Silo - Tips - Norberto Morais o Pecado de Porto Negro PDF

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NORBERTO MORAIS

O PECADO DE PORTO NEGRO


I

À hora da morte, quando os grandes homens se lembram da


frase que os eternizará, D. Luciano de Mello y Goya murmurou:
– Bem-aventurado aquele que prefere morrer com o coração va-
rado de chumbo do que de saudade.
O criado, que o acompanhava, atribuiu-a à febre, cuja inclemên-
cia havia semana e meia o consumia, mas o velho governador nunca
estivera tão lúcido, desde a hora em que subira a bordo do paquete
real, como naquela manhã de Novembro 7, a meio do Atlântico, a
caminho da Europa. Nos ouvidos ecoavam-lhe ainda as palavras do
capitão Rodolfo Cóias, líder da milícia destacada para tomar a ca-
pital da ilha de São Cristóvão, depois de o informar do fim do Im-
pério em terras de São Miguel do Pacífico:
– Porto Negro é uma mulata da beira do cais, D. Luciano! Não
nasceu para usar espartilhos, mas para andar nua por baixo da cam-
braia.
Por entre a névoa da última hora, a imagem era clara aos olhos
de D. Luciano. Não bem uma mulata, como dissera o guerrilheiro,
mas uma negra de braço estendido, que ele, por mais força que fi-
zesse, não conseguia agarrar. Treze dias depois de ter abandonado
a baía de Porto Negro sob a mira do regimento independentista, o
corpo do último governador colonial era amortalhado, benzido e
lançado ao mar.

Nas latitudes dos trópicos, mais do que em qualquer outro


ponto da Terra, o calor bule com os corpos como pouca coisa se

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atreve, mas em nenhum outro lugar tanto quanto em Porto Negro.
Fundada na orla de uma baía recôndita, ligada ao mar por uma es-
treita passagem aberta entre as rochas, Porto Negro é uma cidade
quente, cuja proximidade do oceano não refresca. As montanhas
altas em torno da baía impedem o vento de desabafar o ar e só de
quando em quando uma aragem irrompe pela boca da barra para
regalar aos corpos um alívio discreto, como um beijo de mar.
Conhecida entre os marinheiros do mundo como a Cidade do
Amor Vadio, Porto Negro tem a febre do desejo entranhada no ven-
tre e dá-se a quem chega com a verdade de uma fêmea entregue ao
prazer só porque o calor lhe dá. Refúgio de piratas, estaleiro naval,
zona franca e, em seus tempos de glória, um dos principais empó-
rios da costa leste do Pacífico, Porto Negro foi sempre um lugar de
passagem... Mas quem chega não parte sem a promessa de voltar.
É na beira do cais que a cidade amanhece. Apagado o farol do
cabo, assomam os primeiros barcos. Na praia, de mãos sobre os
olhos, as mulheres dos pescadores enxotam a viuvez do coração.
Vivem à espera do dia em que a manhã não lhes traga o homem
que todas as noites as deixa sozinhas para ir roubar o mar. Um
pouco antes das sete, a sereia do porto dá permissão aos pilotos
para começarem a trazer navios para a barra e os trabalhadores da
doca surgem, de todos os lados, por barbear. Compondo-se o chão
do mercado de toldos e bancas, quando os sinos da catedral acabam
de bater as ave-marias, já toda a praça do cais é um mar a ondular
de gente. Descem a terra os primeiros marinheiros – rapazes novos,
soprados dos quatro cantos do mundo – e as vendedeiras jovens
apregoam mais alto, na linguagem doce do bom entender.
Atravessada a praça do cais, para lá das alfândegas e dos arma-
zéns, abre-se a cidade velha, um emaranhado de ruas apertadas e
sujas, ladeadas de edifícios cansados, aos quais o tempo, o ar sal-
gado, o sol e o desmazelo dos homens deixou com aspecto de mu-
lheres decadentes. Tascas, bares, negócios vários, casas de afecto,
pensões baratas, e uma mistura de linguajares e cheiros que só
quem por ali vive ignora. Homens desocupados enchem as soleiras
das portas, aguardentando os sentidos, fumando o tempo em ci-
garros baratos, que o trabalho é pouco e menos ainda a vontade de
o fazer. Também as mulheres se sentam às portas, enteando

