Folhetim 8
Folhetim 8
Folhetim 8
Chegamos ao oitavo número da revista – projetos culturais que põem em relação a França
nono, na verdade, visto que começamos do e o Brasil. Em Plínio Marcos, um homem ungido
zero, lembram? Depois da edição especial pela divina ira, Paulo Vieira procura mostrar
sobre Nelson Rodrigues, voltamos à como o autor maldito digeriu o Godot de
pluralidade de temas que é a nossa marca. Da Beckett que Patrícia Galvão, a legendária Pagu,
França nos vem um sintético e brilhante texto lhe apresentou depois de assistir a Barrela. E,
do dramaturgo, diretor, ensaísta e professor neste ano da graça de 2000, não poderíamos
(Paris-Sorbonne) Denis Guénoun a respeito deixar de nos voltar para os primórdios da
dos impasses do teatro contemporâneo. história do teatro no Brasil: Magda Maria
Mariângela Alves de Lima em Apocalipse 1,11 Jaolino Torres apresenta em Ars oratoria india
tece com muita precisão as relações entre as o teatro da missão, novidade que os jesuítas
simbolizações do Apocalipse bíblico e o mais introduziram no Brasil a partir de sua percepção
recente trabalho do Teatro da Vertigem, da retórica indígena. A entrevista com o grupo
dirigido por Antonio Araújo. Fátima Saadi Sobrevento é uma interessante oportunidade
apresenta uma leitura das rupturas estéticas de discutirmos a íntima relação entre a criação
propostas por Lenz a partir de cenas em que artística e as estratégias de produção de uma
ele trata da questão da arte ou a ela se refere. companhia.
Em O teatro das palavras, o diretor Thierry Agradecemos à Secretaria de Cultura do
Trémouroux discorre sobre suas experiências Estado o apoio para a impressão deste número
com os textos de Valletti e Novarina, que de Folhetim.
esteve recentemente no Brasil por iniciativa Sem mais para o momento, até 2001!
da l’Acte, responsável por uma série de
Expediente
FOLHETIM
ISSN 1415-370X
Oficinas
A cena: uma escritura
Oficina de direção com Antonio Guedes
O teatro e seu espaço
Oficina de história do espetáculo com Fátima Saadi
Vivência teatral
Oficina de interpretação com Antonio Guedes
O texto dramático e a fala teatral
Oficina de leitura dramática para atores
com Antonio Guedes
A construção do ator
Oficina teórico-prática para atores
com Antonio Guedes e Fátima Saadi
OBJEÇÃO AO
RETORNO*
Denis Guénoun*
Tradução de
Fátima Saadi
Evoco aqui três questões que se
colocam, entre outras, à escrita
dramática hoje.
1 – A primeira: escrever depois do fim
da crise do drama. A crise do drama já
estava deflagrada há muito tempo: ao
menos desde a época romântica e, mais
visivelmente, no último século – Szondi
tratou disto em detalhe.1 Ela sacudiu a
forma dramática da escrita teatral com
crescente brutalidade. Este processo
crítico alcançou seu ponto extremo nos
anos cinqüenta ou sessenta com maior
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Objeção ao retorno
desafiam com sua insolente estabilidade: hipótese de Koltès, ao menos
em Campos de algodão. De Bernhard também, às vezes, dramatículos,
draminúsculos sem fissura, dispersos no campo deserto da vida. Dra-
mas puros mas nucléicos. Segmentos minúsculos de vida.
Um caso particular, onde o problema se condensa: será que é
preciso escrever personagens? Como se nada tivesse acontecido,
como se não tivesse acontecido esta crise do personagem que
Abirached narrou e analisou em detalhe.2 Ou será que: acabou? E
ninguém escreve personagens, nunca, nem quando acha que está
escrevendo, mesmo se o papel recebe um nome. Será que agora só se
escrevem partituras para atores, roteiros verbais para corpos imprevistos,
corpos improvisados e treinados? Supondo que o ator é o que resta,
órfão e livre, quando o personagem se mandou, seria verdade que a
escrita de hoje só lida com este ponto novo e cru, a atividade despida
do ator em cena, a auto-apresentação desficcionada do jogo?
2 – Um segundo problema de nossos textos diz respeito à sua
capacidade representativa. Porque o que tem sido colocado em dúvida
nos últimos decênios a respeito do teatro é a sua capacidade de
representar. Seja porque ele é considerado não habilitado, pouco
hábil, decididamente mal equipado e desajeitado no que diz respeito
à representação, seja porque, na verdade (às vezes, dá no mesmo, só
que agora em seu benefício), supõe-se que ele está farto da
representação, que ele a recusa e condena e se assume como o arauto
de sua deposição. Teatro não representativo, às vezes considerado
como equivalente a teatro, pura e simplesmente, eis aí o grande
herdeiro, o legatário da crise. Teatro do ato de representar, da
apresentação nua e crua, do jogo do próprio teatro. Teatro que se
desprende dos artifícios e da bruxaria, teatro antimágico (antimagia
e anti-imagem, teatro que não se submete nem à magia nem às
imagens), teatro da lucidez, do prazer do pensamento como do
sensível, mas esvaziado de sua irrealidade, de suas miragens – e
também de sua impotência.
Teatro, pois, que reclama como prerrogativa, como sua
responsabilidade maior, o fato de interrogar, de suspeitar de qualquer
relação ingênua com os ídolos, e, portanto, de qualquer pretensão a
invocar o real e a mostrá-lo tal e qual em cena. Este ganho, este
encenação.
Aqui também é preciso precaver-se contra as leituras simplistas
(e contra as objeções rasas): claro, no que diz respeito à encenação,
ainda há muitas encenações e das boas etc. E é preciso que haja etc.
Esgotamento não quer dizer extinção: muitas coisas esgotadas
perduram, chegam mesmo a proliferar. Citemos Rousseau, “o que brilha
está em seu declínio”. Portanto: dificilmente se pode negar que os
anos sessenta e setenta foram um período de extrema inventividade
teatral e que o lugar desta fecundidade não foi a escrita dramática,
mas a pesquisa cênica. Claro, houve autores etc. Mas o que produziu
as “revoluções cênicas” destas duas décadas aconteceu na cena mais
que no papel. Não foi o que aconteceu pouco antes (o pós-guerra e os
anos cinqüenta, florescimento da escrita), nem pouco depois. Este
período foi aquele que se singularizou entre Beckett e Koltès.
Em nosso teatro, é, evidentemente, a encenação que herda
isto: por seu estatuto, seus poderes, seu regime e uma boa parte de
seu discurso. Ela clama sua legitimidade afirmando ser a depositária
deste legado. E, contudo, esta fase de invenção está encerrada. A
encenação se esgotou, socada sobre seu pedestal, mal se sustendo.
Sem barulho, sem confusão: por exaustão, evacuação interior,
automimetismo desabitado.
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Objeção ao retorno
Escrever depois disto não é nem escrever como antes (voltar ao
face a face do autor e do ator, ao belo texto bem proferido por um
verdadeiro ator), nem escrever esperando o retorno, a volta, a
recuperação da encenação. Quais são os campos abertos por esta
extinção? Eles são diversos, cada um reconhece o seu. Abolição dos
gêneros e cruzamento das artes; constituição de um objeto cênico
global no qual o texto vale como roteiro, como partitura; dobradura
na escrita das distâncias interpretativas. Em todos os casos, trata-se
de uma escrita preocupada com sua relação com o exterior, com seu
engajamento no outro, no corpo, no jogo, na cena, a benéfica
babelização das línguas. O anti-idioma do teatro exige (incorporando-
as ou chamando-as) sua alteração, sua adulteração, sua expatriação
para fora das terras ancestrais do drama. Se ainda estivéssemos em
tempo de slogans, o dele seria: não ao retorno. (À primeira indicação
cênica, é possível perceber se um texto traz uma idéia do teatro e,
portanto, do mundo, fundamentalista e retromaníaca, ou se se
preocupa com o tempo que virá). Mas não é mais tempo de slogans,
nem de retorno dos slogans.
