinhos
nos acompanham com perplexidade, seja pelo nosso tamanho, seja por nossa
histórica relação de codependência, seja ainda por que não nos cansamos de
os espantar com as posições e situações mais inusitadas possíveis. Mas por
aqui tais relações contaminaram os mais variados grupos. E ficamos girando
em torno dos “mitos” políticos recentes (Lula e Bolsonaro) como se a impor-
tância da política dependesse apenas dos personagens e não dos processos.
Na vida real, em que se tem que lutar para pagar as contas, produzir,
criar os filhos e, em suma, viver, as questões fundamentais não mudaram.
Há graves problemas no Brasil. Os nossos conflitos são mais profundos que
apenas a mudança ministerial. Há ainda uma ordem, mas há cada vez mais,
de forma simultânea e arriscada, caos e violência.
A tradição brasileira do Estado é de não lidar de forma democrática com
os conflitos. Não foi assim no período colonial, nem no Império, muito menos
na República. Em decorrência desse quadro é que podemos compreender a
presença quase que permanente dos militares na política nacional, desde o
início da República, como força nacional, repressora e aglutinadora.
A desigualdade entre o institucional e o processo sócio-político, os vários
interesses sociais presentes a partir dos mais variados e diversos atores, deram
uma acelerada na fragmentação nacional nos últimos 20 anos. Perdemos o rumo
e o prumo, mas ao mesmo tempo estamos em franco processo de desagregação
nacional. Quando o governo central é a fonte principal da tempestade e o barco
do país tem furos por todos os lados, navegar sempre é um risco extremo. Na
altura desta análise, há uma conversa frequente entre formadores de opinião que
o governo Bolsonaro pode não chegar ao fim se mantiver esta velocidade veloz
rumo ao paredão da política. E estamos ainda no primeiro ano do novo governo.
Há diversos cenários possíveis. O som e a fúria serão sempre a base desses
cenários. Não me parece que tenhamos condição de exercer, como país, como
governo, como classe política, como elite, como população e como brasileiros

384
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

o exercício da parcimônia, do consenso e do fundamental diálogo político entre


diferentes. Receio que o diálogo esteja difícil até entre os iguais por estas bandas.
Tem famílias que não se falam, por razões políticas, desde 2016.
De toda sorte, a aposta de Jair Bolsonaro é por um populismo de comba-
te (outro nome para presidencialismo de colisão). A mobilização das emoções
é seu núcleo, mesmo que a principal delas esteja sob a sina da fúria, exposta
diuturnamente nas redes sociais e da disputa política insana de todos contra
todos. A paixão é a identificação afetiva de uma população contra as elites,
seus costumes (“depravados”), seus padrões (“insensíveis”) e suas palavras
(“superficiais”). As lealdades tradicionais estão se rompendo no Brasil e, na
hora do cada um por si, o ódio pode ser tão transformador quanto perigoso.
O populismo de combate necessita apenas do inimigo e não de um con-
teúdo ideológico. Veste qualquer roupa pois vem das sombras da vida políti-
ca nacional. Ao agrupar uma série de demandas heterogêneas dirigindo-as a
um inimigo comum e mutável, apesar de ser uma operação eminentemente
formal, seu sentido é o contrário da forma. É um movimento, insurgência e
espírito contra os marcos constitucionais e legais até aqui conquistados. Não
é apenas imprudência. É uma ação em movimento contra a democracia brasi-
leira, que de tão frágil, como em qualquer país com o nosso indigente quadro
social, varia de fins porque desconhece ou desrespeita os meios.
Há aqui uma característica social que casa perfeitamente com o presiden-
cialismo de colisão: a irresponsabilidade política. O povo deseja o “mito” po-
lítico pois este o desonera da responsabilidade política. A crise econômica, a
disfunção do sistema, a violência, o mal, a corrupção e todos os demais males
que assolam o país são de responsabilidade do “políticos”. A comunidade políti-
ca, vista do fundo do abismo, é sempre a culpada e deve apanhar mais que tudo
e todos pois é corrupta, estéril e improdutiva. Os intelectuais e os profissionais
transformaram, esta nação inzoneira, em um projeto “socialista”, seja lá o que
isto significa. Basta o rótulo. Há um excesso de teoria conspiratória no ar que tem
sempre um misto de narcisismo e desencontro lógico. No Brasil, os “Protocolos
dos Sábios de Sião”11 acabam sempre no colo de Dom Sebastião12.

11
A obra Os Protocolos dos Sábios de Sião é a publicação anti-semita mais famosa e divulgada da época contempo-
rânea. Suas mentiras sobre os judeus, embora repetidamente desmentidas por estudiosos e autoridades, continuam a
circular hoje, principalmente na Internet. Os indivíduos e grupos que fazem uso dos Protocolos estão unidos por um
mesmo propósito: disseminar o ódio contra os judeus.
12
D. Sebastião (1554-1578) transformou-se num mito após o seu desaparecimento na batalha de Alcácer Quibir, no norte
de África. A sua morte abriu as portas à crise dinástica que vai colocar os reis de Espanha no trono português. À sua volta
nasceu o mito do “Sebastianismo”, a esperança de que regressaria um dia, numa manhã de nevoeiro, para salvar o país
de todos os seus problemas. No Brasil, este messianismo assumiu ares diversos e ainda hoje é parte da cultura popular.

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Organizadora : Edelamare Melo

5. Política no Século XXI – do fundo do navio para a luta social


Durante séculos, os movimentos políticos dos indígenas, negros, quilombolas
e religiosos de matriz africana, dentre outros, foram sempre excluídos dos processos
centrais das relações do e no poder político. Em quase todos os instantes da história
brasileira estiveram sob a égide do inimigo. Muito mais no campo penal que na esfera
da política13, a construção do inimigo deu-se como processo relacionado com o poder
punitivo do Estado. No caso desses grupos sociais, especialmente quando condicio-
nados às figuras de classes, este modelo do campo penal foi transferido, quase que
totalmente, para o campo da política reproduzindo o modo violento de contenção de
interesses de poucos sobre a maioria, também conhecida como os “outros”. Tanto
a esquerda brasileira como as demais correntes do pensamento político tenderam a
considerar mais como objeto que como sujeito os “suspeitos” de sempre.
A tendência mais progressista sempre considerou que a pauta racial
no Brasil, por exemplo, era uma pauta fragmentária ou identitária. Contudo,
grande parte desses grupos fragmentários (como os negros ou as mulheres), a
despeito de sua majoritariedade numérica na sociedade brasileira, são menos
representados em espaços de poder na hierarquia social por conta exatamente
de um modelo de dominação em que eles, simbolicamente, são desvestidos de
sua relevância dentro de um espectro social construído de forma a excluí-los
das pautas gerais. Ora, ou as “pautas gerais” partem desses grupos, ou ape-
nas transformamos o que é geral em fragmentário. E isto é apenas mais uma
forma de captura do poder e de sua representação. O recorte étnico-racial ou
de gênero, ainda nesta reflexão sobre a política a partir de um espaço social,
constituem-se como disputa política e, simultaneamente, disputa simbólica.
Não obstante este fato, se vamos mesmo construir a apropriação das relações de
poder e de luta, de representação fatual e simbólica, temos que mudar o sentido do poder.
Se adotarmos apenas o realismo político e uma imagem de cima para baixo do mundo,
vamos mascarar os movimentos reais do desenvolvimento social mas também dos seres
humanos. Aliás, se começamos pensando apenas sobre o “poder”, tal qual o conhecemos,
vamos nos encerrar inevitavelmente no paradoxo do poder nossas relações humanas. Daí
o desafio de responder ao que está além da política e das relações de poder.
O que está além das relações de poder é, dentro dos marcos históricos, a
liberdade. E uma política só pode ser libertadora se ela for capaz, também, de
nos libertar da identidade14. A identidade, de todos nós e também a dos indíge-
nas, negros, quilombolas e religiosos de matriz africana, entre tantos outros, é

13
Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. O inimigo, no
campo penal, é uma construção tendencialmente estrutural dos discursos legitimadores do poder punitivo.
14
Cf. RIBEIRO, Renato Janine. A sociedade contra o social. O alto custo da vida pública no Brasil (Ensaios). São
Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 43.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

também uma identidade da dor. E a dor nos aprisiona tanto quanto os grilhões.
Ela impede que enfrentemos a liberdade e nos expressemos em uma linguagem
que possamos ter a adesão e a presença de outros grupos às nossas demandas,
que devem ser delas, não pela imposição, mas pelo convencimento democráti-
co, antes que resultado apenas de uma força. O processo só pode ser centrífugo
no campo da política se incluirmos aqueles que tanto nos excluíram.
Há uma multidão e uma multiplicidade de temas a construir. Não apenas os
nossos. Não apenas os deles. Mas isto tem que partir, metodologicamente, de nos-
sas proposições. Na história temos casos assim, como nas lutas do Congresso Na-
cional Africano (CNA), desde o século passado na África do Sul, que de uma luta
por identidade se transformou em um partido político de massas que, apesar dos
seus erros históricos, representou avanços históricos naquele país e no mundo.
O debate metodológico e estratégico, neste campo e no atual estágio, pres-
supõe uma consideração acerca de dois projetos táticos: O “consenso sobreposto”,
de origem rawlsiano, e a “interseccionalidade”, com origem no neofeminismo.
O “consenso sobreposto”, que tem a função de tornar a noção de sociedade bem
ordenada mais realista e condizente, está relacionado com o ponto de interseção no
qual diferentes grupos sociais compreendem ter algo em “comum” no que se refere às
diferentes agendas políticas. Cuida dos fatos históricos e sociais apresentados nas so-
ciedades democráticas pelo pluralismo razoável (diversidade de opiniões dos cidadãos
com relação às escolhas políticas, religiosas e morais). Independente dessa diversida-
de, a concepção política, que tem por base os elementos constitucionais essenciais,
pode ser possível, se for atingido um ponto de vista comum entre todos. É condição
necessária à consolidação dos princípios de justiça que fundariam um “novo” con-
trato social. O neocontratualismo rawlsiano pressupõe um ponto de tangência no que
se refere aos diferentes interesses e agendas políticas dos grupos sociais e, ou, ainda,
movimentos sociais organizados politicamente15.
Noutro sentido, o conceito de “interseccionalidade” elaborado por Kimber-
le Crenshaw, no início dos anos de 199016, cuja preocupação é entrelaçar distintas
formas de diferenciações sociais (e de desigualdades). Nesse contexto mais que
uma “agência interseccional” na política, temos que construir, como rumo e fator
de coesão, uma “agenda interseccional” que possa servir de base e de horizonte.
Assim, temas como “raça”, gênero e classe não serão vistos como facetas que
existem em isolamento umas das outras, pois o caráter de articulação constituirá
as próprias categorias. Elas existiriam em relações íntimas, recíprocas e contra-

15
Cf. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2016
16
CRENSHAW, Kimberle. Documento para o encontro de especialistas de em aspectos de discriminação racial
baseado no gênero. In: Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 1, n. 1, p. 171-188, maio 2002. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/ref/v10n1/11636.pdf. Acesso em: 20 set. 2019.

387
Organizadora : Edelamare Melo

ditórias, mas dentro do mesmo panorama de transformação social e política que


tanto exigimos como parte de nosso futuro. E da política.
6. Conclusão
Navegar dentro de um barco em que somos apenas escravos não nos con-
duz ao caminho da liberdade. Nesses primeiros 11 meses de governo Bolsonaro,
com seu presidencialismo de colisão, talvez seja uma forma de instituir outra ma-
triz política. Ela irá mudando aos poucos para se constituir numa outra forma de
fazer a política no Brasil. Há uma estratégia deliberada. Diante das táticas infames
dos que estão nos governos, quase todos, resta-nos a estratégia da diginidade.
Caberá agora enfrentar, com diálogo e esperança, a travessia na imen-
sidão do oceano ou no deserto de ideias, projetos e políticas que se devoram.
Nossos companheiros de jornada já estão martirizados pelos escombros do
país que não fomos e não seremos. Somos nós mesmos que teremos que assu-
mir o timão e aprender que navegar é preciso, viver não é preciso.

388
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Boca Preta

Milsoul Santos

Boca Preta. Mais um na dividida. Marcado na entrada, marcado na saída.


Cercado. O campo minado. O cara mal nasceu e já tem que tá preparado para
tudo. Pobre. Endividado. Desde sempre coagido a sentir-se derrotado. Guri
com face de adulto, mais um maloqueiro criado pelo mundo. Inocente criança
esperança. Futuro do país. Boleiro, ponta de lança. Dentro de casa, tudo o
contrariava; seu pai só bebia; sua mãe só fumava. Neste caso, lição de moral
é impossível. E Boca Preta refletia:
- Não faça o que eu faço, é? Faça o que digo?
Na ideia errada, deu de fumar na lata e ficava pior quando a onda passava. Dependente.
Nem foi matriculado na escola do mundão, onde, quem tá certo, tá errado.
Aos 15 anos, a dele era meter.
- Sexo é na chapa!
Hum; vai se foder!
DST, sua marca juvenil. Cancro Mole, HPV, Gonorreia; aí, já viu!
- Vou dar um tempo. Preciso me encontrar. Tô sentindo um vazio. Algo
quer me sufocar. Tá por fora a vida que tô levando.
E sua mente, então, o interrompe questionando:
Cê quer o quê?
Parou de chapação, mas, e a vida; e os corres; cadê resolução?
- Anos passaram, já tenho 23. Que porra é essa?
Onde foi que eu errei?
- Optou pelo caminho mais duro. Deu de correr atrás na fase de adulto. Emprego
não rola, sem experiência e pra não dizer Preto, sem “boa aparência”.
-Tô perdido. Tenho que sair disso. Ser um cara decente, um cara de
compromisso.
- Nunca é tarde, mas cê ta atrasado, e se ligue; a corda ainda só quebra do lado
mais afro.
- Basta!
Não vai ficar de graça, vou arranjar uma quadrada e fazer nome na
praça.
Dirija o carro. Você é meu refém. Se procurar gracinha, play -boi, te
corto em cem.

391
Organizadora : Edelamare Melo

Cash, é dinheiro no caixa eletrônico. E vamos logo com a senha, qu eu


já tô no pânico.
Retire a grana. Agora é sair fora. Vou poupar a sua vida e curtir até umas
horas. Aqui tá bom, a pista tá escura.
Foi só ele descer e surgiu uma viatura.
- Mãos ao alto!
Bacorejaram o cara, acharam o pacote com a grana e a quadrada.
-1000, 2000, 2500, 3500, a gente racha as notas e dá fim ao elemento.
Feito um gato, Boca Preta deu um pinote, se escondeu no mato, escapando
por muita sorte. Dormiu na mata. Voltou todo machucado e ficou dentro de
casa, uns meses, assustado. Depois, determinado e com toda a disposição,
abandonou as drogas e deu sequência na função. Botou a cara devagar, voltou
a estudar, descolou uns bicos, começou a trabalhar, concluiu o segundo grau,
passou no vestibular. Seu pai morreu e sua mãe parou de fumar.
Nêgo raçudo. Duro de matar. Foi preciso 18 anos para fazer o jogo virar.
Hoje, Boca Preta é um grande espelho lá na comunidade e ganha a vida como
professor de história numa Universidade.
Boca Preta venceu na dividida. Marcado na entrada, marcado na saída.
Viva!!!

392
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Das trevas à luz:


entre a proibição e a crítica

Michel Gherman1
Rosiane Rodrigues de Almeida2
Marcos Fábio Rezende Correia3

Sobre o relançamento do livro “Orixás, caboclos e guias: deuses ou


demônios?” de Edir Macedo
Muitas pessoas estão hoje nas mãos dos espíritos demoníacos
devido a impaciência. Deixaram de esperar em Deus a solução
para seus problemas e acabaram sendo dominados por exus, ca-
boclos, pretos-velhos, etc. [...] É aí que entra a Umbanda, Quim-
banda, Candomblé e as religiões e práticas espíritas de um modo
geral, que são os principais canais de atuação dos demônios,
principalmente em nossa pátria. (MACEDO, 2013, p. 42).

A epígrafe que serve de abertura a este texto é um excerto da obra de autoria de


Edir Macedo, “Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?”, lançado em 1987 e re-
lançado em 2005. Ao tratar do referido livro, o premiado jornalista Aydano André Motta,
diz que este “tratado de terror discriminatório serviu de alicerce a maior igreja neopen-
tecostal do Brasil, atualmente espalhada por todos os continentes, que inspira seus ritos
justamente nos protocolos comuns a terreiros da fé afro-brasileira”. A reportagem, vei-
culada no site Colabora em 2017, informa que todas as 157 páginas do livro do chefe da
Igreja Universal do Reino de Deus se constituem como um libelo racista e difamatório às
tradições afro-brasileiras, uma vez que as afirmações feitas por Edir Macedo baseiam-se
em pretensas referências científicas (“Os maiores médicos do Rio
de Janeiro já chegaram à conclusão de que o espiritismo é a maior
fábrica de loucos que existe”, “Os demônios também se alojam no
sistema nervoso do homem, daí poderem dominá-lo completamen-
te”), e ameaças à vida (“… todas as pessoas que vivem querendo
morrer são endemoninhadas”), até mergulhar em metáfora apo-

1
Professor Doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisador do Núcleo Interdisciplinar
de Estudos Judaicos (NIEJ/UFRJ)
2
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense, Bolsista CA-
PES, pesquisadora do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INEAC/UFF)
3
Mestre em Desenvolvimento e Gestão Social pela Escola de Administração da UFBA e pesquisador do Núcleo Interdisci-
plinar de Estudos e Pesquisa Onilê da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia (EAUFBA)

395
Organizadora : Edelamare Melo

calíptica: “Essa religião, tão popular no Brasil, é uma fábrica de


loucos e uma agência onde se tira o passaporte para a morte e uma
viagem para o inferno”. (Aydano, 2017) - Grifos nossos

Do ponto de vista sócio-antropológico, para dimensionar o impacto provo-


cado pelo livro “Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?” na formação ide-
ológica do movimento neopentecostal (Freston, 1994; Oro, 1997; Mariano, 1999;
Almeida, 2015; Leandro e Sanfilipo, 2018) brasileiro, trona-se necessário estabe-
lecer contrastes considerando outras obras, cujo objetivo e teor estejam alinhadas
ao referido livro, ainda que em contextos históricos e sociais distintos. Neste sen-
tido, para que possamos estabelecer contrastes entre sociedades, momentos histó-
ricos ou, como exigido neste caso, entre obras literárias, passaremos a elencar as
características fundamentais do referido livro para que possamos identificar uma
obra que, colocada em contraste, se torne passível de comparação.
Como principais atributos do livro de Edir Macedo podemos apontar que:
a) O objetivo do O livro “Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?”
é o de estabelecer bases diferenciadas para a sociedade brasileira, através de uma
religiosidade maniqueísta, estabelecida por uma visão particular do seu autor.
Esta visão particular se dá para além da forma heterodoxa de prática da doutrina
cristã (Oro, 1997; Mariano, 1999). Como é de conhecimento público, Edir Ma-
cedo tem declarados objetivos de controlar a política no país. Tanto que em 2011
realizou o lançamento do livro intitulado “Plano de Deus: os cristãos e a política”
que conclama os evangélicos a elegerem apenas políticos de suas igrejas;
b) “Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?” vendeu mais de
quatro milhões de exemplares e já se encontra em sua 15ª edição (Dias e
Campos, 2012). Estes dados, no entanto, podem ser lidos como minorados,
uma vez que, conforme assevera Marques (2015), não é possível obter
informações precisas acerca de quando a obra foi lançada, pois
no livro editado em 2013, que foi utilizado diretamente na pes-
quisa, consta o Copiright 2000, porém no Processo número
2005.33.00.022891-3, consta que a obra circula desde os anos 80.
Possivelmente a obra atual seja uma nova versão com novo ISBN,
ou então, a obra circulava sem esse registro, antes de 2000; ou ain-
da, poderia ter sido iniciada como folder ou folheto, e depois se
expandindo, embora no processo seja questionado e utilizado exa-
tamente o mesmo título do livro (Marques, 2015:37)

c) O livro refere-se a uma parcela minoritária da sociedade brasileira,


a saber, aos praticantes das tradições afro-brasileiras – Umbanda, Candom-
blé, Quimbanda -, cuja estimativa do Censo de 2000 é de 0,3% da população

396
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

brasileira (Prandi, 2004). Notadamente, no contexto sócio-histórico do país,


esses segmentos são vistos como perseguidos e marginalizados, sendo por es-
tes mesmos motivos, alvos preferenciais das políticas reparatórias do Estado;
d) O referido livro vem sendo acusado de incitar a intolerância religio-
sa por pesquisadores e estudiosos do tema (Dias e Campos, 2012; Marques,
2015) e de promover a discriminação aos praticantes dos segmentos afro-bra-
sileiros no país (Leandro e Sanfilippo, 2018);
e) O livro de Edir Macedo, fundante da doutrina neopentecostal no país (Dias
e Campos, 2012; Leandro e Sanfilippo, 2018), tem o intuito de desqualificar as
práticas das tradições afro-brasileiras, com o sentido de associá-las ao mal – termo
que é usado por Edir Macedo como sinônimo para demônios e diabos - tornando-as
portadoras de todos os acontecimentos indesejáveis da vida social dos indivíduos;
f) A proibição judicial de que o referido livro fosse editado, recomen-
dada pelo Ministério Público Federal em 2005, não impossibilitou a sua cir-
culação – uma vez que a obra tem circulado livremente pela rede mundial de
computadores em formato de e-book, assim como sua edição impressa ven-
dida em sites que comercializam literatura como a Amazon e Estante Virtual

Telas capturadas em 22/08/2019, às 20:50h nos seguintes endereços ele-


trônicos:https://www.amazon.com.br/Orix%C3%A1s-caboclos-guias-deuses-
dem%C3%B4nios-ebook/dp/B07C7WKHSN e https://www.estantevirtual.com.
br/livros/edir-macedo/orixas-caboclos-e-guias-deuses-ou-demonios/486327204
397
Organizadora : Edelamare Melo

Apesar de resumidas neste texto, podemos entender que as características do


livro “Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?” informam uma obra de cunho
discriminatório, cujo alvo concentra-se em uma parcela minoritária e historicamente
em situação de vulnerabilidade no país. O objetivo do referido livro, conforme apon-
tado pelos pesquisadores, é o de não apenas desqualificar as tradições de matrizes afro
constituídas em solo brasileiro, mas está em associá-las ao mal, tornando-as culpadas
pelos acontecimentos nefastos ocorridos na vida dos indivíduos. A proposta do livro
aponta não só para o combate intelectual às tradições afro-brasileiras, mas ao seu ex-
termínio físico, histórico e cultural. Igualmente, destacamos que a referida obra é en-
tendida por diversos autores como a base da doutrina neopentecostal - segmento acu-
sado de perpetrar agressões aos adeptos das tradições afro-brasileiras, além de ataques
a seus territórios (Silva, 2007; Miranda, 2011; Almeida, 2015, Miranda et al, 2019).
Racismo e Intolerância Religiosa: as duas faces da mesma moeda
Em 2001, a Organização das Nações Unidas, ao realizar a Conferência
Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância
Correlata (Conferência de Durban), afirmou que
“racismo e discriminação racial, constituem graves violações
de todos os direitos humanos e obstáculos ao pleno gozo destes
direitos, e negam a verdade patente de que todos os seres huma-
nos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, constituem
um obstáculo para relações amistosas e pacíficas entre povos e
nações, e figuram entre as causas básicas de muitos conflitos
internos e internacionais, incluindo conflitos armados e o con-
sequente deslocamento forçado das populações” (Declaração e
Programa de Ação de Durban do Ministério da Cultura, 2001)4

Devidos aos compromissos assumidos pelo Estado brasileiro na referi-


da Conferência, em 2007 o Governo Federal editou o Decreto 6040/2007 que
definiu a intolerância religiosa perpetrada às tradições afro-brasileiras como:
“expressão que não dá conta do grau de violência que incide so-
bre os territórios de tradições de matriz africana. Esta violência
constitui a face mais perversa do racismo, por ser a negação de
qualquer valoração positiva às tradições africanas, daí serem de-
monizadas e/ou reduzidas em sua dimensão real” (PNPCT, 2007).

Portanto, a) o Estado brasileiro reconhece que a intolerância religiosa pra-


ticada contra as tradições afro-brasileiras é a “face mais cruel do racismo”, e b)
o Estado brasileiro, signatário da Organização das Nações Unidas, deve cumprir
4
http://www.unfpa.org.br/Arquivos/declaracao_durban.pdf Acesso em 26/08/2019.

398
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

o Programa de Ação da Declaração de Durban no sentido de exterminar toda


e qualquer prática racista ou de discriminação racial. Neste ponto, ressaltamos
também que, devido a sua prática racista contra as tradições afro-brasileiras, a TV
Record e a TV Mulher, ambas de propriedade de Edir Macedo, foram condenadas
em abril de 2018 pela Sexta Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região
(TRF3), a concederem direito de resposta às tradições de matriz africana.
Neste contexto, em que racismo e projeto fundamentalista se articulam, é
que é possível comparar o livro “Orixás, caboclos e guias: anjos ou demônios”
com outra obra, também identificada por diversos autores como racista, cuja edi-
ção tem sido objeto de preocupação de historiadores, antropólogos e políticos
ao redor do mundo. Trata-se de “Mein Kampf” (em português, Minha luta) de
Adolf Hitler, publicado em 1925/27, na Alemanha. Conforme é de conhecimento
e senso comum, o livro de Hitler é um libelo ao racismo e serviu como divulgação
do seu autor para implantar o pensamento nazista na Alemanha do entre-guerras.
Combatido e proibido em vários países do mundo, “Minha luta” voltou ao cenário
mundial em 2015, ano em que a obra se tornou de domínio público.
Apesar do livro de Edir Macedo ser uma publicação referente a um
contexto nacional distinto (o cenário brasileiro), assim como o Minha luta,
em relação ao contexto alemão, as ideias do fundador do neopentecostalismo
(Mariano, 2004) se espraiaram com velocidade por toda América latina, de
formas, ainda que distintas, seguindo o modelo em que o livro de Hitler foi
recebido pelo continente europeu, na primeira metade do século passado. En-
tender esta similaridade só é possível quando percebemos que, assim como
“Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?”
“Mein Kampf, (Minha Luta), 1925-1927¹, obra escrita por Adolf
Hitler, pretendia oferecer ao povo alemão não uma palavra de or-
dem eleitoral, mas uma “nova concepção filosófica de importância
fundamental”, uma nova concepção do mundo que, como uma ver-
dadeira religião, em dogmas precisos, destinava-se a tornar para o
povo “as leis básicas de sua comunidade”. (Hitler apud Chevalier,
2001:393)” (Caetano, 2010:1).

