EStudo de Caso FAP 2 TOC PDF

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Estudos de Psicologia

ISSN: 0103-166X
estudosdepsicologia@puc-
campinas.edu.br
Pontifícia Universidade Católica de
Campinas
Brasil

Mendes, Neide Aparecida; Vandenberghe, Luc


O relacionamento terapeuta-cliente no tratamento do transtorno obsessivo compulsivo
Estudos de Psicologia, vol. 26, núm. 4, noviembre-diciembre, 2009, pp. 545-552
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Campinas, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=395335793014

Como citar este artigo


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O relacionamento terapeuta-cliente no tratamento
do transtorno obsessivo compulsivo

The therapist-client relationship in the treatment


of obsessive compulsive disorder

Neide Aparecida MENDES1


Luc VANDENBERGHE2

Resumo
Este artigo levanta a possibilidade de intervenção no transtorno obsessivo compulsivo por meio da psicoterapia analítica
funcional. Trata-se de uma psicoterapia comportamental que se diferencia de tratamentos comportamentais tradicionais, tais
como treinamento em habilidades sociais ou dessensibilização, por ser pautada nas oportunidades de mudanças profundas
obtidas dentro das limitações de um relacionamento interpessoal íntimo e intenso. O transtorno obsessivo compulsivo é um
transtorno de ansiedade caraterizado pela presença de obsessões e compulsões recorrentes e severas que causam sofrimento e
prejuízo objetivo. Mesmo que à primeira vista não pareça um transtorno de ordem interpessoal, pretende-se ilustrar como a
psicoterapia analítica funcional pode contribuir para seu tratamento. Isto é feito pela discussão de momentos nas sessões de uma
cliente de 47 anos portadora de transtorno obsessivo compulsivo persistente desde a adolescência. Verifica-se que oportunida-
des de aprendizagem ao vivo podem ser identificadas no relacionamento terapeuta-cliente, e que há indícios para o efeito
terapêutico dos mesmos.
Unitermos: Transtorno obsessivo-compulsivo. Psicoterapia analítico-funcional. Terapia comportamental.

Abstract

This article considers the possibilities of functional analytic psychotherapy in the treatment of obsessive compulsive disorder. Functional
RELACIONAMENTO TERAPEUTA-CLIENTE
analytic psychotherapy is a form of behavioral psychotherapy, that differs from traditional behavioral treatments like social skills training or
desensitization, because it focuses exclusively on the opportunities for profound change that occur within the confines of an intimate and
intense interpersonal relationship. Obsessive Compulsive Disorder is an anxiety disorder characterized by repetitive and severe obsessions and
compulsions that cause subjective suffering and objective losses. Although, at first sight, it is not an interpersonal problem, we will show how
Functional Analytic Psychotherapy can contribute to its treatment. Turning-points are discussed in the relationship between a therapist and
a 47 year-old client with treatment-resistant Obsessive Compulsive Disorder since early adolescence. In-vivo learning opportunities, as
conceptualized by Functional Analytic Psychotherapy, are identified in the therapist-client relationship, and the reasons for the therapeutic
effects are discussed.
Uniterms: Obsessive compulsive disorder. Functional analytic psychotherapy. Behavior therapy.

▼▼▼▼▼

1
Consultório particular. Goiânia, GO, Brasil.
2
Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Centro de Estudos e Pesquisa em Psicologia. R. 232, n.128, 3º andar, Setor Universitário, 74605-140, Goiânia, GO,
Brasil. Correspondência para/Correspondence to: L. VANDENBERGHE. E-mail: <[email protected]>. 545