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APOC ALIPSE 1, 11
Mariângela Alves de Lima**
Para o leitor comum, desavisado da
história da composição dessa biblioteca
que é a Bíblia, o último livro do Novo
Testamento pode ser um choque
estilístico. Depois de atravessar o tom
sereno e indubitavelmente terrestre das
peripécias cristãs, repletas de detalhes
da vida quotidiana, com as suas
personagens escolhidas entre os
humílimos da terra, retornamos à
exaltada tonalidade dos livros
proféticos. Em vez da doutrinação e do
exemplo dos primeiros textos cristãos,
essa obra relativamente tardia (estima-
se sua escritura do final do primeiro
século da Era Cristã) acrescenta aos
textos testemunhais, e com valor de
fecho, uma obra hermética. Estruturada
sobre alegorias, sugerindo uma
interpretação infinita, o Apocalipse
refere-se, como outros textos revelados,
ao incognoscível. O que se apresenta
na narrativa, segundo o exegeta da
Bíblia de Jerusalém, é sinal para outros
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A tarefa a que se propõe o Teatro da Vertigem é então, parece-
me, a de escavar essa grossa camada de simbolizações que expressam,
não a vitalidade do imaginário mas, ao contrário, o modo como,
através de figuras, contornamos o enfrentamento da realidade. A
relação com o pensamento apocalíptico é veraz: esta é a última fase
de alguma coisa, não se pode ir além. Quanto ao estilo adotado pelo
espetáculo, parece-me, a relação com o texto sagrado é paródica.
Enquanto o profeta acredita na potência das figuras reveladas, o
teatro coloca sob suspeita a potência dos signos. É um procedimento
que o grupo paulista adota pela terceira vez. O primeiro espetáculo
do grupo, O paraíso perdido (l992), conferia a um templo católico o
caráter de Templo, ou, seja, tratava todo o edifício como um lugar
simbólico da relação do homem com Deus, onde era preciso renovar
a aliança primordial. No segundo trabalho, O livro de Jó (l995), um
hospital era signo do padecimento. É a impotência do signo (ou a
sua potência relativa) que torna necessário usar o próprio hospital e
fazer com que o espectador se defronte com sinais de um sofrimento
real (embora ameno) do intérprete. Podemos ver as excreções do
corpo doente, sentir o cheiro dos desinfetantes hospitalares. E no
Folhetim n.8, set-dez de 2000
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Apocalipse 1, 11
O mal que o espetáculo trabalha é, portanto, uma dimensão do
“apocalíptico”, como se apenas o tratamento figurado, hiperbólico e
altissonante dado à experiência contemporânea (e por isso irônico)
pudesse fazer justiça ao horror do seu contorno e da sua estagnação.
Sem o apoio das ideologias, sem o socorro balsâmico da fé (todas as
manifestações de fé no espetáculo são irrisões da crença no
transcendente), o didatismo singelo da representação realista e
instrutiva não tem sentido.
Há nas investigações causais do realismo uma sugestão de
progresso, de que há um sentido para essa caminhada em direção ao
ponto final das narrativas. Bem ao contrário, as figuras da linguagem
profética não são causais e nem conduzem necessariamente a um
desfecho. O narrador profético das revelações não dá testemunho
do mal como é, mas do reflexo desse mal na perspectiva altiva e
totalizadora da divindade. Precisa ser abarcado por um olhar que
está no alto e de fora para que possa se expressar na sua extensão e
na sua duração. É o que inspira a forma monumental do espetáculo
do grupo.
No entanto, a substância da narrativa tramada pelo Teatro da
Vertigem, senão o seu encadeamento, é lastreada na experiência
concreta da vida em uma metrópole do final do século vinte. Tudo
é, nesse sentido, “de verdade”, ao contrário da caracterização que
Eco atribui ao texto hermético onde “a verdade está no texto”. Pode-
se dizer até que, ao contrário do estilo profético, deve-se pôr o texto
sob suspeita e a verdade fora da representação porque é sempre e
insistentemente para o mundo que o espetáculo tenta nos devolver.
Antes da representação da Babilônia, está, como parte do trajeto
ao espetáculo, a cidade onde vivemos. Para chegar ao presídio da
Rua do Hipódromo (um presídio real, embora desativado) é preciso
acercar-se do rio Tamanduateí. Para os paulistanos o “além-
Tamanduateí” foi outrora a terra incógnita onde se radicavam as
indústrias e os operários. Aí viveu o exército de mão-de-obra da era
industrial e nesse lugar vive agora o contingente “de reserva”. Fo-
ram-se as fábricas e as ruínas abrigam hoje um comércio incipiente.
A travessia dessa região faz parte do espetáculo, é o pórtico da era
pós-industrial. Antes da representação há essa metrópole noturna, a
zona miserável que nenhum signo poderia talvez abarcar de modo
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fidedigno. Está aí o primeiro sintoma de uma representação rebelada
contra a sobrecarga dos signos.
A escala da encenação tem a monumentalidade do texto
profético, o encadeamento da narrativa também emula a ordem de
apresentação das revelações (a cada selo quebrado corresponde uma
“visão” que não tem relação seqüencial aparente com o episódio
anterior), mas a matéria dialógica e a configuração das personagens
é extraída da realidade, ou melhor, do realismo que é a tônica dos
evangelhos testemunhais. O João convocado por ordem divina a dar
testemunho é o migrante que busca ainda com fé a Nova Jerusalém.
E as iniqüidades que testemunha são, de um modo claro, decepções
propostas ao entendimento analógico: “Pena de morte! Cês vão pagar,
baianada de merda!” gritam os Anjos Rebeldes. Da mesma forma, o
Juiz que, ao final, preside ao ato condenatório é a irrisão da esperança
de justiça. Sua insígnia é um chinelo e o tom da personagem é o da
impotência e do desespero. Não distingue entre o bem e o mal,
confunde na mesma medida em que se deixa confundir, perdeu a
memória do sentido da criação que deveria revelar no final dos tem-
Folhetim n.8, set-dez de 2000
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Apocalipse 1, 11
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“...FAREMOS TEATRO
PERFEITAMENTE
NO INFERNO.”*
Fátima Saadi **
Na Idade Média, o teatro repertoriava
as etapas da caminhada do homem em
direção a Deus e os enganos que
poderiam desviar o peregrino de seu
destino transcendente. No barroco, o
palco, compreendido como theatrum
mundi, comprazia-se com a
multiplicidade dos jogos entre a
aparência e a realidade, chamando a
atenção para o poder do teatro de criar
miragens do real e para o caráter
ilusório da própria realidade. Com o
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“... faremos teatro perfeitamente no inferno...”
Também Lessing se preocupou em abrir o texto à cena,
escrevendo para os atores, e abrindo o flanco aos críticos que
acreditavam que o texto deveria conter em si belezas suficientes
para fazer esquecer tudo o que o cercava, como se depreende das
observações de Léon Crouslé, já no século XIX:
Dissemos que ele [Lessing] trabalhava sempre em função do ator: procedimento
talvez excelente para a cena quando comediantes talentosos secundam o autor,
mas funesto quando estes auxiliares deixam a desejar e sempre prejudicial ao
mérito literário da obra que, para se sustentar, conta demais com o auxílio de uma
arte inferior.1
que sequer figura nos mapas alemães –, passa por Naumburg a convite
de Herr von Biederling, interrompendo a viagem que o levaria à
França, onde pretendia conhecer os usos e costumes europeus e assim
poder comparar a realidade à fama de que a Europa desfrutava no
Oriente. Apaixona-se por Wilhelmine, a filha de seu anfitrião, e
com ela se casa, descobrindo horrorizado, alguns dias depois, que,
na verdade, é o filho que Herr von Biederling havia confiado a um
nobre tirolês e que tinha ido parar nas mãos dos reis de Cumba por
intermédio de missionários jesuítas. Tudo, no entanto, se resolve
quando se descobre que Wilhelmine é, na verdade, filha de um
nobre espanhol, trocada pela filha de von Biederling pela ama de
leite à qual este havia confiado a criança antes de partir para a
guerra da Silésia.
