Artigo Pauline Chiziane
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adernos
Memória e
Belo Horizonte - n. 27 - 2015
transgressão em As
cicatrizes do amor,
de Paulina Chiziane
Luciana de Barros Ataide
Doutoranda em Letras: Estudos
Literários – Universidade Federal
do Pará (PPGL/UFPA) Belém –
C
Pará – Brasil
Resumo
onsiderando que a personagem de uma narrativa encena
a linguagem, construindo, assim, a verossimilhança que a
sustenta, objetiva-se mostrar como o conto “As cicatrizes
do amor”, de Paulina Chiziane (1994) teatraliza tal
processo. Para isso, será problematizado o deslocamento
da personagem Maria através de uma abordagem entre a
tradição moçambicana e os valores da modernidade no
espaço moçambicano, usando, nessa produção, um tom
memorialista. O artigo analisa o processo de construção
da personagem Maria destacando como ele, por vezes,
chega a confundir o leitor quanto aos limites que separam
a ficção da realidade.
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A personagem literária
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Belo Horizonte - n. 27 - 2015 No conto será possível observar as lutas e conflitos internos
que a mulher carrega, já que serão evidenciados aspectos
do quotidiano feminino, a partir das evidências dos signos
socioculturais que denunciam o lugar secundário reservado a
ela. Isso já pode ser observado logo no início do conto, quando
da seguinte passagem: “Diabos me levem se não estou bem
nesta roda de mulheres sentadas na areia e os homens nas
cadeiras.” (CHIZIANE, 1994, p. 128).
Isso mostra que o conto “As cicatrizes do amor” problematiza
as relações de gênero e odo papel da mulher na sociedade
moçambicana contemporânea através de uma construção social
na qual os homens têm um lugar privilegiado se comparado ao
da mulher. A eles, são oferecidos desde os melhores lugares à
mesa até a oportunidade de ascensão social.
Essas representações sociais acabam por tornarem-se subjetivas
na medida em que passam a fazer parte formadora da consciência
da população e a fornecerem um modo de viver em sociedade
de forma inquestionável. Isso significa que o olhar masculino
está acima dos direitos femininos, neutralizando-os, o que
favorece a criação de movimentos de identidades fragmentadas
quando o assunto é o feminino. O lugar das mulheres submissas
consiste na conservação sem ação, sem adequação, já que o
outro (o patriarca) impõe o que lhes é permitido fazer.
Sobre a relação dos gêneros existentes em uma sociedade
patriarcal, Manuel Castells explica como se dá essa autoridade:
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Belo Horizonte - n. 27 - 2015 Maria seja abandonada por ele estando grávida. Quinze dias
depois do nascimento da criança é expulsa de casa. A atitude
do pai é o mote que impulsiona a personagem ao mergulho nos
costumes do universo de Moçambique através da evocação das
tradições e do trauma que as imposições das regras da sociedade
trazem.
Dessa forma, mais do que retratar a situação feminina em
Moçambique, nota-se que Paulina propõe uma discussão com
as negociações transculturais, afinal, a vitalização da presença
feminina é imprescindível para a construção do cenário
histórico e cultural local. Isso porque a história centra-se na
personagem Maria, mulher marcada pelo amor e pelo trauma
do abandono. O conto caracteriza-se por um modo lírico
de narrar, o que, segundo Inocência Mata (2000), reforça o
processo rememorativo. A narrativa tematiza a memória como
veículo de revitalização identitária.
No caso de “As cicatrizes do amor”, “... uma memória individual
se confronta com os ditames de uma sociedade tradicionalista”.
(MATA, 2000, p. 136). A personagem inicia sua história a partir
de uma notícia de jornal, quando a voz de Maria é ouvida como
uma forma de denunciar a mulher africana vítima da sociedade,
numa narração temporal que focaliza os acontecimentos
a partir do passado, através das memórias da personagem:
“Alguém folheia um jornal. – Veja isto comadre. Duas crianças
abandonadas pelas mães. [...] – O que lhes aconteceu? – Alguém
as deitou fora. As mulheres estão doidas.” (CHIZIANE, 1994,
p. 129).