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O Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) faz a transformação de pensamentos em obsessões são a
parte dos transtornos de ansiedade e se manifesta pela sensação peculiar de não ter controle o suficiente e a
presença de obsessões e/ou compulsões recorrentes e tendência exagerada de monitorar, que foram detecta-
severas que consomem mais de uma hora por dia do das em pessoas com TOC (Moulding, Doron, Kyrios &
portador, causando sofrimento acentuado e prejuízo Nedeljkovic, 2008).
significativo. É característico o reconhecimento pelo Compulsões são atos repetidos que a pessoa se
indivíduo de que as obsessões ou compulsões são sente compelida a executar, visando prevenir ou reduzir
excessivas ou irracionais. Em cada cinquenta pessoas, o desconforto provocado pelas obsessões, ou para
uma pode apresentar TOC. Costuma aparecer no final evitar alguma situação temida. Não têm conexão com
da adolescência, em número semelhante para ambos um perigo real que deve ser evitado, ou então são
os sexos, existindo casos de início mais precoce, princi- claramente excessivos (APA, 2003). Exemplos são: lavar
palmente no sexo masculino (American Psychiatric as mãos várias vezes para se tornar seguramente limpo;
Association - APA, 2003). verificar várias vezes se trancou a porta para sentir-se
Na patogênese pode haver contribuição dos seguro; contar até vinte para não cometer atos obscenos;
fatores genéticos, da história de vida, do ambiente guardar roupas velhas para que nunca falte o que vestir;
interpessoal imediato e da cultura na qual o indivíduo tentar afastar pensamentos indesejáveis, substituindo-
está inserido, observando que a última promove com- -os por pensamentos contrários (Cordioli, 2004).
portamentos obsessivos e compulsivos em diferentes Existem, para o TOC, tratamentos empiricamente
momentos da vida - por exemplo, a atividade de estudar sustentados. Exemplos são: tratamentos comporta-
bem alguma matéria, tarefa em que se faz necessário o mentais que visam extinguir as respostas condicionadas
cuidado um tanto obsessivo, relendo e relembrando o de ansiedade por procedimentos de exposição aos
assunto (Hounie et al., 2005). conteúdos que evocam as compulsões, sempre evitan-
Obsessões são ideias, pensamentos, impulsos do que o comportamento compulsivo ocorra (Ito, 1996;
ou imagens persistentes, vivenciados como intrusos e Guimarães, 2001; Meyer & Levy, 1973) e tratamentos
inadequados. O indivíduo sente que o conteúdo da cognitivos, que visam modificar as avaliações disfun-
obsessão é estranho, que não está dentro de seu controle cionais das imagens e dos pensamentos intrusos, como
e nem é o tipo de pensamento que ele esperaria ter. também a reestruturação das crenças irracionais que
Reconhece que as obsessões são produtos de sua ajudam a manter o processo obsessivo-compulsivo
própria mente e não impostos pelo exterior. Exemplos (Clark, 2004; Fisher & Wells, 2008; Rangé, 2003; St. Clare,
comuns são: pensamentos repetidos acerca de conta- Menzies & Jones, 2008).
minação; dúvidas repetidas; necessidade de organizar Em meta-análises de pesquisas sobre efeitos
coisas em determinada ordem; medo de ter impulsos terapêuticos, a reestruturação cognitiva e a exposição
agressivos; imagens sexuais ou blasfêmias; preocupação com prevenção das respostas compulsivas mostraram
exagerada com problemas em uma determinada área uma eficácia comparável. A combinação das duas abor-
sem que estes ofereçam realmente perigo (APA, 2003). dagens em um tratamento integrado nada acrescentou
N.A. MENDES & L. VANDENBERGHE

Tomar consciência de vontades, imagens ou ao resultado (Rosa-Alcázar, Sánchez-Meca, Gómez-


pensamentos involuntários que ocorrem e desaparecem -Conesa & Marín-Martínez, 2008). Apesar da eficácia
espontaneamente é um fenômeno psicológico comum, destes tratamentos, há um número importante de porta-
e se a pessoa não der importância a eles, serão esque- dores de TOC que os rejeitam, ou que os aproveitam de
cidos (Wegner, 1989). Porém, quando se trata de pen- forma limitada por causa de problemas que ocorrem
samentos ou imagens inaceitáveis para a pessoa, ou no relacionamento terapeuta-cliente durante a aplica-
que ameaçam a imagem de si, ela pode iniciar tenta- ção das técnicas (Rachman, 2003). Tal observação justifica
tivas de suprimi-los e controlá-los. Isto pode ser o caso, novas contribuições.
por exemplo, de pensamentos incompatíveis com sua Como, à primeira vista, o TOC não é um proble-
autoimagem ou que agridem seus valores centrais ma de ordem interpessoal, não surpreende que os
546 (Ferrier & Brewin, 2005). Outros elementos que favoreçam tratamentos mais tradicionais para este transtorno se