36
O teatro das palavras
Villa, trabalhamos muito a musicalidade do texto com o intuito de
misturar as duas línguas.
Chegou enfim a hora. Enquanto os corpos dos atores
desenhavam lindas silhuetas na contraluz das janelas abertas ao céu
das ruínas do Parque, entrou na fossa, como previsto, Valère Novarina.
Segurando o livro nas mãos tal como uma bíblia, a postura dele era a
de um monge rezando. Depois de ter dito o primeiro parágrafo em
francês, voltou a lê-lo em português (eu soube depois que ele também
estava com muito medo). Foi assim que, lá embaixo, no buraco, diante
de todos os atores e espectadores, o domador de palavras se
apresentou. Fiquei muito emocionado e agradecido por esse momento
único.
Em Porto Alegre, foi bem diferente. Eu tinha uma exigência
em comum com Valère Novarina: apresentar essas intervenções em
espaços não convencionais, “habitados por uma alma”! O espaço
Mário Quintana não nos decepcionou. A disposição encontrada (duas
arquibancadas separadas por um corredor ) me lembrava a cenografia
da peça Solidão nos campos de algodão de Bernard Marie Koltès
encenada por Patrice Chéreau em Paris alguns anos atrás. Optei por
deixar essa configuração. Face a face, na penumbra, Lorena da Silva
e o próprio Valère Novarina vivenciaram junto ao público uma leitura
profunda, vinda das entranhas. Essa versão reforçou para mim dois
conceitos. O primeiro é do Valère Novarina: “Todo cenário que
pode ser traduzido por uma idéia tem que ser imediatamente
desconstruído” (Para Louis de Funès, p. 35). O segundo é do diretor
francês Alain Ollivier: “O que é o teatro, senão uma luz na qual se
solta a língua, que se faz escutar na penumbra, para melhor
silenciar?”
Pouco tempo depois, Valère Novarina voltou para a Europa.
Desde então, venho fazendo incursões com seus textos por várias
cidades do Brasil. Em Salvador, os artistas convidados a participar
da oficina eram quase todos bailarinos. O patrocinador era o
Sindicato dos Artistas, e a apresentação foi ao ar livre, numa praça
do Pelourinho, dentro da programação Dia e Noite, que conta
principalmente com shows musicais. Sob ameaça de chuva, a
apresentação não poderia ter sido mais dantesca! Parecia uma
macumba belga! No final, estava previsto que eu entraria com o
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texto na mão. Minha primeira fala era: “O ator traz toda a sua gênese
no interior e um apocalipse dentro...” (Para Louis de Funès, p. 58).
Eu tinha acabado de falar a palavra “apocalipse”, quando uma
violenta chuva desabou no teto de plástico sabiamente improvisado
pelos organizadores. O barulho era tão grande que parecia que eu
estava invectivando os deuses.
Ainda impregnado dessa experiência “mística”, fui para Recife,
onde exigi que a intervenção acontecesse não no bairro dos Judeus,
como havia sido previsto, mas num lindo teatro chamado Hermilo
Borba Filho. Dessa vez, mais do que o resultado, foi a oficina com 25
atores que me encantou. Voltei entusiasmado com a garra deles, a
vontade quase “ubuesca” de receber informações, o desejo autêntico
de troca. “Tão longe, tão perto”, foi minha sensação ao sentir o
quanto os caminhos apontados na Carta correspondiam de forma
pertinente às questões artísticas deles, questões devidas
principalmente ao isolamento cultural em que se encontram. Se a
cada nova cidade, a Carta for tendo uma repercussão diferente, é
com muita curiosidade que aguardo minha próxima incursão, em
Folhetim n.8, set-dez de 2000
São Paulo.
A Carta começa assim:
Escrevo com os ouvidos. Para atores pneumáticos. Os pontos, nos velhos
manuscritos árabes, eram assinalados por sóis respiratórios... Respirem,
pulmoneiem!...
38
O teatro das palavras
O texto não é nada menos do que uma viagem pelo
subconsciente, uma verdadeira alucinação, um sonho caótico,
iluminado. A primeira pergunta de Elvis para o público: “Vocês me
reconheceram?”, já anuncia o que virá, ou seja, a crise de identidade
profunda que atinge o king. “Eu não posso ver meu reflexo na água,
diz Elvis. Nem me lembro do meu próprio nome”.
Em Santo Elvis, tem Elvis mas tem também Santo... O santo por
detrás do king, de tão adulado que foi, sumiu completamente, tornou-
se uma visão puramente abstrata.
Seria bom falar um pouco da realidade, essa história de mito é muito bonita,
quando se diz o mito já se disse tudo, tudo bem, [...] mas há limites para o mito, é
isso que penso... ” (Santo Elvis, VII)
39
A própria força da peça só se revela quando o ator se entrega, pois
sua trama impõe um novo ritmo, uma nova respiração.
Mas como seria a caminhada do ator na busca do personagem?
O ator deveria, no meu ponto de vista, se sentir no estado
daquele que escreve, antes que a frase esteja escrita. Eu queria
ajudar o ator a entrar no palco como se ele entrasse na escrita,
chamado pelo imaginário do escritor que, pressentindo alguma coisa,
começa a colocar signos no papel. Porque quando o ator encontra
em si o lugar de onde vêm as palavras, temos a impressão de nunca
as termos ouvido. Aí sim, elas nos surpreendem e nos atingem no
que têm de mais novo. Seria como na busca de uma língua esquecida.
Os atores previstos para os papéis não foram escolhidos pela
semelhança com os personagens reais. O texto e o tratamento que
lhes serão dados estão longe de qualquer realismo histórico. Nos
pareceu mais interessante buscar o que, na singular personalidade,
na energia e no carisma de cada um, poderia remeter aos personagens.
É a partir desse distanciamento, desse estranhamento, tanto na escrita
Folhetim n.8, set-dez de 2000
40
O teatro das palavras
homem demais, ciências do homem demais, ele deve se calar, apagar
sua cabeça, tirar sua imagem, desfazer seu rosto, retomar do zero, se
desligar do que ele pensa saber de si, e voltar pro teatro, brincar,
fechar os olhos, reabrir, se ver renascer de sua própria palavra, ver a
palavra se separar. É só no teatro que ele pode reassistir ao drama
cômico da palavra saindo das carnes. Como um sopro de vazio que
sairia pelo avesso, como uma toada que nos cantaria a matéria oca,
como uma canção que nos diria que o homem não é de forma alguma
um animal que se pôs a falar, mas uma matéria toda cheia de vazio
que esse próprio vazio faz falar”. (Para Louis de Funès, p. 42 )
Bom, já que o combustível da palavra é o vazio, voltarei num
instante a praticar meu esporte favorito. Meu plexo solar já se sente
melhor. Merci!
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PLÍNIO MARCOS,
UM HOMEM UNGIDO
PELA DIVINA IRA
Paulo Vieira*
Não faz muito tempo, eu costumava ir
com amigos aos restaurantes do centro
de São Paulo, aqueles onde os artistas
de teatro costumam se encontrar depois
dos espetáculos.
