Sebenta Inês Carreiro

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FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA

1º SEMESTRE – 3º ANO
2018-2019

TEORIA DA LEI PENAL


PROFESSORA DOUTORA BÁRBARA SOUSA BRITO

INÊS FELDMANN MOTA PIMENTEL CARREIRO

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TEORIA DA LEI PENAL
Inês Feldmann Mota Pimentel Carreiro – 1º semestre 3º ano – 2018/2019

Noções gerais

Bibliografia adotada: Tomo I, Direito Penal, Professor Jorge de Figueiredo Dias


Avaliação: Exame final + teste no final do semestre

Nota de leitura: todos os artigos que são referidos sem especificação do diploma
normativo a que pertencem, são disposições do código penal.

Matéria

CONCEITOS FUNDAMENTAIS DE DIREITO PENAL


O que é o direito penal?
A expressão “direito penal” pode surgir para se referir a um ramo do direito e, nesse
caso, o direito penal pode ser encarado como conjuntos de normas que regula o
comportamento humano.
Contudo, a expressão “direito penal” também pode surgir para se referir à ciência
que estuda esse ramo do direito e aí, direito penal coincide com a dogmática que
estuda este ramo do direito. Atualmente, aquilo a que se chamava “lei penal”, está
dividida entre “teoria da lei penal” e “teoria do crime”.
O que é o direito penal enquanto ramo do direito?
Para chegarmos ao que é o direito penal, importa responder à questão: quando é
que determinada norma jurídica pode ser considerada uma norma penal? Esta questão
tem relevância prática porque a partir do momento em que uma norma é considerada
de direito penal, vai estar sujeita a um regime próprio. Isto porque há determinadas
regras que só se aplicam às normas penais. Daí a importância prática do direito penal
enquanto ramo do direito.
Uma forma de esclarecer um conceito é partir dos casos nucleares que cabem
indubitavelmente nesse conceito, para depois analisar os casos periféricos. Assim
sendo, quais são as normas definitivamente penais? Normas penais são aquelas que
prescrevem uma certa consequência para quando se realize um determinado facto.
Sempre que houver uma norma com esta estrutura em que temos uma previsão que
define um crime e uma estatuição onde está a consequência jurídica da prática desse
crime, que em princípio será uma pena de prisão, não há dúvida que é uma norma penal.
Podemos considerar como exemplos o artigo 131º, homicídio, e artigo 203º, furto.

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Características das normas penais
Desta forma, podemos concluir que os elementos identificadores de uma norma
penal são dois: crime e pena. E é provavelmente por causa destes dois elementos serem
centrais que muitas vezes associamos o direito penal ao direito criminal. A verdade é
que são autênticos sinónimos e a sua diferenciação é uma discussão sem interesse.
Desta estrutura podemos retirar que na norma penal temos sempre um agente
(quem), uma ação (em sentido amplo, abarcando tanto a ação em sentido estrito,
atividade, como a inação, omissão), um ofendido (outrem, outra pessoa), a pena e, por
fim, um elemento que está incumbido de punir: o Estado.
Importa ainda perceber as relações que existem entre estes elementos. Desde logo
temos sempre duas ações: o crime e a punição. Também podemos retirar que numa
norma tipicamente penal temos obrigatoriamente dois sujeitos: o agente (não há crime
sem alguém que o pratique) e o Estado (que vai aplicar a pena). Em direito penal entra
também a tentativa de crime, pelo que não podemos dizer que a existência de ofendido
seja obrigatória.
A norma penal ao estabelecer uma pena está a descrever uma das relações possíveis
entre o indivíduo e a sociedade, corporizada no Estado. Por isso mesmo, podemos
concluir que a norma penal é uma norma que descreve um dos momentos da relação
do individuo com o Estado provocado pela prática de um crime e que visa a realização
de um determinado fim por parte desse mesmo Estado.
Destas conclusões, retiramos que para conseguirmos perceber o conceito da norma
penal, temos que ter em conta as várias teorias do Estado: quando é que o Estado sente
necessidade de atuar perante o agente que praticou um crime? Ora, se temos em conta
a relação entre o Estado e o indivíduo, vamos constatar que essa relação foi variando ao
longo do tempo e por isso mesmo, em última análise, para nós sabermos a essência do
direito criminal, temos que tratar essa essência como um problema filosófico que vai
para além do direito penal, vai para além do direito positivo.
Conceito material e conceito formal de crime: introdução
Só sabemos o que é o direito penal ou quando uma norma é penal se tivermos em
conta os conceitos prévios a essa mesma norma. Para avaliar se é uma norma penal não
interessa apenas a sua existência como norma penal, é preciso averiguar se aquele
comportamento merece ser considerado crime com aquela consequência. Daí que seja
um conceito pré-jurídico.
Quer isto dizer que só conhecendo o conceito material de crime é que sabemos se
a norma deve ser ou não considerada penal e o mesmo se aplica às penas. Mais do que
perceber se é uma pena de prisão, interessa saber se aquela consequência visa alcançar
as finalidades que devem prevalecer em direito penal. E aí, só nesse caso, teremos uma
norma que deva caber no direito penal.
Porque é que isto vai ajudar a perceber o direito penal? Estas normas penais, com a
estrutura que acabamos de ver, estão previstas na parte especial do Código Penal. Este,
por sua vez, está dividido em parte geral e parte especial.

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Na parte especial estão previstos uma série de crimes específicos, como os crimes
contra a vida, contra a honra, contra a liberdade sexual. Sobre estas normas que têm
por objeto a definição dos crimes, não há dúvidas de que são normas de direito penal,
mas existem outros tipos de normas que não têm esta estrutura.
Na parte geral, por sua vez, são definidos os pressupostos da aplicação da lei penal,
os elementos constitutivos do conceito de crime e as consequências gerais que da
realização de um crime, total ou parcial, derivam: as penas e as medidas de segurança.
Olhemos agora para o artigo 10º do código penal onde se lê no seu nº1: “Quando
um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a ação
adequada a produzi-lo como a omissão de ação adequada a evitá-lo, salvo se outra for
a intenção da lei”.
Um dos princípios fundamentais do direito penal é o princípio da legalidade que
estabelece que não há crime nem pena sem lei. Significa isto que tudo o que possa ser
considerado crime tem de estar previsto na lei, por uma questão de segurança jurídica.
Se é assim, o nosso legislador teve de criar uma norma na parte geral com o conteúdo
supracitado, de forma a abranger a ação e a omissão, caso contrário apenas poderia
punir a ação.
Será esta uma norma penal ou não? Analisando a sua estrutura, constatamos que
não cumpre os requisitos que vimos, já que não tem uma previsão e uma estatuição.
Contudo, esta norma vai ajudar a orientar os conceitos daquelas outras. Este tipo de
normas que fazem parte da parte geral, por ajudarem a delimitar o âmbito de
aplicação das normas tipicamente penais, são também elas normas penais.
Já sabemos que, de acordo com o conceito material, é crime tudo aquilo que o
legislador como tal. Resta-nos, então, atender ao conceito formal de crime mediante a
descrição dos seus elementos essenciais. Esta segunda definição, agora formal, diz-nos
que é crime tudo aquilo que o legislador considerar legitimamente condenável. Por
outras palavras, crime é definido como uma ação típica, ilícita, culposa e punível.
Assim, para ser crime, temos, em primeiro lugar, de determinar se houve a prática
de uma ação. Depois temos de averiguar se aquela ação cabe num tipo legal de crime.
Se couber, temos uma ação típica. A seguir interessa saber se é ilícita, já que pode ser
típica, mas não ilícita: A dispara sobre B, B morre. Há uma ação que é típica, mas vamos
imaginar que A disparou sobre B apenas porque B estava pronto a disparar. Nesse caso,
apesar de A ter preenchido a previsão, ter praticado uma ação típica, ela não é ilícita já
que foi praticada em legítima defesa, havendo, assim, uma causa de exclusão da ilicitude
da sua ação.
No caso inverso, em que temos uma ação típica e ilícita, o próximo passo é saber se
é também culposa. A culpa é um juízo de desvalor que resulta da relação do indivíduo
com o direito, avaliando essa relação. A culpa pressupõe que se possa fazer àquele
sujeito um juízo de censura porque ele podia ter-se motivado pelo direito e não o fez.
Como vamos ver, para haver culpa, é necessário que o sujeito tenha capacidade de
culpa, o que não acontece com todas as pessoas, caso dos menores de 7 anos.

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Quem tem capacidade de culpa é imputável e quem não tem é inimputável. Um
exemplo é o da inimputabilidade em razão de anomalia psíquica, previsto no artigo 20º.
Como o inimputável não é capaz de culpa, não pratica um crime, já que falha o requisito
de a ação ser culposa.
O que acontece então quando alguém inimputável lesa um bem jurídico? Não se
aplica uma pena de prisão porque pressupõe imputabilidade, mas aplica-se outra
sanção: medida de segurança.
A dúvida que se coloca é: nestes casos em que se aplica uma medida de segurança
em vez de pena de prisão, estamos perante normas penais? A doutrina diverge, mas a
corrente é dizer que sim. Apesar de não aplicarmos uma pena, típica consequência de
uma norma penal, a função da medida de segurança é similar à função da pena de
prisão. Isto é, em última análise o objetivo é proteger bens essenciais à vida em
sociedade e, portanto, ainda estamos a regular uma relação entre indivíduo e o Estado
que se pode considerar dentro do direito penal.
Direito penal nuclear ou clássico e Direito penal secundário ou acessório
Ainda a propósito da noção de direito penal, importa distinguir o direito penal
nuclear do direito penal secundário.
O direito nuclear, primário ou clássico corresponde ao direito penal que está na
parte especial do código penal e onde são postos em causa os tais bens jurídicos
essenciais como a vida, a honra ou a propriedade.
Contudo, fruto da sociedade se risco em que vivemos, tem-se vindo a desenvolver
cada vez mais o chamado direito penal secundário ou acessório. Tem esta
denominação, primeiro, porque não vem no código penal, constando em legislação
avulsa, e depois, porque com esse direito penal já não se visa salvaguardar os tais bens
jurídicos essenciais, mas antes bens relacionados com a atividade económica e
financeira do Estado.
Outras formas de definir o Direito Penal
Outra forma de esclarecer um conceito é, como já foi dito, ver a periferia deste
conceito e ver as fronteiras que essa periferia faz para determinar as características
diferenciais entre este e os outros ramos do direito.
Desde logo, o direito penal é um direito sancionatório, ou seja, prevê sanções para
a prática de determinados factos. Assim o são também outros ramos do direito como o
administrativo ou o civil. Contudo, a distinção relativamente a estes é bastante simples.
A base da sanção no direito civil não é o crime, mas antes o ilícito civil. Só haverá ilícito
penal quando estiverem em causa os tais bens jurídicos essenciais e/ou indispensáveis
à vida social. Aqui temos o direito sancionatório penal.
O ramo do direito que é deveras difícil de distinguir do direito penal é o chamado
direito da mera ordenação social ou direito das contraordenações. Os exemplos mais
óbvios são as contraordenações rodoviárias, mas cada vez mais têm aparecido
contraordenações no âmbito da atividade financeira e económica do Estado ou as
contraordenações ambientais.

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Direito penal c. Direito de mera ordenação social/ das contraordenações
Vamos desenvolver este ramo devido à sua proximidade com o direito penal. A
legislação que regula o direito de mera ordenação social vem essencialmente prevista
no DL 433/82, de 27 de outubro. O Art.º 1 nº1 deste diploma estipula que “constitui
contraordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se
comine uma coima”.
Contudo, tendo-se alargado o número de infrações da área económica (mercado de
valores imobiliários ou da concorrência), atualmente, surgiram várias leis quadros
setoriais que regulam as contraordenações. Importa aqui destacar a lei 50/2006 de 29
de agosto, que é a lei quadro para as contraordenações ambientais, e ainda a lei 9/2013
de 28 de janeiro, para o setor energético.
Face ao regime das contraordenações, o direito penal e o direito processual penal
aparecem como direito complementar ou subsidiário. Quer isto dizer que, só se não
houver no regime das contraordenações uma norma que regule a situação do caso
concreto é que vamos recorrer ao direito penal e ao direito processual penal.
Como distinguir estes dois ramos do direito?
Em termos formais, a contraordenação distingue-se do crime porque a natureza das
consequências jurídicas é diferente. Enquanto que a um crime se aplica uma pena ou
uma medida de segurança, vamos aplicar à contraordenação uma coima.
Neste sentido, é fundamental não confundir o conceito de coima com multa. Na
parte especial do código penal há vários crimes que são puníveis com pena de prisão ou
pena de multa. A diferença entre esta última sanção e a coima é que, caso não seja
cumprida, a multa vai converter-se em pena de prisão, de acordo com o previsto no
artigo 49º, enquanto que a coima nunca poderá ser assim convertida.
Contudo, as distinções formais não são suficientes já que nos interessa avaliar se
quando o legislador estabeleceu uma coima para certo comportamento o fez
corretamente. Para isso temos de perceber quando é que temos, materialmente, um
crime ou uma contraordenação.
Então, em termos materiais, a diferença que existe nas sanções deve-se ao facto de
estas terem um fundamento diferente e por isso temos de avançar para o conceito
material de contraordenação. O que é que tem de acontecer para um comportamento
ser considerado contraordenação e não crime? Esta discussão existe há muito tempo e
há três posições principais.
 Temos os autores que defendem um critério quantitativo. A distinção deve ser
feita quantitativamente, estando a diferença na gravidade do facto.
 Há outra parte da doutrina que considera como distintivo o critério qualitativo,
dependendo da natureza do facto para distinguir o crime da contraordenação.
 Por fim, outra parte da doutrina adota um critério misto segundo o qual a
diferença será qualitativa ou quantitativa consoante o termo de comparação.
Isto é, se estivermos perante direito penal nuclear a diferença será qualitativa,
já se for direito penal secundário, a diferença será quantitativa.

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 Critério qualitativo
A doutrina maioritária portuguesa defende uma diferença qualitativa entre crime
e contraordenação. Dentro desta doutrina o critério adotado varia. Isto porque, apesar
de defenderem uma diferença qualitativa, nem todos adotam o mesmo critério.
o Professor Jorge Figueiredo Dias
O Professor Jorge de Figueiredo Dias considera que o crime se distingue da
contraordenação de acordo com um critério qualitativo, segundo o qual não devem ser
abrangidas pelo direito penal condutas cuja relevância ético-social é consequência das
normas que as proíbem. Recorrendo às palavras do próprio, “existem na verdade
condutas às quais, antes e independentemente do desvalor da ilicitude, corresponde, e
condutas às quais não corresponde um mais amplo desvalor moral, cultural ou social. A
conduta, independentemente da sua proibição legal, é no primeiro caso axiológico-
socialmente relevante, no segundo caso axiológico-socialmente neutra.”
Deste modo, segundo o autor, só deve caber no direito contraordenações as
condutas cuja relevância ético-social é a consequência das normas que as proíbem. Quer
isto dizer que essas condutas não vão atingir bens jurídicos que já existam
anteriormente às normas. O que importa saber é: a conduta passou a ter uma
relevância ético-social ou se já era previamente uma conduta negativa?
Se a conduta em causa já era uma conduta negativa e relevante do ponto de vista
axiológico-social, então fica inserida no âmbito do direito penal. Se, pelo contrário, a
conduta é neutra do ponto de vista axiológico-social e apenas passa a ser sancionada
e desvalorizada pela norma jurídica, então fica abrangida pelo âmbito do direito de
mera ordenação social.
Neste âmbito, Figueiredo Dias recorre ao exemplo da proibição de conduzir sobre o
efeito de álcool. O artigo 81º do código de estrada estipula esta proibição e quem a
infringir é sancionado com coima no valor x. Formalmente, não temos dúvidas de que
estamos perante uma contraordenação, visto que a consequência é uma coima. Facto é
que depois temos o artigo 292º do código penal que nos indica que se a taxa de
alcoolemia for igual ou superior a 1,2 g/l, o agente já será punido com pena de prisão
ou pena de multa.
Para o professor Figueiredo Dias, isto significa que só a partir de 1,2 g/l de álcool no
sangue é que a conduta se torna ético-socialmente relevante e passa a constituir
substrato suscetível de a ele se ligar a respetiva criminalização, atento o salto
“qualitativo” que naquele limite sofre a perigosidade social da conduta e a sua
censurabilidade ética, independentemente de qualquer juízo jurídico de ilicitude.
o Professor Américo Taipa de Carvalho
Este professor discorda do anterior, uma vez que defende que também as
contraordenações tratam de comportamentos ético-socialmente desvaliosos, com uma
carga valorativa por si só. Porém, introduz outro critério qualitativo, dizendo que o que
permite distinguir é o tipo de bens jurídicos protegidos por um e por outro direito.

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Assim, o direito penal vai proteger os bens jurídicos pertencentes à estrutura
axiológica fundamental da vida comunitária, ou seja, bens jurídicos fundamentais à
vida em comunidade. Enquanto que o direito da mera ordenação social protegerá
também bens jurídicos, mas que não integram essa estrutura fundamental da vida
comunitária. Apesar disso, como não deixam de proteger bens jurídicos, continuam a
ser condutas ética-socialmente relevantes.
o Professor Frederico da Costa Pinto
Ao contrário do que nos diz o professor Américo Taipa de Carvalho, o professor
Frederico da Costa Pinto considera que o ilícito da mera ordenação social, ao contrário
do ilícito penal, não é socialmente reconhecível e só passa a ser reconhecido se for
visto na perspetiva de um agente que violou um dever ao qual estava adstrito.
Assim, o que caracteriza o ilícito de mera ordenação social é o facto de este derivar
da violação de um dever jurídico a que o agente estava adstrito. Já o direito penal não
trata necessariamente da violação de deveres jurídicos, mas antes de bens jurídicos.
o Fernanda Palma
Esta professora também defende um critério tendencialmente qualitativo e
enumera uma série de qualidades que uma conduta deve revestir para ser considerada
contraordenação. São elas: uma conduta com um desvalor ético-prévio menor; tem de
haver um menor desvalor da ação que fundamenta o ilícito; menor importância na
ordem constitucional do objeto direto da ação; e, por fim, não pode ser necessária a
proteção penal.
 Critério quantitativo
o Professora Conceição Valdágua
Para esta professora, a distinção deve ser feita com base num princípio fundamental
de direito penal: princípio da subsidiariedade do direito penal. O direito penal só deve
atuar se for indispensável para a salvaguarda de bens jurídicos fundamentais. Significa
isto que o direito penal é o último recurso do Estado que só deve recorrer a este ramo,
quando mais nada conseguir proteger determinado bem jurídico.
Com base neste princípio vamos distinguir a contraordenação do crime em função
da gravidade do ilícito que nos permite saber se é necessária ou não a intervenção do
direito penal. Este critério da gravidade do ilícito é defendido, na doutrina alemã, por
nomes como Stratenwerth e Schmiphauser.
 Critério Misto
Quanto ao critério misto, importa falar de Roxin e Jakobs, nomes sonantes da
doutrina alemã. Estes autores dizem que, por um lado, importa saber se o bem jurídico
é ou não fundamental, e aí o critério será qualitativo. Contudo, noutros casos, apesar
de o bem jurídico ser considerado fundamental, o que vai decidir a opção entre o direito
penal e o direito de mera ordenação social será a gravidade do ilícito, critério
quantitativo. Assim, a última palavra sobre a categorização do ato enquanto crime ou
contraordenação cabe ao critério quantitativo.

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o Professor Silva Dias
Na doutrina portuguesa, quem defende o critério misto é o Professor Silva Dias. Diz-
nos este professor que se confrontarmos o crime de homicídio com a contraordenação
de estacionamento proibido, prevista no artigo 50º nº2 código da estrada, parece não
haver dúvidas que a diferença é qualitativa: no primeiro está em causa um bem jurídico
fundamental, a vida, enquanto que no segundo está em causa um mero dever jurídico
de ordenação social.
Porém, o problema agrava-se quando confrontamos a condução de veículo com a
taxa alcoolémia prevista no artigo 81º código estrada com a prevista no artigo 292º
código penal. Aqui o critério em destaque já será o critério quantitativo.
Assim, o professor Silva Dias defende um critério qualitativo no âmbito do direito
penal nuclear e um critério quantitativo no âmbito do direito penal secundário. A
professora Bárbara Sousa Brito considera esta a posição mais acertada, mas não
totalmente. Concorda que no âmbito do direito penal nuclear está em causa um bem
jurídico. Contudo, quando se passa para o direito penal secundário, a diferença é mais
difícil de estabelecer.
O professor Silva Dias diz que aí a diferença passa a ser quantitativa, mas o que é
que isto significa? Se a taxa de alcoolémia for inferior a 1,2 g/l é uma contraordenação,
mas se for igual ou superior a esse valor, já é crime. Qual é a diferença? Em termos
práticos é nula, mas há que estabelecer um limite. Assim, isto acaba por ser um critério
formal, no sentido é que é estabelecido pela lei. Contudo, na ótima da professora
Bárbara Sousa Brito, tem de ter por base um critério quantitativo para ter algum
fundamento.
A ideia por trás destas normas é, provavelmente, que a partir daquele limite, 1,2 g/l,
já passam a estar em causa bens jurídicos fundamentais e não apenas meras violações
de deveres jurídicos. O legislador deve ter presumido que a partir desse valor, a
probabilidade de lesão da vida humana seria maior.
Assim sendo, há que combinar o critério quantitativo com o qualitativo, porque um
por si só não é suficiente. Para decidir o qualitativo, para delimitar uma fronteira, temos
de recorrer ao quantitativo.
Conclusão
Apesar de todos estes critérios, continua a ser muito difícil fazer a distinção entre
direito penal e direito de mera ordenação social. É esta a razão pela qual tanto o Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem como o nosso Tribunal Constitucional têm vindo a
defender que deve ser a gravidade das sanções a definir a natureza do ilícito e não o
contrário. Significa isto que, para estes tribunais, é preciso olhar para a sanção e
perceber se esta pede as garantias do processo penal. Se o fizer, temos direito penal, se
não, teremos direito de mera ordenação social.
Contudo, a professora Bárbara Sousa Brito não concorda com esta opção,
considerando que deve ser feito ao contrário: não é natureza da pena, mas a natureza
do ilícito que deve marcar a diferença.

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Finalidades das penas
Para que serve ou deve servir a ameaça de uma pena? Porque razão devemos
sujeitar uma pessoa a uma restrição da sua liberdade durante anos? Que finalidades
legítimas pode ter o Estado para isso?
Uma das finalidades é a prevenção do crime: aplica-se uma pena para prevenir a
prática de um crime pela sociedade em geral. É a chamada prevenção em geral.
Quando se aplica uma coima, também se visa prevenir futuros ilícitos, mas além
dessa prevenção, a finalidade da coima muitas vezes também passa por difundir a
mensagem de que o infrator não vai beneficiar de vantagens patrimoniais e económicas
pelo seu comportamento. Muitas das contraordenações têm a ver com atividades
económicas e financeiras. Ora, ao aplicar coimas altíssimas, visa-se prevenir futuras
contraordenações, mas também assegurar que a vantagem patrimonial que possam ter
tido vem a ser anulada.
O regime jurídico geral das contraordenações está no já referido DL 433/82, de 27
de outubro, mas o processamento das contraordenações é da competência das
autoridades administrativas. Este ramo da ordenação social foi, em certo sentido, criado
para libertar os tribunais. Contudo, como essas sanções aplicadas por entidades
administrativas podem ser muito elevadas, há a possibilidade de o sujeito dessa coima
impugná-la junto do tribunal.
Importa acrescentar ainda que, dada a diversidade de contraordenações que
existem atualmente, há uma tendência distinguir entre as contraordenações
tradicionais ou menores das contraordenações modernas ou grandes. É por isso que
há quem diga que o regime punitivo e processual das contraordenações é um regime a
duas velocidades: para as menores temos um regime mais próximo do das
contraordenações propriamente dito e para as mais graves temos um regime mais
próximo do direito penal.
Sempre com a salvaguarda de que o direito penal e o direito processual penal são
considerados direitos subsidiários do direito das contraordenações.
Localização do direito penal do quadro da ordem jurídica
Direito penal enquanto Direito Público
Interessa agora localizar o direito penal no quadro da ordem jurídica. Ao tentar
situar o direito penal na ordem jurídica como um todo, há que dizer que é um ramo do
Direito Público. Esta inserção é facilmente depreendida pela adoção dos critérios
tradicionais: critério dos interesses e critério dos sujeitos.
De acordo com o critério dos sujeitos, nas normas de direito penal, o Estado atua
revestido do seu poder punitivo, estando numa posição superior à dos outros sujeitos,
razão pela qual se considera direito público.
Tendo em conta o critério dos interesses, como o objetivo central das normas penais
é a proteção de bens jurídicos fundamentais para dessa forma alcançar a paz e a
segurança jurídica, podemos dizer que estes fins são interesses gerais, públicos, e por
isso mesmo o direito penal faz parte do direito público.

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Não obstante, a complexidade e dimensão do direito penal fizeram com que este se
tornasse, de uma forma correta e irreversível, numa disciplina autónoma e
independente daquilo que é o direito público propriamente dito.
Direito penal e a sua relação com o Direito internacional
Sendo um ramo no direito público e no direito sancionatório, importa também
referir que o direito penal é essencialmente intraestadual, encontrando a sua a fonte
formal e orgânica na produção legislativa estatual bem como a sua aplicação por órgãos
nacionais. Contudo, cada vez mais tem ganho relevância em matéria penal o direito
internacional.
Existem, desde logo, múltiplas normas de direito internacional como a Declaração
Universal dos Direitos do Homem, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, entre
outras, de conteúdo jurídico-penal e de relevo indiscutíveis para a aplicação do direito
penal nacional.
A influência é evidente não só através destas normas, mas também dos cada vez
mais numerosos instrumentos do direito internacional em matéria penal que contêm
certas opções de política criminal que implicam a sujeição a essas opções por parte
dos Estados que as convencionaram. A título de exemplo, nós portugueses assinamos
a Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou
Degradantes, onde se conservam certas opções que implicam a obrigação de editar
normas internas que lhes deem corpo.
Por fim, existem alguns princípios de direito internacional geral ou comum que
podem servir como lei penal incriminadora, à luz do disposto no artigo 29º da CRP. A
verdade é que em todos estes casos, tanto as normas, como os princípios de direito
internacional penal vigoram na ordem jurídica portuguesa – ao lado ou mesmo acima
das leis ordinárias – não por si mesmos, mas em último termo por força da credencial
constante do artigo 8º da CRP.
O que surge é tentar saber se deve ou não existir um verdadeiro direito penal
europeu ou direito penal da União Europeia. Tendo em conta o estado atual da
integração europeia, a professora Bárbara Sousa Brito não acha que vá existir um direito
penal da UE com aplicação direta nos Estados membros e, portanto, o poder de criação
de normas penais continua a caber essencialmente ao Estados membros.
Apesar de o direito penal continuar a ser essencialmente estadual, são várias as
normas europeias que, indiretamente, influenciam a legislação penal portuguesa, daí
que se fale cada vez mais numa influência do direito comunitário da União Europeia no
direito estadual penal.
Uma outra forma de vermos esta influência é olhando para o Tratado de Amsterdão,
a partir do qual surgiu o objetivo de harmonização das legislações penais existentes nos
vários Estados Membros. Esta harmonização podia ocorrer, nomeadamente, através do
estabelecimento de regras mínimas em certos domínios.
Sobretudo ao nível do processo penal, já podemos falar num direito comunitário
processual penal relevante, do qual são exemplos a cooperação judiciária ou o mandato
de captura europeu. Isto porque os crimes são, cada vez mais, de carácter transnacional.