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concentrem no nível intrapessoal, onde se localizam as dificuldades, seus progressos e as suas causas
crenças e as respostas condicionadas subjacentes ao (Kohlenberg & Tsai, 2001).
transtorno. Porém, neste artigo pretende-se ilustrar As ações do terapeuta são: notar, evocar, respon-
como princípios de uma psicoterapia interpessoal der e interpretar os comportamentos clinicamente
podem contribuir para o tratamento do TOC. relevantes do cliente. Estas atuações afetam os compor-
tamentos do cliente através de três funções de estímulo:
O Modelo FAP Em primeiro lugar, o que o terapeuta faz pode
funcionar como estímulo discriminativo, isto é, pode
A Psicoterapia Analítico-Funcional (FAP)
propiciar uma situação na qual é mais provável que
(Kohlenberg & Tsai, 2001) é um tipo de psicoterapia
ocorram certos comportamentos do cliente. Em segun-
comportamental pautada nas oportunidades de mu-
do lugar, pode ter uma função eliciadora (evocando
danças profundas obtidas dentro das limitações de um
respostas emocionais, sensações, imagens ou pensa-
relacionamento íntimo e intenso entre terapeuta e
mentos). Finalmente, as ações do terapeuta podem
cliente. A vivência interpessoal profunda neste rela-
funcionar como reforçadores, isto é, consequências que
cionamento oferece ao cliente oportunidades de
aumentam a ocorrência de certo comportamento do
aprendizagem ao vivo, que o ajudam a crescer e superar
cliente. Na FAP, o modo de ajudar o cliente é por meio
seus problemas no cotidiano. O cliente com fobia social
destas diferentes funções das ações do terapeuta
sente-se criticado pelas interpretações do terapeuta e
durante a sessão. Logo, o primeiro objetivo terapêutico
tem a oportunidade de aprender ao vivo como lidar
é construir um relacionamento genuíno e intenso para
com tal situação. A pessoa com personalidade depen-
que os problemas-alvo do cliente realmente ocorram
dente tem que aprender a lidar com os limites e desafios
dentro da sessão, para serem trabalhados ao vivo
inerentes a um relacionamento próximo, pois é exposta,
ao vivo, à intimidade do relacionamento com o tera- (Kohlenberg & Tsai, 2001).
peuta. Os procedimentos de avaliação na FAP para
Oportunidades de aprendizagem ao vivo emer- gerar hipóteses clínicas e monitorar os progressos do
gem no seio do relacionamento terapêutico quando o cliente são os mesmos usados por terapeutas cognitivo-
cliente emite comportamentos clinicamente relevantes -comportamentais: entrevistas, autorrelatos, questioná-
em relação à pessoa do terapeuta. Estes são momentos rios e registros. Durante todo o tratamento, a FAP utiliza
em que o comportamento pode ser modelado direta- técnicas vivenciais e exercícios de contato emocional,
mente a partir dos efeitos que têm sobre o relaciona- como também destaca a expressão honesta pelo tera-
mento. Os comportamentos clinicamente relevantes peuta dos seus sentimentos em relação ao cliente, com
do cliente que ocorrem durante a sessão são indicados o intuito de intensificar o relacionamento terapêutico e
pela sigla inglesa CRB (Clinically Relevant Behavior) e torná-lo um lugar de aprendizagem genuíno.
divididos em três categorias. Suas estratégias de intervenção são colocadas
RELACIONAMENTO TERAPEUTA-CLIENTE
A primeira categoria inclui a ocorrência ao vivo na forma de regras para o terapeuta: observar atenta-
dos problemas na interação com o terapeuta (CRB1): a mente o comportamento do cliente para intervir no
terapia deve levar à diminuição destes comportamentos momento certo; criar condições para evocar os compor-
por meio de evocação e modelagem de modos alterna- tamentos disfuncionais e as oportunidades de apren-
tivos de agir. A segunda categoria descreve os pro- dizagem; reforçar os progressos do cliente quando
gressos do cliente (CRB2): são comportamentos com ocorrem ao vivo em situação de consultório; observar
baixa ocorrência no início da terapia e que serão alvos quais os aspectos da pessoa do terapeuta ou quais
de reforçamento por caracterizar melhoras ao vivo no ingredientes da sua maneira de estar junto ao cliente
relacionamento com o terapeuta. A terceira categoria que são reforçadores para os comportamentos do
inclui as interpretações que o próprio cliente faz dos cliente; compartilhar com o cliente suas interpretações
seus comportamentos durante a interação com o tera- de variáveis que afetam o seu comportamento (Tsai,
peuta (CRB3): refere-se às falas do cliente sobre suas Kohlenberg, Kanter & Walz, 2008). 547