Naquelas noites de Gighetto e
arredores, pude conhecer de perto uma
das legendas do teatro brasileiro, o
dramaturgo Plínio Marcos. Não foi em
nenhuma dessas noites a primeira vez
que eu o vi. A primeira vez de verdade,
já lá se vão cerca de vinte anos. Eu,
recém-chegado em São Paulo, fui ao
teatro para assistir ao espetáculo
Barrela, dirigido por Plínio Marcos. Era
o ano de 1980 e nós estávamos saindo
de um período difícil para a vida
política e cultural do país. A ditadura
tivesse conhecimento do livro de John Fuegi, Brecht & Cie, que se estende
por quase novecentas páginas apenas para acusar Brecht de não haver
escrito nenhum dos seus textos, atribuídos a suas mulheres...
Em Dois perdidos numa noite suja, Plínio Marcos lançou mão de
um conto, O terror de Roma, do escritor italiano Alberto Moravia. O
texto do autor santista é, por assim dizer, uma paródia do conto citado,
não no sentido atual de imitação cômica ou burlesca, mas no sentido
etimológico do vocábulo grego: canto ao lado de outro. A ação do
texto de Plínio Marcos repete passo a passo o conto de Moravia, mas o
refaz com tamanha originalidade em sua linguagem que é impossível
não reconhecer o estilo Plínio Marcos. Por esse ângulo, ele se afasta
inteiramente do conto de Moravia, o reconstrói em outra narrativa.
Somente incontáveis horas ou anos de estudo dariam a um autor a
cancha necessária para realizar o que Plínio Marcos fez em relação ao
falado conto. Tirocínio que lhe faltou – justamente por lhe faltar o
estudo necessário naquela ocasião – quando escreveu Os fantoches. A
situação abissal, característica do Teatro Filosófico, está lá.
Cinco homens, mendigos, julgam um deles que roubara um chapéu.
Em Barrela, a peça anterior, eram seis homens trancafiados. Em Os
fantoches, cinco homens à beira de um abismo, que figurativamente
significa algo insondável, a profundeza da alma. Portanto, nada mais
próximo do teor filosófico que Patrícia Galvão lhe apresentara em
Esperando Godot. Inclusive pela mesma paisagem desolada.
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Plínio Marcos, um homem ungido pela divina ira
Tudo o que se pode fazer com um autor falecido e que resistiu a
falar sobre a sua obra, é especular. Neste sentido, assumindo, inclu-
sive, o risco de estar afirmando inverdades, ouso dizer que Os fantoches
acabou se tornando um projeto frustrado justamente por não ter o
autor o domínio de sua linguagem, por não ter ainda fixado o seu
estilo. Tanto assim que Plínio Marcos o reescreveu em pelo menos
duas ocasiões, dando-lhe novo título a cada vez: Chapéu em cima de
paralelepípedo para alguém chutar, na primeira reescrita, e o título com
o qual o texto chegou à cena sob a direção de João das Neves, Jornada
de um imbecil até o entendimento. De passagem, apenas por curiosidade,
e sem querer estabelecer conexão formal entre uma obra e outra, este
segundo título faz lembrar Jornada de um dia para dentro da noite, de
O’Neill. De uma certa maneira, a ação, no texto do autor norte-
americano, é a jornada de um imbecil até o entendimento. O que
talvez não estivesse claro ainda para o autor maldito era que uma obra
é como o pau do provérbio popular: o que nasce torto morre torto. A
falta de fundamento dramático em Os fantoches terminou se
estendendo para as suas reescrituras, tornando aquela (ou aquelas)
obra (ou obras) menor (ou menores) no conjunto de sua escrita.
Eu não tinha a menor noção destas coisas quando Plínio Marcos
se sentava em nossa companhia e se esquecia, para nosso deleite, que
a noite para ele era de trabalho. Eu era apresentado ao maldito pelo
menos uma vez por semana. Estranhamente, tinha sempre a sensação
de que ele me olhava como se estivesse me vendo pela primeira vez.
Seus olhos se fixavam em mim por algum tempo, como se procurasse
entender quem era aquele que ele via com certa freqüência, mas
que, em geral, à mesa, era o único que ele realmente não conhecia.
Se alguém lhe perguntasse sobre os livros que vendia, suas próprias
peças de teatro, ele dava o preço e, como bom camelô que era, prometia
assinar e morrer logo para valorizar o autógrafo. Um homem como o
Plínio Marcos, um artista com a sua competência e a sua insolência,
faz falta no país que hoje vivemos. O seu jeito rude, quando
confrontado; humorado, quando em noites frias e perdidas aquecia as
nossas conversas; zangado, grosso, quando se sentia ameaçado em sua
liberdade de saltimbanco, antes de mais nada me pareceu, aquele
jeito malandro de ser, carregado de uma ética teleológica.
Um homem como o Plínio Marcos é uma espécie de reserva
moral da nação. Da nossa pobre nação, tão necessitada de ética e de
homens que, a exemplo do Plínio Marcos, fazem tremer o peito
quando soltam o grito de sua zanga olímpica... Eu trocaria de bom
grado o autógrafo valorizado no meu livro amassado.
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ARS ORATORIA INDIA:
A GÊNESE DO TEATRO JESUÍTICO
DA MISSÃO NO BRASIL*
Magda Maria
Jaolino Torres**
O esclarecimento das relações entre a
cultura jesuítica e o surgimento do
teatro da missão no Brasil, na segunda
metade do século XVI, justifica a
retomada do estudo daquilo que,
geralmente, vem sendo chamado de
teatro de Anchieta. A retórica cultivada
pelos índios, na percepção dos
missionários, está na base da eleição do
ensino da doutrina em chave retórica,
visando formar atores–oradores–
* Este trabalho é parte da tese de doutorado
em História do Espetáculo, Lo spettacolo
dell’identità: il teatro gesuitico in Brasile, nel
XVI sec., que será defendida na Università
degli Studi di Firenze, Itália. Agradeço à
professora Bruna Filippi pelo convite para
participar do Seminário sobre o Teatro
religioso, na École des Hautes Études, Paris,
em 1998, sob a direção do professor Pierre
Antoine-Fabre, onde tive a oportunidade de
debatê-lo.
** Professora do Departamento de História
do IFCS/UFRJ.
Ilustração: O índio brasileiro na imago
européia. Adoração dos Magos. Painel pintado
a óleo por Vasco Fernandes de Viseu, na
catedral de Viseu (1501-1505).
cristãos–índios. Aí se insere o teatro da missão na sua dupla função
terapêutica aristotélica: ser bom não só para quem o vê, mas também
para quem o faz. Com efeito, quase no mesmo período em que Coimbra
e Messina disputam a prioridade da emergência do teatro jesuítico,
talvez um dos mais prolíferos no século seguinte na Europa, no Brasil,
os jesuítas desenvolveram o teatro de colégio. Como uma espécie de
seu desdobramento, fizeram, na América, também um outro tipo de
teatro, sem precedente entre os inacianos, o teatro da missão. Neste
teatro, foram preparados atores índios e textos na língua dos nativos.
O nome do padre Manoel da Nóbrega é justamente associado à
gênese desta prática de teatro no Brasil. A sua importância, todavia,
não se limita ao fato – muito referido – de ser ele o autor do primeiro
diálogo aí redigido, cujo texto tenha sido conservado.1 Aliás, a
natureza propedêutica deste documento, no contexto da pedagogia
inaciana – diálogos produzidos para e nas aulas de Retórica, nos
colégios e/ou seminários 2 – por vezes não foi entendida ou
devidamente destacada. O seu relevo, para a história do teatro na
colônia, não se deve nem mesmo a que tenha sido ele quem confiou
Folhetim n.8, set-dez de 2000
Entrevista a
Antonio Guedes, Fátima Saadi
e Walter Lima Torres
Fotos de Guga Melgar
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Sandra: Olha, no início, organizar eventos foi uma necessidade. Como
nós no começo, todo mundo tinha preconceito contra o teatro de
bonecos. O Rio Bonecos 92 que foi, na verdade, o primeiro evento
que realizamos, nasceu da necessidade de mudar radicalmente essa
visão. Pensamos em trazer grupos que mostrassem que teatro de
bonecos podia ser uma coisa maior, moderna, também para adultos
etc. E quando a gente foi fazer a Mostra Maria Mazzetti, também foi
assim. Lembro que a gente fez no Ziembinski, que era pouco
conhecido, e o teatro ficou lotado. Foi engraçado porque a gente
escolheu teatro de luvas. Na primeira mostra, a gente jamais
escolheria esta técnica, porque as pessoas sempre pensavam: “Ah,
em teatro de bonecos, a única coisa que se faz é teatro de luvas”.