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Ainda a propósito da relação do nosso direito penal com o direito internacional, há
que referir os tribunais ad hoc criados, como o tribunal de Ruanda e a antiga Jugoslávia,
e o Tribunal Penal Internacional que, apesar de terem a sua competência limitada pelo
princípio da vinculação voluntária e o princípio da subsidiariedade, não deixam de ter
relevância no direito penal português.
DISTINÇÃO ENTRE CONCEITO MATERIAL E CONCEITO FORMAL DE CRIME
O conceito material de crime está atrás ou mesmo acima do conceito formal. É o
conceito material que vai dizer ao legislador quais as condutas que devem ser
consideradas como crime. Esta é desde logo a primeira distinção entre o conceito
formal e o conceito material de crime, já que é este último que corresponde à questão
de saber quais as qualidades que o comportamento humano deve revestir para o
legislador se encontre legitimado a considerar como crime.
Assim, o conceito material de crime surge como guia do direito a constituir porque
vai fornecer os critérios para certa conduta ser crime, mas também vai surgir como
padrão crítico do direito vigente. Isto é, com base no conceito material vamos averiguar
se o direito vigente considera corretamente um determinado comportamento como
crime. Logo, o conceito material de crime é guia do direito a constituir e padrão crítico
do que já existe. O legislador encontra-se legitimado a criminalizar certo
comportamento quando cumpre os critérios. Ao contrário do conceito formal, o
conceito material situa-se acima do direito penal legislado e, nesse sentido, é pré-legal.
Conceções de crime
 Conceção positivista legalista
Esta conceção defende que crime é tudo e só aquilo que o legislador considerar
como tal. Seria unicamente a circunstância de o legislador ter ameaçado a prática de
determinado facto com uma pena criminal que “transforma” aquele facto em
comportamento criminal. Desta forma, o conceito material de crime viria a
corresponder afinal ao conceito formal de crime.
Ora, não se pode definir crime através do direito existente. Esta conceção não serve
porque dá a resposta através do próprio conceito legal, enquanto que, como vimos, o
conceito material devia estar acima do formal.
Diz-nos o professor Figueiredo Dias, que esta conceção é inaceitável e inútil, tendo
mesmo sido afastada. Esta questão está diretamente ligada à legitimação material do
direito penal, ou seja, a questão de saber qual a fonte de onde promana a legitimidade
para considerar certos comportamentos humanos como crimes e aplicar aos infratores
sanções de espécie particular. Nos quadros desta conceção, esta questão passa sem
qualquer resposta, dado que nada fica a saber-se sobre quais as qualidades que o
comportamento deve assumir para que o legislador se encontre legitimado a submeter
a sua realização a sanções criminais.

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 Conceção positivista sociológica
Face às falhas da anterior, surge então outra conceção chamada de positivista
sociológica. Esta vem dizer que crime seria tudo aquilo que existisse na sociedade como
tal. Por outras palavras, rudo aquilo que à luz da realidade social fosse considerada
crime pertencia ao conceito de crime.
Surgem logo críticas e questões acerca desta tese: como é que averiguamos o que
existe da sociedade como crime? Qual sociedade? A maioria da sociedade? Uma parte?
Apesar de esta conceção já estar encaminhada para o lado certo, dando-nos um
conceito material prévio ao formal, falando-se pela primeira vez num conceito pré-
jurídico, o problema foi a indeterminabilidade do critério escolhido.
Esta conceção foi tentada pela primeira vez por Garofalo em 1885, que definia crime
como comportamento violador de sentimentos altruísticos fundamentais como a
piedade ou a probidade, sendo que a piedade constituiria o sentimento geral violado
pelos crimes contra as pessoas, enquanto que a probidade seria o sentimento violado
pelos crimes contra o património. Para o autor, esta definição de crime existia na
sociedade humana independentemente das circunstâncias e exigências duma dada
época ou conceção particular. Não obstante, este acaba por ser um conceito demasiado
indefinido e extenso, não podendo servir como critério ou padrão crítico do direito penal
existente.
Finalmente tínhamos um conceito de crime anterior ao conceito legal que poderia
servir de padrão crítico ao direito vigente. Mas também foi sujeita a algumas críticas já
que o facto de haver uma natural imprecisão nesta definição aliado ao facto de ser
demasiado extenso, dificultam a adoção desta conceção.
Não duvidamos que se alguém tem uma conduta socialmente mal-educada acarreta
consigo animosidade social. Contudo, é seguro que nem todo o comportamento
socialmente mal cotado deve ser considerado crime. É o caso da mentira que causa
danos sociais, mas, em princípio, não será crime.
 Conceção moral (ético)-social
Esta conceção vê o crime como comportamento violador de deveres morais sociais
elementares ou fundamentais, no sentido de regras éticas reconhecidas por todos.
O principal defensor desta conceção foi Welzel, um dos principais autores da escola
finalista do crime, que, em 1947, definia crime como todo o comportamento que atenta
contra valores ético-sociais da ação e, por isso, defendia que a função do direito penal,
mais do que tutelar bens jurídicos, seria proteger valores elementares da ação e da
atitude, contribuindo desta forma para a formação ética e cívica dos cidadãos.
A primeira crítica que é feita a esta conceção vem dizer que os valores que o direito
penal tutela não são tanto valores de ação, deveres ético-sociais, mas antes valores de
resultado. Por exemplo, com a norma que criminaliza o furto, mais do que proteger o
valor ético social da ação “não roubar”, o que se visa proteger é a propriedade, o bem
jurídico.

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Além disto, esta conceção corresponde a uma atitude enraizada no espírito da
generalidade das pessoas, para quem o direito penal constituiria a tradução, no mundo
terreno, das noções de pecado e de castigo, vigentes na ordem religiosa, ou de
imoralidade e de censura da consciência, vigentes na ordem moral.
Adotar esta conceção podia ter um efeito bastante negativo. Se a função do direito
penal fosse proteger valores ético-morais, conceber-se-ia que a função do direito penal
era tutelar a moral. Ora, numa sociedade democrática, onde o pluralismo moral deve
ser respeitado, o direito penal como ordem jurídica estrutural deve respeitar a liberdade
de consciência de cada um. Não é função do direito penal, nem primária, nem
secundária, tutelar a virtude ou a moral e, portanto, esta conceção deve ser afastada.
Prova de que esta conceção vigorava no nosso sistema e foi afastada é visível pelo
facto de só em 1995 se ter descriminalizado o adultério. A pornografia é outro exemplo,
sendo que até aquela data qualquer tipo de pornografia era punido. Finalmente, temos
o exemplo da prostituição, que agora é apenas crime quando praticada sob a figura do
“chulo”, ou lenocínio. Estas descriminalizações devem-se à libertação do direito penal
de tutelar a moral, apesar de ainda termo no nosso CP alguns vestígios desse tempo.
 Conceção funcional racional: a função da tutela subsidiária de bens jurídicos
dotados de dignidade penal (bens jurídico-penais)
Devido a toda esta controvérsia surge uma nova conceção, a conceção funcional
racional que tem largo apoio na doutrina atual. Como o próprio nome indica, o conceito
de crime deve ser encontrado na função que ele desempenha e na função última do
direito penal que, como vimos, é a proteção subsidiária dos bens jurídicos dotados de
dignidade penal (ou bens jurídico-penais).
Portanto, de acordo com esta conceção, só pode haver criminalização de uma
conduta se isso visar tutelar bens jurídicos fundamentais e se a intervenção penal se
revelar necessária e eficaz. Então, crime é uma conduta lesiva de determinado bem
jurídico digno de tutela parajurídica.
Conceito de bem jurídico
É importante realçar que a noção de bem jurídico não está ainda fechada, está em
construção. Significa isto que ainda é tema de discussão na doutrina. Contudo, já se
chegou a uma espécie de núcleo duro, ou essencial, do que é um bem jurídico. Importa,
por isso mesmo, estudar a evolução histórica por detrás deste conceito.
A primeira noção de bem jurídico foi apresentada em 1834 por Birnbaun, que
definiu bem jurídico como um interesse primordial do indivíduo na sociedade e deu
como exemplos a vida, o corpo, a liberdade e o património.
Posteriormente, com a chamada Escola jurídica sul-ocidental alemã ou Escola de
Baden, da qual destacamos Honig, surgiu em 1930 o conceito metodológico de bem
jurídico de raiz normativa, entre nós defendido pelo professor Eduardo Ferreira.
Segundo esta doutrina, o bem jurídico era uma forma abreviada de exprimir o sentido
e finalidade de um preceito legal ou, por outras palavras, bem jurídico era uma
expressão sintética do espírito da lei, da racio legis.

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Assim, de acordo com esta conceção deve-se ir buscar o conceito de bem jurídico à
finalidade da lei. Ora, este conceito não serve, deve ser afastado. Não serve porque a
função do conceito de bem jurídico é ajudar a criar um padrão crítico ao direito
constitutivo e para isso, o conceito terá de ser transcendente ao direito penal legislado,
o que aqui não acontece, dado que o conceito defendido por esta corrente, não precede
a lei, emana dela. Até porque, como vamos ver, nem sempre o fim da norma coincide
com o bem jurídico que esta visa tutelar.
Atualmente têm sido apresentadas fundamentalmente duas respostas ou duas
definições de bens jurídicos:
 Doutrina de Jakobs e Stratenwerth. De acordo com estes autores, o conceito de
bem jurídico deve ser retirado do sistema social de uma dada comunidade.
Mais uma vez, nem tudo o que causa dano social pode ser considerado crime. Além
do mais, este acaba por ser um conceito pouco preciso, já que não é nada fácil concluir
o que é um bem jurídico no seio de uma sociedade.
 Doutrina de Roxin, Hassemer e, entre nós, Figueiredo Dias. Esta parte da
doutrina vem dizer que é no sistema social que se deve procurar a definição de
bem jurídico, mas esses bens do sistema social têm de se
transformar/concretizar em bens jurídicos dignos de tutela. Tal só ocorrerá
quando estes forem consagrados na ordem jurídica constitucional.
Desta forma, o conceito de bem jurídico emana de uma ordem jurídica anterior ao
direito penal legislado: ordem jurídico-constitucional. No fundo, a forma de concretizar
e definir os bens do sistema social que o direito penal deve salvaguardar é recorrer à
ordem jurídica constitucional. Daí que o conceito de bem jurídico tenha de ser dedutível.
Este conceito parece ter apoio na nossa ordem jurídica constitucional, desde logo
pelo artigo 3º nº2 CRP que nos diz que toda a atividade do Estado está submissa à
Constituição, sendo esta quem fornece os valores fundamentais da ordem jurídica
através dos direitos liberdades e garantias.
Tendo em conta todos estes dados que esta conceção defende, já podemos perceber
a definição de bem jurídico dada por Roxin: “bens jurídicos como entes individualizáveis
num plano ôntico e/ou num plano axiológico, ou objetivos que são úteis à livre
expansão da personalidade dos indivíduos no âmbito do sistema social global
orientado para essa livre expansão, ou ao funcionamento do próprio sistema.” A esta
definição a professora recorre a Figueiredo Dias para acrescentar “e por isso
reconhecidos como valiosos pela ordem jurídica constitucional”.
Como já se disse, a noção de bem jurídico penal tem que ser dedutível da
constituição. Assim sendo, esta é a única limitação imposta ao legislador de um estado
de direito. Contudo, apesar de existir uma ligação entre o direito penal e a ordem
jurídica constitucional, a relação entre estas duas ordens jurídicas é uma relação de
mútua referência e não de identidade.

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Significa isto que todo o bem jurídico tem de encontrar referência na ordem jurídica
constitucional, mas nem todo o valor constitucional é um bem jurídico penalmente
relevante, o que é facilmente compreendido tendo em conta dois princípios do direito
penal: princípio necessidade e princípio da subsidiariedade.
Outra nota importante é que, tendo em conta a noção de bem jurídico, podemos
fazer uma distinção entre direito penal primário e o direito penal secundário:
 No direito penal primário, que se encontra essencialmente na parte especial do
código penal, incluem-se crimes que colidem com bens jurídicos constitucionais
relacionados com direitos, liberdades e garantias pessoais.
 Já no direito penal secundário, contido em leis avulsas não integradas no código
penal, entram os crimes que se relacionam com direitos sociais ligados à
organização económica e ao ambiente.
Esta distinção tem que ver com as duas zonas que o estado tem de tutelar: a esfera
pessoal do Homem da qual decorrem bens jurídicos pessoais e, por outro lado, a esfera
de atuação social do Homem como membro da comunidade. Neste segundo caso, essa
esfera será constituída por direitos sociais com carácter económico, cultural ou social.
É por essa razão que se fala numa visão dualista dos bens jurídicos. Dentro desta
visão dualista temos uma vertente que se pode designar de visão pessoal dualista que
entende que na nossa ordem jurídica constitucional, o Estado tem como função criar ar
condições para a auto realização da pessoa. E para isso precisa de, por um lado, proteger
a esfera da pessoa como ser dotado de autonomia ética e, por outro, proteger a esfera
de atuação da pessoa como ser social no seio de uma comunidade. Desta forma, é uma
visão pessoal dualista porque parte do primado da pessoa, já que tudo visto da
perspetiva da pessoa.
A esta visão dualista, opõem-se as chamadas teorias monistas. Por sua vez, as
teorias monistas dividem-se entre teorias sociais monistas, que entendem que os
próprios bens jurídicos individuais são atribuições jurídicas derivadas das funções do
Estado, e teorias monistas individuais que vêm os bens na ótica da pessoa, como sendo
importantes instrumentos de auto realização da pessoa.
Intervenção penal necessária e eficaz (ainda no conceito material de crime)
Para haver crime, além de uma conduta lesiva de um dado bem jurídico, é necessário
que se demonstre que a intervenção penal tanto é necessária, como é eficaz.
Quando é que é necessária? A intervenção penal é necessária quando se revela
indispensável para criar as condições mínimas essenciais à vida em sociedade. Esta
ideia está consagrada no artigo 18º nº2 CRP que contém o princípio da necessidade da
pena, ou por outras palavras, princípio da subsidiariedade do direito penal, ou ainda,
princípio da intervenção mínima do direito penal.
Este princípio vem dizer que só se podem restringir direitos fundamentais,
nomeadamente o direito à liberdade, quando tal se demonstre indispensável para
salvaguardar outros bens jurídicos.

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A apreciação da necessidade de intervenção de direito penal é feita,
fundamentalmente, por exclusão de partes. Portanto, importa em primeiro lugar
averiguar se outros meios de controlo social bastam para garantir a prevenção daquele
comportamento de forma adequada. Se se demonstrar que outro ramo do direito
consegue prevenir a atuação daquele comportamento, o direito penal não pode atuar.
Outro princípio que está interligado a este é o princípio da proporcionalidade que,
em sentido amplo, inclui o princípio da proibição do excesso que, por sua vez, redunda
neste.
Para além de ter de se demonstrar que a intervenção do direito penal é necessária,
é preciso demonstrar que ela é também eficaz. Se se provar que a intervenção penal
traz mais consequências negativas do que positivas, ou se se demonstrar que a
intervenção penal não impede ou não previne o comportamento, então é porque não é
eficaz. Se não é eficaz não é necessária.
Crítica ao conceito material de crime
Por fim, ainda sobre o conceito material de crime, há que referir uma crítica que lhe
é feita, embora a professora Bárbara Sousa Brito não concorde com ela. A tese é de que
a função do Estado é não só a de assegurar bens jurídicos, mas também a de promover
a realização das políticas do Estado e, numa sociedade contemporânea que é uma
sociedade de risco, isto faz com que o direito penal cada vez mais tenha essa tal função
promocional da realização da política do Estado.
A professora considera que isto deve ser afastado por duas razões. A primeira tem
que ver com o pressuposto desta teoria: a ideia de caracterizar a sociedade como sendo
de risco por contraposição a uma anterior sociedade de segurança é muito contestável.
A sociedade sempre foi uma sociedade de risco. Por isso, não parece que essa premissa
seja verdadeira, ao ponto de dizer que o direito penal não tem como função principal
proteger a vida comunitária. Podemos é considerar que ele deve ajudar o Estado a
prosseguir esse fim.
Além disso, em segundo lugar, existe uma figura que ajuda a antecipar a lesão de
bens jurídicos, a tentativa. Isto significa que o legislador não prevê ou o Estado não
intervém apenas quando há lesão de um bem, age ainda quando há uma tentativa de
lesão. Entram aqui os chamados crimes de perigo em que alguém pratica uma atividade
abstratamente perigosa e vai ser punido, mesmo sem gerar qualquer dano.
Desta noção de direito penal relacionado com bens jurídicos, podemos concluir que
o nosso legislador está vinculado a punir comportamentos que acarretem a lesão ou
o perigo de lesão de bens jurídicos de terceiros que só podem ser tutelados adequada
e eficazmente por meios penais. Não entram aqui então as condutas que lesem valores
morais que não traduzam bens jurídicos dignos de tutela.

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ALGUNS TIPOS DE CRIME NO NOSSO DIREITO PENAL: AULA DE DEBATE
Eutanásia
No nosso ordenamento jurídico, não existe a figura penal da “eutanásia”. A palavra
eutanásia abarca um conjunto de conceitos e situações, sendo que nem todas entram
no campo penal.
Apesar disso, há dois tipos penais que estão relacionados com a eutanásia: o
homicídio a pedido da vítima, previsto no artigo 134º, e o incitamento ou ajuda ao
suicídio, presente no artigo 135º. O suicídio não é punido, uma vez que o que está em
causa é um bem jurídico próprio e não um bem alheio. Contudo, já será punido aquele
que ajudar ao suicídio ou mesmo matar a vítima a seu pedido. O problema está em
distinguir estas duas figuras.
Homicídio a pedido da vítima c. Ajuda ao suicídio
O homicídio a pedido começa quando, em vez de uma mera ajuda, temos o
comportamento típico que parte do agente. Quer isto dizer que um comportamento é
entregar a arma, outro diferente é disparar essa arma. O que importa é determinar
quem foi responsável pelo último ato antes da morte. Ora, isto parece simples em
termos teóricos, mas há casos práticos que são difíceis de decidir.
Um caso que é exemplo disso mesmo é o caso Gisela em que dois jovens tentaram
um duplo suicídio na Alemanha. Dois jovens, um rapaz e uma rapariga, fecharam-se no
carro para inalar uma certa substância e morrer. Aconteceu que ela morreu, mas ele
sobreviveu. A dúvida que se colocou foi como punir o sobrevivente, se por homicídio a
pedido ou se por ajuda ao suicídio. Esta situação gerou uma grande discussão na
doutrina, mas a jurisprudência optou pela condenação do rapaz por homicídio a pedido.
Ora, se fosse seguido o critério que vimos sobre quem foi o responsável pelo último
ato antes da morte, não seria esta a conclusão. Isto porque a rapariga podia, a qualquer
altura, sair do veículo, pelo que, tendo o domínio até ao fim, podemos dizer que o último
ato foi dela. Nesta linha de ideias, o rapaz seria apenas punido por ajuda ao suicídio. Não
tendo sido esta a solução encontrada pelo tribunal, percebemos que este critério nem
sempre é seguido.
Tipos de ajuda à morte
Quando se fala em ajuda à morte, pensa-se normalmente em ajuda à morte por
parte de um terceiro. Contudo, há vários tipos de ajuda e só continua a ser punido.
 Ajuda à morte indireta
Na ajuda à morte indireta, aplica-se à pessoa um tratamento medicamente
requerido e esse tratamento visa afastar e aliviar a dor, mas ao mesmo tempo encurta
a vida. Esta ajuda à morte indireta é uma figura que é afastada da discussão penal, já
que não é nem deve ser punida.

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 Ajuda à morte passiva
São casos em que há uma omissão ou interrupção do tratamento a uma pessoa que
se encontre doente e que já iniciou o processo morte por sofrer de uma doença
incurável. A maior parte da doutrina considera que estes casos não cabem na figura do
homicídio a pedido. Importa aqui frisar que se cessa o tratamento por pedido do
paciente.
 Ajuda à morte ativa
O único comportamento que continua a ser punido por homicídio a pedido, e a sua
punição está a ser discutida, é a situação em que a pessoa tem uma doença curável, mas
está em sofrimento e a única forma de acabar com o seu sofrimento físico e mental é
administrar-lhe uma substância que provoca a morte. Isto partindo do princípio que a
pessoa não pode obter a substância nem administrá-la sozinha, caso contrário seria
suicídio ou ajuda ao suicídio. Esta é a figura que mais comummente conhecemos como
eutanásia.
Esta discussão, tal como está a ser feita, já é fruto de uma evolução da nossa
legislação: o testamento vital, através do qual a pessoa pode previamente dizer se quer
ou não quer tratamentos em determinadas situações. Ou seja, a pessoa pode instruir o
médico para que, chegando a um dado momento da sua doença, este desligue a
máquina ou que nem sequer lhe liguem à máquina.
Quando é que se respeita a dignidade da pessoa humana? Quando se aceita o pedido
de ajuda das pessoas nessas situações ou quando preservamos o bem maior que é a
vida? Esta é a questão fundamental, cuja resposta pode por um ponto final a toda a
discussão em torno destas figuras.
Crime de Bigamia
O artigo 247º sob a epigrafe bigamia, no capítulo dos crimes contra a família, prevê
a punição de até dois anos de prisão ou multa até 240 dias, para quem, sendo casado,
contrair outro casamento ou contrair casamento com pessoa casada. É difícil perceber
qual é o bem jurídico que está aqui a ser protegido.
Este artigo já esteve no capítulo de “crimes contra a fé pública”, sendo visto como
uma espécie de traição à confiança das pessoas. É difícil conceber a bigamia como sendo
um crime. O Estado deve sim ter uma intervenção cívica, mas não em direito penal. A
professora Bárbara Sousa Brito acha que “a criminalização da bigamia é ridícula”.
Aborto
Até 1994, o aborto era proibido em Portugal em todas as situações. Com a lei nº6/94
veio a permitir-se a interrupção voluntária da gravidez nos casos de perigo de vida da
mulher, perigo de lesão grave e duradoura para a saúde física e psíquica da mulher,
quando existisse má formação do feto ou quando a gravidez resultasse de uma violação.
Em 1997 alargou-se o prazo de má formação fetal e, atualmente, o prazo neste caso
é de 24 semanas. Em 2007 foi despenalizado o aborto até à 10ª semana, como se lê no
artigo 142 nº1 e).

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O bem jurídico que se pretende proteger é a vida intrauterina. Se fosse a vida
humana, a interrupção da gravidez teria de ser punida como homicídio. Será que este
bem jurídico, vida humana, existe até à 10ª semana? Cientificamente está provado que
não está formado o sistema nervoso até essa data, logo não há capacidade de sentir
pelo feto. Daí que a doutrina ponha em causa a existência sequer de um bem jurídico.
Partindo do pressuposto de que há efetivamente um bem jurídico, a grande
discussão é a sobre a necessidade e a eficácia: é necessária e eficaz a intervenção do
direito penal? Os últimos dados estatísticos mostram que houve uma diminuição dos
abortos desde a sua descriminalização. Além disso, a penalização tinha muitas
consequências graves de saúde, principalmente devido a abortos clandestinos e
problemas de higiene. A lei estava constantemente a ser violada e as mulheres corriam
demasiados riscos. A professora Bárbara Sousa Brito tem muitas dúvidas acerca da
necessidade desta lei.
O que temos atualmente é uma cultura de responsabilização em vez de uma
penalização da interrupção da gravidez. A mulher que quer interromper a gravidez tem
de justificar o porquê e tem de estar ciente das possíveis consequências que daí advêm.
Lenocínio
A prostituição já não é considerada um crime. Contudo, o lenocínio é ainda hoje uma
figura penalmente prevista. No artigo 169º nº1 lemos que que quem, profissionalmente
ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outras
pessoas de prostituição é punido com pena de prisão entre 6 meses a 5 anos.
Parte da doutrina considera que esta conduta deve ser criminalizada, mas como um
crime-perigo abstrato. Isto significa que não é preciso demonstrar que houve uma
situação de aproveitamento de uma condição de inferioridade da pessoa que se
prostitui, bastando que o agente fomente a atividade para que essa conduta seja
abstratamente considerada como perigosa.
Por outro lado, a outra parte da doutrina considera que não há justificação para
incluir certas situações neste tipo de crime. Imaginemos que alguém cria um hostel onde
se exerce esse tipo de profissão e quem trabalha lá, fá-lo porque quer, não é obrigado.
Esta parte da doutrina considera que esta pode ser uma vantagem as próprias pessoas
que se prostituem, em termos de segurança, saúde e higiene. Há mesmo quem compare
o empresário que faz este negócio com o empresário que negoceia futebolistas. Assim,
estes autores consideram que só devem se penalizados os casos onde há uma relação
de dependência, de trabalho forçado.
Na Europa esta questão da prostituição tem sido muito debatida e em certos países,
nomeadamente na Noruega e na França, está a ser discutido novamente a sua punição,
não para quem a pratica, mas para quem a utiliza. Posto isto, o que importa evidenciar
aqui é que em Portugal só quem fomenta e organiza a atividade é que é punido, por
crime de lenocínio previsto no artigo 169º como vimos.
O lenocínio não pode ser considerado um crime sexual porque não está em causa a
autodeterminação ou a liberdade sexual da pessoa. Pelo que, quando a pessoa se
prostitui porque quer, fica difícil dizer qual é o bem jurídico que merece proteção penal.

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Análise do acórdão 144/2004
A arguida recorreu para a relação com o argumento de que o artigo 169º é
inconstitucional, por limitar a liberdade da pessoa de escolher o seu trabalho. Importa
aqui olhar para a fundamentação da professora Fernanda Palma.
Esta professora considera que o crime em causa implica sempre uma exploração e
carência social de uma pessoa que está em situação desfavorável perante aquele que a
explora e aproveita economicamente da sua situação. Estando em causa, sempre, a
dignidade da pessoa humana que é usada como um instrumento para um fim.
Por sua vez, o professor Figueiredo Dias discorda, considerando que este crime é um
crime sem vítima e que o que está em causa é apenas uma opção do legislador que visa
proteger os tais valores moralistas por via do direito penal. Isto porque ele acha que não
se pode dizer que a verificação desta situação coloca, sem mais, a pessoa numa situação
de dependência, de exploração. Por exemplo se uma pessoa muito rica gosta de se
prostituir, a fundamentação da professora Fernanda Palma já será questionável.
Análise do acórdão 396/2007
Para a professora Maria João Antunes, a lei nº 95/98 alterou a estrutura típica do
crime do lenocínio. Ela relaciona o princípio da necessidade com a existência ou não de
bem jurídico.

A NORMA PENAL
Estatuição da norma penal – a sanção penal
Com o conceito material de crime tivemos a ver quais eram as características que
uma conduta tinha de ter para ser considerada crime, agora vamos ver quais são as
finalidades que o Estado pode ter para aplicar uma pena a essas condutas. Também é
interessante relacionar esta questão das penas com o fim último do direito penal que é
a proteção dos bens jurídicos.
Para responder à questão de saber quais são os fins que o Estado pode ou deve
atingir com a aplicação de pena surgiram várias teorias: teorias preventivas (prevenção
geral e prevenção especial), teorias retributivas (superficiais e da justiça da pena.). Há
quem diga que se trata de saber quais são os fins legítimos das penas.

FINS DAS PENAS


Como nos diz o professor Figueiredo Dias, a função do direito penal no sistema dos
meios de controlo social e na ordem jurídica total haverá de apreender-se não só
através da natureza do seu objeto (o crime), como também da espacialidade das
consequências jurídicas que àquele se ligam, ou seja, as penas e as medidas de
segurança. Este é um tema que incide sobre as questões fulcrais da legitimação,
fundamentação e função da intervenção penal estatal, daí a sua importância.

