Judeus em Lisboa Marina Pignatelli

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Fazendo Gênero 9

Diásporas, Diversidades, Deslocamentos


23 a 26 de agosto de 2010

JUDEUS E JUDIAS EM LISBOA: AS VAGAS E AS TENDÊNCIAS


Marina Pignatelli 1

A CIL

Portugal, pela sua posição geográfica, privilegiada pelo contacto com o Atlântico e
Mediterrâneo, desde cedo, atraiu gentes e culturas muito variadas. Especialmente, a cidade de
Lisboa, também pela sua situação estratégica, tem vindo a funcionar, desde tempos imemoriais,
como um bom porto de abrigo para inúmeros povos, entre os quais os judeus, de cujas provas
arqueológicas e documentais referem a existência, já desde a Iª Diáspora, no início da Era Cristã.
Metaforicamente pode-se dizer que os judeus de Lisboa são como uma árvore já de raizes
muito profundas e velhas no território – uma árvore com um tronco forte e uma seiva com
qualidades muito específicas – e que dá frutos ainda hoje, senão polémicos, melo menos nunca
indiferentes. Por tudo isto, ela tem sido sujeita aos mutantes “climas históricos”, tem andado ao
sabor dos ventos, de acordo com as vontades dos governantes e elítes responsáveis pelos vários
contextos. Ora é para abater porque incomoda – Ora é para regar, porque dos seus frutos há
necessidade.
Muitas ramagens foram destruidas, muitos frutos foram queimados vivos, mas muitos outros
fizeram história e deixaram semente, um pouco por todo o mundo. E a verdade é que esta árvore,
este tronco, persiste até hoje aqui, em Lisboa.
A primeira referência de judeus em território ibérico surge numa inscrição que se crê ser de
uma lápide funerária, encontrada perto de Toledo e datada do sec. III d.e.c., onde aparece o nome de
uma mulher: “Junia.2
Mal os tribunais do Santo Ofício amainaram, após séculos de perseguições que praticamente
destruíram todo o rasto de vida judaica em Portugal, voltaram para se instalar em Lisboa um núcleo
de judeus, vindos de Marrocos e Gibraltar, ainda nos finais do sec. XVIII. Era um grupo de judeus
sefarditas bastante homogéneo e zeloso na prática da sua fé, que teve de esperar até 1912, para ver
aprovados os estatutos da sua congregação.
- A estes se foram juntando alguns poucos marranos ou cristãos-novos, descendentes dos
judeus sefarditas que haviam chegado à Península com a I diáspora – cripto-judeus que resistiram

1
Doutorada em Ciências Sociais, na especialidade de Antropologia Cultural pelo ISCSP – Instituto Superior de
Ciências Sociais e Políticas - Universidade Técnica de Lisboa, mpignatelliscsp.utl.pt
2
SCHWARTZ, Samuel. Hitória da Moderna Comunidade Israelita de Lisboa. Separata de O Instituto, Lisboa, Vol.
119 e 120, 1959. p. 3

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aos 300 anos de Inquisição e que tiveram de ser re-iniciados na ortodoxia judaica para se integrarem
na CIL.
- Seguiram-se, já no início do sec. XX, os judeus askenazis, fugidos dos Progroms de Leste
e, mais tarde, os judeus da Europa Central, refugiados da II Guerra, que usaram Lisboa como
plataforma de fuga para outros destinos. Dos milhares que por cá passaram, apenas alguns ficaram,
alterando significativamente a constituição desta comunidade.
- Desde os anos 80, com a abertura dos mercados e fronteiras da Europa, que têm chegado à
cidade, judeus das mais variadas proveniências (recentemente muitos vindos do Brasil, por
exemplo). Pela diversidade dos seus percursos e experiências, estes judeus muito têm contribuído
também para o enriquecimento cultural e étnico da actual CIL.
Quando se fala da presença contemporânea dos judeus em Portugal, fala-se normalmente do
seu regresso nos princípios do sec.XIX, coincidindo com o enfraquecimento da Inquisição e a sua
abolição em 1821. Mas seria mais rigoroso falar em regresso do judaísmo, em vez de regresso dos
judeus.
A análise do seu passado e do modo próprio como constroem a sua etnicidade – e que foram
objecto de um estudo anterior – permitiram compreender que os judeus de Lisboa formam, uma
comunidade reduzida e bastante heterogénea, porque é composta por indivíduos de diferentes
origens e nacionalidades, com durações de estadia em Portugal variadas, bem como, pertencendo a
ramos e movimentos judaicos distintos.
Apesar de se manterem ligados às suas origens, os membros desta comunidade encontram-
se, no entanto, bem integrados, partilhando um sentimento de pertença muito intenso, embora essa
identificação étnica ou a construção dessa etnicidade, se materialize em práticas, comportamentos e
formas de estar no judaísmo muito variados. Laicos ou ortodoxos, reformistas ou conservadores,
sefarditas ou askenazis, mais ou menos praticantes (Chomer Shabat ou não), deste ou daquele ponto
do globo, todos sentem intensamente que são judeus. Mas como o são – é uma escolha pessoal.
A CIL, contudo, não deixa de ser uma comunidade de diáspora que se define por uma terra
mítica de origem, uma história de dispersão, uma lealdade para com os principais centros religiosos
judaicos da diáspora – Palestina (Gerizim), Babilónia e Egipto e uma identidade colectiva definida
de modo importante por essa relação. Ao mesmo tempo e na prática, forma-se com isto, um mundo
social - ligado por formas culturais, relações de parentesco, circuitos de negócios, trajectórias de
viagem e pelo apoio continuado a esse território.3