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Durante toda a sessão, o terapeuta procura de- nos fundos da casa dos avós maternos adotivos. Várias
tectar comportamentos que são relacionados ao trans- vezes mãe e filha tiveram que se separar por motivo de
torno para o qual o cliente procurou o tratamento. A trabalho da mãe. A sra. “A” relata esse fato como uma
pergunta-chave que guia o terapeuta é: “Isto está acon- situação das mais dolorosas: “Preferiria que ela nem
tecendo agora”? Este questionamento é feito em relação viesse para não termos que nos separar”. Algumas vezes,
à ocorrência de problemas ou das melhoras clínicas “A” se mudava com a mãe para ajudá-la. Foi assim por
que podem se manifestar na forma com que o cliente anos, até que a mãe decidiu mudar para a capital de
lida com o terapeuta e com a situação terapêutica. Goiás em busca de autonomia e liberdade.
Como já apontado, os tratamentos empirica- Senhora “A” ganhou uma bolsa de estudos em
mente sustentados para o TOC não enfocam o relaciona- uma escola renomada. Desde pequena já se mostrou
mento terapêutico como a FAP o faz, porém o objetivo muito responsável. Sempre se esforçou nos estudos e
deste estudo foi argumentar que o relacionamento construiu um histórico escolar de boas notas. Formou-
terapêutico pode ser um instrumento alternativo ou -se em Direito e, logo na adolescência, começou a
complementar às técnicas que são atualmente aceitas. trabalhar. Foi manicure, professora e secretária executiva
Em um estudo de caso, ilustrou-se a viabilidade deste antes de ter acesso ao cargo comissionado de alto nível.
modelo de psicoterapia, trazendo os princípios inter- Morou duas vezes nos Estados Unidos, em busca de
pessoais da FAP para o tratamento do TOC. salário melhor; assim conseguiu realizar o sonho de
comprar uma casa própria para sua mãe. Na primeira
vez que foi para o exterior era solteira e o namorado foi
Método atrás. Tiveram um relacionamento sexual, que se tornou
uma grande preocupação para a sra. “A”, prevendo que
Participante
para sua mãe era algo que não deveria acontecer antes
Senhora “A”, portadora de TOC, 47 anos, casada, do casamento religioso: “... me lembro de arrancar cabe-
trabalha em um cargo comissionado de alta respon- los enquanto escrevia cartas para minha mãe tentando
sabilidade, é mãe de um filho vivo e sofreu também um dizer sobre o que tinha acontecido”.
aborto natural. Apresentou compulsões de puxar seus
cabelos (tricotilomania), de contar quantos vãos havia Procedimentos
na estante da sua sala, quantas portas tinha nos armários
da sua cozinha e quantos orifícios havia no rosto das A cliente foi atendida em clínica particular, enca-
pessoas. Incomodava-se com números de coisas ímpa- minhada por um psiquiatra, e indicada por um cliente
res, pois isso causava a impressão de que “sobra alguém”. da psicoterapeuta, primeira autora do trabalho. O caso
Tinha a preocupação exagerada em exercer com per- foi discutido em supervisão e os resultados deste artigo
feição todos os seus papéis: de filha, mãe, esposa, foram organizados no decorrer das discussões entre a
trabalhadora, e quando sentia que falhava, ficava aflita, terapeuta e o supervisor, segundo autor deste texto. A
ansiosa e se culpava. A tricotilomania a deixou quase casuística foi desenvolvida focando no que ocorreu entre
N.A. MENDES & L. VANDENBERGHE

