Conservadorismo e Laicidade de Estado
Conservadorismo e Laicidade de Estado
Conservadorismo e Laicidade de Estado
SOCIAL
Conservatism and laity of state: subsidies for the debate in the social work
RESUMO
O presente artigo apresenta a relação entre conservadorismo, laicidade do Estado e do exercício profissional, a
partir de revisão bibliográfica e análise documental, apontando os desafios postos ao Projeto Ético-Político no
enfrentamento deste debate e na luta contra o conservadorismo na atualidade. Considera-se que o componente
ético-político trabalhado na perspectiva de resgatar a laicidade de Estado e do exercício profissional, compreende
um grande facilitador no processo de contraposição ao conservadorismo e à lógica burguesa de dominação.
Demonstra-se, portanto, a necessidade de aprofundamento deste debate no interior do Serviço Social como
coerência ética com o Projeto Ético-Político, assumindo a perspectiva da defesa da liberdade e dos direitos
humanos em sua radicalidade.
PALAVRAS-CHAVES
Conservadorismo. Laicidade do Estado. Religião. Serviço Social. Ética Profissional.
ABSTRACT
This article presents the relationship between conservatism, laity of state and laity of professional practice, based
on a bibliographical review and documentary analysis, pointing out the challenges posed to the Ethical-Political
Project in facing this debate and in the struggle against conservatism today. It is considered that the ethical-
political component worked with the perspective of rescuing the laity of State and the professional exercise,
comprises a great facilitator in the process of contraposition to conservatism and the bourgeois logic of
domination. It demonstrates, therefore, the need to deepen this debate within the Social Work as ethical
coherence with the Ethical-Political Project, assuming the perspective of the defense of freedom and human
rights in its radicality.
KEYWORDS
Conservatism. Laity of State. Religion. Social Work. Professional Ethics.
Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Docente do Curso de
Serviço Social e do Programa de Pós Graduação em Serviço Social e Política Social da Universidade Federal de São
Paulo (UNIFESP, São Paulo, Brasil). ORC ID: <https://orcid.org/0000-0002-3524-7623>. E-mail:
<[email protected]>.
Assistente Social. Mestre em Serviço Social. Assistente social na Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Conselheiro Estadual do Conselho Regional de Serviço Social de São Paulo (CRESS/SP) gestão 2017-2020. ORC ID:
<https://orcid.org/0000-0002-3704-2891>.E-mail: <[email protected]>.
DOI 10.22422/temporalis.2018v18n36p45-64
45
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 36, p. 45-64, jul./dez. 2018. ISSN 2238-1856
CARDOSO, PRISCILA FERNANDA GONÇALVES; ALVES, LUCIANO
INTRODUÇÃO
O presente artigo nasce do encontro dos dois autores, em 2016, em palestra para Semana do
Serviço Social da Universidade Federal de São Paulo. Ao apresentarem suas discussões sobre
conservadorismo e a laicidade do Estado/exercício profissional, abre-se a possibilidade de um
frutífero debate no qual se percebe a complementaridade das perspectivas e abordagens.
Surge ali, o desejo de produzir um material conjuntamente.
Dois anos depois, diante do tema apresentado por esta revista, tendo os dois aprofundado
seus debates acerca da temática, realiza-se o desejo materializando-o neste artigo como fruto
de pesquisa teórica, a partir de revisão bibliográfica e o diálogo com a legislação profissional.
46
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 36, p. 45-64, jul./dez. 2018. ISSN 2238-1856
CONSERVADORISMO E LAICIDADE DE ESTADO
Nesse sentido, retomamos aqui alguns elementos centrais dos fundamentos deste
pensamento em sua raiz, a partir de sua elaboração expressa na obra de Edmund Burke1
(século XVIII), considerado fundador do conservadorismo moderno.
O pensamento conservador é uma postura política e ética que se desenvolve como reação
crítica à revolução francesa e industrial, aos defensores da igualdade e liberdade, bem como
aos movimentos socialistas/organização dos trabalhadores. Um pensamento, portanto, de
crítica à modernidade, à constituição da sociedade burguesa e à perspectiva emancipatória,
defendendo valores presentes no período pré-revoluções.
A afirmação destes valores tem como base a defesa da tradição, entendendo que todo
conhecimento provém da experiência, e que qualquer perspectiva de mudança desconsidera
os acúmulos de tal experiência. Neste sentido, ao mesmo tempo, apresenta-se como uma
crítica à razão moderna e às perspectivas revolucionárias. Nas palavras de Burke, “[...]
geralmente um espírito de inovação é o resultado de um temperamento egoísta e de
concepções estreitas” (BURKE, 2001, p. 33).
