LaCapra. Retórica e História PDF
LaCapra. Retórica e História PDF
LaCapra. Retórica e História PDF
Dominick LaCapra
Cornell University
Correspondência:
Bryce & Edith M. Bowmar Professor in Humanistic Studies
Office: 340 McGraw Hall - Cornell University, Ithaca, NY 14853-4601
E-Mail: [email protected]
O estudo da retórica está mais uma vez na agenda dos estudos humanistas.
Acadêmicos de várias disciplinas têm se sensibilizado com as perdas envolvidas nesse
eclipse que se estende por mais de três séculos, e um crescente interesse tem marcado
o passado recente. Os historiadores têm renovado o inquérito acerca do papel da retó-
rica em seus objetos de estudo 3. Entretanto, suas pesquisas têm freqüentemente tendi-
do a faltar com o componente reflexivo e auto-crítico que, de certa forma, mostra-se
presente em alguns setores da crítica literária e da filosofia. Claramente preocupados
com o narcisismo intrincado e extremo da auto-reflexão, historiadores têm dedicado
pouca atenção à sua própria retórica e ao papel do retórico (incluindo neste papel a
retórica da então chamada ciência “dura”) na constituição de sua disciplina.
1
Nota do Editor: em obediência ao acordo de fidedignidade estabelecido com a Cornell University,
mantivemos o texto sem a apresentação de resumo/abstract, conforme o original. Editor e tradutores
agradecem pela liberação do referido artigo a Tonya Cook e a Cornell University Press. Tradução e
impressão conforme Rhetoric and History, from History and Criticism. Copyright (c) 1985 by Cornell Uni-
versity. Todos os direitos reservados.
2
Tradução realizada por Eduardo Ferraz Felippe, Doutorando em História pelo programa de História
Social da Universidade de São Paulo, e Thiago Ponce de Moraes, Doutorando em Estudos de Literatu-
ra pela Universidade Federal Fluminense, poeta e tradutor.
3
Ver, por exemplo, Bernard Bailyn, The Ideological Origins of the American Revolution (Cambridge, Mass,
1967).
tada ou, até mesmo, hermeticamente técnica. Essa segunda tendência pode, apesar de
tudo, nos guiar de volta à primeira, quando os tropos estão de acordo com uma fun-
ção original ou genérica na linguagem e visam despertar para outros usos (como ar-
gumentos, desafios, e ideologia)7 (III) Um foco em problemas de persuasão e de audi-
ência que podem converter a definição aristotélica de retórica em um programa para a
estética da recepção.8
O maior desafio compartilhado por essas tendências é a idéia de que a retórica
é uma dimensão de toda a linguagem usada mais como um conjunto distinto de usos
ou um reino do discurso. A questão que surge, então, é a de como a retórica pode e
deve interagir com outras dimensões do discurso nas várias disciplinas. Historiadores
têm mostrado relativamente pouco interesse nesse problema; em boa parte porque eles
continuam confinados em um modelo “documental” ou “objetivista” de conhecimen-
to que é tipicamente cego acerca de sua própria retórica. De fato, esse modelo tem
sido eficaz em apaziguar ou neutralizar preocupações que motivam o trabalho dos
novos retóricos.
O que é um modelo documental de conhecimento, e como tem prevalecido no
auto-entendimento dos historiadores ou, de forma mais problemática, em sua prática
atual de escrita da história? No endereçamento dessas questões, em um curto espaço,
posso somente oferecer respostas que ameaçam tornarem-se caricaturas generalizadas
circunstancialmente, pois exigirão qualificação e refinamento em um tratamento mais
longo.
Em um modelo documental, a base da pesquisa é o “duro” fato derivado da
inspeção crítica das fontes, e o propósito da historiografia é tanto fornecer descrição
narrativa, quanto “descrição densa” dos fatos documentados ou submeter o registro
histórico a procedimentos analíticos de hipóteses-formação, testes e explanação. A
imaginação histórica está limitada por um plausível preenchimento de lacunas no re-
gistro e por “lançar nova luz” em fenômenos que requerem a descoberta de informa-
ções desconhecidas até o momento. Isso não significa ver o fenômeno de maneira di-
ferente ou ter de transformar o nosso entendimento através de reinterpretações. Desse
modo, todas as fontes tendem a ser tratadas em termos estritamente documentais; ou
seja, em termos da proposição factual ou referencial que delas pode ser derivada a in-
tenção de providenciar informação sobre tempos e lugares específicos. Há, além disso,
uma hierarquia explícita ou implícita entre fontes, pela qual uma posição preferencial
está de acordo com a aparentemente direta informação documental como relatos bu-
rocráticos, testamentos, registros, diários, testemunhas oculares e assim por diante. Se
outros textos são tratados como um todo, isso quer dizer, não apenas como documen-
tos, eles são reduzidos a elementos que são tanto redundantes quanto meramente su-
plementares (e, também, não verificados contra dados “duros”, puramente sugestivos)
7
Ver Hayden White, Metahistória (Baltimore, 1973) e Trópicos do discurso (Baltimore, 1978).