3
James Clifford (1997) W. Safran (1991) (Tololian 1991). Boyarin 1993.

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Sendo orientada primordialmente por uma ligação à terra perdida - e aqui entra a imagem ou
estereótipo do judeu errante – o judeu com o bode, arrastado pela barca do Inferno de Gil Vicente -
é neste âmbito também uma comunidade simbólica, que existe em pensamento com vários
significados. Para além de ter uma existência física efectiva, com um contingente humano e
estruturas próprias, um passado e um património étnico comum, o conteúdo desse significado de
pertença, vai-se reconstruindo e reestruturando permanentemente, consoante as diferentes
intensidades e frequências com que os membros se inter-relacionam, bem como segundo a
afectividade que atribuem a essa pertença.

A Mulher para os Judeus

Teólogos, historiadores e investigadores, em geral, não chegaram ainda a consensos sobre


questões relativas ao género e relações de forças das figuras modelares no Judaísmo e, por
consequência, na tradição judaico-cristã. Depois da “invenção” do monoteísmo no masculino, que
destrona figuras femininas como criadoras, protectoras, mães, subsistem relatos de adoração de
divindades emprestadas ou difundidas da Antiguidade mesopotâmica, como Anat, Astarte (Jz 2:13;
10:6; Samuel 31:10; Reis 11:5; 33-2; e 23:13) entre os hebreus, quebrando a fidelidade a Yahvé ou
Adonai (O Senhor) a quem tinham sido delegados todos os poderes. “Deus criou o homem à sua
imagem, à imagem de Deus os criou macho e fêmea”, diz o Génesis (1:27) ou foi ao contrário: “o
homem criou os Deuses à sua imagem” num antropomorfismo já notado por Xenofanes, no sec.V
a.e.c.? Por outro lado, o debate subsiste sobre se Eva foi criada depois de Adão ou em simultâneo,
como iguais ou com uma relação de subalternidade. No Génesis, há, supostamente uma igualdade
fundamental entre o homem e a mulher: o primeiro humano é, ao mesmo tempo, masculino e
feminino «Ele criou-o homem e mulher», como complementares. "A mulher foi feita da costela do
homem, não dos pés para ser pisada, nem da cabeça para ser superior, mas sim do lado para ser
igual, debaixo do braço, para ser protegida e do lado do coração para ser amada", diz o Talmud.
Para criar a mulher, Deus “retira ao homem uma costela”, que o comentário rabínico lê:
“um lado”. Por outras palavras, para criar a mulher, Deus separou a parte feminina da parte
masculina, provocando um doloroso sentimento de imperfeição. Pela tentação da serpente (Eva), os
homens (Adão) viram-se votados à ambivalência das mulheres para o bem e para o mal e forçados a
desconfiarem delas. Se seguidoras e transmissoras da Lei, levam o homem a Deus. Se são sedutoras
e distanciam dos mandamentos, são inimigas.