1
Situam-se como importantes referências deste pensamento em sua origem, além de Edmund Burke
(Inglaterra), Joseph de Maistre, Bonald e Lamennais (França).
47
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 36, p. 45-64, jul./dez. 2018. ISSN 2238-1856
CARDOSO, PRISCILA FERNANDA GONÇALVES; ALVES, LUCIANO
das leis divinas, uma vez que tanto o Estado quanto a sociedade, como parte da natureza,
devem seguir as ordens do Universo enquanto criações divinas que são.
Como pilares da defesa destes valores e da tradição, estão outros três elementos
estruturantes da sociedade: a propriedade privada, a família e a Igreja, as duas últimas vistas
como corporações naturais responsáveis pela manutenção da ordem, da hierarquia e da
reprodução dos valores e regras sociais. A família tem ainda, o papel fundamental de
manutenção da propriedade privada nos processos de herança, garantindo a continuidade da
desigualdade (compreendida como natural e fundamental) entre grupos e classes sociais.
Segundo Burke, Deus criou um Universo ordenado, governado por leis eternas. Os
homens são parte da natureza e estão sujeitos às suas leis. Estas leis eternas criam
suas convenções e o imperativo de respeitá-las; regulam a dominação do homem pelo
homem e controlam os direitos e obrigações dos governantes e governados. Os
homens, por sua vez, dependem uns dos outros e sua ação criativa e produtiva se
desenvolve através da cooperação. Esta requer a definição de regras e confiança
mútua, o que é desenvolvido pelos homens, com o passar do tempo, através da
interação, da acomodação mútua e da adaptação ao meio em que vivem (KINZO, 2001,
p. 20).
A partir deste breve resgate acerca dos elementos centrais que constituem o pensamento
conservador em sua gênese, podemos afirmar que o mesmo atravessou séculos. Embora
tenhamos avançado na conquista dos direitos humanos e de níveis civilizatórios pautados na
defesa de valores emancipatórios, a existência do pensamento conservador esteve sempre
pressionando e ganhando diferentes formas em nossas sociedades. Engana-se quem o supôs
acabado! Podemos falar em momentos de avanços e retrocessos e, explicitamente, vivemos
mundialmente um dos momentos de avanço das ideias conservadoras.
48
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 36, p. 45-64, jul./dez. 2018. ISSN 2238-1856
CONSERVADORISMO E LAICIDADE DE ESTADO
A crise mundial de 2008 tem na extrema-direita respostas com adesão de grande parte da
população em todo o mundo, retomando o pensamento conservador em sua radicalidade. Na
Europa, as eleições na última década explicitam o avanço da extrema-direita como não se via
desde os anos de 1930 (LÖWY, 2015), o mesmo ocorre nos EUA com a eleição de Trump. Na
América Latina explicita-se a polarização dos projetos emancipatórios (em suas diferenças na
esquerda) e do conservadorismo (enraizado na direita e ecoando no discurso de ódio e fobias
na extrema-direita).
São tempos desafiadores para pensarmos a profissão e a defesa dos valores expressos na
construção de uma ética emancipatória que vimos realizando nas últimas quatro décadas
enquanto categoria profissional. Nesse sentido, acreditamos que é imperativo discutirmos um
aspecto presente centralmente no pensamento conservador: a relação do Estado e suas
instituições com a religião, e, consequentemente, a questão da influência dos valores
2
Sobre o enovelamento da discussão de classe, gênero e raça/etnia ver Cisne e Santos (2018).
3
Uma análise dos eventos deste momento no Brasil pode ser encontrada em Maricato [et al.] (2013).
49
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 36, p. 45-64, jul./dez. 2018. ISSN 2238-1856
CARDOSO, PRISCILA FERNANDA GONÇALVES; ALVES, LUCIANO
É imperativo, construirmos como categoria, a defesa da laicidade do Estado (o que inclui nossa
atuação em suas instituições, no planejamento e execução das políticas sociais), como uma
das formas de enfrentamento do conservadorismo na atualidade.
Ao reiterarmos que são tempos radicalmente desafiadores, afirmamos também que é preciso
defender o óbvio para afirmar nosso Projeto Ético-Político de profissão. Assim, não é tempo
de recuo e sim de ousadia, e a oferta desta reflexão pela racionalização da polêmica que
entorna a questão da laicidade de Estado inclui falar, também, sobre religião entre assistentes
sociais, pois do ponto de vista histórico-concreto, ainda estamos em processo de
secularização, de desconstrução de aspectos culturais e de senso comum que ainda nos
vincula com o imaginário religioso (TONET, 2016, p. 66-69).