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Teorias sobre os fins das penas
Teorias preventivas – a pena como instrumento de prevenção
Tal como o próprio nome indica, a aplicação da pena justifica-se tendo em conta a
necessidade de prevenção de futuros crimes. O primeiro a expor este problema foi
Protágonas, num diálogo com Platão, na Grécia antiga.
As teorias preventivas também são qualificadas de teorias relativas, porque são
relativas a um fim, ao contrário das denominadas teorias absolutas que não se
justificam face a um fim, mas pela prática de um crime.
Estas teorias preventivas subdividem-se em dois tipos, teorias de prevenção geral e
teorias da prevenção especial. As primeiras defendem que o fim da pena é evitar a
criminalidade por parte de todos os indivíduos, ou seja, o fim da pena será motivar a
generalidade das pessoas a comportar-se de acordo com a lei, enquanto que as
segundas, de prevenção especial, também visam evitar a prática de futuros crimes, mas
por parte de um certo delinquente agora condenado.
 Teorias da prevenção geral
O principal defensor destas teorias foi Feuerbach. O denominador comum das
doutrinas de prevenção geral radica na conceção da pena como instrumento político-
criminal destinado a atuar sobre a generalidade dos membros da comunidade,
afastando-os da prática de crimes através da ameaça penal estatuída pela lei, da
realidade da sua aplicação e da efetividade da sua execução.
De acordo com as teorias da prevenção geral, a pena só será racional se for para
realizar um bem e esse bem traduz-se em dissuadir as pessoas da prática de crimes e,
dessa forma, contribuir para a paz e ordem social. Esse fim pode ser alcançado de duas
formas, e aqui aparecem as teorias de prevenção geral negativa e as de prevenção geral
positiva ou de integração.
Aqueles que defendem uma prevenção geral negativa acreditam que a prevenção
dos futuros crimes é alcançada intimidando as pessoas. Assim, a pena é concebida como
uma forma de intimidação das outras pessoas, mediante o sofrimento que ela inflige ao
delinquente e cujo receio as conduzirá a não cometerem factos puníveis.
Do outro lado, temos os defensores que uma prevenção geral positiva ou
integradora que consideram que o fim da prevenção será atuar reafirmando a eficácia
do direito. Aqui as penas são entendidas como forma que o Estado tem para manter e
reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das suas normas
de tutela de bens jurídicos, cuja violação acarreta consequências.
o Críticas
Estas teorias preventivas foram sujeitas a várias críticas. No entanto, há que ter em
mente que qualquer destas teorias é criticável, se as defendermos como fundamento
exclusivo das penas. Assim, a esmagadora maioria destas críticas apenas tem cabimento
se considerarmos que a prevenção geral, positiva ou negativa, é o único fim da pena.

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A primeira crítica que devemos destacar foi feita por Kant que considerou que esta
teoria reduz o Homem à simples condição de meio, quando este é, na realidade, um
fim em si mesmo. Ao aplicar uma pena a uma pessoa para que as outras vejam e não
pratiquem crimes equivalentes, estamos a instrumentalizar essa pessoa. Nesta linha de
pensamento, esta teoria reveste um atentado à dignidade da pessoa humana.
Outra crítica é a de que esta teoria pode levar-nos a um direito criminal objetivista.
Isto significa que só estamos preocupados com a prevenção de futuros crimes, ou seja,
passamos a ter um direito penal em que a pena está determinada em função do seu
resultado intimidatório, no caso da prevenção geral negativa, ou de reafirmação do
direito, no caso da prevenção geral positiva. Como vamos observar mais adiante, o
direito penal não é, de todo, um ramo do direito objetivo. Isto porque se baseia na culpa
do agente, devendo a pena variar consoante essa mesma culpa e não de acordo com as
consequências da aplicação da pena.
Por fim, resta falar da crítica feita pelos autores que afirmam que não é possível
calcularmos o efeito intimidatório de uma pena. Isto significa que, não logrando a
erradicação do crime, a tendência seria a de criar penas cada vez mais severas e
desumanas até que se atingisse o objetivo prevenção geral do crime. Assim, a aplicação
isolada desta teoria teria como efeito a constituição de penas inadmissíveis e totalmente
incompatíveis com a dignidade da pessoa humana.
 Teorias da prevenção especial
Estas teorias da prevenção especial foram promovidas sobretudo por Liszt. O
denominador comum nas doutrinas de prevenção especial é a ideia de que a pena é um
instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do delinquente com o fim de evitar
que, no futuro, ele cometa novos crimes. Neste sentido, devemos falar de uma
finalidade de prevenção da reincidência.
A aplicação destas teorias pode ocorrer, essencialmente, de três formas. A primeira
tentativa é corrigir o agente, tentando uma ressocialização do delinquente que se
prende com o seu tratamento. Se isso não for possível, vai tentar alcançar-se esse fim
através da sua intimidação que visa atemorizar o agente até um ponto em que ele não
repita no futuro a prática de crimes. Se chegarmos à conclusão de que o agente não é
ressocializável nem intimidável, o que resta é privá-lo da sua liberdade, durante um
determinado período de tempo.
o Críticas
Esta teoria não consegue justificar a aplicação de penas aos chamados crimes
ocasionais. Há crimes que, pela sua natureza ou circunstâncias em que ocorrem, são
ocasionais, caso dos crimes passionais em que alguém no âmbito de uma forte emoção
ofende a integridade de outrem. Este género de crimes não tende a repetir-se.
Será o caso da mulher que sofre violência doméstica durante vinte anos e acaba por
matar o marido. Se a finalidade da pena for prevenir a prática de futuros crimes pelo
próprio e se este foi um crime ocasional, como é que vamos justificar a aplicação da
pena?

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Além disso, esta teoria, quando aplicada em exclusivo, pode levar a penas
indeterminadas. Se estamos perante um agente considerado verdadeiramente perigoso
e o fim da pena é eliminar esse perigo tendencial, o delinquente vai ficar preso até lhe
passar a perigosidade.
Outros críticos consideram que esta teoria tende a não permitir a diferença entre
penas e medidas de segurança. Quando alguém age sem culpa, por exemplo um
inimputável por anomalia psíquica, não está a praticar um crime em sentido estrito. Isto
porque falta na equação a culpa, elemento essencial. A quem é incapaz de culpa não
pode ser aplicada uma pena de prisão, mas ante uma medida de segurança. Esta
contraposição entre pena e medida de segurança assenta na existência de culpa ou
apenas perigosidade. Se vamos basear a pena na perigosidade do agente, deixamos de
poder fazer esta distinção, pelo que passaríamos a ter pena em todos os casos.
Por fim, há ainda quem diga que é impossível fazer uma verdadeira prognose sobre
a delinquência futura. Não podemos determinar exatamente a medida da pena
necessária para fazer com que o agente deixe de praticar crimes no futuro.

Teorias retributivas – a pena como instrumento de retribuição


Como nos diz o professor Figueiredo Dias, para este grupo de teorias, a essência da
pena criminal reside na retribuição, expiação, reparação ou compensação do mal do
crime e nessa essência se esgota. Se, apesar de ser assim, a pena pode assumir efeitos
reflexos ou laterais socialmente relevantes (como por exemplo a intimidação da
generalidade das pessoas, de neutralização dos delinquentes, de ressocialização),
nenhum deles contende com a sua essência e natureza, nem se revela suscetível de a
modificar.
 Teorias retributivas superficiais
Dentro das teorias retributivas encontramos as teorias retributivas superficiais.
Segundo estas, a pena é um mal que resulta de um mal. É uma espécie de castigo que
o Estado aplica a um mal praticado pelo agente. É por essa razão que são chamadas de
teorias absolutas, já que se justificam com o facto e não com o fim.
o Críticas
O mal, em si mesmo, não é um fim possível da vontade do Estado. Não racional
pensar que o Estado possa ter como fim o mal, apenas podemos considerar que o Estado
prossegue o bem.
Em segundo lugar, temos aqui um recurso à ideia de retribuição: tal facto, tal pena,
o que tem efeitos lamentáveis. Mesmo sem ser levado ao extremo, “olho por olho dente
por dente” (como no período do Talião), a pena não vai ter por base a culpa do agente,
mas antes o facto que este praticou. Ora, é totalmente diferente punir uma pessoa que
furtou para enriquecer ou uma pessoa que furtou para não morrer à fome. De acordo
com esta teoria, corremos o risco de tratar ambas as situações referidas e muitas outras
como iguais.

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 Teorias da reparação ou retributivas não superficiais
Surge uma nova corrente, a das teorias não retributivas ou teorias da reparação
que foram apresentadas por Platão e Engel. Segundo esta teoria, a pena deve-se aferir
pela culpa e, como tal, a espécie e a medida da pena vão variar consoante a maior ou
menor gravidade da culpa. Só que o fim da pena será reparar o dano da culpa. A ideia
é reparar o dano da culpa, recuperando o delinquente para a sociedade.
Para perceber o que é o dano da culpa temos que ter em conta o crime na causa do
dano. Falamos no dano em sentido amplo, no sentido de diminuição do valor de um
bem jurídico. A quem é que o crime causa dano? À vítima, ao ofendido. O crime lesa o
bem jurídico de alguém que foi vítima da ação do agente. Mas para além disso causa
dano à sociedade e pode até pôr em causa a ordem e a paz social, criando-se o perigo e
o receio pela prática de novos crimes.
Além disso, além de prejudicar a vítima e a sociedade, o crime causa também dano
ao próprio agente, ao delinquente que, com a prática do crime, vê uma diminuição do
valor da sua personalidade ou valor pessoal que tem perante a sociedade.
Olhemos para o exemplo académico da tábua de Carneádes, em que estão duas
pessoas em cima de uma mesma tábua que se encontra no meio do mar. Acontece que
a tábua não aguenta com as duas e a pessoa mais forte acaba por empurrar a mais fraca
para que, pelo menos esta, a mais forte, possa sobreviver.
À luz do direito penal, que já se debruça sobre estes dilemas éticos, a pessoa que
empurrou a mais fraca, apesar de ter praticado um ato ilícito, e é certo que há um
desvalor da sua ação, esse desvalor não pode ser atribuído ao agente. Estando a sua vida
em risco, não seria razoável exigir do agente outro tipo de comportamento. Neste caso,
não faz sentido algum aplicarmos uma pena, não vamos reparar o dano da culpa, dado
que a pessoa tinha de agir para poder sobreviver.
Este exemplo assenta perfeitamente no artigo 35º sobre o estado de necessidade
desculpante”, que é uma causa de exclusão da culpa.

Teorias mistas ou unificadoras


Atualmente, a maioria das doutrinas sobre os fins das penas nas várias ordens
jurídicas radica em tentativas de combinar, sob diversos pontos de vista, algumas ou
mesmo todas as correntes a que já fizemos referência, dando origem às chamadas
teorias unificadoras. Existem teorias unificadoras que privilegiam a prevenção e outras
que dão primazia à retribuição, pelo que falamos em teorias unificadoras preventivas e
em teorias unificadoras retributivas.
 teoria unificadora preventiva – Roxin
Roxin defende uma teoria unificadora preventiva e denomina-a de teoria
unificadora dialética. Este autor alemão diz-nos que o direito penal enfrenta o indivíduo
de três maneiras ou três momentos diferentes: ameaça com penas através de normas
legais, impõe essas penas através das sentenças e, por fim, executa-as.

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Se assim é, uma teoria dos fins das penas verdadeiramente completa tem de ser
capaz de explicar e justificar estes três momentos distintos que são, então, as ameaças
penais, a aplicação das penas e a execução das penas. Como estas três formas ou
momentos estão intrinsecamente relacionados, aquilo que se disser sobre o primeiro,
também se vai aplicar aos outros dois.
o Quanto às ameaças penais:
O que é que justifica que o Estado possa, através de normas jurídicas, ameaçar os
indivíduos? O que justifica que o Estado ameace com penas é a proteção de bens
jurídicos fundamentais e necessários à paz e ordem social. Roxin considera que o
Estado só poderá ameaçar com uma pena, quando o seu intuito seja proteger bens um
bem jurídico fundamental para garantir uma vida comum e livre, sem perigos.
Esta resposta coincide com aquela que se dá quando se pergunta qual é a função do
direito penal. Portanto, Roxin vai buscar a finalidade da ameaça à própria finalidade do
direito penal. O autor acrescenta duas notas:
Em primeiro lugar, o direito penal tem natureza subsidiária. Isto significa que,
havendo lesão de bens jurídicos, o direito penal só pode ameaçar com penas quando tal
se mostrar indispensável por ser inalcançável por outro ramo do direito.
Em segundo lugar, o direito penal não pode punir condutas só por estas serem
imorais. Se o direito penal tem como principal função a proteção de bens jurídicos
fundamentais e se estivermos perante uma conduta meramente imoral que não lesa
nenhum bem jurídico, essa conduta não deve ser penalizada.
Nesta fase da ameaça, acrescenta ainda que, esta proteção dos bens jurídicos que
justifica a ameaça, só pode ser feita de forma preventiva. Se estamos a falar em normas
jurídicas, estas precedem temporalmente a atuação dos sujeitos, então só podemos
falar numa proteção preventiva.
o Quanto à aplicação das penas:
O passo seguinte é justificar o segundo modo de o Estado atuar face ao indivíduo
através do direito penal, a aplicação das penas. Roxin vem dizer que o que justifica a
aplicação das penas é, em primeiro lugar, demonstrar que o direito penal é eficaz e que
se concretiza mediante a aplicação da pena (prevenção geral positiva).
Contudo, o autor acrescenta que nesta fase da aplicação da pena, não basta este fim
de demonstração da eficácia do direito penal, importa também visar a proteção de bens
jurídicos, o que exige o respeito pela dignidade, humanidade e autonomia do agente.
Como é que se respeita a dignidade do agente? Tal objetivo apenas pode ser
alcançado mediante a não aplicação de penas desumanas. Não pode ser uma pena
desumana. Tem de ser uma pena na medida da culpa com que o agente praticou o facto.
É neste contexto que a culpa surge como limite da pena. Quer isto dizer que a pena
aplicada ao agente nunca pode ultrapassar a medida da culpa.

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Roxin defende um conceito social de culpa, segundo o qual a culpa que o agente
tem é aquela que a sociedade considera que ele tem. Ora, como iremos ver, não
devemos apurar uma culpa social dependente do que os outros pensam, mas a culpa do
agente, aquela que ele tem ou teve pela prática do facto.
O autor defende este conceito de culpa social porque está preocupado em confirmar
os juízos que a sociedade faz acerca dos factos praticas. Contudo, a professora Bárbara
Sousa Brito entende que, utilizando este conceito de culpa, Roxin deita a baixo a sua
teorização inicial de proteção da dignidade da pessoa humana, dado que tal objetivo
não pode ser alcançado mediante o julgamento do agente consoante a culpa que os
outros pensam que ele tem e não consoante a culpa que ele realmente tem.
Roxin diz ainda que para a justificação da aplicação da pena estar completa, há que
incluir, na maioria dos casos, a prevenção especial. Isto significa que com a aplicação da
pena também se pretende dissuadir o próprio delinquente de vir a praticar novos
crimes no futuro.
Por fim, sem grande interesse para nós na cadeira, mas com enorme importância
prática, há que evidenciar que o direito penal apenas pode ser aplicado de acordo com
o direito processual penal justo e correto. Não existe aplicação do direito penal sem
processo penal que, por sua vez, reflete o grau de civilização de uma sociedade, e tem
de obedecer a uma série de princípios, como a proibição da tortura nos interrogatórios.
o Quanto à execução das penas:
Só falta justificar a intervenção da pena. Roxin vem dizer que a execução da pena
estará justificada se visar a proteção dos bens jurídicos, mas, ao mesmo tempo, tem
que visar a ressocialização do agente. A única execução que interessa é aquela que se
mostre como ressocializadora, sendo claro que, mais uma vez, o limite é a culpa e o
respeito pela autonomia e dignidade da pessoa humana.
Discute-se, por exemplo, se deve haver uma castração dos delinquentes sexuais.
Esta pena nunca seria legítima à luz desta teoria porque interfere com a dignidade e a
autonomia do agente.
o Conclusão
Atualmente, Roxin continua a defender uma teoria idêntica, mas também vem
acrescentar que a grande conquista do direito penal alemão foi introduzir no sistema
sancionatório, a ideia do ressarcimento da vítima.
Há uma tendência no direito penal alemão de tentar reparar o dano que o crime
causa ao ofendido. Porque é que ele considera essa evolução? Há uma norma muito
interessante do código penal alemão, parágrafo 46 A, que tem como epigrafe “acordo
entre o autor e a vitima. Reparação do dano” em que se prevê que a reconciliação entre
o agente a vítima pode levar à atenuação da pena.
Quer isto dizer que se o delinquente promover esforços sérios de reconciliação com
a vítima, nomeadamente compensá-la por quaisquer danos patrimoniais que possa ter
tido, pode ser a sua pena atenuada. Na melhor das hipóteses, em casos de pequena e
média criminalidade, esta medida pode levar mesmo à extinção da pena.

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Os fins das penas na ordem jurídica portuguesa
Quanto aos fins das penas na nossa ordem jurídica, vamos considerar a opinião de
autores portugueses que se ocupam deste tema, como José de Sousa Brito, Jorge de
Figueiredo Dias e Augusto Silva Dias. No que toca ao código penal, os artigos 40º e 71º
do Código penal são centrais e demonstram quais as teorias que vigoram no nosso
ordenamento. Comecemos por analisar essas disposições.
Quais são as teorias presentes no nosso código civil?
O artigo 40º tem como epigrafe “finalidades das penas e das medidas de segurança”.
Na primeira parte do nº1 lê-se “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a
proteção de bens jurídicos”. Isto liga-se diretamente às teorias preventivas, uma vez que
só se pode proteger os bens jurídicos através de normas penais prévias às violações.
Como a disposição não especifica que tipo de prevenção deve ser esta, a maioria da
doutrina entende que devem ser incluídas tanto a prevenção geral como a especial.
Ainda no nº1, mas agora na sua parte final, lemos que outra finalidade da pena é “a
reintegração do agente na sociedade”. Isto está relacionado com as teorias retributivas
e de prevenção especial.
Por fim, o nº2 diz-nos que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da
culpa”, o que nos transporta para a teoria retributiva da reparação.
Na mesma linha de ideias, o artigo 71º nº1 estabelece que a determinação da
medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

 José de Sousa e Brito


De acordo com este autor, o fim da pena será, não só a retribuição da culpa (a
reparação do dano da culpa), mas também a prevenção geral. Daqui temos que retirar
que o fundamento da pena ou os pressupostos da aplicação da pena são a culpa e a
necessidade de prevenção geral.
A pena tem de ter como pressuposto a culpa, porque só dessa forma se respeita o
princípio da dignidade da pessoa humana consagrado no artigo 1º da CRP. Já a
prevenção geral, que também será um pressuposto da pena, está consagrada no artigo
18º nº2 CRP pelo princípio da subsidiariedade ou princípio da necessidade da pena.
Quer isto dizer que o direito penal apenas pode intervir quando tal se mostre
indispensável para a proteção de bens jurídicos fundamentais.
O que Sousa e Brito acrescenta é que a teoria dos fins das penas não pode apenas
determinar os pressupostos e as finalidades, deverá também estabelecer os critérios
gerais que influem na determinação da medida concreta da pena.
Ora, o primeiro e mais importante critério a ter em conta na determinação da
medida concreta da pena é a culpa, o que significa que esta, além de pressuposto, é
também critério. A culpa vai determinar a chamada moldurada penal, fixando um limite
máximo e um limite mínimo para a pena. A prova disso está no artigo 40º nº2 onde se
lê que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

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Segundo este autor, o segundo critério a ter em conta é a prevenção especial. A
pena e a sua medida serão determinadas de acordo com o que for necessário para
impedir a prática de crimes no futuro por parte do próprio agente. A ponderação da
prevenção especial dar-nos-á a medida exata da pena dentro da medida da culpa.
O terceiro e último critério que vai influir na determinação da medida da pena é a
prevenção geral que vai determinar um limite mínimo necessário para a defesa dos
bens jurídicos fundamentais.
Atentemos ao exemplo de uma senhora foi vítima de violência doméstica durante
vários anos, mas um dia, num ato de loucura, mata o marido. Este será um crime
passional, que se enquadra no artigo 133º sobre o homicídio privilegiado que limita a
moldura penal entre 1 a 5 anos.
As emoções, neste caso, diminuem a capacidade da pessoa de compreender
verdadeiramente o que está a fazer. O próprio legislador criou esta moldura legal,
menos grave do que a do homicídio ou do homicídio qualificado, tendo em conta todos
estes fatores.
A prevenção especial é quase nula porque, em princípio, foi um crime ocasional que,
dados os seus contornos, não se vai repetir. Não há risco de reincidência. Neste caso,
pode acontecer que, face à reduzida necessidade de prevenção especial, a medida da
pena seja inferior ao limite mínimo da culpa. Contudo, terá sempre de se responder a
exigências de prevenção geral que fixam um mínimo necessário. O que se passa é que
aqui a pena pode ser inferior à medida da culpa, mas nunca o contrário.
O juiz terá de expressar na sua sentença quais os fundamentos que o fizeram chegar
àquele resultado concreto da pena, nomeadamente os vários fins das penas que
ponderou, tal como previsto no artigo 71º nº3.
 Figueiredo Dias
O professor Jorge Figueiredo Dias, ao contrário de Sousa Brito, considera que a
finalidade primordial da pena é a prevenção geral positiva. Assim, o fim principal da
pena é confirmar a eficácia do direito e, desta forma, proteger bens jurídicos. Deste
modo, prevenir a prática de futuros crimes faz-se fundamentalmente através da eficácia
do direito, sendo que a intimidação, resultante da prevenção geral negativa, só vai
surgir em segundo plano. O autor acrescenta ainda que outra finalidade a ter em conta,
embora já não tão central, é a prevenção especial.
Isto quanto aos fundamentos da pena, mas passemos agora aos critérios que
influem na medida concreta da pena, segundo este autor.
Em primeiro lugar visa-se a prevenção geral positiva. A medida da pena começa por
ser determinada face ao necessário para impedir a prática de futuros crimes pela
generalidade das pessoas, tendo como objetivo primordial a tutela subsidiária dos bens
jurídicos, mediante a reafirmação da eficácia das normas jurídicas. Essa prevenção geral
positiva vai determinar um quadro de medida, ou seja, vai determinar um mínimo e um
máximo. O limite mínimo corresponderá à tutela estritamente necessária para a
proteção dos bens jurídicos através, enquanto que o limite máximo corresponderá à
medida ótima da tutela dos bens jurídicos.

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A justificação do professor Figueiredo Dias para a relevância dada à prevenção geral
positiva é que esta é a única forma de dar corpo ao princípio da necessidade da pena
consagrado pelo artigo 18º CRP. O autor diz mesmo que se a aplicação da pena e a
determinação da sua medida não fosse comandada por esta finalidade, estaríamos a
cometer uma infração ao espírito dessa norma constitucional.
Em segundo lugar temos a prevenção especial. Dentro do quadro medida
apresentado pela prevenção geral, a prevenção especial fornece também um máximo
e um mínimo. Note-se que aqui entram as necessidades de prevenção especial negativa
e também positiva. Quando se fala na proteção especial negativa pensa-se na
intimidação do agente, ao ponto de ele não voltar a praticar qualquer crime no futuro,
enquanto que a positiva tem que ver com a sua ressocialização.
Por fim, o último critério a influir será a culpa. Para o professor Figueiredo Dias, a
função da culpa é a de estabelecer o máximo de pena ainda compatível com as
exigências de prevenção da dignidade da pessoa humana e de garantia do livre
desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de direito
democrático. A culpa é, deste modo, o limite inultrapassável da pena. É uma barreira
intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e um veto incondicional aos
apetites abusivos que ele possa suscitar.
O autor conclui observando que toda a pena que responda adequadamente às
exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa.

Resumindo a tese de Figueiredo Dias sobre os fins das penas…

1. toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial;


2. a pena correta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da
culpa;
3. dentro deste limite máximo, ela é determinada no interior de uma moldura
de prevenção geral positiva, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo
de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências
mínimas de defesa do ordenamento jurídico;
4. dentro dessa moldura de prevenção geral positiva, a medida da pena é
encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva
de socialização, excecionalmente negativa, de intimidação ou de segurança
individuais.

o Críticas
A teorização de Figueiredo Dias não está isenta de críticas. A principal recai sobre a
ideia de que considerar a culpa do agente pode dar uma medida exata da pena. Face à
nossa ordem jurídica, tal não acontece, dado que a culpa determina apenas um limite
máximo e um limite mínimo para a pena.

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A segunda crítica é que quando o juiz na determinação da medida da pena tem como
critério a prevenção geral positiva, para prevenir futuros crimes através da reafirmação
da eficácia do direito, correr o risco de ter de ponderar, no momento da sentença, aquilo
que a sociedade pensa sobre o crime em causa e assim estar sujeito a pressões sociais.

 Augusto Silva Dias


O professor Silva Dias, tal como Roxin, faz a distinção entre o momento em que o
Estado ameaça, o momento em que aplica a pena e o momento em que essa pena é
executada. Para este autor, uma conceção correta dos fins das penas deve articular a
problemática dos fins das penas com a razão ou as razões da punição. Normalmente
quando se discute esta matéria colocam-se questões relacionadas com a finalidade e
com razão de ser. São problemas diferentes, mas igualmente importantes.
À semelhança do que fizemos com a tese de Roxin, vamos analisar os três momentos
separadamente – ameaça, aplicação da pena e execução da pena – apurando a sua razão
de ser e finalidade prosseguida.
Começando pela ameaça, a sua razão de ser é baseada no facto de ter sido
cometido um crime. É o legislador que considera determinado comportamento como
merecedor de uma pena, o que se confunde com o conceito material de crime. Por
outras palavras, a razão de ser da ameaça penal reside no conceito material de crime,
dependendo de haver, ou não, uma conduta que atente contra um bem jurídico
fundamental digno de tutela.
Por sua vez, a finalidade ou o fim da ameaça é a prevenção geral, isto é, a tutela dos
bens jurídicos. Para o professor Silva Dias, essa prevenção geral tende a ser
essencialmente positiva, apesar de ter como efeito a prevenção geral negativa.
Passando para o momento da aplicação da pena, a sua razão de ser é a prática do
crime. O agente pratica o crime, logo vai retribuir-se essa prática com uma pena. Nesta
fase, a culpa vai fornecer o limite da retribuição, mas também o limite dentro do qual
as finalidades positivas podem ser prosseguidas.
Quanto à finalidade deste segundo momento de atuação do Estado, dizemos que o
fim da aplicação da pena é a prevenção especial. O juiz, atendendo às condições do
meio social e prisional, deve escolher a espécie e a medida da pena adequada a evitar a
prática de crimes futuros pelo delinquente.
Por fim, mas não menos importante, resta falar do momento da execução da pena.
Para Silva Dias, este é o único momento em que a razão de ser e a finalidade se
confundem: é a prevenção especial positiva. Esse é o critério determinante, uma vez
que o que se pretende é fornecer ao delinquente os meios e as condições necessárias à
promoção da sua reintegração na sociedade ou, por outras palavras, a sua
ressocialização.