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conversas, catando os filhos – um de cada amor – que lhes escapam
das mãos, descalços, meio nus, no encalço de uma sombra, de um
gato, de uma bola de bexiga, desaparecendo da vista no virar de
uma esquina para aparecerem por outra, esguedelhados e sujos, em
gargalhadas feitas da inocência de ser pequeno.
À medida que o casario se afasta do mar, surgem os primeiros
vestígios da cidade colonial. Mas é em redor da grande Praça dos
Evangelistas – a que o povo chama dos Arcos – que se pode vis-
lumbrar o que foram os gloriosos anos do Império, quando Porto
Negro era rota obrigatória dos navios que cruzavam a linha do equa-
dor. Os edifícios públicos, gretados, falhos de tinta, desanimados,
vão resistindo como podem na dignidade marmórea de damas
falidas. E se a Catedral de Santa Maria compensou com almas a
quebra de oblações, a Casa da Ópera, que os independentistas
transformaram em estrebaria, não resistiu à partida de D. Luciano
de Mello y Goya, que a sonhou e cumpriu. Apenas um edifício em
Porto Negro é alheio à passagem do tempo: o sombrio palácio que
encima a colina da cidade – de onde o povo, por superstição, não
se aproxima –, e do qual, se calhar em caminho, talvez se fale.
Entre o meio-dia e as três, tudo abranda e amolece. É a hora
mansa da sesta, a hora em que nada acontece; em que as sombras
se encostam às paredes, ao fresco que resta; em que os corpos se
metem em casa e o mundo desaparece. Chamam-lhe a hora dos
amores encobertos! A segunda parte do dia, embora mais curta,
passa com lentidão, e quem bule mais duro só anseia pelo último
toque da sereia e pela primeira cerveja do dia, que nem em todo o
lado as leis são secas. Ao cair da tarde, quando o sol incendeia a
boca da barra e os trabalhadores do porto se espalham pelos quatro
cantos da cidade, ouvem-se coros de vozes pelas ruas e, vindo dos
bares, o romance das primeiras guitarras.
Desce a noite sobre a ilha de São Cristóvão e, no coração da
cidade velha, acorda o Bairro Negro. Das varandas, das janelas, das
portas, das esquinas, surgem mulheres pintadas, sorridentes, de car-
nes desenvergonhadas, atirando beijos, propostas indecorosas, pro-
messas de céu aos primeiros visitantes: marinheiros, cáftenes,
estivadores e toda a casta de pecadores cujos sonhos se apagam
quando o dia amanhece. Também os maricas por ali giram. Sentados

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nas esplanadas ou deambulando pelas ruas – que aos homens não
pertencem esquinas –, vão pescando intenções nos olhos dos pas-
santes, trocando olhares com apreciadores de outros predicados,
no código secreto dos amantes clandestinos. Concertinas e guitar-
ras provocam, seduzem, incitando ao contacto, a beber, a dançar,
e o calor – já se sabe – bule com os corpos como pouca coisa se
atreve. Cheira a mar, a restos do dia, ao suor da vida dos homens
e ao perfume das mulheres da vida. Aos poucos chegam dois e mais
quatro, dez com mais vinte, até não haver quem falte, nem espaço
para tanta gente. Enchem-se as ruas, os bares, as casas de amor alu-
gado, e a noite faz-se festa até se embrulhar com o dia, até à hora
indistinta em que nem uma coisa nem outra, até o arrastar enso-
nado ser comum a madrugadores e tresnoitados; até o Sol despon-
tar no horizonte e a cidade recomeçar do zero, porque ele há coisas
que não mudam nunca; porque é mais fácil inclinar o eixo da Terra
do que endireitar a sombra de um pau torto.
Idas as famílias de quinze apelidos, Porto Negro despiu-se de
etiquetas e, pondo um vestidinho de nada sobre a pele tisnada, cor-
reu, descalça, para a beira do cais, onde o amor é livre e o amar
descomprometido. Como disse o capitão Rodolfo Cóias, por outras
palavras, não basta uma coroa para fazer rainha uma mulata dos
trópicos. Quiseram-na Jóia do Pacífico, mas será para sempre a Ci-
dade do Amor Vadio, onde os navegantes do mundo chegam e par-
tem, trazendo histórias, fazendo História, levando histórias. São
muitas as que se contam entre homens do mar e donzelas da terra,
e diz-se não haver uma só família, em toda a cidade, sem um filho
da maré, que assim se foi chamando, no passar das gerações, aos
frutos dos amores entre mareantes de passagem e sonhadoras de
ver passar. Mães avisam filhas, como suas mães as avisaram a elas,
desde muito cedo e pela vida fora, que amor de marinheiro é fogo
de palheiro. Mas nem os avisos serviram algum dia senão para aliviar
quem os dá, nem quem os ouve se lembra deles na hora do fogo à
palha. Não acabam todas grávidas – que nem sempre o amor pega
de estaca –, mas, porque os marinheiros são mais do que as marés
– embora o dito o contradiga –, sempre amanhece o dia em que
vem à luz mais um rebento da mareagem, ou do mareio, que para
o caso dá no mesmo. Uma rara atracção há nos homens de mil

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portos, nos homens de mil histórias, nos homens de mil mulheres.
Porém, de entre todas, há uma história que ainda hoje se conta na
beira do cais, nas ruas escusas da cidade velha, pelos arcos da praça
colonial. Chamam-lhe O Pecado de Porto Negro. Alguma coisa
teriam de lhe chamar.