8
Aqui eu simplesmente gostaria de mencionar as diferentes abordagens para esta questão feitas por
Wayne Booth, Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser e Stanley Fish.
Em alemão, a palavra se refere à crítica interna das fontes, principalmente no que tange aos seus as-
pectos de autoria, estilística e data de escrita (N. do Tradutor).
Em um artigo recente, H. Stuart Hughes foi tão longe, a ponto de ver uma “re-
gressão” na historiografia contemporânea a um “primitivo positivismo”, e fez uma
observação provocativa: “Historiadores, neste país, parecem ter esquecido – se eles
alguma vez propriamente aprenderam – que a simples verdade que se pode chamar de
progresso não chega em seus esforços pela simples descoberta de novos materiais, mas
sim, pelo menos, pela completa nova leitura dos materiais já manuseados.”9 Após notar
o recente dilúvio de estudos metodológicos na profissão historiográfica, Laurence
Veysey – um historiador cuja direção de sua pesquisa é significativamente diferente da
tomada por Hughes – comenta, no entanto, com um suave toque de ironia e uma
grande dose de hipérbole: “Com toda essa grande sofisticação sobre o argumento his-
tórico, permanece verdade que tem mais prestígio o historiador que descobre (sem
problematizar como conseguiu) algum incontestável, mas previsivelmente desconhe-
cido, fato de inegável importância.”10 Enquanto alega-se que é geralmente mais presti-
giado o historiador que aprimora padrões de descrição na base da pesquisa das massas
de arquivos, pode-se, contudo, sugerir que Mr. Gradgring tem sido o alter ego do mo-
derno historiador. É verdade que vigora uma idéia que o choque de recognição, embo-
ra confuso devido a sentimentos misturados que são invocados pelas caricaturas de
Dickens (ou, mais sutilmente, pelo retrato do Mr. Casaubon em Middlemarch, de Ge-
orge Eliot), deve ser parte do destino da profissão do historiador. De fato, na medida
em que componentes de um modelo documental constituem uma necessária condição
da profissão historiográfica, o historiador enfrentará recorrentes tentações de tornar
um fetiche a pesquisa arquivística, atentando para descobrir algum fato, figura ou fe-
nômeno “injustamente negligenciado”, e sonhar uma “tese” à qual o seu próprio no-
me esteja ligado (ou um panfleto dedicado a Heath ). Entretanto, um modelo mais
interativo de discurso, que leve em conta o mútuo intercâmbio ― às vezes, o mútuo
desafio ― entre as dimensões “documentais” e “retóricas” da linguagem, pode pro-
mover uma concepção expandida de conhecimento histórico ― que propicie uma no-
va reviravolta para a idéia de que a história é tanto uma “ciência” quanto uma “arte”.
Como confrontar os limites do modelo documental sem simplesmente conver-
ter toda história em uma metahistória, ou negar o papel referencial dos usos da lin-
guagem no passado e no relato dos historiadores? Esta é uma complicada questão que
os historiadores são forçados a encarar. O que parece óbvio, no entanto, é que o “obje-
tivismo” e o “relativismo” (ou “subjetivismo”) são falsas opções que fazem parte da
complexidade que deve ser situada e vencida. O problema, neste caso, é como relatar,
9
“Historiografia contemporânea: progresso, paradigmas, e a regressão em direção ao positivismo” em
Progresso e seu descontentamento ed. Gabriel A. Almond, Marvin Chodrow and Roy Harvey Harris
(Berkeley, Los Angeles, and London, 1982) p. 245.
10
“The United States”, em International Handbook of Historical Studies: Contemporary research and Theory,
ed. Georg Iggers and Harold T. Parker (Westport, Conn, 1979), p. 168.
Heath é uma revista inglesa cujos números seguem uma tipificação de ensaios ou dossiês dedicados a
determinados temas importantes da História Mundial, como a Primeira Grande Guerra, a Segunda
Grande Guerra, dentre outros (N. do tradutor, cf. considerações do autor para esta tradução).
na teoria e na prática discursiva, o uso dos textos pelos historiadores como documen-
tos na reconstrução conclusiva da realidade (ou do “contexto mais amplo”) e na leitu-
ra crítica de seus textos (incluindo itens geralmente referidos aos documentos), de mo-
do que possa afetar tanto a concepção da antiga “realidade” quanto da atividade no
presente. Há sinais de que os historiadores estão tomando ciência desse problema, mas
a articulação dele, em uma forma consciente, é ainda alusiva, apesar das importantes
iniciativas recentes.11
Para dar uma idéia da prevalência do modelo documental, gostaria de discutir
brevemente alguns livros: History, de John Higham, Felix Gilbert e Leonard Krieger
(1965)12; Historical Studies Today, editado por Felix Gilbert e Stephen Graubard
(1972)13; e The Past before us, editado por Michael Kammen (1980) 14.