Seguindo o caminho condenatório e de projeto de extermínio de um povo ‘in-


ferior’, em sua luta por pureza racial, Hitler descreve o povo judeu como “Os “fla-
gelos de Deus” que não passam de parasitas que ardilosamente imitam as bases do
trabalho espiritual dos hospedeiros (que se tornam mestiços), empregam falsa cren-
ça religiosa, conquistam simpatia e proliferam suas mentiras” (Caetano, 2010:9).
Neste ponto, tanto a obra de Edir Macedo quanto a de Adolf Hitler dialogam e se
assemelham com um nível ímpar de morbidez. Os inimigos dos brasileiros (as divin-
399
Organizadora : Edelamare Melo

dades afro-brasileiras) precisam ser combatidos e proscritos, da mesma forma que


os judeus (os “flagelos de Deus”) para que os problemas sejam solucionados.
As semelhanças entre as duas obras não param por aí. Elas promovem
um sentimento nefasto de superioridade entre aqueles que se identificam com
as obras, independente dos seus contextos históricos e sociais, porque, confor-
me explica o antropólogo Michel Gherman, coordenador do Núcleo Interdisci-
plinar de Estudos Judaicos da Universidade Federal Fluminense, oferecem para
seus leitores uma ideia de mundo “simples, irrefletida, que retira do indivíduo
a responsabilidade de seus atos como a causa dos efeitos da vida social, trans-
ferindo a culpa para o ‘outro’ aquele que deve ser eliminado”. Neste contexto,
os problemas da vida cotidiana (que tanto podem ser doenças e separações
amorosas realizadas maleficamente por algum “encosto”) como os processos
de empobrecimento financeiro de uma determinada parcela da sociedade (cau-
sada por um pretenso domínio econômico do mundo pelos judeus) devem ser
repelidos, combatidos e exterminados para que ‘magicamente’ desapareçam.
Os efeitos causados por esses discursos são mundialmente conhecidos,
devido ao Holocausto de mais de 30 milhões de pessoas em todo o mundo, na
primeira metade do século passado. Contemporaneamente no Brasil, a expo-
nencial onda de ataques aos terreiros das tradições afro-brasileiras, as violên-
cias físicas e simbólicas e os assassinatos de seus adeptos, tem sido objeto de
atenção das autoridades que assistem, entre perplexas e assustadas, o apareci-
mento do braço armado do neopentecostalismo no fenômeno nacionalmente
conhecido como “traficantes evangélicos” (Vital da Cunha, 2014) que têm
fechado, destruído e aterrorizado os adeptos das tradições afro-brasileiras.
Ressaltamos que, não por acaso, “os traficantes evangélicos” iniciaram sua
cruzada nas favelas e periferias do estado do Rio de Janeiro – sede da Igreja
Universal do Reino de Deus e da TV Record, ambas comandadas por Edir
Macedo – para outros estados da federação (Minas Gerais, Brasília e Pará)
conforme notícias veiculadas pela imprensa.
Nestes termos, as ‘lutas’ de Adolf Hitler e Edir Macedo são similares,
uma vez que identificam o ‘inimigo’ numa minoria vulnerável da sociedade,
tornando-a a causa de males sociais. Tanto um quanto outro, propõe que seus
leitores utilizem a superioridade (racial-religiosa) para eliminarem seus opo-
nentes. No entanto, conforme assevera Dias e Campos (2012), a mensagem
do livro de Edir Macedo neste sentido é mais subjetiva e elaborada, uma vez
que sugestiona o extermínio a entidades espirituais ao invés de ordenar a eli-
minação de uma raça ou grupo étnico específico:

400
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

“Amigo leitor, comece hoje mesmo a exercer a autoridade que


Jesus lhe confere. Não abra mão de seus direitos; não deixe de
lado o que o Senhor lhe concedeu; agarre-se com unhas e dentes
às bênçãos de Jesus e ‘pise na cabeça dos exus’ e CIA Ilimitada!
(MACEDO, 2000:129 – grifos nossos)”

Conforme podemos perceber, a mensagem de Edir Macedo é um tanto


mais sofisticada que a de Hitler, que diz que o extermínio de um povo mais
fraco se constitui em algo francamente natural, uma vez que sua proposta
“não se apoia na ligação de elementos superiores, mas na vitória incondicio-
nal dos primeiros. O papel do mais forte é dominar. Não se deve misturar com
o mais fraco, sacrificando assim a grandeza própria” (Hitler, 1983:185).
O que fazer diante de obras racistas, que incitam a violência contra
populações reconhecidamente minoritárias e vulneráveis, num contexto
de instabilidade política e econômica?
Após a Segunda Guerra Mundial o livro de Adolf Hitler foi proibido em
quase todos os países do mundo, voltando à cena em 2015, quando se tornou de
domínio público. No Brasil, antes de se tornar de domínio público (a legislação
alemã determina que qualquer obra se torne de domínio público após 70 anos
da morte do autor) o juiz Alberto Salomão, da 33ª vara criminal do Rio de Ja-
neiro, determinou a proibição de ‘venda, impressão ou divulgação’ da obra do
líder nazista. A decisão do magistrado, amparada na robusta legislação infra-
constitucional brasileira, tem reconhecidamente o mérito de dificultar o acesso
de leitores a um libelo racista, que alicerça a ideologia de extermínio de uma
determinada população – no caso o povo judeu. Por certo que, aparentemente,
esta é a decisão mais acertada a ser tomada pelo setor da magistratura brasileira
comprometida com o Estado Democrático de Direito e que esteja alinhada à le-
gislação internacional (Declaração dos Direitos Humanos da Organização das
Nações Unidas, Pacto de San Jose da Costa Rica, etc).
O mesmo procedimento (de proibição judicial) tem sido observado em
relação ao tratamento recebido pelo livro de Edir Macedo. Em 2005, os procu-
radores da República Sidney Madruga e Cláudio Gusmão, do Ministério Públi-
co Federal da Bahia, consideraram que a obra, além de preconceituosa e discri-
minatória, “dedica quase que a totalidade de suas páginas a promover ofensas
às religiões afro-brasileiras”. Segundo o MPF, trechos da publicação tratam
as religiões de origem africana como “seitas demoníacas”, “modo pelo qual o
demônio age na Terra” ou “canais de atuação dos demônios”. Os procuradores
afirmam que o bispo responsabiliza a Umbanda, o Candomblé e a Quimbanda

401
Organizadora : Edelamare Melo

“pela destruição do ser humano” e pelo uso de entorpecentes5. O debate voltou


a reacender com a notícia de que Edir Macedo irá relançar o seu livro.
Nestes termos, verificamos que a proibição dos livros se torna bandeira
de luta daqueles que pretendem cumprir as determinações legais e retirar de
circulação obras tão nefastas à convivência pacífica entre diferentes segmen-
tos da sociedade. No entanto, percebemos que:
a) Ainda que tenham sido proibidos, “Minha luta” e “Orixás, caboclos e
guias: deuses ou demônios” jamais deixaram de ser lidos e comercializados;
b) Os dois livros são considerados Best-sellers, devido a grande circula-
ção e comercialização. O livro de Edir Macedo é vendido em igrejas, ofertado
gratuitamente aos seus seguidores e, assim como o de Adolf Hitler, encontra-
do com enorme facilidade na rede mundial de computadores;
c) Tanto um quanto outro se constituem em fontes históricas e socioló-
gicas de mudanças – nefastas, assustadoras – nas respectivas sociedades que,
ainda que em contextos muito diferentes, sentiram (e sentem) os efeitos do
pensamento racista, e do poder de destruição que a ideia de eliminação de um
determinado grupo – acusado de ser o causador de mazelas - possui. É neste
sentido que devem servir de fonte de consulta ao pensamento científico;
d) A proibição de obras – ainda que de cunho racista e de extermínio
de populações – abre espaço para o debate, oportunista, entre os limites da
liberdade de expressão e o controle de pensamento (censura);
Cenários e possibilidades
No Brasil, devido à permeabilidade que o pensamento racista, com tra-
ços nazifascistas, tem contemporaneamente alterado as relações sociais no
país, as populações historicamente vulneráveis e marginalizadas (Das e Po-
ole, 2008) tem se percebido diante de dilemas e desafios extremamente no-
vos para sua realidade social. Neste sentido, a necessidade de sobrevivência
(física) desses grupos, atrelada a garantias de direitos, tem se conformado de
maneiras polissêmicas e nem sempre coesas, no cenário nacional. É neste
contexto, que o Coletivo de Entidades Negras mobilizou um abaixo-assinado
que, com o acolhimento de mais de 25 mil assinaturas, exige judicialmente
a proibição da edição, venda e circulação da obra “Orixás, caboclos e guias:
anjos ou demônios”, de Edir Macedo. Em nosso entendimento, a livre cir-
culação desta obra fere de morte os princípios de dignidade das tradições
afro-brasileiras em território nacional, porque as coloca não só em condições

5
Ver: https://www.conjur.com.br/2005-nov-09/mpf_tenta_suspender_venda_livro_edir_macedo, Acesso em
21/08/2019.

402
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

de desvantagem sócio-histórica, mas porque seus territórios e adeptos já con-


figuram como preferenciais aos ataques, agressões físicas e morais, além de
serem mortos por professarem suas crenças e praticarem suas liturgias.
No entanto, as comunidades tradicionais de matrizes africanas, sejam
do Candomblé, da Umbanda, Quimbanda, Batuque, Xangô, Tambor de Minas,
Canjerê, Toré, Candomblé de Caboclo, Babaçue, etc. são reconhecidas no cená-
rio nacional como tradições que, além de mantenedoras das memórias (Candau,
2011) dos africanos e seus descendentes – que chegaram aqui desde o século
XVI como prisioneiros de guerras, cuja mão de obra especializada (agricultura,
pecuária, mineração, medicina) não apenas sustentou por 380 anos o sistema
econômico escravagista, mas civilizou o Brasil (Querino, 1918) – como práticas
pacíficas que jamais tiveram o sentido de impor à força seus modos de vida. Ao
contrário, essas comunidades sempre apostaram no conhecimento científico e
no diálogo com os mais diversos segmentos da sociedade para que o Brasil se
conformasse como um Estado-nação plural e diversamente colorido.
No entanto, diante dos desafios e adversidades que nossas comunidades
têm enfrentado, nos colocamos como mediadores de uma demanda social que
visa o estabelecimento da liberdade e dos preceitos democráticos que ainda
orientam o Estado brasileiro. É com intuito de honrar a memória dos ante-
passados, que indicamos, que dada a impossibilidade efetiva da proibição de
edição e circulação do livro “Orixás, caboclos e guias: anjos ou demônios”,
uma vez que seu acesso é facilitado pela rede mundial de computadores e por
sua edição ser realizada sob a editora de propriedade de seu autor, sugerimos
que a obra seja - conforme vem sendo orientada pela comunidade científica
internacional ao livro “Minha luta”, de Adolf Hitler - obrigada a possuir em
todas as suas edições (impressas, e-book, ou disponibilizadas gratuitamente
em sites e blogs) crítica comentada por especialistas no tema das tradições
afro-brasileiras, indicados por este Coletivo.
Nestes termos, apresentamos o abaixo-assinado (total das assinaturas
em pen drive), assim como o material de consulta utilizado para a elaboração
deste documento.
Referências Bibliográficas
Almeida, Rosiane Rodrigues. Quem foi que falou em igualdade? Autografia: Rio de Janeiro, 2015

Bianchetti, Thiago Angelin Lemos. Exu, Protetor ou Demônio? Uma abordagem etnográfica
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bir-direito-de-resposta-a-religioes-de-matriz-africana/

https://www.conjur.com.br/2005-nov-09/mpf_tenta_suspender_venda_livro_edir_macedo

http://bemblogado.com.br/site/as-sagradas-escrituras-da-universal/

https://www.dw.com/pt-br/edi%C3%A7%C3%A3o-cr%C3%ADtica-de-livro-de-hitler
-op%C3%B5e-historiadores-e-governo-da-baviera/a-17300801

https://www.dw.com/pt-br/edi%C3%A7%C3%A3o-comentada-de-minha-luta-sair%-
C3%A1-em-2016/a-18271632

https://www.dw.com/pt-br/leil%C3%A3o-arrecada-130-mil-euros-por-quadro-de-hi-
tler/a-18081085

https://www.dw.com/pt-br/minha-luta-de-hitler-%C3%A9-best-seller-na-interne-
t/a-17358821

https://www.dw.com/pt-br/%C3%A9-preciso-ler-minha-luta-de-hitler-diz-soci%C3%B3lo-
go/a-18346321

https://www.conjur.com.br/2016-fev-13/observatorio-constitucional-proibicao-minha-luta-
debate-liberdade-expressao

405
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

tempo da delicadeza

Geovana Pires

Meu filho, tá vendo aquele senhor


descendo a montanha?
Sua barba é uma grande nuvem desenhando a estrada da vida
e sua artimanha.
Subiu as cordilheiras
e lá do alto nos olhou
profundo e segredou
ser o pai do mundo.
Não anda rápido e
tampouco devagar.
Vai no sobe e desce da vida
sem nunca descansar.
Anda somente pra frente e
nunca olha pra trás.
O que passou passou,
assim é desde
quando era rapaz.
E como um cavaleiro
andante segue
embalando o dia e
carregando a noite,
muito mais jovem que antes.
Quem é esse velhinho, mamãe?
Ele teve muuuuitos filhos.
Sua companheira é a paciência
com quem gerou os séculos
admirando os crepúsculos.
Com a calma que emana
criou os anos e
também as semanas.
Esculpiu as horas,
os minutos e segundos.

407
Organizadora : Edelamare Melo

Mamãe, quero saber mais,


com tantos filhos que teve
quem são seus pais?
Filho, sua pergunta prospera,
esse senhor é filho do céu com a terra.
Não sei sua idade, mas sei
que por causa dele vou te
amar por toda a eternidade.
Ele é o rei, um deus.
Mamãe, eu sei que você me ama,
mas afinal, como ele se chama?
Filho meu,
Tempo é o seu nome!
E com toda delicadeza
fará de você um belo homem.

408
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

RACISMO DIGITAL

Paola Cantarini
Willis S. Guerra Filho

Resumo
A inteligência artificial vem sendo utilizada cada vez mais na solução de
casos jurídicos. Mas, quem vigia, controla e se responsabiliza pelos algoritmos no
caso de respostas racistas, machistas, sexistas ou discriminatórias? Sabe-se que
a discriminação socioeconômica, racial ou de gênero vem ocorrendo de forma
muito frequente na utilização do sistema da inteligência artificial. As tecnologias
digitais de comunicação e a ideologia do Vale do Silício são racializadas, pois
reforçam a produção de um imaginário social racista. Trata-se, pois, em um pri-
meiro momento, de investigar a dimensão ética e moral da automação e digitali-
zação, envolvendo a incorporação aos sistemas inteligentes de valores humanos
(machine ethics), o uso indiscriminado e a mercantilização, sem responsabilidade
e sem controle de nossos dados pessoais por empresas como Google e Facebook,
a concretização do direito a dados pessoais como direito humano e direito funda-
mental, a correlação de tal temática, com o uso discriminatório, racista ou sexistas
em casos jurídicos decididos por meio da inteligência artificial, envolvendo dados
obtidos por meio da mídia digital. As mídias integram o Direito, pois também
o constroem, porquanto são meios de comunicação privilegiados na sociedade
contemporânea, sendo sua linguagem mais amplamente divulgada, e o Direito é
linguagem, com função similar. Em um segundo momento, busca-se verificar se
estaríamos diante de um ponto de mutação, de uma nova virada autopoiética, em
um momento de ponto crítico na forma de produção do Direito e de como este é
interpretado e aplicado. Questiona-se: o desenvolvimento indiscriminado e sem
controle, totalmente desvinculado de uma fundamentação superior, ética e moral
do Direito em sua aplicação por meio da inteligência artificial, pode indicar o fim
da humanidade? Teria chegado de fato o fim da história e a morte do homem?
Trata-se do império da máquina que se aproxima, tal como vislumbrado em obras
de ficção científica? E no caso de um dano a um ser humano produzido por inte-
ligência artificial quem se responsabiliza? As máquinas podem ser consideradas
aptas a serem sujeitos de direitos, com direitos e deveres, possuem aptidão para
capacidade jurídica, a qual por sua vez pressupõe uma consciência individual au-

411
Organizadora : Edelamare Melo

tônoma? O Direito sendo a expressão da “humanitas” pode ser aplicado de forma


legítima por meio da inteligência artificial, a qual por não possuir sentimentos,
intuição e emoções, tampouco possui consciência e alma, limitando-se a uma
aplicação fria e seca da legislação? Por derradeiro, visa-se analisar as representa-
ções midiáticas e políticas das principais plataformas digitais envoltas a questões
do racismo e da intolerância, envolvendo pessoas afrodescendentes, e sua poste-
rior utilização pela inteligência artificial, e de como impactam o Direito, já que
a realidade impacta e também produz o Direito. Segundo Niklas Luhmann (“A
realidade dos meios de comunicação”) a nossa realidade na sociedade é criada
pelos meios de comunicação.
Introdução
Verifica-se no Direito o predomínio da técnica e do pensamento meramente
científico e cartesiano, positivista, e de um modo geral a robotização e a meca-
nização do pensamento. Isso desconsiderando-se outros aspectos fundamentais
na tomada de decisões judiciais, principalmente nos denominados “hard cases”,
aqueles envolvendo colisões entre direitos fundamentais. Daí se conclui a insufi-
ciência, para uma solução adequada, no sentido de proteção da dignidade da pes-
soa humana, de uma simples fórmula matemática algorítmica, como na proposta
de Robert Alexy. Desconsidera-se com isso que o Direito e a Ciência, e o Direito
enquanto Ciência possuem uma história, e que a própria cientificidade do Direito
depende também do elemento empírico, da experiência (Pontes de Miranda, Mi-
guel Reale), e logo, novamente, da história, reduzindo-se a realidade jurídica a
fórmulas matemáticas, ou seja, a um simulacro.
Revela-se aqui uma crise de paradigmas no Direito e a necessidade de
uma transmutação, a fim de encontrarmos alternativas a uma possível morte
do homem e da história, pela perda da autopoiese (Luhmann), sendo esta uma
condição da nossa possibilidade de existência, ante a nossa substituição por
máquinas e robôs. Isto porque, na natureza tudo o que não é mais relevante e
não tem função acaba sofrendo mutações ou é descartado com o tempo.
Resta a questão: com a utilização em larga escala e de forma progressi-
va da inteligência artificial, é o fim do homem e da história? Chegamos ao que
Nietzsche denomina de “demasiado humano”? Estaríamos diante da supera-
ção definitiva da era do carbono, e com esta da extinção da forma humana e
do início da era do silício, de onde virá uma nova forma, tal como preceituam
Michel Foucault e Gilles Deleuze? Trata-se da era do “phylum maquínico”,
termo forjado por Gilles Deleuze e Felix Guattari, mencionando o silício no
agenciamento contemporâneo homem-natureza.

412
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

O motor de diversas aplicações via inteligência artificial funciona ba-


sicamente da seguinte forma: o motor de tal programa é um algoritmo, um
conjunto de instruções que se aplica a um conjunto de dados. Dependendo
de quem construa esses modelos de algoritmos, e dos dados coletados que os
alimentam, o resultado será um ou outro. Neste sentido importante estudo de
Virginia Eubanks, professora de Ciências Políticas da Universidade de Al-
bany, autora do livro “Automating inequality”, investiga como as ferramentas
tecnológicas perfilam, controlam e punem os pobres. Na mesma linha de ra-
ciocínio crítico, pesquisa da lavra de professores da Universidade de Boston
demonstra que os sistemas de aprendizado das máquinas (machine learning)
têm vieses sexistas, pois na fonte de dados mais comum, a internet, já há di-
versas associações de conceitos que induzem ou ensinam as máquinas a esta-
belecer certas correlações como verdadeiras, sem uma mediação de seu con-
teúdo, como, por exemplo, a relação “dona de casa =mulher, gênio =homem”.
Em razão de diversos algoritmos racistas e discriminatórios tem-se de-
senvolvido algumas iniciativas de auditoria de algoritmos e plataformas digi-
tais, bem como a construção de data sets, visando uma espécie de controle ou
regulação da utilização e resultado dos algoritmos.
Outro caso emblemático é o “Tay”, um bot criado em 2016 pela Micro-
soft para interagir e aprender com as pessoas no Twitter, transformando-se,
no prazo de apenas 24 horas, em um defensor do nazismo e de Hitler, sendo
tirado do ar, logo após pela empresa.
Por sua vez, um dos aplicativos da Google, o Google fotos, em 2015
foi objeto de diversas notícias, onde se afirmou que a inteligência artificial
do aplicativo classificaria nas opções de busca pela palavra “gorila” diversas
pessoas negras.
O Poder Judiciário de diversos países vem se “beneficiando” do uso de
um sistemas de algoritmos matemáticos, como o Estado de Wisconsin nos
EUA, para determinar o grau de periculosidade de criminosos, relacionado à
possível redução de penas. Tais problemáticas foram objeto do documentário
no Netflix “Making a Murderer”, mostrando a condenação de um inocente,
tendo sido a sentença calculada com a ajuda de um algoritmo matemático.
Verifica-se ainda a utilização em todo os EUA do “Compas”, um questioná-
rio que avalia a potencialidade ou probabilidade de uma pessoa cometer um
crime futuramente, já tendo sido advertido pela Suprema Corte de Wisconsin
que o Compas pode dar uma pontuação maior para minorias étnicas.
O racismo está longe de acabar e vai continuar no futuro (Mbembe, “Po-
líticas da inimizade”, p. 95), como destaca Mbembe, apontando, na esteira de

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Organizadora : Edelamare Melo

Foucault, para um novo tipo de racismo, o nanorracismo, talvez de alguma forma


similar às mencionadas microagressões raciais, quando as agressões racistas es-
tão limitadas a uma pessoa, a um determinado local, ao privado, garantindo certo
anonimato por parte do agressor (Chester Pierce, 1970). Para Mbembe, é “uma
forma de narcoterapia de ave de rapina, feita de remendos, com um poderoso bico
adunco e afiado – a naftalina que caracteriza os tempos de dormência e de parali-
sia flácida, quando se perdeu toda a elasticidade (...)”. E continua:
Por nanorracismo entenda-se esta forma narcótica do precon-
ceito em relação à cor expressa nos gestos anódinos do dia-a-
dia, por isto ou por aquilo, aparentemente inconscientes, numa
brincadeira, numa alusão ou numa insinuação, num lapso, numa
anedota, num subentendido (...), num desejo obscuro de estig-
matizar, e sobretudo, de violentar, ferir e humilhar, contaminar
o que não é considerado como sendo dos nossos (...). a época do
nanorracismo é efetivamente a do racismo abismal, do racismo
de navalha enferrujada, (...) (Ibidem, p. 98 e ss.).

Achille Mbembe comenta acerca da relação entre capitalismo e colo-


nialismo, bem como sobre a existência atualmente do necropoder, quando a
morte tende a tornar-se cada vez mais espectral, enquanto vivemos cada vez
mais uma vida supérflua, ao valer menos até do que uma mercadoria, apon-
tando o racismo como o motor do necropoder, reduzindo-se o valor da vida, e
de outro lado criando o hábito da perda. Em suas palavras:
(...) longe de levar a uma globalização da democracia, a corrida
para as terras novas desembocou numa nova lei (nomos) da ter-
ra, cuja principal característica é a de tornar guerra e raça dois
sacramentos privilegiados da história. A consagração da guerra
e da raça nos altos-fornos do colonialismo tornou-as simulta-
neamente o antídoto e o veneno da modernidade, o seu duplo
pharmakon (Achille Mbembe, “Políticas da inimizade”, Lisboa:
Antígona Editores, 2017, 1ª. impressão, p.14; p. 65).

Já fora noticiada a existência do primeiro robô juiz do mundo na Estô-


nia, o qual irá julgar causas de menor valor econômico. Está também em an-
damento o projeto “Cérebro humano”, ou “Human Brain Project”, um projeto
de pesquisa, com recursos de fundos europeus, visando recriar até 2024 um
cérebro humano graças a um supercomputador.
No Brasil já há proposta de criação de um Centro e Solução de Conflitos
sem a participação de advogados pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, com
o objetivo de funcionar via internet e com o auxílio de inteligência artificial.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

O Parlamento da Inglaterra por meio do Comitê de Ciência e Tecno-


logia abriu inquérito para examinar o uso crescente de algoritmos (e inteli-
gência artificial) na tomada de decisões públicas e privadas, visando analisar
como estes são formulados, as possíveis correções e principalmente o impac-
to sobre as pessoas quanto sua compreensão,, sugestão e-ou indução na to-
mada de decisões. Alguns denominam este fenômeno como “Machine bias”,
“Algorithm bias” ou simplesmente, Bias. É o viés tendencioso. A remoção
de tal viés tendencioso em algoritmos não é trivial e é um campo de pesquisa
em andamento. No inquérito em curso na Inglaterra, destacou-se que o uso de
algoritmos no setor público poder levar a policiamento discriminatório e mo-
nitoramento indiscriminado, bem como a ações de agências de inteligência,
influência comportamental e invasões em larga escala de privacidade
A rápida evolução tecnológica e a globalização criaram novos desafios
com relação à proteção de dados pessoais, os quais vem sendo utilizados numa
escala sem precedentes por empresas privadas e públicas. A LGPD brasileira
e a GDPR da União Europeia ressaltam o direito das pessoas solicitarem a re-
visão de decisões automatizadas que afetem de alguma forma os seus direitos,
criando-se o direito à revisão de decisões automatizadas. A Alemanha possui
algumas peculiaridades que se chocam com a diretiva da EU em temas de
proteção de dados, destacando-se decisões do Tribunal Federal de Justiça em
1983, sobre os direitos ao livre desenvolvimento de personalidade e autode-
terminação informacional, em 2008, sobre privacidade digital e em 2010 (Tri-
bunal Constitucional Federal Alemão., BvR 256/08, Julgado em 02/03/2010,
disponível em http://www.bverfg.de/e/rs20100302_1bvr025608en.html).
A Alemanha considera que a proteção aos dados pessoais e o direito à
privacidade, são projeções da personalidade do indivíduo, nos termos do art.
2 I da Lei Fundamental Alemã. Destaca-se como um dos marcos referenciais
na proteção de dados pessoais o julgamento da “Lei de Recenseamento de
População, Profissão, Moradia e Trabalho”, pelo Tribunal Constitucional Ale-
mão em 1983, reconhecendo o direito subjetivo fundamental de proteção de
dados pessoais, relacionado ao direito à autodeterminação informativa.
O Regulamento 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho re-
lativo à proteção das pessoas (não coletivas) quanto ao tratamento de dados,
revogando a Diretiva 95/46/CE prevê tal direito como direito fundamental
(item 1: “a proteção das pessoas singulares relativamente ao tratamento de
dados pessoais é um direito fundamental”) e faz ressalva acerca da necessida-
de de aplicação do princípio da proporcionalidade ao ressalvar que o direito
à proteção de dados pessoais não é absoluto, devendo ser equilibrado com

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Organizadora : Edelamare Melo

outros direitos fundamentais, com o princípio da proporcionalidade (item4).


A Diretiva 95/46/CE visa harmonizar a defesa dos direitos e das liberdades
fundamentais em relação às atividades de tratamento de dados, assegurar a
livre circulação e dados pessoais entre Estados-Membros.
Por sua vez a Diretiva 2002/58/CE estabelece no art. 6º que os dados de trá-
fego tratados e armazenados pelo provedor de uma rede pública de comunicações
ou de um serviço de comunicações eletrônicas publicamente disponíveis deveriam
ser eliminados ou tornados anônimos quando deixassem de ser necessários para
efeitos da transmissão da comunicação. Haveria tal possibilidade quando houvesse
necessidade de proteção da segurança nacional, da defesa, da segurança pública,
da prevenção, da investigação, da detecção e a repressão de infrações penais, em
consonância com o art. 52 da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia.
O denominado e conhecido “Troley problem” demonstra a existência de
questões morais e éticas da mais alta importância envoltas com a impossibilidade
de uma automatização absoluta da Justiça, vez que esta sem a presença do elemento
humano, já virou outra coisa. O MIT Media Lab estudando tais temáticas desenvol-
veu a “Moral Machine”, plataforma para coletar dados relativos a decisões morais
pelos seres humanos (moralmachine.mmit.edu). Um artigo publicado na Revista
“Nature” traz alguns resultados de tal pesquisa, destacando-se a conclusão de que
em países com alto grau de desigualdade econômica há uma tendência a tratar de
forma bastante desigual as pessoas de acordo com seu status social.
O Direito depende para sua evolução e reconstrução “in fieri”, da “poie-
sis”, sendo tal característica marcante dos seres humanos como seres biológicos,
depende da criatividade, e da sensibilidade dos que se relacionam com o Direito.
Portanto, o Direito, apesar da predominância de sua compreensão e aplica-
ção de forma cartesiana, técnica, limitado a ser concebido apenas como ciência
técnica, afasta-se cada vez mais da “poiesis”, da poética, da sensibilidade, da
criação, ocorrendo atualmente, em grande parte, apenas uma eterna repetição do
igual, do mesmo, “ad nauseam”, nada se cria, e tudo se copia, ainda mais no
universo jurídico, cada vez fazemos menos ciência do Direito. Cada vez mais se
utiliza da linguagem automatizada e da aplicação da inteligência artificial no Di-
reito, sem que estejam suficientemente analisados os impactos e as consequências
possivelmente danosas mencionados anteriormente.
Sabe-se que os algoritmos trabalham com probabilidades e não com certe-
zas, mas tal fato muitas vezes é desprezado ou subvalorizado pelos aplicadores do
Direito na busca de uma razão geométrica na interpretação e concreção do Direito.
Em um caso noticiado nos EUA foi detectado que há já algoritmos, com
base nos quais a inteligência artificial atua e toma decisões, racistas ou dis-

416
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

criminatórias. Isto ocorre por captarem dados que circulam na sociedade em


nossos sistemas de informações e de comunicações, reproduzindo a existên-
cia do racismo estrutural em nossa sociedade, e contaminando com tais dados
os algoritmos utilizados por inteligência artificial para a tomada de decisões
de suma importância e relevância, como as que vêm cada vez mais sendo
adotadas no âmbito do Poder Judiciário.
Considerando-se o Direito enquanto Ciência, tal forma de tomada de
decisão pela inteligência artificial nos parece que seria uma espécie de retorno
ao entendimento de que as ciências, baseadas na observação de regularidades
na ocorrência de fatos, permitindo elaborar leis mecanicistas gerais explicati-
vas da realidade. Contudo, deve-se estar atento que tais fatos eram recortados
do conjunto da realidade, para assim dar-se a eles um tratamento analítico,
mas limitados e reduzidos à uma determinada localização espaço-temporal.
Trata-se de um tipo de aplicação próprio da física mecanicista-newto-
niana, superada atualmente pela física quântica e relativista, a demonstrar a
fragilidade de sua construção teórica e aplicação, utilizando-se de observa-
ções obtidas em escala limitada, como a que se observa na utilização de um
banco de dados, sabe-se lá construído por quem, na construção de uma deci-
são jurídica por meio de inteligência artificial, ainda mais na seara do Direito,
por desconsiderar que o Direito e as ciências no geral possuem história.
Vislumbra-se ainda outras problemáticas: a inteligência artificial, por
não possuir uma consciência e uma alma, não tendo possibilidade do mara-
vilhar-se e do assombrar-se, limitada à uma perspectiva inodora, inorgânica
e mecanicista da vida, contrária pois das ações tipicamente humanas, seria
indicada e apta a tomar decisões que envolvem não apenas o lado racional
da inteligência, mas sobretudo o imaginário, o imaginal (Henry Corbin), a
sensibilidade, as emoções e as intuições?
Característico deste tipo de forma de “conhecimento” típico da ciência,
utilizando-se de signos nos cálculos matemáticos de que se vale, típico de
nossa sociedade da informação, onde se produz cada vez mais informação
e em uma relação inversamente proporcional, cada vez menos conhecimen-
to reflexivo, pois seriam estes antagônicos. Há o aperfeiçoamento de uma
racionalidade meramente técnica, vazia, segundo Husserl, sem a produção
de saber conteúdo cognitivo algum (Tese de Doutorado em Comunicação e
Semiótica. Willis S. Guerra Filho. “Quantum critic e transmutação: Etiologia
da presente crise semiótica e perspectivas de superação”).
A partir, principalmente, de Newton, o padrão de ciência que vai desqualifi-
car como ciência o que até então não havia muito de diferença em termos de ciên-

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Organizadora : Edelamare Melo

cia. Começa tal processo na verdade desde a química, no século XVIII, como bem
relata Isabelle Stengers (“A invenção da Ciência”). Daí a alquimia era química, e
não há separação entre o sujeito e o objeto do estudo, do conhecimento. O Sujeito
está envolvido na sua própria transformação nos seus estudos, típica conclusão da
alquimia, a pedra filosofal buscada, seria a própria transformação pessoal durante
tal processo. Não havia distinção até o surgimento da química entre as ciências
herméticas e as ciências alquímicas. Antigamente, portanto, o objetivo da ciência
não era um objetivo econômico, utilitário como vem a se transformar após Newton.
A informática e a inteligência artificial na utilização de algoritmos para
a produção de decisões judiciais baseiam-se na matemática, ou seja, na lógica
simbólica, diferente da lógica aristotélica. A inteligência artificial é um sim-
bolismo, um pensamento abstrato. Sob o ponto de vista do formalismo não há
tanta diferença entre o Direito e a Matemática, pois ambos são formalismos,
números e normas, ambos são fórmulas.
Há uma fratura, com a divisão das culturas das ciências e das humani-
dades, promovendo uma desumanização das ciências naturais e matemáticas
e também uma atrofia do lado das humanidades, de um tipo de raciocínio
lógico-matemático que poderia em muito contribuir. Há uma dupla atrofia,
portanto. Promovendo o que é denominado já na década de 30 por Husserl
em seu livro sobre a “Crise da civilização europeia”, das matrizes europeias
ou seja, do modo ocidental de estudar a realidade, intervindo nesta realidade,
de forma diversa do que era postulado pela alquimia, antes da transformação
da ciência em algo utilitário.
Husserl assim já antecipando até mesmo as conclusões de Heidegger,
seu aluno, apontando para o problema no cerne do pensamento matemático
tendo efeitos catastróficos do ponto de vista político e social (Grande Guerra
Mundial). Isto porque a ciência ao se utilizar da lógica matemática e do sim-
bolismo e da abstração típicos da matemática, se descola do mundo da vida,
do mundo vivido, da vivência mundana, e pois, de nos seres humanos. Tal
conhecimento proveniente da ciência moderna, ao se descolar do mundo da
vida, do verdadeiro solo que justificaria toda a construção do conhecimento,
acaba se tornando um conhecimento alienado, estranho.
Trata-se do que se denomina de ciência como religião, de uma religião
científica, assumindo como verdade as fases do desenvolvimento da realida-
de, tal como se situa o pensamento e proposta epistemológica de A. Conte, e
seu positivismo. Neste sentido, a terceira fase a fase científica é tida como a
derradeira e definitiva, correspondendo a ideia de progresso. Contudo a cren-
ça na ciência promove uma crença na descrença. Uma espécie de fundamen-

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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

talismo na ciência. Cria-se uma espécie de alergia, e se torna o humano ainda


mais indefeso e frágil, com a postura individualista e defensiva.
Devemos então promover a reconciliação das ciências e das religiões,
na busca de mais convergências do que diferenças.
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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

History, Mixture, Modernity:


Religious Pluralism in Guinea-Bissau Today

Ramon Sarró and Miguel de Barros

Introduction: the complexity of the field


This chapter has the humble intention of being a tool for researchers,
reviewing some of the work done on religion in Guinea-Bissau, finding
some historical continuities, and suggesting lines of research.1 Perhaps more
ambitiously, it also wants to suggest that Guinea-Bissau offers a paradigmatic
case to study the cultural and historical logics underneath religious encounters.
Let us start by questioning a tenet in social sciences: that cultural complexity
is a characteristic of globalized urban settings. Some of the most innovative authors
on cultural complexity (Hannerz 1992) or super-diversity (Vertovec 2006) seem
to take for granted that multiculturalism is mostly a consequence of social change
(produced by globalization and migration). Following them, many scholars and
students today have a tendency to assume that traditional, non-urban settings
cannot be culturally complex. Yet, the fact is that rural societies actually are
extremely complex and multi-varied, as a genealogy of anthropological work has
cogently established (Smith 1974; Burnham 1996) and our fieldwork confirmed.
This cultural complexity of the rural regions has many religious manifestations,
and can embody many of the sociocultural changes which have affected Guinean
society since the onset of the current chains of crises post-1998.
Guinea-Bissau offers very good examples of this rural complexity. In
some southern regions we have lived in villages in which people speaking
Kriol, Nalu, Balanta, Beafada, Fulfulde and Susu cohabit and in which many
of their inhabitants speak fluently several of these languages. In Entxale, a
bigger but still rural village of 5,000 inhabitants in the east of the country, we
counted eight different languages. This linguistic diversity is accompanied by

1
The authors thank the Fundação Para a Ciência e a Tecnologia, who funded the project “The Prophetess and the
Rice Farmer: Transformations in Religion, Gender and Agriculture in Guinea-Bissau (2011-2014)” (of which R.
Sarró is the PI and M. de Barros an external advisor). This made it possible for them to conduct interviews together
and to meet several times both in Guinea-Bissau and in Lisbon. The article also draws from research conducted by
R. Sarró with the project’s researcher Marina P. Temudo in rural Guinea-Bissau. We thank Marina for sharing her
research and her data with us, and for her insightful comments to an early draft. Ambra Formenti made useful com-
ments too. Most especially, we thank Toby Green for the invitation and feedback.