Através do relato memorialístico, Paulina Chiziane recorre
à literatura para mostrar que esta é uma das maneiras de se
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construir e estabelecer a memória, e também de (re)elaborá-la
criticamente. Assim, fica evidenciado o conceito de memória
associado à construção feita no presente a partir de vivências
ocorridas no passado. Isso pode ser percebido na seguinte
passagem: “O vulcão da recordação explodiu narrativas; as lavas
caíram como soco nas gargantas abafando os acordes, calem-se
todas as bocas, a comadre é que fala! A voz de Maria fez-se
ouvir das profundezas do tempo” (CHIZIANE, 1994, p. 129).
Essa passagem é início de um momento em que, através do
processo de rememoração a personagem Maria reviverá parte
da história de sua vida, marcada especialmente pela dor do
abandono. Então logo inicia: “Lembro-me da noite sem lua,
quando debaixo do cajueiro disse sim, ao homem dos meus
sonhos” (CHIZIANE, 1994, p. 130). Nesse momento de
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Com isso, nota-se que nem Maria foi dona de seu próprio desejo,
nem mesmo a mãe de Maria fora ouvida. Esse silêncio das
mulheres representa, por si, a submissão diante da lei.
Contudo, logo depois da expulsão, depois de ser desprezada
pelos amigos, Maria se destaca como uma figura determinada
que deseja encontrar seu objetivo:
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Belo Horizonte - n. 27 - 2015 adquirir características fixas, pois teve de reagir às demandas
impostas, sem, contudo, aceitá-las. Ainda assim, transpõe-se
do estereótipo de mulher dependente para a perspicácia de
uma heroína.
Dessa forma, no conto “As cicatrizes do amor”, Maria, além
de articular-se como mulher que se constrói, coloca a narrativa
nos polos patriarcal e transgressor. A identidade da personagem
articula-se no movimento que vai de um lado a outro, desloca-
se e transmuta-se no espaço e nesse contexto ela assume-se
enquanto sujeito de sua história. Ao conquistar seu projeto
e colocar-se como dona de um estabelecimento comercial,
uma atitude tipicamente masculina, Maria transpõe a ideia de
mulher obediente e passiva para construir-se socialmente.
Considerações
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Belo Horizonte - n. 27 - 2015 condição humana e o grau de violência que ela pode impor à
mulher. Essa é entrevista na insensibilidade do pai de Maria
ao expulsá-la de casa e também de outras pessoas que negam
ajuda a uma mulher com uma criança ao colo.
Em síntese, esse conto retrata o preconceito e suas
consequências ao mostrar a mulher sempre responsabilizada e
penalizada. Mesmo quando suas ações transcorrem em meio ao
desespero, e ainda que confesse a dor do abandono, ou que faça
peregrinação ao Sul da África para o encontro com o homem
amado, as dificuldades passadas com uma criança recém-
nascida fez de Maria uma personagem que retrata as mulheres
sempre como as responsabilizadas e penalizadas.
Abstract
Considering that a character of a narrative emulates
language, constructing the verisimilitude that sustains
it, we intend to show how the short story “As cicatrizes
do amor” by Paulina Chiziane (1994) dramatizes
such process. For such endeavor, we will analyze the
dislocation of the character Maria amongst the aspects
of tradition and modernity the the Mozambiquen
spatial reality. The article also intends to reflect about
the limits of reality and fiction concerning the character.
keywords: Character. Tradition and memory. Trauma.
Mozambican literature. Paulina Chiziane.
Referências
ARISTÓTELES. Poética. Tradução, prefácio, introdução,
comentários e apêndices de Eudoro de Sousa. Clássicos de
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