Uma Breve História de Paraty (Forte Defensor Perpétuo-Ibram-ISBN 978-65-88734-00-1)
Uma Breve História de Paraty (Forte Defensor Perpétuo-Ibram-ISBN 978-65-88734-00-1)
Uma Breve História de Paraty (Forte Defensor Perpétuo-Ibram-ISBN 978-65-88734-00-1)
PARATY
2
Presidente da República Uma Breve História de Paraty
JAIR MESSIAS BOLSONARO
Pesquisa e textos históricos
Ministro da Cidadania PEDRO CAMPOS FRANKE
OSMAR TERRA
Pesquisa e texto sobre comunidades tradicionais
Secretário Especial da Cultura JOÃO AUGUSTO DE ANDRADE NETO
RICARDO BRAGA
Revisão e tradução de textos
Presidente do Ibram JOÃO AUGUSTO DE ANDRADE NETO
PAULO CÉSAR BRASIL DO AMARAL MARIA CORINA ROCHA
PEDRO CAMPOS FRANKE
Diretor do Museu de Arte Sacra de Paraty
e do Museu Forte Defensor Perpétuo Diagramação
JULIO CEZAR NETO DANTAS HENRIQUE MILEN VIZEU CARVALHO
IMPRESSO EM 2019.
3
1. Introdução
4
tem muito a contribuir com novos modelos explicativos sobre a
formação da sociedade brasileira.
A história é um campo interessante e controverso justa-
mente porque se transforma a todo instante. A cada novo olhar
por parte de pesquisadores e estudantes, novas interpretações de
fatos ocorridos no passado conflitam com antigos conceitos cris-
talizados, provocando debates e reformulações relacionados à
maneira como se vê o passado, e também como se vive o presente.
A narrativa que ora se apresenta, longe da pretensão de
ser definitiva ou totalizante, busca uma perspectiva da história
de Paraty pautada pelos registros documentais e arqueológicos
atualmente disponíveis, pelas discussões bibliográficas e pela
incontornável importância do papel das trabalhadoras e traba-
lhadores que erigiram nosso patrimônio cultural, seja ele mate-
rial ou imaterial, com sua sabedoria, com o suor e o sangue de
seu trabalho, com a alegria e a música de suas festas e com a
bravura de sua resistência. A estes devemos a construção e a
preservação de um conjunto arquitetônico, étnico, ambiental
e cultural único na história do Brasil e do mundo, daquilo que
antigos filósofos chamariam de um microcosmo,3 encravado
entre a serra e o mar.
2. Pré-história de Paraty
Embora nosso conhecimento dos povos que habitavam
Paraty antes e durante a chegada dos portugueses seja bastante
limitado, algumas conclusões e hipóteses interessantes podem
ser elencadas.
3 Microcosmo significa literalmente “mundo pequeno”. Em filosofia, costuma
designar uma miniatura que representaria organicamente algo maior em que ela es-
taria inserida. Neste caso, Paraty poderia ser referida como um microcosmo do Brasil,
em linguagem poética.
5
Os habitantes mais antigos da região de Paraty nos
deixaram como registro de sua ocupação um conjunto amplo de
sambaquis – depósitos fossilizados de matéria orgânica e calcária
como conchas, ossos e dentes animais, acumulados pela ação
de povos pré-históricos ao longo de toda a costa brasileira, e
datados entre 8 mil e 2 mil anos antes do presente. Esse conjunto
de sambaquis inclui aqueles encontrados ao lado da Praia do
Forte e da Toca do Cassununga, próximo à Praia do Jabaquara.
Segundo relatos históricos da época da chegada dos
portugueses, a região era habitada, além dos Tupinambá, por
indígenas chamados Guaianá ou Goianá ou Wyanasses – as
grafias são as mais variadas em diferentes narrativas. Esses indí-
genas foram descritos de muitas formas por autores viajantes
tão diversos quanto Padre Anchieta, Gabriel Soares de Souza e
Hans Staden, apresentando caracterizações por vezes contra-
ditórias. Anthony Knivet, viajante inglês, os descreve como
de baixa estatura e muito barrigudos. Muito afeitos ao tabaco
e ao urucum, usariam seus cabelos raspados no alto da cabeça
e longos nos lados, e dormiriam em redes feitas de cascas de
árvores ou de fios de algodão.4 Teriam sido os primeiros andari-
lhos que subiam a Serra do Mar até a região do Vale do Paraíba,
a que se deve a denominação “Trilha dos Guaianá” ao trajeto
que ficou posteriormente conhecido como “Caminho do Ouro”.