423
Organizadora : Edelamare Melo

an ethnic and a religious one. In Entxale there is one mosque, one Catholic
church, one Protestant temple, many neo-Pentecostal young people who so far
have no temple and pray elsewhere, and many balobas (Kriol for traditional
shrines). Till recently, there were also members of the Kyang-yang prophetic
movement. This pluralism, common to many Bissau-Guinean villages, could
make of Guinea-Bissau a model for scholars to understand the inner workings
of religious pluralism in the complex world of today.
Religion in Guinea-Bissau: an encounter of frontiers
Like much of the Upper Guinea Coast, the region today comprising the
territory of Guinea-Bissau was in the past the scene of a meeting between three
religious frontiers. First of all, the African internal frontier, to use Kopytoff’s
category (1987), i.e., the reproduction, through segmentation and expansion,
of indigenous groups, often accompanied by the expansion of their religious
universes. The occupation of the land by the agriculturalist or agro-pastoralist
groups of Guinea-Bissau (Balanta, Fulup, Nalu, Tenda, Mandjaco, Mancanha,
Banhuns, etc.) has followed a frontier model, perfectly studied by Eve Crowley
(Crowley 1994, 2000). This expansion was accompanied by notions of spiritual
contracts discussed in the next section. The ritual workings and cosmological
contexts of “animistic” societies have been well studied by a legion of
anthropologists (for Mandjaco, see Gable 1990; Carvalho 1999; Teixeira 2001;
Constantine 2006; for the Bijagó, see Henry 1994; Pussetti 2000; for the Fulup
or Jola, see Journet-Diallo 2007; for Nalu see Temudo 2012).
Secondly, the Muslim frontier spreading westbound since the 13th
Century through a combination of the military enlargement of Muslim empires and
individual traders and clerics, some acting peacefully, some using violent jihads
(see Gaillard 1994 for a relatively recent jihad among the Beafada). Particularly
important for the understanding of the territory of what is today Guinea-Bissau
was the empire of Gabu (Caroço 1954; Lopes 1999; Costa Dias 2004), and its
internal fights between Mandingoes and Fulbe stretching back to the 18th century.
These came to a head in the 19th century, with the collapse of Kaabu at the Battle
of Kansala in 1867 following attacks by the Fulani theocracy of the Fuuta Djalon
in neighbouring Guinea. Such historical conflicts are an important context to the
unstable relationship between Mandinga and, Fulbe actors in the public sphere of
Guinea-Bissau, especially as regards the control of Islam.
The Muslim centers such as Fuuta Toro or Fuuta Djallon, or later the
Islamized Gabu, managed to control some coastal groups, such as the Nalu,
whose rulers were subjected to the Fuuta Djallon during much of the second

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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

half of the 19th century (Sampil 1969). However, as far as coastal groups and
Islam were concerned, the Nalu were more the exception than the rule. In
most of the places in coastal Guinea-Bissau, the Muslim frontier did not reach
the coast, even if individual Muslims were reported in early sources (Horta
2004), testifying to a very old co-existence of Muslim and non-Muslim agents
even in the urban centers, largely inhabited by Catholics and Jews.
The third relevant frontier is the Christian Atlantic frontier, as old
as the history of the arrival of the Portuguese in the mid-15th Century, when
Catholicism began to be institutionally established. Both individual frontiersmen
and Portuguese institutions collaborated in the making of a Christian community
that established itself in coastal centres such as Farim, Geba, Bolama or Cacheu,
home to the oldest Catholic church in Guinea-Bissau (Vicente 1993). A Christian
Creole society, a sort of embryo of the colonial society, emerged in these sites,
monitoring the Atlantic trade and entering, often through the mediation of Cape-
Verdian agents (Djaló 2013:149), into commercial connections with hinterland
groups (Brooks 2003; Havik 2004). This proto-colonial society prefigured also
a set of relations between Creoles and natives that, much later, would be legally
enforced with the rise of colonial legal structures.2
Despite the fact that most early sources on the history of the “Guinea
of Cape Verde” (as this part of the Upper Guinea Coast was referred to) was
Catholic in authorship and intention (for a thorough analysis, see Horta 2011),
the literature on the establishment of a Catholic community in what is now
Guinea-Bissau remains scattered across archives and colonial journals (see
Vicente, nd, for a very good bibliography). Apart from the detailed historical
survey by Father Rema (Rema 1982), there has been no other systematic
work on the structure and transformations of the Catholic communities in
pre-colonial times, colonial days or the postcolony. This is problematic,
given the central place of religious practice in Guinea-Bissau, and the role
of Catholicism in the formal colonial period; for such reasons, understanding
contemporary conjunctures must engage with the religious dimension.
As far as the postcolonial dimension of Catholicism is concerned,
Koudawo (2001) offered a very good exception. Building upon previous work
by de Fonseca (1993), Koudawo undertook a thoughtful synthetic analysis of
the different phases Catholicism went through since Independence (when it
was abhorred for its colonial past and foreignness) to a relative revival during

2
The making of a Creole, originally Portuguese, community has too often taken for granted, wrongly, that, given the Ca-
tholic hegemony of Portuguese culture, this equals the making of a Christian community. This has invisible-ized the very
important Jewish diaspora along the Lusophone Upper Guinea Coast (Mark and Horta 201; Green 2012).

425
Organizadora : Edelamare Melo

the liberal opening of the 1990s, and to the solid implementation (indeed a
fully-fledged “indigenization” with the nomination of a native Bishop and
priests) in the aftermaths of the civil war of 1998-99.3 It would be necessary
to have an update to that seminal analysis.
The importance of Catholicism in the making of the Creole community
has been object of scholarly research (Brooks 2003; Havik 2005; Nafafé
2005, 2007; Sweet 2007) and is perhaps most visible in the Creole concept
for person: pekadur (literally, “sinner”), today used by all Bissau-Guineans,
Christian or not. Yet there was nevertheless a surprisingly limited pastoral
activity in colonial, Catholic-driven Guinea-Bissau (Gonçalves 1960, vol.
2: 12-13; Trajano Filho 2004; Djaló 2013: 148-152). There were isolated
missions in rural areas, as well as many individual converts among different
ethnic groups, but overall, and beyond the Papel areas close to Bissau, the
rural mission in Guinea-Bissau had little impact compared to the successful
Muslim implementation in the hinterland or to the making of robust
Catholic communities in neighbouring countries. This historical context of
the Christian Atlantic frontier is therefore important in understanding the
religious composition of the country today.
The religious ecosystem of Guinea-Bissau has always been quite
respectful towards “animistic” groups left unconverted by both Muslims and
Christians. Why? While explanations based on “resistance” come easily to
our mind (to explain, e. gr., the relative non-conversion of Balanta to Islam
or Christianity), we think that religious transformation has to be explained in
a more holistic, regional model and without falling into too heroic views of
cultural resistance. It is not only the resistance of local groups to Christianity
or to Islam that needs to be explained, but also the resistance of Muslim and
Christian actors towards entering certain zones. For instance, Djaló discusses
the explicit instructions early Catholic agents had not to leave the urban centers
(2013: 148). A holistic, regional model, combined with a careful analysis of
sources along the lines suggested by Djaló, would probably help us understand
the advantages, for all the actors involved, of keeping different cosmological
enclaves coexisting. This might explain why in certain zones some members of
the local community converted to a world religion, while others did not.
The above-mentioned Balanta are a case in point. Despite the resistance
model often imposed upon them, the fact is that many Balanta did convert to

3
Because of its mediatory role (Infanda 2009), the civil war proved a true coming-of-age for the Catholic Church
in the post-colony. Furthermore, it allowed religions to be present in the public, political sphere and consolidated
ecumenical initiatives that, up to that moment, had kept a very low profile (Augel 1996).

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Islam, becoming the subgroup known as Balanta Mane. The Balanta Mane
abandoned many customs and adopted Mandinga ways of life, and their language
is now substantially different from both Balanta Nhakra and Balanta Kuntoe, the
two main languages spoken by their animistic neighbours. Like those, the Balanta
Mane live in the region of Oio, which has been a kind of “buffer zone” between
the Muslim internal frontier (populated mostly by Mandinga and Fulani) and the
Coastal Christian one. The Balanta, being mostly animistic, have been object of
both Christian proselytizing (quite successfully; the current Bishop of Bissau is
a Balanta Kuntoe) and Muslim efforts in the same vein (which has been very
successful in the past among the Balanta Mane, and is being quite successful
today among the Balanta Nhakra). In Guinea-Bissau in general, Christians rarely
attempted to convert in Muslim areas,4 and Muslims proselytizers were rarely
active in Christian centers except as traders, but the buffer zone of Oio along
the Geba river and other interstitial frontiers were reservoirs for agents of both
religions where to look for in their search for converts.5
The existence of the buffer area of Oio (and other similar ones in the
country) makes us think of an important element in the religious geography
and political culture of Guinea-Bissau: the importance of mediation,
negotiation and religious compromise. The Upper Guinea Coast has too often
been analyzed in terms of polarities (coast-hinterland, landlord-stranger,
youths-elders, raider-refugee, animistic-world religious, male domain-female
domain, etc.), In reality, these oppositions are ideal types, and many possible
negotiations occur in between the two poles of each continuum. Guinea-
Bissau has been quite a good example of successful opposition management,
creating a hyper-complex cultural grid full of mediations and negotiations.
Thus, to give just a few examples, today’s bishop of Bissau, Mgr. José
Câmnate na Bissing (ordained Bishop in 2000), is a Balanta Kuntoe, a group
strongly perceived in the Bissau-Guinean public sphere as being animistic.
The leader of the National Islamic Council is a Mandinga learned man who,
despite his important role in the Muslim community, goes by the Christian
name of Armando, because he grew up in a Catholic home and is proud of
the name given by his adopting family. The recently deceased ex-President
Kumba Yala was a Balanta man who always wore the red bonnet (a symbol

4
This could be nuanced by arguing that Protestant churches did try to convert Muslims already in colonial times, as
proved in the thorough and graphic article on communication, media and propaganda by Gonçalves (1966). Howe-
ver, their success was, we suspect, minimal.
5
The “fascination” for Islamic mores among animistic Balanta of Oio was a matter that worried Governor Sarmento
Rodrigues, who, being well aware of the geographical distribution of religions in the Province he was ruling, also
noted the alliance that Christianity should establish with the animistic coastal dwellers (Rodrigues 1948).

427
Organizadora : Edelamare Melo

of animistic tradition), even after he converted to Islam, thus allowing his


presence and discourse to bridge two different publics (in his last years,
incidentally, he partially reconverted to traditional religion and boasted of
new spiritual contracts).
This spirit of compromise underlies the co-existence and, if we may
use a Portuguese concept often invoked in Guinea-Bissau, convivência (co-
living). This can take two forms: religious syncretism or compartmentalized
respect for the other’s religion. Thus, when Muslim people invite Christian
friends to a baptism, a funeral or a weeding, they provide alcohol for their
guests. Muslims do not drink, but they know that their guests may want to do
so, and they want them to be happy. Convivência means that all points of view
must be given expression. When, in 1999, the Bishop of Bissau, Septtimio
Arturo Ferrazzetta, passed away, there were three funerals: a Catholic one, a
Muslim one, and an animistic one.6
This spirit of convivência, present both in the cosmopolitan praças and
in remote hamlets, lies underneath the ecumenical dialogues that have been so
important in the management of political crises over the last 15 years. Perhaps
the most visible example is the relationship between the Catholic father David
Ciocco and the imam of Mansoa (the capital of Oio), Abubacar Djaló. Fifteen
years ago, when the latter, upon returning from Qur’anic learning in Egypt,
founded a Mosque in Mansoa, he invited Father David to place the first stone.
Later the two signed an agreement so that the Catholic station “Sol Mansi”
(founded by Father David in 2001) and the Muslim Qur’anic station of Mansoa
(“Recom”) would work together, the former hosting Muslim programmes, the
latter hosting Catholic ones, and the two sending ecumenical messages to the
mixed public of Mansoa.7
But let us not be too romantic about convivência. It is in itself another
ideal type, with its exceptions in everyday life, where clashes of religion do
occur. It is alright, for example, for Muslims to do proselytism in the Eastern
frontiers of the country (or in buffer zones such as Oio), but if they try to
enter regions historically associated with either Christianity or animism, such
as the coast or the islands, they may find themselves with a real or symbolic
confrontation, and therefore will have to use their own real or symbolic

6
Ordained in 1977, Ferrazzetta was the first bishop of Bissau. After his death, Guinea-Bissau had two dioceses:
Bissau and Bafata. Ferrazzetta was a significant mediator in the armed conflict and an initiator of the ecumenical
spirit continued by his successors.
7
The importance of radio channels in the making of ecumenical religious publics in Guinea-Bissau is an underde-
veloped area of research (already discussed by Gonçalves in colonial days, see Gonçalves 1961:27-32 and 1966).
One of the authors (de Barros) has already started a contemporary systematic survey; future publications will follow.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

violence, such as iconoclasm (destruction of sacred objects, sacred forests and


shrines). There have been some recent examples of this on the coast and on
the Bijagó islands. But iconoclasm may backfire. Just look at what happened
in January 2009 in between the islands of Pecixe and Jeta, when a Muslim
Mandinga man was preaching among the largely animistic Mandjaco. A boat
departed from the port of Pecixe with the intention to take the Muslim cleric
and his followers to Jeta to continue their proselytism. Yet, in the middle
of the way, the boat, probably overloaded, sunk, and more than 70 people
died. The tragedy was later interpreted by animistic people as an example of
the superiority of the local spirit over the Muslims trying to penetrate their
territory. The land of spirits has to be trodden carefully. This kind of events
and beliefs reinforce the geo-spiritual divide and collaborate to the tenacity of
traditional religions in many parts of Guinea-Bissau.
Contract, prayer, and negotiations
A contrast that often crops up in conversations and interviews with
Bissau-Guineans is the distinction between religions of contract and those of
prayer. Animistic societies share a cosmological matrix according to which
the community is based on oaths and “spirit contracts.” Spirits (irans, in
Kriol) are the real owners of the place (tchon, a concept of particularly strong
religious and political relevance in Guinea-Bissau). In order for humans to
inhabit a place, a contract between the spirit and the first arrival must be
“signed”. This gives ritual and political seniority to first arrivals, who thus
become the owners of the place (donos do tchon). Late arrivals (hóspedes)
will need their authorization to settle and to have access to land (Temudo
2012). However, if the first arrivals do not keep renewing the contract with
the iran, through periodic libations and sacrifices, the nourishing territory
may turn into wasteland.
Islam and Christianity, in opposition, meet in prayer. Indeed, Guinea-Bissau
might offer a paradigm in which to study the social-glue aspect of prayer, a concept
used as a metonym for “religion”. It is not unusual in Guinea-Bissau to hear
expressions like “I am going to the prayer” as synonyms of either “I am going to
the Mosque” or “I am going to the Christian meeting”. Moreover, the expression
“the people of the prayer” is used to refer to the religious and human sameness
underlying Christians and Muslims. This centrality of idioms around “prayer”
highlights the community-making aspect of this religious practice. At the discursive
level, praying constitutes a common index for people to perceive themselves as
equals (“the people of the prayer”), even if they belong to different world religions.

429
Organizadora : Edelamare Melo

At the practical level, some religious celebrations (important Muslim and Christian
feasts) often bring people together in big ecumenical prayers. With prayer such a
key defining aspect of people’s lives, understanding the fabric of the contemporary
country and how religion might be related to political projects of stabilization is
extremely important.
Prayer is thus a very strong centripetal gluing force, but it can also become
a centrifugal drive of exclusion. Individuals or groups who do not belong to the
“people of the prayer” category are more and more ostracized and excluded
from the public sphere. This exclusion and marginality generates reactions,
such as the mimetic Kyang-yang prophetic movement discussed below, but
it can also create resentment. It also creates tensions between Muslim and
Christian proselytizers in their competition to convert “pagan” people.
Religions of prayer abhor notions of spirit contract. In Christian
theology, in particular, you can have a contractual relationship with the Devil
(the “Faustian” contract) but certainly not with God. In both Muslim and
Christian theology, God is beyond practical obligations towards humans, and
cannot be forced to abide to legalistic forms of contract. However, the strict
opposition between “prayer” and “contract” may be another one of those
ideal typical ones that work very well at the level of representations, but that
in practice are divided in many in-between solutions and situations. Many
of the Muslim practices associated with mouros (the Kriol word for what in
many parts of West Africa, including eastern Guinea-Bissau, is referred to
as marabouts) can be seen as a mixture of contract and prayer, and although
mouros are criticized by reformist Muslim leaders, they are so important
in the Bissau-Guinean public sphere (as well as in the diaspora) that their
existence, even if contested by some reformist ulema, is part and parcel of the
religious convivência, and not very aggressively tackled by anyone. The same
can be said of Catholicism, a religion based on prayer, but whose practices
are often subjected to the logics of contract, promises and torna-boka, as
Bissau-Guineans refer to the rituals one must perform in a shrine in order to
return a favour of the spirit of the place. Sometimes, even migrants who live
in Europe, who may be Muslim or Christian, must make a journey back to
the most remote village in hinterland Guinea-Bissau to perform a torna-boka.
Islamic trends: old and new
The history and workings of the expansion of Islam, sometimes referred to as
“the threat of Islam” in colonial sources (e.gr. Franklin 1956), in Guinea-Bissau has
been a topic of scholarship by colonial administrators (Rodrigues 1948; Teixeira

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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

da Motta 1954; Brito 1957; Gonçalves 1958, 1961, 1962; Carreira 1966), as well
as by recent historians (Bowman-Hawking 1980) and anthropologists (Gaillard
1994, 2000; Johnson 2000; Costa Dias 2009). Nevertheless, despite some efforts by
recent scholars, ethnographic work is still needed to assess the relevance of Islam in
today’s public sphere.8 The available literature shows that the making of a Muslim
community in Guinea-Bissau has been extremely turbulent and fragmented since
the days of precolonial empires such as Mande, Gabu or the two Fuutas and their
fights (both internal and among each other), right through to today’s controversies
within the umma. It also shows that between the letter of the Qur’an and everyday
practices there have been many possible compromises, negotiations and processes
of cultural osmoses and symbioses, which, in their turn, have produced many
reformist Muslim movements. This is true of most of West Africa; but perhaps due
to its ethnic pluralism and to the tenacity of traditional religions, as well as to the
ability of inhabitants to adopt multiple identities and make fluid alliances, Guinea-
Bissau might offer a paradigmatic case in which to study the cultural logics beneath
Muslim incorporation, expansion, and internal debates.
The entanglement between Islam and the anti-colonial struggle has
been tackled by Garcia (2000, 2004), and its relevance to understanding later
post-colonial politics by Gaillard (2002) and Cardoso (2004). Much like
Christianity, Islam, Cardoso argues, was regarded with suspicion by the first
independent governments, largely because of its “verticality” (to use Cabral’s
formulation) and its association with colonialism (see chapter by Green, this
volume). Religion was perceived as a hindrance for the making of the homem
novo of the revolutionary future. In the 1990s, religion, like associations and
civil society in general (Barros 2012), started to have a much more accepted
presence in the public sphere. This was accentuated after the conflict of 1998/99,
when both Islam and Christianity became engaged in the political landscape.
Cardoso argues that, although the situation at the time he was writing was not
quite the same as that of Senegal (overt symbiosis between political parties
and Sufi brotherhoods), Guinea-Bissau might be going in that direction, with
similar symbioses between Islamic trends and political attitudes. Ten years after
Cardoso’s article, and basing ourselves on our field research among Muslim
agents and associations in pre-electoral Bissau in December 2013, we are
inclined to believe that the convergence between political leaders and Muslim
publics he anticipated is becoming more and more likely.

8
For some exceptions, see the recent MA thesis on early marriage among Muslim women (Borges 2009) or the
UNICEF report (Einarsdóttir et al. 2010) on the problem of the “talibé children”, i.e. young boys sent to undertake
Qur’anic training to Senegal, where they are forced to beg, a big concern in both Guinea-Bissau and Senegal.

431
Organizadora : Edelamare Melo

Today there coexist in Guinea-Bissau different understandings of Islam. We


have verified the existence of the following key categories: mainstream Sunni Muslims;
Sunnis belonging to the Sufi brotherhoods Qadiriyya, Tijaniyya and Muridiyya (this
last one mostly composed of Senegalese settlers, since this brotherhood is very
important in Senegal);Sunnis belonging to the reformist movement Wahabiyya; Sunnis
belonging to the Ahmadiyya (even if the initial foreign introducers of this movement
were expelled from the country by Kumba Yala in 2001, following misunderstandings
with the National Islamic Council); Sunnis belonging to the Tablighi Jamaat (a
movement particularly attractive to young people); and, beyond the Sunni sphere,
of Shi’a Muslims. The latter are probably recent arrivals, but they must be taken into
consideration. Worries about Shi’a presence and actions have been firmly voiced by
Sunni ulema of different trends.
The arrival of Wahabiyya and Shi’a over the last decade is attributed, by
many of our interviewees and by the media,9 to the proximity of the Republic
of Guinea. A large number of Guinean Muslims have entered Guinea-Bissau
since the Mandinga Alpha Conde took presidential office in 2010. Conde is
a Muslim, but the Fulani of Guinea have been massively prosecuted since
the beginning of his rule, which many Guineans describe as a “Mandingo-
ization” of their country. Many Guinean Fulani, including wealthy traders
and some politicians, have established themselves in Guinea-Bissau, making
alliances with religious (and, probably, political) agents.
When discussing new Islamic forms in the field, a notion that normally
emerges is that traditional Islam used to be much more tolerant to local non-
Muslim practices than the new forms of today. This is probably the case, though
we should not romanticize past forms of Islam or fall into the problematic
explanation that forms of “Black Islam” were closer to African beliefs than
to the orthodox Muslim belief. The arrival of Islam in the past was also, on
many occasions, violent to local socio-cosmological understandings, and
“orthodoxy” is too theological a concept to have sociological value anyway.
Probably, a lot of devotees who practiced so-called African (or Black) forms
of Islam would argue, if asked, that they were perfectly abiding to Muslim
orthodoxy. And who would we be to dispute that?10
Age is a particularly interesting aspect of the debate. Some of our
interlocutors argued that established forms of Islam in Guinea-Bissau had

9
See, for instance, the 2012 entry “Muçulmanos guineenses que praticam o islão segundo regras xiitas preocupam
chefes religiosos” in the blog “Ditadura do Consenso” (http://ditaduradoconsenso.blogspot.pt/2012/07/muculma-
nos-guineenses-que-praticam-o.html) (retrieved 11 April 2014).
10
The clash between different modes of Islamic training is the object of an insightful article by Eduardo Costa Dias
(2005), astutely avoiding a facile divide between “Black Islam” and “orthodox Islam.”

432
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

one very important thing in common: the gerontocratic order. According to


them, in the past it was as difficult and long for an animistic young child to
become a proper elder in the local community as it was for a Muslim Fulani
or Mandinga to become a properly learned Muslim elder. Both processes of
maturation were, indeed, time consuming (for the confluence between Islamic
and traditional systems of religious training in West Africa, see Brenner 2000).
Newer forms of Islam, in contrast, try to bypass the “in-between” status of
many young Bissau-Guineans, prisoners in age-and-learning systems in which
they are no longer children nor not yet adults, by promising that anyone can
be learned and empowered, even if they were a young man or woman.
According to these interviewees, thus, one of the elements that makes
these new religious movements so fascinating for Bissau-Guinean youths is
that they address the main problem youth face in Africa today, namely how to
become an elder and to be responsible for their own agency. They offer, to put
it this way, a right-now and ready-made modern adulthood.
But this view is contested by some other interviewees. Some of our
more “traditional” young Muslim ones insisted that newer forms of Islam,
such as Shi’a and Tablighi Jamaat, are not really addressing young people’s
problems. Rather, they are successful at manipulating youths’ desires and
expectations. These interviewees argue that the relationship between youths
and elders (and between men and women) is very fluid in traditional forms of
Islam, and abusive gerontocracy does not really exist: all Muslim are equal
before God, irrespective of their age or sex. Youths of today, holders of this
view insist, are being manipulated by external agents willing to create division
in Guinea-Bissau by playing with youths’ aspirations.
This may be truth at some level (depending on how we define
“manipulation”), but it should not mean that youths have no agency whatsoever
in their conversion. They may be “manipulated” at some point, but they may
also be “manipulating” the situation to their advantage. Perhaps the success of
some forms of religions depends on their becoming an all-win equation, in which
everybody is happy with what they are getting out of the global situation…
In any case, the diversity of forms of Islam is striking and is a constant topic
of theological discussion among Muslims and of social views about Islam in general.
While this is probably the case for any Muslim context, it is rather extreme in Guinea-
Bissau. The Islamic community is today so strongly divided that it boasts two Islamic
councils: the National Islamic Council and the Superior Islamic Council, divided
along ethnic and political lines (the former being composed mainly of Mandingoes
and the second of Fulani, increasingly incorporating exiled Guineans). The division is

433
Organizadora : Edelamare Melo

so acute that last year the two councils celebrated the tabaski (the West African name
for the annual Eid-al-Ahda feast) in different days, following different readings of
the liturgical calendar. These are divisions which have thus all followed on from the
emergence of Islam into the public sphere since 1998, and the intersection of religious
and political changes in the whole sub-region.
Religion, modernity, and connection
Perhaps because it has been such a marginal, out-of-the-way place where
for too long modernity has been beyond the reach of many of its citizens, Guinea-
Bissau has been object of some of the most innovative works on the fascination
for modernity among young Africans (Gable 1992; Bordonaro 2010). In this final
part of our chapter, we seek to show how many of the religious transformations
the country has experienced in the last 30 years can be seen as indigenous ways to
appropriate what people perceive as a modernity from which they feel excluded
and to make alliances with broader worlds, an “extroversive” attitude that has
characterized the local worlds of Guinea- Bissau since their early days.
Perhaps the most paradigmatic example of this religious appropriation of
modernity is the prophetic movement Kyang-yang (Cardoso 1992; Caellewart
2000; Temudo 2008; de Jong and Reis 2010). The Kyang-yang (a word meaning
“shadows” in Balanta) is a religious movement that affected almost exclusively
the rural Balanta. It emerged in 1984 when a woman, Ntombikte (later known as
Maria), claimed to have received commandments by God. She had thousands of
followers, who under her initial guidance (later under the guidance of other Kyang-
yang prophets, including Ntombikte’s brother) abandoned traditional religion and
converted to what, from an external point of view, was a syncretistic form of
monotheism. They mixed Muslim and Christian symbols and rituals and gave a
centrality to idioms of “prayer”. They also materialized their religion and beliefs
through sculptures and drawings. It is striking, when analyzing this imaginative
material culture, to notice how important modernity was for adepts to Kyang-
yang. It was as though Balanta farmers, aware of their marginalization from the
Bissau-Guinean public and political spheres (particularly acute in the early years
of the 1980s, after Nino’s coup d’état), attempted, through conversion, to join
the modern world they were explicitly expelled from. Through their exuberant
religious imagination, they built or designed hospitals, schools, modern homes,
and religious buildings similar to either a mosque or a Christian temple. The
movement was highly mimetic, but it had real effects on people’s lives.
The Kyang-yang gradually died out. Today it is composed of isolated
individuals living in Balanta villages, who sometimes gather in small groups

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

to pray, but more and more rarely so. There have been little or no conversions
over the last decade. Its gradual disappearance has been replaced, as far as young
Balanta people are concerned, by two new religious arrivals in the villages:
Pentecostalism and Islam, even in regions previously known for their fierce
opposition to Islam. These two religions are seen today (and, unlike Kyang-yang,
not only for Balanta) as local mechanisms to reach modernity and to be connected
to a wider world, effecting, probably, a much more real and less imaginative
connection than that earlier expressed by Kyang-yang prophets. In March 2011,
one single man, Maulama, a Balanta Nhakra who had studied in Morocco, where
he converted to Islam, brought Islam into his village (in the region of Oio) and
converted hundreds (some say thousands) of young people to Islam. Several
villages decided, collectively, to convert so as to have access to “hospitals,
wells, and schools”, to cite verbatim the three things their dwellers mentioned in
interviews as the main advantages of conversion (in the hope that development
agencies from other Muslim countries would help them obtain them).
The rise of new forms of Evangelism and Pentecostalism in Guiné-Bissau is
a recent boom (linked to the expansion of Brazilian churches), but it builds upon
a deeply established Protestant community that, although very small till recently,
should not be neglected (for its history, see Brierley 1955; Gonçalves 1961, 1966;
Santos 1968; Wallis 1997; Costa Dias 1999; Lima 2007). Neo-Pentecostalism often
functions to promote forms of “development” and to provide an anchorage for
young people to feel that they belong to wide networks and possibilities, being very
efficient at combining religious with other social services.11 In the island of Formosa,
for instance, the Evangelical headquarters includes a pharmacy. Evangelists also
rely on the power of the radio, and in particular it may be worth singling out the
Radio Luz. This radio was born in the 1998-99 civil war environment. It was during
the war that the Brazilian Pastor Cláudio Silva (from the Assembly of God), then in
Cape Verde, had a dream in which God commanded him to go to war-torn Guinea-
Bissau to undertake evangelical work there. TV channels, especially “Record TV”
(belonging to the Universal Church of the Kingdom of God), is also a prominent
element of evangelical action. Evangelist churches arriving from Brazil have in
their favour the fascination that Bissau-Guineans feel towards things Brazilian: the
culture, the people, the music, the tastes, and even the characteristic Brazilian accent
and way of speaking Portuguese. Brazil, a country Africans perceive as being much

11
The huge literature on (neo-) Pentecostalism in Africa is often based on a clear-cut distinction between Pentecostal
and non-Pentecostal forms of evangelical Christianity. However, in the field the line gets very blurred. Many Bis-
sau-Guineans we interviewed did not even know whether their church was Pentecostal, Evangelical, or mainstream
Protestant.