calva na área onde puxava os cabelos, além de deixar o a terapeuta e a cliente, para poder captar o processo
chão sujo, tornando-a preocupada em ser vista como interpessoal que a FAP propõe como elemento curativo
uma pessoa que fazia “sujeira”. central no tratamento. Mudanças no quadro clínico da
cliente são descritos considerando o relacionamento
Nasceu no interior de outro estado, onde morou
da cliente com a terapeuta e a evolução deste rela-
até os doze anos, quando veio com sua mãe para a
cionamento.
capital onde atualmente mora. A mãe, costureira, quase
se tornou freira, mas conheceu um viajante, casou-se
com ele e, em pouco tempo, “A” nasceu. Quando ainda Resultados
bebê, a mãe descobriu que o marido tinha outra família
e se separou. Tinha três anos quando seu pai morreu. O primeiro assunto interpessoal identificado foi
548 Com sua mãe, morou por alguns anos em um barracão a irritação da cliente com o filho, pelo modo como

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escovava os dentes. Nas palavras dela: “Ele não passa a sido combinado, não cobrava a sessão desmarcada na
escova sobre os dentes o tanto necessário”. Ela observava última hora e acolhia a cliente quando cometia atos
o tempo que ele gastava na escovação, e caso achasse considerados por ela - a cliente - irresponsáveis.
que tinha sido rápido, fazia-o repetir, além de ficar com No decorrer do processo terapêutico, a terapeuta
semblante “assustador” e puxar todos os cabelos de uma observou que as características dela que se caracte-
vez. No trabalho também ficava impaciente com um rizavam como reforçadoras para os progressos da cliente
colega lento e sem iniciativa na execução de tarefas. eram: sua assiduidade, sua maneira de acolher e sua
Não se permitia o mínimo de atraso ou o menor erro. disponibilidade emocional. É importante enfatizar que
Sentia necessidade excessiva de ficar atenta para estas reações da terapeuta à pessoa da cliente encaixam-
antecipar e atender às necessidades do seu chefe e dos -se em categorias de reforçadores naturais aos quais a
colegas. cliente, por meio de suas novas atitudes, também teve
Observa-se que o processo obsessivo-compul- acesso no seu cotidiano fora da sessão. Isto significa
sivo interferiu diretamente no plano interpessoal. Logo que a sra. “A” podia, com seu comportamento menos
alguns comportamentos disfuncionais no relaciona- condenatório, mais espontâneo e aberto para com os
mento com a terapeuta (CRB1) chamaram a atenção. A outros, evocar nas pessoas com quem interagia as mes-
cliente chegava em torno de vinte minutos adiantada mas atitudes que evocou na pessoa da terapeuta.
para as sessões, e desde o início expressava sua impa- As mudanças que ocorreram no relacionamento
ciência com a eficácia da terapia. A terapeuta buscou com a terapeuta gradualmente transpareceram no