O debate da laicidade de Estado, até o final do século 20, repousava apenas no âmbito da
educação, em face da não-obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas públicas, e dos
símbolos religiosos em repartições públicas. Hoje, porém, os desafios trazidos pela atual
ofensiva conservadora expõem desdobramentos para as políticas públicas e para o Serviço
Social que não mais nos permitem a secundarizar a laicidade, dado ela ser um dos pilares da
concepção moderna de República4, conquistado e aprimorado principalmente no contexto
entre as revoluções francesa e industrial.
4
Uma análise historiográfica minuciosa do processo de secularização da França, como principal referência de
construção de um modelo laico de estado-república, pode ser conhecida em ZUBER (2010).
50
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 36, p. 45-64, jul./dez. 2018. ISSN 2238-1856
CONSERVADORISMO E LAICIDADE DE ESTADO
Um Estado comprometido com a laicidade deveria garantir à sociedade e aos seus indivíduos
estas três dimensões de maneira integral, horizontal e interdependente. Entretanto, as razões
de fundamento histórico trazidos na primeira parte deste artigo nos permitem afirmar quehá
uma capitulação burguesa da laicidade de Estado, distorcendo essas dimensões em função da
necessidade de se instrumentalizar o princípio da laicidade para seus propósitos de dominação
de classe. Essa distorção, no geral, traz o entendimento equivocado de que a laicidade do
Estado seria tão somente a ampliação e aprofundamento da Liberdade Religiosa, posicionando
a Liberdade de Consciência e a Separação entre Estado e Religião como subsidiárias da
mesma6.
Assim, se torna importante diferenciar os quatro tipos de Estado7 em face da laicidade, que
temos como exemplos atuais de organização:
● Estado Teocrático: Desprovido de laicidade e governado pelo monarca ou chefe-
supremo da religião oficial. Ex: Arábia Saudita, Irã e Vaticano;
● Estado Confessional (duas vertentes): Uma vertente seria o Estado governado por
civil ou monarquia parlamentar, mas sem separação entre Estado e religião, sendo
que a moral religiosa é compreendida, inclusive de forma legal, com restrições à
secularização. Ex: Israel, Líbano, Paquistão, Afeganistão, Iraque, Camboja,
Tailândia, Myanmar, Malásia e boa parte de países africanos de cultura árabe. Na
outra vertente, o país é governado por civil, porém, com religião oficial como
protoforma histórica e com variada e relativa influência nas leis, a depender do
processo de secularização. Ex: Países nórdicos, Argentina, Grã-Bretanha, Grécia;
● Estado Ateu: Estado não reconhece (ou somente reconhece parcialmente) a
liberdade religiosa no âmbito público, mas relativiza sua prática no âmbito
doméstico. Ex: China, Coréia do Norte, Vietnã, Laos;
● Estado Laico: Compreende a maioria dos países no mundo. Combina separação
entre Estado e Religião com liberdade religiosa e de consciência, configurando
5
Uma exposição sobre a conformação histórica no Direito internacional pode ser conferida em CABRAL (2009).
6
Lacerda (2009) explana sobre essas diferenças, apontando pistas de construção crítica sobre a laicidade
vigente no Brasil.
7
Ranquetat Jr (2009) apresenta diferenciação de conceitos de laicidade, secularização e laicismo, contribuindo
para a compreensão inicial sobre a conformação de alguns países, em face da laicidade de Estado.
51
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 36, p. 45-64, jul./dez. 2018. ISSN 2238-1856
CARDOSO, PRISCILA FERNANDA GONÇALVES; ALVES, LUCIANO
diversos formatos congruentes com a relação histórico-concreta que cada país tem
com as religiões. Exemplos de países onde a laicidade é mais íntegra são: França,
Cuba, Uruguai, Japão. Exemplos de países onde a laicidade é mais frágil são: Brasil,
Estados Unidos, Espanha, Alemanha, Holanda, Bélgica, Itália, Rússia, Índia e boa
parte dos países da América Latina e Central;
Ao analisar o exemplo brasileiro constatamos que, como em vários países, não tivemos um
processo revolucionário concreto que anunciasse a laicidade como pressuposto de ruptura
com o feudalismo e com o autoritarismo imperial de cunho eclesiástico, impossibilitando que
a sociabilidade brasileira se desenvolvesse a partir de uma sobreposição radical da ordem
burguesa à ordem eclesiástica. Esta opção resignificou culturalmente o fracasso político do
Império em gerir os anseios burgueses que emanaram das revoluções, diante da necessidade
de se fundar uma república capaz de perpetuar, ao máximo possível, as bases de exploração
do trabalho e da moralidade pública.