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II

– Consta para aí à boca pequena que foste tu quem encheu a


filha do boticário – segredou Rodrigo de San Simon na direcção de
Santiago Cardamomo.
O amigo acendeu um cigarro, aspirou fundo e, como se não
fosse com ele, soprou a resposta sobre a cabeça do fósforo:
– É capaz.
– É capaz?! Então e agora?
– Então, agora nada! Parece até que já tem noivo.
– Arranjado à pressa, para esconder aparências.
– Estás a ver que tudo se resolve, Simon! – sorriu Santiago Car-
damomo, levando o cigarro à boca.
– Mas se o filho é teu porque não o assumes tu? – perguntou
Rodrigo que, tal como Santiago, não conhecera o pai.
– Ganha juízo, Simon. Sei lá se o filho é meu.
– Parece que a rapariga é uma moça séria.
Santiago fungou um sorriso e, aproximando a cara da cara do
amigo, sussurrou:
– Já fodeste alguma moça séria, tu?
Rodrigo de San Simon, que não conhecia senão o amor de aluguer,
mordeu o lábio, embaraçado, e depois de um silêncio, confessou:
– Não.
– Pois claro que não! As moças sérias ninguém as fode, Simon.
Por isso é que são sérias.
Pascoal, que completava o trio na pequena mesa do bar, e tal
como os outros dois era um filho da maré, explodiu numa gargalhada.

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– És um cabrão! – exclamou por fim, assentando uma palmada
nas costas de Santiago.
– Eu não; mas o tipo que vai casar com ela…
Desta vez riram todos. O resto da clientela, homens espalhados
por mesas ao longo do botequim, ergueu a cabeça na direcção dos
rapazes.
– Às mulheres! – propôs Pascoal Saavedra, levantando o copo
da cerveja.
– Ao amor! – sugeriu Rodrigo de San Simon, imitando-lhe o
gesto.
– À liberdade! – ditou Santiago Cardamomo, colando o seu ao
dos companheiros.

Aos vinte e sete anos, Santiago Cardamomo era um jovem na flor


da idade, sem planos para o futuro nem preocupações de maior. De
boa figura, enchia de suspiros meio mundo de mulheres – bonitas e
feias –, mas, por razões que, se calhar em caminho, talvez se contem,
sorria mais às segundas que às primeiras. Os amigos, que não alcan-
çavam entre as mulheres o mesmo êxito, arreliavam-se com as suas
escolhas, protestando ser o mal da fartura. Santiago sorria e, de cada
vez que o porquê da preferência surgia, a resposta não variava:
– Porque são generosas no amor como a beleza não foi com elas.
Como boa parte dos rapazes da sua idade que não haviam em-
barcado, Santiago trabalhava no porto, carregando e descarregando
barcos. Dono de uns ombros largos, de uns braços fortes, vivia de
camisa aberta, arejando o peito. O resto da indumentária resumia-
-se a uns chinelos e a umas calças de linho cru, sob as quais não
trazia senão a generosidade de Deus. Assim confirmavam os amigos
que o conheciam bem e as profissionais do porto que lhe gabavam
os atributos como a uma relíquia milagrosa. As demais mulheres,
com quem se relacionava em segredo, se o diziam, era nas meias
palavras, no sorriso dos olhos, na dissimulação com que Deus as
dotara de fazerem inveja umas às outras.
Os fins de tarde, acabado o trabalho, passava-os Santiago com
Rodrigo e Pascoal, entre copos de cerveja e tacadas de bilhar, na
Flor do Porto, bodega explorada por dona Santiaga Cardamomo, tia
que o criara desde o berço quando a irmã, mãe solteira, lho deixara

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a cargo para partir de braço dado com um capitão flamengo. Era
um bar pequeno, amarelo, sem janelas, de portas altas, avermelha-
das, abertas aos pares para horizontes distintos: duas para a Rua dos
Tamarindos, duas para uma rua de que se não há-de falar e outras
duas, as centrais, para o Arco de São Mateus, uma das quatro en-
tradas da Praça dos Evangelistas, ou dos Arcos, como é chamada e
se passará a nomear.
Por ali se criou Santiago e por ali trabalhou em criança – que à
escola sempre foi avesso –, mas, com o romper da puberdade, de-
pressa a tia compreendeu ser mais a desajuda do que o préstimo.
Não perdia o ensejo de se plantar à porta, com olhos de alfaiate a
tirar medidas, ou desalvorar atrás do primeiro retalho de saia, dei-
xando o bar às moscas e à vontade da freguesia. Dona Santiaga per-
dera a conta às vezes que viera encontrar o negócio entregue ao
destino, e às sovas que lhe dera sem remédio. Santiago, cujo des-
caramento e a vergonha cresciam em razão inversa, beijava-lhe as
mãos doridas e, com o sorriso que haveria de crescer com ele para
desgraça de meio mundo de mulheres, dizia:
– Mil perdões, minha tia. Não volta a acontecer – deixando a
solteirona derretida e furiosa por também ela se vergar diante da-
queles olhos melados. Mas no sangue de Santiago corria o Diabo
aos pinotes e a vez seguinte era como a vez anterior.
Acalmou uma época em que a tia caiu à cama com febres e lhe
rogou por tudo para não descuidar o bar um só instante e a poupar
a cuidados. Santiago assentiu, mas sem ideia do que estava a pro-
meter. Durou sete dias o martírio de dona Santiaga, e sete vezes
doze horas o de Santiago, seu sobrinho. Mordia-se atrás do balcão
de cada vez que uma mulher do seu agrado passava à porta. As mais
atrevidas, conhecedoras já dos seus dotes precoces, desfilavam, de-
moradas, atirando-lhe olhares provocadores, deixando-o desorien-
tado e sem outro remédio senão aliviar-se ali mesmo, na distracção
da clientela.
Recuperada a tia da maleita, tornou Santiago ao de costume.
De modo que esta – tia, mãe e madrinha – deu uma palavrinha a
um dos clientes da casa, um armador do porto, e aos treze anos
Santiago assentou praça na estiva, onde o tempo passa mais de-
pressa e os olhos não têm folga para contemplações. Até porque,