Mas, nessa mostra, a gente trouxe um espetáculo de luvas
surpreendente, do Yang Feng, um chinês com quem depois a gente
trabalhou. Foi também a última vez que o Javier Villafasne, que foi
um dos pioneiros do teatro de bonecos na América Latina, veio ao
Brasil. Depois dessa mostra, se organizou um grande festival no Rio,
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Sobrevento: mudando os rumos do teatro de animação
envolvidos com isso agora em cidades na periferia de São Paulo e
têm realizado umas experiências maravilhosas com crianças de oito
a doze anos. Coisas fortes, que poderiam algum dia virar cena, virar
um espetáculo. Então, a oficina funciona inclusive para a gente se
renovar.
Sandra: No meio da loucura, a oficina é o momento em que a gente
pára. E é sempre surpreendente porque a gente não trabalha com a
previsão de um resultado imediato, a gente aproveita o que o grupo
nos oferece. E como são cidades diferentes, grupos diferentes,
condições sociais diferentes, é sempre uma surpresa. Aliás, quando
a oficina é numa escola de teatro, é quando a gente menos se
surpreende. Porque eles estão viciados. Eles fazem os exercícios para
acertar, você tem que ficar dizendo: “Olha, se solta! Não pensa tanto!
Faz!” Mas, voltando, é difícil coordenar tudo. Em geral, no início do
ano, decidimos o que vamos fazer. A gente sabe que nossa maneira
de criar exige que se pare tudo 3 ou 4 meses para poder ficar só
ensaiando. Então, a gente se organiza para vender muito espetáculo
antes e depois parar tudo, fazer menos viagens. O nosso processo é
complicado, porque teatro de animação exige que você tenha o
boneco construído e, algumas vezes, depois de pronto, o boneco não
serve. Tem que arrumar um lugar com máquina de costura, pano,
tudo à mão. Geralmente, a gente fica o dia inteiro, da manhã à
noite, só em função daquele espetáculo. Esse momento é o único em
que a gente contrata uma secretária que deve ser pau para toda
obra, que saia inclusive para fazer compras. Mas, às vezes, entramos
numa roda-viva que só tomando uma decisão radical: “Agora é hora
de parar! Pronto, acabou!” Se não fizermos isso, não vamos ter
tranqüilidade para começar a pensar no próximo projeto.
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interessante. Lá, o teatro funciona de terça a domingo, só pára na
segunda. Direto com público. O pessoal indo ao teatro terça-feira,
quarta-feira de noite!
Fátima: Vocês têm participado de vários festivais também aqui
no Brasil. Quais são os mais interessantes? O que foi que vocês
viram nos últimos anos? Sei que vocês tiveram uma participa-
ção importante no Festival Internacional de Teatro de Bonecos
organizado pelo Mamulengo Só-Riso, em 99.
Sandra: Foi o primeiro festival organizado pela companhia, que tem
25 anos e um teatro em Olinda. Foi impressionante: uma iniciativa
totalmente deles.
Miguel: Esse ano a Catibrum, de Belo Horizonte, organizou um
primeiro festival. Há muito tempo eu não via um festival tão bem
organizado e com um repertório de espetáculos, tanto nacionais
quanto internacionais, tão bom. E tem os festivais tradicionais...
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Sobrevento: mudando os rumos do teatro de animação
coisas que vêm de espetáculos que eles viram, são influências e isso
é fundamental!
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Foto de Guga Melgar:
Sandra Vargas e Miguel Vellinho
(Risos) Por que é que não vai ao teatro, meu Deus? Venham ver
meu espetáculo! Que importa o jornal? Isso não acontece em São
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Sobrevento: mudando os rumos do teatro de animação
Antonio: Tem razão. A única experiência que nós tivemos em
São Paulo foi com um infantil. Fizemos uma temporada no
SESC Consolação. Era impressionante ver as crianças comen-
tando o espetáculo. Era tão diferente a maneira de lidar com
aquilo. Não era só a historinha que importava. Era um público
de cotocos que estavam habituados a ver teatro. E tinham uma
postura em relação àquilo que tinham visto. Faziam compara-
ções entre espetáculos e não entre programas de TV e a
história que tinham acabado de ver.
Sandra: Isso é um mérito do SESC também: oferecer teatro, estimular
o público.
Miguel: E isso acontece no estado de São Paulo todo. O que é o
resto do estado do Rio de Janeiro? A gente não vê muitas coisas
acontecendo no interior. Pelo menos, eu não vejo. Enquanto que
em São Paulo você tem áreas extremamente desenvolvidas onde o
SESC também está presente. E é impressionante o nível das pessoas
que vão ver os espetáculos. A gente volta dois anos depois e as pessoas
falam: “Ah, eu vi vocês num espetáculo ano retrasado!”
Sandra: O que tem de legal também, e importante, é que, por mais
que mude de um governo para outro, existe uma continuidade,
exigida pelos grupos. Claro que quando é um governo que tem a
cultura como prioridade faz uma grande diferença.
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Fátima: Vamos aproveitar e falar um pouco da participação de
vocês na Mostra de Teatro de Grupo, que é organizada a cada
ano pela Cooperativa. Lembro da participação de vocês na
revista Máscara, que teve uma curta existência, mas que
também procurava congregar pessoas que refletissem sobre a
prática de grupo. Como vocês vêem as perspectivas do teatro
de grupo nesse momento?
Sandra: O movimento de teatro de grupo surgiu quando a gente
estava começando com Um conto de Hoffmann e o grupo Fora do
Sério queria organizar um Encontro de Grupos. Desse encontro
participaram o Galpão, o Imbuaça, o Estandarte, o Ponto de Partida,
entre outros. O Fora do Sério liderou essa mostra durante dois anos,
foi quando foram publicados dois números da revista Máscara, mas
realmente não se teve força para continuar. Os encontros
aconteceram por dois, três anos seguidos, pararam por um tempo e,
há uns dois anos, foram retomados por iniciativa da Cooperativa
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Sobrevento: mudando os rumos do teatro de animação
Antonio: Em Curitiba, parece que não se monta mais sem
patrocínio.
Sandra: Fora do eixo Rio-São Paulo, parece que a lei Rouanet, no
final, funcionou, mas não porque o empresariado tivesse uma postura
sensível, e sim porque ele tinha que apoiar aquilo que existia, e o
que existia não era um teatro comercial. Alguns grupos estão
fortalecidos, mas a maioria ainda precisa de apoio. Quando um grupo
tem apoio, tudo é mais tranqüilo, menos sofrido. Poderiam ser apoios
mínimos. Um espaço, uma secretária, ou até mesmo a possibilidade
de ter um registro. Registro escrito e visual dos nossos processos, dos
nossos trabalhos. Tudo isso é caótico no Rio!
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mas para o ano que vem não se sabe se vai haver verba. É tudo
muito pontual, não existe continuidade, tudo acaba virando
apenas um evento, não se constitui como um projeto cultural...
Walter: Essa questão dos indicadores do IPEA é relativa,
porque vê a cultura muito mais como entretenimento, eu creio.