Nesta seara, nos parece que a liberdade religiosa no Brasil, no contexto da República, é
capitulada pela burguesia como liberdade da maioria religiosa, isto é, da maioria cristã (católica
e evangélica), no caso, podendo certamente influenciar a sociabilidade brasileira mediante
seus pressupostos morais de controle da família, do trabalho, da política, das políticas sociais,
da arte e da consciência. Portanto, quando se discute laicidade no contexto brasileiro, essa
premissa se faz presente, depreciando a importância da sua compreensão com base na sua
totalidade. Para o que interessa ao debate, neste momento, podemos trazer um breve recorte
de como a laicidade é contextualizada historicamente na constituição do Estado brasileiro, a
partir do próprio instrumento legal da Constituição Federal e outros instrumentos jurídicos.
O documento de 1891 (República Velha) separa legalmente o Estado do Clero, mas reconhece
a Santa Sé (futuro Estado do Vaticano) como instância diplomática; prevê a manifestação
pública de crenças e a associação para isso. No entanto, uma reforma é feita em 1926,
retrocedendo para o controle baseado na “moral pública”.
No documento que conforma o Estado Novo (Era Vargas), em 19348, é mantida a separação
Estado/Clero, mas com abertura para a colaboração “em prol do interesse coletivo”. Surge no
texto a concepção de liberdade de consciência, mas vinculada ao respeito à “ordem pública e
aos bons costumes”, assim como o casamento indissolúvel e a concepção de família
heteronormativa.
8
Nesta época também se dá a reação católica contra a secularização no Brasil, as bases legais e políticas para
racionalização da Assistência Social e a gênese do Serviço Social (CARVALHO; IAMAMOTO, 2008, p. 125-164).
52
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 36, p. 45-64, jul./dez. 2018. ISSN 2238-1856
CONSERVADORISMO E LAICIDADE DE ESTADO
Ainda na Era Vargas, uma específica alteração em 1937, capitula 1934 com o preâmbulo:
“Atendendo ao Estado de apreensão criado no País pela infiltração comunista, que se torna
dia a dia mais extensa e mais profunda, exigindo remédios, de caráter radical e permanente”
(BRASIL, 1937). Adiciona-se a esta leitura política fundamentalista e razoavelmente pautada
no fascismo, a previsão do ensino religioso eletivo na escola pública, sendo suprimida a
concepção de liberdade de consciência, em face do enfoque na liberdade religiosa. Tais
premissas foram aperfeiçoadas em 19469, ampliando as isenções fiscais às instituições
religiosas.
Posterior a última Constituinte, tivemos no Governo FHC (1994 a 2002) a suplantação da Legião
Brasileira de Assistência (LBA) pelo Programa Comunidade Solidária, fomentando e
legalizando a terceirização das políticas públicas na direção de entidades religiosas14.
9
Estabelecimento do primeiro Código de Ética de Assistentes Sociais de 1947, tendo a fé cristã como fundamento
ético, ou seja, uma profissão não laica, assegurada por um Estado Laico (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
ASSISTENTES SOCIAIS, 1947). Isto significou o fomento de uma profissão para enfrentar a laicidade de Estado,
conforme os interesses conservadores e do capital.
10
Nestes termos, compreende-se que o processo vivenciado no Brasil circunscrito ao período de 1964 a 1984 não
foi apenas uma ditadura militar, mas sobretudo, uma ditadura da burguesia. Sobre este conceito, ver Florestan
Fernandes (2005).
11
Editado o Código de ética profissional de 1965, combinando neotomismo com a tríade autoritária e tecnicista de
Caso/Grupo/Comunidade (CONSELHO FEDERAL DE ASSISTENTES SOCIAIS, 1975);
12
Estabelecido o Código de ética de 1975, reforçando a defesa da família, do equilíbrio e da integração social
(CONSELHO FEDERAL DE ASSISTENTES SOCIAIS, 1975).
13
Editado o Código de Ética de 1986, como o primeiro código que questiona o autoritarismo de Estado e lança
bases para o exercício profissional que se abstém de controlar a família por razões morais públicas, tendo a
democracia e a cidadania como pressupostos principais (CONSELHO FEDERAL DE ASSISTENTES SOCIAIS, 1986).
