O Legado Da Antropologia Brasileira PDF
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Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 20, n. 42, p. 361-376, jul./dez. 2014
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832014000200014
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Desde muito novo, eu o mais velho de sete irmãos, tendo como pai um via-
jante comercial, pensava muito o que eu queria ser, qual o caminho a seguir?
Cheguei a pensar em muitas possibilidades, ser padre, piloto militar, explora-
dor na África e, finalmente, engenheiro.
Considero, que para mim, o ano de 1939 foi muito importante, porque foi
o ano em que minha mãe me matriculou em uma escola primária. Nesse ano,
na Europa, um nefando messias dava inicio à Segunda Guerra Mundial. No
meu primeiro dia de aulas, fui jogado no meio de um roseiral, por um menino
maior chamado Messias. Voltei para casa todo arranhado, disposto a renegar
para sempre qualquer tipo de messias.
Aprendi a ler com rapidez. E não esqueço que o meu segundo livro esco-
lar denominava-se Pindorama (terra das palmeiras) e todas as suas persona-
gens eram pequenos índios.
No final daquele ano, meu pai introduziu-me em um mundo maravilho-
so: a livraria Rezende. Fiquei fascinado diante tantos livros e, principalmente,
do material de papelaria: cadernos, lápis de cores, tinteiros, etc. Fiquei orgu-
lhoso quando meu pai contou para o livreiro que eu estava começando a ler.
A partir de então Alcides Rezende sempre me mostrava os livros infantis, o
que levava o meu pai a comprar um deles Tenho certeza que foi a partir de
então que desenvolvi um incansável gosto pela leitura, o que orientou o rumo
da minha vida.
Costumo brincar que nasci sob o signo de Marte. De fato, nasci prematu-
ro de dois meses, porque minha mãe teve o meu parto precipitado, assustada
que foi com os tiros de canhões do 8º Regimento de Artilharia Montada, defen-
dendo a minha cidade de um ataque das forças paulistas, durante a Revolução
de 1932. Além disto, desde que o Brasil entrou na Guerra, em 1942, eu fi-
cava junto com meu pai ouvindo as noticias através de um barulhento rádio
Telefunken.
Nessa época, a prefeitura da cidade construiu um cercado em um canto
da praça principal da cidade. Destinava-se a recolher “ferro velho para o bem
do Brasil”. Isso fazia parte de um esforço de um país em guerra, desprovido de
uma indústria siderúrgica capaz de atender as suas demandas, tanto civis como
militares. Em todo o canto do país foram realizadas iniciativas como essa.
Não é preciso dizer que, como neto de italianos, eu tinha que demonstrar a
minha lealdade com o meu país. Assim, munido de um carrinho de duas rodas
percorri todos os terrenos vazios da cidade. Vasculhei até mesmo o depósito
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de entulhos que a minha avó calabresa guardava. Fiz várias viagens até o
centro de recolhimento de sucatas. Esse fato chamou a atenção de um capitão
médico do exército, que mantinha um programa patriótico na PRJ7 – Rádio
Clube de Pouso Alegre. Foi assim que ouvi – pela primeira vez – o meu nome
na mídia. De fato, eu não perdia uma oportunidade de deixar bem claro que,
apesar de minha ascendência, o meu país era o Brasil. Frequentemente, pla-
giando o título de uma reportagem publicada na revista americana Seleções,
repetia para mim mesmo “só o meu sangue é italiano”.
Quando fiz 15 anos, meu pai presenteou-me com um livro do Visconde
de Taunay. Demonstrei tanto entusiasmo com a leitura do mesmo que, nos dois
anos seguintes, já possuía mais de 20 livros do mesmo autor. Todos esses li-
vros faziam parte de um encalhe em uma livraria na cidade de Ipameri, Goiás,
cidade esta que fazia parte do itinerário comercial de meu pai. Eram livros
editados, na década de 1920, pela Companhia Melhoramentos. Finalmente, eu
tinha encontrado o meu autor. Admirava a sua imensa capacidade de descre-
ver a natureza e os homens do interior longínquo de nosso país. Acompanhei
as suas aventurosas viagens e principalmente sua participação na Guerra do
Paraguai. Li e reli muitas vezes a Retirada da Laguna (Taunay, 1874). Anos
depois eu encontrei as suas Memórias (Taunay, 1948), publicadas 50 anos
depois de sua morte. Alfredo d’Escragnolle Taunay, filho e neto de franceses,
não cansou de demonstrar o amor que sentia pelo seu país e a sua crença em
um grande futuro.
No começo de 1950, parti em um fumacento trem da Rede Mineira de
Viação para São Paulo. Doze horas depois cheguei a Estação da Luz. O meu
objetivo era completar o segundo grau, além de conseguir o meu primeiro
emprego.
No raiar dos anos 1950, procurar um emprego em São Paulo não era
uma tarefa difícil como agora. Alguém sugeriu que eu me dirigisse, de manhã
bem cedo, para a frente da redação do Diário Popular, que possuía inúme-
ras páginas de ofertas de trabalho. Assim fazendo eu já estaria em vantagem
sobre aqueles que aguardavam o jornal nas bancas distribuídas pela cida-
de. Enquanto aguardava a saída do mesmo, um jovem caminhou em minha
direção e perguntou se eu procurava um emprego. Disse que representava
o Laboratório Novoterápica, uma empresa produtora de medicamentos, cujos
escritórios estavam situados na rua 25 de Janeiro, uma travessa da avenida
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convocado para fazer outros tipos de reportagem. Como ter que escrever so-
bre o precário sistema de transporte da cidade; sobre o alto custo de vida;
mas também participar de um almoço promocional com uma platinada rum-
beira cubana, Ninon Sevilha, no restaurante Fasano, ainda na rua Vieira de
Carvalho. Ou ainda, nada melhor para um repórter de 21 anos, almoçar no
Estúdio da Vera Cruz com uma bela estrela que ainda não tinha chegado aos
30 anos, Tônia Carrero!