435
Organizadora : Edelamare Melo

more developed than their own, is, in itself, a symbolic mediator that allows for
Christianity to arrive to ex-Portuguese Africa without any colonialist connotation.
Brazilian religious expansion is not only a “South-South” phenomenon, but one
that gives hopes to Africans that they can reach their own way of being in the
“developed” side of the world.
These waves of modernization through religion (the semi-extinct Kyang-yang,
Pentecostalism, and Islam) have some common trends, which an help us to assess how
the country can move towards integrating this modernity with the need to find a stable
political settlement. First of all, they all share the notion that religion brings connection.
Non-Muslim and non-Christian people know that their world religious neighbors belong
to complex networks linking them to each other and to wider international circuits. Being
modern is being connected to this network and, through this connection, able to gain
access to development, wealth, and improvement of life quality.
Secondly, we find in these religious dynamics reconfigurations of age
and gender. Young people may find it easier to express and effect revolt against
their elders if they feel God is on their side. The three religious examples have
produced breaks with tradition and with kin obligations. Women, too, may find in
religion ways to organize themselves against traditionalist male hegemony. Since
its arrival in 2010, the Brazilian-initiated Evangelist organization Filhas da Sara
(Sarah’s daughters) is rooting itself in the Bissau-Guinean society and providing
women with a relatively autonomous sphere within Christian religious culture.12
Last, but not least, religion is part and parcel of the reconfiguration of alliance and
relatedness we witness in Guinea-Bissau today. New idioms of love, of individual
autonomy and of nuclear family are emerging, and religion plays a very important
role in encouraging young people to look for their partners and breaking with
traditional structures of kinship and alliance.
Christian and Muslim proselytizers are very successful at mobilizing this
need for individual autonomy in a world of equal citizens, but given the peculiar
tenacity of traditional religions in Guinea-Bissau, sometimes the dynamics are
reverted. Thus, in the largely animist Papel and Bijago regions, when people
convert to Christianity (and sometimes to Islam) but their move is felt as
unsuccessful, they may have to pay huge amounts of money and sacrifices to ask
for forgiveness and to be reconverted and reincorporated in their communities.
Conclusion
Guinea-Bissau, a small country at the edge of a big continent and of an
even bigger ocean, boasts many different religious traditions and many different
12
http://ministeriofilhasdesara.blogspot.pt/p/guine-bissau.html (retrieved 10 April 2014)

436
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

compromises. Sociologists are often puzzled to find that people, when asked
about their religion in questionnaires, do not write down “Muslim”, “Christian”
or “animist”, but rather “mixed”.13 What might a “mixed religion” be like? What
do people really mean? This must be ethnographically studied, but the use of the
concept, in itself, tells us a lot about the lived-world of contemporary Bissau-
Guineans. Their spiritual landscape offers a rich variety of discourses and
practices, and history has taught them that it is best to keep options open. Their
success, as individuals and as groups, depends on tapping from different sources
and on making simultaneous alliances (in some parts of Guinea-Bissau it is very
common to find people who send one child to the Mosque and another one to the
Catholic church, thus maximizing their and their group’s alliances). Managing
multiple identities and mastering the arts of ambiguity has long been part and
parcel of being a person on the often turbulent frontiers of the Upper Guinea Coast.
Historical work is necessary to analyze the depth of the different traditions, the
connotations some groups have inherited, the representations different religions
have had in different times, and the compromises made at specific moments.
Sociological and anthropological work is equally necessary to better understand
how this historical legacy is incorporated, what the cultural logics of religious
change and mixture are, and how the cunning ability of actors to negotiate and
to find resourceful mediations works. In the conclusion of O Mestiço e o Poder,
Tcherno Djaló warns against the potential polarization between a Luso-ized elite
and a Muslim one, and reminds that only a properly democratic institutional
setting will prevent this from becoming a political problem for the country (Djaló
2013: 273-74). Democracy is indeed necessary, but in any case Bissau-Guineans
have sufficiently demonstrated that they do not sit well in strict polarities, be
they racial, political or religious: they are very good at managing ambiguity and
mediation and at offering imaginative solutions. In the making of the modern
global world, Bissau-Guineans are better regarded as actors than as outcomes.
Their own willingness to remain actors is what lies underneath their skillful
management of alliances and extraversions and what gives rise to the religious
inventiveness of this apparently marginal, but in reality very central part of the
Atlantic world.
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13
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Organizadora : Edelamare Melo

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Organizadora : Edelamare Melo

444
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

ÓDIO > PERDÃO > AMOR = Cidadania

Ruth Grinberg e Natalia Gedanken

Inicialmente gostaríamos de convidá-los a fazer uma pausa para uma


atividade bem simples: Respirar. “Vamos juntos respirar com a Natureza?”.
Assim, poderão relaxar e abrir um espaço para receber a minha mensagem.
A história da humanidade contada e estudada nos livros e nas escolas, fala so-
bre como uma pessoa, ou um povo, alcançou o poder e subjugou a outros, sentindo-
se no direito de matar, estuprar, tomar propriedades e impor sua cultura e seus cos-
tumes. Nossa história, normalmente, realça os vencedores e ignora os perdedores.
O povo judeu que perdeu muitas lutas, foi escravizado e subjugado nos
últimos milênios. Assim foi, até a criação do Estado de Israel, que serviu para
os acolher e dignificar. Somos um povo com tradição, cultura, costumes e leis.
Acreditamos que nossas leis foram dadas por D’us. Não queremos dizer com
isso, que o povo judeu seja mais ou menos importante que os outros povos.
A grande maioria do nosso povo conclama a paz, a evolução e a dissemi-
nação da educação e da cultura. É o povo do Oriente Médio que mais prêmios
Nobel recebeu (25%). Impressiona o tanto de pesquisa científica, de informática
e avanços tecnológicos que vem realizando nos seus quase 70 anos de existência.
A maioria dos povos tem como base a situação geográfica que vivem. O
Estado de Israel, diferentemente, é um país que surgiu baseado na espiritualidade
que integra crenças, valores e costumes respeitados por gerações. É impressio-
nante como o povo judeu, com tudo o que passou e tem passado, se mantém liga-
do a sua herança religiosa e cultural, mesmo estando espalhado pelo mundo todo.
São inúmeras as perseguições e tentativas – quase bem-sucedidas – de
nos exterminar. Não conseguiram. E por que? Por ser o povo escolhido? Acho
que é o que vocês devem estar se perguntando agora... A resposta é.... não!
Eu vou contar o segredo... é a relação de amor, amizade e conhecimento his-
tórico do nosso povo. É a capacidade de se ir além das mágoas, do ódio e dos
ressentimentos. É a capacidade de Perdão.
A pior DOR que o povo judeu já passou, todos sabem, foi o Holocausto,
ocorrido durante a II Guerra Mundial. Além dos campos de trabalhos força-
dos, haviam os campos de extermínio. O mal maior de todos os tempos foi
um médico alemão, coronel da SS – a tropa de elite nazista –, chamado Josef
Mengele, um pesquisador e torturador.

445
Organizadora : Edelamare Melo

Os poupados da morte imediata por ele eram enviados para o “zooló-


gico” assim chamado os barracões onde ficavam as cobaias humanas de seus
experimentos. Apelidado de “anjo da morte”, suas experiências eram feitas
especialmente com gêmeos.
Como foi possível tanta maldade? Vou contar uma das histórias de
Mengele.
Eva kor
Eva e sua irmã gêmea, Miriam, foram submetidas aos experimentos de
Mengele, quando eram prisioneiras no campo de concentração de Auschwitz
na Polônia. Ela teve de enfrentar momentos muito difíceis e dolorosos. Elas
foram submetidas a vários experimentos e testes genéticos. Eva nos conta
que foi separada da irmã e levada para um laboratório. Depois de torturada
ela teve febre, inchaço nas pernas e nos braços e manchas vermelhas em todo
o corpo. Então, Josef Mengele disse que ela teria duas semanas de vida. Mas,
por algum milagre ela sobreviveu e foi devolvida a um galpão, onde reencon-
trou sua irmã. Ela tinha que sobreviver para garantir a vida de sua irmã.
“Se eu tivesse falecido, Miriam seria morta com uma injeção no
coração. Mengele teria feito uma autópsia comparativa”, expli-
cou, detalhando os planos do agente alemão”, diz Eva.

Esta poderia ser apenas uma história do passado. Porém, hoje, mais
do que nunca, a cultura do ódio virou uma moda e um modelo de cidadania.
Hoje tanto nos meios de comunicação (jornais, rádio e TV), nas redes sociais
(WhatsApp, Twiter, Facebook) vem incentivando cada vez mais a maldade
humana. O que mais se lê e se escuta são sobre as situações alarmantes e cru-
éis que estão ocorrendo: crimes dos mais diversos, assédios, raptos e torturas.
Alguma coisa diferente da época do nazismo? Tenho minhas dúvidas...
Atualmente está em voga ser ruidoso, mal-educado, pérfido, agressivo,
descuidado, bruto, mal-humorado, impaciente, ranzinza... Não é à toa que a
moda atual busca calças rasgadas e até mesmo roupas com simbologia na-
zista ou de guerrilha. Elas falam por si só. Hoje o chique é ser assim. Todos
os tipos de mercadorias com fotos de vítimas de campos de concentração e
imagens que exaltam Hitler agora são facilmente encontrados em lojas on-li-
ne. Já existe uma tendência de moda, chamada “nazista chique”, que ganha
popularidade em todo o mundo.
Se o uso do simbolismo nazista na moda se manifestasse em ca-
sos isolados, haveria apenas um pequeno motivo de preocupação.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Mas quando essa tendência é apoiada ou encoberta por gigantes


como a Amazon, a maior plataforma de vendas on-line do mundo,
não podemos permanecer indiferentes. Desde decoração de casa
a roupas e acessórios, o site popular está infestado de produtos
que mostram vítimas do Holocausto indo para as câmaras de gás
e imagens que glorificam o Terceiro Reich. Essa tendência vem
para nos abalar até a compreensão da urgência e pertinência de
unir nossas forças. Ao nos tornarmos um povo unificado, seremos
capazes não apenas de evitar banalizar as atrocidades do passado,
mas também de impedir que a história se repita
Dr. Rav Michael Laitman

O Perdão
Após a guerra, a trajetória de Eva Kor foi muita ativa. Gerenciava suas
páginas no Facebook e no Twitter, viajava pelo mundo fazendo palestras e
documentários, escrevia livros. Dois anos após a morte de sua irmã, fundou o
museu CANDLES, dedicado à história dos experimentos nazistas com crian-
ças, a recordação e a reconciliação.
Após a morte de Miriam, Eva iniciou o caminho para a libertação, o perdão e
a cura. Em abril de 2015, viajou para a Alemanha para ser testemunha no julgamen-
to do ex-nazista, Oskar Groening. Durante o processo, ela se aproximou do homem
e o abraçou. Eva explica que percebeu que tinha o PODER de PERDOAR e PO-
DERIA USÁ-LO COMO QUISESSE. O PERDÃO a tornou mais forte, ajudou-a
a apagar lembranças terríveis e a se LIBERTAR DE SEU PASSADO TRÁGICO.
O bem e o mal sempre coexistiram dentro de nós. O mal, na visão judaica, é
a chance para crescer, evoluir e conseguir elevar a alma, desenvolver nossa capaci-
dade criativa e as habilidades de nos relacionarmos como seres vivos. Ele até tem
nome próprio: IÊTZER ARÁ. Para podermos lidar com o mal que existe em nós,
precisamos conhecer a nossa própria história de vida, de nossa família e do povo ao
qual pertencemos. Esse é o primeiro passo para que possamos ir além destes senti-
mentos que contaminam as relações pessoais, familiares e profissionais.
O mundo em que estamos vivendo neste momento, está constantemente
sendo bombardeado por notícias, imagens e fatos de morte, agressividade,
de desespero e acabam levando à desesperança e descrédito no ser humano.
Poderia parecer natural se não fosse tão cruel. Nunca houve tantas tentativas
de suicídio (“Setembro Amarelo”), casos de anorexia, bulimia etc.
O que mais temos ouvido com relação aos jovens de todos os lugares é
a falta de esperança e o descrédito nos seres humanos: “já que está tudo es-
tragado, podre mesmo, vamos lá, que eu ajudo a estragar mais”, acredito que

447
Organizadora : Edelamare Melo

é isso que devem pensar. Com isso, os ataques às escolas, templos, pontos de
ônibus, táxis, caminhando nas ruas, em qualquer lugar... “esse ódio que tenho
dentro de mim não aguento mais e tenho que colocar para fora! ” Esse ódio é
um desesperado pedido de ajuda para que se faça alguma coisa.
Além disso, vejam o quanto estamos passando por crises ecológicas! To-
dos deveriam perceber o que está acontecendo na natureza. Vamos continuar nos
comportando como criancinhas e viver da misericórdia dela? Ou vamos assumir
a responsabilidade sobre nossas vidas e o planeta, nossa casa em que vivemos.
Não dá mais para acharmos que o que ocorre num país não repercute
nos outros. Estamos todos entrelaçados na teia da vida planetária. A guerra na
Síria, por exemplo, levou-os à uma fuga em massa, causando drásticas con-
sequências em diversos países. Sabemos com isso que hoje não há mais ven-
cedor; que por isso devemos nos cuidar e tentar transformar as ideias do mal.
O único escudo para a nossa sobrevivência é nossa unidade. Como está escrito:
“A principal defesa contra a calamidade é o amor e a unidade. Quando há amor, união
e amizade, nenhuma calamidade pode vir sobre eles” (Maor Vashemesh).
Como poderemos transformar toda essa maldade? O que posso fazer é
recodificar minhas ideias e percepções sobre os fatos. As boas forças são re-
veladas e você as deve usar para se transformar dentro delas. Só depende das
nossas ações. Como então transformo coisas ruins em boas?
Através da restrição. Todos nós temos capacidade e competência de con-
trolar nossos atos e com isso sublimar nossas emoções. É fundamental acreditar
na força de nossa intenção e termos clareza e fé. Então, somente com a bondade
poderemos fazer um mundo melhor. Repetimos, para isso, precisamos conter
a nossa parte malvada e transformar, ou despertar a força positiva, a força su-
perior, o amor. O que está sendo revelado agora é para nosso puro polimento.
Precisamos aprender a construir, inspirar e reviver relacionamentos amo-
rosos, elevando-nos acima do egoísmo. Precisamos aprender a entender nossa
natureza humana egoísta e por que não podemos tolerar um ao outro.
Os que desejam se submeter a esse processo precisam de um grupo onde
os participantes mostrem uns aos outros o quanto tentam superar seus próprios
desejos em benefício dos parceiros. O amor é como um animal e deve ser cons-
tantemente alimentado. Elevar-se acima do egoísmo abre novos horizontes de
acordo com o princípio: “o amor cobrirá todas as transgressões”. Um novo es-
tudo sugere um método para parar o sofrimento: simplesmente não pensar em
nós mesmos, mas nos outros. Este é o caminho para ser feliz de acordo com a
sabedoria da Cabalá. Quando nos unimos acima dos conflitos e das diferenças
de opinião, uma força positiva se espalha no mundo e pode fazer maravilhas.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

“Se uma pessoa pega um feixe de juncos, não pode quebrá-los todos de
uma só vez. Mas, tomado um de cada vez, até um bebê os quebrará. (Midrash
Tanhuma, Nitzavim, Capítulo 1). Entendem a importância da UNIÃO?
AMOR
Então D’us, como posso estar consigo, falar, interagir, me sentir amada e prote-
gida e mesmo confiar em Ti e também querer lhe proteger e berrar aos quatro ventos
o quanto O amo, O respeito e O quero! Eu acredito na humanidade, no bem e no bom,
ENFIM busco sempre o melhor DO SER HUMANO. (Eva é um exemplo)
Reconheço o ódio.
Realizo o Perdão.
Busco a aceitação e o amor.

Para concluirmos vamos compartilhar um texto que nos nos chamou atenção
sobre o AMOR, em tempos de tantas manifestações de ódio e intolerância, que vem
do povo Na’vi, nativo de Pandora, no filme AVATAR. Ao em vez de dizer “eu te
amo”, diziam: “eu vejo você”. Ver o outro é reconhecê-lo como semelhante, é ir
além da superfície e mergulhar no SER. Significa ver o outro mais do que fisica-
mente. Significa ver um olhar amoroso dentro do outro, com compreensão, acolhi-
mento e com toda a nossa vulnerabilidade, humanidade e divindade em comum.
Eu vejo a sua dor.
Eu vejo os seus potenciais.
Eu vejo você e aceito tudo o que eu vejo, mesmo aquilo que não
me agrada, mesmo aquilo que não se encaixa nos meus padrões.
Eu vejo a sua Luz.
Eu o vejo sem lhe julgar, sem lhe culpar. Eu vejo você além de
quaisquer expectativas e projeções, pois elas podem prejudicá
-lo e esconder sua identidade mais profunda.
Eu vejo você em todas as suas dimensões e na riqueza de todas
as suas experiências.
Eu vejo você, é minha maneira de recebê-lo incondicionalmente
e, ao fazê-lo, eu permito que você se veja e perceba como você é.
Eu vejo você, significa deixar-se irradiar, sem filtros, sem más-
caras e sem medos.

Quando digo “Eu Vejo Você”, estou dizendo que estou deixando de
lado o meu julgamento, os meus preconceitos para enxergar você de verdade,
inteiramente, como você realmente é e aceito você exatamente do jeito que é.
Eu vejo você porque eu também consigo me ver. Eu o respeito, eu o
valorizo, você é importante para mim. Toda minha atenção está com você. Eu

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Organizadora : Edelamare Melo

vejo você e me permito descobrir suas necessidades, vislumbrar os seus e os


meus medos, me aprofundar nos seus e nos meus erros e aceitá-los.
Eu aceito você como você é, e você faz parte de mim.
AME AO PRÓXIMO COMO A TI MESMO! O princípio judaico pri-
mordial e se integra também em outras crenças.
ESTES SENTIMENTOS, ATITUDES, CONHECIMENTOS DO BEM
PODERÃO ALAVANCAR RESULTADOS POSITIVOS NO PROCESSO
DE CONSTRUÇÃO DA PAZ, RESPEITO E CIDADANIA.
O Ari, o Cabalista que descreveu toda a estrutura da realidade espiritual em deta-
lhes, resumiu da seguinte forma: “O homem é um pequeno mundo; o mundo é um grande
homem”. Em outras palavras, o mundo inteiro é o reflexo do mundo interior do homem,
reflete as consequências das qualidades internas do homem. Se aprendermos a perceber a
realidade corretamente, encontraremos a conexão entre o que acontece no mundo e o que
acontece dentro de nós. Assim, mudando o homem, podemos mudar o mundo.
E, agora, uma simples atividade: Desenhem uma flor. Qualquer tipo de
flor. Peguem uma folha do bloco de anotações e desenhem uma flor ... tirem
agora a folha desenhada do bloco e entreguem à pessoa que está sentada à sua
frente. Fácil, né? Pois é.
Apesar de estarmos todos chafurdados em ambientes que estimulam a
violência, o apontar de dedos críticos e até de armas, cabe a cada um de nós
buscar grupos, amigos e sociedades, preocupados com a conexão social, a
igualdade e a reciprocidade onde se possa encontrar pessoas que nos pos-
sibilitem desenvolver a amorosidade, difundir e nos permitir SER para que
tenhamos força propagar a essência melhor da Humanidade.
Muito já foi feito. Muitos grupos existem. Agora, mais do que nunca, o
que precisamos é nos juntar, unir, CONECTAR!
AME AO PRÓXIMO COMO A TI MESMO!

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Organizadora : Edelamare Melo

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

As infiéis: Criminalização das mulheres na


primeira metade do século XX no Brasil

​Thaís Dumêt Faria*

Sumário: 1 Introdução – 2 As vítimas da herança – 3 Mães e pais higi-


ênicos: o controle da mulher, da sexualidade e da família - 3.1 As aberrações
sexuais da mulher – 4 As Perigosas Damas do Brasil - 4.1 O perigo da beleza:
as prostitutas do novo século! - 5 Conclusão – 6 Referências.
Resumo: Este artigo pretende realizar um estudo sobre as relações entre os
comportamentos sexuais das mulheres e as políticas criminais para contenção do
delito empregadas no início do século XX no Brasil. Nesse período, os teóricos
discutiam a criminologia positivista, que tentava determinar os “estigmas atávi-
cos”, ou seja, as características dos “criminosos”. No estudo da mulher crimi-
nosa, os chamados “desvios sexuais” eram os mais ressaltados como perigosos,
não à toa as prostitutas eram consideradas o grupo mais perigoso das mulheres,
seguidas pelas lésbicas ou bissexuais. Nesse sentido, pretendemos iniciar uma
reflexão de como as mulheres foram vistas, no início do século XX, e como essa
tentativa de classificação da mulher criminosa colaborou para a formação de es-
tereótipos existentes nos dias atuais e que justificam um tratamento diferenciado
social ou penal para determinados grupos de mulheres.
Palavras-chave: criminologia - criminologia brasileira - antropologia
criminal - controle social - genero.
The unfaithful: Criminalization of women in the
first half of the 20th century in Brazil.
Contents: 1 Introduction – 2 Inheritance’s victims – 3 Hygienic’s
parents: the control of the woman’s sexuality and the family – 3.1 Woman
sexual aberrations – 4 Dangerous ladies of Brazil – 4.1 The danger of beauty:
the prostitutes of the new century! – 5 Conclusion – 6 References.
Abstract: This article intends to conduct a study about the relationship
between the sexual behavior of women and the criminal policies to arrest
women in the early twentieth century in Brazil. During this period, the positivist
criminology theorists argued, trying to determine the “atavistic stigmata”, ie the
characteristics of the “criminals”. In the study of female criminals, the so-called
“sexual deviancy” was highlighted as the most dangerous, not for nothing the

453
Organizadora : Edelamare Melo

prostitutes were considered the most dangerous group of women, followed by


lesbian or bisexual. We intend to launch a reflection of how the women were seen
at the beginning of the twentieth century, and how this attempt at classification of
criminal women contributed to the formation of stereotypes exist today and which
justify a different treatment for certain social or criminal women’s groups.
Keywords: criminology - Brazilian criminology - criminal anthropology
- social control - gender.
Las infieles: Criminalización de las mujeres en la
primera mitad del siglo XX en Brasil.
Contenido: 1 Introducción – 2 Las victimas de la herencia – 3 Madres y
padres higiénicos: el control de la mujer, de la sexualidad y de la familia - 3.1 Las
aberraciones sexuales de la mujer – 4 Las peligrosas damas de Brasil - 4.1 ¡El
peligro de la belleza: las prostitutas del nuevo siglo! - 5 Conclusión – 6 Referencias.
Resumen: Este artículo pretende realizar un estudio sobre las
relaciones entre los comportamientos sexuales de las mujeres y las políticas
criminales para la contención del delito utilizadas en el inicio del siglo XX
en Brasil. En eso periodo, los teóricos discutían la criminología positivista,
que intentaba determinar los “estigmas atávicos”, o sea, las características de
los “criminosos”. En lo estudio de la mujer criminosa, los llamados “desvíos
sexuales” eran los más resaltados como peligrosos, por eso las prostitutas
eran consideradas el grupo más peligroso de mujeres, seguidas por las
lesbianas o bisexuales. En eso sentido, pretendemos iniciar una reflexión
de como las mujeres fueron vistas, en el inicio del siglo XX, y como esa
tentativa de clasificación de la mujer criminosa colaboró para la formación de
los estereotipos existentes en los días actuales y que justifican un tratamiento
distinto social o penal para determinados grupos de mujeres.
Palabras clave: criminología - criminología brasileña - antropología
criminal - control social - género.
1. Introdução
Esse artigo pretende realizar um estudo sobre as relações entre os com-
portamentos sexuais das mulheres e as políticas criminais para contenção do
delito empregadas no início do século XX no Brasil. Nesse período, os teóri-
cos discutiam a criminologia positivista, que tentava determinar os “estigmas
atávicos”, ou seja, as características dos “criminosos”, com o intuito de pre-
venir o crime e fortalecer o desenvolvimento e reprodução dos seres huma-
nos considerados “evoluídos”. No estudo da mulher criminosa, os chamados

454
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

“desvios sexuais” eram os mais ressaltados como perigosos, não à toa as pros-
titutas eram consideradas o grupo mais perigoso das mulheres, seguidas pelas
lésbicas ou bissexuais. Nesse sentido, pretendemos iniciar uma reflexão de
como as mulheres foram vistas, no início do século XX, e como a tentativa de
classificação da mulher criminosa colaborou para a formação de estereótipos
existentes nos dias atuais e que justificam um tratamento diferenciado social
ou penal para determinados grupos de mulheres.
2. As vítimas da herança1
O início do século XX foi marcado por políticas eugênicas e higienis-
tas na busca de uma sociedade evoluída. A medicalização das relações foi um
processo com significativas decorrências para a história da construção social
do Brasil e teve repercussão nas regras de procriação e, portanto, no papel
da mulher, considerado central, porque responsável pela transmissão da con-
formação hereditária das gerações futuras (STEPAN, 2005, p. 116). A virada
do século requereu uma mudança de comportamento e valores em busca da
proteção da “raça” e da construção de um país higienicamente adequado.
Se o foco era a “limpeza” racial, as ações foram voltadas para a valori-
zação do casamento higiênico e da garantia da reprodução entre pessoas incluí-
das no grupo das “evoluídas”, buscando formas de diminuir e/ou eliminar a re-
produção entre pessoas com “pechas” de inferioridade ou com doenças e outros
males. Dessa forma, casamentos que, até o século XIX, eram frequentes, como
entre pessoas com diferenças de idade muito grande ou parentes, passaram a
ser evitados a todo o custo sob o argumento de garantir uma prole saudável. O
médico Leonidio Ribeiro (1929, p. 23) defendeu o exame para verificação do
amadurecimento dos noivos para a procriação. Segundo ele, “Para atender ao
ponto de vista eugênico, melhor será que o casamento se faça tendo em vista
não só a perfeita saúde como o completo desenvolvimento físico de ambos os
cônjuges, especialmente no que toca ao aparelho reprodutor”. Como se vê, a
discussão não girou somente em torno da idade, mas das relações de consan-
güinidade, que eram consideradas passíveis de gerarem filhos com problemas
hereditários. De acordo com COSTA (2004, p. 218):
Compatível com a ética religiosa e social da Colônia, esta con-
cepção de casamento entrou em desuso no séc. XIX. O casal
ajustado à defesa da propriedade revelou-se canhestro na pro-
teção da infância. As preliminares do bom casamento mudaram
de tom. As razões higiênicas desarticularam as razões familiares

1
Denominação utilizada na revista Gazeta Médica da Bahia.

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Organizadora : Edelamare Melo

e impuseram novas regras ao contrato conjugal. O compromis-


so essencial do casal era com os filhos. Não se tratava mais de
amar o pai sobre todas as coisas, e sim a raça e o Estado como
a si mesmo.