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por aquelas bandas, mercadoria de saias é artigo esgotado. A sema-
nada entregava-a por inteiro em casa, mas do bilhar e das cartas ti-
rava o bastante para distribuir pelos bares e prostíbulos do porto,
onde se perdia nas sobras do tempo. Jogador destro e hábil amante,
não tardou à fama do rapaz ganhar asas, e em pouco tempo não lhe
faltavam mulheres e adversários. O passar dos anos fê-lo homem,
mas o sorriso e o olhar mantiveram-no menino, para perdição «des-
sas cadelas vadias», como a tia lhes chamava na exasperação da ar-
relia sempre que uma moça passava à frente do negócio com ares
de gata miona procurando-lhe o cheiro.
Por vezes surgia o rumor de um rebento seu. Mas nunca as
moças o confirmavam e aparecia sempre alguém a assumir a pater-
nidade da criança, em geral homens mais velhos de quem se dizia
já falhar a semente. Quanto às casadas, havia um pai natural para
os filhos todos que lhes brotassem do ventre. Santiago, esse, seguia
pela vida, tranquilo, assobiando liberdade, porque, como dissera a
Rodrigo de San Simon, tudo se resolve.
Ao contrário de Rodrigo e de Pascoal, que sonhavam embarcar
– Rodrigo para conhecer o mundo e Pascoal as mulheres que há
nele –, Santiago não se entusiasmava com as histórias trazidas pelos
marinheiros e afirmava, ignorando o tamanho dessa verdade, que
a vida haveria de ser igual em todo o lado onde houvesse gente.
Ambicionava pouco, não lhe faltava nada, e gozava sem angústia o
manso passar dos dias, porque a felicidade é uma cerveja gelada e
um par de coxas enlaçando a cintura.

Depois do brinde, os três rapazes encetaram uma partida de


bilhar. Era cedo ainda para descerem ao Bairro Negro. Santiago
levava vantagem, como de costume, e, como de costume, ia pro-
vocando os companheiros com lentos goles de cerveja e lentas
passagens de giz. Pascoal rilhava os dentes. Rodrigo fumava, des-
contraído. Ao contrário do amigo, nunca ia com muita esperança
para o pano. As bolas, alinhadas no topo da mesa, davam a San-
tiago a possibilidade de arrumar o jogo em três tacadas. Passou
giz pelo cabedal, levou o copo à boca, acendeu um cigarro e,
piscando o olho a Pascoal, inclinou-se para o pano, feito um tou-
reiro para a estocada final. Pascoal, inflamado, sentia as chances

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minguarem, quando uns cabelos negros sobre um xaile claro fi-
zeram Santiago suspender a tacada para ir contemplar a Natureza
para a porta do bar. Uma moça que nunca vira acabava de atra-
vessar o Arco de São Mateus. Era magra, branca, de uma beleza
que só ele sabia apreciar, e que a rua deserta ainda salientava mais.
Encostou-se à ombreira da porta e, de cigarro nos dedos, ficou a
contemplá-la, como à vida, como à mais rara das mulheres, como
à única na Terra inteira, como uma mulher deve de ser olhada:
como se fizesse já amor com ela. A moça pareceu ganhar pressa
de repente.
– Mais depressa levas para cama uma freira do Carmelo do que
essa que aí vai! – exclamou-lhe a voz de Rodrigo de San Simon
sobre o ombro.
– Quem é? – perguntou Santiago, sem tirar os olhos da rua.
– É a Ducélia – disse Rodrigo. – A filha do açougueiro.
Santiago acenou com a cabeça, observando a moça que avan-
çava, lesta, pela sombra dos tamarindeiros. Curioso! Vivia ali tão
perto, do outro lado da rua, umas casas à frente, e não tinha ideia
de alguma vez a haver visto por ali. Perguntou se estivera fora, em
algum colégio ou convento. Rodrigo respondeu que não, que sem-
pre ali vivera.
– Estranho! – exclamou Santiago. – Podia jurar que nunca a
tinha visto – intrigava-se, fixando a porta do açougue que acabava
de engolir a moça.
– Também não é nada que mereça o tempo! – exclamou Pascoal
Saavedra, que nem era esquisito com mulheres.
Mas Santiago gostara do que vira. Voltaram para a mesa de bi-
lhar para Santiago perder a mão e o jogo em seis tacadas. Pascoal
estava eufórico:
– Então, vacilaste?! – ironizou na direcção do amigo a quem só
ganhava nos dias santos.
– É para teres tesão logo à noite, Vedrinha! – sorriu Santiago,
abrindo os braços. E, arrumando o taco e o resto da cerveja, foi de-
positar um beijo franco na face magra da tia.
– Até mais ver, minha tia.
– Até um dia destes! – atirou-lhe a matrona com gravidade no
substantivo. Não havia meio de se habituar à vida daquele desalmado