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Quanto às matriarcas bíblicas, estas seguiram a preocupação de Eva que inaugura o destino
feminino da maternidade e tanto Sara como Rebeca e Lia lutam e esperam longos anos no combate
à esterilidade. Lia, que amava sem ser amada, mas era mãe por vontade divina, simbolizou a ligação
de Deus com Israel. Por esse facto, marcou a leitura da Bíblia e a mentalidade de todas as
comunidades judaicas, até hoje, “condicionando a atitude dos judeus praticantes, face aos diversos
problemas da sociedade – contracepção, fecundação in vitro, aborto – que as interpelam no mundo
contemporâneo”4.
São igualmente três mulheres que salvam Moisés “Retirado das Águas” do Nilo e garantem
a perpetuação do povo judeu quando, no Egipto, o Faraó lhes decretara sentença de morte:
Joquebede, sua mãe (Ex 2:1-10; 6-20), Miriam, a irmã que morreu com honras de profeta e foi
reconhecida pelo próprio Deus como escolhida para liderar as mulheres de Israel, para saírem do
Egipto, junto com Moises e Arão 5(Num 26-59; Mq 6.4) e Thermuthis, a filha do Faraó que o
salvou e adoptou na corte (Ex 2:1-9).
A preponderância dos homens, reis e profetas na condução da História aparece ainda
temperado com marcas de matriarcalismo em coexistência na apropriação dos campos do poder,
com a construção do patriarcado – mulheres que tecem outros modelos que superam o papel
tradicional de esposa e de mãe.
É o caso de Débora, Juiza, Profetiza e o paradigma da mulher decidida tanto na guerra
como na paz; tal como Miriam, irmã de Moisés, cuja fonte salvava e curava; Houlda, do tempo de
Jeremias, que predisse a infelicidade dos israelitas por se terem desviado de Deus; Esther, a rainha
que quebrou ditâmes e usou da beleza e sedução para salvar o seu povo (entre os marranos de
Belmonte, por exemplo, é chamada “a Santa Rainha Esther”), tal como Judite também fizera; ou
ainda Rute, cujo Livro relata em parábola a representação desta princesa como arquétipo da
convertida; ou Ana que prefere emolar os seus sete filhos e a si própria, a ter de profanar a sua fé;
Susana, esposa casta que resiste à calúnia; Tamar, que se faz passar por prostituta e se deita com o
sogro para manter a linhagem; Raab, a prostituta de Jericó que assegura a salvação de Israel à
entrada de Canaã; Betsabé, mulher de Urias, amada por David, cujo pecado é perdoado por ter

4
STEINSALTZ, A. Hommes et femmes de la Bible, Paris: Albin Michael, 1990. p. 33.
5
Por ocasião da fuga da escravidão do egipto, Miriam fez um cântico junto com Moises, considerado um dos primeiros
poemas da Bíblia.

4
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gerado Salomão. Estas contrapõem outras mulheres saidas do silêncio pelo seu papel de
instrumentos do diabo e comportamento sedutor: Eva, Putifar, Dalila.6

Diferentes naturezas, diferentes papéis

A família nuclear integra no seu seio, em princípio, um conjunto de elementos -


pai/mãe/filho/filha, que repartem entre si diferentes papéis sociais. Aprender os papéis de cada um é
uma das funções da socialização da família e do bom equilíbrio sócio-emocional dos indivíduos. É
no desempenho destes papéis que se estabelecem entre os elementos da família, relações horizontais
e outras verticais que, de igual modo, se irão reflectir no equilíbrio do conjunto e no bom
desempenho das funções que a família tem.
Esta transmissão de modelos foi-se alterando com os tempos e hoje são variadíssimas as
formas como são desempenhadas todas as tarefas do agregado familiar. Estudos antropológicos
comparativos tentaram verificar e vieram a confirmar que a repartição básica de papéis na família
não era exclusiva da cultura ocidental. Em geral, o homem tende a assumir o papel de líder
instrumental e a mulher, o de líder expressivo7. Na tradição bíblica, as mães ensinavam às filhas as
tarefas domésticas, o fabrico do pão e do linho, enquanto os rapazes aprendiam o ofício manual dos
pais. Tanto as artes e o manejo das ferramentas, como as relações de trabalho dos pais eram
aspectos importantes para a educação dos filhos.
Hoje, mudaram os papéis e as características das actividades de cada um. Homens e
mulheres trabalham fora de casa, os casais vivem mais para si, a função da socialização das crianças
fica relegada para as escolas, o divórcio banalizou-se, a par do aumento da importância específica
dos conjuntos e do próprio casamento. As famílias judaicas em Lisboa também não foram
insensíveis a este processo de mudança na estrutura familiar.
Independentemente de toda a evolução histórica ou sócio-cultural, em todos os contextos e
entre os judeus também, considera-se que homem e mulher têm naturezas diferentes, não sendo a
mulher considerada inferior, porque «tu deves amar a tua mulher como o teu próprio corpo»,
escreve o Rabi Loew Betsalel, no sec.XVI, numa época em que ainda se perguntava se as mulheres
teriam alma.
Tradicionalmente entre os judeus, o homem está associado ao mundo da espiritualidade e
tem como funções o culto, o estudo da Torah – a actividade judaica por excelência - mas também
6
GARCIA, M.A. Judaísmo no Feminino, Lisboa: Instituto de Sociologia e Etnologia das Religiões - Universidade
Nova de Lisboa, 2006. p. 75-82.
7
BARATA, Óscar Soares Introdução às Ciências Sociais, 2 Vols., Lisboa: Bertrand Editora, 1986.