As regras da ciência foram responsáveis por uma mudança de compor-


tamento social fundamental para a compreensão da nova configuração familiar
que agora defendia a “qualidade” da prole e, por conseguinte, o papel da mulher
na geração “higienica”. “Os eugenistas pensavam a reprodução não como uma
atividade individual, consequencia da sexualidade humana, mas como responsa-
bilidade coletiva que levava à produção de boa ou má hereditariedade” (STEPAN,
2005, p. 115). Foi discutido pelos médicos e juristas, de maneira intensa, a neces-
sidade de um exame pré-nupcial para detectar, não apenas doenças físicas, mas
outros sinais de degeneração que pudessem ser transmitidos hereditariamente.
Muito médicos defendiam arduamente a instituição do exame como
possibilidade importante de ajudar a uma geração higiênica. Porto-Carrero
(2929, p. 16) afirmava que “sob o ponto de vista eugênico, seria ideal que
só pudessem casar-se indivíduos completamente hygidos e em condições de
procriar filhos physica e psychicamente perfeitos” e continuava “o interesse
da especie esta acima do interesse da sociedade contemporânea e muito acima
do interesse do individuo, que nada mais é do que a célula periodicamente re-
novável do grande organismo da especie”. A utilização dos testes pré nupciais
acabou se mostrando ineficaz na prática, porque:
a classe média encontrou meios convenientes de comprar tais certi-
ficados, enquanto os pobres, com quem os eugenistas mais se preo-
cupavam, apenas ficavam ainda mais desencorajados a regularizar
suas uniões. Assim, corria-se o risco de que os testes pré-nupciais
encorajassem a imoralidade, em vez de práticas eugenicas (STE-
PAN, 2005, p. 133).

A eugenia via a fertilidade feminina como um recurso crucial da na-


ção, reforçando o confinamento das mulheres a papéis reprodutivos (STE-
PAN, 2005, p. 131). Nesse caminho, o padrão de homem e mulher passou a
ser ligado aos papeis de pai e mãe, os únicos que faziam sentido à existência
humana naquele período (virada do século XIX-XX). Iniciou-se, então, um
processo de valorização do pai e da mãe e de desvalorização e até criminali-
zação dos homens e mulheres que não cumpriam esses papéis.
No caso dos homens, os libertinos, celibatários e homossexuais foram
estigmatizados por serem antissociais. Os libertinos eram recriminados por

456
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

deixarem-se levar pelos vícios e pela vida livre, o que por um lado ajudava
na propagação das doenças venéreas que assolavam o período e por outro não
reproduziam e, quando o faziam, não cumpriam com o seu papel de pai. Os
celibatários também eram considerados “indesejáveis” porque muitas vezes
se entregavam às prostitutas e, ou não casavam ou, quando decidiam, já esta-
vam velhos demais para uma procriação considerada saudável.
No entanto, eram os homossexuais os mais rechaçados e punidos so-
cialmente. É interessante notar que quase sempre os argumentos para essa
“condenação pública” entravam no campo da moral subjetiva. Enquanto no
caso dos libertinos e celibatários os motivos estavam claros, no caso dos ho-
mossexuais as explicações para essa condenação maior só se explicava com
argumentos vagos e que inferiam, sobretudo na educação das famílias, a “cul-
pa” pela existência do homossexualismo crescente. Ou seja, mais um argu-
mento para o fortalecimento da família e a atenção na educação dos filhos.
Segundo Costa (2004, p. 248):
É notável como, na abordagem do homossexualismo, os mé-
dicos limitavam-se a dizer que sentiam repugnância pelos ba-
gaxas ou a compará-los à putrefação que por vezes é preciso
manear para fertilizar a terra onde vai cair a boa semente. Des-
crevia-se o tipo físico do homossexual; sua classe social; seus
costumes mundanos; sua situação econômica; seus vícios e prá-
ticas sexuais sórdidas, etc. Mas todas as hipóteses etiológicas e
terapêuticas sobre este tema médico resumiam-se, grosso modo,
à crítica aos hábitos de educação da infância e à forma como se
exercia a prostituição no Brasil.

Assim, para além do fato de não procriarem, como os libertinos e ce-


libatários, os homossexuais eram considerados “frutos repugnantes” de uma
família anti-higiênica.
No caso as mulheres, o papel de mãe passou a ser cada vez mais des-
tacado, como forma de garantir a mulher na sua função de “cuidadora” e
responsável por zelar pelo futuro da sua família. Dessa forma, as que não
cumpriam esse papel eram “rechaçadas” e, algumas vezes, criminalizadas. E
as que não possuíam um perfil médico adequado, ou seja, “higiênico”, incen-
tivadas, em muitas situações, a não procriar. Um bom exemplo é o discurso
do médico Perrussi (1950, p. 91):
Pois bem: comparadas com a mulher ideal, à qual daremos o
valor 100, por isso que possui o máximo de todas as qualidades,
veremos que nem todas as mulheres se aproximam igualmente

457
Organizadora : Edelamare Melo

desta cifra que representa a cúspide. Há muitas mulheres que


valem 90 (infelizmente poucas), muitas outras valem 70 ou 80
e outras ainda apenas atingem 60 ou 50% daquele valor máxi-
mo, e, finalmente, constituem legião aquelas a que só se podem
assinar valores de 20 a 30...Compreenderão agora nossas leito-
ras por que muitas mulheres vivem aparentemente felizes e sem
anormalidades apesar de não terem filhos. Explica-se: por pos-
suírem valores biológicos bem distantes da mulher ideal, pouco
importa à Natureza que não cumpram estritamente suas leis.

A reprodução era tarefa das mulheres higienicamente adequadas. As


ações do movimento eugênico no Brasil, nesse período, não foram no sentido de
esterilizar mulheres (apesar de terem existido ações nesse sentido), mas de cons-
cientizar a população para a reprodução de biotipos ideais. A atuação da igreja
católica foi uma das forças principais para que não houvesse, no Brasil, uma po-
lítica eugênica “dura” e negativa, no sentido de implementação de mecanismos
artificiais para a não reprodução de determinados grupos. “Essas fantasias de
transmutação humana nos lembram que a eugenia era, acima de tudo, um movi-
mento estético-biológico preocupado com beleza e feiúra, pureza e contamina-
ção, conforme estas se representavam na raça” (STEPAN, 2005, p. 149).
Às mulheres era dada então, a responsabilidade na procriação ade-
quada e higiênica. No entanto, nem todas possuíam condições ou vontade de
terem como função cuidar do marido e dos filhos. A essas mulheres recaía a
“culpa” pela não evolução da raça no país.
Em finais do século XIX, as mulheres das classes mais abastadas ti-
nham acesso à cultura e costumes europeus e a um ideal de mulher orientado
para a reprodução e para a família. Às mulheres pobres lhes restavam poucas
opções de sobrevivência: serviços domésticos, pequenos comércios – quitan-
deiras, etc -, artesanato, costureiras, lavadeiras, cartomantes, feiticeiras, co-
ristas, dançarinas, cantoras, atrizes e prostitutas, quase todas essas ocupações
eram subjulgadas pela sociedade (ENGEL, 2004, p. 24 e 25). Muitas mulheres
ingressaram como operárias em fábricas de diversas naturezas, representando
um total de 19,18% do operariado carioca no ano de 1906 (15.913 mulheres).
Ou seja, as mulheres, sobretudo as das camadas mais pobres, estavam “sain-
do” de casa, buscando trabalho, questionando a realidade, organizando-se em
movimentos e começando a “incomodar” os homens nos espaços públicos.
Não se pode deixar de mencionar um movimento que foi muito importante
para a inserção das lutas das mulheres no cenário nacional que foi o sufra-
gista. Em 1910, a sufragista Deolinda Daltro, fundou o Partido Republicano
Feminino, com o objetivo de ressuscitar no Congresso Nacional o debate so-

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

bre o voto da mulher e, em 1917, a mulher brasileira passou a ser aceita no


Serviço Público do Brasil, o que pode ter marcado a aceitação da mulher no
mercado de trabalho, ainda que de forma insipiente. Era, definitivamente a
hora de buscar formas de conter essa mudança no cenário feminino.
Nesse contexto, de esperanças e contradições, o Brasil segue em busca
do seu projeto de evolução social e, para isso, a ciência torna-se uma grande
aliada, ao fortalecer a ideia de inferioridade racial, do movimento higienista
e eugênico e, é claro, da inferioridade da mulher perante o homem e do seu
papel “natural” e social ideal. A busca da mulher por um espaço público e
por sua autonomia é freiada a todo custo por argumentos científicos fortes e
legitimados. Mas será que a mulher foi realmente “freiada”?
Na gama de justificativas para classificar os seres humanos, as mulheres
faziam parte do grupo “cientificamente” inferior. Muitos estudos foram feitos
para comprovar as diferenças evolutivas entre homens e mulheres. Um dos
estudos que chama atenção é a obra de Livio de Castro, A Mulher e a Socioge-
nia, publicada em 1887 no Brasil que, através de estudos muito similares aos
da Escola Positivista, atesta a inferioridade da mulher. Defendeu, inclusive,
que as mulheres não poderiam ser professoras, porquanto tinham o mesmo
desenvolvimento cerebral que uma criança. Nos seus estudos sobre os crânios
e o funcionamento do organismo de homens e mulheres concluiu que:
Histórica ou prehistoricamente, nos ultimos tempos da vida intra
-ulterina, dos primeiros aos últimos tempos da vida extra-ulterina, a
mulher é menos cérebro do que o homem, ha no homem mais men-
talidade do que na mulher. Mas, ao lado dessa afirmação scientifica
ha uma afirmação popular que, por se prestar a equívocos, merece
um exame. Segundo a crença geral a mulher é mais coração...A mu-
lher não tem o coração mais terno, não é mais sensível. A mulher
tem menos desenvolvido o poder de dominar-se, mas não tem mais
desenvolvido o poder de sentir (CASTRO, 1887, p. 15 e 21).

Discutiu também o papel de objeto que as mulheres teriam perante


o homem, segundo CASTRO (1887, p. 56), “A mulher é apenas um utensílio, e
quando seu possuidor é bastante rico para não resentir-se da perda de tal proprie-
dade, ella vale quasi nada, não merece atenção”. Estudos frenológicos2 também

2
Fundada no século XVIII pelo médico vienense Franz Joseph Gall (1758-1828). “A segunda metade do século XIX
marcou o apogeu da craniologia e da frenologia, no Brasil, como práticas científicas que, entre outros pontos, pre-
tendiam explicar diferenças étnicas e de gênero em termos de grau de inteligência; além de aptidão para atividades
específicas, saúde física e mental e até mesmo a personalidade dos indivíduos”. “A frenologia pautava-se no estudo
detalhado das características cranianas e das circunvoluções cerebrais dos indivíduos. Essa prática notabilizou-se
pela análise de cérebros de indivíduos considerados ‘geniais’, possuidores de ‘dons naturais’, e de pessoas com

459
Organizadora : Edelamare Melo

foram feitos no cérebro da mulher, para provar que teria uma massa menor que a
do homem e, por isso, seriam menos inteligentes. Broca, craniologista e médico,
estudou cérebros na segunda metade do século XIX e, numa análise comparativa,
verificou que o cérebro das mulheres teria em média 181 gramas a menos que o
masculino (14%). No entanto, suas conclusões foram questionadas, mostrando
que Broca não havia levado em conta elementos fundamentais para essa medição
como a estatura, constituição física e idade de homens e mulheres pesquisados.
Ou seja, a teoria da capacidade craniana foi contestada, através também de outros
argumentos científicos, mas nem por isso deixou de ser utilizada por uma gama de
teóricos como prova da inferioridade feminina (JAY GOULD, 2003).
As mulheres, consideradas inferiores e menos capazes, não eram considera-
das grandes ameaças sociais, ou pelo menos eram vistas como mais facilmente conti-
das e “domadas” que os homens. No entanto, crimes e criminosas surgiram ao longo
da história que fomentaram o debate com relação à existência de criminosas natas, às
causas da criminalidade feminina, aos crimes típicos de mulheres e, sobretudo aos es-
tigmas atávicos que, reunidos, identificariam a mulher delinquente. Da mesma forma
que com os homens, buscou-se definir grupo e categorias de mulheres que oferece-
riam perigo social e, portanto deveriam ser contidas. Essas características são ainda
hoje responsáveis por uma herança preconceituosa não só contra as mulheres, mas
contra determinados comportamentos ligados, sobretudo à sexualidade feminina.
3. Mães e pais higiênicos: o controle da mulher, da sexualidade e da
família.
Num período de busca pelo avanço do país, os argumentos higienistas
e eugenistas de “limpeza racial” foram condutores de reformas sociais profun-
das e importantes para se entender o papel que a mulher passou a representar
do início do século XX no país. Algumas autoras chamam esse período de
“processo de construção da domesticidade feminina” (RAGO, 1985), que teve
reflexos profundos nas políticas públicas, incluindo a trabalhista e a penal.
No campo do trabalho, as mulheres iniciaram a saída do âmbito domés-
tico no processo de industrialização, tornando mais relevante o seu trabalho na
esfera pública em meados do século XIX. É importante lembrar que o trabalho
feminino não se aprentava somente nas fábricas, mas em outros serviços, como
domésticas, comércio ambulante, costura e, muitas vezes, a prostituição3. Sobre

comportamento tido como desviante (prostitutas, assassinos, homossexuais etc.) (SÁ, SANTOS, RODRIGUES-
CARVALHO e SILVA, 2008, p. 119).
3
Mais sobre o tema PENA, Maria Valéria. Mulheres e trabalhadoras. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981; FRANCO,
Maria Sylvia Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1969.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

esse processo de “saída” das mulheres, há uma discussão sobre o efeito das me-
didas tomadas, com apoio da ciência e do poder público, para o retorno dessas
mulheres ao lar, como o fortalecimento do papel da amamentação e da esposa,
como veremos em seguida. Apesar de não ser o objeto direto desse estudo, parece
importante demonstrar que, apesar das medidas, as mulheres permaneceram no
mercado de trabalho, contrariando muitas discussões sobre um “retorno” femi-
nino ao lar. ABRAMO (2007), em sua tese de doutorado, discute esse período e,
demonstra, com base no Censo industrial, das primeiras décadas do século XX,
e em outros dados relevantes, que, não só as mulheres não saíram do mercado de
trabalho, como houve um leve aumento na sua participação. De fato, houve um
movimento de expulsão das mulheres das fábricas, mas elas continuaram em um
número considerável, além de ocuparem outros espaços de trabalho, que, fre-
quentemente, não eram considerados no momento de um levantamento sensitário
(RAGO, 2007). Ou seja, o retorno das mulheres ao lar e sua expulsão das indús-
trias, pode ser mais um argumento simbólico importante para fortalecer a tese da
mulher “mãe” e “esposa” do que uma realidade histórica.
No campo da sexualidade, procurava-se fortalecer o papel de mãe das
mulheres como o mais importante e essencial para o desenvolvimento das
famílias. Era esse a função a ser preservada na mulher. Já não era mais inte-
ressante apenas a procriação, mas a representação da mãe cuidadora, presente
na vida da família e na educação dos filhos. “A maternidade é o imperativo
fundamental da natureza”, dizia o médico Perrusi (1950, p. 88). A saída das
mulheres de suas casas representava uma “ameaça” ao “bem estar social”.
Porto-Carrero (1929, p. 17) afirma:
É facto evidente que a moral moderna, baseada sobre a organiza-
ção tradicional da família, afrouxa pouco a pouco. Emancipação
da mulher, cooperação desta no trabalho fora do lar, divorcio,
vida cada vez mais externa, educação dos filhos e educandá-
rios, desde as curtas edades do jardim de infância – tudo está
a demonstrar que o lar perde pouco e pouco a sua razão de ser;
que a família se torna conceito cada vez mais abstracto; que o
casamento, cada vez mais fácil de contrahir e de desfazer tende
a uma formula menos fechada, se não será o amor livre, será o
amor mais livre do que hoje.

“As mulheres deixariam de ser mães dedicadas e esposas carinhosas,


se trabalhassem fora do lar; além do que um bom número delas deixaria de se
interessar pelo casamento e pela maternidade” (RAGO, 2007, p. 585). O dis-
curso médico era de que a mulher “ideal” seria “cobrada” pela natureza para

461
Organizadora : Edelamare Melo

realizar a sua função de procriar, já para as mulheres que não tinham as carac-
terísticas desejadas, esse “instinto” não era tão evidente. As mulheres eram,
então, classificadas sob o argumento eugênico e sob a justificativa de preser-
var a prole. A maternidade passou a ser função “sagrada” da mulher e, com a
justificativa de proteger a prole, os médicos lançaram mão da necessidade de
amamentação para ampliar a ligação entre a mulher e a família, ou seja, era
só dela a responsabilidade por manter saudáveis os seus filhos. Argumentos
foram utilizados, provando que o aleitamento “mercenário”4, muito comum
no século XIX, era prejudicial às crianças e aumentava a mortalidade infantil,
além de proliferar doenças. A vida e morte das crianças passavam para mão
exclusiva da mulher e para a sua capacidade de amamentar. No dizer de Rago
(1997, p. 78), “O discurso masculino e moralizador dos médicos e sanitaris-
tas procura persuadir cientificamente a mulher, tanto da classe alta como das
camadas baixas, de sua tarefa natural de criação e de educação dos filhos”.
A figura da mãe, valorizada pela medicalização, passou a representar o
ideal de mulher, e, junto à necessidade da amamentação veio a do controle da vida
social e da sexualidade da mulher. Para ser uma boa mãe era preciso amamentar
o maior tempo possível, permanecer perto e acompanhar a educação dos filhos e,
claro, ter a sua sexualidade controlada para se aproximar à figura de “santa”, tão
desejada e buscada para as mulheres. De acordo com Costa (2004, p. 263):
Sem poderem entregar os filhos às escravas, como na Colônia, as
mulheres viram-se contraditoriamente estimuladas e impedidas de
usufruírem da sexualidade. Os higienistas ensinavam-lhes que ti-
nham o direito de gozar, mas não lhe deixavam tempo para o gozo.
Preocupados em salvar as crianças, a família e o Estado colocavam-
nas numa posição sexualmente paradoxal. Procuraram, então, abrir
válvulas de escape à insatisfação feminina, sem contudo abortarem
seus projetos familiares e populacionistas. Serviram-se novamente
da amamentação. Porém, desta vez, mostrando como a mulher po-
dia gozar sexualmente amamentando.

Pode-se perceber como esse processo de controle do corpo e do prazer


da mulher, ligando-o ao exercício do aleitamento, tentava deslocar o prazer da
mulher para o prazer da mãe.
O controle sobre o prazer da mulher era também discutido pelos mé-
dicos que identificavam os principais transtornos femininos, dentre os quais
estavam a masturbação e a homossexualidade ou como era chamada a inver-

4
Aleitamento, comum no final do século XIX, feito, geralmente por escravas ou serviçais da elite. Quase sempre, as
amas de leite eram mulheres negras.

462
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

são sexual feminina. Vale ressaltar que esse processo de domesticação da mu-
lher não se deu sem questionamentos contrários. As feministas, dentre elas as
anarquistas, apontavam a necessidade do trabalho para a formação da mulher.
Segundo Rago (2007, p. 590):
Cautelosas, as feministas, que iniciaram a divulgação de seus ide-
ais na revista A Mensageira, publicada em São Paulo entre 1897 e
1900, ou posteriormente, na Revista Feminina, entre 1914 e 1936,
defendiam um discurso contrário, apontando para os benefícios do
trabalho feminino fora do lar: uma mulher profissionalmente ativa
e politicamente participante, comprometida com os problemas da
pátria, que debatia questões nacionais, certamente teria melhores
condições de desenvolver seu lado materno.

No entanto, apesar de questionamentos sobre a participação ou não da


mulher no mercado de trabalho, a figura da mãe continuava fortalecida e con-
siderada como prioritária. Ações eram tomadas para fortalecer a maternidade
higiênica e, portanto, combater às “degeneradas”.
3.1. As aberrações sexuais da mulher
A sexualidade da mulher passou a ser estudada e cuidada para que o
comportamento ideal e higiênico fosse mantido. Para isso, dever-se-ia banir as
práticas sexuais “degeneradoras” para as mulheres e, mais uma vez, a medicina
contribuiu para “comprovar” os malefícios e os estigmas atávicos ligados aos
comportamentos sexuais indesejáveis. A prática da masturbação era impedida
de diversas formas, sobretudo entre as jovens. As famílias aumentavam a vigi-
lância e as mantinham ocupadas, a fim de que não houvesse tempo ou oportu-
nidade para essa prática. Segundo o médico Perrusi (1950, p. 245):
A masturbação feminina é a principal causadora de todas as
anormalidades que se observam no ato sexual das esposas, e que
são a frieza, a lentidão, a falta de libido (total ou parcial), in-
cômodos e incompatibilidades diversos, etc. E as repercussões
psicológicas individuais e matrimoniais que têm esses defeitos
costumam ser reconhecidamente graves.

No entanto, não há dúvidas que a homossexualidade era considerada a


maior aberração sexual feminina, ligada, inclusive à periculosidade no âmbi-
to criminal, como um dos estigmas atávicos da mulher mais decisivos para o
comportamento criminoso, como veremos. Dizia-se que a prática da homos-
sexualidade feminina era mais presente que a da masculina, no entanto, que
a maior parte dos casos, era fruto da repressão sexual e ausência de contato
463
Organizadora : Edelamare Melo

com os homens. Essas situações eram facilmente “curáveis” pelo casamento.


Restava, então, um menor número de mulheres, mas que eram preocupantes,
sobretudo as que possuíam características masculinas, chamadas de ativas.
Ainda de acordo com o médico Perrusi (1950, p. 246):
De ambas as formas de aberração sexual é mais grave a primeira ou ho-
mossexualismo feminino ativo. Essas mulheres parecem verdadeiros estados
de degeneração do instinto, enquanto as outras, as passivas, são quase sempre
simplesmente viciosas ou libidinosas mais suscetíveis de voltar à normalida-
de, tendo sido levadas ao vício vítimas quase sempre do temperamento sexual
exagerado que apresentam.
A proximidade entre o comportamento homossexual e o criminoso era
estudado por muitos teóricos no início do século XX no Brasil. Em realidade,
o comportamento sexual fora dos padrões era tido como fruto de neuroses e,
como o indivíduo neurótico era propenso ao crime, homossexuais ou “porta-
doras” de outras “aberrações” sexuais também o eram. “A estrutura neurótica
desses indivíduos os impele a rebelar-se contra a moral constituída e rejeitar
os princípios legais. O lesbismo constitui manifestação ou sintoma de neurose
e, portanto, sua verdadeira causa é psicogenética. Inúmeros crimes originam-
se do homossexualismo feminino, não só direta como indiretamente” (DOU-
RADO, 1967, p. 58 e 80).
Estácio de Lima, na sua obra Inversão Sexual Feminina (1934), clas-
sifica e define as formas de homossexualismo de mulheres e faz um estudo de
caso sobre Vivi (figura ao lado), uma lésbica, com perfil masculino, amante
de uma prostituta. O médico acompanhou Vivi por muitos anos, tentando
compreender seu passado e as possíveis razões para a sua inversão. Nesse
processo, Estácio de Lima fez diversos exames corporais, buscando caracte-
rísticas físicas (atávicas) para a lesbiandade, que chamava “bárbara anoma-
lia” (p. 42). Razões eram buscadas para explicar tal comportamento e, sempre
que possível era ressaltado o sofrimento vivido por essas mulheres, talvez no
intuito de desencorajar outros comportamentos similares. Num depoimento
colhido por Dourado (1967, p. 87), a mulher afirma:
Atuo sempre de forma ativa em relação às minhas conquistas.
Na fantasia, considero-me homem que está apaixonado por uma
mulher, loura, de preferência, nua e sensual. Perdida neste mun-
do imaginário de mulheres, masturbo-me, quando só, masturbo-
me como se homem fosse. Contudo, sei que sou mulher, mas de
vida sexual doentia. Isso me inspira horror e medo. Odeio-me.
Escondo sempre o meu grande segredo, que se converte em cru-
ciante autotortura.

464
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Dessa forma, comportamento considerados “desajustados” eram ligados


à criminalidade e tinham por base os argumentos da ciência para comprovar os
malefícios à sociedade. Os conselhos e teorias dos médicos sobre higienismo e
eugenia não eram os únicos utilizados para “disciplinar” as mulheres. A crimi-
nologia, então reconhecida como ciência, em finais do século XIX, contribuiu
sobremaneira para a determinação dos padrões de comportamento aceitáveis e
forneceu justificativas para a segregação de boa parte da população “não higiê-
nica”, através de argumentos que eram fornecidos à política criminal, e que, no
Brasil, foram muito bem aceitos no início do século XX.
4. As Perigosas Damas do Brasil
De uma forma diferente do homem, a mulher também foi alvo dos estu-
dos da teoria positivista. Lombroso em seu livro The Female Offender (1980)
classificou a mulher criminosa em: criminosas natas, criminosas ocasionais,
criminosas de paixão, suicidas, prostitutas nadas prostitutas ocasionais, ofen-
soras histéricas, mulheres criminosas lunáticas, epilépticas e moralmente in-
sanas. Pesquisas foram feitas com mulheres presas na Itália e foram identifi-
cados sinais específicos que variavam a depender do crime cometido.
Da mesma forma que com os homens, Lombroso mediu os crânios, estudou
características faciais, os cérebros de mulheres presas (parte na prisão Piedmontese
em Turim -52- e outra parte -234- na Casa Feminina de Correição, que recebia mu-
lheres de várias províncias, sobretudo do sul da Itália) e também de 150 prostitutas,
tipo considerado especialmente perigoso, como veremos adiante (LOMBROSO;
FERRERO, 1980, p. 103). Após os exames do crânio, Lombroso concluiu que as
criminosas natas se aproximam mais fisicamente do homem do que da mulher nor-
mal, com exceção das prostitutas, que, apesar de se aproximarem mais da mulher
normal, possuem mais traços característicos de atavismo que as criminosas natas.
No entanto, conclui também que a mulher criminosa nata é muito mais rara que
o homem criminoso nato. “All the same, it is incontestable that female offenders
seem almost normal when compared to the male criminal, with his wealth of ano-
malous features” (LOMBROSO; FERRERO, 1980, p. 104). Porém, apesar de ser
mais rara que o homem, a criminosa nata supera-o em matéria de crueldade ao
cometer seus crimes (LOMBROSO; FERRERO, 1980, p. 182).
No entanto, apesar de ter estudado diversas características, na conclusão
dos seus estudos, Lombroso tem dificuldades em determinar àquelas inerentes
à criminosa. Um dos poucos argumentos unânimes, entre Lombroso e outros
estudiosos é o de que a diferença entre a mulher criminosa e a mulher comum
é muito menor do que entre o homem criminoso e o comum (LOMBROSO;

465
Organizadora : Edelamare Melo

FERRERO, 1980, p. 74). Mas, seguindo os resultados das pesquisas, Lombroso


indica algumas direções: a estatura e comprimento dos membros são menores
nas criminosas, o peso das prostitutas e das criminosas é maior proporcional-
mente à altura quando comparadas às mulheres normais, normalmente possuem
cabelos e olhos negros, assimetria craniana, estrabismo, mandíbula acentuada,
fisionomia masculina e viril, anomalia nos dentes, clitóris, pequenos e grandes
lábios vaginais grandes, além da sexualidade exacerbada e dotada de perversão,
caracterizadas normalmente pela prática da masturbação e do lesbianismo.
De acordo com Lombroso, se a mulher tivesse 04 ou mais dessas caracte-
rísticas seria o que ele chamava de tipo completo, o tipo intermediário possuiria
ao menos 03 dessas características e uma mulher comum teria no máximo duas
dessas anomalias (LOMBROSO; FERRERO, 1980, p. 103). Ressalte-se, no
entanto, que a depender do estigma, bastava um para que a mulher fosse consi-
derada depravada e perigosa, como era o caso do lesbianismo.
O interessante é notar que, como alguns desses sinais seriam deter-
minantes da beleza ou feiúra (conceitos sociais), há uma diferença entre as
prostitutas e as criminosas. As prostitutas, apesar de possuírem mais caracte-
rísticas de degenerescência, possuem aquelas que não implicam na perda da
beleza, ao contrário da mulher criminosa nata (LOMBROSO; FERRERO,
1980). Ou seja, apesar de Lombroso pretender objetivar os sinais de degene-
rescência da mulher, a criminalidade feminina continuou a ser mais difícil de
ser identificada que no caso do homem. Uma forma de justificar esse fato foi
afirmar que apenas o tipo nato da mulher teria características a serem iden-
tificadas, as outras criminosas eram iguais à mulher normal. Além disso, o
número de mulheres criminosas natas era bem menor que o dos homens, em
virtude da menor “inclinação congênita para o crime” da mulher.
Outro ponto que merece ser ressaltado é de que muitos crimes pratica-
dos por mulheres requerem uma beleza e sedução para serem cometidos, já
que se relacionam com homens, como era o caso do adultério, vigarismo, ca-
lúnia, etc. Nesse ponto, é possível perceber uma das maiores diferenças entre
homens e mulheres criminosos: a beleza. Outro tipo de criminosa é o opos-
to da considerada mulher atraente, seria aquela com características físicas e
comportamentais masculinas. Ela seria perigosa então pela sua semelhança
com o homem ou por ter rompido com o padrão de comportamento tradicio-
nal feminino. Vê-se que o chamado “desvio sexual”, seja ele quando a mu-
lher apresentava comportamento masculino ou quando tinha uma erotização
exarcebada para os padrões sociais, representava um sinal de periculosidade.
Normalmente os homens perigosos tinham uma aparência não atra-
ente, não à toa Lavater (1741-1801), nos seus estudos sobre a fisionomia,

466
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

tentava identificar traços físicos que pudessem distinguir o homem normal do


criminoso, antecipando o que Lombroso (1835-1909) definiu como Crimino-
so Nato5. Com base em características somáticas, identificou o que chamou de
“homem de maldade natural”. Através das suas pesquisas, associava a beleza
à bondade e a feiúra à maldade. Com esse pressuposto defendeu o julgamen-
to pela aparência (SHECAIRA, 2004, p.78) adotado por alguns juízes. Um
deles, conhecido como Marquês de Moscardi, no século XVIII, é indicado
como um dos precursores dessa forma de julgar, tendo concluído numa sen-
tença: “ouvidas as testemunhas de acusação e de defesa e visto o rosto e a ca-
beça do acusado, condeno-o” (PABLOS DE MOLINA, 1992, p.105). Foi ele
quem criou o Édito de Valério - quando se tem dúvida entre dois presumidos
culpados, condena-se o mais feio (SHECAIRA, 2004, p. 79).
Nas mulheres, a beleza também teve um papel relevante na construção
dos estigmas criminosos. No caso dos crimes ligados à sexualidade, como a
prostituição, a beleza era considerada definidora para medir a periculosidade
da mulher, em outros casos a aparência física era utilizada para minimizar
situações em que a mulher era autora de crimes. Como as questões da sexua-
lidade eram ligadas diretamente à periculosidade, as prostitutas eram um dos
principais alvos para a políticas criminais e higienistas, consideradas, muitas
vezes, uma categoria a parte das mulheres “normais”.
No estudo da mulher criminosa, a beleza e a sedução eram constan-
temente evocadas para justificar a periculosidade e a capacidade de cometer
determinados delitos. Ou seja, no caso das mulheres, a depender do crime,
associava-se a beleza ao perigo, uma vez que as mulheres mais atraentes te-
riam uma capacidade muito maior de ludibriar e enganar pessoas. As prosti-
tutas eram consideradas parte de um grupo com o maior índice de criminosas,
muito estudadas pelos teóricos da época e muito temidas por grande parte da
sociedade, sobretudo pelo seu poder de “enganação” e sedução.
Portanto, dentre as mulheres “perigosas”, sem dúvida as prostitutas fo-
ram os maiores alvos das políticas criminais e das ações de segregação, sejam
oficiais, através de operações policiais e higiênicas, sejam sociais e morais.
4.1. O perigo da beleza: as prostitutas do novo século!
Na discussão sobre o perigo da mulher atraente e bela a figura da prosti-
tuta era sempre ressaltada e estudada pelos teóricos criminais. O interessante
é notar que as prostitutas eram normalmente estudadas como uma categoria
a parte das mulheres. Lombroso, por exemplo, pesquisava a presença dos
estigmas atávicos em grupos de mulheres e em grupos e prostitutas e sempre

5
Expressão sugerida por Ferri.

467
Organizadora : Edelamare Melo

encontrava os maiores índices no segundo. Não levava em consideração, no


entanto, assim como não o fez no estudo do homem criminoso, a carga de
estigmas preconceituosos, a exclusão social que eram vítimas as prostitutas e
sobretudo a possibilidade da existência de outros comportamentos, inclusive
sexuais que não seguissem os padrões estabelecidos para as mulheres. Segun-
do Araújo (2007, p. 45):
Das leis do Estado e da Igreja, com freqüência bastante duras, à
vigilância inquieta de pais, irmãos, tios, tutores, e à coerção in-
formal, mas forte, de velhos costumes misóginos, tudo confluía
para o mesmo objetivo: abafar a sexualidade feminina que, ao
rebentar as amarras, ameaçava o equilíbrio doméstico, a segu-
rança do grupo social e a própria ordem das instituições civis e
eclesiásticas.