Escritos por notáveis historiadores encarregados, mais ou menos explicitamen-
te, de representar a “consciência histórica” das disciplinas em geral e/ou das subdisci-
plinas em particular. Esses livros possuem um interesse especial, porque medem a úl-
tima geração e incluem a avaliação do “estado-da-arte”. Dadas as iniciativas mais idi-
ossincráticas e as inevitáveis diferenças de qualidade que, todavia, aparecem em suas
contribuições, seria excessivo reinvindicar um status paradigmático a esses textos. E,
em vista dos limites deste ensaio, eu seria altamente seletivo discutindo esses temas;
dessa forma, eles não fornecem uma análise satisfatória ― muito menos uma leitura
“textual” ― deles. Contudo, compreendo que o meu uso desses textos, apesar da
ameaça de se tornar igualmente “documental”, pode ainda ter algum valor indicativo
em relação ao estado desta disciplina. Irei também me referir a um livro, o qual já ci-
tei, e que tem recebido, no geral, menor atenção que esses três: The international Hand-
bok of Historical Studies, Contemporary research and Theory, editado por Georg G. Iggers e
Harold T. Parker (1979). Também uma tentativa de avaliar o campo apelando fre-
qüentemente aos intelectuais mais jovens como colaboradores. O que acho especial-
mente notável, é que os colaboradores de todos esses volumes tendem a aceitar como
uma suposição inquestionável os constituintes básicos do que aqui vem sendo deline-
ado como um modelo documental de entendimento histórico, e, às vezes, eles enten-
dem isso em direções mais decididamente extremas do que as que vimos tratando até
aqui. Mais freqüentemente, esse modelo é qualificado ou ironizado ( de algum modo)
unicamente em seu jeito mais costumeiro. O próprio fato de que esse modelo funciona
amplamente como uma suposição tácita atesta suas profundas raízes naturais e sua
força. No momento, isso pode ser um pré-requisito essencial do mútuo reconhecimen-
to entre historiadores. Além do mais, se há alguma evolução nesses livros, isso parece
11
Além disso, para além da previsível citação dos trabalhos de Hayden White, veja os de Michel de
Certeau, especialmente L’ecriture de l’histoire (Paris, 1975) e a L’invention du quotidien (Paris, 1980).
12
Englewood Cliffs, 1965.
13
New York, 1972.
14
Ithaca, N. Y., 1980.
15
History, p.89.
16
Ibid., pp 68 – 69. Contrastando os comentários de Hayden White: “Desde a segunda metade do sécu-
lo dezenove, historiadores têm se tornado cada vez mais o refúgio dos homens sãos que se sobressai por
encontrar o simples no complexo e o familiar no estranho... O que é usualmente chamado de ‘treina-
mento’ dos historiadores consiste, para a maior parte dos estudos em poucas línguas, em pesquisas
diárias de arquivos, e a performance de um pequeno conjunto de exercícios, que os familiariza com
trabalhos de referência padronizados, e jornais em seu campo. Além disso, uma experiência geral dos
assuntos humanos, escrito em campos periféricos, auto-disciplina, e Sitzfleisch são mais que necessários”
“The Burden of History” este artigo foi publicado pela primeira vez em 1966. Ele encontra-se traduzido
como “O fardo da História”, em Trópicos do discurso São Paulo: edusp, 2001.
17
History, p.313.
18
Ibid, p. 387.
19
Veja, por exemplo, Roger Chartier: “Intellectual History or Sociocultural History? The Franche Tra-
jectories” and Dominick LaCapra “Rethinking Intellectual History and Reading Texts”, in: Modern
European Intellectual History: Reappraisals and New perspectives (Ithaca, N. Y., 1982) ed. Dominick LaCap-
ra and Steven L. Kaplan.
20
History, p. 136.