Em janeiro de 2013, o Brasil todo – e o Rio Grande do Sul – em particu-
lar – foi abalado pela tragédia de Santa Maria. A imprensa toda relembrou o
terrível incêndio ocorrido, em 1962, em um circo em Niterói. Ninguém, po-
rem, lembrou que na noite de 29 de julho de 1953, na rua Florêncio de Abreu,
em São Paulo, ocorreu em um clube de dança um incêndio que matou 53
pessoas. Eu fiz a cobertura desse acidente. Lembro que na época, os jornais se
referiram a um fato semelhante, ocorrido uma década antes em um cinema no
Brás, o Cine Oberdan, que matou muitas crianças. Refleti, então, como pode
ser curta a memória coletiva e que se torna menor ainda quando comparada
com a dimensão da negligência e da incompetência de nossas autoridades
quando se refere às questões de segurança.
Três anos depois, com uma sensação de ter perdido o tempo, resolvi res-
suscitar o projeto de estudar engenharia. Era muito difícil deixar o jornal.
Cheguei à conclusão que para isso o melhor seria sair de São Paulo, vol-
tar para a minha Minas Gerais, mudar para Belo Horizonte. Resolvi que o
melhor modo de fazer isso, desde que necessitava de um emprego, era fazer
um concurso público para o IAPI – Instituto de Aposentadoria e Pensões dos
Industriários – e pedir a transferência para lá.
Fazer um concurso público naquela época não era nada comparável com
os de hoje. O que fiz tinha cerca de 60 vagas para mais ou menos 300 candi-
datos. Fiz sem nenhuma preparação e fiquei entre os 30 primeiros aprovados.
Assim, em junho de 1954 entrei definitivamente no serviço público federal.
Somente no final de 1955 consegui minha transferência – por permuta – para
Belo Horizonte.
Resumindo esta introdução que já foi longe demais: em Belo Horizonte,
descobri o óbvio, que a engenharia não era o meu caminho, ruim demais que
sou em matemática, e por isso ingressei no curso de História da Faculdade
de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais. Esse curso funciona-
va, então, do 19º ao 23º andar do edifício Acaiaca. Os alunos de engenharia
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trilhar o caminho da Faculdade de Direito.” (No final dos anos 1950 o re-
ferido professor passou a ministrar as aulas de Antropologia Biológica e
Antropologia Cultural.)
No meu caso – ao contrário de Marco Antônio Coelho – comecei a ga-
rimpar por debaixo das aulas mal dadas, buscando respostas para as minhas
inquietações. Frequentava a pequena biblioteca da faculdade em busca de li-
vros de antropologia. O primeiro que encontrei foi O homem, de Ralph Linton
(1943), talvez o primeiro manual traduzido para o Brasil. Descobri logo que
Casa-grande e senzala (Freyre, 1933) não era apenas um texto sociológico, e
foi, em seu prefácio, que pela primeira vez ouvi falar de Franz Boas.
Em 23 de fevereiro de 1960, parti para o Rio de Janeiro em um voo mui-
to tumultuado. O avião demorou muito para aterrissar, além de atravessar a
cada momento zonas de turbulências. Naquele dia, próximo ao Pão de Açúcar,
um avião de passageiro se chocou com uma aeronave militar americana que
transportava a Banda do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos, que
fazia parte da comitiva do presidente Eisenhower, em visita ao Brasil. Foi,
portanto, em um clima de tragédia que desembarquei no Rio para tentar um
passo decisivo em minha vida.
No dia seguinte, pela primeira vez, entrei no edifício do Museu Nacional,
na Quinta da Boa Vista. Caminhei por estreitos corredores, ladeados de ve-
lhas vitrines repletas de ossos humanos e de estranhos aparelhos de antropo-
metria. Encontrei-me com os outros candidatos, não eram muitos. Um deles
se aproximou: “Lembra-se de mim?” No ano anterior, eu o tinha visto no
Primeiro Encontro Nacional de Estudantes de História, realizado na Faculdade
Nacional de Filosofia. Eu fazia parte da delegação mineira, ele representava a
Faculdade de Filosofia de Niterói. Soube, então, o seu nome: Roberto Augusto
da Matta. Foi esse o momento inicial de uma duradora amizade.
Pouco tempo depois, fui entrevistado pelo coordenador do curso: Roberto
Cardoso de Oliveira. Lembro-me do jovem e sisudo professor de apenas 31
anos de idade, sem as barbas que adotaria na década seguinte, trajando o seu
jaleco branco, como era o uniforme dos pesquisadores do Museu Nacional,
então denominados naturalistas.
Os seis alunos que constituíram a primeira turma do curso de
Especialização em Antropologia Social foram; Alcida Rita Ramos, Edson
Soares Diniz, Hortência Caminha, Onidia Bevenutti, Roberto Augusto da
Matta e Roque de Barros Laraia.
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Referências
COELHO, M. A. T. Herança de um sonho: as memórias de um comunista. Rio
de Janeiro: Record, 2000.
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