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Determinação da medida da pena no caso concreto
Em primeiro lugar, há um trabalho de subsunção por parte do juiz em que ele vai
verificar se aquele caso concreto preenche, ou não, algum tipo de crime e dessa forma
vai determinar se o agente pode ser responsabilizado criminalmente. Há que verificar
se naquele caso concreto existe uma ação jurídico-penalmente relevante. Para isso,
teremos de apurar se a ação é típica e, sendo típica, importará saber se é ilícita.
No direito penal, a ilicitude é analisada pela técnica típica da exclusão de partes e,
por isso, tem de se verificar se há alguma causa de exclusão de ilicitude aplicável ao
caso concreto. Se houver uma causa destas, este processo acaba aqui, mas se não
houver, passamos para o elemento seguinte, a culpa.
A culpa, ao contrário da ilicitude, é um juízo de censura que se dirige ao agente e
por isso pressupõe que este seja imputável, isto é, capaz de culpa. Isto porque, como já
vimos, se o facto for praticado por alguém incapaz de culpa, inimputável, não há crime.
Por fim, o último elemento é a punibilidade. Isto porque há determinados tipos de
crime que exigem a verificação de certos factos, elementos extrínsecos à culpa e à
ilicitude, para que o facto seja punível. Por exemplo, o nosso legislador considera que
só faz sentido punir a tentativa quando ao crime consumado seja aplicável uma pena
superior a três anos, por força do artigo 23º nº1. Esta condição, pena superior três anos,
é um exemplo de um elemento objetivo de punibilidade.
De acordo com o artigo 23º nº2 “a tentativa de crime é punível com a pena aplicável
ao crime consumado, especialmente atenuada.” Teríamos de recorrer ao artigo 73 nº1
para saber o que é isso de ser uma pena especialmente atenuada.
Para saber qual é a medida legal da pena temos de apurar a moldura legal que vai
depender de todos os fatores anteriormente descritos, mas o juiz vai ter de ter em conta
também as chamadas agravações legais gerais (caso do agente reincidente, previsto no
artigo 76º) ou as diminuições legais gerais (se o agente está entre os 16 e os 19 anos,
por exemplo).
Depois de chegar à moldura legal abstrata que varia consoante estas circunstâncias,
o juiz terá de determinar a medida concreta da pena e aí vai ter de ter em conta uma
série de fatores que provavelmente o legislador já teve em conta quando fez a moldura
legal, nomeadamente o grau de ilicitude, o bem jurídico que foi posto em causa, o grau
de culpa, toda uma série de considerações, mas para já as que nos importam e que já
estudamos são as relacionadas com os fins das penas.
Face aos fins das penas, o juiz vai chegar à medida concreta. É também nesta fase
que o juiz vai decidir, se tiver essa possibilidade, se vai optar ou não por uma pena
alternativa à privação da liberdade. Significa isto que o juiz decide se vai aplicar uma
pena privativa da liberdade ou outra qualquer. Só no caso de se decidir pela pena
privativa da liberdade é que passamos à fase seguinte.

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Análise sentença (acórdão 6 de julho de 2011 do STJ)
A sentença divide-se em três partes. Primeiro vem o relatório que contém os
elementos objetivos do processo como a identificação do arguido e a descrição do crime
que se presume que foi cometido. A seguir vem a parte da fundamentação em que o
juiz descreve os factos provados, os factos não provados e ainda os factos de direito que
o levaram a tomar a decisão. Por último, chegamos ao dispositivo onde está a decisão
sobre qual o tipo de crime que o agente preenche e qual a pena a aplicar ao arguido.
Determinado o crime, temos de ver qual é a moldura legal abstrata. No caso de uma
tentativa de homicídio qualificado, recorremos ao seguinte processo de resolução:
 O artigo 132º, sobre o homicídio qualificado, prevê uma moldura penal entre 12
a 25 anos de prisão.
 Por ser uma tentativa, recorremos ao artigo 23º. O nº1 diz que só é punível se
ao facto consumado corresponder uma pena superior a três anos. É o caso, logo
está preenchido o elemento objetivo de punibilidade. Passamos para o nº2 que
prevê que a tentativa é punível com a pena aplicável ao crime consumado, a
prevista no artigo 132º, mas especialmente atenuada.
 Assim sendo, vamos ao artigo 73º sobre os termos da atenuação especial. O nº1
alíneas a) e b), diz-nos que o limite máximo vai ser reduzido de um terço (limite
máximo – 1/3), enquanto que o limite mínimo vai ser reduzido a um quinto
(limite mínimo x 1/5).
 de acordo com estas regras ficamos com uma pena mínima de 2 anos e 4 meses,
24 dias, e uma pena máxima de 16 anos e 8 meses.
Tendo em conta as exigências de prevenção geral que ao caso convenham e as
teorias dos fins das penas, o juiz vai fixar a pena concreta a aplicar dentro da moldura
penal anteriormente conseguida, de acordo com os artigos centrais dos critérios legais
para fixar a moldura penal: o artigo 40º e o artigo 71º. Não esquecendo nunca que o
juiz é obrigado a fundamentar muito bem a sua sentença, por força do nº3 artigo 71º.
Outros elementos determinantes para a estipulação da pena
Quando o juiz decide tem de ter certos princípios em mente. Sempre que o tribunal
discute a suspensão da execução da pena de prisão, tem de discutir os fins das penas.
Face ao artigo 50º nº1, se o juiz achar que a suspensão da pena vai ser mais benéfica
em termos de ressocialização terá de optar pela não execução da pena. Contudo,
importa salvaguardar que isto só é exequível quando se tratar de uma pena não superior
a cinco anos.
Neste sentido, importa ter em conta o princípio da humanidade das penas que
resulta, desde logo, do princípio dignidade da pessoa humana e do princípio da
necessidade das penas. Face ao princípio da dignidade da pessoa humana, não são
possíveis nem defensáveis penas desumanas que ofendam a dignidade do agente e, face
ao princípio da necessidade, as penas desumanas não são necessárias, sendo mesmo
prejudiciais do ponto de vista da prevenção geral. O Estado nunca pode dar a entender
que uma pena desumana seja defensável.

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Há outros artigos onde este princípio da humanidade das penas está presente, caso
do artigo 24º nº2 CRP que proíbe a pena de morte. A pena de morte é claramente
desumana e revela a ideia de que uma pessoa pode ser usada para interesses gerais de
prevenção geral, o que coloca em causa o valor mais alto da nossa ordem jurídica: a vida
humana.
Portugal foi dos primeiros Estados do mundo a abolir a pena de morte com a lei de
1 de julho de 1867. Importa referir ainda o artigo 25º nº2 CRP que estabelece que
ninguém pode ser submetido a tortura nem a penas cruéis ou desumanas.

A dualidade do nosso direito penal: as penas e as medidas de segurança


O sistema português é considerado dualista, uma vez que as sanções jurídico-
criminais são, por um lado, as penas para os imputáveis e, por outro, as medidas de
segurança para os inimputáveis.
Delinquentes por tendência
Uma questão diferente é a de saber se o nosso sistema permite ou não a aplicação
cumulativa, ao mesmo agente e pelo mesmo facto, de uma pena e de uma medida de
segurança. Se tal fosse possível, o nosso sistema seria de dupla via ou duplo binário,
que se opõe ao sistema monista.
Para a maior parte da doutrina, só é possível aplicar ambas as sanções quando se
está perante delinquentes especialmente perigosos, previstos no artigo 83º a 85º como
delinquentes por tendência. Nestes casos estamos perante uma contradição entre, por
um lado, as exigências de prevenção da perigosidade desses agentes e, por outro, o
facto de esses terem, por norma, uma culpa diminuída porque têm uma capacidade de
valorar e de se guiar pelo direito perturbada.
Quais os pressupostos para um agente ser considerado delinquente por
tendência? De acordo com o artigo 83º nº1, os pressupostos são: i) ter praticado um
crime doloso que corresponda uma pena efetiva de mais de dois anos; ii) ter cometido
anteriormente dois ou mais crimes dolosos, com consequência de prisão efetiva de mais
de dois anos cada um; iii) a avaliação conjunta dos factos praticados e da personalidade
do agente revela uma acentuada inclinação para o crime.
Como aplicar a pena a esses agentes? De acordo com o nº2, podemos aplicar a este
agente uma pena que terá como limite mínimo o correspondente a 2/3 da pena que
normalmente caberia ao crime cometido, enquanto que o limite máximo dessa pena
corresponderá ao limite máximo da pena ‘normal’ acrescido de 6 anos, sem nunca
exceder os 25 anos que correspondem à pena máxima no nosso ordenamento.
Esta pena não é inteiramente justificável à luz do direito penal baseado na culpa,
como o nosso. Aqui a culpa já não será um limite intransponível, dado que nestes casos
o legislador permite que seja ultrapassada. Como é que isto se justifica? Considera-se
que este limite acima da culpa funciona como uma medida de segurança. Então a pena
equivalente à culpa será a medida de prisão, enquanto que o acrescento será visto
como uma medida de segurança.

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Há autores que defendem que, nesse acrescento, continua a ser punida a culpa, mas
a culpa pela personalidade. O problema é que o direito penal não se pode basear numa
culpa da personalidade, o direito penal não é o direito penal do agente. Podemos punir
os atos que pratica, mas não a sua personalidade.
É importante ter em atenção que os delinquentes por tendência não são
inimputáveis, caso contrário não lhes poderia ser aplicada uma pena, mas apenas uma
medida de segurança. Em suma, podemos ver os delinquentes por tendência como
sendo os únicos casos em que o mesmo agente pode ser punido tanto com prisão como
com medida de segurança. Chama-se a este sistema de vicariato na execução.
Medidas de segurança: Inimputáveis
O sistema de sanções jurídico-criminais do direito penal português assenta, como já
se disse, em dois polos: o das penas e o das medidas de segurança. Enquanto que as
primeiras têm por pressuposto e limite a culpa, as segundas baseiam-se na perigosidade
do delinquente. Logo, neste sentido, o nosso sistema é, pois, um sistema dualista,
diversamente do que sucedeu nas ordens jurídicas do passado e continua ainda hoje, se
bem que raramente, a suceder.
As medidas de segurança, ao contrário das penas, pressupõem que a pessoa tenha
praticado um facto típico, ilícito, mas que seja inimputável, isto é, incapaz de culpa, e o
agente demonstre uma perigosidade criminal.
Desta forma, o fundamento da medida de segurança, não é a culpa do agente, mas
a sua perigosidade e, por isso, as finalidades prosseguidas pelas medidas de segurança
prendem-se sobretudo pela prevenção especial: prevenir a prática de futuros crimes
por parte do próprio agente.
Podemos considerar as medidas de segurança como sanções criminais porque a
função continua a ser a proteção de bens jurídicos. A maior preocupação é ressocializar
o agente, garantido a segurança da sociedade e, desse modo, proteger os bens jurídicos
fundamentais.
Pedo exposto, concluímos que gravidade do tipo de ilícito e a perigosidade do
agente são os critérios base para aferir qual a medida de segurança a aplicar e a sua
duração. Os artigos 91º e seguintes preveem o internamento dos inimputáveis.
No artigo 92º nº1 lemos que a duração do internamento deve ser sempre
proporcional à perigosidade do agente e, no nº2, ficamos a saber que essa duração não
pode exceder o limite máximo da pena correspondente ao tipo de crime praticado pelo
agente inimputável.
Apesar disso, o nº3 da mesma disposição diz-nos que quando o facto praticado pelo
inimputável corresponder a um crime punível com pena superior a 8 anos, sendo que
há perigo de haver prática de novos crimes por parte do agente, o internamento pode
ser prorrogado por períodos sucessivos de 2 anos até o Tribunal verificar a situação
prevista pelo nº1, ou seja, até cessar a perigosidade criminal do agente.

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A leitura deste preceito pode transmitir-nos a ideia de haver aqui uma possibilidade
de manter a pessoa internada eternamente, já que a medida pode ser prorrogada de
dois em dois anos e a disposição não prevê qualquer limite. Contudo, para a maior parte
da doutrina essa possibilidade seria inconstitucional.
A professora Bárbara Sousa Brito opta por defender que o internamento apesar de
poder ser prorrogado de dois em dois anos, não pode ter uma duração total superior a
25 anos, correspondente ao máximo legal para as penas criminais no nosso
ordenamento jurídico. Caso esse período não seja suficiente e o delinquente continue a
ser considerado perigoso, há a possibilidade de passar para o internamento compulsivo,
previsto pela lei da saúde pública para pessoas extremamente perigosas para a
sociedade.
Em termos de espécies de medidas de segurança, podemos dizer que, para os
menores, a medida tende a ser a inserção em instituições de educação especializada,
enquanto que para os restantes inimputáveis e para os delinquentes especialmente
perigosos, a medida a aplicar é o internamento hospitalar.

PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO PENAL


Qual é a diferença entre um princípio e uma regra jurídica? O princípio é muito mais
geral do que a regra apesar de ambos orientarem os comportamentos.
A diferença é que as regras orientam o comportamento de forma absoluta, sendo
que quando o comportamento se desvia do padrão definido pela regra, temos uma
exceção à regra. Por sua vez, como os princípios estabelecem fins muito mais gerais,
quando à uma restrição a um princípio, ele não deixa de existir. Um princípio pode ceder
perante outro, mas não desaparece.
Os princípios revelam os valores fundamentais que estão na base do direito, na base
das regras jurídicas. Tendo definido em linhas muito gerais o que é um princípio, importa
apurar quais são os principais princípios do direito penal.
Princípio da Culpa
O princípio da culpa é talvez o mais importante do direito penal. De acordo com este
princípio, não há pena sem culpa e a medida da pena não pode ultrapassar a medida
da culpa. Isto não significa que toda a culpa tenha de ser punida, já que a pena pode ser
inferior à medida da culpa, significa apenas que não pode ser superior.
Assim sendo, importa agora saber o que é isto de culpa. O conceito culpa pode ter
várias acessões e, com base nos diferentes contextos, há que saber distinguir. Por
norma, em direito penal, a culpa é a característica do crime que se analisa após a
ilicitude. Como já se disse, para um agente ser responsabilizado, tem de praticar uma
ação típica, ilícita e culposa, daí que não haja pena sem culpa.
A culpa é um juízo de censura que se faz ao agente pelo facto de, tendo ele liberdade
e capacidade para se determinar pelo direito, não o fez. É devido a este princípio da
culpa que sabemos que aos incapazes de culpa, inimputáveis, não se aplicam penas de
prisão, como aliás já foi dito e repetido.

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Importa referir um outro sentido da palavra culpa. A culpa surge muitas vezes, já não
para designar um elemento característico do crime, mas para se referir à ligação
subjetiva entre o sujeito e o facto. Este é conceito de culpa em sentido amplo, não
importando apenas a relação do agente com o direito, mas também a sua relação
subjetiva com o facto. É a possibilidade que o sujeito tem de controlar ou poder
controlar a ação.
Em direito penal não existe responsabilidade objetiva, ou seja, não se pune pela
violação de um direito objetivo, apenas é possível punir se houver uma ligação subjetiva
entre o sujeito e o facto.
Qual é a base legal do princípio da culpa?
Não há nenhum artigo na CRP que consagre este princípio da culpa, mas pode ser
deduzido do princípio da dignidade da pessoa humana. Isto porque só respeitamos a
dignidade da pessoa se a responsabilizarmos pelos atos que ela praticou no âmbito da
sua liberdade e autonomia.
Só atua no âmbito da sua liberdade e autonomia privada quem tiver uma ligação
subjetiva com o facto, ao ponto de poder evitar a ação de o quiser. Além disso, como
também já foi referido, só haverá respeito pela dignidade se se julgar a pessoa segundo
essa culpa e não segundo a utilidade para os outros.
Por outro lado, o outro artigo que consagra o princípio da culpa de forma implícita é
o artigo 27º CRP que consagra o direito à liberdade. A culpa prossupõe a liberdade, não
só a de atuar, mas também a liberdade de se determinar pelo direito. E, por isso, só se
atua com culpa porque se é livre. Além disso, a própria dignidade da pessoa humana
resulta da liberdade: só é digno quem é livre.
Destas premissas, decorre a ideia de que não pode haver culpa se o agente não teve
sequer a possibilidade de evitar a ação. Para que haja uma ação jurídico penalmente
relevante, há que provar que o agente teve a possibilidade de controlar aquela ação ou
de a evitar, mas não o fez (exemplo: o sonâmbulo não é considerado inimputável, mas
é incapaz de ação).
Princípio da necessidade da pena ou da medida de segurança
Como já vimos, este princípio tem várias designações, podendo surgir como princípio
da intervenção mínima do direito penal ou como princípio da subsidiariedade do direito
penal. Este princípio, consagrado no artigo 18º CRP, vem estabelecer que o Estado só
apenas pode limitar direitos fundamentais quando tal for indispensável para
assegurar a defesa de bens jurídicos fundamentais e dessa forma contribuir para a
segurança e paz social.
Por um lado, a apreciação da necessidade da pena é feita por exclusão de partes.
Significa que se se provar que outros meios de controlo social bastam para prevenir e
garantir a proteção daqueles bens, não se deve utilizar a sanção penal.
Contudo, a necessidade da pena não se vê só por exclusão de partes, também se
afere a necessidade determinando se a sanção penal é eficaz e, nesse sentido,
necessária, tal como já tínhamos dito a propósito do conceito material de crime.

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Como já vimos, há casos em que se prova que a pena tem mais consequência
negativas do que positivas e assim perde a sua eficácia, não sendo por isso necessária.
Como é o caso da despenalização do consumo de drogas em Portugal.
Princípio da igualdade
Está consagrado no artigo 13º CRP e manifesta-se duas formas no direito penal. Em
primeiro lugar, não poder haver uma discriminação das pessoas sujeitas ao direito
penal em função do seu sexo, raça, ascendência ou nenhum outro fator. Em segundo
lugar, tem de haver igualdade na determinação e aplicação da pena.
Foi com base neste princípio da igualdade que, em 2003, desapareceram do código
de justiça militar as normas que estabeleciam penas diferentes para os militares que
cometessem crimes comuns ao nosso código penal.
Princípio da jurisdicionalidade
De acordo com este princípio, o direito penal só se pode aplicar através do processo
penal, respeitando todos os princípios constitucionais respeitantes ao direito penal.

Princípio da Legalidade
É através deste princípio, consagrado nos artigos 3º e 4º CRP e nos artigos 1º e 2º
do código penal, que vamos aprofundar todo o estudo da teoria da lei penal, desde as
fontes do direito penal até à sua aplicação. O princípio da legalidade debruça-se sobre
as particularidades da lei penal relativamente à teoria geral das fontes de direito. Como
tal, está relacionado com a matéria das espécies de fontes existentes no direito penal,
como é que se processam a interpretação e integração da lei penal e por fim, a aplicação
da lei penal no tempo.
Naturalmente, vamos estudar também a aplicação da lei penal no espaço, mas essa
matéria já não está diretamente ligada a este princípio da legalidade em concreto.
O princípio da legalidade é de tal forma abrangente que contém no seu âmbito vários
subprincípios, mas normalmente é apresentado com a seguinte formulação: nullum
crimen, nulla poena sine lege, o que significa, não há crime nem pena sem lei. Esta
formulação foi introduzida por Feuerbach em 1801.
Mediante a análise dos subprincípios vamos acrescentando determinados adjetivos
a esta formulação inicial até atingir a seguinte enunciação: não há crime nem pena sem
lei escrita, certa, estrita e prévia.

Princípio nullum crimen, poena sine lege – Função, sentido e fundamentos


Qual é a função ou o fim do princípio da legalidade? Desta questão resulta o âmbito
de aplicação e o conteúdo do princípio da legalidade. O fim do princípio da legalidade
prende-se com a garantia dos direitos dos cidadãos face ao Estado, impedindo uma
intervenção penal estadual arbitrária ou excessiva.

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Uma das formas de proteger os direitos, liberdades e garantias do cidadão é não
permitir que este seja surpreendido com a criminalização de condutas, com as quais não
poderia contar. É por isso se diz que este princípio é dirigido não só aos tribunais, mas
também ao próprio legislador.
Para percebermos melhor porque é que este é o fim do princípio da legalidade,
temos de saber a sua origem. O princípio da legalidade integra o princípio do Estado
de Direito e integra-se nos direitos, liberdades e garantias fundamentais. Como
sabemos, há dois sentidos de Estado de Direito: o sentido formal e o sentido material.
Fala-se no princípio do Estado de Direito em sentido formal para exprimir a
subordinação do Estado ao direito que ele próprio cria, ligada à tradição democrática
de Montesquieu. Em sentido material para exprimir a subordinação do Estado
entendido como ideal de justiça, conjunto de direitos fundamentais, ligada à tradição
liberal de Locke.
Da ideia de Estado de Direito em sentido formal:
Retira-se que a lei, enquanto expressão da vontade geral, é soberana e impõe-se
ao Estado, e que toda a atividade do Estado é regulada pela lei.
Esta ideia está diretamente relacionada com o princípio da divisão de poderes:
poder executivo, poder judicial e poder legislativo, bem como a consequente
subordinação dos dois primeiros ao poder legislativo.
O princípio da legalidade reserva a formulação do direito penal ao poder
legislativo, daí que seja uma decorrência da divisão de poderes. Isto significa que não é
possível ao poder executivo, e nem sequer ao poder judicial, criar direito penal.
Por sua vez, a ideia de Estado de Direito em sentido material:
Esta vertente que exprime a subordinação do estado à ideia de justiça, também
segue esta lógica de proteção dos direitos dos cidadãos face aos poderes do Estado, que
não pode usar o seu poder arbitrariamente. desta forma, cria segurança jurídica.
Para o professor Figueiredo Dias, o princípio da legalidade também está ligado a
outras duas ideias além da de Estado de Direito, são elas a ideia de prevenção geral e o
princípio da culpa. Este autor entende que a prevenção e a culpa são fundamentos
internos do princípio da legalidade. Por um lado, só é possível prevenir se estiver
estabelecido o que é que é crime previamente.
Por outro, a ideia de culpa, o juízo de censura que se faz sobre o agente, só faz
sentido se a conduta puder ser censurada como crime, tendo ele tido espaço de
liberdade e capacidade para se guiar pelo direito e não o fez.
Entre nós, este princípio encontra hoje consagração no artigo 29º nº1 CRP, que dita
que “ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de uma lei anterior
que declara punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos
pressupostos não estejam fixados em lei anterior”. Este preceito corresponde
materialmente ao artigo 1º do código penal.

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Resta dizer que o princípio da legalidade assume consequências ou efeitos em cinco
planos diversos: no plano do âmbito ou da extensão; no plano das fontes; no plano da
determinabilidade; no plano da proibição da analogia e no âmbito da proibição de
retroatividade. Vamos analisar de forma detalhada cada um deles.

Âmbito da aplicação do princípio da legalidade


Já sabemos o que é que é o princípio da legalidade e para que é que ele serve, resta
perceber como e quando é que se aplica. Para a maior parte da doutrina, o princípio da
legalidade só se irá aplicar a normas penais positivas e não a normas penais negativas.
As normas penais positivas são as normas que fundamentam a aplicação de penas
ou medidas de segurança, bem como aquelas que agravam a responsabilidade criminal
do agente, como o artigo 169º sobre o lenocínio, por exemplo. Basicamente, todas as
normas que tipificam crimes são normas penais positivas.
Por sua vez, as normas penais negativas são aquelas que afastam ou diminuem a
responsabilidade penal do agente. É o caso do artigo 31º nº2 a) sobre a legítima defesa
que exclui a ilicitude ou do artigo 133º que prevê atenuação no homicídio privilegiado.
O artigo 31º nº2, sobre as causas de exclusão da ilicitude, é usado como prova para
a tese de que o princípio da legalidade não se aplica às normas negativas. Em primeiro
lugar, a lista apresentada por esta disposição é meramente exemplificativa, o que
significa que é possível considerar outras causas como de exclusão de ilicitude que não
estejam aqui enumeradas. A aplicação do princípio da legalidade a esta norma negativa,
obrigá-la-ia a deixar de ser exemplificativa, para passar a ser taxativa.
Em segundo lugar, a outra razão de ser desta não aplicação do princípio da
legalidade às normas penais negativas prende-se com o intuito destas normas já ser o
de proteger os direitos individuais dos cidadãos. Ora, se o fim do direito penal é
proteger os cidadãos de uma intervenção abusiva do Estado e as normas penais
negativas, ao excluir ou atenuar a responsabilidade do agente, já estão a fazer isso por
si só, não há necessidade de aplicar o princípio da legalidade.
Esta acaba por ser uma questão pacífica, visto que a maioria da doutrina aceita a
possibilidade de serem criadas causas de exclusão da ilicitude supralegais, isto é, que
não estão expressamente previstas pela lei. Estas devem ser admitidas tendo em conta
os princípios fundamentais da exclusão da ilicitude.
É por esta razão que o professor Figueiredo Dias nos diz que se o princípio da
legalidade atuasse sobre a matéria de exclusão ou atenuação da responsabilidade
estaria a funcionar contra o seu fim e contra a sua teleologia.
 Legítima defesa e legítima defesa preventiva
Exemplo prático: Na legítima defesa, a pessoa reage a uma agressão atual e ilícita
contra si ou que ameace interesses juridicamente protegidos seus ou de terceiros. Em
traços muito gerais, estes são os seus pressupostos. É o caso de alguém me apontar uma
arma à cabeça em que, se dispararmos contra essa pessoa nesse momento, a nossa ação
não é ilícita. A legítima defesa é uma causa de exclusão da ilicitude legalmente prevista.

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Para uma grande parte da doutrina há a possibilidade de termos uma outra figura
que não está prevista na lei, mas que, face aos pressupostos e aos princípios que estão
por trás da legitima defesa, deve existir: é a chamada legítima defesa preventiva. Este
é um exemplo de uma causa de exclusão da ilicitude supralegal que pode ser
enquadrada na listagem do artigo 31º nº2.
Esta legitima defesa preventiva desvia-se da legítima defesa dita normal porque a
agressão da qual o agente se pretende defender não é atual, contudo ele tem perfeita
noção de que a única forma de se proteger e proteger bens jurídicos é atuar naquele
momento, prévio à agressão.
O exemplo académico que costuma ser dado para esta figura é o seguinte: uma
pessoa está no primeiro andar de um prédio presa a uma cadeira virada para a janela
com vista para a rua. Vê um homem a atravessar a rua e tem a certeza de que este vai
disparar sobre ele assim que tiver oportunidade. Como o homem que está no prédio
está preso à cadeira e voltado de costas para a porta de entrada do quarto, sabe que a
única hipótese que tem para se defender é disparar primeiro, naquele preciso momento
enquanto o outro ainda está a atravessar a passadeira.
Esta situação não cabe literalmente no artigo 32º que prevê a legítima defesa, por
não ser uma agressão atual. Contudo, tendo em conta o princípio fundamental da defesa
do direito por mãos próprias e ainda o princípio da dignidade da pessoa humana, deve
ser admitido que o homem que disparou esteja a atuar ao abrigo de uma exclusão da
ilicitude supralegal. Encontramos aqui um caso prático de legítima defesa preventiva.
Considerando que o homem da passadeira se apercebe do que o da cadeira vai fazer
e dispara primeiro, o que acontece? Está em legítima defesa também?
Se, estendendo o âmbito de aplicação do artigo 32º, considerarmos que este agente
atuou ao abrigo da legítima defesa, cabendo na lista no artigo 31º nº1, a consequência
será dizer que o homem que estava a atravessar a passadeira não pode atuar em
legítima defesa também. Isto porque não pode haver legítima defesa contra legítima
defesa.
Deste modo, se não aplicarmos o princípio da legalidade ao homem que está na
cadeira e considerarmos que este atuou em legítima defesa preventiva, excluindo a
ilicitude da sua ação, o que vai acontecer é que isto vai interferir com os direitos do
homem que está a atravessar a passadeira, sendo-lhe aplicado o princípio da legalidade
já que não pode, também ele, atuar em legítima defesa.
O que se passa aqui é que para alargarmos as causas de exclusão de ilicitude de
forma a caber a legítima defesa preventiva do homem da cadeira, estamos a impedir a
aplicação da legítima defesa ao homem da passadeira.
O princípio da legalidade existe para proteger os direitos individuais face ao poder
excessivo ou arbitrário do Estado e visa que o cidadão não seja criminalizado quando
não esteja à espera de o ser. Daqui resulta que o princípio da legalidade tem de ser
aplicado sempre que a sua não aplicação fundamentar ou agravar a responsabilidade,
mesmo que estejamos perante normais penais negativas.