21
Observe este comentário vindo de um de nossos mais perspicazes historiadores – um comentário que
vem após um inquérito dentro do estilo dos “mestres” do passado: “Essa pressão em direção à objetivi-
dade é realista, pois os objetos dos inquéritos dos historiadores são precisamente objetos, que fora daqui
estão em um real e singular passado historicamente controvertido em um comprometimento sem fuga
de sua ontológica integridade. As árvores nas selvas do passado sentem unicamente um caminho, não
importa o quanto fragmentário ou contraditório os relatos dessa queda, não importa se não há historia-
dores, nem historiador ou muitos contenciosos historiadores neste futuro para relatar e debater.” GAY,
Peter. Estilo na História (New York, 1974) p. 210. Testemunhando também um recente comentário de
Gordon Wood pelo renascimento do positivismo: “Isso ocorre precisamente porque os círculos, que
estão em constante expansão em nossa cultura, têm descartado a sua tradicional epistemologia; (do
positivismo do séc. XIX) o que faz com que os historiadores se sintam mais humildes acerca do que
fazem. Alguns dos mais eminentes historiadores, como G. R. Elton e Oscar Handlin, sabem que ulti-
mamente pode não haver alternativa para seu ofício, além dessa velha roupagem epistemológica. Histo-
riadores, alerta Elton, ‘não requerem uma nova pregação humilde na emergência de Heisenberg, mas
algum retorno para a garantia do séc. XIX que o trabalho que eles estão fazendo negocia com a realida-
de.’ ‘A vocação do historiador’, escreve Handlin, ‘depende minimamente de seu artigo de fé’.
Apesar disso, o recente lamento de H. Stuart Hughes insinua que alguma coisa
deve ter acontecido, desde o início dos 60, para romper o consenso liberal e pragmáti-
co que Higham acreditava ter emergido na profissão. Em 1973, a reedição de Varieda-
des da História, de Fritz Stern, no despertar dos eventos de 1968, sentiu que a história
estava em crise e que devia estar perdendo seu público:
22
History, pp. 137-138.
23
Varieties of History (1956, New York) p. 9
em resposta aos eventos correntes. Uma evidente percepção da crise conforma o pre-
fácio de Stephen Graubard ao Historical Studies Today, livro que provém de dois assun-
tos da Daedalus. Embora, acerca da sensação de crise, Graubard julgue que “é difícil
de dizer” se ela é justificada e note, além disso, que “não mais que duas dúzias de his-
toriadores que tinham escrito para esse volume pareçam partilhar dessa visão [de que
a disciplina está em crise], dos quais muitos são críticos da erudição em seus respecti-
vos campos.”24, os colaboradores tendem a julgar o saber estritamente através do crité-
rio acadêmico e “para isso, poucos acham necessário fazer escolhas pelo saber da dé-
cada de 60”25. De fato, um confuso ar de triunfo parece conformar a parcela relativa a
Eric Hobsbawn na história social, lidando com o espetáculo curioso da discussão
marxista como uma subdisciplina para a exclusão da sua relação com a ampla socie-
dade, tendo em vista o estudo ou a estrutura da profissão histórica por si mesma.
Hobsbawn recorre a uma tática marxista geralmente associada a um caráter conserva-
dor, quando ele, modestamente, restringe a si mesmo uma análise puramente objetiva
de um conjunto de situações, às quais ele implicitamente aprova. “Esse ensaio”, ele
nos diz, “é uma tentativa de observar e analisar, não para declarar um credo pessoal
ou para expressar (exceto onde isso está claramente expresso) as preferências do autor
e o valor dos julgamentos. Eu digo isso logo no início, a fim de que possa distinguir
esse ensaio de outros que são defesas contra ou declarações a favor do tipo de história
praticada por seus autores ― já que a história social não necessita, no momento, nem
de um, nem de outro”26. (Contudo, Hobsbawn poderia estar brincando com o leitor,
pois esse ensaio abarca, na verdade, tanto explícitos julgamentos de valor quanto co-
mentários indiretos acerca de outras abordagens e estudos.)
O próprio Graubard está visivelmente agitado pela junção paradoxal entre a
confiança profissional elevada e o decréscimo do interesse público na pesquisa dos
historiadores: “Muito do desenvolvimento dos anos recentes tem ajudado aqueles que
têm encarado a história como Ciência ― não uma ciência no sentido, pode-se dizer,
de que esses dados possuam uma utilidade predicativa, mas uma ciência no sentido de
François Furet ‘de substituir um “evento” elusivo da história positivista pela regular
repetição de dados selecionados ou construídos pela sua compatibilidade’. A História,
construída através dessas linhas, nunca pode servir aos propósitos de um público que
ainda anseia por relatos narrativos”27.
A história “científica” está amplamente endereçada a outros historiadores, en-
quanto a narrativa não está morta. Nesse sentido, “com a profissão histórica por si
mesma ― nas universidades de muitos países ― aqueles que estão pensando de forma
mais criativa são aqueles que experimentam com novos métodos e novos tipos de in-
24
Historical Studies Today, pp. vii - viii
25
Ibid.