14
Maria Ozanira da Silva e Silva (2001) apresenta análise crítica do Programa Comunidade Solidária.
15
Uma análise geral das polêmicas em torno do PNDH 3 pode ser conferida em Adorno (2010).
53
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 36, p. 45-64, jul./dez. 2018. ISSN 2238-1856
CARDOSO, PRISCILA FERNANDA GONÇALVES; ALVES, LUCIANO
Brasil-Vaticano (BRASIL, 2010), que reiterou e ampliou as garantias para a Igreja Católica
dentro do Estado brasileiro.
O Governo Dilma (2010-2016) além de não retomar o PNDH 3 original, deu sequência ao recuo
das gestões anteriores, vetando a introdução de conteúdo que aborda a diversidade sexual na
educação, bem como recuou na defesa do aprimoramento da legalização do aborto e
estabeleceu ampliação das concessões de rádio e TV para interesses religiosos. Também na
área da saúde, assistimos o desenvolvimento do Programa Crack: é possível vencer, sob o
fomento às Comunidades Terapêuticas, ampliando a depreciação da saúde mental pela via do
financiamento de ações religiosas.
O último episódio, que apresenta mais uma derrota à laicidade brasileira se deu em julgamento
da ADI 4439 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 27 de setembro de 2017, oportunidade
em que, por seis votos a cinco (sendo o último voto o de minerva da então presidente da corte,
a Ministra Cármen Lúcia), autoriza no Brasil, o ensino religioso confessional nas escolas
públicas, de modo que poderá ser professado por representantes das próprias instituições
religiosas (sem interferência do Estado) e não mais constar apenas como ensino da história
das religiões, sob abordagem laica, ainda que respeitada a faculdade de escolha dos/as
estudantes. Tal sentença17 avaliza peremptoriamente o acordo realizado entre Brasil e
Vaticano, pelo Governo Lula, conforme mencionamos acima.
Em suma, podemos perceber que o Estado brasileiro parece controlar a laicidade com rédeas,
conforme as exigências políticas burguesas de cada tempo histórico, promovendo reprodução
ideológica, aprovando leis e direcionamentos de políticas sociais em consonância com a
religiosidade cristã, reafirmando uma sociabilidade constituída por preconceitos e
estigmatizações com base na fé.
16
A bancada parlamentar fundamentalista se constitui de forma mais orgânica ao final do Governo Lula, em 2010,
em reação ao Acordo Brasil-Vaticano, se valendo da proposta de Estatuto da Liberdade Religiosa (PL 1219/2015)
e de outros projetos de lei contrários à afirmação e aprofundamento da laicidade de Estado. Os projetos de Lei
expressam, ao mesmo tempo, a reprodução e radicalização da captura da laicidade pelo capital e pela moralidade
religiosa, bem como as expressões que visualizamos nas políticas públicas, no cotidiano de assistentes sociais.
Podemos verificar isso nas proposituras e Aumento doPoder perante STF (PEC 99/2011); Estatuto da Família (PL
6583/13); Estatuto do Nascituro (PL 478/2007); Abertura para violência com base no fundamentalismo (PL
6314/2005) e outros semelhantes.
17
Uma abordagem do Direito, crítica ao ocorrido pode ser conferida em Iotti (2017).
54
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 36, p. 45-64, jul./dez. 2018. ISSN 2238-1856
CONSERVADORISMO E LAICIDADE DE ESTADO
A trajetória do Serviço Social no Brasil é atravessada por sua estreita relação com o
conservadorismo. Sua gênese se dá no contexto de aprofundamento da questão social com a
necessidade de um profissional demandado pelo Estado a apaziguar os conflitos provenientes
da relação Capital/Trabalho. A Igreja Católica assume a formação deste profissional, criando as
primeiras faculdades de Serviço Social no Brasil. Assim, em sua origem, o conteúdo de
formação dos/as assistentes sociais tem por fundamento o pensamento social da Igreja
Católica com ênfase na perspectiva neotomista.
A década de 1980 marca a inflexão do Serviço Social para a defesa de valores emancipatórios.
Em termos da ética profissional, o rompimento com o conservadorismo se expressará a partir
do Código de 1986, demarcando o compromisso da profissão com a classe trabalhadora.