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Deste modo, em vez de fazermos depender o âmbito da aplicação do princípio da
legalidade da natureza das normas, podendo estas ser positivas ou negativas, vamos
olhar para o objeto do caso concreto e perceber as implicações associadas à falta de
aplicação desse princípio.
 Subtipos de normas penais negativas
Como vimos, a posição doutrinária maioritária entende que o princípio da legalidade
aplica-se às normas penais positivas, mas já não às normas penais negativas. Importa
agora perceber que dentro dessas normas penais negativas há dois subtipos: as normas
penais que excluem a responsabilidade do agente (causas de exclusão da ilicitude) e as
normas que preveem circunstâncias atenuantes (diminuem a medida da pena).
Em relação às normas penais negativas que preveem circunstâncias atenuantes,
não há dúvida de que não se lhes aplica o princípio da legalidade, dado que estas já
prosseguem por si só o fim do princípio da legalidade. Quanto às outras, às normas que
excluem a responsabilidade do agente, a professora Bárbara Sousa Brito referiu uma
questão muito controversa na doutrina que é muito suscitada, mas ainda não obteve
uma resposta definitiva.
Em relação a essas normas penais que excluem a ilicitude acontece que, por vezes,
ao alargarmos o seu âmbito, vamos estar a restringir os direitos e liberdades de outro
sujeito de forma indireta, já que as suas expectativas vão ser postas em causa. Face a
estas normas, vamos ou não aplicar o princípio da legalidade?
A professora Bárbara Sousa Brito diz que a resposta vai variar consoante o caso
concreto. No exemplo da legítima defesa preventiva, é consensual que esta figura seja
aceite. Acontece que a discussão surge em torno dos efeitos colaterais que isso possa
despoletar, dado que estamos, e agora retomando o exemplo, a interferir com a
capacidade de ação do homem que estava a atravessar a passadeira.
Quando estivermos a analisar a situação do homem da passadeira aplicamos o
princípio da legalidade? A professora Bárbara Sousa Brito tende a dizer que não, mas diz
que não basta ter em conta este princípio para chegarmos à solução, como também
todos os outros que fundamentem as causas de exclusão da ilicitude, que iremos
estudar no próximo semestre.

Subprincípio relativo às fontes do direito penal


De acordo com este subprincípio, não há crime nem pena sem lei formal. Face à
nossa constituição, essa lei formal é uma lei da Assembleia da República ou um decreto-
lei do governo devidamente autorizado pela Assembleia da República. Estas fontes
formais do direito penal retiram-se do artigo 165º nº1 alínea c) CRP que estabelece a
reserva relativa de competência da Assembleia da República em matérias penais.
Apesar da formulação inicial deste subprincípio ser “não há crime nem pena”,
entende-se que deve ser igualmente estendido às medidas de segurança. Concluímos,
assim, que as fontes das penas e medidas de segurança, segundo a nossa constituição,
são leis da AR e DL autorizados do governo.

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Uma das grandes questões colocadas em torno deste princípio é a de saber se o
costume internacional pode ou não ser fonte do direito penal. Ora, já sabemos que, por
força do artigo 8º CRP, o nosso ordenamento jurídico acolhe automaticamente o direito
internacional geral. Assim, sempre que se tratar de uma convicção generalizada de que
determinada conduta deve ser criminalizada a nível internacional, isso é mais do que
suficiente para que possa ser fonte do direito português, face ao artigo 29º nº2 CRP.
A origem desta exceção remonta ao séc. XX e surge devido às duas grandes guerras,
principalmente à segunda. Foram aqui cometidos crimes gravíssimos e altamente lesivos
dos valores fundamentais que, apesar de tudo, não estavam previstos na lei. Exemplo
claro disso é o genocídio.
Como estas condutas não estavam previstas na lei, se fossemos aplicar o princípio
da legalidade na sua vertente das fontes do direito penal, não poderiam ser
consideradas como crime. Contudo, havia uma convicção generalizada de que estas
condutas deveriam ser criminalizadas. A segurança como valor formal foi superada pela
segurança do respeito dos valores fundamentais. Este problema foi perdendo
importância com o passar dos anos porque, felizmente, temos assistido à cristalização
destes costumes internacionais em múltiplas convenções assinadas por vários Estados,
já não sendo necessário considerá-las crime por costume internacional.
Outra questão que o costume internacional levanta neste sentido é que nele se
compreende qual o comportamento que deve ser criminalizado, ou seja, qual é a
conduta que deve ser considerada crime, mas não nos fornece a pena a aplicar. Nesses
casos, entende-se que a pena deverá ser estabelecida por recurso às leis internas, tendo
em conta os seus limites e fórmula de cálculo.
Desenvolvida esta questão do costume internacional, importa agora olhar para o
que se passa a nível nacional. Pode o costume nacional ser fonte de direito penal? Se o
costume nacional se propuser a criar responsabilidade criminal ou a agravar a já
existente, não poderá ser tido em conta como fonte de direito penal. Contudo, se o
costume nacional pretender, por outro lado, limitar o âmbito de aplicação de normas
incriminadoras ou excluir responsabilidade criminal, já poderá ser considerado.
Atualmente já existem a nível internacional vários Tribunais específicos que aplicam
a lei penal internacional. Neste sentido, importa destacar o Tribunal Penal Internacional
cuja atividade está sujeita a dois princípios corporizados no Estatuto de Roma: por um
lado, o princípio da vinculação voluntária, de acordo com o qual, a jurisdição deste
Tribunal apenas vincula os Estados que se tornem partes no Estatuto de Roma e, por
outro lado, o princípio da subsidiariedade, que significa que o TIP só poderá exercer a
sua jurisdição se os Estados com competência para conhecer do facto, não o
conhecerem ou não o puderem fazer.
Imaginemos que o facto ocorreu em território português e está regulado em
convenções internacionais, o TIP só pode atuar se o Estado português não julgar aquele
caso. É por isso que podemos dizer que o nosso direito penal ainda é um direito infra
estadual, já que a sua fonte por excelência é estadual, não se podendo falar num já
existente direito penal comunitário e muito menos numa ordem jurídica penal
internacional.

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Subprincípio da tipicidade
Este subprincípio já não tem diretamente a ver com as fontes formais do direito
penal, mas antes com o grau de definição do crime, das penas e da conexão entre o
crime e as penas. Normalmente, este princípio apresenta-se com a seguinte expressão:
não há crime nem pena sem lei certa.
O que se pretende dizer com isto é que a lei tem de determinar com suficiente
precisão, as circunstâncias que compõem o crime, as que compõem a pena e ainda as
que estabelecem a conexão entre uma e outra, ao nível dos seus pressupostos. O
mesmo se diz em relação às medidas de segurança. Daí que este princípio também seja
conhecido como o princípio da determinação das normas penais incriminadoras.
É por essa razão que dizemos que para haver crime, tem de haver uma ação típica.
Isto significa que para ser crime, a conduta tem de caber na previsão de uma norma
que seja suficientemente precisa. Isto não significa que a lei penal não recorra a
conceitos indeterminados, coisa que até seria praticamente impossível.
Mesmo utilizando conceitos indeterminados, imprecisos, o legislador tem de ser
capaz de determinar com suficiente precisão a conduta criminosa, de forma a não
desrespeitar este princípio. Um exemplo pode ser o artigo 132º nº2 alínea e) onde se
prevê um “qualquer motivo torpe e fútil” que, apesar de conter conceitos
indeterminados, especifica a conduta típica criminosa a ser punida.
Além disto, temos ainda de referir a figura das leis penais em branco. Estas leis
penais em branco são normas cujo pressuposto de facto se configura por remissão para
normas de carácter não penal.
Tomemos como exemplo o artigo 278º sobre os danos contra a natureza. A
explicitação técnica dos conceitos nele presentes está noutras normas, que não são de
natureza penal. Levantou-se a questão de saber se estas normas não violam o princípio
da legalidade, sendo que até o próprio Tribunal Constitucional levantou esta questão.
Tendo em conta o princípio da legalidade e a sua relação com o subprincípio da
tipicidade, que se traduz na exigência de que as condutas estejam suficientemente
especificadas na previsão da norma penal, vejamos o seguinte: estas normas, por
natureza, contactam com outras áreas do saber, como por exemplo o direito do
ambiente. Assim sendo, a lei penal não pode conter em si todas as normas de direito do
ambiente e, sobretudo nestes casos em que se trata de aspetos muito técnicos, faz todo
o sentido que existam estas leis penais em branco.
Estas normas a que fazemos agora referência são as leis penais relativamente em
branco, em oposição às leis penais absolutamente em branco, que acabam por ser as
normas puramente remissivas. No caso das normas penais relativamente em branco
ainda é possível percebermos bem qual a conduta que está em causa, apenas devemos
consultar as outras leis para entendermos o alcance dos conceitos.
Se for uma lei penal absolutamente em branco, em que a definição dos
pressupostos está noutra norma e esta é apenas uma norma remissiva, aí sim já
podemos estar perante uma violação do princípio da tipicidade.

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Interpretação e analogia em direito penal
Este subprincípio não tem um nome específico, mas prende-se com questões
relacionadas com a interpretação e analogia em direito penal e dita que não há crime
nem pena sem lei restrita. Discute-se aqui a integração e a interpretação das leis penais.
Como sabemos, os vários regimes jurídicos podem conter lacunas, lacunas essas que
têm de ser integradas.
O método mais comum para a integração de lacunas é a analogia, segundo o qual
procedemos à aplicação de uma regra jurídica a um caso concreto não regulado pela lei
através de um argumento de semelhança substancial. Mas isso é possível em direito
penal? Podemos recorrer à analogia em direito penal?
Em direito penal não é permitida a analogia se for para agravar ou fundamentar a
responsabilidade do agente, mas já o será se o intuito for excluir ou atenuar a
responsabilidade do agente, em princípio. Esta regra vem expressamente prevista pelo
artigo 1º nº3 do código penal e resulta ainda do artigo 29º nº1 CRP.
Esta proibição de analogia nos casos em que se pretende fundamentar ou agravar a
responsabilidade do agente não é de difícil compreensão face à finalidade que o
princípio da culpa visa prosseguir: proteger os direitos individuais dos cidadãos face a
uma intervenção abusiva do Estado. Ora, estar a utilizar a analogia para fundamentar
ou agravar a responsabilidade do agente seria o equivalente a surpreendê-lo com a
criminalização de um comportamento que ele não podia contar. Portanto, nunca
poderíamos aplicar, por analogia, normas que fundamentem a criminalização de
novas condutas ou agravem as já existentes.
As analogias que fundamentam ou agravam a responsabilidade do agente são
conhecidas por analogias malem partem, enquanto que as analogias que afastam ou
atenuam a responsabilidade do agente são as analogias bonam partem.
Acontece que, o facto de se proibir a analogia não implica que se esteja também a
proibir a utilização de raciocínios analógicos na operação de decidir malem partem
contra o réu. Quer isto dizer que o facto de existir esta proibição de analogias malem
partem, não significa que não se possamos utilizar raciocínios analógicos para
interpretar conceitos indeterminados, mesmo que tal coisa prejudique o réu.
Para preencher e aplicarmos os conceitos indeterminados em direito penal temos
de recorrer à analogia como instrumento de interpretação. O que se faz nestes casos
não é uma verdadeira analogia, mas olhar para os casos mais evidentes que preenchem
aquele conceito indeterminado e estendê-lo aos casos menos evidentes, de forma a que
consigamos argumentar em relação à semelhança existente entre uns e outros.
Na verdadeira analogia, ao contrário do que acontece na situação descrita, o caso
não está lá de todo, sabemos à partida que não está no âmbito de aplicação daquela
norma, aqui é diferente. A professor Bárbara Sousa Brito argumenta que, por vezes, e
tendo em conta a natureza dos conceitos, o raciocínio analógico é a única forma de
aplicar a lei penal em determinadas situações concretas. Isto, claro está, não se traduz
numa possibilidade de aplicar a norma analogicamente a uma situação que não está, de
todo, compreendida no seu âmbito.

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 A questão da compatibilidade do artigo 132º nº2 com o princípio da legalidade
Neste contexto, surge a questão da compatibilidade do artigo 132º nº2 com o
princípio da legalidade. Este artigo prevê a figura do homicídio qualificado. O nº1 diz-
nos que “Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial
censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte
e cinco anos.”, enquanto que o nº2 procura especificar os conceitos indeterminados
compreendidos no nº1 “especial censurabilidade ou perversidade”, fornecendo uma
lista de condutas que podem preencher o tipo legal de crime.
Importa saber se este artigo viola, ou não, o princípio da legalidade. A expressão
problemática está na parte final do nº2: “entre outras”. Isto tem implicações práticas
enormes, dado que há Tribunais que consideram este nº2 como uma porta aberta aos
homicídios “atípicos”, ou seja, aqueles que não estão compreendidos em nenhuma
destas alíneas.
Podemos concluir que se a expressão “entre outras” for interpretada no sentido de
abranger condutas que não estão descritas no nº2, então estamos perante uma
violação clara do princípio da legalidade na sua vertente de proibição de analogia, até
porque esta é claramente uma norma legal negativa.
Face a este problema, a doutrina tem encontrado formas diferentes de interpretar
este preceito sem cair no âmbito da interpretação analógica proibida e o autor que a
professora Barbara Sousa Brito prefere é o professor Silva Dias.
Para o professor Silva Dias, as alíneas do artigo 132º nº2 funcionam como exemplos
padrão. Quer isto dizer que se se verificar um caso que corresponde à estrutura de
sentido e ao conteúdo de desvalor daquele exemplo padrão, ou seja, se o caso tiver
elementos que permitam considerá-lo teleologicamente análogo ao caso previsto numa
das alíneas, já não estamos a violar o princípio da legalidade e poder-se-á aplicar a
estatuição.
A explicação prática que o professor Silva Dias nos dá é sobre a alínea a) que prevê
os casos em que o homicida é descendente ou ascendente, adotado ou adotante da
vítima. Imaginemos o caso de um menor A que vive com a pessoa B durante muitos
anos, mas sem nunca ser adotado legalmente. Quid juris se após completar 17 anos, A
mata o B, cometendo, portanto, um crime de homicídio.
Esta situação não está prevista na alínea a), nem em nenhuma outra, contudo
apresenta uma estrutura valorativa equivalente à da alínea a), ou seja, é um caso
teleologicamente análogo, devendo caber nessa disposição.
Outro argumento a favor desta tese é que este artigo 132º nunca se aplica sozinho,
sendo que temos de conseguir provar que a circunstância que se pretende punir como
homicídio qualificado revela “especial censurabilidade ou perversidade”, como exige o
artigo 132º nº1. Daí que se possa concluir que esta discussão é extremamente
complexa.

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Há ainda um outro autor relevante neste tema, o professor Curado de Neves.
Segundo a interpretação deste autor, o nº2 tem uma enumeração taxativa dos
comportamentos que cabem no homicídio qualificado, isto é, uma lista das condutas
que preenchem o tipo legal desse crime, sendo que o fundamento da agravação da
responsabilidade do agente é tratar-se de uma ilicitude agravada.
É por isso mesmo que, para este professor, o nº1 funciona apenas como um
elemento negativo, o que significa que se a conduta não revelar especial censurabilidade
ou perversidade, o que por sua vez será sinónimo de não estar na lista taxativa do nº2,
é automaticamente excluída a hipótese de homicídio qualificado para caracterizar a
conduta concreta. O grande problema desta interpretação é que não tem qualquer
apoio legal, é completamente contra legem face à expressão “entre outras” da parte
final do nº2 do artigo 132º.
 Interpretação extensiva em direito penal
Outra grande questão que se levanta a propósito deste subprincípio da
interpretação e proibição de analogia, é o de saber se é, ou não, permitida a
interpretação extensiva em direito penal. De acordo com o critério tradicional, temos
uma interpretação extensiva quando o sentido a atribuir ao conceito ainda cabe no
pensamento do legislador, mas não está na letra da lei. E, por isso mesmo, diz-se que
aquele sentido tem o mínimo de correspondência verbal na lei.
Normalmente, de acordo com esta doutrina tradicional maioritária, há um tipo de
interpretação que não pode ser confundida com a interpretação extensiva, a chamada
interpretação declarativa lata. Esta interpretação ocorre quando há uma determinada
expressão que tem um sentido lato e um sentido estrito, optando-se pelo sentido lato.
Por exemplo, a palavra homem, em sentido amplo inclui homem e mulher, mas em
sentido estrito, é só o sexo masculino. De acordo com o critério tradicional isto não se
confunde com a interpretação extensiva porque na extensiva o sentido que se visa
atribuir à norma não cabe no sentido amplo das palavras, apenas tem o mínimo de
correspondência verbal.
Há várias respostas a esta questão da possibilidade, ou não, de interpretação
extensiva em direito penal. A maior parte da doutrina, nomeadamente Roxin e, entre
nós, José de Sousa e Brito, partindo deste conceito tradicional de interpretação
extensiva, defende que não é possível utilizá-la em direito penal se for para
fundamentar ou agravar a responsabilidade do agente. Esta ideia encontra base legal
no artigo 29º nº2 CRP, onde se lê que não podem ser aplicadas penas ou medidas de
segurança que não estejam expressamente previstas na lei.
Estes autores utilizam também o argumento de que, se o fim do princípio da
legalidade é proteger os direitos individuais face a uma intervenção abusiva do Estado,
qualquer interpretação extensiva que fundamentasse ou agravasse a responsabilidade
do agente, constituiria uma surpresa para este. Estaríamos a surpreender o cidadão com
a criminalização de condutas com as quais ele não podia contar.
Contudo, esta parte da doutrina acrescenta que apesar de não ser possível a
interpretação extensiva, é possível a extensão declarativa lata, não se violando o
princípio da legalidade.

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Outra parte da doutrina, onde se insere o professor Figueiredo Dias, e a
generalidade da escola de Coimbra, considera que a interpretação extensiva é possível,
mas só até ao sentido possível das palavras. Ora, daí retiramos que o que este professor
chama de interpretação extensiva corresponde àquilo que normalmente, na escola de
Lisboa, se designa de interpretação declarativa lata.
A terceira posição doutrinária que importa aqui destacar é a das professoras Teresa
Pizarro Beleza e Conceição Valdágua. Segundo estas, não há um espaço a percorrer
entre o sentido das palavras e o ter um mínimo de correspondência verbal. A conclusão
que retiram dessa premissa é que, no caso de o sentido a atribuir à lei, ter um mínimo
de correspondência verbal e couber no espírito da lei, pode-se falar em interpretação
extensiva e essa será permitida. Já no caso de o sentido a atribuir couber no espírito da
lei, mas não tiver um mínimo de correspondência, aí já entramos no campo da analogia
que, como já dissemos, não é permitida se for para fundamentar ou agrava a
responsabilidade do agente.
Serão o sentido possível das palavras e o mínimo de correspondência conceitos
iguais? Não existe um caminho a percorrer entre um conceito e o outro? A professora
Bárbara Sousa Brito discorda destas autoras, e diz-nos que este caminho existe sim. Para
ilustrar esta resposta recorremos ao artigo 208º sobre o furto de uso de veículo que
estabelece que quem utilizar automóvel ou outro veículo motorizado, aeronave, barco
ou bicicleta, sem autorização de quem de direito, é punido com pena de prisão até dois
anos. Quid juris se for uma trotinete? Ora, a trotinete não cabe no conceito de bicicleta,
não no sentido possível dessa palavra, mas cabe no espírito do legislador, tem um
mínimo de correspondência com a racio legis desta disposição.
Outro exemplo idêntico era a questão do furto da eletricidade. Durante muito tempo
não existiam normas específicas sobre esta problemática e, quando chegavam aos
tribunais casos de furto de eletricidade, surgia o problema de fazer caber essa situação
no artigo 203º sobre o furto. Isto porque o objeto dessa disposição é uma coisa móvel
e a eletricidade não cabe no sentido possível da palavra coisa, embora tenha um mínimo
de correspondência, cabendo no espírito do legislador.
Outra posição de importante relevo nesta matéria é a do professor Castanheira
Neves. Este autor defende que se deve superar a distinção entre interpretação extensiva
e analogia para determinar o que é ou não permitido fazer em direito penal. Para este
professor, a divisão relevante é entre interpretação permitida e interpretação
proibida, não interessando se é extensiva ou analógica, e, de uma forma sucinta, conclui
que sempre que não haja uma imprevisibilidade e por isso haja segurança e certeza
jurídica, temos uma interpretação permitida.
Para Castanheira Neves, a interpretação permitida é aquela que ainda caiba no
âmbito de proteção da norma. E cai, por sua vez, dentro do âmbito de proteção da
norma quando caiba no sentido logicamente possível das palavras da lei, quando revele
os valores jurídicos que a lei pretende salvaguardar e que seja compatível com outros
valores do sistema e com a unidade do direito definida pelos Tribunais.

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O que podemos retirar deste pensamento é que, para Castanheira Neves, haverá
casos de interpretação extensiva que são permitidos, desde que se verifiquem estes
pressupostos, ou seja, desde que haja segurança e certeza jurídica, evitando a
imprevisibilidade. Um dos argumentos para esta tese é que no código penal anterior,
de 1886, era proibida expressamente a interpretação extensiva, enquanto que no
código penal atual, não há nenhuma norma que faça essa proibição.
Esta tese não é isenta de críticas. Em primeiro lugar, apesar de não haver uma
norma como havia antes que proíba expressamente a interpretação extensiva, há o
artigo 29º nº3 CRP que exige a previsão legal de qualquer pena ou medida de segurança,
sendo vedada a aplicação destas sem que este pressuposto esteja verificado.
A segunda critica prende-se com o facto de o critério central da teoria deste
professor ser a imprevisibilidade. Fica a ideia de que faz tábua rasa do significado do
texto, isto é, parece que o momento em que olhamos para o significado do texto não
tem importância.
Além disso, quando o professor Castanheira Neves diz que o sentido tem de ser
compatível com a unidade de direito dada pelos Tribunais, está a ir contra o princípio da
reserva de lei que nos diz que apenas a lei pode ser fonte de direito. Isto implica não
respeitar o princípio da separação de poderes e o princípio que diz que não há crime
nem pena sem lei formal.
Por fim, a última posição doutrinária que vamos invocar neste tema é a da
professora Fernanda Palma que, numa linha de pensamento semelhante à do professor
Castanheira neves, considera que se deve distinguir a interpretação permitida da
interpretação proibida. Segundo esta autora, devemos procurar o critério dessa
distinção na racionalidade da proibição da analogia. A conclusão é que a interpretação
permitida tem de ser uma interpretação que não ofenda as expetativas do cidadão, e
por isso não poe em causa a segurança jurídica.
Contudo, ao contrário do que defende Castanheira Neves, para a professora
Fernanda Palma, essa interpretação não poderá prescindir da relevância do texto
jurídico, isto é, não poderá prescindir daquele que é o sentido possível das palavras do
texto. Assim, o sentido possível corresponde ao sentido comunicacional percetível e não
a qualquer sentido lógico não sustentável pela linguagem social.
A grande diferença entre esta tese e a tese de Castanheira Neves é que, para
Fernanda Palma, o texto jurídico tem um papel central e o seu significado, o sentido a
dar a esse texto é determinável pela linguagem comum. De resto, estes autores estão
em acordo, ambos defendem que a interpretação não pode ofender a segurança e
certeza jurídicas que o princípio da legalidade visa salvaguardar.
A acrescentar ainda que a professora Fernanda Palma, também como a Valdágua e
a Beleza, considera que dentro do sentido possível das palavras, o tal sentido
comunicacional, se podem abarcar situações que a doutrina tradicional consideraria
interpretação extensiva, ou seja, casos em que o sentido que vai para além do sentido
amplo das palavras, mas tem o mínimo de correspondência na lei.

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APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO
Antes de qualquer outra nota, importa enquadrar este tema: a matéria da aplicação
da lei penal no tempo está relacionada com o princípio da legalidade e faz parte
integrante deste. Este tema é o último dentro da enumeração dos subprincípios do
princípio da legalidade. Contudo, devido à sua complexidade e importância vamos aqui
tratar a aplicação da lei penal no tempo como um tema autónomo.
A aplicação da lei penal no tempo segue, essencialmente, dois princípios: o princípio
da não retroatividade da lei penal e princípio da aplicação retroativa da lei penal mais
favorável ao agente.
Princípio da não retroatividade da lei penal
Este princípio é frequentemente expresso na fórmula: não há crime nem pena sem
lei prévia. É proibida a aplicação retroativa da lei penal, acrescentando-se que esta
proibição apenas incide sobre as leis que sejam menos favoráveis ao agente. Isto
significa que não podemos aplicar a lei penal menos favorável ao agente a factos
anteriores à sua entrada em vigor.
De acordo com o professor Figueiredo Dias, este é o plano porventura mais
significativo da refração do princípio da legalidade e aquele que origina problemas mais
complexos, ou seja, a proibição da retroatividade in malem partem. Pode suceder que,
após a prática de um facto que ao tempo não constituía crime, uma lei nova venha a
criminalizá-lo ou, sendo o facto já crime no momento da sua prática, uma lei nova venha
prever para ele uma pena mais grave, qualitativamente (caso de ter passado de
contraordenação para crime) ou quantitativamente (pena que era no máximo 5 anos e
agora passou a ser 8). Este princípio reduz-se numa proibição de retroatividade das
normas nestas situações, ou seja, em tudo quanto funcione contra o réu.
Determinação do momento da prática do facto
Face ao artigo 3º, o facto considera-se praticado no momento da conduta e não no
momento do resultado. Quer isto dizer, por exemplo, que não importa a data em que a
vítima de um tiro morreu, mas sim o momento em que o tiro foi disparado. À partida,
tudo o que se disse deve ser estendido ao âmbito das medidas da segurança e aos seus
pressupostos, tal como dita o artigo 29º nº3 CRP.
Quando se discute a aplicação da lei penal no tempo, a nossa referência deve ser
sempre o momento da prática do facto. Olhamos sempre para o momento da conduta
e não para o momento do resultado. Isto até porque nem todos os crimes são crimes de
resultado, mas todos sem exceção pressupõem uma conduta e é isso que nos interessa.
É natural que a fixação do momento da prática do crime como aquele que vai
determinar a aplicação da lei penal neste contexto levante dificuldades. Surge aqui uma
questão complementar: como se fixa o momento da prática do crime nos chamados
crimes continuados? E nos crimes duradouros?
O crime continuado está previsto no artigo 30º nº2 e acontece quando há a
repetição do mesmo crime durante um período de tempo. Para que cheguemos a esta
classificação, têm de estar reunidos todos os requisitos do artigo 30º nº2.