A mulher tinha um conjunto de regras a serem seguidas para obede-


cer aos padrões principalmente de esposa e mãe. Nesse sentido, a prostituta
era vista como uma grande ameaça social porquanto disseminava um modelo
de liberdade e sexualidade que deveriam ser eliminados para evitar a repeti-
ção por outras mulheres. De acordo com Costa (2004, p. 265):
A corrupção da moral feminina pela mulher perdida fazia-se,
em primeiro lugar, pela exibição de seu comportamento sexual-
mente descontrolado. Mantendo relações sexuais por dinheiro e
entregando-se à masturbação, à sodomia, e práticas antinaturais
do gênero, a perdida era um manual vivo da forma anti-higiênica
de ser mulher.

A questão da criminalidade feminina era tão ligada à prostituição que,


sobretudo durante a virada do século XIX para o XX o controle penal era
voltado com muito mais ênfase para esse grupo de mulheres, restando para as
demais o controle social e familiar.
No Brasil, a partir da década de 30, esse controle pode ser confirmado
pela nova legislação penal e pelas características das internas que freqüen-
taram o primeiro cárcere de mulheres. De acordo com o Código Penal de
40, estabeleceu-se o delito de Vadiagem, art. 59 “Entregar-se alguém habi-
tualmente à ociosidade sendo válido para o trabalho sem ter renda que lhe
assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência
mediante ocupação ilícita”. A pena prevista era de detenção de 15 dias a 3
meses. Em realidade, apesar da prostituição não ser considerada crime, não
era uma atividade lícita, razão pela qual era dada a legitimidade ao Estado
de prender as mulheres que estivesses exercendo a prostituição em razão do

468
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

delito de vadiagem. Nas décadas de 30 e 40 foi intenso, no Brasil, o combate


à prostituição e a defesa dos ideais femininos. Outro crime que vale a pena ser
citado é o de Contágio Venéreo que se consuma “com o simples fato da expo-
sição a perigo de contágio”. Pena de detenção de 3 meses a um ano ou multa.
Não restam dúvidas da relação desse crime com a atividade de prostituição,
por essa razão, esses dois crimes foram os grandes responsáveis pela entrada
de mulheres, a maioria prostitutas, na penitenciária recém-inaugurada.
Segundo Lemos de Brito, o ideólogo por excelência da prisão femini-
na (LIMA, 1983, p. 31), no relatório do Conselho Penitenciário e da Inspeto-
ria Geral Penitenciária (1942):
A campanha contra os antros de prostituição levado a cabo pelo
Chefe de Polícia com apreciável energia (...) acabando por criar
a necessidade de se por à disposição dessa alta autoridade um
local em que recolhessem as recalcitrantes ou aquelas que não
tivessem para onde ir, voltando o coronel Etchegoyen suas vistas
para a Penitenciária de Mulheres recém inaugurada em Bangu.

5. Conclusão
Este artigo pretendeu demonstrar como as teorias da Escola Positivista e
as ligadas aos movimentos eugêncos e higienistas contribuiram para a formação de
estereótipos nas mulheres que definiram os comportamentos considerados “ideais”
e “aceitos”. Não restam dúvidas que esses argumentos, vindo da “ciência” toma-
ram força suficiente para justificar a segregação de mulheres que não obedeciam
aos padrões de esposa, mãe, heterossexual, comportada, recatada e outros sinais
favoráveis à “boa” mulher. Nesse sentido, mecanismos sociais, políticos e criminais
são criados no sentido de proteger o desenvolvimento saudável e a evolução do ser
humano, através da procriação dos grupos considerados superiores.
O processo de tentativa de evolução social criou um sistema de opressão
da mulher, sobretudo ligado a sua sexualidade, para mantê-la como mãe e esposa.
É fundamental conhecer o processo de construção das relações sociais para que
se possa compreender a origem da estigmatização e, através dela, do preconceito,
segregação e violência a que são submetidas muitas mulheres nos dias atuais. Te-
mas discutidos pela ciência no início do século XX, como raça, orientação sexual,
comportamento feminino, são temas atuais que ainda requerem um grande esfor-
ço social para serem desconstruídos como categorias que inferiorizam ou tornam
mulheres mais perigosas. Nesse sentido, o objetivo do presente artigo é contribuir
a uma análise do processo de estigmatização das mulheres para auxiliar na cons-
trução de possíveis caminhos rumo a uma sociedade sem categorização de seres
humanos como justificativa para sua segregação e violência.

469
Organizadora : Edelamare Melo

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Relações e Conflitos Etno-raciais.


Africanidade, Religiosidade. Direitos
Fundamentais e Cultura. Igualdade Racial e
Liberdade Religiosa. Ponto e Contraponto.

Willis Santiago Guerra Filho*

1. Relações e conflitos etno-raciais.


Começando com a noção de “raça”, penso que ela incorre no que po-
demos chamar o equívoco do “biologismo”, o que a tornaria uma noção em
si mesma, racista, por derivar de uma concepção equivocada sobre o que
sejamos, os humanos, enquanto inseridos numa pluralidade de raças, como
os animais. É que entendo não sermos apenas animais – e ao dizer isso des-
sa maneira percebo que já estaria nos pondo acima dos animais, não sendo
o que gostaria exatamente de comunicar (meu saudoso amigo e mestre Ni-
klas Luhmann tem uma conhecida formulação sobre a improbabilidade da
comunicação, que eu já tendo a considerar impossível, mais que apenas im-
provável), pois não somos tampouco “apenas apenas animais”, na medida
em somos, de certa forma, também menos que animais, quando deixamos de
sê-los, propriamente, “apenas”. Isso porque somos menos adaptados que os
animais, menos inseridos em nosso ambiente, mais frágeis, por neo-natos,
nascidos prematuramente e prematuros permanecemos ao longo de toda a
vida, na imensa maioria dos casos, especialmente na(s) chamada(s) socieda-
de(s) moderna(s) – o plural vai entre aspas por entendermos, com o referido
autor, da perspectiva por ele proposta, ser ela uma só e única sociedade, a
sociedade mundial -,1 que como o qualificativo de “moderna” mesmo indica,
nela vem enfatizado o que é novo, imaturo.
Em suma, somos seres deslocados, pois ex-(s)istimos, sabendo da precarie-
dade de nossa situação na vida, nascidos cedo e cedo também podendo perecer. So-
mos seres incertos de si, por cientes de si, que nos sentimos, como nenhum outro,
ameaçados e, já por isso, nos tornamos, também como nenhum outro, extremamente
ameaçadores. Nossa sobrevivência, então, depende mais do que a de nenhum outro
ser da proximidade e apoio de outros, até para nos tornarmos propriamente huma-

1
Cf. Luhmann, “Die Weltgesellschaft”, in: Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie, n. 57, Stuttgart: Steiner, 1971.

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Organizadora : Edelamare Melo

nos: o que há em nosso “equipamento” biológico é a potencialidade para assim nos


tornarmos, humanizarmo-nos sendo humanizados. Daí a importância das etnias. E se
são elas que nos protegem e nos fornecem o que fundamentalmente somos, a língua
que falamos é em que e o que somos – “minha pátria é minha língua”, disse o poeta,
e pátria aqui é, antes de tudo, mátria, matriz étnica. Os conflitos ditos raciais, então,
terminam sendo, mais propriamente, conflitos étnicos, culturais, entre seres huma-
nos que se sentem ameaçados pelos modos diversos como outros seres humanos se
protegem, pelo simples fato de se protegerem de outros modos, de falarem de outro
modo, de invocarem proteção de outro modo e abençoarem-se de outro modo. E isso
se torna particularmente incômodo, ameaçador, para seres humanos que deixaram de
confiar em bênçãos e invocações, como são ou somos esses que, ao se considerarem
modernos, com uma concepção de história linear, voltada apenas para o futuro, des-
prezando o passado, a ancestralidade e os ancestrais, acham que só devem (e podem)
confiar em si, por já serem o máximo ao ser humano, embora também percebendo
que não é, pois ser é ser para sempre e necessariamente, não apenas ex-(s)istir, con-
tingentemente. Daí que se sentem mais ameaçados, e procurando justificar tal ame-
aça, que resulta sendo eles mesmos, pelo seu modo de ser, portanto que está neles
mesmos, e não podendo reconhecer ou aceitar isso, vão procurar atribuí-la a outros,
aos diferentes de si, passando a se iludirem com aparências que não reconhecem
como tais, a exemplo da cor da pele e outros sinais externos, superficiais, sobretudo
quando sua exuberância evidencia sua pobreza ontológica, existencial.
2. Africanidade, religiosidade.
Somos todos, então, uma só raça, e ela é originária da África. Então, original
e originariamente somos todos africanos e entendo que, também, religiosos. Isto
porque, para mim, religioso é todo esforço humano para dar sentido à sua existência,
essa ex-(s)istência que nos caracteriza como seres incompletos, incertos e inseguros
de si, por se saber inacabado, podendo súbita e inesperadamente se acabar, sem che-
gar ao acabamento, completar-se, ser. E aqui há novamente uma tensão, um conflito
em potencial, que facilmente se torna real, atual, efetivo, entre um modo antigo,
arcaico, primevo, original, da origem, que é representado muito bem, provavelmente
da melhor forma, pela africanidade, por um lado, e de outro por essa ideologia, essa
religiosidade, que é inconsciente de si, chamada modernidade, esta que é uma época,
um tempo, em que outras épocas e o próprio tempo vêm a ser negados, pois só re-
conhece a validade do tempo futuro, para frente, e horizontalmente, negando assim
o que está atrás, e anteriormente, como também o que esteja acima, ou abaixo, que
não seja humano, pois humano seria o que se põe acima de tudo e de todos os entes,
visíveis e invisíveis, sendo eles todos tidos como ultrapassados.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

E é este ser assim tão confiante de si e do que tem sido capaz de fazer
que agora, com estes feitos, ameaça com a destruição total, seja de maneira
lenta, seja de algum modo mais abrupto e repentino, a existência e a perma-
nência de si mesmo, be como de todos os demais, pois se trata da destruição
de todo o planeta...
Forçoso é então reconhecer que entramos num desvio da história e
estamos perdidos, perigosamente perdidos, enquanto civilização e etnia oci-
dental, que na verdade é aquela mundial da modernidade, esteja onde estiver
no planeta, na América do Norte, Europa ou Japão, como está na Av. Paulista
e outras vias, de São Paulo e do Brasil. E quando estamos perdidos, como
sabemos, o melhor que fazemos é tentar retornar para o ponto em que nos ex-
traviamos, sendo que para mim este ponto está ali onde se deu o encontro da
Civilização Greco-Romana - cuja religiosidade, politeísta, vale lembrar, era
muito similar àquela africana, encontrando-se todas em torno Mediterrâneo –
com o monoteísmo judaico-cristão, havendo de ambas as partes um impulso
ao universalismo, sendo aquele da razão e do domínio político, de um lado,
e do outro o universalismo cristã da crença em uma verdade pessoalmente
revelada. É aqui que surge essa associação, de um lado, entre um modo impe-
rial de reger e governar, jurídico e político, e de outro lado, a que se afirmará
como uma religião verdadeira, por ser a religião da verdade, que tendo sido
negada por três séculos como verdadeira religião pelo poder imperial que
determinara a morte de seu Deus, quando finalmente foram acatados os argu-
mentos jurídicos de seus defensores, ditos apologetas, para que fosse conside-
rada religião lícita, em setenta anos passou, de proibida a obrigatória, ao ser
abraçada pelo imperador, tornando, de apostólica, militante em favor de sua
mensagem, também romana e católica (da palavra grega para “universal”).2

2
Aqui vale lembrar o quanto expõe Pierre Legendre, em O Amor do Censor. Ensaio sobre a ordem dogmática, trad.
Alduízio Menezes e Potiguara Mendes da Silveira Jr., Rio de Janeiro: Aoutra (Colégio Freudiano)/Forense Uni-
versitária, 1983, p. 56 ss., ao indicar o lugar fundador da elaboração do direito canônico por Graciano, em meados
do século XII, em decorrência da chamada “Reforma Gregoriana”, iniciada na virada do século VI para o VII
por Gregório I, ao apresentar as formulações iniciais que criariam a infalibilidade papal e a supremacia da Igreja
Católica, e completada, por assim dizer, por Gregório VII, em meados do século XI (seu pontificado vai de
1073 a 1085), o qual estabeleceu o poder dos papas sobre o poder temporal, realizando assim o que de maneira
muito fundamentada se considera a primeira grande revolução europeia, por conta do enfrentamento gerado contra
o poder fragmentado, local, dos reis, exercido juridicamente através de práticas que remontavam ao passado pagão,
bárbaro-germânico, como as ordálias (palavra derivada do germânico Gottesurtheile, ou “julgamento de Deus”). Em
decorrência da reforma, todos os homens ficaram submissos ao papa, o qual tinha o poder sobre qualquer ser viven-
te, representando a palavra de Deus, enquanto seu “vice-rei” (vicarius). Os papas passavam a ser inferiores apenas
ao próprio Deus, uma vez vencida por Gregório VII a “querela das investiduras”, que opôs o Papa ao Imperador
do Sacro-Império Romano-Germânico, pelo juramento de fidelidade do Imperador Henrique IV da Germânia em
Canossa. A Igreja Católica ganhava então um poder ilimitado, centralizando-o e prefigurando assim o poder estatal
moderno – cf. Harold J. Berman, Law and Revolution: The Formation of the Western Legal Tradition, Cambridge,
Mass./London,: Harvard University Press, 1983. Entende-se assim melhor acerto do quanto expõe Pierre Legendre,

475
Organizadora : Edelamare Melo

Ora, esta religião do Deus único – apesar de também trino ou trinitário – e


da verdade única – ainda que obtida ao modo judicativo, judicial,3 por meios
também trinos ou triádicos de teses, às quais se contrapõem antíteses para que
se chegue a sínteses que serão novas teses e assim por diante – se apresen-
tará e representará também como religião única, negando a religiosidade de
todas as outras, assim como antes a sua fora negada – negação da negação,
antítese, para nova síntese -, verdade a se impor a qualquer um que esteja no
uso e gozo de suas faculdades racionais, sendo estes os que, inclusive, mere-
cerão ser considerados, propriamente, humanos, o “animale rationale”. Ora,
mas não podemos ser tidos como “apenas” animale, como vimos acima, nem
tampouco deveríamos ser tidos como apenas rationale –4 nisso, as máquinas
dotadas da chamada inteligência artificial estão se destacando cada vez mais,
a ponto de superar seus criadores, já estando no limiar em que se criarão a si
mesmas. Ocorre que animais e máquinas são desprovidas de religiosidade,
estando aqui um traço que nos distingue, a um só tempo, de ambos, o que já
seria suficiente para invalidar a definição latina, por redutora, proveniente de
tradução igualmente redutora da passagem aristotélica que em grego cons-
ta como zoon (politikon) logon (ekhón): o que vive socialmente possuído e
possuindo a palavra (que lavra e o cultiva, cultuando para colher os frutos -
legéin). Penso, então, que se quisermos manter a nossa humanidade temos
de cuidar da religiosidade e em matéria de religiosidade temos de afastar essa
obsessão com a verdade, sobretudo se concebida ao modo racional mecânico,
maquínico, de maquinação, seca, quando somos humanos, palavra que evoca
o húmus, o úmido, a umidade: somos seres úmidos, “umidescentes”, sensí-
veis, afetáveis, afetivos – e, às vezes, lamentavelmente, também, afetados.
Em texto intitulado “O Sagrado Selvagem”, publicado em obra homôni-
ma, o cientista social francês que preconizava (e praticava) a poesia como mé-
5

quando referindo a obra de Graciano (adiante novamente abordada, nas notas 15 e 16), destaca que “na mais monu-
mental, na mais complexa e na mais compreensiva divisão das ciências, o Direito canônico pode ocupar indiferen-
temente uma das dezesseis partes onde se acham contidas todas as ciências, absolutamente todas (...) uma ciência
tão natural quanto o inventário dos vegetais, (que) escamoteia aquilo de que precisamente os juristas dão conta: que
existe um saber sagrado, privilegiado e separado dos outros, em relação como o Pra-cima onde reside a Potência; só
nesse lugar aí é que se domina afinal e se justifica a Natureza. (...) Daí podem ser percebidos os limites mágicos, que
delimitam o traçado obrigatório por onde transita o discurso” (grifos do A., ob. cit., p. 56).
3
Cf. Legendre, ob. loc. ult. cit.: “O fato é que a Escolástica não operava de um modo puramente dedutivo, porém
mais sutilmente, seguindo a arte do juiz, os desvios do procedimento judiciário (...)”.
4
A propósito, cf. Martin Heidegger, Sobre o “humanismo”. Carta a Jean Beaufret, 2ª. ed. rev., trad. Rubens Eduardo
Frias, São Paulo: Centauro - 2005, p. 21, disponível em https://professorsauloalmeida.files.wordpress.com/2015/08/
cartas-sobre-o-humanismo-heidegger.pdf).
5
Trad. Rita de Cássia Amaral, São Paulo: Cia. Das Letras, 2006. Também publicado em Cadernos de Campo, São
Paulo: USP, disponível in: http://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/40311/43196.

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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

todo,6 Roger Bastide, outro dentre diversos que estiveram no Brasil pesquisando
e lecionando, principia fazendo alusão ao dito de Nietzsche, sobre a morte de
Deus, como sendo já praticamente o mesmo daquele que à época (o texto é
oriundo de uma palestra proferida em 1973) se associava a Michel Foucault, so-
bre a morte do Homem, quando a voga estruturalista fazia eco a pronunciamen-
tos como o de Heidegger, em sua célebre carta a Jean Beaufret, asseverando o
despropósito e a impertinência do humanismo. Que o anúncio da morte de Deus
(e da religião) correspondesse ao anúncio também da morte do Homem (e do
humanismo), para Roger Bastide, seria “lógico, já que o homem só se constitui
como homem através de sua relação com os Deuses”.
E, de fato, é o que constatamos, se recorremos ao que nos ensina a an-
tropologia, uma ciência, derivada da filosofia moderna – logo, pós-cristã, isto
é, posterior e condicionada ao advento da subjetividade humana, referida ao
Deus interiorizado e encarnado do cristianismo -, que tem como pressuposto
fundamental a unidade do gênero humano, para sair em busca de regularida-
des incidindo sempre que estejamos diante dele, ou seja, de formas de se ser
humano, como nós, ainda que se pareçam tão diversas.
Em todas as formas de organização social – e o humano só se manifesta
e prospera em alguma delas – tem-se a presença do que para os seus compo-
nentes seria sagrado, índice de uma presença não-humana, a ser reverenciada,
como divindade. Na esteira de René Girard, autor de “A Violência e o Sagrado”
- tal como Michel Serres em “O Incandescente” e, de uma outra perspectiva,
Lévinas, em obra cujo título já indica a distinção proposta: “Do sagrado ao
santo” -, é preciso distinguir, no que é tido como divino e sagrado, a sacrali-
dade e a santidade. O sacro é, literalmente, o excluído, o separado, mantido de
fora do que é comum, profano – isto é, restrito aos que têm acesso ao lugar em
que, secretamente, se pratica ritos iniciáticos -, e uma tal segregação pressupõe
o emprego de violência, física ou simbólica, para que se verifique, bem como
se mantenha. É um índice da presença de uma insanidade, ameaçadora, posto
que pelo que se considera sagrado se está disposto a matar e morrer. O santo,
a santidade, como a própria etimologia sugere, ao contrário, é decorrente da
sanidade, de uma compreensão sã e salutar, salvadora, capaz de desativar os
dispositivos mortíferos que agem, sobre e através de nós, humanos.
Do que se trata, então, é de buscar uma compreensão do ser que somos,
enquanto humanos, em sua correlação com a religião, como também com o

6
“A propósito da poesia como método sociológico”, publicado originalmente em 08.02.1946, no Diário de São
Paulo, depois em Cadernos, São Paulo: Centro de Estudos Rurais e Urbanos, n. 10, 1977, p. 75 – 82, disponível in:
https://projetobrasilfranca.files.wordpress.com/2010/07/metodopoetico.pdf

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Organizadora : Edelamare Melo

direito e com a política, entendidos como meios com que estabelecemos, com
proibições e sanções – portanto, com ameaças de exercício da violência -,
nosso relacionamento pacífico uns com os outros, tendo como garantia uma
referência externa e superior, sobreposta aos que se conflitam, em si e entre si.
Uma primeira indicação (a fim de evitar a armadilha que representam os
conceitos, algo explicitado por Hans Blumenberg,7 mas como a própria palavra
alemã para “conceito” deixa transparecer, “Begriff”, de “greiffen, agarrar, “indi-
cação” há de ser entendida, em termos que se pretende mais precisos, no sentido
em que Heidegger se referia a “formale Anzeige”, no início de sua longa carreira
filosófica,8 tomando de empréstimo e ampliando noção devida a seu Mestre, Ed-
mund Husserl, referida na “Abertura” da “Primeira Investigação (Lógica)” “ín-
dices” (Anzeigen) significativos, para distingui-los das significações já prontas
e acabadas), ou “pista” a ser seguida, aqui fornecida a título de mera sugestão,
sobre um modo de ser do humano, ou como nele podemos perceber, fenomeno-
logicamente, e com uma conotação claramente jurídica, é a de que o ser huma-
no é o ser responsável. Com essa indicação marca-se bem a sua – aliás, nossa
- diferença em relação a seres que nos são tão próximos, como são os animais.
O ser animal reage, ao invés de responder, donde não lhes podermos atribuir
responsabilidade por seus atos, embora seja comum que lhes infrinjamos puni-
ções, praticando uma espécie de “imputação objetiva”, para coibir ações suas
que repudiamos. Essa nossa característica embrica-se inextrincavelmente com
aquela outra, a liberdade, pois se nossas ações não são meras reações é porque

7
Teoria da não conceitualidade, trad. Luis Costa Lima, Belo Horizonte: EDUFMG, 2013, p. 49.
8
Jesús Adrián Escudero, tradutor espanhol da proposta de pesquisa feita por Heidegger a Natorp - “Interpretacio-
nes fenomenológicas sobre Aristóteles. Indicación de la situación hermenéutica [Informe Natorp]”, Madrid: Trotta,
2002 -, opta por termo equivalente ao nosso “anúncio” e o italiano, tal como o fizemos, por “indicação”, enquanto
na literatura nacional se encontra também a tradução de Anzeige por “indício”, não havendo propriamente um erro
nessas opções, pois na palavra original estão contidas essas outras, e não só: notificação, inclusive no sentido mesmo
jurídico, policial, é também uma tradução possível. E se “anúncio” é mais literal, em termos semânticos, e nisso se
encontra a um só tempo uma vantagem e uma desvantagem, “indício” preserva, como “indicação”, a mesma etimo-
logia do original, com a desvantagem de, na primeira palavra aludida, se ter uma alusão ao indiciário, em matéria
probatória, sendo nossa opção, também por isso, pela segunda. Com apoio em Friedrich-Wilhelm von Herrmann, em
“A idéia de fenomenologia em Heidegger e Husserl”, in Phainomenon. Revista de Fenomenologia, Lisboa: Curso
de Filosofia da Universidade de Lisboa, n. 7, 2003 (cap. III de Id., Hermeneutik und Reflexion, 2000), pode-se iden-
tificar no emprego da indicação formal, ainda que a noção seja oriunda de Husserl, o que caracterizaria a diferença
da abordagem fenomenológica de cunho reflexivo, transcendental, propugnada por este último, e aquela de seu
discípulo, de cunho hermenêutico, que permaneceria fenomenológica ao compartilhar o “princípio dos princípios”,
de “voltar às coisas mesmas”, livres dos modos como elas são conceitual ou preconceituosamente capturadas, seja
por teorias, científicas ou filosóficas, seja pelo senso comum, respectivamente. Em Husserl, ter-se-ia grosso modo,
um constante “voltar-se para dentro”, para a consciência, transcendental, a fim de fazer essa experiência de como se-
riam, ou se dariam, as “coisas mesmas”, enquanto em Heidegger ter-se-ia uma abertura para captá-las na experiência
existencial, fora (eks), a caminho (unterwegs), servindo-se para isso das referidas indicações como acenos (Winke),
“marcas no caminho” (Wegmarken), que vai se fazendo, muitas vezes desobstruindo, pela desconstrução (Abbau)
dos que já se instalaram, evitando nosso acesso à “coisa”, mesma.