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toda a actividade exterior – o trabalho remunerado, a acção pública, etc. E quando o pai não está ou
morreu, é o filho mais velho (o behor) que o substitui. “quando houver um homem à mesa, é ele que
conduz” (as bençãos), explicou-me uma entrevistada da CIL. A mulher está ligada ao mundo
material, à gestão das coisas da casa e à educação dos filhos. “A mulher faz o pão de sábado, passa
à filha as atenções da casa. O pai põe as suas atenções no filho”, disse ainda outra inquirida. E é
difícil ter muitos filhos e, em simultâneo, ter uma carreira profissional bem sucedida, pois as
competências irão falhar seguramente para um dos lados.
Efectivamente, o mundo material não é, de todo, considerado como desprezível pela tradição
judaica: “e Deus viu que era bom” (Gen:1). O ser humano tem precisamente como tarefa, melhorar
a criação, através da sua acção. Não sendo essencial o culto público no judaísmo, o papel da mulher
é, nesta perspectiva, fundamental, pois é o de concretizar o judaísmo na vida familiar. Para melhor
desempenharem essa missão, segundo a argumentação rabínica, as mulheres estão dispensadas de
cumprir com os mitzvot (mandamentos), de estudar a Torah8, de ir ao templo, de atender aos
serviços religiosos fora de casa, não contando para o seu quorum (minian)9. Mais precisamente
incumbe-se às mulheres as seguintes responsabilidades: em primeiro lugar, a educação das crianças
e a transmissão dos valores judaicos; a estrita aplicação das leis de separação alimentar (cacher); a
preparação das festas e pratos tradicionais, transmissão da importância do seu valor simbólico, zelar
pelas leis da pureza sexual (banhos, isolamento ou abstinência em período de regras) e não desviar,
antes impulsionar os maridos a seguir a Lei, os cursos rabínicos e cuidar deles, como referido. Não
têm xailes de oração como os homens (Tallit e Teffilin) nem solidéu (Kippa) mas, entre os ultra-
ortodoxos, devem cobrir as cabeças com lenços ou cabeleiras, usar saias até aos pés e não tocar nem
olhar nos olhos outros homens que não sejam o marido (e mesmo a este, só quando não está
menstruada). Bem entendido, as mulheres podem trabalhar no exterior, mas não em detrimento do
seu papel familiar. Na falta de mulher em casa, lembro-me do exemplo dado por Raquel que refere
que: “a mulher é que está em casa, mas conheço um homem divorciado que ensinou tudo à mulher-
a-dias”. É revelador o salmo lido na refeição da noite de shabat, chamado Aishes Chayil:
«Uma mulher perfeita, quem consegue encontrar? Muito para lá de pérolas é o seu valor.
O coração do seu marido confia nela e ele não terá falta de fortuna.
Ela devolve o bem dele, mas nunca o seu mal, todos os dias da sua vida.
Ela vai em busca de lã e linho, e suas mãos laboram com gosto.
Ela é como um navio de um mercador, de longe trás o seu sustento.
Ela levanta-se enquanto é ainda de noite, e dá comida aos do seu lar e uma ração aos seus servos.
Ela vislumbra uma terra e compra-a, com o fruto do seu trabalho ela planta uma vinha.
Com força ela se prepara para o trabalho e revigora os seus braços.