Amplia seu compromisso com uma perspectiva emancipatória no Código de 1993, no qual,
Elege valores emancipatórios como liberdade, plena expansão dos indivíduos sociais,
democracia, cidadania e equidade social, orientando a ação profissional à luta pela
emancipação política e humana, em uma abordagem livre de preconceitos e juízos de
valor, defendendo os direitos humanos contra toda e qualquer forma de
discriminação e opressão, bem como na defesa dos direitos sociais. Para tanto,
explicita ainda, o necessário compromisso profissional com a competência e o
aprimoramento, e, ainda, com o usuário no jogo de correlação de forças institucionais
(CARDOSO, 2013, p. 226).
18
Um modo de ser profissional que constitui a construção de uma determinada ética profissional direcionando o
comportamento dos/as assistentes sociais.
19
Uma análise mais aprofundada sobre todos os Códigos de Ética pode ser vista em Barroco (2001) e Cardoso
(2013). No item anterior apresentamos alguns elementos que exemplificam a perspectiva ética e política expressa
em cada um deles.
20
Ano em que se apresenta o primeiro documento oficial que expressará o rompimento com o conservadorismo
na profissão: o Currículo Mínimo de 1982.
55
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 36, p. 45-64, jul./dez. 2018. ISSN 2238-1856
CARDOSO, PRISCILA FERNANDA GONÇALVES; ALVES, LUCIANO
56
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 36, p. 45-64, jul./dez. 2018. ISSN 2238-1856
CONSERVADORISMO E LAICIDADE DE ESTADO
Embora não haja no atual Código de Ética21 (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2011)
dispositivo disciplinando o vínculo expresso com a devida laicidade profissional, esta tem sua
garantia alicerçada nas disposições sobre a relação com os/as usuários/as do Serviço Social,
bem como com as instituições empregadoras e com as entidades da categoria e da sociedade
civil.
[...] Art. 5º São deveres do/a assistente social nas suas relações com os/as
usuários/as:
[...]
b- garantir a plena informação e discussão sobre as possibilidades e consequências
das situações apresentadas, respeitando democraticamente as decisões dos/as
usuários/as, mesmo que sejam contrárias aos valores e às crenças individuais dos/as
profissionais, resguardados os princípios deste Código;
[...]
Art. 8º São deveres do/a assistente social:
[...]
b- denunciar falhas nos regulamentos, normas e programas da instituição em que
trabalha, quando os mesmos estiverem ferindo os princípios e diretrizes deste Código,
mobilizando, inclusive, o Conselho Regional, caso se faça necessário;
[...]
Art. 13 São deveres do/a assistente social:
a- denunciar ao Conselho Regional as instituições públicas ou privadas, onde as
condições de trabalho não sejam dignas ou possam prejudicar os/as usuários/as ou
profissionais;
b- denunciar, no exercício da Profissão, às entidades de organização da categoria, às
autoridades e aos órgãos competentes, casos de violação da Lei e dos Direitos
Humanos, quanto a: corrupção, maus tratos, torturas, ausência de condições mínimas
de sobrevivência, discriminação, preconceito, abuso de autoridade individual e
institucional, qualquer forma de agressão ou falta de respeito à integridade física,
social e mental do/a cidadão/cidadã (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2011,
grifos nossos).
Coerentemente com a posição assumida em nosso Código de Ética, no que tange ao Conjunto
CFESS/CRESS22, observamos um crescente e firme posicionamento na garantia da laicidade de
21
O livro Código de Ético do/a Assistente Social: Comentado (Barroco; Terra, 2012) traz adequada interpretação
jurídico-política de cada dispositivo do documento, em face aos desdobramentos para esta discussão.
22
Conselho Federal de Serviço Social (CFESS); Conselho Regional de Serviço Social (CRESS).
57
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 36, p. 45-64, jul./dez. 2018. ISSN 2238-1856
CARDOSO, PRISCILA FERNANDA GONÇALVES; ALVES, LUCIANO
Nesta esteira, cumprindo a deliberação nacional, o Conselho Federal de Serviço Social (2015)
se posiciona em âmbito nacional, problematizando e denunciando as ameaças conservadoras
pelas quais passa a profissão e a sociedade brasileira, no que se refere a garantia plena da
laicidade de Estado, o qual
[...] não pode tomar como referência para legislar sobre a vida dos indivíduos sociais
concepções, convicções e valores fundados em dogmas religiosos. O ordenamento
jurídico da vida social, os princípios, diretrizes e objetivos das políticas sociais (saúde,
educação, assistência social, etc.), devem coadunar com a afirmação de liberdades
individuais, como a de manifestação religiosa, política, de orientação sexual e de
identidade de gênero. Assim como, o fortalecimento do Estado Democrático de
Direitos supõe reconhecer que a intervenção estatal está limitada a interesses de
caráter público e deve expressar o seu distanciamento e indiferença a convicções de
bases confessionais (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL, 2015).