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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

são praticadas de um modo – por vezes mais, outras vezes menos – deliberado,
sendo essa faculdade deliberativa própria de um ser reflexivo, devotado ao pen-
samento. Aqui cabe destacar a relação que guarda a responsabilidade-liberdade
em que habita o ser humano com a sua natureza extraordinária. E extraordinário
entendido primeiramente de maneira neutra, literal, como o que está fora de or-
dem, sendo isso assombroso, tanto no sentido de terrificante, pois é assustador
ter a consciência de que dependemos de nossas deliberações para termos êxito
na “luta pela existência”, como também no sentido positivo, de ser maravilhoso,
tomar consciência da existência. Daí podermos concluir que, também literalmen-
te, só o ser humano existe, por estar (“sistere”) fora (“ex”) de uma ordem natural,
em que os outros seres simplesmente estão, por ser onde sobrevivem, mas não
vivem nem morrem, propriamente, apenas começam e terminam, por não se sa-
berem mortais. Acometidos dessa solidão existencial, uma resposta tipicamente
humana está em supor a existência ainda maior de outros seres, míticos, divinos,
que no animismo, tão comum e mitopoeticamente espontâneo entre os povos pri-
mevos, tribais, são associados a animais, plantas, pedras e tudo o que compõe um
mundo percebido como tão vivo quanto si mesmos, em quem, sob esse aspecto,
se reconhece uma superioridade em relação aos humanos, ao se mostrarem segu-
ros de si, de seu ser. De fato, não é nada fácil lidar com a instabilidade de ser que
é própria do ser humano, o ser que, a rigor, não é, não tem um ser, fixo, donde se
explica a criação de uma ordenação humana para nos fixar o ser, assujeitando-
nos, tornando-nos o sujeito que somos, sendo semelhantes ao(s) que nos cria(m),
pela fala que nos transmitem e nos permite construir o mundo em que habitamos,
assim econômica como ética, jurídica e politicamente.
Eis o caráter extraordinário da vida humana, dotada de subjetividade (espíri-
to, mente, consciência ou como se queira denominá-la), na qual se revelam ideias
a respeito do universo “lá fora”, bem como sobre a (ou as) divindade(s) que nos
transcende(m), como ainda, reflexivamente, sobre si mesma, em si e em outros. Tal
extraordinariedade é que nos atribui, propriamente, a responsabilidade, no sentido
de que podemos assumi-la ou não, pela liberdade co(r)respondente, imanente deste
modo de ser que somos. De antemão, no entanto, assombra-nos a possibilidade de
estarmos pondo a perder uma oportunidade absolutamente excepcional – e isso,
tanto individual como coletivamente, em escala mundial, inclusive – quando nos
conduzimos sem sequer nos preocuparmos com o significado que pode ter isso de
sermos dotados de consciência e da correlata reponsabili(ber)dade.
Referido, assim, ao que entendemos ser a relação co-institutiva entre a fa-
bulação mitopoética, a religiosidade, o direito, a política e o humano, então do que
se trata é de verificar em que medida um componente jurídico-político, junto ao

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Organizadora : Edelamare Melo

mítico-religioso, faz-se presente para fixar, em uma ordem, tudo o que cria esse ser
criador que somos os humanos, a começar pela própria linguagem, que se origina,
originando-nos, necessariamente revestida de formalidades, segundo nos propõe
Rossenstock-Huessy, em sua obra sobre a origem da linguagem, com o caráter sa-
cramental que antes destacara Johann Georg Hamann – uma fonte pouco conside-
rada das reflexões bem mais notórias de autores contemporâneos como Walter Ben-
jamin e seu seguidor Giorgio Agamben -, pois exige já um contexto adequado para
que surja, que há de se conceber como devocional, reverente, ritualístico, mimético,
por mítico-religioso. Em um tal contexto é que, por razões fáceis de se perceber,
inserir-se-ia, para se manter e superar as adversidades, o ser que se extravia da or-
dem natural, buscando reencontrar-se, pensando reencontrá-la, criando, sem se dar
conta, outras ordens, “co-naturais”, animistas, ou sobrenaturais, transcendentes.
Assim, a política, com o direito, compõem a argamassa que cimenta
nossas relações uns com os outros, através da linguagem, em que ele se ex-
pressa e ajuda a fixar, sendo que nessa composição também se faz necessário o
fluido da religião, entendida muito simplesmente, de maneira indissociável das
práticas mágicas, com seus mitos e sua encenação, os ritos, como o faz Marcel
Mauss,9 enquanto um conjunto de crenças, cristalizadas em dogmas, dogmas
estes que também podem se revestir de conotação jurídica, donde ser na teolo-
gia e na jurisprudência, entendida como a ciência jurídica em sentido estrito,
onde se verifica a permanência de uma estrutura dogmática de conhecimento,
ou seja, de uma especulação racional sobre tais dogmas. Que não nos repugne,
neste contexto, a possibilidade de nos defrontarmos com um novo humanismo,
que entretanto não poderá incorrer em equívocos típicos dos puros humanis-
mos, ao elegerem o homem e suas capacidades como a medida com a qual se
avaliaria tudo o que nos diz respeito, tanto no campo do conhecimento, da teo-
ria, em que imperariam as ciências, como naquele da ação, da prática, em que
uma moral universalista e laica haveria de pautar nossa conduta, com pouca
consideração para com situações particulares, singulares, e também para com
as crenças que nos constituem, mesmo que sejam crenças ateístas.
Direito e política de um lado, magia e religião de outro, portanto, es-
tabelecem uma relação de simbiose, presente quando da afirmação pioneira
do humanismo pelo romano Cícero, e retomada no Renascimento, a qual se
pretendeu romper, com o humanismo da modernidade, eivado de formalismo,
sem se perceber que o lugar deixado vazio, ao lado do Direito, termina sendo
ocupado por o que se vai chamar então de ideologia, para designar esse con-

9
Cf., v.g., Oeuvres, vol. 2, Paris: Ed. de Minuit, 1968, p. 647.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

junto de crenças, em amparadas em especulações racionais que não mais se


apresentam como teológicas ou metafísicas, por não mais serem tidas como
crenças, e sim como conhecimentos científicos, de acordo com o credo positi-
vista. E no entanto, mesmo nesse contexto de desmistificação de tudo, inclusi-
ve da relação entre Direito, política e religião – sem que na época, em geral, se
percebesse o quanto se devia, para que se chegasse a tal ponto, ao desenvolvi-
mento da religiosidade judaico-cristã -, chama a atenção um posicionamento
como aquele de Jean-Marie Guyau (1854 – 1888), em sua “Crítica da Ideia
de Sanção”, de 1883,10 pela consciência demonstrada do caráter inextrincável
daquela relação, entre Direito – logo, também a política - magia e religião.
Para ele, em se tratando das sanções religiosas,11 tem-se o exemplo mais
próprio de sanção, palavra que etimologicamente remete à consagração, ao
que é sagrado, e também à santificação, ao santo, devendo remeter, de acordo
com a ideia que para ele então se fazia da santidade, tida como divindade ide-
al, a uma espécie de renúncia, de desprendimento supremo, donde só se poder
explicar a violência contida nas sanções, religiosas ou não, em se fazendo,
como propusemos no início, sua referência ao sagrado – essas colocações
vêm iluminadas em um conjunto de obras recentes, de inspiração assumida-
mente foucaultiana, da lavra do filósofo italiano Giorgio Agamben, retoman-
do a figura do homo sacer, do direito penal romano, como um modelo para
se pensar a situação em que nos encontramos nas atuais sociedades, em que
o poder se exerce de maneira biopolítica, ou seja, cada vez mais sobre o que
denomina vida nua (no que se pode ver uma alusão à “vida fática” do Dasein
heideggeriano, cheia de consequências, como se verá a seguir), a qual se pode
entender como a vida do ser humano em quem não mais se reconhece uma
pessoa, com a dignidade que lhe é própria.
As religiões, assim como o Direito e a magia, enquanto impõem por
meios que são políticos certa regra de conduta, a obediência a certos ritos e
a fé em determinados dogmas, têm todas a necessidades de uma sanção para
confirmar seus preceitos. Todas elas, para Guyau,12 são unânimes ao invocar
a sanção mais temível que se possa imaginar, isto é, elas prometem castigos
eternos e fazem ameaças que ultrapassam aquilo que a imaginação do homem
mais furioso pode sonhar em infligir a seu mais mortal inimigo. Nesse, como
em muitos outros pontos, as religiões, segundo ele, estariam em pleno desa-
cordo com o espírito dos “tempos modernos”, mas considera estranho pensar

10
Ed. bras. trad. Regina Schöpke et al, São Paulo: Martins Fontes, 2007.
11
Ob. cit ., p. 27 .
12
V. id. ib., p. 77 ss.

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Organizadora : Edelamare Melo

que ainda são seguidas por multidões, inclusive de filósofos, ainda imagi-
nando Deus como a mais terrível das potências, a concluir daí que, quando
está irritado, ele deve infligir o mais terrível dos castigos. Desconsidera-se,
assim, que Deus, esse supremo ideal, deveria ser simplesmente incapaz de
fazer mal a alguém e, com ainda mais razão, de devolver o mal pelo mal.
Precisamente por se conceber Deus onipotente – em sintonia com uma li-
nhagem de pensamento que deriva da teologia metafísica tardo-medieval de
franciscanos como Duns Scot e Guilherme de Ockham, a já então chamada
via moderna, que repercute em filósofos tidos como maximamente modernos,
a exemplo de Leibniz e Kant -, portanto como o máximo de potência, Ele só
poderia infligir o mínimo de dor; isso porque, quanto maior é a força de que
se dispõe, menos se tem necessidade de despendê-la para obter determinado
efeito (princípio da economia ou parcimônia, também conhecido como “na-
valha de Ockham”). Como, além disso, vê-se n´Ele a suprema bondade, é
impossível imaginá-Lo infligindo até mesmo esse mínimo de dor. É preciso
que o pai celestial ao menos tenha, sobre os pais deste mundo, a superioridade
de não açoitar seus filhos. Enfim, como Ele é, hipoteticamente, a soberana
inteligência, por onisciente, não podemos acreditar que faça nada sem razão
(princípio da razão suficiente, de Leibniz); ora, por que razão Ele faria sofrer
inutilmente um culpado, já que isso não pode alterar o que foi feito, o passa-
do? E, de todo modo, o ocorrido não se deu com a Sua concordância? Deus
está acima de qualquer ultraje e não precisa se defender, não deve nada a
ninguém (nullius debitor est) e Ele não tem, portanto, de ferir. Daí se entende
a afirmação de Slavoj Žižek, em seu grande livro sobre Hegel, “Menos que
Nada”, de que o primeiro mandamento, “Não Matarás”, tem como primeiro
destinatário o próprio Deus.
As religiões são sempre levadas a representar o homem mau como um
titã empenhado numa luta contra o Deus em exercício do poder; uma vez que
Zeus/Júpiter saia vencedor é muito natural que, daqui por diante, ele tome
suas precauções e esmague seu adversário sob uma montanha. Mas é fazer
uma estranha ideia de Deus imaginar que ele possa lutar materialmente com
os culpados, sem perder Sua majestade e Sua santidade. A partir do momento
em que a Lei moral personificada empreende uma luta física com os culpados,
ela perde precisamente seu caráter de lei, rebaixa-se ao nível deles, decai. Um
Deus não pode lutar com um homem: Ele expõe-se a ser jogado por terra,
como foi o anjo por Jacó [Gênesis]. Ou Deus, essa lei viva, é a onipotência,
e então não podemos verdadeiramente ofendê-lo, mas ele também não nos
deve punir, ou então nós podemos alguma coisa contra Ele, e Ele não é a

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

onipotência, não é absoluto, não é (esse) Deus. “No fundo, mesmo na moral
kantiana, a sanção é apenas um expediente supremo para justificar racional e
materialmente a lei formal de sacrifício, a lei moral. Acrescenta-se a sanção
à lei para legitimá-la”.13 Caso se queira encerrar a escalada de violência que
vem se mostrando ser a da humanidade, coibindo as ações por meio da sanção
sacrificial, originalmente voltada para – e devotada a - satisfazer divindades
em quem projetamos o ódio que nos é próprio, ter-se-ia que retribuir o mal
com o bem, com o amor, fraterno, como apregoa Guyau em texto que resume
suas ideias sobre o assunto, significativamente intitulado “Sanção de amor e
de fraternidade”.14 Ora, embora ele apenas insinue, talvez para não despertar
o desagrado de seus pares, em época de descrédito do que se pudesse consi-
derar religioso, não seria essa justamente a proposta do cristianismo?
Hoje em dia, no entanto, consideremos não ser de se dar crédito a preten-
sões, já de partida falsas (ou fracas), quando sugerem um acesso privilegiado
à verdade, logo, à (única) resposta certa para questões complexas como as que
temos de lidar na atualidade, donde a necessidade de se assumir um ponto de vis-
ta epistemologicamente democrático, radicalmente democrático, praticando uma
abertura como aquela que se encontra entre cultores das artes e do mistério.15
Isso significa que temos de promover (e nos envolvermos) em amplos de-
bates e acirrados embates, incluindo o maior número possível de posições, mes-
mo aquelas acima descritas como fracas, de forma que sem um viés ideológico
excludente possamos reunir aspectos de cada uma, a serem avaliados como cor-
retos, por critérios previamente estipulados, mas também sempre revisáveis, com
vistas à construção de respostas apropriadas a tais questões. Com tal conclusão,
somos remetidos ao nosso próximo item, onde abordaremos o que se pode con-
siderar como requisitos para que os debates e embates aqui referidos possam se
desenvolver de modo satisfatório: direitos fundamentais e cultura.
3. Direitos fundamentais e cultura.
Começando pela “cultura”, literal e etimologicamente, em certo senti-
do,remete a esse ambiente úmido, ao húmus, de onde brotamos, sendo o hú-
mus da cultura donde emerge o humano: a capacidade simbolizadora presente
na linguagem, em suas mais diversas formas (sendo o direito uma delas),
enquanto produtora (e produto) do esforço de produção de um sentido para

13
Guyau, ob. cit., p. 89 e 90
14
Ib., pp. 82 ss.
15
Sobre a importância de tal aproximação entre a criatividade artística e a radicalização da democracia v. a densa
carta de Toni Negri para Giorgio Agamben, de 07.12.1988, in: https://www.alfabeta2.it/2014/10/26/sublime/.

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a existência desse ser em aberto, livre, que somos. Trata-se, assim do solo
em que nos assentamos, que cultivamos, ou deveríamos, por ser onde somos
cultivados. Há, no entanto, um outro sentido, menos evidente, menos conhe-
cido, e que quero relembrar, vindo do direito, e também da religião, por ser o
direito canônico, da origem deste, na obra magna de Graciano, do século XII,
o Decretum Gratiani, também conhecido como Concordia discordantium ca-
nonum ou Concordantia discordantium canonum,16 produzido naquela matriz
romano-cristã, dita católica, ou seja, universal, apostólica, ou seja, militante,
proselitista e elitista. Trata-se da definição de um ilícito, um pecado, um cri-
me, a ser perseguido para punir a quem, ao invés de se dedicar ao culto, ao
culto verdadeiro, católico, da verdade, revelada e anunciada, na boa nova, a
novidade, o evangelho,17 praticavam o que ali se designa, pejorativamente,
como “cultura”,18 os “pagãos”, ou seja, literalmente, aqueles dos campos e
florestas, similar àquela que foi chamada, pelos portugueses, quando a encon-
traram na África, de “feitiço”, o culto dos deuses fetiches, cultura proibida.19
Bem, o direito à cultura há então de ser visto como um direito funda-
mental que praticamente se confunde, pelo que temos exposto até aqui, com
o direito a ser humano, um ser de cultura, cultos e culturas, um ser cultural,
“culturado”, das mais diversas formas nas quais este ser plástico que somos
vamos nos tornando, nos fazendo e refazendo, neste esforço de sermos, di-

16
Ilustração de página da obra original de Graciano (aprox. 1150), prefigurando a Arbor scientiae (A árvore da ciên-
cia), de Raimundo Lúlio, um século depois (1272), em que postula a existência de princípios científicos gerais nos
quais se englobam os saberes particulares, fonte de inspiração para Leibniz em sua influente metafísica, fundante
da filosofia em língua alemã, especialmente em sua tese de doutoramento em direito, a Nova Methodus discendae
docendaeque jurisprudentiae (1617), onde se pode encontrar talvez a fonte mais remota do atual pensamento gene-
ralizado por algoritmos da cibernética. https://en.wikipedia.org/wiki/File:Treegratian.jpg
17
Note-se bem como se conectam a ideologia ou religião da modernidade, assim como seu correlato gnosiológico,
a ciência, com esta da novidade.
18
E ainda hoje reverbera a cisão entre religião e cultura, pois como me foi relatado por um pesquisador de literatura
africana, Ubiratã de Souza, quando ele esteve em Moçambique pesquisando para o seu doutoramento, teve dificul-
dade em se fazer entender com aqueles que lá lhe perguntavam por sua religião e sendo ele adepto do candomblé
dizia ser a mesma que a deles, mas para eles a suas práticas religiosas denominavam “cultura”, preservando o termo
“religião” para aquelas, que até, em geral, também dispunham, institucionais, como as cristãs, muçulmana etc.
19
Pierre Legendre, em O Amor do Censor, cit., p. 70, destaca que na obra de Graciano “a ciência selvagem, no-
meadamente citada sob a qualificação de cultura, se encontra radicalmente desintegradas por meio das doutrinas
que elucidam os procedimentos da excomunhão e da penitência. (...) Da Escolástica que gira em torno deste eixo e
segundo seu regime, podemos dizer isto: que ela abre o discurso universal das ciências, (...)”. Adiante, p. 103, o A.
refere em que consiste a “cultura” para Graciano: seguir os augúrios e interrogar o movimento das estrelas, tal como
se encontra na Causa 26, questão 2, cânon 9 – uma ciência sacrílega, portanto. E isso o faz apresentando o caso do
padre adivinho, ensandecido em sua arte e em virtude disso excomungado. “Ciência do pagão”, comenta Legendre,
na p. 239, “a cultura resume todas essas práticas (dos saberes malditos), associadas ao pecado fálico”, e transcreve a
referida passagem do Decretum, se reportando a S. Jerônimo, para quem se deve guardar o seguinte: “o fornicador
comete o pecado em seu corpo, não somente em seu próprio corpo, transformado no templo de Deus, mas também
naquele outro corpo que chamamos Igreja, corpo do Cristo. Assim, aquele que se houver maculado sexualmente
torna-se criminoso para a Igreja inteira, visto que por um único membro (o membro impuro), a mácula espalha-se
na integralidade do corpo”.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

recionando-se por alguma referência, uma orientação sobre o que pode nos
acontecer, o que acontece.
Agora, os direitos fundamentais precisam ser compreendidos como
direitos que não são apenas direitos subjetivos, direitos dos sujeitos, desses
assujeitados a alguma forma de poder que os co(i)nstitui de determinado,
mas assim, também, e anteriormente, em todos os sentidos, tanto cronológico
como ontológico, essencial, como direitos dotados também de uma dimensão
objetiva. Nesta dimensão os direitos fundamentais se projetam para moldar
as estruturas de poder, a fim de que se amoldem ao respeito do ser, humano,
e outros, para que assim faça com que melhor nos desenvolvamos, experi-
mentando a nossa necessária e intrínseca liberdade, dentre as quais se destaca
a liberdade religiosa – por muitos tida como o primeiro direito humano e
fundamental a se afirmar historicamente -, a liberdade de culto, de cultura.
Daí decorre a copreensão de que não adianta haver direitos assegurados em
tratados internacionais, constituições e leis se não houverem, nesta dimensão
objetiva, instituições devidamente estruturadas para fazer valer e respeitar
tais direitos, reconhecidas como instituições que só se justificam se estiverem
a serviço de tais direitos e de seus titulares, que somos nós, os seres ameaça-
dos por definição, que por isso se tornam ameaças também – e isso sobretudo
quando não se reconhecem a igualdade, no que é fundamental, daqueles que
são aparentemente diversos, e que esta diversidade não só é inevitável como
é favorável à continuidade do nosso desenvolvimento, seres que estão, ou
estamos, por definição, sempre em desenvolvimento, em desdobramento, em
transformação em outro, em outros.
4. Igualdade racial e liberdade religiosa
Pelo que já dito aqui até o momento, neste ponto podemos ser mais bre-
ves, sustentando que a igualdade racial precisa ser, simplesmente, reconhecida
como um fato: há uma só raça humana, a raça humana, e deste ponto de vista
somos iguais, ou, se quisermos empregar termos biológicos, já que a noção é
biológica,podemos dizer que entre todos os humanos há uma tal proximidade
genética, de genótipos, que torna toda a diferença de fenótipos, de aparência, por
mais diversa que pareça, meramente isso, aparências, enganosas.
Já a liberdade religiosa é uma expressão um tanto pleonástica, pois a
religião é uma expressão maior, primeira, da liberdade, dessa característica
humana tão peculiar, tão singular, dos seres singulares, singularíssimos que
somos, e nos assustamos com isso. Desse susto surgem as religiões, como
surgiu a filosofia (na versão desta origem indicada nas obras de seus dois

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pilares maiores, a saber, aquelas de Platão e de Aristóteles), esta religião da


máxima liberdade, a liberdade da religião, ou das religiões, sobretudo se en-
tendidas como a fixação de dogmas a serem relidos - donde a derivação de
religio de relegere, um tanto forçada, quando religio para os antigos romanos
significava o cuidado e a solicitude que se tria uns para com os outros, cujo
exemplo maior se encontrava entre os que compunham uma legião para o
enfrentamento de vida ou morte nos combates.20
5. Ponto e contraponto
Ponto e contraponto, dois pontos: proporcionalidade. A diversidade hu-
mana gera inevitavelmente a multiplicidade de pontos de vista e também dos cor-
relatos contrapontos. Isso precisa ser valorizados, como dizíamos, mas também
precisa ser dosado, pois os atritos decorrem dos choques entre esses diversos pon-
tos de vista, que podem estar todos invocando apoio no direito e também invocan-
do direitos. E se por um lado tais atritos são necessários e podem ser benéficos,
pois como todo atrito impulsionam, movimentam, diversificam ou acrescentam,
por outro lado, se os atritos não se mantiverem dentro de certos limites, podem ser
destrutivos, inclusive do próprio atrito e dos que nele estão envolvidos, a todos –
primeiramente, aos perdedores do conflito, mas também os vencedores perdem,
sem que percebam, ao menos de imediato.
Sim, porque em um conflito envolvendo direitos fundamentais, que são
direitos de proteção da humanidade, da dignidade humana, se algum deles preva-
lecer ao ponto de destruir o outro e aos que nele estão amparados para continuar
exercendo e desenvolvendo sua humanidade, aos que vencem tais conflitos dessa
maneira se tornam desumanos, são diminuídos e sua humanidade, nela regridem,
porque agridem a do outro e a humanidade é uma qualidade genérica, de todos e
todas. É para nos orientar na descoberta da solução que melhor preserve os direi-
tos todos envolvidos em um conflito entre eles que venho defendendo o emprego,
de modo que foi pioneiro aqui entre nós, há trinta anos – portanto, desde que en-

20
Cf. Peter Sloterdijk, Du musst dei Leben ändern, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2009, p. 140. Vale lembrar um
dos sentidos que autores latinos mais antigos, como Sérvio Sulpício, atribuíam à palavra religio, fazendo-a derivar
de relinquere, isto é, deixar, abandonar, relegar - cf. Giovanni Filoramo/Carlo Prandi, As Ciências das Religiões,
São Paulo: Paulus, 1999, p. 255. Os demais sentidos etimológicos aventados além de “reler”, ou seja, “observar
conscienciosamente”, respeitar a “palavra de(os) Deus(es)”, seriam “religar”, quer dizer, “vincular-se a Deus(es)
ou a eles retornar quando os pontífices (literalmente, os fazedores de pontes) firmavam os laços que amarrava a
ponte que unia o solo profano ao sagrado, e “re-eleger”, isto é, “converter-se a um novo discernimento”, os quais
são associados a Virgílio, Lactâncio e Agostinho, respectivamente, sendo também este último que irá, neste sentido,
postular por uma vera religio, a cristã. Em Tomás de Aquino, religio será entendida em um sentido mais próximo
a este último, mas com uma conotação menos intelectual e mais emocional, de adoração - cf. Matthias Lutz-Ba-
chmann, “Religião depois da Crítica à Religião”, in: Impulso. Revista de Ciências Sociais e Humanas, v. XIV, n. 34,
Piracicaba: UNIMEP, 2003, p. 14 e seg.

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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

trou em vigor nossa atual Constituição da República -, do princípio constitucional


da proporcionalidade, que hoje ainda é muito mal compreendido, por ter sido
distorcido, a começar pelo Supremo Tribunal Federal, quando se trata de uma
garantia fundamental, garantia das garantias dos direitos fundamentais – consa-
grando ele próprio, portanto, um direito fundamental.
Como já vimos defendendo há algum tempo, a definição de uma ordem
jurídica como a instituída em nossa atual Constituição Federal, em termos de um
“Estado Democrático de Direito”, traz em si, como fórmula política,21 a repre-
sentação do quanto uma Constituição expressa a ideologia com base em que se
pretende organizar a convivência política em um dado país.22 Tal representação
coloca a Constituição como um vetor de orientação para a interpretação de suas
normas e, através delas, de todo o ordenamento jurídico. Vale também lembrar,
com Peter Häberle, que a Constituição num Estado Democrático de Direito não
estrutura apenas o Estado em sentido estrito, mas também o espaço público e o
privado, constituindo, assim, a sociedade como entidade maior. 23
Para resolver o grande dilema que aflige os que operam com o Direito
no âmbito do Estado Democrático contemporâneo, representado pela atualidade
de conflitos entre princípios e direitos dotados de fundamentalidade, aos quais
se deve igual obediência, por ser a mesma a posição que ocupam na hierarquia
normativa, já desde o estudo pioneiro entre nós,24 consideramos incontornável
o recurso a um “princípio dos princípios”, que em paráfrase a Edmund Husserl
qualificamos assim, por representar algo assim como “a principialidade dos prin-
cípios”, enquanto decorrente de sua relatividade mútua. Trata-se do princípio da
proporcionalidade (Grundsatz der Verhältnismäβigkeit), tal como concebido no
campo jurídico na tradição germânica, como um princípio, também, de “relati-
vidade” (verhältnismäβig), o qual determina a busca de uma “solução de com-
promisso”, respeitando-se mais, em determinada situação, um dos princípios em
conflito, e procurando desrespeitar o mínimo ao(s) outro(s), sem jamais lhe(s)
faltar minimamente com o respeito, isto é, ferindo-lhes o “núcleo essencial”, onde
se encontra entronizado o valor da dignidade humana, princípio fundamental e
“axial” do contemporâneo Estado Democrático. O princípio da proporcionali-
dade, embora não esteja explicitado de forma individualizada em nosso ordena-

21
Willis Santiago Guerra Filho, Processo Constitucional e Direitos Fundamentais, São Paulo: Instituto Brasileiro de
Direito Constitucional/Celso Bastos Ed., 1999, p. 23 ss.; 7ª. ed., São Paulo: SRS, 2017, p. 44 ss., 89 ss.
22
Pablo Lucas Verdú, Curso de derecho político, vol. 2, Madrid: Tecnos, 1977, p. 532.
23
Peter Häberle, El Estado constitucional, Buenos Aires: Editorial Ástrea de Alfredo y Ricardo Depalma, 2007, §
2.º p. 84; § 54, p. 272.
24
Willis Santiago Guerra Filho, Ensaios de Teoria Constitucional, Fortaleza: Imprensa Universitária da UFC, 1989,
pp. 69 ss.; 2ª. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, pp. 65 ss.

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mento jurídico, assim como o da dignidade da pessoa humana (art. 1o., inc. III,
CR), é uma exigência inafastável da própria fórmula política adotada por nosso
constituinte, a do “Estado Democrático de Direito”, pois sem a sua utilização não
se concebe como bem realizar o mandamento básico dessa fórmula, de respeito
simultâneo dos interesses individuais, coletivos e públicos. Em sendo assim, tem-
se que o compromisso básico do Estado Democrático de Direito repousaria na
harmonização de interesses que se situam em três esferas fundamentais: a esfera
pública, ocupada pelo Estado, a esfera privada, em que se situa o indivíduo, e um
segmento intermediário, a esfera coletiva, em que se tem os interesses de indiví-
duos enquanto membros de determinados grupos, formados para a consecução de
objetivos econômicos, políticos, culturais ou outros.
É cediço que o Estado de Direito tem como viga-mestre o princípio da
legalidade. O princípio da legalidade o entendemos, na perspectiva aqui exposta,
como condicionado por aquele da proporcionalidade, a fim de que não viole o prin-
cípio da dignidade humana, pondo-se a serviço do Estado de Direito e, ao mesmo
tempo, tanto da isonomia como da segurança jurídica, em seu aspecto formal, e
também, em seu aspecto substancial, servindo ao Princípio Democrático, à morali-
dade pública e à liberdade, ao determinar que se equacione, de maneira ponderada,
a gravidade dos fatos a serem apenados e a severidade das penas ou consequências,
para que subtraiam ou restrinjam direitos fundamentais, sem fulminar a dignidade
humana do prejudicado, mas sempre em defesa de bens dignos de uma proteção
com tal magnitude, como são aqueles de interesse público e da coletividade.25
O melhor entendimento do princípio da proporcionalidade decorre de
sua aplicação a casos concretos de colisão entre princípios e direitos funda-
mentais, em situações reais, portanto, mas de antemão vale adiantar que com
esta aplicação do que se trata é de preservar a dignidade humana, que está
entronizada no núcleo essencial intangível de todos os direitos (e garantias)
fundamentais, como é aquele direito a exercer plenamente o quanto requer uma
crença religiosa, quando tal direito é ameaçado ou afrontado por quem faz isso,
ainda que invocando outros direitos, religiosos ou não, de forma abusiva.
Referências Bibliográficas
Bastide, Roger. “A propósito da poesia como método sociológico” ( publicado originalmente
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Paulo, Malheiros, 2001, p. 269.

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Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Bastide, Roger. “O Sagrado Selvagem”, in: Cadernos de Campo, São Paulo: USP, disponível
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Organizadora : Edelamare Melo

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Verdú, Pablo Lucas. Curso de derecho político, vol. 2, Madrid: Tecnos, 1977.

490
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Apêndice

PROJETO UBUNTU NO QUILOMBO do GROTÃO:


ARTICULAÇÃO INSTITUCIONAL PARA A PROMOÇÃO
DO TRABALHO DECENTE E PRODUÇÃO DE
ALIMENTOS LIVRES DE AGROTÓXICOS.

Vinicius Gomes de Aguiar


Dernival Venâncio Ramos Junior
Cecília Amália Cunha Santos
Kênia Gonçalves Costa

Introdução
O projeto Ubuntu é uma proposta de promoção do trabalho decente que
tem se dado na comunidade quilombola Grotão, viabilizado pelo Ministério
Público do Trabalho (MPT) de Araguaína, pela Organização Internacional do
Trabalho (OIT) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) Araguaia-Tocantins,
com a execução técnica do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SE-
NAR) – Administração Regional do Tocantins.
Segundo o Plano Nacional de Trabalho Decente (PNTD), torna-se necessário
que o Estado brasileiro crie condições para que as relações de trabalho viabilizem “a
superação da pobreza, a redução das desigualdades sociais, a garantia da governabili-
dade democrática e o desenvolvimento sustentável” (BRASIL, 2010, p. 4). Neste mes-
mo documento é analisado inclusive o entendimento da OIT, que se baseia em quatro
pontos básicos: ater às normas de trabalho; promover emprego de qualidade; garantir
da proteção social; e viabilizar o diálogo social (BRASIL, 2010).
Naturalmente o projeto Ubuntu não consegue executar todas os pontos
apontados pela OIT, uma vez que não se trata de uma ação de geração de
emprego formal envolvendo empregador e empregado, mas busca fortalecer
a comunidade do quilombo Grotão no que tange a geração de renda (pois tra-
ta-se de uma comunidade em que os homens eram contratados por sistemas
de diárias e empreitas, com baixa remuneração e eventualmente realizando
jornadas exaustivas), redução do êxodo de quilombolas para as cidades mais
próximas, elevação da autonomia das comunidade em relação às práticas pro-
493
Organizadora : Edelamare Melo

dutivas, a retomada de práticas tradicionais quilombolas que estavam enfra-


quecidas, apoio ao quilombo na luta pelo seu território, dentre outras ações.
O objetivo deste artigo é apresentar a experiencia de articulação insti-
tucional para viabilizar a produção de alimentos sem uso de insumos quími-
cos, propiciando oportunidade de trabalho decente no Quilombo do Grotão,
bem como descrever os desafios enfrentados e os resultados alcançados.
Localização do Quilombo Grotão
A Comunidade Quilombola Grotão está localizada no Município de Fi-
ladélfia (Figura 01), nas proximidades do povoado de Bielândia. O território
tem como limite, à esquerda o Rio João Aires e, à direita, o ribeirão Gamelei-
ra. Apesar da divisa com dois cursos de água, a comunidade nota o decrésci-
mo periódico do nível dos mananciais. Esse problema pode estar relacionado
à retirada da vegetação para a formação de fazendas a partir de 1970 e mais
recentemente às grandes plantações de eucalipto (Eucalyptus globulus Labill)
instaladas nas fronteiras do território (MATOS, 2018). A água passa a ser um
problema recorrente, referido durante a presença de pesquisadores em campo.
Dezenove famílias vivem atualmente de área disponibilizada à comu-
nidade (cerca de 20 alqueires). O laudo antropológico, solicitado pelo Minis-
tério Público Federal (ALMEIDA, 2011), identificou uma área de dois mil e
duzentos hectares como território ancestral. Esse dado se ajusta aos limites
descritos e registrados pelas narrativas orais e pela cartografia social em ela-
boração por pesquisadores do NEUZA-UFT/CPT.
Planejamento do Projeto Ubuntu
Inicialmente, um representante da CPT em contato com a Dra. Cecília Amá-
lia (Procuradora do MPT), foram no território da comunidade quilombola Grotão
e levantaram as demandas por práticas produtivas, segurança alimentar e trabalho
digno que poderiam ser aplicadas. Após diversos diálogos, o projeto foi definido
contendo um sistema de irrigação, perfuração de poço artesiano e instalação de
uma caixa de água de 10.000 (dez mil) litros, além das cadeias produtivas de hor-
ticultura, avicultura de corte/postura, piscicultura, feijão e mandioca.
Com a intenção de promover a manutenção dos quilombolas na insta-
lação e no aprendizado das novas práticas produtivas, além da dedicação das
famílias na execução da produção, o projeto viabilizou o pagamento de uma
bolsa de R$ 500,00 (quinhentos reais) mensais para 19 (dezenove) famílias
do projeto, que possui duração de 11 meses.
Para que o projeto obtivesse melhor desempenho, o MPT, CPT e Senar
planejaram capacitar a comunidade quilombola, por meio da troca de experiên-
494
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

cias e aprendizado relacionado as técnicas de gestão e de produção. Dentre os


cursos proposto estão os de: gestão e gerenciamento de empresas rurais, voltado
para o empreendedorismo rural; mulheres em campo, destinado ao empreende-
dorismo e gestão rural aplicado para as mulheres da comunidade; associativis-
mo e cooperativismo, que capacitou a comunidade a melhor organizar a associa-
ção já existente no quilombo; além dos específicos das cadeias produtivas, que
possui a proposta de viabilizar o uso de técnicas eficientes de produção.