26
Ibid. p.I
27
Ibid. p.IX.
28
Ibid.
29
Ibid. p.X
30
Ibid. p.xx
Em alemão, no original. (Nota do tradutor)
Em alemão, no original. (N. T.)
evento particular acontece ou quando se consegue algum avanço”31. Nem a mais bási-
ca reconceitualização da história intelectual, ou sua relação com outras abordagens da
história intelectual, parecem ser praticáveis à luz da análise de Gilbert.
Com a edição de Michael Kammen, em The Past Before Us, parecemos retornar
à atmosfera do volume de Higham, Gilbert e Krieger. Kammen, em sua introdução,
mostra qualificados, porém inconfundíveis, sinais de otimismo sobre o estado da pro-
fissão ― otimismo que é, ele mesmo, talvez o sinal da concordância excessivamente
generosa de Kammen; capaz de ver, em todos os outros historiadores, a abertura para
diversas perspectivas divergentes, que é um admirável traço de sua própria abordagem
dos problemas. Sua análise magistralmente compreensiva da pesquisa recente é moti-
vada, sem dúvida, por um julgamento sobre a condição da disciplina. Não somente a
pesquisa material, mas o inquérito metodológico tem prosseguido rapidamente. “Um
resultado é uma disciplina que é suscetível, cada vez mais, à sociedade plural e iguali-
tária na qual funciona. Um segundo resultado, acreditamos, será uma disciplina mais
cosmopolita em um mundo encolhido ― um mundo que está de maneira rápida des-
cobrindo o quanto são interdependentes seu passado, seu presente e seu futuro”32. As-
sim, a alta receptividade e a promessa do cosmopolitismo têm acompanhado os renas-
centes vínculos com o amplo público, e a demanda dos críticos que lamentam a parte
da auto-suficiência teórica na historiografia tem sido respondida. “Ninguém deve
queixar-se hoje, como Hayden White fez em 1966, de uma resistência que vai desde
uma confissão íntegra até quase qualquer tipo de auto-análise crítica.”33.
Contudo, à medida que Kammen enumera as principais transformações da dis-
ciplina, começa-se a duvidar se as tendências datadas têm de fato se modificado tanto,
e se certos descontentamentos básicos têm sido adequadamente resolvidos. Ele nota
“(1) a aparente mudança da história descritiva para a analítica; (2) a proliferação de
inovações metodológicas; e (3) a relação cambiante entre a “nova história social” e as
outras subdisciplinas”34. É curioso que tenham sido precisamente com essas as mu-
danças que se preocuparam Graubard e Gilbert a menos de uma década atrás. Quan-
do nos concentramos nos ensaios presentes no volume, somos forçados a decidir se
eles confirmam a avaliação relativamente otimista de Kammen, pelo menos em ter-
mos de sua própria abordagem do assunto. Isso se dá porque os próprios assuntos ten-
dem a ser avaliações bibliográficas imensamente eruditas no que diz respeito às pes-
quisas em várias subdisciplinas, intercaladas com avaliações de trabalhos específicos e
com gráficos estatísticos, cujos verdadeiros princípios de seleção e organização não
foram interrogados. Há, em geral, um pequeno inquérito autocrítico dentro das pre-
missas da disciplina, e geralmente em seus princípios mais antigos ― os postulados da
unidade, continuidade e domínio do repertório documental ― são afirmados em ter-
31
Ibid. p. 155
32
The Past Before Us, p. 46
33
Ibid. p.33
34
Ibid. p 28 - 29
Há uma ampla diversidade na escrita histórica. Para ser claro, entre to-
dos os historiadores profissionais há certas comunidades. Para todos
eles, a história é uma empreitada de caça à realidade. Eles procuram sa-
ber quais os costumes do passado para entender o seu porquê. Idealmen-
te, eles procedem pelos cânones da pesquisa científica: através da crítica
da investigação racional, publicação de resultados e revisão por seus pa-
res. Na verdade, com respeito ao procedimento, o trabalho deles tem se
tornado cientificamente mais rigoroso com a própria consciência testan-
do suposições, conceitos e hipóteses...
Apesar das advertências de historiadores como J. H. Hexter, G. R. El-
ton, Paul Veyne e Hayden White contra a adoção de um modelo cientí-
fico, ou mesmo social científico, para o inquérito histórico; além da insis-
tência de White de que a história é uma iniciativa intelectual ligada à re-
tórica e à poesia, historiadores têm se tornado mais comprometidos do
que nunca com o ideal científico da história como uma disciplina meto-
dológica e conceitualmente rigorosa.35
35
International Handbook of Historical Studies, pp. 6 e 8.