manter um bom vínculo, iniciando a sessão sempre no cotidiano: a cliente começou a agir de maneira menos
horário, mostrando cuidados com os sentimentos e tensa e preocupada, passando a avaliar o comporta-
preferências da cliente, aceitando os comportamentos mento dos outros de forma mais positiva, principal-
disfuncionais como algo passível de mudança e sem mente os que se comportavam mais lentamente, sem
intencionalidade. rigidez e sem preocupação com a perfeição.
A confiança que a cliente desenvolveu em rela- Procurou-se compreender os comportamentos
ção à terapeuta foi considerada um progresso (CRB2) e da cliente por meio de interpretações que foram cons-
acolhida pela última com uma escuta atenta a todas as truídas pela terapeuta e pela cliente em conjunto. Relatos
informações que ela lhe confiava. Assim, a terapeuta da cliente de que puxava seus cabelos quando tinha
permitiu que, a partir da mudança de atitude da cliente que dar cola de prova para uma colega, ou quando
no relacionamento com ela, desenvolvessem um rela- quebrava alguma outra regra, ajudaram nesta tarefa.
cionamento íntimo. Este, por sua vez, possibilitou à Comportamentos ao vivo durante a sessão, como se
cliente expor detalhadamente situações traumáticas da agitar na poltrona ou elevar as mãos na cabeça quando
infância, adolescência e fase adulta. Outra mudança falava destes assuntos, permitiam relacionar os sintomas
importante ocorreu no seio do relacionamento quando com sentimentos de culpa e vivências de castigos. A
a cliente, em contraste ao que tinha sido o seu estilo obsessão “algo que está em número ímpar significa que
RELACIONAMENTO TERAPEUTA-CLIENTE
durante toda sua vida adulta, começou a conseguir alguém fica sobrando” foi relacionada a várias situações
escutar sem interrupção as falas da terapeuta e se inte- traumáticas da infância nas quais foi excluída - por exem-
ressar pelo que ela tinha a dizer. plo, vivenciou a situação de ver uma prima da sua idade
Nas suas interações com a terapeuta, a cliente ser arrumada para tirar uma foto; ela ficou perto da
também se tornou gradualmente mais flexível quanto prima, com vontade de participar, e quando seu rosto
às suas próprias regras. Em um relacionamento entre saiu junto na fotografia foi punida.
pessoas que se dispõem a serem genuínas e a tentarem Em um determinado período da terapia, do sexto
se entender mutuamente, não se é obrigado a fazer ao 15º mês, o relacionamento permitiu que a cliente
tudo como combinado ou esperado; assim, a cliente expressasse e processasse uma sequência de situações
conseguiu, aos poucos, transgredir suas regras rígidas. estressantes e de crises que invadiam seu cotidiano. A
Com a preocupação de não punir as primeiras brechas descoberta de câncer, a cirurgia de retirada total da
nesta rigidez, a terapeuta, ao contrário do que tinha mama e o início do tratamento de quimioterapia leva- 549