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O exemplo mais comum é o do funcionário bancário que, todos os dias, furta 5€ da
caixa registadora. Este funcionário praticou o mesmo tipo de crime durante vários dias,
mas, tendo em conta as circunstâncias desta repetição, o legislador achou por bem que
esta situação compreenda apenas um crime. Neste caso, um crime continuado.
Vamos agora perceber o que é um crime duradouro. É um crime cuja execução se
prolonga ininterruptamente no tempo, como é o caso do sequestro.
Em ambas as figuras, temos a distribuição pelo tempo de condutas consideradas
como criminalmente relevantes. Importa agora perceber como é que vamos fixar o
momento da prática do crime para efeitos de aplicação da lei penal. Face ao artigo 3º,
o momento da prática é o momento da execução crime, como já vimos.
No caso dos crimes continuados, o momento da prática vai desde o primeiro ato até
ao último. O agente está sempre a executar, sendo que todo o tempo que decorre desde
a prática do primeiro ato integrado na continuação até ao último é considerado
momento da prática do facto.
E quanto aos crimes duradouros? Imagine-se que um sequestro começa em agosto
e o agente é apanhado em outubro. O momento da prática vai ser de agosto a outubro,
ou seja, é todo o tempo que decorre entre o primeiro ato de sequestro até ao último
ato de sequestro. Apesar de estas duas figuras serem diferentes, o momento da prática
do crime é fixado de forma idêntica, daí serem normalmente estudadas em conjunto.
O momento decisivo para a aplicação do princípio da retroatividade da lei penal
mais favorável ao agente é aquele em que cessa a conduta. Isto significa que, se
enquanto persiste a prática do facto, for modificada a lei de forma desfavorável ao
agente, essa lei pode ser aplicável. A lei aplicar-se-á sem violar o princípio da não
retroatividade da lei penal.
Princípio da aplicação retroativa da lei penal mais favorável ao agente
O outro princípio relevante é o princípio da aplicação retroativa da lei penal mais
favorável ao agente. Se sair uma lei mais favorável ao agente, é essa a lei que se aplica,
mesmo tendo surgido após a prática do facto, como se lê no artigo 29º nº4 CRP in fine
e no artigo 2º nº2 e nº4.
Este princípio já não resulta do princípio da legalidade, pois já nada tem a ver com
as expectativas do agente, que aqui é surpreendido pela positiva. Considera-se que está
mais próximo do princípio da necessidade da pena. Isto porque se o Estado, através de
uma alteração legislativa, resolveu estabelecer um regime mais favorável, é porque
deixou de ser necessária a lei anterior e, consequentemente, a pena mais grave prevista.
Neste sentido, surge um problema: quando é que a lei posterior à prática do facto
é, efetivamente, mais favorável ao agente? Temos duas possibilidades:
 A nova lei elimina o facto como crime – aquele facto era considerado crime, mas
deixa de o ser. Estamos a falar em descriminalização em sentido técnico. Esta
possibilidade está prevista no artigo 2º nº2 e no 29º nº4 segunda parte CRP.
 A lei posterior à prática do crime consente numa punição mais leve – esta
situação, mais óbvia, vem prevista no artigo 2º nº4.

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A nova lei elimina o facto como crime
A nova lei pode eliminar o facto como crime por duas formas:
 É eliminada a norma incriminadora sem ser substituída por qualquer outra;
 Sem haver a eliminação da norma incriminadora, o facto que era punível deixa
de o ser por força de uma lei posterior. Esta hipótese é menos óbvia.
Um bom exemplo desta segunda situação é o do aborto em Portugal. No nosso país,
o aborto era punido até à 10ª semana. A partir de 2007, o aborto deixou de ser
considerado crime até à 10ª semana, embora o aborto em si não tenha deixado de ser
considerado crime. A norma incriminadora não desapareceu, mas aquele facto em
concreto (aborto até à 10ª semana) deixou de ser considerado crime. É como que uma
espécie de exclusão de ilicitude. Há quem fale em despenalização, mas para a professor
Bárbara Sousa Brito não é o mais correto nestes casos.
Face a estas duas situações, em que a lei posterior é mais favorável porque o facto
é eliminado do número das infrações, importa saber que leis deverá o juiz ter em
consideração. Neste ponto da matéria são fundamentais questões como a de perceber
quais as leis que estarão em confronto numa situação destas e até que ponto é que o
legislador manda o aplicador da lei ter em conta a lei posterior.
Na situação em que a lei posterior elimina o facto do conjunto das infrações, as leis
que entram em confronto são as que estão em vigor entre o momento da prática do
crime até ao termo da execução da pena e, neste sentido, o artigo 2º nº2 segunda parte
é preponderante.
Sabemos que o momento da prática do facto, face ao artigo 3º, corresponde ao
momento da execução do crime. As leis que nos interessam são, portanto, aquelas que
estão em vigor entre a execução e o termo da pena. Assim, se surgir uma nova lei que
elemina o facto do âmbito das infrações (ou seja, o facto deixa de ser punível), mesmo
que haja uma condenação transitada em julgado, ter-se-á em conta a nova lei que
descriminaliza a conduta. Isto de acordo com o artigo 2º nº2 segunda parte.
Recuperando o exemplo do aborto, há a dizer que quando em 2007 saiu a nova lei
que descriminaliza o aborto até à 10ª semana, todas as mulheres presas pela prática
desse facto concreto tiveram de ser libertadas.
A nova lei consente uma punição mais leve
Resta percebermos o que acontece quando a lei posterior à prática do facto prevê
uma punição mais leve para o mesmo. Estas são as situações em que a lei posterior
favorece o agente, permitindo uma punição mais leve. Este princípio é de tal forma
significativo que encontra assento no artigo 2º nº4 e artigo 29º nº4 CRP.
Importa, novamente, perceber quais é que são as leis em confronto. Serão aquelas
que entram em vigor entre o momento da prática do crime até ao termo da execução
da pena, o que significa que se a lei surgir até ao termo da execução, será tida em conta.
Isto nos termos do artigo 2º nº4 e artigo 371A CPP.

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Há que salvaguardar a distinção entre duas situações quanto ao regime da aplicação
retroativa da lei mais favorável ao agente, face ao artigo 371ºA CPP:
 se, face à nova lei, o limite máximo a aplicar ao crime for menor do que a pena
aplicada ao agente, a pena é reduzida automaticamente para o limite máximo
da nova lei, e o agente, se assim o entender, pode ainda recorrer ao Tribunal
para que este recalcule a pena à luz da nova lei.
 No que toca às restantes situações de lei posterior mais favorável, em que o
limite máximo da nova lei não é menor do que a pena aplicada, mas o regime
é concretamente mais favorável, o arguido terá de interpor um recurso
extraordinário para que a sua pena seja avaliada à luz da nova lei.

Leis temporárias: exceção ao princípio da aplicação retroativa da lei mais favorável


Uma lei temporária, ou também chamada lei de emergência, é uma lei com um
período de vigência determinado face a situações excecionais, e o seu regime está
consagrado expressamente no artigo 2º nº3. A acrescentar que o prazo de vigência
dessas leis consta expressamente dessa lei, ou resulta implicitamente da verificação
de circunstâncias excecionais.
Imaginemos que, esperando-se um verão particularmente quente, a AR aprova uma
lei que pune com pena de prisão de 1 a 3 anos quem acender fogueiras em florestas
durante esse verão. Quid juris se B acendeu uma fogueira na floresta em agosto e só foi
apanhado em outubro, estando agora perante um juiz?
O princípio da aplicação retroativa da lei penal mais favorável ao agente daria a
entender que não podemos agora punir esta pessoa. A verdade é que a lei foi criada
para situações excecionais, esporádicas. Se só houvesse julgamento mais tarde, frustrar-
se-ia completamente a própria ideia de situação excecional. Não há um verdadeiro
problema de sucessão de leis no tempo, sendo que, para tal, a nova lei teria de se
debruçar sobre o mesmo facto. Ora, a nova lei não se debruça sobre o mesmo facto,
dado que as circunstâncias excecionais que deram base à outra deixaram de existir.
O artigo 2º nº3 consagra expressamente a definição de lei temporária ou lei de
emergência, dizendo que “quando a lei valer para um determinado período de tempo,
continua a ser punível o facto praticado durante esse período”.
Contudo, o professor Augusto Silva Dias defende a inconstitucionalidade deste
nº3, por violação da proibição da aplicação retroativa da lei penal mais desfavorável ao
agente. Para este professor, só pode haver aplicação da lei temporária se a pessoa for
julgada durante o período de vigência dessa lei. É de realçar que a maior parte da
doutrina discorda desta posição de Silva Dias.
Podemos concluir que as leis temporárias têm aplicação ultra-ativa, pelo menos
para a maior parte da doutrina, sendo que se aplicam a factos julgados depois de a lei
deixar de estar em vigor, por terem sido praticados durante o seu período de vigência.
Por esta razão, as leis temporárias são vistas como uma exceção ao princípio da
aplicação retroativa da lei mais favorável ao agente.

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As leis intermédias
Existe ainda um outro problema que merece tratamento neste capítulo, o das leis
penais intermédias que não devem ser confundidas com as leis penais temporárias ou
de emergência.
A lei penal intermédia é uma lei cujo início de vigência é posterior ao do momento
da prática do facto, e cujo termo de vigência ocorre antes do trânsito em julgado da
sentença. Esta lei não está em vigor nem no momento da prática do facto, nem no
momento do trânsito em julgado. Levanta-se a questão de saber se deverá ou não ser
tida em conta se for mais favorável ao agente.
A maior parte da doutrina considera que, quando o legislador fala em leis posteriores
(artigo 2º nº4) também está a ter em consideração estas leis intermédias. Além do mais,
temos o princípio da intervenção mínima do direito penal e o princípio da igualdade
no tratamento de casos idênticos. Portanto sim, concluímos que deve ser tida em conta
a lei intermédia que seja mais favorável ao agente.
Leis penais inconstitucionais de conteúdo mais favorável ao arguido
Por fim temos a questão, não menos importante, de perceber qual a relevância de
uma lei penal inconstitucional de conteúdo mais favorável ao arguido. Deve a
declaração de inconstitucionalidade de uma lei penal mais favorável ao agente ter ou
não eficácia retroativa?
Entende-se que, nesta situação, entram em confronto dois princípios. Assim,
temos, por um lado, o princípio que impede a produção de efeitos de uma norma
inconstitucional (sempre que o TC decide que uma lei é inconstitucional, faz cessar a
vigência dessa lei e repristina a anterior) e, por outro, o princípio da não retroatividade
da lei penal menos favorável ao agente.
Na resposta a este conflito, a doutrina divide-se. Uma parte da doutrina considera
que prevalece o princípio da não retroatividade. Por sua vez, a outra parte defende que
a lei inconstitucional nunca pode ser aplicada, e que o princípio da não retroatividade
da lei menos favorável só abrange leis válidas.

APLICAÇÃO DA LEI NO ESPAÇO


Faz parte da teoria da lei penal, estudar a sua aplicação. Uma vez que já abordamos
a questão da aplicação no tempo a propósito dos subprincípios do princípio da
legalidade, resta-nos agora perceber como funciona a aplicação da lei no espaço.
As disposições que regulam esta matéria são as normas do direito penal português
que, por um lado regulam a aplicabilidade no espaço da nossa lei penal, mas também,
por outro lado, aquelas que regulam a aplicabilidade por parte dos nossos tribunais do
direito penal estrangeiro.
As disposições que regulam a aplicação da lei penal no espaço também se debruçam
muitas vezes sobre a cooperação judicial internacional penal das autoridades
portuguesas e estrangeiras.

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Todas esta disposições, que têm a ver com a aplicação da lei penal no espaço,
chamam-se normas de direito penal internacional português. No fundo, estas normas
determinam o âmbito da validade espacial do direito penal português fora do território
nacional. Até se costuma dizer que estas normas estão para o direito penal como o
direito internacional privado está para o direito civil.
É importante não confundir direito internacional penal com direito penal
internacional português. O direito internacional penal é o conjunto das disposições
jurídico-penais que constam de tratados ou convenções aos quais o Estado português
aderiu. Por sua vez, fazem parte do direito penal internacional português as normas do
nosso ordenamento jurídico penal que regulam o âmbito de validade espacial do direito
penal português fora do território nacional.
A conformação do sistema estadual de aplicação da lei penal no espaço baseia-se
em diversos princípios e num certo modelo da sua combinação. Estes princípios não
assumem, todos eles, igual hierarquia, antes existindo um princípio base e princípios
acessórios ou complementares.
A pergunta central que importa responder é: a que infrações se aplica a lei penal
portuguesa? Quando é que se aplica a lei penal portuguesa?
Princípio da territorialidade
O princípio fundamental nesta matéria é o princípio da territorialidade. De acordo
com este princípio, a lei penal portuguesa aplica-se a todos os factos praticados em
território nacional, independentemente da nacionalidade do infrator, salvo tratado ou
convenção em contrário.
Este princípio é suportado por razões de ordem prática, já que é mais fácil realizar a
investigação no território onde o crime é praticado, por exemplo, mas também por
razões que têm diretamente a ver com as finalidades das penas, visto que é no
território do Estado onde o crime é praticado que mais importa exercer as finalidades
prosseguidas pelas penas, sobretudo a finalidade de prevenção geral.
Assim sendo, se a lei penal portuguesa se aplica a todos os factos praticados em
território português, releva saber em que lugar se considera praticado o crime. Para tal,
recorremos ao artigo 7º, cujo nº1 estabelece que “o facto se considera praticado tanto
no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o
agente atuou, ou, no caso de omissão, devia ter atuado, como naquele em que o
resultado típico ou o resultado não compreendido no crime se tiver produzido.”
Da leitura desta disposição, percebemos que o legislador queria abranger tanto os
crimes de ação (“o agente atuou”), como os crimes de omissão (“devia ter atuado”). O
que caracteriza um crime omissivo é que o comportamento, em vez de consistir numa
atividade, traduz-se numa inatividade por parte do agente.
Como vamos ver, para que o agente seja punido por omissão, é necessário, por
norma, que tivesse um especial dever de agir em relação à vítima. Isto decorre do facto
de que, em direito penal, não punimos pela violação de um dever objetivo, ao contrário
do que acontece no direito civil.

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Esta disposição tem ainda a expressão “total ou parcialmente”. Isto demonstra que
o legislador está a acautelar, não só os crimes instantâneos, como também os crimes
cuja execução de prolonga no tempo. Assim, basta que apenas parte desse crime
duradouro seja praticado em Portugal para que a lei penal portuguesa seja aplicável.
Um possível exemplo é o caso em que há um sequestro de uma vítima em França, que
depois é trazida para Portugal, bastando esse facto do crime ser em território nacional.
O legislador ainda acrescenta mais uma frase: “sob qualquer forma de
comparticipação”. Os crimes no nosso código penal estão, na sua maioria, previstos na
forma de autoria singular e direta. Por exemplo, quando se diz “quem matar outrem”
no artigo 131º, está-se a pensar no homicida, na pessoa que realizou o ato diretamente.
Contudo, há outras formas de participar no crime, sem ser o autor direto no crime.
Será o caso do A que paga ao B 50 mil euros para matar o C. Este A também deverá
ser punido, mas não por autoria singular e direta. Nesse caso, recorreríamos ao artigo
26º que diz que quem determina outrem a praticar o facto é punido como autor.
Esta norma é um exemplo de uma norma extensiva da tipicidade do nosso Código
Penal. Estas normas vão permitir estender a tipicidade a outras formas de participação
no crime. Se não existisse esta disposição, não poderíamos punir o A, por força do
princípio da legalidade.
Além disso, o artigo 7º também diz que o facto se considera praticado no lugar em
que o resultado típico se tenha produzido. É por isso que se diz que esta disposição
consagra a chamada teoria da ubiquidade, segundo a qual basta que um dos elementos
essenciais do tipo se verifique em território português para se aplicar a lei penal
portuguesa.
Imagine-se que A, português, instiga o B, também português, a praticar um crime de
furto em França. Basta a instigação ter acontecido em Portugal para o facto se
considerar praticado em território português.
Mas o nosso legislador ainda diz mais, diz que o facto também se considera
praticado no lugar em que o resultado não compreendido no tipo se tiver produzido.
Assim sendo, ficamos a saber que existem dois tipos de resultado possíveis: o resultado
compreendido no tipo legal e o resultado não compreendido no tipo legal. Por exemplo,
o resultado típico no artigo 131º é a morte.
Os resultados não compreendidos no tipo são os chamados crimes de perigo
concreto. O que caracteriza um crime de perigo concreto? Como o próprio nome indica,
nos crimes de perigo concreto, para o tipo ficar preenchido basta que haja perigo para
o bem jurídico, não sendo necessária a sua lesão efetiva.
O exemplo académico é o da mãe que abandona a criança à porta de um convento.
Se essa mãe abandona a criança durante a noite e se vai embora, em princípio, preenche
o crime de exposição ao abandono, estabelecido pelo artigo 138º.
Para este tipo estar preenchido basta que a vida da criança seja colocada em perigo.
Não é preciso que a criança se magoe ou morra. É isso que caracteriza um crime de
perigo concreto. Já se a mãe esteve o tempo todo a acompanhar a criança e verificar
que nada lhe acontecia, então já não haverá crime de perigo.

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Também é possível considerar que esta expressão abrange ainda os crimes de
tentativa, apesar destes já estarem claramente prevista no nº2 do artigo 7º.
Imaginemos que a mãe era portuguesa e abandonou a criança à porta do convento
em Badajoz, Espana. Por sua vez, a criança foi trazida para Portugal numa ambulância e
morreu num hospital português. Quid juris? Esses factos são mais do que suficientes
para se aplicar a lei penal portuguesa. Neste exemplo, o resultado (morte da criança),
não está compreendido no tipo de crime, mas é abrangido pelo nº1 artigo 7º.
Para a professora Bárbara Sousa Brito, o legislador também está a pensar nas
chamadas omissões puras ou próprias. O crime de omissão de auxílio, previsto no
artigo 200º, é considerado uma omissão pura ou própria, porque basta haver omissão
para o tipo ficar preenchido. Ou seja, não é necessário verificar qualquer resultado para
preencher o requisito, ao contrário do que acontece com as omissões impuras.
Se virmos alguém numa situação de perigo durante a noite e nada fizermos, em
princípio, teremos praticados este crime de omissão de auxílio. Imagine-se que essa
pessoa que não ajudamos, morre. Podemos ser punidos por homicídio por omissão?
Neste caso, teríamos de estar investidos de um dever legal de agir, para sermos punidos
pelo crime de homicídio por omissão, o que dificilmente terá acontecido. Contudo,
podemos ser punidos por omissão de auxílio que é muito menos grave, já que a pena é
apenas até um ano.
Quando é que há dever especial de agir? Os casos paradigmáticos são o do pai em
relação ao seu filho, o cônjuge, a babysitter, um bombeio ou um nadador salvador.
Também consideramos que terá especial dever de agir aquele que atropelou uma
pessoa ou aquele que seja a única pessoa a assistir a um acidente, por uma situação de
monopólio, mas sempre se não houver perigo para essa pessoa.
Sobre o nadador salvador, o polícia e o bombeiro há ainda a querela sobre se estas
pessoas têm um dever de agir sempre ou se é só quando estão a exercer essa profissão.
Contudo, não é esse o foco do nosso estudo, pelo que não vamos aprofundar a questão.
Ultrapassada esta atividade de desmontar a primeira disposição do artigo 7º,
importa agora olhar para a seguinte, o nº2: “No caso de tentativa, o facto considera-se
igualmente praticado no lugar em que, de acordo com a representação do agente, o
resultado se deveria ter produzido”. Assim sendo, não é necessária a ação nem o
resultado se verificarem para que se aplique o direito penal português a estes casos.
Basta que se consiga prova que o local pretendido para a ocorrência do facto fosse o
nosso território nacional.
Se, por exemplo, o A, que está em França, enviar uma bomba para explodir na casa
do B, em Portugal, mas essa bomba explode num posto de correios em Espanha,
podemos considerar o facto praticado em Portugal, porque o resultado projetado pelo
agente ia ser concretizado em Portugal.
Concluímos, assim, que o legislador procurou que o âmbito de aplicação do artigo
7º fosse amplo o bastante para incluir o máximo de casos possíveis, seguindo este
critério de ubiquidade. A ideia é evitar conflitos negativos, que são aquelas situações
em que nenhum ordenamento jurídico se considera competente para julgar o facto.

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Claro que, assim sendo e sendo este critério comum a outros países, assistimos a
conflitos positivos, em que vários ordenamentos jurídicos se consideram competentes
para julgar o mesmo crime. Acontece que estes conflitos não são um problema, já que
são de fácil resolução mediante vários critérios. (Exemplo de critério: num crime que
tanto pode ser julgado por Espanha ou por Portugal, se um destes países for o primeiro
a julgar, o outro deixa de o poder fazer. Isto por foça do princípio ne bis in idem, segundo
o qual ninguém pode ser julgado duas vezes pelo mesmo facto).
Por tudo o que foi exposto, rapidamente se compreende que o artigo 7º é essencial,
dado que será sempre o primeiro a ser aplicado em casos de aplicação de lei penal no
espaço. É ele que determina o local da prática do facto e sem termos este dado é
impossível aplicarmos qualquer lei penal.
A verdadeira extensão do território nacional
Uma vez que estamos a analisar o princípio da territorialidade, importa perceber
afinal o que é que é considerado como território nacional. O território português é
definido pela nossa constituição, nomeadamente no artigo 5º nº1 e nº2 CRP, onde se lê
que o território nacional compreende não apenas o espaço terrestre sujeito à jurisdição
do Estado, mas também o correspondente ao subsolo, espaço aéreo e ainda as águas
territoriais portuguesas face ao direito internacional público.
Para este efeito, também são considerados como território nacional, os navios e as
aeronaves portuguesas, por força do artigo 4º alínea b). Para saber se estes são ou não
portugueses, o critério é o registo, importante onde é que este foi feito. Esta disposição
consagra o princípio do pavilhão e da bandeira, de acordo com o qual os navios
portugueses e as aeronaves portuguesas se consideram território nacional.
Nesta alínea não é feita qualquer distinção entre comerciais e militares, o que nos
leva a concluir que inclui todos os navios e aeronaves. Não se distingue também se estes
se encontram em águas ou espaços aéreos internacionais. Podemos concluir que,
independentemente do local onde se encontrem, os navios e aeronaves registados em
Portugal serão sempre considerados território nacional para efeitos de aplicação do
direito penal português. Este artigo corporiza ainda um velho princípio de direito
internacional público, de acordo com o qual os navios e aeronaves de guerra são sempre
considerados território nacional dos seus Estados.
Como nos diz o professor Figueiredo Dias, parece, todavia, dever entender-se que,
sempre que o navio ou aeronave estejam surtos em porto ou aeroporto de país
diferente do do pavilhão, isso não retira competência à lei do lugar em nome do
princípio base da territorialidade. Isto só favorecerá necessidade, eventualmente
imperiosa, de intervenção imediata das autoridades policiais ou mesmo judiciárias.
Quando tal suceda dar-se-á, no máximo, um conflito positivo de competências.
Face ao DL 254/2003, a lei penal portuguesa é aplicável aos factos criminais referidos
no artigo 4º deste DL, que sejam cometidos a bordo de uma aeronave alugada a um
operador com sede em território português; às aeronaves cujo destino final da viagem
seja Portugal, independentemente da companhia ou local de registo da aeronave; ou
ainda se o comandante da aeronave entregar o presumível infrator às autoridades
portuguesas. Este DL acaba por ser mais uma manifestação da teoria da ubiquidade.

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Princípios complementares
Além do princípio da territorialidade, há uma série de princípios complementares
quanto à aplicação da lei penal no espaço que visam determinar quando é que a lei
penal portuguesa pode ser aplicável a factos praticados fora do território nacional.
Estes princípios consideram-se complementares por duas razões.
Em primeiro lugar, os princípios complementares vêm acrescentar mais situações
em que é possível aplicar a lei penal portuguesa. Só se chegando a eles, se não for
possível aplicar o princípio da territorialidade. Em segundo lugar, são considerados
subsidiários também porque só se aplicam se não houver disposição de tratado ou
convenção internacional aplicável que determine o contrário
Se, mediante a aplicação do artigo 7º, se considerar o facto praticado fora do
território nacional, só pode funcionar o artigo 5º que consagra todos os princípios
completares, ou seja, todas as situações em que é possível aplicar a lei penal portuguesa
a factos praticado fora do nosso território nacional.
O estudo que se segue passa por analisar cada uma das alíneas desta disposição para
chegar aos vários princípios complementares da aplicação da nossa lei penal no espaço.
Princípio da proteção dos interesses nacionais ou princípio realista
Vamos começar pelo primeiro princípio complementar, previsto na alínea a) nº1
artigo 5º onde se lê que a norma penal portuguesa é também aplicável a factos
cometidos fora do território nacional “quando constituírem os crimes previstos nos
artigos 221º, 262º a 271º, 308º a 321º e 325º a 345º.”
Esta alínea consagra aquilo a que a doutrina chama de princípio realista ou princípio
da proteção dos interesses nacionais. Trata-se da específica proteção que deve ser
concedida a determinados bens jurídicos portugueses, independentemente da
nacionalidade do agente, do local da prática do facto criminoso e de haver
possivelmente uma previsão desse crime na lei desse lugar.
A disposição em causa faz uma enumeração taxativa de crimes cometidos no
estrangeiro, quer por portugueses ou por estrangeiros, que põem em causa interesses
fundamentais ou bens jurídicos fundamentais nacionais, como a segurança do Estado
ou o respeito pelo princípio do Estado de direito. Podemos resumir esses bens jurídicos
a quatro categorias, tendo em conta a menção aos artigos elencados:
 Bens jurídicos que têm que ver com os alicerces e o funcionamento do Estado de
Direito democrático, previstos nos artigos 325º a 345º. Um exemplo é o crime
de coação a ordens constitucionais;
 Bens jurídicos em que estão em causa interesses do Estado em termos de
confiança na circulação fiduciária, previstos nos artigos 262º a 271º. Caso do
crime de contrafação de moeda;
 Bens jurídicos relacionados com os interesses da independência e integridade
nacionais, que estão previstos nos artigos 308º a 321º. Caso do crime de traição
à pátria;

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 Crimes que ponham em causa a segurança das comunicações, onde se inclui o
caso da burla informática que está previsto no artigo 221º.
Para determinar se está ou não em causa um bem jurídico nacional interessa, mais
do que a titularidade, saber a relevância nacional dos bens jurídicos em causa.
Sempre que se aplica o artigo 5º, também temos de ter em conta o artigo 6º, que
consagra uma série de restrições à aplicação da lei penal portuguesa a factos
cometidos fora do território nacional. No entanto, o nº3 desse artigo 6º diz-nos que
sempre que estiverem em causa questões relacionadas com o princípio da proteção dos
interesses nacionais, essas restrições são afastadas. Ou seja, as restrições previstas pelo
artigo 6º não se aplicam aos crimes previstos na alínea a) artigo 5º.
Numa versão anterior à versão atual do nosso código penal, este artigo 5º nº1 fazia
referência também a crimes relacionados com o terrorismo. Contudo, os artigos que
faziam essa previsão, foram revogados por uma lei de combate ao terrorismo, lei nº
52/2003, que descreve como se punem os crimes relacionados com terrorismo.
O artigo 8º dessa lei 52/2003, estabelece a aplicabilidade da lei penal portuguesa
quer ao crime de terrorismo quer ao crime de organização terrorista, mesmo que os
crimes sejam cometidos no estrangeiro e, face a esta lei, está excluída a possibilidade
de aplicar a lei do local onde o crime foi cometido, mesmo que seja mais favorável ao
agente. A única exigência é que o agente seja apanhado em Portugal.
Quer isto dizer que o regime aplicável a estes crimes continua a ser exatamente o
mesmo que está previsto pelo artigo 5º nº1 alínea a), com a diferença de que agora está
previsto em diploma avulso, na dita lei de combate ao terrorismo.

Princípio da nacionalidade (ativa e passiva)


O segundo princípio complementar ao princípio da territorialidade, está consagrado
na alínea b) artigo 5º e denomina-se princípio da nacionalidade ativa e passiva. De
acordo com este princípio, a lei portuguesa é aplicável a factos cometidos fora do
território nacional por portugueses que vivam habitualmente em Portugal ao tempo
da prática do crime, contra portugueses e desde que o agente seja encontrado em
Portugal. É ativa e passiva: por português contra português.
O professor Figueiredo Dias acredita que este princípio se funda muito na máxima
internacionalmente aceite segundo a qual um país não extradita os cidadãos nacionais.
Se os não extradita, então os princípios da convivência internacional devem conduzir a
que, uma vez que eles se encontrem de novo no país da nacionalidade, o Estado nacional
os puna. Esta é a principal justificação deste princípio como complementar do princípio
da territorialidade.
O que interessa é saber se a residência habitual do infrator é em Portugal e, mais
importante ainda, para que esta alínea seja acionada, não é necessário que a conduta
seja punível no local onde foi praticado o crime. Não é, assim, exigível a dupla
incriminação. Esta última ideia é o mais importante desta alínea, embora não esteja
expressamente consagrada.