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que a ralava de cada vez que se lhe ausentava da vista. Santiago sor-
riu, tomou-lhe num beijo as mãos amarrotadas e, abraçando os dois
amigos, desapareceu na tarde para as bandas do porto, onde o amor
era sincero e barato.
– Como é que disseste que a moça se chamava, Simon? – per-
guntou na direcção do amigo.
Rodrigo abanou a cabeça e, fungando um sorriso, respondeu:
– Ducélia.
– Ducélia! – sorriu Santiago.
Pascoal olhou para Rodrigo... Uma gargalhada sonora elevou-se
do grupo.

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III

Tulentino Trajero, o mais concorrido açougueiro de Porto Negro,


tinha na filha, Ducélia, extremado orgulho. Menina dos seus olhos,
razão maior da sua vida, Ducélia era a depositária das mais altas es-
peranças de seu pai. Prendada, educada, obediente e – não por ser
sua – a filha perfeita. Viúvo antetempo, criou-a sozinho, que mais
família não tinha naquela terra e outra mulher não lhe provocou o
instinto.
Aos trinta anos, por um infortúnio que, se calhar em caminho,
talvez se conte, Tulentino Trajero deixou para sempre a cidade onde
nasceu e, a bordo do Alyantte, viajou onze dias e onze noites entre
Antipuara, no país continental, e Porto Negro, fazendo a rota das
cinco ilhas que compõem o arquipélago de Santa Maria del Mar.
Passava os dias na cabine e as noites no convés, entremeando es-
trelas com lágrimas, varrendo cacos de alma para os cantos de si.
Ao oitavo fez a barba, vestiu-se de lavado e subiu mais cedo para
admirar o oceano a engolir o astro. Encostada à amurada do barco,
viu uma jovem com olhar tão distante quanto o horizonte do mar.
Chamava-se Angelina Fontayara e haveria de ser sua mulher, três
dias depois, ao aportarem na baía de Porto Negro.
Para quem se encanta com histórias de amor à primeira vista,
lamenta-se o desapontamento por não haver sido o caso, mas a de
duas almas batidas pelo destino que o acaso juntou sobre o convés
do mesmo barco, ao fim do dia, ao fim dos sonhos. Foi uma união
bem-aventurada – que feliz talvez seja um exagero de expressão –,
de poucas palavras, parte a parte, na qual sobre o passado de cada

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um nunca nada se disse. Não foi uma condição, mas condisse com
a vontade secreta de ambos. Faziam amor sem gemidos nem suores,
no escuro do quarto apagado, depois do que, cada um para seu
lado, que é assim que os bichos fazem, que é assim que a Natureza
ordena, pois se assim não fosse andariam os seres da Terra abraça-
dos e aos beijos pelos cantos do mundo. Compreendiam-se, dis-
pensando verbos, que o silêncio, quando bem dito, não deixa nada
por dizer. Nunca uma discussão, uma expressão amarga, mas tão-
-pouco uma declaração de afecto ou um adjectivo mais doce. Ele
há mil formas de afirmar sentimentos, basta tão-só havê-los. Assim
viveram cinco anos, até o coração de Angelina Fontayara falhar e
bater pela última vez num cair de tarde. Nem nesse momento sur-
giram mais palavras, e foram duas lágrimas de mar, memória líquida
de um oceano apadrinhador, a dizerem, nos olhos de Tulentino Tra-
jero, quanto este se doía já pela sua ausência. Cinco anos?! Nem
dera pelo tempo passar. Mas isso não era assunto do tempo. E na-
quela hora de solidão, sentindo a falta do seu silêncio – diferente
do silêncio da sua falta –, teve a certeza de haver sido feliz, sem no
entanto o ter notado.
Nunca do passado lhe procurou um minuto, mas, quando a boca
de Angelina Fontayara se fechou sem remédio, compreendeu que
«tarde» e «nunca mais» eram sinónimos de «para sempre» e que
aquele corpo dormente era o caixão onde o seu passado se sepul-
tava, a tumba de uma mulher levando consigo uma outra, ou mil
outras, cuja existência não chegara a conhecer. Uma sensação de
vazio encheu-lhe o peito, como quem acordasse de repente ao lado
de um desconhecido. Então, quando já não era possível, quis Tu-
lentino Trajero saber da mulher todos os pretéritos, perfeitos e im-
perfeitos. E, porque quem ignora conjectura, tudo passou pela
cabeça desnorteada do magarefe. De repente, todas as dúvidas,
todos os fantasmas, os ciúmes todos numa catadupa de angústias e
medos. Quantos homens? Quantos beijos? Quantos olhares pre-
nhes de promessas? Não importava?! Pela felicidade da filha que
lhe ficava nos braços, que não importava – jurava Tulentino Trajero
ante a ignorância e a morte, entre a revolta e a impotência. Qual-
quer coisa. Qualquer coisa! Aquele buraco no peito é que não. De
quem era aquele corpo que ali estava diante dos seus olhos moles?