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ram a uma mudança brusca de temas nas sessões, sendo na solução dos problemas dos outros e com exigências
abordados principalmente as orientações médicas, as exageradas. Passou a se cuidar mais, praticando exer-
dúvidas da cliente, sua perspectiva para o futuro e a cícios físicos e lazer. Mostrou mais vaidade com sua
preparação para o tratamento. A morte de um familiar aparência e tornou mais intensos os relacionamentos
com o qual tinha vínculo próximo foi o contexto para com os familiares e pessoas da sua confiança.
que a cliente entrasse em contato com suas crenças de Em alguns contatos feitos até sete meses de-
morte e a vivência do luto. pois do encerramento do tratamento (que durou ao
O falecimento da mãe de “A” levou a um novo todo dezoito meses), não houve retorno dos padrões
contato intenso com sentimentos de culpa e cobrança. obsessivo-compulsivos. Seu trabalho tinha se tornado
A crença de que não deu toda a atenção que deveria ter uma atividade que oferecia prazer e muito menos sofri-
dado à sua mãe e pensamentos de que poderia perder mento. Ela deixou de chegar muito cedo ao trabalho, e
também o marido e o filho a qualquer momento porque até algumas vezes se permitiu chegar atrasada. Passou
“a morte está cada vez mais perto das pessoas mais a se sentir muito melhor com as pessoas, reconhecendo
importantes” foram discutidos nas sessões. Neste que elas próprias são capazes de resolver muitos dos
período, a terapeuta observou que a cliente tentou evitar seus problemas.
a expressão de sentimentos de raiva, medo e dor, falan-
do de situações dolorosas sorrindo e brincando, além
de desviar seus pensamentos para como poderia ajudar
Discussão
outras pessoas. Evidenciou-se a crença de que assim
No relato acima foi descrita uma abordagem
poderia evitar o sofrimento de outros.
interpessoal para um quadro obsessivo-compulsivo. O
Foi considerado um CRB1 quando a cliente rela- percurso deste tratamento ilustra alguns elementos-
tava situações sofridas sem demonstrar emoções para -chave destacados da literatura concernentes ao TOC,
poupar a terapeuta de sofrer também, assim como fez mostrando que podem ser abordados a partir de um
com seus familiares e amigos. Relativo a este problema, enfoque interpessoal. Trata-se de aspectos do TOC para
um progresso (CRB2) foi identificado quando a cliente os quais técnicas específicas existem, mas que, neste
conseguia expressar o que realmente sentia, por meio caso, foram abordados ao vivo na sessão, a partir da
de uma escolha espontânea de palavras, choro e lin- própria vivência do relacionamento terapêutico.
guagem corporal. A terapeuta reagiu sentando-se mais
Reações excessivas à percepção abstrata de que
próximo da cliente e deu maior tempo de sessão, mos-
algo parece errado (Coles, Frost, Heimberg & Rheaume,
trando o quanto a expressão de suas emoções era
2003) que, nos tratamentos comportamentais e cogni-
importante para seu vínculo e para o progresso do
tivos, geralmente são foco de técnicas específicas, foram
trabalho.
trabalhados naturalmente, enquanto a cliente aprendia
Um CRB3 ocorreu quando a cliente chegou a a lidar com sentimentos de imperfeição e aceitação de
interpretar que a camuflagem do seu sofrimento era inadequações no seu relacionamento com a terapeuta.
uma forma de responsabilidade excessiva para com a A insegurança insaciável e a necessidade de sempre
N.A. MENDES & L. VANDENBERGHE

terapeuta, como também era o caso no seu cotidiano, vigiar para evitar problemas (Szechtman & Woody, 2004)
onde se impunha a mesma limitação, como se ela tivesse melhorou da mesma forma, enquanto a cliente apren-
o poder de evitar que os outros sofressem. deu a aceitar a insegurança em um relacionamento
No terceiro mês de terapia, a cliente já tinha que era emocionalmente nutritivo sem que a outra pes-
parado de puxar os cabelos, mas durante o trabalho soa (a terapeuta) estivesse por isso controlável ou pre-
intensivo com a vivência de sentimentos de culpa tinha visível.
recaídas, ainda que com menor frequência e intensi- Enquanto a literatura propõe métodos explícitos
dade. Os comportamentos de contar números de portas, para reduzir a supervalorização de perigo idealizado,
vãos e orifícios desapareceram depois de ter trabalhado que tão frequentemente se encontra no transtorno
o sentimento de que números ímpares significavam obsessivo-compulsivo (St. Clare et al., 2008), a cliente se
550 que “sobrava alguém”. Também se concentrava menos arriscou em um relacionamento diferente, profundo e