Sandra: O grande problema da cultura é esse: ela se confunde com
o show business, com o entretenimento. Então, na hora de pedir
dinheiro, todo mundo fala: “É em nome da cultura.” Mas é preciso
que os grupos tenham clareza ao receber dinheiro público. Se o
dinheiro é público, se é fruto de impostos recolhidos, ele tem que ter
contrapartida, porque sai do bolso do contribuinte. No Rio, por
exemplo, não sei em que medida essa Rede Municipal de Teatros
beneficia o público. Porque quem recebe dinheiro para produzir seu
espetáculo, está recebendo dinheiro público. Ninguém precisava dizer
para essa pessoa: “Abaixa o preço do ingresso, ou faz dois ou três
espetáculos de graça.” Ela devia oferecer alguma coisa, porque esse
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Sobrevento: mudando os rumos do teatro de animação
um projeto, a gente vai fazer com ou sem patrocínio. Por isso, fazemos
um infantil num ano e, no outro, um adulto, porque, na verdade, o
adulto quase não tem retorno financeiro. É com os infantis que a
gente cria um caixa e é com o dinheiro do nosso trabalho que vamos
produzir nossos espetáculos. Aqui no Rio, depois que a gente teve
aquela experiência com O anjo e a princesa, em que eu fui tirada do
Teatro da UniverCidade por desentendimentos entre a Faculdade
da Cidade e a Prefeitura, nós propusemos para a Rioarte: “Bom, não
queremos indenização, nada desse tipo, porque não temos tempo
para ficar pensando nessas coisas. Vamos fazer dois espetáculos ao ar
livre.” E a gente levou 600 pessoas no final de semana ao Parque
Garota de Ipanema. Aí é que você vê a força da entrada franca.
Quando a gente estava estreando o Mozart, a gente não era conhecido
nem nada, e pensamos: “Vamos cobrar para quê? Vamos fazer grátis!
Patrocinados por quem? Por nós mesmos!”
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Antonio: Não sejamos injustos, a Rede Municipal determina que
os grupos ou diretores que ocupam seus teatros, cobrem, no
máximo, dez reais pelo ingresso. Mas ainda acho dez reais muito
caro para o Rio. Ingresso baixo aqui é cinco reais, não dez.
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Sobrevento: mudando os rumos do teatro de animação
tinha feito. Mas era uma cena de 28, 30 minutos e não dava para
fazer um espetáculo só com aquilo. Então, a gente partiu para o
projeto de montar um espetáculo sobre Beckett com outras peças.
Inevitavelmente, recorremos ao Ato sem Palavras II, que também é
uma peça curta, escrita para mímicos ou algo parecido, que não tem
texto e que casava mais ou menos com o que tentamos realizar no
Ato sem Palavras I, isto é, transpor a linguagem do Beckett – uma
linguagem extremamente dura, fechada, com características muito
próprias – para a linguagem dos bonecos. Resolvemos escolher mais
uma peça. A nossa primeira idéia com relação ao Improviso de Ohio
era fazer com bonecos estáticos, quase como se fossem esculturas
que iam se movendo só com o movimento da luz. Não deu certo,
então pensamos: “Vamos fazer com atores”.
Sandra: Até porque os personagens diziam estar ali, estáticos como
se fossem pedras, então ficaria muito mais rico se fossem pessoas. Se
você usa bonecos, fica uma coisa estranha. Na verdade foram essas
figuras que pautaram a estética do espetáculo. Os manipuladores
nunca ficaram muito bem resolvidos nas primeiras vezes em que a
gente fez o Beckett. Eram figuras de capuz, com luz preta, se via e
não se via. Foi o Improviso que ajudou a resolver...
Miguel: toda a encenação.
Sandra: Foi o texto do Improviso que nos abriu uma série de
justificativas, que aliás são sempre as coisas mais difíceis de
resolver em teatro de bonecos.
Quem é esse manipulador? Que
código é esse em termos de
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dramaturgia? O que isso simboliza? Em teatro de bonecos, é preciso
ter muito cuidado com essas coisas.
Miguel: Estreamos em 92 o Beckett. Ele abriu outras tantas portas,
quer dizer, fomos convidados para festivais de teatro, porque, de
certa forma, a gente sempre tinha estado limitado a festivais de teatro
de bonecos. Foi um dado extremamente interessante em termos de
mercado.
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Sobrevento: mudando os rumos do teatro de animação
com umas cenas que os nossos bonecos não iam conseguir fazer. Foi
chegando perto da estréia, foi chegando, e nunca que ela trazia o
texto. Até que, na verdade, começamos a escrever por desespero.
Quando estreamos no CCBB, vimos que os nossos bonecos eram muito
pequenos. Então, como muitas cenas eram baseadas só nos movimentos
deles, muitas pessoas não enxergavam. Por isso, em algumas delas, o
personagem secundário nada mais é do que um tradutor do que o
boneco está fazendo. Por exemplo, na cena do costureiro, a Constância
está escolhendo o que vestir, mas ninguém conseguia acompanhar as
ações. Então, o costureiro começa a entrar com diálogos: “Ah, mas a
senhora está chateada? A senhora não gostou do vestido?” Está só
traduzindo as ações. Aí o público pensa: “Ah, então realmente a boneca
está chateada, olha, eu tô vendo.” (Risos). O espetáculo era
apresentado em cenas separadas. Um belo dia, alguém pede o
espetáculo inteiro. E nós juntamos as cenas à força. Você diz que o
texto é bom, mas se você for analisar, ele pula de um situação para
outra. A primeira vez que fizemos o espetáculo inteiro, foi numa escola.
Ele acabava com a morte do Mozart, de forma seca. Uma criança
chorou, mas chorou muito. Ficou profundamente emocionada. Não
tinha como consolar. Aquilo doeu tanto na gente que achamos que a
morte tinha que ser resolvida de alguma outra maneira. Daí nós
achamos o poema do Manuel Bandeira e colocamos, para mostrar como
coisas assim, na verdade, não têm mistério nenhum.
Miguel: Uma das questões mais preocupantes para nós quando criamos
o Mozart foi, justamente, como falar da morte para um público infantil.
Acho que conseguimos resolver bem essa questão. Quando a gente
começou a apresentar em escolas, as professoras ficavam preocupadas:
“Vai falar da morte? Não pode.” Mas depois do espetáculo, elas vinham
comentar que a gente tinha feito um bom trabalho de casa! É uma
questão que nos acompanha até hoje. Sempre é muito delicado fazer
essa última cena. Mas, quando entra o anjinho voando, a criança
decodifica: “Ah, virou anjinho, tudo bem!”
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Miguel: A gente tem uma queda pelo teatro oriental. Ou, pelo menos,
por algumas manifestações orientais de teatro de bonecos,
principalmente pelo bunrako, que é uma técnica da manipulação
direta. Quando a gente começou, lá atrás, no primeiro ano do grupo,
a gente ia para o Instituto Cultural Brasil-Japão e ficava enfurnado
lendo, folheando e fazendo fichamento de todos os livros, observando
as fotos. Quando a gente assistiu aos vídeos, já tínhamos percebido
algumas coisas de técnica, só através da iconografia.
Sandra: No Sagruchiam Badrek, a gente tinha recorrido ao tangram.
Miguel: Sempre houve um certo orientalismo, aliás há até hoje. O
Luiz André e a Sandra enveredaram pela questão da luva chinesa
na troca com o Yang Feng, o que acabou gerando o Cadê o meu
herói? E, de certa forma, voltei para o bunraku, com a manipulação
direta em Sangue bom. O que nos agrada no teatro oriental de
bonecos é que existe uma enorme quantidade de técnicas.
Sandra: Agora mesmo o Luiz André está fazendo o
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Foto de Rodrigo
Lopes: Mozart
Moments.
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Sobrevento: mudando os rumos do teatro de animação
internacionais fazem com que tudo pareça mais próximo, que não
seja uma coisa de outro mundo trazer uma pessoa da China para cá.
E também pela nossa capacidade de produção, e pelo fato de vivermos
de teatro, para nós é muito fácil, por exemplo, trazer um grupo,
organizar uma turnê. Acho que o Sobrevento tem credibilidade.