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Podemos considerar que esta norma surgiu para abarcar e fazer frente os chamados
casos de fraude à lei, ou seja, visa impedir que um cidadão português se desloque ao
estrangeiro com o intuito de aí praticar um facto que, apesar de ser crime à luz da lei
portuguesa, não o é à luz da lei estrangeira. Ao fazer isso, o cidadão português estaria a
incorrer numa fraude à lei. Casos paradigmáticos disto eram os abortos, antes da sua
despenalização ou o crime de bigamia.
Após a revisão de 2007, esta alínea b) passou a estar integrada também no artigo 6º
nº3 que afasta as restrições à aplicação da lei penal portuguesa. Isto significa que se um
português for ao estrangeiro para aí praticar um crime contra um outro português e esse
crime for punido mais levemente à luz da lei estrangeira, ele não vai beneficiar dessa
atenuação.
Há aqui que realçar que o Professor Taipa de Carvalho exige mais um pressuposto,
além dos já previstos para a aplicação desta alínea, obrigando a que se faça prova de
que há efetivamente uma fraude à lei. Isto significa que, se aquele português não for
àquele país única e exclusivamente com a intenção de praticar um crime justamente
porque aí ele não é considerado crime ou é punido de forma mais leve, então não estão
reunidos os pressupostos para a aplicação deste artigo. Contudo, esta é uma
interpretação minoritária.

Princípio da aplicação universal ou da universalidade


O princípio da universalidade vem previsto na alínea c) do artigo 5º. De acordo com
esta disposição, a lei penal portuguesa aplica-se aos crimes que estão enumerados
taxativamente nesta alínea, desde que o agente desse crime praticado fora do
território nacional, seja ele português ou estrangeiro, desde que seja encontrado em
Portugal e não possa ser extraditado (porque as condições necessárias à extradição não
se encontram cumpridas, ou porque não houve sequer requerimento da sua
extradição), ou não possa ser entregue a outro título que não a extradição, como
resultado da execução do mandato de detenção europeu ou de qualquer outro
instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado Português.
Os crimes nessa alínea c) enumerados taxativamente são crimes ofensivos de
interesses que ultrapassam as fronteiras de qualquer país, por serem crimes que
ofendem a humanidade em geral e, por isso, carecem de proteção internacional. É o
caso do crime de escravidão, artigo 159º, ou o crime de tráfico de pessoas, artigo 160º.
 Extradição
Quanto à extradição e às suas condições, estas estão reguladas no artigo 33º CRP e
no DL 144/99. Fala-se em extradição passiva para se referir àquela que é solicitada ao
Estado português por outro Estado. Por sua vez, a extradição ativa é a situação em que
é o próprio Estado português que age, tomando a iniciativa de extraditar alguém. Por
norma, não é admitida a expulsão de cidadãos portugueses do território nacional, por
força do nº1 artigo 33º CRP.

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Já o nº6 do mesmo artigo diz-nos que, em princípio, todos os crimes praticados por
estrangeiros em território português são suscetíveis de fundamentar a extradição,
desde que se tratem de crimes com pena de prisão superior a um ano quer pela lei
portuguesa, quer pela lei do estado requisitante, exceto quando esta extradição for
pedida com motivação política ou no caso de ao crime em causa corresponder uma
pena de morte ou uma pena da qual resulte uma lesão irreversível da integridade física
segundo o direito do Estado requisitante, ou ainda no caso de o país estrangeiro prever
pena de prisão perpétua ou medida de segurança com carácter perpétuo ou de duração
indefinida.
Se um americano cometer o crime e homicídio em Portugal e se o Estado americano
prevê a pena de morte, é inconcebível a extradição desse cidadão. O acórdão nº1/2001
do TC, diz que esta regra não permite qualquer flexibilidade. Ou seja, mesmo que o
Estado americano em causa, se comprometa politicamente a não aplicar a pena de
morte, basta esta possibilidade estar prevista para aquele crime praticado, para que o
agente não possa ser extraditado.
Ainda sobre a alínea c) importa falar sobre os crimes contra a paz e contra a
humanidade, já que vinham previstos nesta alínea certos crimes como o genocídio ou
crimes de guerra. Contudo, estes deixaram de vir aqui previstos, já que transitaram para
a lei nº 31/2004, que é relativa às violações do direito internacional humanitário. Esta
lei consagra este mesmo princípio universalista quando se trata deste tipo de crimes.
O artigo 5º lei nº 31/2004 diz-nos que se houver um crime contra a humanidade
praticado fora de Portugal, mas o agente for encontrado em Portugal e não possa ser
extraditado, aplicar-se-á a lei penal portuguesa.
A única situação que esta lei acrescenta é poder ser decidida a não entrega do
delinquente ao Tribunal Penal Internacional. Quando é que se pode decidir pela não
entrega do agente ao Tribunal Penal Internacional, se fazemos parte do Estatuto de
Roma? São as situações em que o TPI pede a Portugal a extradição do agente para
condená-lo por um crime, ao qual é possível aplicar a prisão perpétua. Esse pedido pode
e será recusado por essa razão.
Princípio da universalidade da proteção de menores
Este princípio está consagrado no artigo 5º nº1 d), que só foi introduzido em 2007
em Portugal, tendo em conta a política internacional destinada a dar proteção aos
menores face à criminalidade internacional. Basta que seja um crime contra menor e o
agente seja encontrado em Portugal e que não possa ser extraditado,
independentemente da nacionalidade da vítima.
Aplica-se e lei penal portuguesa sempre que sejam praticados os crimes referidos
taxativamente nessa alínea, nomeadamente os crimes de ofensa à integridade física
grave, coação sexual, violação contra menores, desde que o agente seja encontrado
em Portugal e não possa ser extraditado ou entregue em resultado de qualquer
instrumento equiparado à extradição.

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O que levou à criação desta disposição foi fundamentalmente o crime de mutilação
genital feminina, prevista no artigo 144º alínea a). Contudo, como há etnias onde esta
prática é comum e, muitas vezes nem é punível, o que acontece, por aplicação do artigo
6º nº2 é que a lei penal portuguesa é afastada já que a lei desses países é claramente
mais benéfica ao infrator. Para evitar este desfecho, o professor Taipa de Carvalho
defende que o nº3 artigo 6º que afasta as restrições à aplicação do direito penal
português nos casos das alíneas a) e b) artigo 5º, deveria também incluir a alínea c) de
forma a abarcar estes crimes.

Princípio da nacionalidade ativa e princípio da nacionalidade passiva


A alínea e) nº1 artigo 5º é dividida em duas partes e cada uma delas corresponde a
um princípio complementar do princípio da territorialidade. Esta alínea estabelece que
a lei penal portuguesa é aplicável a factos cometidos fora do território nacional em dois
casos: por portugueses ou por estrangeiros, contra portugueses.
No primeiro caso, falamos na nacionalidade ativa, enquanto que o segundo diz
respeito à nacionalidade passiva. Esta disposição exige ainda três requisitos para que a
lei penal portuguesa possa ser aplicada a esse agente:
i) Os agentes forem encontrados em Portugal;
ii) Forem também puníveis pela legislação do lugar em que tiverem sido
praticados, salvo quando nesse lugar não se exercer poder punitivo;
iii) Constituírem crime que admita extradição e esta não possa ser concedida
ou seja decidida a não entrega do agente em execução de mandado de
detenção europeu ou de outro instrumento de cooperação internacional que
vincule o Estado Português.
 Princípio da nacionalidade ativa
De acordo com o princípio da nacionalidade ativa, a lei penal portuguesa é aplicada
a qualquer crime cometido fora do território português desde que o agente seja
português, seja encontrado em Portugal, o facto esteja previsto na legislação penal do
país onde o crime foi cometido e o crime admita extradição e esta não possa ser
concedida ou não tenha sequer havido pedido de extradição, sendo que o mesmo se
aplica ao mandato de detenção europeu.
Mais uma vez temos aqui a figura da extradição, regulada nos termos que já
observamos. Isto tem que ver com o princípio da humanidade das penas e com o facto
de que, até há bem pouco tempo, não havia situações em que o Estado português
pudesse extraditar um seu cidadão nacional. Por norma, o Estado nunca extradita os
seus cidadãos e só o fará se for obrigado por alguma convenção internacional, como
acontece com os crimes de terrorismo.
Para o professor Figueiredo Dias, a exigência material mais importante é a que se faz
no ponto ii) desta alínea: que a lei do local onde o facto foi praticado o puna. Não é regra
razoável estar a submeter ao poder punitivo alguém que praticou o facto num lugar
onde ele não é considerado penalmente relevante e onde, por isso, não se fazem sentir

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quaisquer exigências preventivas quer sob a forma de tutela das expectativas
comunitárias na manutenção da validade da norma violada – norma que, em definitivo,
não existe –, quer sob a forma de uma socialização de que, segundo a lei do lugar, o
agente não carece.
Na parte final desse mesmo ponto ii), o legislador acrescenta “salvo quando nesse
lugar não se exerce o poder punitivo”. Os lugares a que aqui é feita referência são o alto
mar, a Antártida ou a Lua.
Há uma discussão da doutrina sobre questão de saber se o legislador, ao fazer esta
afirmação, está a exigir que o crime seja punível em concreto ou só à luz da legislação
do país. Ou seja, é preciso que o país considere crime naquele caso concreto, ou é
preciso que aquela conduta possa ser abstratamente considerada como crime? A
maior parte da doutrina pende para a primeira hipótese, ou seja, reconhece aqui uma
exigência de que a conduta em causa seja concretamente punível à luz do ordenamento
jurídico penal do país onde foi cometida.
 Princípio da nacionalidade passiva
A segunda parte da alínea e), contém o princípio da nacionalidade passiva. Aqui o
agente não é português, mas a vítima tem obrigatoriamente de o ser. A lei penal
portuguesa poderá ser aplicada nesses casos, mediante a verificação de todos os
pressupostos supra mencionados: o estrangeiro seja encontrado em Portugal, o facto
seja previsto pelo país onde o facto foi praticado, o crime admita a extradição e esta não
possa ser concedida.
Para o professor Figueiredo Dias, o que oferece fundamento a este princípio é a
necessidade, sentida pelo Estado Português, de proteger os cidadãos nacionais. Por
outras palavras, trata-se da exigência de proteção de nacionais perante factos contra
eles cometidos por estrangeiros no estrangeiro e, neste sentido, a proteção dos
interesses nacionais. O princípio da nacionalidade passiva possui por isso um
fundamento e uma teleologia que o identifica com o princípio da defesa de interesses
nacionais concretamente sob a forma de proteção pessoal (individual) daqueles
interesses.

Princípio da aplicação supletiva da lei penal portuguesa a crimes cometidos por


estrangeiros contra estrangeiros
Este princípio está consagrado na alínea f) nº1 artigo 5º. Segundo esta disposição, a
lei penal portuguesa aplica-se a crimes praticados por estrangeiros, contra
estrangeiros, fora do território nacional, mas o agente é encontrado em Portugal.
Exige-se ainda que constituíam crimes que admitam extradição e esta não possa ser
concedida ou seja decidida a não entrega do agente em execução de mandado de
detenção europeu ou outro instrumento de cooperação internacional que vincule o
Estado Português.
Para o professor Figueiredo Dias, esta norma visa evitar que Portugal se torne no
paraíso de criminosos estrangeiros, evitar que as pessoas que cometem crimes no
estrangeiro que não admitem extradição, venham para Portugal para evitar punição.

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Considerações finais sobre o artigo 5º
Como vimos, o artigo 5º consagra vários princípios complementares, contudo a sua
enumeração não é aleatória. É a ordem pela qual devemos analisar o caso: se não couber
na alínea a), passamos para a b) e assim sucessivamente.
Existem ainda mais duas situações em a lei penal portuguesa pode ser aplicada a
factos praticados fora do território nacional:
 A alínea g), relacionada com pessoas coletivas, prevê a aplicação da lei penal
portuguesa aos factos praticados por pessoa coletiva ou contra pessoa coletiva
que tenha sede em território português.
 Por fim, o nº 2 estipula que a lei penal portuguesa é ainda aplicável aos factos
cometidos fora do território nacional que o Estado português se tenha
obrigado a julgar por Tratado ou Convenção internacional.

Restrições à aplicação da lei penal portuguesa a factos fora do território nacional


Quando funcionamos com o artigo 5º, temos sempre de ter em conta o artigo 6º
que consagra algumas restrições à aplicação da lei portuguesa a factos cometidos fora
do território nacional. Por regra, este segundo só se aplica quando chegamos à
conclusão, através do primeiro, que se pode aplicar a lei penal portuguesa ao caso
concreto que estamos a tentar resolver.
De acordo com o nº1, não haverá aplicação da lei penal portuguesa se o agente
tiver sido julgado no país em que cometeu o crime e se não se tiver subtraído ao
cumprimento total da pena. Esta disposição está intimamente relacionada com o
princípio ne bis in idem, segundo o qual ninguém pode ser julgado duas vezes pelo
mesmo facto.
Esta norma pretende abarcar as situações em que, face a um conflito positivo, um
dos países competentes julgou primeiro, fazendo com que o outro perca essa
possibilidade. As outras situações que também cabem no âmbito desta norma são
aquelas em que o delinquente foi julgado, mas fugiu ao cumprimento total ou parcial
da pena. Nesta segunda hipótese, ele já poderá ser julgado em Portugal, mas o juiz terá
de ter em conta o tempo da pena que ele já cumpriu. Trata-se de um corolário do
princípio ne bis in idem, conhecido por desconto da importação, previsto no artigo 82º.
O Art.º 6 nº2 estatui que, embora se aplicável a lei penal portuguesa, o facto é
julgado segundo a lei do país em que tiver sido praticado sempre que esta seja
concretamente mais favorável ao agente. Contudo, esta regra não vai ser aplicada
quando o facto se insira na alínea a) ou alínea b) nº1 artigo 5º.

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ÂMBITO DE VALIDADE DA LEI PENAL QUANTO ÀS PESSOAS
Já falamos sobre a aplicação no tempo e no espaço, mas ainda a propósito da lei
penal, importa falar também no seu âmbito de validade quanto às pessoas. Em relação
a certas pessoas, existem regras especiais quanto ao funcionamento da lei penal que
resultam fundamentalmente da CRP e traduzem-se em imunidades.
Presidente da República
Desde logo, temos o artigo 130º CRP que consagra especialidades quanto à
aplicação da lei penal ao Presidente da República. Face a este artigo, exclui-se
totalmente da prossecução penal, os crimes estranhos ao exercício de funções durante
o mandato e, por isso, durante todo esse período, suspende-se toda a efetivação da
responsabilidade penal.
Contudo, estas regras dizem respeito aos crimes estranhos ao exercício das funções.
Por outro lado, no que toca aos crimes praticados no exercício das suas funções, não
existe qualquer espécie de imunidade e o julgamento do PR estará a cargo do STJ. Nesses
casos, a condenação implica a destituição do cargo e o impedimento de reeleição.
Assim sendo, quando é que um crime foi praticado no exercício das funções do PR?
Para a maior parte da doutrina, crimes praticados no exercício de funções são todos os
crimes de responsabilidade política, referidos na lei nº 34/87 de 16 de julho, mas
também outros crimes que constituam abuso ou desvio de poderes que, quando
realizados pelo PR, são considerados crimes contra o Estado, previstos no artigo 308º e
seguintes. Podemos acrescentar que também se consideram crimes praticados no
exercício da função, os crimes contra a humanidade.
Este conceito pode abarcar ainda os crimes praticados pelo PR que tenham o
exercício de funções como causa ou finalidade. O exemplo seria se o PR praticasse um
homicídio para ocultar um facto que poria em causa a sua posição como presidente.
Membros do Governo, Primeiro Ministro e Deputados à Assembleia da República
Passando agora aos membros do governo, ao primeiro ministro é o artigo 196º que
consagra as especialidades quanto à aplicação da lei penal a estes indivíduos que têm
um regime muito similar ao dos deputados do Parlamento previstos no artigo 157º.
Em primeiro lugar, nos termos da nossa Constituição, nenhum deputado pode ser
detido ou preso sem a autorização da Assembleia da República, salvo se estiverem em
causa crimes dolosos a que corresponda pena de prisão superior a 3 anos e estes tenham
sido apanhados em flagrante delito.
Em segundo lugar, os deputados não podem ser ouvidos, nem como arguidos nem
como declarantes, sem autorização da AR, sendo obrigatória a decisão de autorização
no caso de os Deputados serem arguidos, e quando houver fortes indícios da prática de
um crime doloso, a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a
três anos.

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Por último, face ao nº4 deste artigo 157º, uma vez movido um procedimento
criminal contra um Deputado e este for acusado, a AR decidirá se o Deputado deve ou
não ser suspenso para efeito de seguimento do processo. Essa decisão da AR de
suspensão será obrigatória quando se tratar de, mais uma vez, um crime doloso a que
corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos.
É de acrescentar que os deputados das Assembleias Legislativas Regionais gozam do
mesmo Estatuto. Podemos concluir que este regime existe para impedir que o poder
judicial possa exercer supremacia contra o poder legislativo, sendo por esta razão que
tem de haver uma espécie de controlo parlamentar sobre estas imunidades.
Parlamentares no Parlamento Europeu
Quer o artigo 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), quer a
jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), reconhecem
imunidades parlamentares para assegurar uma proteção da representatividade
democrática.
Por isso mesmo, só haverá levantamento das imunidades nos casos que não tenham
nada a ver com a proteção da liberdade de expressão e de opinião relacionadas
funcionalmente com a atividade do membro do parlamento. Tem de haver uma relação
funcional com a atividade de membro desse parlamento para lançar mão da imunidade.
Imunidades diplomáticas
Por fim, resta-nos falar das imunidades diplomáticas reguladas na Convenção de
Viena de 18 de abril de 1961, aprovada pelo Estado português a 27 de março de 1968.
Nesta convenção estabelece-se a imunidade do agente diplomático, mas também dos
membros da família que vivam com ele e ainda do pessoal técnico e administrativo da
missão diplomática, por força do artigo 37º desta convenção.
Estas imunidades funcionam relativamente à detenção e à prisão. Contudo, esta
não são absolutas, na medida em que o Estado acreditante pode renunciar à
imunidade. Nesse caso, o Estado português, se for o caso, já poderá exercer jurisdição
sobre o agente diplomático e as outras pessoas a ele associadas. Se não houver essa
renúncia, a única hipótese que tem o Estado português, como acreditador, é proceder
à expulsão dos referidos agentes e declará-los “persona non grata”.
No fundo, estas imunidades diplomáticas visam garantir a soberania do Estado.
Quando se fala em responsabilidade criminal aqui, não inclui apenas os crimes
praticados na embaixada, mas também fora desde que por essas pessoas supracitadas.

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ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO CRIME
Como já foi dito e repetido, há que distinguir o conceito material de crime do
conceito formal. De acordo com o conceito formal, crime é tudo aquilo que o legislador
legitimamente considere como tal, já de acordo com o conceito material a questão passa
a ser sobre quais as qualidades que o comportamento humano deve revestir para que o
legislador se encontre legitimado a criminalizar.
Outra forma de chegarmos ao conceito de crime é através da distinção dos seus
elementos constitutivos do conceito formal de crime. Pode-se dizer que crime consiste
numa ação típica, ilícita, culposa e punível.
Esta caracterização do crime foi sendo construída progressivamente pela doutrina.
Sendo uma construção dogmática, vamos ter uma disciplina chamada teoria do crime
para perceber como é que doutrina atualmente define exatamente este conceito.
Houve a necessidade de construir essa dogmática porque, em certo sentido, essa
teoria do crime ou da infração ajuda na aplicação da lei penal. A teoria do crime vai
fornecer ao juiz os critérios de aplicação do direito penal e é por isso que muitas vezes
a teoria do crime é encarada como uma teoria da decisão penal porque facilita a tarefa
do juiz ao aplicar a lei penal a um determinado caso concreto. Facilita porque enumera
e coloca segundo uma certa ordem, todos os elementos constitutivos desse crime.
É uma teoria de definição que vai fornecer o estudo dos elementos constitutivos do
crime que são os tais cinco que dissemos: ação típica, ilícita, culposa e punível. Vamos
passar o próximo semestre todo a estudar cada um desses elementos.
Contudo, para passarmos à matéria dos concursos que se segue agora no programa,
temos de saber minimamente como é que se aplica a lei penal segundo estes critérios.
Sempre que estivermos perante um caso concreto, teremos de averiguar se naquele
caso se verificam todos os elementos constitutivos do crime e só aí é que se pode
aplicar a lei penal. Vejamos então esses elementos, um a um.
Primeiro elemento: ação
Para a maior parte da doutrina, o primeiro elemento constitutivo é a ação. Sem
haver uma ação jurídico-penalmente relevante, não temos crime. Assim, temos de
saber quando é que uma ação é jurídico-penalmente relevante.
O que é uma ação jurídico-penalmente relevante? Imaginemos que alguém durante
um ataque de sonambulismo dá um murro a outra pessoa. Pode ou não ser punida pelo
crime de ofensas à integridade física? O sonâmbulo não praticou uma ação jurídico-
penalmente relevante porque ela não é controlada nem é sequer controlável pela
vontade. Mais tarde, no próximo semestre, vamos aprofundar esta questão e alterar a
palavra “vontade” aqui usada, contudo fica esta ideia para já.
Assim, um comportamento só é jurídico penalmente relevante se for dominado ou
dominável pelo sujeito. Já seria diferente se por acaso ele soubesse que era sonâmbulo
e que era agressivo e adormecia ao pé de uma pessoa com a intenção de vir a agredi-la.

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Segundo elemento: tipicidade
Há que verificar se aquela ação corresponde à previsão de uma norma
incriminadora. Por outras palavras, há que averiguar se aquela ação preenche um tipo
legal de crime. É uma tarefa de subsunção.
O caso mais simples possível: A dispara sobre B. O A controlou a sua ação. Agora o
que importa é subsumir, integrar essa ação na previsão do artigo 131º. Temos de
verificar se aquela conduta cabe no tipo legal em causa, crime de homicídio.
No fundo, a tipicidade é a correspondência do facto praticado com a previsão da
norma incriminadora. É a tarefa de saber se a ação se integra na previsão de um tipo
legal. Se sim, essa ação será típica, no sentido em que preenche um tipo legal de crime.
Como é que isso se faz? Para se averiguar se uma ação preenche um tipo, temos de
fazer uma análise a dois níveis: por um lado verificar se naquele caso concreto estão
presentes os elementos objetivos do tipo, mas, por outro, é preciso também que se
verifiquem os elementos subjetivos do tipo.
Elementos objetivos do tipo
Os elementos objetivos do tipo são normalmente enumerados da seguinte forma:
1. Agente, isto é, o autor da conduta. No caso seria o A;
2. Ação típica. No caso seria a ação de disparar que preenche a previsão do 131º;
3. Objeto da ação. Esse objeto vai ser o elemento do mundo exterior no qual, ou
em relação ao qual, se realiza a ação. Nesse caso o objeto da ação foi o B;
4. Bem jurídico. O bem jurídico em causa no exemplo seria a vida.
5. Em certos tipos de crime é preciso ter em conta mais dois elementos: resultado
e imputação objetiva do resultado à conduta do agente. O resultado aqui é a
morte de B que é um evento separável da ação de A.
 Problema da imputação do resultado à conduta do agente
O problema é tentar saber quando é que se pode atribuir o resultado à conduta do
agente. Por outras palavras, a questão polémica é a de saber quando é que se pode
imputar objetivamente determinado resultado à conduta do agente? Imaginemos
algumas situações para melhor ilustrar esta problemática.
Hipótese 1. A dispara sobre o B, mas este não morre. Vem uma ambulância para
transportar o B para o hospital, mas antes de chegar ao hospital, há um acidente na
estrada e o B morre por causa do desastre da ambulância. Podemos continuar a atribuir
a morte do B ao A? O resultado é imputável objetivamente à conduta do A? Atribuir a
morte é completamente diferente do que atribuir a tentativa à morte. Podemos dizer
que só a tentativa é que é imputável ao A e a morte ao condutor da ambulância?
Hipótese 2. Imaginemos ainda um outro cenário, em que o A dispara sobre B, o B vai
para o hospital na ambulância, mas não é recebido a tempo, morrendo no corredor.
Quid juris? Há alguma diferença entre a primeira hipótese e esta?

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Na hipótese 1 era pouco provável acontecer uma coisa daquelas: o A não podia
prever aquele tipo de processo causal e por isso se diz que há interrupção do processo
causal e aparece uma nova ação que se concretiza no resultado. Assim, já não há
imputação do resultado à conduta do agente. O mesmo se dirá, em princípio, sobre a
segunda hipótese, já que poderemos atribuir a morte do B à ação de negligência médica.
Hipótese 3. Quid juris se o B foi levado ao hospital, foi operado a tempo, os médicos
fizeram tudo o que estava ao seu alcance, mas morreu na mesma? Nesse caso, não há
interrupção da ação do agente e a imputação continua a fazer sentido.
Destes exemplos, rapidamente se compreende que este problema da imputação
objetiva do resultado à conduta do agente é muito antigo e extremamente complexo.
Vamos estudar algumas das teorias que surgiram nessa discussão.
o Teoria da Conditio sine quo non (Teoria das condições equivalentes)
Por um lado, para o resultado ser imputado, é preciso provar que a conduta foi causa
do resultado. Para verificar essa relação de causalidade temos uma teoria, a teoria da
conditio sine quo non (Teoria das condições equivalentes) que nos diz que temos de
eliminar mentalmente a ação e perguntar se o resultado subsiste. Se o resultado
subsiste não é causal, se o resultado desaparecer, é causal. Se eliminarmos a ação de
disparo, o resultado não subsiste em nenhum dos exemplos que demos.
Contudo, isto não é suficiente. Não basta a relação de causalidade. Para
imputarmos objetivamente o resultado à conduta do agente, tem de ser provado mais
do que a relação causal. Para imputarmos objetivamente o resultado à conduta do
agente temos de provar mais. É preciso que, face à valoração do direito penal, seja
justo atribuir aquele resultado à conduta do agente. Nesse sentido surgiu uma teoria
muito importante, a chamada teoria moderna da imputação objetiva ou teoria do risco.
o Teoria Moderna da imputação objetiva ou Teoria do risco
A teoria do risco diz que podemos imputar objetivamente o resultado à conduta do
agente se o agente criou, aumentou ou não diminuiu um risco proibido e se esse risco
se concretizou num resultado. Dizemos que a teoria tem duas partes: (i) o agente criou,
aumentou ou não diminuiu (omissões) o risco proibido; (ii) e essa ação concretizou-se
num resultado. Há uma conexão entre o risco criado e o resultado obtido.
Nestas hipóteses que vimos da ambulância ou do médico que atuou
negligentemente, o agente A criou um risco, mas o risco que ele criou não gerou o
resultado. Foi o risco criado pelo senhor da ambulância ou pelo médico que concretizou
o resultado. Isto não significa que o agente não vá ser punido, já que podemos puni-lo
por tentativa, apenas não podemos imputar aquele resultado morte ao agente A.
o Teoria da adequação
Importa também falar da teoria da adequação, que nos diz que há imputação
objetiva do resultado à conduta do agente sempre que ao colocar um homem médio
na posição do agente, esse homem médio conseguiria prever o resultado e aquele
processo causal. Esta teoria começou após a teoria conditio sine quo non, e surgiu antes
da teoria do risco. Continua a ser aplicada pelo Professor Figueiredo Dias.