8
Estudar a Kabbalah é exclusivo dos homens e acima dos 40 anos.
9
Se bem que entre os judeus não se contam pessoas.

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Ela discerne que a sua empresa é boa – por isso a sua vela não é apagada à noite.
Ela estende as suas mãos para o fuso, enquanto as suas palmas suportam a roca.
Ela abre a sua palma aos pobres e estende as suas mãos aos miseráveis.
Ela não teme a neve no seu lar porque todo ele está coberto de lã escarlate.
Lençóis luxuriantes ela própria fez, de linho e lã roxa são as suas roupagens.
Distinto nas assembleias surge o seu marido, quando ele se senta com os anciãos da terra.
Ela faz uma capa para vender, e entrega cintas ao negociante.
Força e majestade são as suas roupagens, ela aguarda com alegria o último dia.
Ela abre a boca com sabedoria, e uma lição de bondade está na sua língua.
Ela antecipa os afazeres do seu lar e não partilha do pão da preguiça.
Os seus filhos erguem-se e louvam-na, o seu esposo proclama-a:
“Muitas filhas reuniram coisas notáveis, mas tu suplantaste-as todas”
Falsa é a graça e vã é a beleza, uma mulher temente a Iahweh deve ser louvada.
Dêem-lhe os frutos das suas mãos e deixem que ela seja louvada às portas da cidade pelos seus próprios
feitos.»10

Como se torna claro, neste contexto é feito um hino à figura da esposa ideal, que surge
descrita como vigorosa, sensata e dedicada ao marido, aos filhos e à casa. Embora os comentadores
das Escrituras estejam de acordo em afirmar que se trata de um capítulo alegórico, ele é considerado
uma referência, para uns, em termos de shabat, para outros de sabedoria, para outros de Torah, etc.
A mulher chega a ser chamada entre os judeus “uma ajuda contra ele (homem)” quer dizer que ela
serve de apoio na luta do homem contra as suas próprias más inclinações ou, explicando de outro
modo, se ele merece, ela ajuda, senão ela é contra.
Este mesmo salmo é também recomendado ainda hoje em dia, para ser lido pelas raparigas
da C.I.L. por ocasião do seu Bat Mitzvah. Quando assisti a uma destas cerimónias iniciáticas, a
jovem proferiu primeiro um discurso em hebraico e depois um outro, mais curto em inglês, seguido
de um outro ainda mais reduzido em português. Resolvi, tempos mais tarde, perguntar à mãe da
rapariga iniciada, de nacionalidade brasileira, que discurso era aquele que a filha tinha lido na
sinagoga. A mãe, que gentilmente se prontificou a ir procurá-lo no álbum de fotografias, informou-
me que a versão que tinha guardado para recordação era em hebraico e que não sabia traduzir.
Apenas sabia que o conteúdo era «…de fazer arrepiar os cabelos de qualquer mulher! Aquilo ali,
era bom para o Rei Salomão, que tinha trezentas mulheres e setecentas concubinas! Não dá, né?»
Daí que a versão portuguesa e inglesa tenham sido o resultado de uma selecção criteriosa feita pela
mãe da rapariga para os convidados portugueses e estrangeiros que não soubessem hebraico,
especialmente os amigos da escola, não-judeus (Goi).
Geralmente, como me foi explicado por uma das inquiridas, a este propósito: “É a mulher
que gere e o homem que sustenta” ou melhor, nas palavras de outro entrevistado: “O homem,