Este é um modelo de explicação associado especialmente ao logicista Carl Gustav Hempel (1905 –
1997) que considerou a existência de um modelo adequado a todos os tipos de explicação. Fundamen-
talmente, um enunciado é explicado se ele é derivado de um certo número de leis fixas junto com certo
número de enunciados factuais, como quando nós explicamos “Fido late” ao dizer “Todos os cachorros
latem e Fido é um cachorro”. “Covering Laws” pode ser compreendido como uma forma de positivis-
mo (N. do tradutor cf. considerações do autor para esta tradução).
36
Ibid. p. 25.
pectiva tendeu a obscurecer tanto o jeito como as pessoas no passado viveram, con-
taram e escreveram “histórias”, quanto a maneira pela qual o relato documental é
ele mesmo sempre textualmente processado antes que qualquer historiador possa
chegar a ele. Historiadores, nesse caso, são confrontados com um fenômeno que
apresenta resistência a sua forma de imaginação e que apresenta problemas com-
plexos em sua tentativa de interpretar e reconstruir o passado.37
Pelas convenções de gênero, e o ímpeto do meu próprio epílogo, estou agora
inclinado a oferecer um programa pragmático ou “positivo”, acompanhado de impo-
sições apropriadas e animadoras. Eu corresponderia a essas expectativas unicamente
de maneira provisória e temporária.
Como podem os componentes necessários de um modelo documental, sem o
qual a historiografia seria irreconhecível, estarem associados a exemplos retóricos em
um amplo e interativo entendimento do discurso histórico? Inicialmente, eu gostaria
de enfatizar que se o retórico não pode estar completamente subordinado ao modelo
científico restrito, tampouco deve ser construído em termos puramente instrumentais,
muito menos propagandísticos. Retórica, como um mero significado para finalidades
pré-concebidas ― em resumo, como uma linguagem tecnológica ―, é ela mesma a
variante moderna reduzida da idéia mais tradicional de uma coleção de estratégias e
táticas para assegurar a persuasão de outros em uma caçada de objetivos restritos. Es-
sa concepção retira a retórica de uma ampla noção de crítica sociocultural e transfor-
mação política para a aceitação de sua definição pungente, promovida por uma idéia
de verdade transcendente e absoluta. Com essa advertência em mente, eu gostaria de
oferecer as seguintes observações sobre a retórica em sua conexão com a historiogra-
fia.
(I) A Retórica envolve um entendimento dialógico do discurso e uma verdade,
ela mesma em contraste com a idéia monologal de uma voz autoral unificada, que
provém de um relato idealmente exaustivo e definitivo de um controlador completo
do objeto de conhecimento. A historiografia é dialógica a medida em que os historia-
dores se inserem, por meio dela, em uma permuta “coloquial” com o passado e com
outros inquéritos que busquem um entendimento acerca disso. O problema é a nature-
za da conversação. Historiadores geralmente reconhecem que eles começam não com
um relato histórico “virgem”, mas por registros processados pelos apontamentos de
37
Para uma abordagem mais intensiva da obra de Hayden White, cuja tentativa expressa por completo
a força de sua crítica à tradição historiográfica, veja o meu ensaio “Poetics of the historiography:
Hayden White’s Tropics of Discourse” in Rethinking intellectual history: Texts, contexts, Language (Ithaca,
N.Y., 1983). Veja também as contribuições presentes em History and Theory XIX, Beiheft 19 (1980).
Em seu “Method and Ideology in Intellectual History: The case of Henry Adams” (incluído em Modern
Intellectual History: Reappraisals and new perspectives), White seleciona a ideologia, ao invés dos tropos,
como um nível determinante do discurso e complexifica seu modelo focando no papel dessa mudança.
Entretanto, sua ênfase permanece nos códigos da análise de usos e textos. O artigo de White “The ques-
tion of narrative in Contemporary Theory” (History and Theory 23(1984): I – 33) fornece um exame
crítico das teorias da narrativa no pensamento contemporâneo. Essa quebra de paradigma ensaístico
indica como o próprio trabalho recente de White caminha para além do estruturalismo que apareceu
em seus primeiros escritos.
para testar visões correntes quanto, talvez, para requerer aos historiadores que eles
ouçam atentamente vozes desconcertantes do passado e não simplesmente projetos
narcisistas ou demandas de interesse próprio.
(III) A retórica destaca o problema de como se lêem textos. Ela levanta tam-
bém a questão de se historiadores são capacitados para ler. Tenho notado a tendência
de historiadores profissionais verem textos como documentos no sentido restrito da
palavra e, da mesma forma, ignorarem as dimensões textuais dos documentos em si;
ou seja, a maneira pela qual documentos “processam” ou reformulam o conteúdo em
modos intimamente associados a processos sócio-culturais e políticos mais amplos.