Por sua vez, podemos ler em documento do CRESS/SP (2016), a crescente adesão de
profissionais ao trabalho voluntário (não-remunerado), em geral, legitimando intenções
23
A Resolução CFESS nº 627/2012 veda a utilização de símbolos, imagens e escritos religiosos nas dependências do
Conselho Federal, dos Regionais e das Seccionais de Serviço Social (CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL,
2012). Já a experiência do Conselho Regional de Serviço Social da 9ª Região/SP, sob a Instrução Normativa
CRESS/SP nº 01/2015, dispõe Observação da laicidade de estado na escolha de locais para realização de reuniões,
eventos e demais atividades do Conselho (CONSELHO REGIONAL DE SERVIÇO SOCIAL DE SÃO PAULO, 2015).
24
Tal fato nos faz refletir o quanto este é um árduo debate, repleto de resistências e tensionamentos para o
conjunto da categoria, mas também nos demonstra que conseguimos avançar no enfrentamento a estes
tensionamentos.
58
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 36, p. 45-64, jul./dez. 2018. ISSN 2238-1856
CONSERVADORISMO E LAICIDADE DE ESTADO
Percebemos, portanto, o grande desafio ético que temos. Entendemos que uma das formas
de enfrentamento ao conservadorismo na profissão é o aprofundamento da discussão da
laicidade do exercício profissional e a defesa da laicidade do Estado (responsável pela
elaboração e execução das políticas sociais com as quais trabalhamos). Destarte, podemos
afirmar que se faz imperativo travarmos este debate no âmbito da formação profissional (na
graduação e nos processos continuados de formação) e nos espaços políticos de
representação da categoria.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como pudemos ver no decorrer deste artigo, o conservadorismo moderno desde sua gênese,
defende a unidade entre Estado e religião, compreendendo o Estado como um legado divino
que, portanto, deve seguir as leis de Deus. Estas leis fundamentam-se numa perspectiva a-
histórica e imutável de compreensão do homem/mulher e da sociedade, com base na defesa
da tradição, da ordem, da harmonia, da propriedade privada e das desigualdades sociais.
Neste sentido, o Estado brasileiro, embora assuma sua laicidade na Constituição Federal, não
a realiza de fato. A religião cristã está representada politicamente em nosso Congresso,
legislando sobre a vida dos/as brasileiros/as. Diferentes legislações e políticas sociais são
votadas, aprovadas (ou negadas) e elaboradas, tendo por fundamento os valores religiosos.
As instituições públicas carregam representações cristãs. Os profissionais (das diferentes
áreas) que atuam nestas instituições têm discursos que remontam os valores de sua fé. Dentre
tais profissionais, situam-se os/as assistentes sociais.
59
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 36, p. 45-64, jul./dez. 2018. ISSN 2238-1856
CARDOSO, PRISCILA FERNANDA GONÇALVES; ALVES, LUCIANO
ética conservadora a uma ética emancipatória. E, nesta perspectiva, temos nos posicionado
na defesa da laicidade do Estado e do exercício profissional. Tal defesa está expressa em nosso
atual Código de Ética e nas resoluções do conjunto CFESS/CRESSa partir de 2007, ganhando
materialidade em documento próprio sobre esta discussão em 2015. Acreditamos, no entanto,
que é imperativo seguirmos avançando.
É importante frisar que compreender o caráter laico do exercício profissional não tem a ver
com negar a liberdade de consciência e a liberdade religiosa dos/as profissionais, mas sim
garantir que tanto profissionais como os/as usuários/as tenham o direito a estas liberdades,
não havendo submissão ou subjugação destes àqueles, uma vez que os/as profissionais
encontram-se num lugar de poder em relação à população atendida.
Acreditamos, neste sentido, que a defesa da plenitude da laicidade é inerente ao estatuto ético
da profissão, revestindo-a também deste caráter laico. Portanto, o exercício profissional que
nega esta condição, não só viola flagrantemente o Código de Ética, como também capitula o
retrocesso da sociabilidade em patamares medievais.
A laicidade do Estado brasileiro deve ser erguida como bandeira de luta dos/as assistentes
sociais comprometidos/as com a materialização do Projeto Ético-Politico da profissão, bem
como instrumento político fundamental no combate ao conservadorismo em nossa
sociedade, na medida em que parametriza os limites entre a totalidade social e singularidade
do ser social.