10
Livro dos Provérbios (31:10-31).

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teoricamente é que conduz a vida espiritual e o sustento, a mulher tem mais a função de apoio, de
´back up´ em casa. Um trabalho de equipa bem sucedido, o dos meus pais”.
Na verdade, perpectua-se de certa forma, esta divisão de papéis e espaços reservados a
homens e mulheres, tanto na esfera privada como pública. Sabemos que, tal como antigamente, nas
Igrejas e ainda hoje, em geral, nas mesquitas e sinagogas, as mulheres são relegadas para segundo
plano, relativamente aos homens, em local recolhido de contacto visual para não os dispersar da
atenção durante as orações – o Ezrath nashim. Na sinagoga de Lisboa (Shaaré Tikvá) elas sentam-se
sempre na primeira ou segunda galerias, já que o andar térreo é o dos homens – o que, dizem até
preferir, para assim poderem conversar à vontade. Daí serem conhecidos estes pisos como “Os
galinheiros”.
Os membros da CIL não são, em maioria muito zelozos da prática religiosa, à excepção dos
Yom Tov – os dias santos mais importantes do calendário liturgico, em que a sinagoga enche.
Contudo, há uma preocupação, especialmente dos homens em levar os filhos varãos com maior
regularidade aos serviços religiosos, sobretudo quando se aproxima a idade de fazer Bar Mitzvah.
No foro doméstico, observei que se mantém ainda, nalguns agregados de jovens casais, a
tradicional divisão de tarefas: as mulheres é que estão encarregues da gestão dos assuntos
domésticos, enquanto os homens se incumbem exclusivamente da orientação religiosa. Cito o caso
de uma convertida ao judaísmo na CIL, que aprendeu com a mãe de uns amigos da comunidade, a
cozinhar cacher e que afirma que: “Duas vezes por ano, ele entra na cozinha e inventa…de resto,
não faz nada em casa! A loiça, herdei-a dos meus sogros”. E são as mulheres que cuidam ainda da
preparação de Shabat, acendem as velas e algumas (poucas) confeccionam a refeição
antecipadamente de acordo com os preceitos cacher. Durante a gravidez, recobro pós-parto e na
morte, as mulheres revelam uma enorme dinâmica de entre-ajuda para cuidar dos recém-nascidos,
crianças pequenas, levando comida, ajudando nos transportes para a escola ou outras actividades e,
quanto aos defuntos, é convocada a Hevrah Kaddisha (Irmandade de Socorros aos Defuntos) para
as lavagens e preparação do corpo para as exéquias. Existe um grupo desta irmandade para cada
sexo respectivo.
A CIL, pela sua reduzida dimensão e percurso histórico, nunca conheceu
qualquer desenvolvimento de mobilização femininista. Teve contudo, entre os
seus membros, algumas figuras de destaque. Largamente conhecida é Dona

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Gracias Mendes Nasi, A Senhora11 que no sec. XVI, foge da Inquisição em Portugal, refugia-se em
Antuérpia, depois Veneza, Ferrara e, finalmente, na Turquia onde, junto do Sultão intercede pelos
seus correligionários. A ela, Samuel Usque dedicou a Consolação às Tribulações de Israel,
chamando-lhe “o coração do seu povo” e Constantinopla ainda hoje tem uma sinagoga com o seu
nome.
Já no século XX, outras Senhoras judias, se revelaram proeminentes em Lisboa. É o caso de
Hannah Sequerra, que tendo enviuvado cedo, se dedicou totalmente aos filhos e à CIL,
inaugurando as Aulas de Costura, tendo estado na direcção do Amparo aos Pobres (Somej
Nophelim), Cozinha Económica, Hevrah Kaddishah, no apoio aos mortos e na Escola Israelita;
Esther Seruya – como Delegada da WIZO (Women´s International Zionist Organization), em
Portugal, cujo papel de apoio aos refugiados da II Guerra Mundial, nas décadas de 40 e 50 foi
reconhecidamente impressionante; Ruth Arons, que foi presidente de uma Junta de Freguesia em
Lisboa, no finais dos anos 70; a primeira mulher Juiz, na Alemanha, Elizabete Khan, que passou o
resto da sua vida, como refugiada, em Lisboa; a pintora nascida em Roma, Laura Cesana, a
pianista de renome internacional, Nella Maissa, vinda de Turim, Itália, Miriam Brodheim que
abriu o primeiro jardim infantil, em 1945, em Lisboa com o Método Montessori; Ingrid Ryberg,
que trabalhou arduamente dando aulas nas Escolas de Graduadas da Mocidade Portuguesa Feminina
ou Sara Benoliel, que foi directora da creche dos Hospitais Civis de Lisboa, Professora da
Faculdade de Medicina e que manteve um curso e deu aulas de enfermagem para as legionárias da
Brigada Naval12, Pésia Kolinski, empresária e sionista que, sendo ela fugido dos campos de
concentração, muito ajudou igualmente os refugiados da Shoa (Holocausto Nazi), em Lisboa.