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Elementos subjetivos do tipo
Como já foi dito, para o tipo estar preenchido, para ser uma ação típica, não basta o
preenchimento dos elementos objetivos, é preciso que haja uma ligação subjetiva do
sujeito com o facto, por força do princípio da culpa.
 Dolo ou negligência legalmente prevista
Ao contrário do direito civil, não basta a violação do dever objetivo, é preciso provar
uma relação subjetiva entre o agente e o facto, a título de dolo ou de negligência.
Abaixo da negligência, não há responsabilidade penal.
Do artigo 13º retira-se que só se pune um crime a título de negligência se estiver
previsto na lei na forma negligente, o que nem sempre acontece. Um exemplo disso é
o artigo 137º, sobre o homicídio negligente.
A negligência pode ser consciente ou inconsciente. Na negligência consciente, o
agente representa o facto típico, mas não se conforma com a sua realização. Exemplo:
alguém está a conduzir e a fazer uma manobra perigosa, prevê que possa atingir o carro
do lado, contudo confia muito nas suas capacidades e afasta essa possibilidade. Esta
negligência consciente é difícil de distinguir de dolo eventual, em que ele se conforma
com o dano (o agente diria algo como: vou bater? Paciência, não quero saber).
Na negligência inconsciente, o agente nem sequer representa o facto que praticou,
mas tinha possibilidade de o fazer. Exemplo: A vai a conduzir a alta velocidade, vê um
sinal de aviso de escola, não dá importância e atropela uma criança. Ele não previa que
a criança estaria ali, mas tinha a possibilidade efetiva de o prever.
 Elementos subjetivos especiais
Há determinados crimes que, além do dolo, exigem ainda elementos subjetivos
especiais. É o caso do crime de furto em que, além do agente representar coisa alheia e
querer subtrair essa coisa alheia, tem de se provar que a pessoa tinha intenção de se
apropriar dela. Essa intenção é o elemento subjetivo especial. Diz-se especial porque vá
além dos elementos comuns a todos os tipos de crimes.
Terceiro elemento: ilicitude
A ilicitude em direito penal analisa-se pela técnica negativa da exclusão. Para saber
se uma ação é ou não ilícita, temos de verificar se ocorreu alguma causa de exclusão
de ilicitude. Assim, importa enumerar as causas de exclusão de ilicitude. Estas estão
previstas no artigo 31º e seguintes, e são: legítima defesa, direito de necessidade,
conflito de deveres e consentimento do ofendido. Contudo, como vimos, esta lista é
meramente exemplificativa, sendo possíveis causas de exclusão da ilicitude supralegais,
como é o caso da legítima defesa preventiva que já analisamos anteriormente.
O juízo de ilicitude pode ser definido como um juízo de desvalor que recai sobre o
comportamento. Exemplo: A dispara sobre B. B preencheu o tipo de crime do artigo
131º, homicídio, pelo que, em princípio, a ação será ilícita. Contudo, se se vier a provar
que o A só disparou porque o B estava a ameaçá-lo. Aí aplicamos uma causa de exclusão
da ilicitude, a legitima defesa, e o comportamento deixa de ser considerado crime.

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Quarto elemento: culpa
A culpa pode ser definida como um juízo de censura que recai sobre o agente pelo
facto de ele, tendo liberdade e capacidade para se motivar pelo direito, não o ter feito.
O que analisamos na culpa é a motivação do agente pelo direito.
Em direito penal, a técnica usada para averiguar a culpa é novamente a técnica
negativa da exclusão. Para saber se o comportamento é culposo ou não temos de saber
se ocorre alguma causa de exclusão da culpa. Se se verifica uma causa dessas, o agente
é considerado inimputável e o ato não é culposo, logo não pode ser considerado crime.
Quinto elemento: punibilidade
Por fim, temos a punibilidade. Por norma, sempre que um facto é típico, ilícito e
culposo, será também punível. Contudo, excecionalmente, pode acontecer que esse
facto deixe de ser punível por deixar de ter dignidade penal e, por isso mesmo, surgem
as condições objetivas de punibilidade.
As condições objetivas de punibilidade têm diretamente que ver com a dignidade
penal do comportamento e com a necessidade de prevenção geral e especial, fins
centrais da pena. Exemplo de uma condição objetiva de punibilidade: o nosso legislador
considerou que só vale a pena punir a tentativa se ao crime consumado for aplicável
uma pena superior a 3 anos, como se lê no artigo 23º nº1. Abaixo disso, mesmo que
haja tentativa, a ação não é punível.

CONCURSO DE NORMAS E CONCURSO DE CRIMES


Vamos entrar agora na matéria do concurso de normas ou concurso aparente e do
concurso de crimes ou concurso verdadeiro ou efetivo, que são duas unidades distintas.
Esta é uma matéria muito complexa e é um assunto bastante controverso na doutrina.
Vamos falar desta matéria porque está relacionada com a aplicação da lei penal, sendo
fundamental identificar as situações de concurso para saber como punir o agente.
Para o professor Figueiredo Dias, o problema de concurso de crimes e de normas
existe sempre que o comportamento global imputado a um determinado agente
preenche mais do que um tipo legal de crime e, quando isto acontece, importa saber
quando é que se pode falar em concurso verdadeiro (ou concurso efetivo de crimes), ou
quando se fala em concurso aparente (ou também concurso de leis).
Distinção entre Concurso verdadeiro e Concurso aparente
A primeira grande distinção fundamental é entre o concurso verdadeiro e o concurso
aparente. No concurso verdadeiro o agente preenche vários tipos de crimes e deve ser
punido por esses vários tipos, enquanto que no concurso aparente, a aplicação de um
tipo exclui a aplicação dos demais tipos de crime.
Qual a importância de distinguir o concurso aparente do concurso verdadeiro? Se
se punir uma situação de concurso aparente de acordo com as regras de concurso
verdadeiro, há uma clara violação do princípio constitucional ne bis in idem, consagrado
no artigo 29º nº5 CRP: ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo facto.

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Veja-se o exemplo: A subtrai um quadro a B e, passado uma semana, resolve
queimar o quadro roubado. Os crimes aqui em causa seriam o furto e o dano. Da leitura
do artigo 203º e artigo 212º, respetivamente, retiramos que ambos preveem a pena de
prisão até três anos. Como aplicamos estes artigos?
Há uma parte da doutrina, nomeadamente o Professor Figueiredo Dias, que
considera que nestes casos há um concurso aparente. Apesar de haver duas normas
que se podem aplicar, há um certo tipo de relação existente entre elas que leva a que a
aplicação de uma seja excluída pela outra. No caso, o artigo 203º sobre o furto excluiria
a aplicação do artigo 212º sobre o dano.
Contrariamente, outra parte da doutrina, nomeadamente a professora Teresa
Pizarro Beleza, considera que nestes casos temos um concurso verdadeiro porque as
normas que se aplicam não se excluem mutuamente.
Critério da unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude do comportamento
É de notar e realçar que ambos os autores seguem o mesmo critério para chegar a
estas diferentes conclusões. O critério proposto é o critério da unidade ou pluralidade
de sentidos de ilicitude do comportamento ou também designado de critério da
unidade de sentido do acontecimento ilícito global final.
No concurso aparente, apesar de o comportamento do agente preencher
efetivamente mais do que um tipo de crime, pode considerar-se que esse
comportamento é dominado por um único sentido autónomo de ilicitude. Isto quer
dizer que há um tipo legal que consegue incorporar o sentido dominante do ilícito em
causa. Por outras palavras, há um tipo que esgota o conteúdo ilícito do facto.
Ambos os autores concordam com esta afirmação, contudo aplicam-na de forma
distinta quando confrontados com o caso em que se confronta o furto com o dano.
Assim sendo, para o professor Figueiredo Dias, o furto coloca em causa o bem jurídico
propriedade e, no caso do dano, o bem em causa é o mesmo. Considera, então, que o
dano é um facto que ocorre que não acrescenta nada.
Por sua vez, a professora Teresa Beleza diz que com o furto viola-se o bem jurídico
propriedade, mas com o dano, a violação desse bem é muito mais grave. Se houver só
furto, o bem pode eventualmente ser restituído, enquanto que com o dano, a destruição
torna impossível a restituição da coisa. A professora diz que só aí é que se perde
completamente o direito de propriedade.
 Como é que se sabe se uma norma esgota o ilícito criminal praticado?
Esta questão gera diversas dúvidas tanto na doutrina como na jurisprudência,
contudo há já algumas certezas. Dessas certezas podemos destacar algumas.
1. Quando se trata de tipos que protegem bens de carácter iminentemente
pessoal, a pluralidade de vítimas deve considerar-se sinal seguro da
pluralidade de sentidos de ilícito e, por isso, deve conduzir à existência de um
concurso efetivo. Se A colocar uma bomba que mata três pessoas, esse A terá
de ser punido por três crimes de homicídio, em concurso efetivo.

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2. Esse raciocínio aplica-se, segundo a maior parte da doutrina, quer estejam em
causa crimes dolosos, quer crimes negligentes.
3. Por último, há que acrescentar que o mesmo raciocínio se aplica quer estejam
em causa crimes por ação, quer por omissão.
Critério da unidade ou pluralidade de resoluções e decisões existente
O professor de Coimbra Eduardo Correia defendeu o critério da unidade ou
pluralidade de resoluções e decisões existente, segundo o qual, se houver uma única
decisão (do agente), isso é suficiente para se falar em concurso aparente, já se houver
uma pluralidade de decisões, teremos um concurso verdadeiro.
 Crítica
A crítica a fazer a este critério é que, por vezes, apesar de haver uma só decisão,
essa decisão pode ofender vários bens jurídicos pessoais. Imaginemos que o A na
mesma decisão resolve ofender o A e o B. Só vamos conseguir defender os dois bens
jurídicos, punindo as duas ofensas, independentemente da unidade de decisão.
Portanto este critério não pode ser aplicado por si só.
Critério da unidade ou pluralidade de ações: Roxin
Surge um novo critério na doutrina alemã por Roxin, que defende que o critério
distintivo é o critério da unidade ou pluralidade de ações. Contudo, estas ações não são
entendidas só no seu sentido naturalístico. Sempre que houver uma unidade de ação,
há um concurso aparente e se houver uma pluralidade de ação, temos um concurso
verdadeiro. Claro que isto nos leva à questão de saber o que é uma unidade de ação.
 O que é uma unidade de ação?
Segundo a doutrina alemã, são possíveis três tipos de unidade de ação:
1. O primeiro tipo de unidade de ação é a ação em sentido natural, isto é, um ato
que se esgota na realização de um tipo de crime. Nesse caso, a ação em sentido natural
corresponde à ação típica.
2. Também haverá unidade de ação quando houver unidade de ação típica, isto é,
quando estivermos perante várias ações em sentido natural que são agrupadas numa
única ação típica. Nesse caso, a unidade de ação advém do próprio tipo legal e isso pode
acontecer porque o próprio tipo exige para a sua realização uma pluralidade de atos.
É o caso do crime de roubo que, por contraposição ao furto, implica que haja
violência. Então, falamos aqui dos casos em que o tipo abarca uma unidade de
valoração, uma série de atos. Outro exemplo pode ser o crime de tráfico de
estupefacientes que inclui todos os atos desde a aquisição à venda, sendo todos eles
vistos como dentro de um único tipo legal.
3. A unidade de ação também pode ser determinada pelo tipo que abarca um crime
de natureza permanente. Aí teremos uma unidade natural de ação ou unidade de ação
natural. Um exemplo disso é o sequestro que implica vários atos que não são punidos
autonomamente. Nesse caso, o mesmo tipo de ação é praticado ao longo do tempo,
ao contrário do caso anterior em que o crime engloba várias ações diferentes.
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A unidade natural de ação ou unidade de ação natural que ocorre quando distintos
atos particulares, em virtude da sua similitude e proximidade espácio temporal são
reunidos numa unidade de ação pelo juiz aplicador do direito. Para que isso aconteça é
preciso: (i) uma vontade unitária dirigida à prossecução de um resultado; (ii) que haja
uma pluralidade de atos uniformes similares; (iii) e, por último, que, devido à sua
conexão espaço temporal estreita, esses atos formem uma só ação segundo o modo de
ver natural.
A doutrina portuguesa aplica o critério de unidade de sentido de ilícito, o que é
equiparado à unidade natural de ação dos alemães.
Como devem ser os agentes punidos?
No concurso aparente
Em regra, se estivermos perante um concurso de normas, aparente, a punição
prevista pela norma principal exclui a aplicação da outra. Claro que, na determinação
da medida concreta, poderá ter-se em conta o facto de a coisa ter sido destruída além
de furtada, retomando aqui o exemplo do quadro inicialmente abordado.
Contudo, há que acrescentar uma regra fundamental do concurso aparente,
segundo a qual a pena concreta não pode ser inferior ao limite mínimo da moldura
penal correspondente ao ilícito dominado.
No concurso verdadeiro
Havendo concurso efetivo, há que ter em conta os artigos 77º e 78º, onde se faz
uma ponderação entre os vários crimes, falando-se do sistema da pena conjunta ou
unitária. Como se chega a este sistema? Em primeiro lugar, fixa-se uma pena concreta
para cada um dos tipos de crime preenchidos. Depois teremos de encontrar o limite
máximo e o limite mínimo, segundo o artigo 77º nº2:
 A pena a aplicar tem dois limites máximos: não pode exceder a soma das penas
concretamente aplicadas aos vários crimes e, por outro lado, também não pode
ultrapassar o limite legal de 25 anos.
 Quanto ao limite mínimo da pena final, este será o correspondente à pena mais
alta a que corresponda concretamente um dos crimes cometidos.
A isto se chama um sistema de pena unitária ou conjunta. À impossibilidade de
ultrapassar os 25 anos chama-se cúmulo jurídico mitigado, o que significa que por mais
crimes que uma pessoa cometa, vai ser punida no máximo com 25 anos.
No crime continuado
O artigo 30º nº2 prevê o crime continuado, estabelecendo vários requisitos:
(i) tem de haver uma violação pluríma do mesmo bem jurídico ou de bem
jurídico que tenha uma estreita afinidade com aquele ou aqueles
anteriormente violados;
(ii) tem de haver uma realização continuada que deve ser executada de forma
homogénea e no quadro de uma mesma situação exterior.

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(iii) tem de ser um comportamento dominado por uma situação exterior que
facilita a repetição da atividade criminosa, ao ponto de diminuir
sensivelmente a culpa do agente.
Se estivermos, segundo estes requisitos, perante um crime continuado, aplicamos o
artigo 79º, segundo o qual, o juiz vai comparar as medidas de pena aplicáveis a cada
uma das condutas que integram a continuação e aplicar a mais alta.
Face à nossa ordem jurídica, o crime continuado é visto como uma espécie de
concurso efetivo, quase como um terceiro tipo de concurso. Para não se punir o crime
continuado da mesma forma que o concurso efetivo, o legislador criou esta regra. A
razão de ser desta distinção é que, para ser crime continuado, tem de haver uma
diminuição da culpa do agente, o que não acontece no caso do concurso efetivo.
Para o professor Figueiredo Dias, se realmente estivermos perante uma situação em
que se percebe que há uma diminuição considerável do agente, este tem de ser
privilegiado e, por isso, não pode ser punido da mesma forma do concurso efetivo.
Tipos de concurso aparente e Tipos de concurso efetivo
Tipos de concurso verdadeiro ou efetivo
 Concurso efetivo real c. concurso efetivo ideal
Há uma distinção a fazer dentro do concurso efetivo, entre o concurso real e o
concurso efetivo. O concurso efetivo real é quando à pluralidade de crimes cometidos
corresponde uma pluralidade de ações.
Já no concurso efetivo ideal, à pluralidade de crimes cometidos corresponde uma
unidade de ação. Exemplo, se A dispara sobre B e por engano acerta no C, vai ser punido
em concurso efetivo por tentativa do crime que visou realizar e pelo crime que realizou
na forma negligente. Foram dois crimes, dois bens jurídicos foram violados por uma
mesma ação.
 Concurso efetivo heterogéneo c. concurso efetivo homogéneo
Ainda dentro do concurso efetivo, podemos distinguir o concurso heterogéneo do
concurso homogéneo. O concurso efetivo heterogéneo é quando se preenchem
diversos tipos de crime diferentes. É o caso do exemplo do quadro furtado e destruído.
Já no concurso homogéneo, há vários crimes, mas todos preenchem o mesmo tipo
de crime. É o caso do exemplo da bomba que mata três pessoas.
Tipos de concurso aparente
Quanto às situações consideradas como concurso aparente, há que distinguir:
relação de subsidiariedade, relação de especialidade, relação de consunção e relação
de facto posterior não punível.
Quanto a estas relações, a professora alerta para a ideia de que há uma grande
divergência na doutrina quanto à terminologia usada e quanto ao conteúdo a dar para
um dos tipos de concurso aparente. O mais importante é nunca tratar um concurso
aparente como concurso verdadeiro.

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Vamos adotar a posição maioritária, nomeadamente, entre nós, da professora
Teresa Beleza. Contudo, há que referir algumas notas do professor Figueiredo Dias.
 Relação de facto posterior não punível
Vamos recuperar o exemplo do quadro que foi furtado e posteriormente destruído.
Para o professor Figueiredo Dias há um concurso aparente porque o crime de dano é
um facto posterior não punível, em relação ao crime de furto. Quando é que isto
acontece? Há uma relação de facto posterior não punível quando a infração
subsequente apenas se apropria ou aproveita das utilidades de uma infração penal
passada, sem que haja um novo dano que se dirija a um novo bem jurídico.
Imagine-se que, noutro exemplo, após o crime de homicídio, alguém resolve ocultar
o corpo. Como se pune esse agente? Para uma parte da doutrina, a ocultação de cadáver
não tem autonomia face ao homicídio. Para outra parte, já tem essa autonomia, sendo
que uma coisa é alguém matar outrem, outra coisa, mais grave, é nem sequer se saber
onde está o corpo da vítima. Assim, discute-se se este será um facto posterior não
punível ou não.
 Relação de especialidade
Segundo a professora Teresa Pizarro Beleza, há uma relação de especialidade
quando uma norma contém na sua previsão todos os elementos essenciais do tipo
fundamental mais os elementos especiais atinentes ao facto ou ao próprio agente.
Vamos perceber a aplicação prática desta relação através de dois exemplos.
Exemplo 1. Um exemplo de relação de especialidade é a existente entre o artigo
131º, homicídio, e o artigo 136º, infanticídio. Esta segunda disposição é uma norma
especial em relação à primeira porque todos os elementos que fazem parte do artigo
131º estão incluídos necessariamente no artigo 136º. A diferença é que o segundo
acrescenta mais elementos que atenuam a responsabilidade do agente, nesse caso.
Infanticídio é quando uma mãe logo após o parto e perante uma perturbação física
e psicológica mata o seu próprio filho. Ora, esta conduta não deixa de ser alguém a
matar outra pessoa e, por isso contém todos os elementos do homicídio. Mas contém
ainda algumas especificidades ou especialidades: tem de ser uma mãe, tem de ser logo
após o parto, e tem de estar sob uma influência perturbadora.
Exemplo 2. Outro exemplo é o da relação entre o artigo 131º, homicídio, e o artigo
132º, homicídio qualificado. Este segundo, além de prever todos os elementos do
primeiro, prevê que ocorram determinadas circunstâncias que revelam especial
censurabilidade ou perversidade por parte do agente, que agravam a sua
responsabilidade.
Note-se que, havendo uma relação de especialidade, isto é, se o agente preencher
ambas as previsões, vai ser punido apenas pela norma especial. Podemos justificar
dizendo que a aplicação dessa norma esgota o ilícito criminal praticado pelo agente, daí
esta ser uma das formas de concurso aparente.

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 Relação de subsidiariedade
A relação de subsidiariedade ocorre quando o legislador, expressa ou
implicitamente, pretende que uma norma só se aplique quando o agente não puder
ser responsabilizado por outra norma mais grave. Como nos diz a professora Teresa
Beleza, estas normas encontram-se em relação de subsidiariedade quando uma delas
só se aplica quando a outra não tiver a possibilidade de ser aplicada. Como se percebe
pela definição, há dois tipos de subsidiariedade: implícita e expressa.
o subsidiariedade implícita
A subsidiariedade implícita não resulta da lei, mas de uma interpretação das
incriminações envolvidas. É através de um raciocínio de interpretação que conseguimos
concluir que materialmente a relação entre as normas é de subsidiariedade.
Exemplo 1: A pede a B que mate C, em troca de uma certa quantia em dinheiro. Mas
para além disso, A também participa na execução do crime. Neste comportamento, A
tem dois papéis: como instigador, por um lado, e como autor material, por outro.
Deve o A ser punido como instigador e como autor? Não, o A só deve ser punido
como autor. A forma de autoria é a forma mais perfeita de participação num crime. Só
se pune por outra forma de participação, caso não se possa aplicar a forma mais
perfeita de participação nesse crime, a autoria. Esta é a regra da subsidiariedade
implícita: a incriminação como instigador só intervém de forma auxiliar ou subsidiária.
Exemplo 2: Olhemos para o artigo 290º, crime de perigo concreto, que exige que a
pessoa tenha uma conduta perigosa, e imaginemos que uma pessoa, mediante estas
ações, mata outra. Esse agente só vai ser punida por homicídio.
o Subsidiariedade expressa
A subsidiariedade expressa é aquela que resulta diretamente da lei, ou seja, é a
própria lei que condiciona a aplicação de uma norma à não aplicação de outra norma.
Um exemplo de subsidiariedade expressa é o artigo 152º nº1, onde se lê na sua parte
final “se pena mais grave não lhe couber”. O próprio legislador condiciona a aplicação
desta norma à não aplicação de uma outra norma mais grave.
 Relação de Consunção
Uma relação de consunção é quando a realização de um tipo de crime inclui, por
regra, a realização de um outro tipo de crime. Nos casos de consunção, a norma que
pune o crime menos grave deve considerar-se excluída, havendo uma relação meio-fim.
A norma que pune o crime-fim, por regra, consome a norma que prevê o crime-meio.
Deve então considerar-se que o comportamento é dominado por um único sentido de
desvalor económico-social.
Exemplo: A relação existente entre o crime de furto qualificado por introdução em
casa alheia, prevista no artigo 204º f), e a violação do domicílio, prevista no artigo 190º,
é de consunção. O agente só vai ser punido pelo furto qualificado, porque a norma que
o prevê já abarca a circunstância de ele ter sido produzido em casa alheia.

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o Consunção pura
Há que distinguir entre a consunção pura e a consunção impura. Há uma consunção
pura quando a realização do tipo de crime punido mais gravemente inclui a realização
de um outro tipo de crime punido mais levemente e, portanto, a norma que prevê o
crime menos grave é excluída.
o Consunção impura
Por outro lado, na consunção impura, o crime mais grave acompanha um crime
menos grave. Isto é, a realização de um tipo de crime punido mais levemente, inclui a
realização de outro tipo de crime punido mais gravemente.
Nestes casos, apesar de ser apenas um meio para o fim, como é a norma-meio que
prevê a sanção mais grave, é esta que vai ser aplicada para abarcar toda a ilicitude.
Exemplo: Imaginemos que há um assalto violento, ou seja, um crime de roubo,
artigo 210º. Mas essa violência foi de tal maneira significativa que constitui um crime
de ofensa à integridade física grave, artigo 144º. Ora, apesar de a ofensa ser o meio para
o roubo, essa norma-meio prevê uma pena superior, pelo que será a norma aplicável.
O professor Figueiredo Dias tem uma visão diferente sobre a aplicação da pena a
estes casos de consunção impura. Este autor diz-nos que o que se vai fazer é aplicar a
previsão da norma-fim, mas a estatuição, pena, da norma-meio.
Adianta que esta aplicação não viola o princípio da legalidade porque se está a
aplicar a um facto previsto na lei e praticado pelo agente, uma pena atribuída a uma
previsão também por ele preenchida. O resultado será o mesmo, mas a explicitação
teórica é diferente. De qualquer forma, para este professor, o conceito de consunção é
muito mais amplo do que para o resto da doutrina. Isto implica sabermos como é que
vê o concurso de crimes.
Concurso de crimes para o professor Figueiredo Dias
O professor Figueiredo Dias só chama concurso aparente a dois tipos de relação
entre normas que acabamos de ver. Isto significa que, para este autor, só as relações
de consunção e de facto posterior não puníveis são concursos aparentes. Além disso,
considera que a relação de facto posterior não punível está abrangida pelo conceito
amplo de relação de consunção.
Para o professor Figueiredo Dias será mais correto falar nas duas primeiras
situações, subsidiariedade e de especialidade, sob a terminologia de unidade de lei ou
de normas. Assim, para ele, nos casos de subsidiariedade e de especialidade, não existe
verdadeiramente qualquer concurso de normas, mas apenas uma norma é aplicada.
Devido a considerações lógico-jurídicas, a aplicação de uma norma, exclui a
aplicação da norma preterida. Nesses casos, de especialidade e de subsidiariedade,
recorremos a uma operação lógico-conceptual em que o que importa é o verdadeiro
trabalho sobre normas. Já nos casos de consunção, para se chegar à conclusão de que
há um concurso aparente de normas, tem de se fazer uma operação de natureza
material.

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Só faz sentido, para este professor, utilizar a expressão concurso aparente para
aqueles casos em que, apesar do comportamento global preencher efetivamente uma
pluralidade de tipos legais, devido a uma unidade de sentido de ilícito autónomo, o
agente deve ser punido por apenas uma norma.
Independentemente de usarmos a terminologia do professor Figueiredo Dias ou da
doutrina maioritária, o que importa é perceber quando é que a aplicação de uma
norma esgota o conteúdo ilícito do comportamento. E é esse o critério relevante para
distinguir o concurso aparente do concurso verdadeiro, sendo indiferente o caminho a
percorrer para chegar a essa conclusão.
Consunção para o professor Figueiredo Dias
Para Figueiredo Dias, há consunção sempre que há uma pluralidade de normas
típicas aplicáveis, mas não uma pluralidade de crimes efetivamente cometidos.
Porque para este professor, os sentidos de ilicitude típica presentes no comportamento
global estão de tal forma ligados que, no final, o comportamento é dominado por um
único sentido de desvalor jurídico-social, torna-se necessário perceber quais são os
critérios para saber se há uma situação de consunção.
 Critérios para haver consunção, segundo Figueiredo Dias
O primeiro critério é o critério do crime instrumental ou do crime-meio. Isto significa
que um dos ilícitos surge apenas como meio para realizar o crime principal, crime-fim.
O segundo critério é o critério da unidade de desígnio criminoso. Se há uma vontade
unitária dirigida à prossecução de um resultado no mundo exterior, pode
eventualmente falar-se em concurso aparente.
Outro critério é o critério da conexão espaço-temporal das realizações típicas.
Segundo este critério, uma proximidade espaço-temporal entre as condutas do agente
pode levar a uma leitura unitário do sentido do ilícito do comportamento total. Contudo,
há que ter atenção que este é um indício, é uma possibilidade, não é uma regra.
Exemplo: Imaginemos que alguém no mesmo espaço e no mesmo tempo pratica
uma série de abusos sexuais com uma mesma vitima. Este agente vai ser punido por um
só crime, um abuso sexual.
Por fim, há o critério dos diferentes estádios de evolução ou de intensidade da
realização global, segundo o qual há mais do que a prática de um crime, mas a aplicação
de apenas um dos tipos esgota a apreciação do ilícito criminal realizado pelo agente.
Ainda dentro deste critério, o professor inclui a relação do facto posterior não punível
a que já fizemos referência.

--- FIM ---

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