Historiadores freqüentemente lêem textos como simples fontes de informação no que
diz respeito à análise de conteúdo. Nós tendemos a identificar um texto diretamente
com o que ele parece representar ou dizer ― com seus temas, propostas ou caracteri-
zações. Dessa maneira, muitas vezes reduzimos todos os textos de estilos homogêneos
a meros sintomas de algum fenômeno ou processo que os abranja. Nós podemos, efe-
tivamente, tratar toda a literatura (quando literatura e filosofia não são eliminadas do
registro histórico relevante) como literatura panfletária ordinária e discuti-la somente
como um “sinal dos tempos” ou, então, em relação a suas funções imediatas e de seu
impacto em outros eventos mais “tangíveis”. Historiadores raramente vêem textos
significativos como eventos importantes em si que apresentam problemas complexos
de interpretação e têm relações intrincadas com outros eventos e vários outros contex-
tos pertinentes. Nós nem mesmo estamos inclinados a levantar a questão mais “retó-
rica” de como textos fazem o que fazem ― como, por exemplo, eles podem situar ou
forjar o que eles “representam” ou inscrevem (discursos sociais, paradigmas, conven-
ções genéricas, estereótipos e tudo o mais). Os múltiplos papéis dos tropos, da ironia,
da paródia e de outros recursos “retóricos” de criação e organização geram resistên-
cias à construção de textos em relação às suas funções “representativas” ou estrita-
mente documentárias, além de revelarem como os textos podem ter relações críticas
ou mesmo potencialmente transformativas nos fenômenos neles “representados”. De
forma mais sutil, eles também apontam para contestações internas ou modos como
eles se diferem em seu funcionamento e interação com contextos, já que textos podem
de diversas maneiras combinar relações sintomáticas, críticas e mais “indecidíveis” a
práticas de significação dadas e a processos sócio-culturais.
(IV) A retórica supera não só as funções documentárias e referenciais da lin-
guagem, como também todas as funções utilitárias, rotineiras e instrumentais. Ela en-
volve exposição verbal ou performance de um jeito mais amplo que aquele abrangido
na noção padrão do “performático”. Essa qualidade magnificente da linguagem pode
ser vista como o análogo discursivo do processo de troca de presentes, conforme a
análise de antropólogos como Marcel Mauss. Assim como o presente, o uso retórico
tem a característica de ser profundamente gratificante e ameaçador ou gerador de an-
siedade, particularmente em referência a critérios científicos sobre o significado (tais
como definições de termos unívocas). Ele também propicia um palco mais amplo para
que os tropos desempenhem seus papéis, como viradas de linguagem que manifestam
38
Allegories of Reading, p.10. Deve-se notar que de Man se refere, aqui, a possibilidades, e que o perigo
em sua própria abordagem é a conversão de possibilidade em necessidade por uma redução da retórica
ao nível de uma tecnologia intrincada dos tropos, bem como por uma tendência quase obsessiva, alta-
mente previsível, de transformar a aporia em um programa oculto ou em um telos da linguagem. O risco
da aberração referencial, então, perde paradoxalmente seu status aleatório, e a aporia ameaça se tornar
o ne plus ultra do discurso. Entretanto, levantar problemas nesses enganosamente simples termos é, de
modo evidente, ignorar o desafio da prática textual de Man, bem como a força de sua redenção em De
docta ignorantia.
39
“Acadêmicos contemporâneos revelam certo desconforto com a epidêitica como sendo uma catego-
ria. Muitos a registram respeitosamente como uma das formas ancestrais de discurso público e então
passam rapidamente para a oratória deliberativa e forense, deixando a impressão de que a epidêitica é
um pós-pensamento cujo propósito é cobrir aquelas orações que são incapazes de se adequar harmonio-
samente a uma das duas classificações tradicionais. Se de modo algum tratadas, as orações epidêiticas
são caracterizadas como exemplos cerimoniais ou ritualistas, ‘exercícios ludibriosos de virtuosos oraci-
onais’”. Lawrence W. Rosenfield, “The Practical Celebration of Epideictic”, em Rhetoric in Transition,
Ed. Eugene E. White (University Park and London, 1980), p. 131.
Sartor Resartus) clamariam por revisão nesse aspecto, da mesma forma como clamari-
am os estilos de outros mestres do passado que são facilmente rotulados (utópicos,
científicos, românticos etc.) de uma maneira que não é de todo errada, mas que pode
ser altamente parcial40.