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intenso, sem informação confiável de como a outra pes- Considerações Finais
soa (a terapeuta) iria reagir. Aceitou a quebra de regras e
tomou o risco de transgredir também. Assim, aprendeu Estes resultados sugerem que é possível tratar o
a crescer sem se subjugar aos seus medos. TOC mediante relacionamento terapêutico. Não foi
A responsabilidade exagerada, apontada por intenção neste trabalho propor o abandono dos trata-
Rachman (2003) como aspecto importante a ser traba- mentos comportamentais e cognitivos atuais para o
lhado no tratamento comportamental do TOC, estava TOC, mas tornar a terapia mais profunda, através do
presente com destaque na vida da cliente e na sua ma- aproveitamento terapêutico das oportunidades de
neira de encarar o processo terapêutico. Neste trata- aprendizagem ao vivo que ocorrem no seio deste rela-
mento, a terapeuta acolheu quebras de regras pela cionamento interpessoal. A FAP pode se tornar uma
cliente, o que significava um progresso clínico ao vivo. maneira de intensificar o tratamento deste transtorno
Assim providenciou um relacionamento interpessoal ou até oferecer uma alternativa para clientes que se
que permitiu à cliente ser flexível e espontânea, duas mostram resistentes aos tratamentos empiricamente
atitudes que logo transformariam seus relacionamentos sustentados.
cotidianos com muitas pessoas. Futuras pesquisas experimentais poderiam com-
A literatura aponta para a presença, em certos parar os efeitos de tratamentos já empiricamente
clientes com TOC, de uma dificuldade em expressar avaliados com e sem a adição de FAP, para averiguar a
emoções, problema às vezes atribuído a um traço de contribuição objetiva desta abordagem para o trata-
alexitimia subjacente ou uma tendência de agressi- mento do TOC.
vidade passiva implícita na desconsideração para com
as preferências dos outros (Hand, 1992). No trabalho aqui
Referências
descrito, entendeu-se que a expressão emocional tinha
sido enfraquecida durante toda a infância e juventude American Psychiatric Association. (2003). DSM-IV Manual
da cliente, que precisou desconsiderar muitas das suas diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais. Porto
Alegre: Artes Médicas.
necessidades emocionais, mantendo-se em segundo
Clark, D. (2004). Cognitive-behavior therapy for OCD. New
plano e se adequando às regras dos outros, enquanto York: Guilford.
estava morando de favor com os pais adotivos da mãe,
Cordioli, A. V. (2004). Vencendo o transtorno obsessivo-
enquanto enfrentou separações repetitivas e construiu -compulsivo: manual da terapia congnitivo-comporta-
seu caminho, com grande responsabilidade e sacrifício, mental para pacientes e terapeutas. Porto Alegre: Artes
Médicas.
contando apenas consigo mesma. No seio do relaciona-
Coles, M. E., Frost, R. O., Heimberg, R. G., & Rheaume, J.
mento interpessoal entre terapeuta e cliente houve um (2003). Not just right experiences: perfectionism,
espaço favorável ao desenvolvimento da expressão obsessive-compulsive features and general
psychopathology. Behaviour Research & Therapy, 41 (7),
genuína de si e da colocação de necessidades emo- 681-700.
cionais. RELACIONAMENTO TERAPEUTA-CLIENTE
Ferrier, S., & Brewin, C. R. (2005). Feared identity and
A cliente aprendeu a ver a outra pessoa (a tera- obsessive-compulsive disorder. Behaviour Research and
Therapy, 43 (9), 1363-1371.
peuta) como alguém que tinha tanto suas boas inten-
Fisher, P. L., & Wells, A. (2008). Meta-cognitive therapy for
ções quanto suas imperfeições e falhas, ou seja, mais do obsessive-compulsive disorder: a case series. Journal of
que alguém que deveria ser eficaz e avaliado de acordo Behavior Therapy and Experimental Psychiatry, 39 (2),
117-132.
com normas de produtividade. Esta habilidade de aceitar
as particularidades da outra pessoa parece ter contri- Guimarães, S. (2001). Exposição e prevenção de respostas
no tratamento do transtorno obsessivo-compulsivo. In
buído em medida importante para que a Sra. A. abrisse M. L. Marinho & V. E. Caballo (Orgs.), Psicologia clínica e da
mão da sua responsabilidade excessiva e começasse a saúde (pp.177-196). Londrina: UEL.
aceitar tanto a si mesma quanto às outras pessoas Hand, I. (1992). Verhaltenstherapie der Zwangsstörungen.
In I. Hand, W.K. Goodman & U. Evers (Orgs.),
independentemente da adequação delas a regras Zwangsstörungen: neue Forschungsergebnisse (pp.89-124).
abstratas. Berlin: Springer Verlag. 551

Estudos de Psicologia I Campinas I 26(4) I 545-552 I outubro - dezembro 2009


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