Quando decidimos fazer luva chinesa, pensamos: “Com quem vamos
aprender luva chinesa?” Tinha que ser com o Yang Feng, que é o
número um em luva chinesa. Foi muito fácil organizar a turnê e
tudo o mais. Ele se propôs a vir em troca da organização da turnê,
não nos cobrou nada além disso. A gente ligou para o CCBB, e disse:
“Olha, a gente está pensando em trazer um chinês para cá, vocês se
interessam?” Eles nem consultaram agenda nem nada: “Venham!”
Nós organizamos várias oficinas, em locais onde todos os interessados
tivessem a possibilidade de fazer. Registramos em vídeo tudo o que
ele nos ensinou, as mínimas coisas, as dicas de manipulação etc.
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Sandra: Então pedimos ao Saúba para esculpir os bonecos. Uma coisa
que ele nunca tinha feito, com traços tão delicados, pequenininhos.
Lamentavelmente, ele não se encontrou com o Yang Feng. Eu acho
que o Cadê o meu herói?, apesar da manipulação chinesa, super
sofisticada e tudo, tem muito do humor do mamulengo no trabalho
com a palavra, no improviso. Depois, quando o SESC encomendou o
espetáculo Brasil para brasileiro ver, que seria inserido numa grande
exposição sobre o Mário de Andrade, acho que não tínhamos como
não cair no mamulengo. Seqüestramos o Saúba para fazer os bonecos,
mas aí já eram bonecos do jeito do Brasil, com cabeça grande,
manipulação muito menos realista, mais casual, baseada na palavra
e no jogo com o público.
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Sobrevento: mudando os rumos do teatro de animação
e vêem que, na verdade, eles têm um problema em comum: ambos
têm um manipulador embaixo, por isso não podem se casar, mas o
diálogo resolve tudo e eles acabam juntos e os manipuladores também.
Esse texto, na verdade, ganhou um tratamento com uma série de
ironias, muito humor, piadas etc. Tem todas as brigas, mas o Barão
sempre vence os heróis, sem armas, só com o poder do amor. O que
as pessoas questionaram foi a medida em que uma criança é capaz
de entender que você está brincando com aqueles códigos. Até que
ponto ela entende que através da ironia se está fazendo uma crítica?
A gente questiona isso. Até que ponto você tem que dizer
textualmente numa peça: “Olha, os heróis não existem!”?, “Os heróis
não servem para nada!” Pode-se dizer dessa maneira direta, ou com
humor e brincadeiras, e deixar as próprias crianças chegarem à
conclusão de que os super-heróis não servem para nada, de que
tudo isso é uma grande piada, uma grande besteira. Numa dessas
oficinas de Diadema, na de contação de histórias, as crianças criam
suas próprias histórias. Toda hora elas vêm com frases feitas,
mensagens do tipo: “Um dia, fulano chegou numa cidade, onde não
havia violência, onde a natureza era bem tratada...” Aí nós cortamos.
“Você já viu violência?” Em Diadema, é perigoso você perguntar
isso, mas enfim. “O que é violência para você? Por que você quer ser
contra a violência?” É que as professoras começam a passar uma
mensagem vazia: por exemplo, ecologia. Não questionam o que é
nem por que proteger o meio ambiente.
Fátima: Isso tem uma conseqüência negativa que é responsa-
bilizar as crianças sem mostrar nenhum caminho pelo qual elas
poderiam participar dessa grande e meritória empresa. É quase
como se você fomentasse um sentimento de culpa
imensurável, ao invés de dizer às pessoas: “existem tais e tais
atitudes que estão ao alcance de todos nós e que nós podemos
implementar.” A partir daí já se entra no âmbito da
macropolítica.
Sandra: Nesse último festival de que a gente participou em Curitiba,
vimos um espetáculo de Punch and Judy. Punch é um boneco
violentíssimo que bota uma criança numa máquina de moer carne e
a transforma em lingüiça. O boneco pergunta para a platéia: “Vocês
querem que eu bote essa boneca, esse neném aqui?” A platéia diz:
“Sim!” Uma pessoa na platéia achou aquilo um absurdo! Ora, a
pancadaria é tradicional em teatro de bonecos!
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Miguel: A gente fala muito isso, porque, em teatro de bonecos, se
não tem porrada, não tem graça!
Sandra: Com o Mozart mesmo. Numa escola acharam um absurdo a
cena da pancadaria do Mozart e da Constância. Também na Espanha,
onde se diz que a cada dez minutos uma mulher apanha do marido.
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Sandra: Resolvemos caminhar pelo lado grotesco, porque não seria
o lado farsesco que iria provocar essa ruptura. Mas o que seria o
grotesco hoje? A partir daí, a participação do Maurício Carneiro,
que criou os figurinos, foi fundamental. Ele entendeu muito bem a
questão do grotesco e quando chegou com o primeiro desenho do
que ia ser esse Ubu, muitos dos caminhos da interpretação e da
cenografia ficaram claros para nós. Aí começamos a considerar as
potencialidades do heavy-metal, e tudo o que essa música poderia
ser. A banda Sepultura também nos apontava caminhos. O que fazer
para que também a dramaturgia fosse alguma coisa violenta, brutal?
Começamos a ver que a gente devia tirar tudo que era cena de
passagem. Teria que ser tudo pauleira mesmo.
Miguel: Foi tudo recortado. Ficamos só com os clímaxes da peça, os
grandes momentos. A morte do Rei Venceslau, por exemplo, é uma
grande cena. Nela a gente propõe sangue, morte, pancadaria.
Sandra: Esse processo foi muito legal porque descobrimos nossas
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Sobrevento: mudando os rumos do teatro de animação
um boneco, ou se nós mesmos íamos ser os bonecos. Daí chega o
Maurício com aquela coisa grande, que também nos causou
estranheza. Até a gente entender quais eram os movimentos, até
entender de que forma tínhamos que falar usando aquela roupa...
Na verdade, o Ubu ficou seis meses seguidos em cartaz: quatro no
Sergio Porto, no Rio, e dois em São Paulo. E toda hora nós mudávamos.
Depois de muito tempo, e com as viagens, a gente foi entendendo
que o Ubu, na verdade, caminhava na direção de um show.
Miguel: Nesse ponto, acho que a grande felicidade dessa montagem
também foi a intromissão da música, daquele tipo de música, dentro
do espetáculo. Aquilo era o espetáculo. Quer dizer, aquele monte
de bobagem falada pelo Pai Ubu, aquele monte de coisa baixa falada
pela Mãe Ubu, mas, sobretudo, aquela maçaroca, a gritaria desses
dois personagens, somada à barulheira e à distorção de uma banda
heavy. Foi aí que a gente conseguiu retomar a estranheza do Jarry de
cem anos atrás. O mais interessante era ver aquela senhora de cabelos
brancos que tinha assistido ao Theatro de Brinquedo entrando e, no
meio do espetáculo, indo embora. (Risos) Era muito engraçado!
Fátima: O que a crítica falou?
Sandra: O Macksen Luiz falou que era muito formal.
Miguel: A Bárbara Heliodora não entendeu.
Sandra: Falou que era uma gritaria só.
Miguel: E o Lionel Fischer, mais uma vez, acertou. Definitivamente,
é o melhor e o mais preparado crítico do Rio de Janeiro.
Sandra: Não era uma crítica de elogios, mas ele nos apontou
caminhos, esclareceu algumas das nossas dúvidas.
Antonio: É o único crítico que acompanha atentamente o
trabalho das pessoas.
Fátima: Esse espetáculo viajou?
Miguel: Era um espetáculo grande, porque tinha quatro músicos,
uma estrutura de luz muito pesada. Tinha que ir o iluminador, tinha
que ir o operador. Fizemos uma temporada em São Paulo, capital, e
algumas apresentações no interior do estado.