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Que mulher era aquela ao lado da qual adormecera e acordara anos
a fio? Quem era, enfim, Angelina Fontayara? Chegava tarde a per-
gunta porque a resposta morria com ela e com ela iria a sepultar
para a eternidade.
Ainda considerou, na loucura do abandono, pegar na cédula da
falecida, saber-lhe a origem, embarcar à procura do passado, como
se tal lha trouxesse de volta, a substanciasse ou lhe pudesse dar
descanso. Mas por fim resignou-se, e, no dia seguinte, depois de o
corpo de Angelina Fontayara descer à terra, jurou esquecer o as-
sunto e cumprir, por temor ou fidelidade, a promessa silenciosa de
não querer dela senão o dali para diante, quando o horizonte dos
dois não era senão um mar de lágrimas sem fim à vista. Pegou fogo
à vontade e à cédula da esposa morta, achando que seria possível
reduzir a cinzas e fumo tudo quanto fora a sua vida antes daquela
tarde poente, no convés do Alyantte, quando se aproximou dela e
perguntou:
– Está sozinha?
E ela respondeu:
– Estou.

À época da morte da esposa, Tulentino Trajero trabalhava como


magarefe no matadouro municipal, que por má fortuna haveria de
desaparecer poucos dias depois num incêndio que se alastrou ao
coração da cidade, na mais famigerada desgraça da ilha, causando a
morte a quase meia centena de pessoas, quando uma manada de
vacas em chamas irrompeu pela Travessa da Salvação, esmagando a
eito a procissão de Pentecostes. Nem o cardeal Cervedo Tormnes,
que enjoara sete dias e sete noites, desde Antipuara até Porto Negro,
por convite do senhor bispo Caulle d’Aimar, escapou da chacina de
demónios ardentes, que só pararam no porto para se atirarem à água.
Viúvo, sem trabalho e com uma filha para criar, Tulentino Trajero
sentiu sobre os ombros a arcadura do zero e compreendeu não ter
outro remédio senão arregaçar as mangas e deitar mãos ao trabalho.
Alugou o resto da casa a D. Sancho Guelba e abriu negócio por conta
própria, tinha Ducélia dois aninhos de andar por cá.
A partir desse dia, dedicou-se à filha e ao trabalho, e a partir
desse dia foram apenas os dois. Ele mesmo se ocupou dela, como

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imaginava dever ocupar-se uma mãe, e, apesar de não ser um
homem de afectos fáceis, devotou-lhe todo o amor e cuidado de
que foi capaz. Foram difíceis os primeiros tempos para o açou-
gueiro da Rua dos Tamarindos, mas a pequena Ducélia, como quem
cedo compreendesse a luta do pai, não dava senão o trabalho que
não podia não dar. Sentada à porta do negócio, passava os dias a
olhar a rua, num estar quieto e silencioso, indiferente às festas na
cabeça que os clientes lhe faziam ao entrar e sair. Um dia pediu
para o ajudar e o pai arranjou-lhe um banco alto, encarregando-a
de entregar aos clientes os embrulhos da carne. Parecia feliz nesse
tempo e nada lhe parecia dar mais satisfação do que estar aí, ao
lado do pai, a receber-lhe das mãos os embrulhos e estendê-los à
freguesia do outro lado do balcão. Um dia quis aprender a fazer as
contas e o pai ensinou-lhe os números e as regras entre eles. Mul-
tiplicou a felicidade e durante seis anos foi o braço direito do açou-
gueiro, chegando a encarregar-se do negócio sempre que este tinha
de se ausentar por uma hora ou duas. Mas, por motivos que, se ca-
lhar em caminho, talvez se contem, Tulentino Trajero achou não
ser aquele o sítio indicado para uma menina da sua idade e contra-
tou um ajudante para o auxiliar nas tarefas. Ducélia, então com
doze anos, teve de deixar o açougue.
A súbita decisão do pai provocou nela uma tristeza intraduzí-
vel. Criada no silêncio que se manteve depois da morte da mãe,
onde as coisas ditas não eram senão pequenas pausas nos inter-
valos dos grandes silêncios, como se os verbos fossem quês su-
pérfluos, luxos sem os quais se passava bem, Ducélia não
contestou a decisão, acatando-a, como seria de esperar da boa
filha que era. Mas, porque ele há coisas que o próprio silêncio
não consegue calar, depressa Tulentino Trajero notou um silêncio
diferente alastrando-se a toda a casa. Achava haver tomado a de-
cisão certa e cria que, com o passar dos dias, aquele sentimento
de tristeza haveria de minguar. Mas os dias passaram e a alegria
de Ducélia não dava mostras de reagir. Por várias vezes a sur-
preendera, espreitando pela porta de grades que dividia o açou-
gue do alpendre da casa, como se esperasse alguma coisa. Fingiu
sempre não ver, mas aquela imagem de olhos tristes moía-lhe o
pensamento dia fora.