Família como encubadora étnica

A constituição de uma família, o respeito pelos ascendentes e a procriação são


tradicionalmente e continuam a ser, especialmente para os judeus, valores essenciais da sua
existência. É na família que estruturam a sua identidade étnica, que fundamentam o sentido de ser
judeu, que encontram a sua base fundamental de apoio e refugio, sobretudo para aqueles que vivem

11
Título do romance que Catherine Clément dedicou a Dona Gracia. Outros autores, ver: Marianna D. Birnbaum, The
long journey of Gracia Mendes, 2003; Andrée Aelion Brooks, The Woman Who Defied Kings, Paragon House, 2002;
Gad Nassi, Rebecca Toueg, Doña Gracia Nasi, Women's International Zionist Organisation, Tel Aviv, 1990; Cecil
Roth, Dona Gracia of the House of Nasi, The Jewish Publication Society of America, Philadelphia, 1948 e "Nasi,
Gracia", in The Encyclopedia Judaica.
12
PIMENTEL, Irene F. História das organizações Femininas do estado Novo, Lisboa: Temas e Debates, 2001, pags.
66, 108 e 259.

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na diáspora, inseridos muitas vezes em sociedades de acolhimento que lhes são pouco tolerantes,
senão mesmo, muitas vezes, hostis. É uma tendência ainda actual mas, simultaneamente, em
pequenas comunidades de diáspora como a CIL, torna-se num desafio, o constituir um agregado
familiar de acordo com as leis mais rígidas do Levítico.
Como pude observar com o meu estudo antropológico, a estrutura das famílias da C.I.L.,
em pouco diverge daquela que predomina na sociedade portuguesa envolvente, ambas assentes nos
valores da tradição judaico-cristã que vingou e vigora ainda no mundo Ocidental. Tal significa um
pendor para a monogamia endogâmica, a constituição de unidades familiares nucleares de linhagens
patrilineares, com o objectivo da procriação e amparo dos indivíduos, com distinção horizontal dos
papéis entre os sexos e vertical, entre gerações. Por questões de preservação étnica, no entanto, a
maioria das famílias judaicas analisadas em Lisboa revelam privilegiar um maior grau de
conservadorismo e de endogamia, prevalecendo o sentimento de entre-ajuda entre os seus membros.
Chamo assim à família judaica - a encubadora étnica, por excelência, pois continua a ser um dos
pilares fundamentais dos judeus13.
O sentido da multiplicação pela procriação é um dos mais profundos da mãe judia e reflecte
a tendência religiosa pós-exílio, de engrandecimento da família e da nação israelita. Com a perda da
independência política, passou a ser dada ênfase à preservação étnica, mas o objectivo continuou o
mesmo, na diáspora: a sobrevivência do grupo e a salvaguarda do maior número possível dos seus
membros. Da C.I.L., um jovem da comunidade, quando entrevistado, afirmou mesmo que “o
princípio fundamental do judaísmo é perpetuar um povo”.
Uma das figuras mais difundidas do judaísmo ocidental é a da Yiddish Mama, caracterizada
por um apego desmedido à sua prole. Esse sentimento maternal excessivo suscita inclusivamente
uma enorme quantidade de anedotas que integram o humor judaico.14
O facto de ter sido primeiro às mulheres que foi dada a Torah, ou seja ter sido a mulher judia
que foi escolhida como veículo da Lei, é revelador do profundo tributo que lhe é devido. Até porque
sem elas não seria possível qualquer vida judaica. Na verdade, segundo a lei judaica, a Halakah,
judeu é filho de mãe judia ou aquele que se converteu ao judaísmo. Daí a importância atribuída à
mulher, por ser considerada o veículo-condição de transmissão judaica à descendência e daí
também, a necessidade do recurso à endogamia, isto é, da procura de uma judia ou de um judeu
para casar, sobretudo sentida pelos homens judeus. A razão vem também na Bíblia e é simples:

13
PIGNATELLI, M. Interioridades e Exterioridades dos Judeus de Lisboa, Lisboa: ISCSP, 2008.
14
OUAKNIN, M. e ROTNEMER, D. A Bíblia do Humor Judaico, Lisboa: Contexto Editora, 1996, p. 161-172.