Sabemos, pois, que a luta pela emancipação humana não se restringe a defesa da laicidade do
Estado, ao contrário, como nos aponta Marx (1991), trata-se da supressão do Estado burguês.
No entanto, em tempos de radicalização do conservadorismo, acreditamos que a defesa de
sua laicidade se faz urgente na perspectiva da emancipação política, em coerência com os
valores por nós defendidos enquanto projeto profissional e expressos em nosso Código de
Ética. Urge radicalizarmos também a defesa da emancipação política!
60
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 36, p. 45-64, jul./dez. 2018. ISSN 2238-1856
CONSERVADORISMO E LAICIDADE DE ESTADO
REFERÊNCIAS
ALVES, Luciano. Trabalho Voluntário no Serviço Social: Precarização sob roupagem ética da
caridade. Revista EmancIPA: O Cotidiano em Debate/Revista do Conselho Regional de Serviço
Social de São Paulo – CRESS 9ª Região. Número 2. São Paulo, 2017, pp. 44-65.
BARROCO, Maria Lúcia. Não passarão! Ofensiva neoconservadora e Serviço Social. REVISTA
SERVIÇO SOCIAL E SOCIEDADE, n. 124, São Paulo, Cortez, 2015. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/sssoc/n124/0101-6628-sssoc-124-0623.pdf>. Acesso em: 17 mar. de
2018.
BARROCO, Maria Lúcia. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. São Paulo: Cortez,
2001.
BARROCO, Maria Lúcia; TERRA, Sylvia Helena. Código de Ética do Assistente Social
comentado. Organização do CFESS. São Paulo: Cortez, 2012.
BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 10 de novembro de 1937). Brasília
(DF), nov. 1937. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao37.htm>. Acesso em: 6 set.
2018.
BURKE, Edmund. Reflexões sobre a revolução na França. In: Weffort, Francisco (org.). Os
clássicos da política. Vol. 2. 10. ed. São Paulo: Ática, 2001.
61
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 36, p. 45-64, jul./dez. 2018. ISSN 2238-1856
CARDOSO, PRISCILA FERNANDA GONÇALVES; ALVES, LUCIANO
CARVALHO, Raul de; IAMAMOTO, Marilda V. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil -
esboço de uma interpretação histórico-metodológica. 25. ed. São Paulo: Cortez, 2008.
CONSELHO REGIONAL DE SERVIÇO SOCIAL (São Paulo). Jornal Ação, São Paulo, ed. 82, 2016.
Disponível em: <http://cress-sp.org.br/wp-content/uploads/2016/05/JORNAL.ACAO_.82.pdf>.
Acesso em: 6 set. 2018.
CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL. CFESS Manifesta: em defesa do estado laico. Ed.
Especial. Brasília (DF), 2015. Disponível em: <http://www.cfess.org.br/arquivos/2015-
CfessManifesta-EstadoLaico-Site.pdf >. Acesso em: 6 set. 2018.
62
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 36, p. 45-64, jul./dez. 2018. ISSN 2238-1856
CONSERVADORISMO E LAICIDADE DE ESTADO
CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL. Código de Ética dos/as Assistentes Sociais (1993).
Ed. 2011. Brasília, 1993. Disponível em: < http://www.cfess.org.br/arquivos/CEP_CFESS-
SITE.pdf>. Acesso em: 6 set. 2018.
HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções. Europa 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.
IOTTI, Paulo. Supremo Rasga Estado Laico ao Permitir Ensino de Dogmas Religiosos em
Escolas Públicas. Página “Justificando”, Portal Carta Capital, 2017. Disponível em:
<http://justificando.cartacapital.com.br/2017/09/28/supremo-rasga-estado-laico-ao-permitir-
ensino-de-dogmas-religiosos-nas-escolas-publicas/>. Acessado em 05 de setembro de 2018.
KINZO, Maria D´Alva Gil. Burke: a continuidade contra a ruptura. Weffort, Francisco (org.). Os
clássicos da política. Vol. 2. 10. ed. São Paulo: Ática, 2001.
MARICATO, Ermínia [et al.]. Cidades Rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram
as ruas do Brasil. 1 ed. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2013.
63
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 36, p. 45-64, jul./dez. 2018. ISSN 2238-1856
CARDOSO, PRISCILA FERNANDA GONÇALVES; ALVES, LUCIANO
64
Temporalis, Brasília (DF), ano 18, n. 36, p. 45-64, jul./dez. 2018. ISSN 2238-1856