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Criada sem mãe, ou outra presença feminina que a iniciasse em
tarefas mais elaboradas, Ducélia limitava-se às pequenas coisas.
A lida da casa era pouca, visto a roupa estar entregue às lavadeiras
do porto, e as tarefas inventadas pelo pai para a manter ocupada
se esgotarem depressa, deixando-lhe o resto do tempo vago sem
nada com que se entreter. Até a hora da sesta se tornara deso-
cupada, agora que a velha Dioguina Luz Maria tinha partido. Mas
essa era uma história desconhecida de Tulentino Trajero e que, se
calhar em caminho, talvez se conte.
Não sobrava ao açougueiro tempo para lhe ensinar coisas novas,
compreendendo haver algumas alcançáveis apenas entre mulheres.
Soube de uma velha modista que ensinava mocinhas num pequeno
atelier dos Arcos, mas depressa se apercebeu, no pouco tempo da
entrevista, não ser aquele o ambiente desejado para a filha. Uma
sala cheia de raparigas novas, acaloradas, aos risinhos e aos cochi-
chos, deu ao açougueiro da Rua dos Tamarindos a ideia de serem
outros o corte e a costura ali praticados. Tinha uma reserva indis-
farçável em relação às moças daquela cidade, fervendo-lhe o sangue
sempre que alguma, mais arejada, lhe passava à porta do açougue.
Pois aquilo a que uns chamavam alegria e descontracção, chamava
ele falta de vergonha e deboche. Conhecia-lhes a fama e as histórias
que delas se contavam. Rara aquela cuja vida não tinha um
marinheiro ancorado. Mal antigo! Muitas delas filhas de amores
fortuitos da beira do cais. Contavam-se pelos dedos as famílias
compostas por pai, mãe e filhos, e achá-las com avós de ambas as
partes era tarefa mais árdua do que desencantar um espadarte com
penas. Mas da vida alheia sabe alheia gente; da sua, sabia ele. Logo,
andassem lá como o Diabo quisesse, mas depois não lhe fossem
pedir fiado, porque, «ah, que Deus», sozinhas no mundo com um
rancho de filhos para criar.
Por isso, quando viu o ambiente do atelier dos Arcos, Tulentino
Trajero teve a certeza de ali não haver Ducélia de pôr os pés nem
para mandar fazer bainhas. Só o imaginá-la de amizade com aquele
género de raparigas enchia-lhe as veias de espuma. Sabia bem como
as coisas se davam: primeiro um passeio, depois uma festa, um bai-
larico, e daí para a desgraça um pulinho de nada. Também já fora
novo e tentado. Não que Ducélia lhe não merecesse confiança

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absoluta! Merecia. Mas o seguro morreu de velho e a prudência
rezou-lhe a missa. Assim, antes que o Diabo e as tentações da idade
fizessem das suas, tratou ele mesmo de corrigir o destino.
Dias depois, a meio da manhã, uma outra ideia deixou-o entu-
siasmado. Solicitou uma audiência com a madre superiora do Con-
vento das Teresinhas e, a despeito das regras rígidas da instituição,
que não previam o ingresso a filhas de casais não legitimados pelo
matrimónio cristão, Tulentino Trajero logrou, a título de excepção
e sob o pagamento integral da anuidade e de um generoso donativo
para as obras de caridade, a admissão da filha na Escolinha das Sa-
gradas Esposas.
A Escolinha, como a designação sugere, era um centro de boas
práticas, dirigido pelas freiras do Carmelo, com o propósito de pre-
parar, desde cedo, as meninas de boas famílias para o futuro papel
de esposas – um papel diferente do de ser mulher, que ele há coi-
sas, assume-se, que as religiosas não saberiam explicar. Coisas ha-
veria, também, que Tulentino Trajero, chegada a hora, não saberia
ou não teria coragem de esclarecer à filha. Porém, não foi essa a
razão a motivar-lhe a escolha, dado longe vir a hora de se preocupar
com tais questões.
Além das faculdades do lar e dos lavores, na Escolinha das Sa-
gradas Esposas eram ainda ensinadas a oração e o recato, o come-
dimento e a paciência, a conformação e o sacrifício, virtudes
ímpares e tão profícuas à vida e ao matrimónio, em especial num
tempo e num lugar onde, lamentavam as mais velhas, pareciam
cada dia mais desatendidas. De tudo aprendiam as meninas e
moças na Escolinha do convento. Porém, letras, nem um A do ta-
manho de um anho.
Para Ducélia, no entanto, aquela mudança não representou um
presente. Se lhe tivesse sido dado a escolher, talvez optasse por
ficar como estava. Mas, percebendo no pai o agrado por aquele in-
gresso, pela sua frequentação daquele espaço, disfarçou o desin-
teresse e engoliu o desconsolo para o fundo de si. O açougueiro,
esse, estava orgulhoso da decisão certa. Não se lembrava Ducélia
de alguma vez o haver visto tão entusiasmado, tão falador, como
em relação àquele assunto. Para ela, essa foi a parte boa de tudo
aquilo.