Figura 01. Mapa de localização do quilombo Grotão, em Filadéfia (TO).

Implantação do Ubuntu no Quilombo Grotão


Já na inauguração do projeto Ubuntu (Figura 2), em meados do mês de
abril de 2019, a comunidade em conjunto com os técnicos do Senar, apresen-
taram primeiros resultados com uma quantidade significativa de verduras da
horticultura ainda em estágio inicial, assim como á área destinada a mandioca
nas proximidades da casa de Dona Aparecida (liderança do quilombo Grotão)
e as primeiras aves que já estavam instaladas no aviário.
495
Organizadora : Edelamare Melo

Figura 2. Dona Aparecida falando na inauguração do projeto Ubuntu, no quilombo Grotão.

O canteiro de Horticultura instalado no quilombo foi de base orgânica,


utilizando sementes adquiridas pelo Senar, especialmente de alface, rúcula,
coentro, cebola, couve e cenoura, que utilizam a irrigação por micro aspersão
em uma área de aproximadamente 5000 (cinco mil) m², sem a utilização de
agrotóxicos (Figura 3). Já no aviário foram colocados frangos e galinhas,
tanto para corte (produção de carne), quanto para postura (produção de ovos),
em um sistema semi-intensivo (Figura 4). Na inauguração havia aves tipo cai-
pira melhorado em uma área de 200 (duzentos) m2, sendo 30 (trinta) m2 de
cobertura, com capacidade para 100 frangos de corte e 50 galinhas de postura.

Figura 3. Canteiro de produção de Coentro Figura 4. Aves no aviário do Projeto Ubuntu no


na área de horticultura do Projeto Ubuntu no quilombo Grotão.
quilombo Grotão.

Primeira Experiência dos Quilombolas na Feira em Araguaína


Em meados do mês de Maio de 2019 a produção realizada pela comu-
nidade em conjunto com o Senar, especialmente de hortaliças (Figura 5 e 6),
já estavam no ponto de colheita. Como a entidade que responsável pelo o
apoio técnico no quilombo não se planejou para a parte de comercialização
dos produtos, o MPT e a CPT convidaram o NEUZA (Núcleo de Pesquisa e
Extensão em Saberes e Práticas Agroecológicas) do campus de Araguaína da
Universidade Federal do Tocantins (UFT), para ajudar nesta etapa do projeto
Ubuntu e executar um projeto de mitigação das possíveis novas demandas.
496
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Figura 5. Hortaliças do Projeto Ubuntu no qui- Figura 6. Cenouras do Projeto Ubuntu no quilom-
lombo Grotão no ponto de colheita. bo Grotão ainda em desenvolvimento.
Desde o ano de 2018 o NEUZA-UFT realiza trabalhos de pesquisa e
extensão no quilombo Grotão relacionado as práticas agroecológicas em con-
junto com a CPT, através de um projeto financiado pelo CNPq (Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Com isso, aprovei-
tando o diálogo já existente entre o núcleo da UFT e a comunidade, a ação de
venda dos produtos do Projeto Ubuntu começou a ser organizada.
Nesta etapa, a Dra. Cecília Amália conseguiu, junto a prefeitura de Ara-
guaína, um local para instalar a banca dos quilombolas na feira do mercado
central de Araguaína, durante a tarde de sexta e no sábado pela manhã, assim
como um veículo com motorista para transportar a produção e os vendedores
quilombolas do território para a feira (Figura 7). O NEUZA-UFT se mobilizou
para divulgar a chegada dos quilombolas na feira, conseguir caixas de madeiras
e isopor para acomodar os produtos, além de uma cotação de preço dos pro-
dutos semelhantes aos do Projeto Ubuntu comercializado por outros feirantes.

Figura 7. Lavagem e organização de hortaliças do Projeto Ubunto no quilombo Grotão.

497
Organizadora : Edelamare Melo

Como a comunidade havia uma grande quantidade de hortaliças produ-


zidas, os pesquisadores do NEUZA-UFT conseguiram um outro veículo para
trazer mais verduras. Logo, na tarde de sexta-feira (primeira experiência de
venda dos produtos da comunidade quilombola), os vendedores do quilombo
iniciaram a comercialização de seus produtos com o apoio de um servidor do
MPT, o profissional da área agronômica do Senar que atuava no sistema pro-
dutivo e alguns pesquisadores do NEUZA-UFT (Figuras 8 e 9).
No sábado pela manhã a CPT nos informou que toda produção disponibilizada
para venda havia sido vendida. Em conversa entre os vendedores quilombolas, CPT e
NEUZA-UFT ficou acordado que no dia seguinte, a partir de busca de nova remessa
no período da tarde do sábado, a produção seria oferecida em uma outra feira cidade,
localizada na região denominada de Entroncamento. O funcionário da Prefeitura de
Araguaína, que disponibilizou o espaço na feira do mercado central de Araguaína, se
dispôs a fornecer um espaço na outra feira. Em seguida, os pesquisadores do NEUZA
-UFT conduziram os membros da comunidade, juntamente com o material de apoio
(caixas, mesas, cadeiras, banners) até a sede da CPT em Araguaína (Figura 10 e 11).

Figura 8. Raquel, quilombola e filha da liderança Figura 9. Servidor do MPT auxiliando os vendedores
da comunidade, trabalhando na feira. quilombolas na feira do mercado central de Araguaína.

Figura 10. Saída dos vendedores Figura 11. Chegada dos vendedores quilombolas
quilombolas da feira. na sede da CPT em Araguaína.

498
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Após iniciar no sábado a tarde a divulgação pelas redes sociais da nova


etapa de venda do dia seguinte (domingo de manhã), às 18h pesquisadores
do NEUZA-UFT e o técnico do Senar, juntamente com alguns quilombolas,
retornaram à comunidade para buscar a nova remessa de mercadoria.
No domingo pela manhã, os pesquisadores do NEUZA-UFT haviam le-
vado uma tenda, juntamente com um jogo de mesa de plástico fornecida pela
CPT para organizar o espaço de venda (Figura 12). Como todos os produtos
foram vendidos antes das 11:00h (onze horas) da manhã, o NEUZA-UFT pro-
moveu a entrega simbólica do “Troféu Caixa Vazia” para a comunidade por
entender que a comunidade quilombola, acostumada às práticas tradicionais
rurais se esforçou para aprender um sistema produtivo diferente, com espé-
cies distintas das existentes em seu território, deslocou-se para a cidade de
Araguaína e conseguiu obter sucesso em uma atividade completamente nova,
a venda de produtos em uma feira (Figura 13).

Figura 12. Instalação da banca do Projeto Ubun- Figura 13. Entrega do “Troféu Caixa Vazia” para
tu na feira do Entroncamento. os vendedores quilombolas do Grotão.

Outras Etapas de Produção do Projeto Ubuntu


Após a primeira etapa de vendas do projeto Ubuntu, a comunidade deci-
diu manter as viagens semanalmente para Araguaína com o objetivo de manter as
vendas na feira do Mercado Central durante a tarde de sexta e a manhã de sábado.
Nos domingos subsequentes, diferente do realizado no primeiro evento de feira
do Projeto Ubuntu, a comunidade escolheu ficar no quilombo devido ao cansaço
acumulado nas feiras de sexta e sábado, além de domingo também ser o dia da
semana em que a comunidade se dedica as práticas religiosas.
Com o avanço da produção, novas demandas para feira surgiram.
Com isso a comunidade passou a buscar na sua tradição, práticas e elementos
que os auxiliassem na resolução dos problemas.
Um desafio percebido pela comunidade foi a redução no uso de mate-
riais sintéticos para amarrar os molhos de verdura (principalmente cebola,

499
Organizadora : Edelamare Melo

couve e cheiro verde). Isso induziu a comunidade retomar o uso de Imbira


(fibra retirada da palha das palmeiras de Buriti), que é um material abundante
na vegetação local e possui muito resistência para amarrar os produtos (Figu-
ra 14 e 15). Com a manipulação dessa palha foi também retomada a produção
de trançados, especialmente relacionado a cestarias (Figura 16), em função da
exposição dos produtos comercializados pela comunidade na feira.

Figura 14. Imbira sendo manipulada utilização Figura 15. Cebolas expostas na feira e amarra-
nas hortaliças. das com Imbira.
Além desses elementos, pelo fato da comunidade eventualmente levar para
a feira produtos da sociobiodiversidade quilombola, importantes para a soberania
alimentar do Grotão, como a melancia comumente chamada de Jandaia, o frango
caipira, a mandioca e o limão conhecido regionalmente como Galego.
Outro elemento de grande relevância da produção tradicional quilombola é
a produção de farinha de mandioca que estava limitada devido às más condições
da casa de farinha. Com o projeto o Ubuntu a produção de mandioca se amplia,
inclusive com espécies fornecidas pela Embrapa, além de viabilizar a aquisição de
maquinários, como o triturador e o forno, o que permitiu potencializar a produção
e da comercialização de farinha, tanto no território como nas localidades vizinhas.

Figura 16. Cesta com cajuí, limão galego e Figura 17. Melancia jandaia exposta na feira do
frango caipira. mercado central em Araguaína.

500
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Durante o planejamento do projeto, a Dra. Cecília Amália e o agente pastoral


Evandro Rodrigues dos Anjos foram informados de que um elemento importante
da prática alimentar dos quilombolas é o pescado. Como os cursos d’água local,
segundo relatos das pessoas da comunidade, tem perdido quantidade e qualidade,
os peixes deixaram de ser abundantes. Logo, a comunidade demandou a construção
de tanques de psicultura para a retomada dessa proteína em sua dieta alimentar.
Em setembro de 2019 um tanque de psicultura já estava construído com
mais de 1.800 (mil e oitocentos) alevinos de Tilápia, assim como um filtro de
limpeza de água que se dá com o uso de alfaces d’água, ou seja, sem o uso de
insumos químicos (Figuras 18 e 19).
Desde o primeiro evento de venda na feira em Araguaína, um dos gran-
des desafios para o sucesso da comercialização dos produtos foi o transporte,
tanto dos vendedores quilombolas, quanto dos produtos do projeto. Sendo
assim, o MPT em conjunto com a OIT, viabilizou recursos financeiros para a
aquisição de um veículo (Figura 20) com capacidade de carga e deslocamento
em estradas arenosas, entregue em meados de setembro de 2019.

Figuras 18. Filtro de água da cadeia produtiva de Figura 19. Tanque de psicultura.
psicultura.

Figura 20. Comunidade quilombola Grotão recebendo o veículo em setembro de 2019.

501
Organizadora : Edelamare Melo

Considerações finais
Este texto apresentou a experiencia de articulação institucional entre
MPT, CPT, OIT, SENAR e NEUZA-UFT na viabilização da produção de ali-
mentos sem uso de insumos químicos, propiciando oportunidade de trabalho
decente no Quilombo do Grotão, bem como descreveu os desafios enfrenta-
dos e alguns resultados alcançados.
O projeto Ubuntu tem permitido articular trabalho decente, produção
sem agrotóxicos, fortalecimento da relação com os produtos da sociobiodi-
versidade do território, bem como a comercialização de alimentos saudáveis
nas cidades próximas ao quilombo.
Os desafios enfrentados têm sido superados pela articulação institu-
cional e pela capacidade de organização e resiliência da comunidade.
Referências Bibliográficas
Almeida, Roberto Alves. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária –

Incra Coordenação Geral de Regularização de Territórios Quilombolas – DFQ Superinten-


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Organizadora : Edelamare Melo

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Foto: Projeto GEOAFRO-CIGA-UnB, População


Quilombola, Queimada Nova, Piauí, 2006

MANIFESTO:
POR UM BRASIL AFRICANO MAIS JUSTO!
II COLÓQUIO GEOPOLÍTICA & CARTOGRAFIA DA
DIÁSPORA- ÁFRICA -AMÉRICA -BRASIL

No dia 23 de agosto passado, Dia Internacional da Memória do Tráfico


de Escravos e sua Abolição (Unesco), instituições universitárias, organismos
do setor decisório nacional e estadual, professores e estudantes, juntamente
com entidades representativas da sociedade civil organizada, participaram do
II Colóquio Geopolítica & Cartografia da Diáspora África – América – Brasil,
em Brasília, na Universidade de Brasília, promovido pelo Projeto Geografia
Afrobrasileira: educação & planejamento do Território (GEOAFROBrasil)
e o Centro de Cartografia Aplicada & informação Geográfica (CIGA-UnB),
cujo objetivo principal foi tratar das questões fundamentais da Geopolítica
do Brasil Africano excluído secularmente, ou seja, dos povos e territórios
que existiram, resistiram e se mantêm sobreviventes com suas matrizes, mas
de uma maneira marginal, “invisível” e sem lugar definido no Brasil Oficial.
Neste sentido, concordamos e tornamos público que não podemos mais nos
calarmos diante de tantos fatos oriundos do “racismo estrutural e institucio-
nal” que acomete o nosso país. Importante lembrar que o Brasil constitui, na
atualidade, a mais relevante unidade política com registros das referências
do continente africano “fora” da África. O desenvolvimento das grandes re-
giões com atividades econômicas coloniais que foram estruturadas na força
de trabalho e nas tecnologias oriundas do continente africano, ao longo dos
505
Organizadora : Edelamare Melo

séculos XVI-XIX, é revelador da “presença ampla” da África na formação e


expansão territorial do Brasil. Apesar desse contexto historiográfico, cons-
tatamos ao longo do século XX e neste início do século XXI, um conjunto
de distorções, preconceitos e invisibilidades relacionadas às matrizes afro-
brasileiras, no sentido largo, sobretudo no processo educacional e nas ações
de ordenamento do território pelo Estado, ou seja, há um comprometimento
estrutural no exercício da cidadania dos (as) brasileiros (as) de referência afri-
cana, excluídos de participar da “geopolítica oficial” do país. Neste sentido,
as Reuniões Técnicas ocorridas neste II Colóquio, apontaram contextos e di-
reções que merecem a atenção e providências junto ao setor decisório público
nas suas diferentes esferas, assim como pelo setor privado e os seguimentos
organizados da sociedade brasileira. São as seguintes:
I. Referente ao Estado Democrático de Direito: A existência e a manuten-
ção do racismo estrutural do Estado brasileiro é o entrave fundamental para a
ineficácia das políticas públicas no ordenamento do território nacional permea-
do por variadas incongruências e incompatibilidades, por exemplo: a segregação
sócio espaciais nas grandes cidades do país, onde está a maioria significativa da
população afrobrasileira é o fato geográfico mais evidente do aprofundamento
das desigualdades; na saúde (o preconceito e a negligência crescente nos aten-
dimentos acometem principalmente a população negra do país); a inexistência
das referências africanas e afrobrasileiras na historiografia oficial no processo
educacional (em todos os níveis, ou seja, fundamental, médio e superior); na re-
solução das demandas emergenciais dos territórios tradicionais (quilombos rurais
e urbanos e terreiros religiosos, sobretudo); na revisão dos conceitos e práticas
da segurança da sociedade brasileira (o extermínio da população jovem negra
é uma fato incontestável) e nas oportunidades de trabalho e emprego (a maioria
significativa dos desempregados da nação são pardos), ou seja, a manutenção
deste quadro sócio-político-territorial de mentalidade colonial no país é assegurar
às situações cotidianas a manutenção dos conflitos, marginalizações, exclusões e
falta de informação, tendo como agravante maior o aprofundando do preconceito
e do desconhecimento do Brasil Africano real;
II. O Ordenamento do Território Brasileiro e a Exclusão Secular: Que os
setores da governança do país tratem das questões estruturais dos territórios e
povos de matriz africana como política de Estado e não de Governo; é neces-
sário que a União, Estados, Municípios e o Distrito Federal criem mecanismos
reais de respeito, reconhecimento e regularização fundiária dos territórios étnicos
(quilombos e terreiros religiosos); se faz necessário uma revisão do modelo ins-
titucional de condução dos processos de reconhecimento e titulação que ocorrem

506
“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

atualmente em distintos ministérios do governo federal, ou seja, um modelo dis-


persivo e desagregador que inviabiliza a eficácia nos processos e pode ser alte-
rado com prioridade jurídica e política. Os terreiros religiosos de matriz africana
e os quilombos contemporâneos podem e devem ser vistos como soluções para
as demandas do Estado e não como problemas. Neste sentido, é imprescindível o
fortalecimento do Comitê Gestor da Agenda Social Quilombola;
III. A Cartografia Pendente e as Bases de Dados Precárias: Não é mais
cabível ao Brasil não ter uma Cartografia Oficial com os registros espaciais
dos Territórios Quilombolas, assim como dos Terreiros Religiosos de Matriz
Africana, como ferramentas estruturais para dar suporte às políticas públicas
necessárias e pendentes. A omissão destes instrumentos técnicos para a gestão
governamental cria maiores possibilidades dos conflitos territoriais e tensões
sociais para os agentes e atores envolvidos nos processos. A ausência de uma
política e uma agência cartográfica da União, assim como, as dificuldades
operacionais e institucionais para a eficácia da INDE Brasil (Infraestrutura de
Dados Espaciais) são componentes estratégicos que contribuem para a grave
inexistência da cartografia dos territórios tradicionais secularmente invisíveis;
IV. A Educação Precária das Matrizes Africanas no Brasil: O desconhe-
cimento da legislação e das políticas públicas para a promoção da igualdade
racial por parte dos gestores e professores (as) das escolas de Educação Básica e
Fundamental é um fato que compromete a promoção de mudanças no país mais
africano do planeta fora da África, assim como, a ausência de reconhecimento da
produção intelectual negra e a baixa representatividade da sua população em car-
gos da governança em todos os níveis são contextos reais de comprometimento
no processo educacional. A articulação institucional e política para a implemen-
tação do Artigo 26 da LDB em relação à divulgação das experiências exitosas e
destinação das verbas para a formação dos professores é uma pista concreta para
auxiliar na alteração deste quadro de abandono secular. Do ponto de vista estra-
tégico é fundamental uma efetiva representatividade da questão étnico-racial no
quadro docente, nos currículos e na gestão das instituições de ensino;
V. A Ignorância Geográfica do Povo Brasileiro: A carga horária reduzi-
da, as precariedades das condições de trabalho, a insuficiente formação con-
tinuada e um processo crescente de banalização dos conceitos geográficos
e ferramentas da Geografia são indicadores de um processo de “ignorância
geográfica” na cidadania dos (as) brasileiros (as) em curso. A Geografia dos
Povos Originários e de Matrizes Africanas no Brasil é uma pendência desde
que a educação da Geografia foi implementada no Império e depois na Repú-
blica, ou seja, a Geografia Brasileira tem esta “dívida” secular!

507
Organizadora : Edelamare Melo

Temos como premissa que as informações por si só não significam co-


nhecimento. Entretanto, com o auxílio da ciência e da tecnologia, estas podem
proporcionar elementos que subsidiem e modifiquem a adoção de medidas
concretas para alteração das situações emergenciais do “racismo estrutural e
institucional” praticado há cinco séculos no “Brasil Africano”.
Brasília, 23 de agosto de 2019.
Instituições Participantes e Apoiadoras do Evento:
Projeto GEOAFROBrasil, CIGA-GEA-UnB, UFRJ, MNU, UFAL,
UFRB, UNIDESC, BNCC, ICS-UnB, NEAB-UnB, Instituto Baobás, OIT
-Brasil, Instituto Geodireito, SEJUS-GDF, Quarteto Consultoria, UFT, IFB,
TV-UnB, CET-UnB.

Palestrantes, Colaboradores e Homenageados:


Profa. Maria Auxiliadora Lopes, Sra. Adna Santos (Mãe Baiana), Ana Ga-
briela, Bárbara Arato, Decano Carlos Moura, Sra. Carolina Nascimento, Profa.
Dra. Clara Suassuna, Dr. Carlos Madson, Prof. Dr. Cleison Ferreira, Bach. Diego
Santos, Bach. Edicleide Honório, Msc. Fernanda Góes, Msc. Gabriela Ortiz, Pro-
fa. Dra. Glória Moura, Msc. Guilhermino Rocha, Gustavo Tolentino, João Ema-
nuel, Msc. Juliana Nynes, Sr. Juvenal Araújo, Leandro Araújo, Dr. Luís Ugeda,
Prof. Dr. Luiz Felipe de Alencastro, Msc. Marjorie Chaves, Profa. Dra. Mônica
Lima, Prof. Dr. Neio Campos, Msc. Pâmela Morales, Mãe Railda de Oxum, Prof.
Dr. Rafael Sanzio dos Anjos, Profa. Dra. Regina Maniçoba, Profa. Dra. Renísia
Garcia, Richard Ceschini, Profa. Dra. Rita Dias, Prof. Msc. Rodrigo Vilela, Profa.
Dra. Valéria Carvalho, Profa. Dra. Vanda Machado.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

Participantes Inscritos no Evento


Thea Weber Garcia, Letícia Ramos Dias, Évellin Lima de Mesquita,
Adriany De Ávila Melo Sampaio, Lara Marques da Silva, Eduarda Leopol-
dina de Souza da Rocha, Lucas Bento da Silva, Lara Ferreira Nunes, Juarez
Ribeiro, Kaíc Fernando Ferreira Lopes, Raquel Almeida Mendes, Isabelle
Alline Lopes Picelli, Anderson Rodrigues Ribeiro, Márcia Carolina Silva,
Márcio Rodrigues, Jonnathan Ribeiro dos Santos, Marcela Antonieta Souza
da Silva, Adryelle Braga Arouche Medeiros, Júlia Neves da Silva, Ana Ra-
quel Soares Da Costa Assunção, Jonathan Gonçalves Dutra de Souza, Bruna
Alves Lorena da Silva, Deborah da Costa Fontenelle, Anderson Evangelista
Da Silva Rodrigues, Deborah Silva Santos, Gédéon Chabi Chadrac Mathias,
Maryella Gonçalves Sobrinho, Fernanda Lopes Machado, Rosalvo Ivarra
Ortiz, Lidiane Souza Leão, Jonnathan Ribeiro dos Santos, Julia Dalla Cos-
ta, Lorrane Ribeiro de Souza, Eduardo Gonçalves Jordão, Márcia Verssiane
Gusmão Fagundes, Ruan Italo de Araujo Guajajara, Joyce de Almeida Bor-
ges, Lilia Nogueira, Rosângela Azevedo Corrêa, Thaynara Godoi Dos Santos,
Gersiney Pablo Santos, Gédéon Chabi Chadrac Mathias, Thaíse Torres, Nai-
lah Neves Veleci, Hellen Cristine da Silva Costa, Maíra de Deus Brito, Gloria
Moura, Vânia da Costa Amaral, Bárbara Melo, Francisco Phelipe Cunha Paz,
Lara Ferreira Nunes, Geruza Santos Guimarães Carvalho, Leandro Venân-
cio Lopes, Késsia Oliveira da Silva, Flávia Mara Henriques Gomes, Suzana
dos Santos Barbosa, Denise da Costa Eleuterio, Iranilde Tavares da Câmara,
Ana Luísa Coelho, Moema Carvalho Lima, Denise Soares Oliveira, Vitória
Beatriz Santos Rodrigues, Patricia Moreira, Lícia Nunes de oliveira, Kley-
son dos Santos Silva, Felipe do Couto Torres, Gilmar Elias Rodrigues Da
Silva, Aisha Diéne, Jéssica Lawane Sousa Rodrigues, Augusto César Silva
FIlgueiras, Maysa Monteiro Camelo, Daniel Felipe dos Santos, Eduarda Mar-
ques Alves Andrade, Marcela Maranhão dos Santos, Tito Abayomi de Souza
Leitão, Marina Medeiros Ferreira, Matheus Rodrigues dos Santos, Alexandre
Teixeira Marques, Alberto Roberto Costa Ágatha Santos Camelo, Matheus
Oliveira Barbosa, Jordhanna Neris Sampaio Cavalcante, Beatriz Magalhães
Santos, Beatriz Amorim de Barros, Vinícius Yann Gomes Rocha, Vania da
Costa Amaral, Guilherme Lambais, Josinelma Ferreira Rolande Bogéa, Caro-
lina Conceição Nascimento, Aghata Ingridi de Sousa Sampaio, Paulo Eduar-
do Lannes Souza, Andrea Von Rakowitsch Siqueira Tillmann, Giovana Maria
Gonçalves Abdel Hamid, Wilson Carlos Jardim Vieira Júnior, Yuri Luciano
Santos, Rosemberg Ferracini, Rodrigo Matos de Souza, Eva Maria Lucumi,
Luis Augusto Ferreira Saraiva, Rodrigo Saouza de Freitas, Layanne Costa do
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Organizadora : Edelamare Melo

Nascimento, Gustavo Silveira Tolentino, Alexandre Bruno Barzani Santos,


Linconl Agudo Oliveira Benito, Regina Coelly, Ronaldo Amaral, Ruth Za-
mira Herrera Rincon, Ingrid Duarte Oliveira, Thales Felipe de Araújo, Thales
Felipe de Araújo, Ingrid Duarte Oliveira, Akacyara Barbosa Oliveira, Ro-
sânia do Nascimento, Ana Carolina Santos de Jesus Claro, Márcia Cristina
Pacito Fonseca Almeida, Leila Lopes, Ana Paula Gomes Matias, Isabel Thais
Eirado Martins, Laercio Bernardes Dos Reis, Ivana Medeiros Pacheco Ca-
valcante, Graziela do Lago, Flora Campos Barros, Galdeci, Isadora Harvey,
Sabrina Cristina Queiroz Silva, Jeancarlo Macgregory Pereira Mourao, Os-
valdo Araujo Pena, Joicy Keilly Ferreira da Silva, Juliana Oliveira, Henrique
Rodrigues Torres, Rita de Cassia Farias Vasconcelos, Paulo Henrique Alves
Da Fonseca, Joice Moura, Dyana Helena de Souza, Luiz Felipe Rodrigues
Carvalho, Edileuza Penha de Souza, Wallace Vieira da Silva, Lariadney Alves
da Silva, Artur Artin Artinian Depanian, Marina Bezzi, Livia Guilardi, Raul
Brochado Maravalhas, Tiago Cantalice da Silva Trindade, Jessika Larissa
Sousa Lima, Karla Roberta Bezerra da Silva, Karla Roberta Bezerra da Silva,
Larissa Ferreira de Paiva, Sabrina Costa de Sousa, Pedro Henrique Marinho
Carvalho, Lucas Bento Da Silva, Emilia Stenzel, Brunno Coene De Souza,
Davi Silva Melo, Marcella de Oliveira Moura, Ana Claudia Sacchi Baldo,
Marcelo Jungmann Pinto, Jackson Bitencourt, Maria Auxiliadora Lopes, Ed-
nólia Dias De Andrade, Marcela Burger Sotto-Maior, Alexandre Ferreira da
Silva, Flávio Terra.

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“Negro/a, Quilombola, Religioso/a de Matriz Africana:
Preconceito, Racismo, Intolerância e Discriminação nas Relações de Trabalho, Produção e Consumo.

verão, outono e inverno de 2019

Milsoul Santos

Você é corpo presente na nossa batalha


tão cheia de sede de justiça e,
na justa medida,
é detentora de uma ancestralidade maravilhosa,
inquebrantável e rica.
Seu pensamento reflete-se no mundo
feito um machado de dois gumes bem afiados que,
quando não corta de um,
corta do outro lado.
Contagiante é essa sua energia que se aplica
no certo pelo certo, como diz o ditado.
Você é bom exemplo,
pois estuda,
pesquisa,
se aprofunda,
busca e,
de corpo e alma,
empenha-se pelo melhor resultado.
Aprecio o seu jeito vento que promove,
na luta preta,
importantes movimentos,
ainda que estejamos em dias difíceis
e momentos bem delicados.
Toda a natureza lhe autorizada
e o Senhor Tempo assina embaixo.
É mágico.
Acessar o seu amor,
seu cuidado,
sua generosidade,
seu brilho,
sua beleza,
sua dignidade,
sua liderança e sua simplicidade faz de mim,
assim como todas e todos que lhe acessam,
um ser privilegiado,
pois é um bônus estar em contato com sua essência
e suas potencialidades.
Lhe agradeço do fundão do meu coração,
com todas as minhas forças e com toda a verdade.
Que bom saber que você existe,
Edelamare!

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