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Sandra: Mas era caro, porque eram dez pessoas. Era um show mesmo
e, em teatro, isso é complicado. Não podia ser um técnico de som de
teatro, tinha que ser um técnico de som acostumado com show, mas
que, ao mesmo tempo, conhecesse teatro, porque ele também não
podia aumentar o volume dos microfones e da música de maneira
que não se escutasse o que a gente falava. Então tudo isso pesou.
Até hoje temos um equipamento que tivemos que comprar, porque
a gente chegava no teatro e não tinha. Era uma caminhão,
literalmente um caminhão!
Miguel: Fora o cenário do Hélio Eichbauer que também era imenso.
Mas foi um presentão para a gente que estava vindo de espetáculos
muito pequenos, com pouca gente. No Ubu era uma parafernália
imensa. Tinha dois contra-regras para ficar entregando os adereços
para a gente. Quer dizer, foi uma lição também de produção, no
lidar com um espetáculo grande.
Sandra: E nos levou à falência. É bom dizer: “A gente fez e a gente
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pode fazer outras coisas assim e a gente não pode perder essa garra
de arriscar tudo.” Tem só que tomar cuidado. Mas bateu um medo
desse Ubu, porque chegou uma hora que a gente não tinha dinheiro
nenhum no Sobrevento! Para fazer mais nada, sabe? Tínhamos
aplicado tudo no Ubu. Aquilo me deixou um pouco assustada. Até
que saiu daí O anjo e a princesa, e eu pensei: “É um monólogo. Vai
ser um monólogo, um espetáculo pocket, como o Mozart Moments,
que eu possa levar para tudo que é lugar.”
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Sobrevento: mudando os rumos do teatro de animação
Paralelamente aos ensaios do texto, a gente chamou dois artistas
plásticos, o Mário Cavalheiro e a Mônica Papesku e, sem dizer nada
sobre o texto, para evitar que caíssem numa coisa óbvia, pedimos
que eles começassem a estudar o Calder e a desenvolver esculturas.
A história é a de uma princesa que manda cortar todos os pessegueiros
para fazer uma festa. Trabalhamos seis meses e eles partiram de três
esculturas do Calder: dois estábiles, que são as esculturas de chão, e
um móbile. Eu adeqüei essas esculturas ao texto, por isso não ficou
uma coisa óbvia. Eu uso a escultura com milhões de funções, e as
crianças adoram. Quanto aos bonecos, o Calder tinha uma coisa
assim de brinquedos, uma coisa mecânica, então resolvemos trabalhar
com brinquedos. E a graça de O anjo e a princesa é que todos os
bonecos que aparecem são brinquedos. A criança vê e, depois do
espetáculo, vai lá, e pega o boneco. É uma coisa diferente do Cadê o
meu herói?, do Mozart Moments. Porque por mais que a criança
quisesse reproduzir os mesmos movimentos da gente no espetáculo,
não ia conseguir, porque ou precisa de mais uma pessoa, ou precisa
de ensaio e tudo mais. Em O anjo e a princesa não. São brinquedos
construídos da maneira mais simples. É uma peça delicada, que resgata
a coisa da criança escutar história, texto, texto, texto. Claro que toda
hora tem ganchos visuais, e ainda mais os ganchos visuais do Calder.
Ele dizia que os seus maiores fãs tinham idades que variavam entre
seis e dez anos. Eu vejo isso claramente. Viajo com essa peça e, onde
eu monto aquele cenário, não preciso fazer mais nada depois. Só uma
mexida na escultura e as crianças já ficam alucinadas.
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Sobrevento: mudando os rumos do teatro de animação
assim, o balcão, que se transformaria em minibalcões, que poderiam
estar na frente, atrás, dos lados e que, no Sangue bom, se transformaram
em caixotes que seriam trazidos pelos estivadores, os caixotes em
que o Drácula aparecia.
Miguel: O Drácula só pode ser transportado dentro de uma caixa
com a terra de seu próprio país, senão ele morre. Então, a partir
disto, todo o espetáculo começou a ganhar sentido. Quando decidi
que os manipuladores seriam os estivadores de um porto, a idéia se
fechou na minha cabeça. Numa noite de chuva, aparece um navio e
os estivadores são obrigados a retirar toda a carga de dentro desse
navio. Uma dessas caixas se rompe e começa a cair areia. Eles vão
abrir a caixa para ver o que é aquilo e encontram um caixão, um
caixãozinho. Aí começa a linguagem do espetáculo de bonecos
mesmo: de dentro daquele caixão sai um vampiro. O castelo onde a
mocinha vive e tal sai de dentro dessas caixas. Essas caixas se abrem
e dentro dessas caixas você vê cenários.
Sandra: É muito legal porque trabalha bem a linguagem do desenho
animado.
Miguel: As rodinhas nas caixas começaram a dar uma agilidade
imensa ao espetáculo. Eu podia fazer o que quisesse! Então, tem
grandes correrias dos manipuladores com caixas, empilhações e
desempilhações. A gente ficou um ano ensaiando esse espetáculo.
Cortei tantas cenas que seria possível montar um segundo espetáculo
com o que ficou de fora porque atrasava o ritmo da história. Foi
mesmo um trabalho de edição de cinema. E é uma primeira aventura
do Sobrevento com outro tipo de público, que é o público
adolescente.
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falar de mim através da Nelly Laport, viu o Sangue bom, ficou
maravilhado e me convidou para fazer os bonecos. Acabei fazendo
a direção de arte, porque, obviamente, acabei tendo que definir os
cenários, os figurinos, enfim, toda a parte visual. Fiquei enfurnado
esses últimos seis meses, de janeiro a junho, só nisso. Está ficando
super bonito. Há umas duas semanas, vi algumas cenas que estão
sendo trabalhadas no computador. A gente inseriu e recriou as
pinturas do Debret, retirando as pessoas. Convidei um desenhista
para redesenhar as paisagens do Debret, para poder inserir nelas os
bonecos. Filmamos tudo em cromaqui, e foi uma dificuldade
violentíssima porque você tem que estar todo de azul, num fundo
azul, a iluminação tem que iluminar o boneco, mas tem que
iluminar os manipuladores uniformemente para não dar sombra.
Enfim, várias questões técnicas que a gente foi aprendendo na
hora. Foram seis meses de pesquisa para ver o que dava certo e o
que não dava. Filmamos em três dias e vai virar um documentário
de 25 minutos. Foi muito bacana, e a idéia é continuar com esse
Folhetim n.8, set-dez de 2000
projeto.
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Sobrevento: mudando os rumos do teatro de animação
Sandra: Eu acho que o teatro de animação no Brasil, está bem. O
legal é que aqui o teatro de animação está inserido dentro do teatro,
o crítico vai ver, os espetáculos ganham prêmios, e isso é uma coisa
que a gente tem que conservar. Isso não acontece, por exemplo, na
Europa. Temos grupos ótimos: o XPTO, o Pia Fraus, o Cidade Muda,
o Giramundo, o Contadores de Histórias, o Mamulengo Só-Riso.
Acho perigosa a separação entre o teatro de bonecos e o teatro.
Miguel: Nosso teatro de animação é bastante variado. Tem a vertente
urbana, a vertente popular, como o mamulengo, e os espetáculos
brasileiros são muito requintados, mais do que se espera lá fora.
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Sandra: Mas se a gente não conseguir, não faz e não tem que se
lamentar, nem sofrer por isso. Também acho que, antes de mais nada,
temos que fazer um novo espetáculo, adulto.
Miguel: Com os três juntos novamente.
Sandra: Uma coisa que eu particularmente gostaria de fazer é
trabalhar o objeto, não mais como uma coisa viva, mas como algo
que provém da morte. Uma coisa morta. Trabalhar o boneco assim,
como coisa morta mesmo. Tentar pesquisar umas coisas por aí,
especialmente as idéias de Tadeusz Kantor.
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