(VI) A retórica levanta questões de ambivalência e de tensão de funções no uso
da linguagem e sua relação à interação dos estilos discursivos. No que diz respeito à
historiografia, um problema óbvio é a relação entre uma interpretação favorável do
passado, que requer um grau de identificação, e a distância crítica que se toma dele em
benefício de um julgamento crítico e com objetividade científica. Um problema parale-
lo é a função do retórico em tornar toda a história uma memória viva que pode (como
desejava Michelet) ressuscitar os mortos e revelar sua importância para o presente e o
futuro. Esses problemas indicam que a própria historiografia é um estilo de uso da
linguagem tenso e confuso, envolvendo tanto o conhecimento documentário ou “cien-
tífico” quanto a retórica em uma noção de cognição mais ampla e inevitavelmente
problemática. A possibilidade de a retórica talvez sobrepujar procedimentos científicos
familiares, porém frágeis, cria uma angústia compreensível, pois se o passado recente
nos ensinou algo, ensinou que os procedimentos científicos convencionais para avalia-
ção de evidências e para teste de hipóteses estão todos absolutamente comprometidos.
A força retórica que trata com arrogância a demanda por precisão empírica e por pro-
va rigorosa pode, às vezes, ser mais censurável que a prosa complacente de sempre.
Contudo, para ser científica, a prática discursiva tem de reconhecer seus próprios limi-
tes, bem como o fato de que esses limites devem, por vezes, ser superados ou mesmo
radicalmente transformados. A identificação dos limites não é uma questão simples de
estabelecer fronteiras inalcançáveis que excluam (ou mesmo leguem para “outrem”)
por seus abusos potenciais, o bode expiatório. Qualquer força poderosa pode sofrer
abuso, e a possibilidade de abuso seria o bastante para desqualificar qualquer corrente
inquietante ― e estimulante ― que exista.
(VII) A falta de atenção ao problema da retórica, ou à simples dicotomia entre
ciência e retórica, incorre em uma tendência a percebê-la “meramente” como o retóri-
co, e a entender a verdade científica particularmente em termos de uma cega retórica
da anti-retórica. Essa tendência, que define a ciência como o adversário ou a antítese
da retórica, tem sido muitas vezes associada à defesa de um “estilo simples”, que tenta
ou finge ser completamente transparente ao seu objeto. Não é incomum observar que
40
Um historiador muito consciente desses problemas e cujo estilo punha em prática tal consciência foi
Pieter Geyl. Veja, especialmente, seus Debates with Historians (Cleveland and New York, 1958). Veja
também Roland Barthes, Michelet par lui-même (Paris, 1954); Robert Canary e Henry Kozicki, editors,
The Writing of History (Madison, Wis., 1978); Lionel Gossman, “Augustin Thierry and Liberal Histori-
ography”, History and Theory XV, Beiheft 15 (1976) e The Empire Unpossess’d: An Essay on Gibbon’s “De-
cline and Fall” (Cambridge, 1981); Dominick LaCapra, “Reading Marx: The Case of The Eighteenth
Brumaire”, “Bakhtin, Marxism, and the Carnivalesque”, e “Marxism and Intellectual History”, em
Rethinking Intellectual History: Texts, Contexts, Language (Ithaca, N.Y, 1983); e Linda Orr, Jules Michelet:
Nature, History and Language (Ithaca, N.Y., 1976). Seria imperdoável não mencionar as obras de Ken-
neth Burke, que tocam em todos os problemas que evoquei. É desnecessário dizer que a lista de nomes
e de textos nesta nota poderia ser consideravelmente estendida.
41
Em seu epílogo para uma reedição de sua seção do livro, John Higham vê o presente como um “tem-
po de inquietações”. Ele continua a oferecer o consenso de entender um paradigma de pesquisa como
um ideal na historiografia, mas agora ele o pensa como eventos sociopolíticos elusivamente dados,
“intrusões de outras disciplinas acadêmicas” (p. 242), e debate sobre a fé histórica em si. Ele mostra
pouca percepção no sentido de se o “tempo de inquietações” pode também ser lido como um tempo
para reconceitualização básica da disciplina (History: Professional Scholarship in America [Baltimore and
London, 1983]).
* * *
Tradução:
Eduardo Ferraz Felippe, USP.
Thiago Ponce de Moraes, UFF.
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Em ensaio não publicado (“Per miei carmi: Machiavelli’s discourses of Exile) John Najemy sutilmen-
te mostra como a discussão da política como um discurso do poder era, ás vezes, alegremente mesclado
nas cartas entre Maquiavel e Vettori, com uma discussão sobre o amor e a imprudente perda de contro-
le que isso freqüentemente trouxe. Pode-se também consultar o excelente trabalho de Nancy S., Strue-
ver The language of History in the Renaissance: Rhetoric and Historical Consciousness in Florentine Humanism
(Princeton, 1970)