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"filhos das minhas filhas, meus netos são. Filhos dos meus filhos serão ou não” Isto explica-se
porque: a nossa mãe, essa, pelo menos em princípio, sabemos sempre quem é.
Se, enquanto às mulheres, basta nascerem filhas de mães judias, o que implica que a mãe
tenha que ser reconhecida como tal por um grupo de judeus constituído como entidade, isto é, como
comunidade, para que um varão seja judeu, ele precisa não apenas de ter mãe judia mas também de
ser introduzido na descendência de Abrãao, pela cerimónia da circuncisão (brit milah), ao oitavo dia
do seu nascimento. Deste modo, fará o pacto da aliança com o seu povo, ficando também filho de
Abraão, enquanto as raparigas, pela simples cerimónia de nomeação (a que se chama “fazer as
fadas”), logo à nascença, entram na linhagem de Sara. Este é um dos grandes dilemas entre os
jovens judeus de Lisboa, que são pouco. Sobretudo para os rapazes que, para encontrarem noiva
judia para garantir a continuidade da identidade judaica dos filhos, têm designadamente, de aceder a
sites próprios de Datting de judeus na internet, deslocar-se ao estrangeiro onde quer que se realizem
encontros de jovens judeus (bailes dançantes, jantares ou outras festas) por vontade própria ou
impulsionados pelos pais que, muitas vezes enviam os filhos para estudar noutros países onde
saibam que existem comunidades judaicas numerosas. Caso contrário, terão de enfrentar grande
resistência nos progenitores e na comunidade, se aparecerem com uma namorada não judia (Goy).
As conversões não são normalmente serenas nem rápidas, na CIL o que, para um jovem casal de
enamorados surge como fonte de tensão, tensão essa, que, muitas vezes não é ultrapassada depois
do casamento, originando rupturas e outras tensões, especialmente no que concerne à educação
religiosa da prole.
Foi curioso constatar os resultados da aplicação de um teste de identidade aos membros da
CIL, o TST (Twenty Statements Test) em que lhes foi pedido que seleccionassem 20 cartões com
afirmações de resposta à questão: Quem sou eu? e depois os colocassem por ordem de prioridade.
Em primeiro lugar recaiu a opção sobre o item relativo a “sou homem”, seguido de “sou mãe”,
depois “sou mulher” e “sou pai”. Em quarto lugar, então aparece o cartão com “sou judeu”, seguido
de todos os outros 16 items. Tal traduz bem a importância atribuída pelos judeus à sua identidade de
género e o peso que tem serem progenitores e descendentes de Abraão.

Conclusão

Persistem como desafios aos judeus da actual CIL, tanto homens como mulheres, sem
dúvida, a defesa dos valores essenciais que parece, continuam a ser: a família (respeito aos pais e
constituir uma), o ensino, a sua identidade (ser eu próprio); ajudar o próximo (valores da

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Fazendo Gênero 9
Diásporas, Diversidades, Deslocamentos
23 a 26 de agosto de 2010

solidariedade e entre-ajuda); a tendência para procurar as origens histórias, religiosas, culturais


(culto / cultura); a dinamização de instituições étnicas / espaços comunitários (escolas, museus,
clubes); a abertura a casamentos mistos (conversões); a velha questão judaica (polémica entre os
mais clássicos que defendem os 613 mandamentos by the book e os pós-modernos que se divertem
com isto porque está na moda procurar alternativas); e finalmente a Alyah (um mandamento / uma
aventura face ao reacender do anti-semitismo, desde a 2ª Entifada, em 2000).

Bibliografia

BARATA, Óscar Soares. Introdução às Ciências Sociais, 2 Vols., Lisboa: Bertrand Editora, 1986.
GARCIA, M.A. Judaísmo no Feminino, Lisboa: Instituto de Sociologia e Etnologia das Religiões -
Universidade Nova de Lisboa, 2006.
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PIGNATELLI, M. Interioridades e Exterioridades dos Judeus de Lisboa, Lisboa: ISCSP, 2008.
PIGNATELLI, M. A Comunidade Israelita de Lisboa: o passado e o presente na construção da
etnicidade dos judeus de Lisboa, Lisboa: ISCSP, 2008.
PIMENTEL, Irene F. História das organizações Femininas do Estado Novo, Lisboa: Temas e
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SCHWARTZ, Samuel. Hitória da Moderna Comunidade Israelita de Lisboa. Separata de O
Instituto, Lisboa, Vol. 119 e 120, 1959.
STEINSALTZ, A. Hommes et femmes de la Bible, Paris: Albin Michael, 1990.

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