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Começou então a frequentar a Escolinha das Sagradas Esposas
duas horas de manhã e outras duas à tarde. Além das aulas, outras
práticas passaram a fazer parte das suas rotinas: a missa aos domin-
gos, a aprendizagem do catecismo aos sábados e a profissão dos
seus sagrados sacramentos, a começar pelo baptismo que, também
por excepção, lhe foi ministrado. Nos primeiros tempos, Tulentino
Trajero esforçou-se por acompanhar a filha ao louvor de domingo
– sacrifício cumprido com um desalento de condenado –, mas,
antes ainda de Ducélia cumprir treze anos, já assistia sozinha à
eucaristia. Apenas nos dias de procissão e em ocasiões especiais, o
açougueiro da Rua dos Tamarindos se endomingava para dar o braço
à filha e passos sacrificados a caminho da catedral.
Foram-se passando os anos e Ducélia crescendo, sem relevo, na
discrição das palavras poucas, alheia a tudo quanto a rodeava, exe-
cutando, sem prazer nem enfado, as tarefas que tinha de executar.
Nunca se lhe ouviu uma queixa, um suspiro mais fundo. Fazia a
vida no silêncio das alpergatas e, se pensamentos a entretinham,
talvez só Deus, a saber, os soubesse, visto nem mesmo o cónego
Crespo Luís, a quem se confessava uma vez por semana, lhos
conhecia.
– Uma santa, esta rapariga! – comentava com Deus no fim de
cada confissão, quando a mandava de volta para casa sem qualquer
penitência, deixando-lhe ao cuidado as orações que bem enten-
desse deitar ao Céu.
Quando aos dezasseis anos Ducélia foi crismada, Tulentino Tra-
jero acompanhou-a pela última vez à catedral, jurando só tornar a
entrar naquele matadouro de almas no dia de a entregar à mão do
mais virtuoso rapaz da cidade. Em tantos anos nunca pensara em
tal assunto, mas naquela manhã de Agosto, quando a viu em frente
do altar toda vestida de branco, sentiu um aperto no coração e um
medo frio invadir-lhe os ossos.
Por essa altura já Ducélia passara a frequentar a Escolinha ape-
nas da parte da tarde. Apta para todas as tarefas do lar, havia agora
mais trabalho em casa para fazer. Aí tudo estava por sua conta e
tudo sempre dentro da pontualidade, do aprumo, do asseio. Nos
tempos mortos, que sempre os havia, bordava toalhas e panos para
um baú que se enchia de esperanças e sonhos, pois até a mais

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simples das criaturas os há-de ter. Reservada, discreta, parecia não
existir: uma alma satisfeita, sem ambições ou tormentos – pensaria
quem visse. Para descanso do pai, nunca demonstrara interesse em
convívios além dos mantidos na Escolinha das Sagradas Esposas.
Nunca uma amiga, uma companhia, um rapaz rondando a porta;
nunca o pedido para um baile, para uma festa, excepção apenas
para a semana da padroeira, em que ajudava as freiras na barraqui-
nha da quermesse. Para além do cumprimento circunstancial na
rua a vizinhos e clientes conhecidos, com mais ninguém trocava
conversa. Ao contrário da maioria das raparigas da sua idade, cujos
corpos calorentos se escapavam pelas folgas dos panos, nunca Du-
célia usou traje ou penteado passível de entortar os olhos ao pai.
As bainhas dos vestidos beijavam-lhe os tornozelos, as mangas, o
início das mãos, a gola, a base do pescoço e, sobre os ombros, a fina
discrição de um xaile. Mudava o tecido conforme a estação, mas o
corte mantinha-se fiel como as escamas de um peixe vulgar, sem
cores ou padrões vistosos. O cabelo, solto pelas costas abaixo, ja-
mais se apanhava, ardesse como ardesse o Estio, que de nucas sua-
das – ouvira ao pai – também é feita a fantasia dos homens.
Cumpridos dezassete anos, a pouco mais se resumia a vida de
Ducélia Trajero, a menina dos olhos do mais concorrido açougueiro
de Porto Negro, o homem que a criara sozinho depois da morte da
esposa – mulher sem passado nem futuro, que conhecera no convés
de um barco com vista para o horizonte do mar e com quem par-
tilhara a vida por cinco suaves anos –; o homem que a procurava
proteger até da própria sombra; o homem que não queria para ela
senão a felicidade toda; o homem para quem não deixara ainda de
ser uma menina que, um dia, haveria de levar ao altar, de olhos tre-
mentes, para entregar a sua mão ao mais virtuoso rapaz da cidade.

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