Há muita controvérsia em torno da categorização e
do tronco linguístico desses indígenas, e parece certo que
Guaianá não seria um nome de nação, e sim uma palavra
tupi que poderia designar “gente aparentada”. Seu idioma
provavelmente pertencia ao grupo macro-Jê, assim como os
Puri, seus prováveis remanescentes. Ao menos dois documentos
6
‘Dança dos Puris’ de d’Orbigny
7
os Tupinambá, durante a Confederação dos Tamoios. Registros
históricos apontam que os Maromomi/Guaianá da região de
Paraty foram escravizados pelos portugueses, e que auxiliaram
na construção da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição
de Angra dos Reis, por volta do ano de 1636.6 Um dos documentos
mais importantes da fundação de Paraty, datado também de
1636, a doação de uma sesmaria à D. Maria Jacome de Melo para
que a vila fosse construída, menciona uma “aldeia de cima dos
Goaromenis”, e ordena que estes indígenas não sejam tirados
de lá.7 Esta determinação parece apontar para a prática conhe-
cida como “aldeamento” – em que “celeiros” de mão-de-obra
indígena eram mantidos ao alcance de empreendedores colo-
niais, muitas vezes por meio da ação de missionários católicos,
especialmente jesuítas. A escravidão indígena no Brasil foi de
fato intensificada neste período, devido às invasões holandesas
que tiraram dos portugueses feitorias importantes como as de
Luanda, em Angola, e dificultaram temporariamente o forneci-
mento de africanos escravizados para as lavouras e engenhos da
América Portuguesa.8
Em artigo de 1977, o arqueólogo Alfredo Mendonça de
Souza atribui aos ancestrais dos Guaianá a maioria dos samba-
quis e abrigos sob rocha da região, localizando técnicas rústicas
de cerâmica entre eles.9
Não há registros históricos conhecidos sobre a presença
destes indígenas em Paraty desde o século XVII. Sua língua e
6 IHGB. Vários documentos sobre Angra dos Reis, Ilha Grande e outros lugares
da capitania do Rio de Janeiro. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasilei-
ro. Vol. 271, abril/junho de 1966.
7 RAMECK, Maria José S. e MELLO, Diuner (orgs). Roteiro documental do Acervo
Público de Paraty, vol 2. Paraty: Câmara Municipal de Paraty, IPHAN, 2003/2014.
8 FREIRE, José Ribamar Bessa e MALHEIROS, Márcia Fernanda. Aldeamentos in-
dígenas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Eduerj, 2010. pp. 27-30.
9 SOUSA, Alfredo Mendonça de. Pré-história de Parati. Nheengatu, ano 1, n. 2.
Março/abril 1977.
8
sua cultura foram extintas ao longo dos séculos XVII e XVIII
em todo o Brasil, mas há fortes indícios de que os Maromomi
foram ancestrais dos atuais caiçaras que habitam nossa região
costeira.10
9
as populações de São Vicente e da Ilha Grande começaram a se
espalhar pela costa do sudeste brasileiro e passaram a proliferar
as lavouras de cana-de-açúcar na região.
A primeira referência histórica à localidade se deve ao
relato do viajante inglês Anthony Knivet que, em 1597, como
prisioneiro do governador do Rio de Janeiro, integrou uma
expedição desbravadora liderada por Martim Correa de Sá. O
viajante narra a chegada a “um porto chamado Paratee”, onde a
comitiva de Sá é guiada pelos seus aliados Guaianá pelo caminho
que transpunha a Serra do Mar e alcançava as terras altas do
Vale do Paraíba.11
Sabe-se que a primeira povoação de portugueses foi
fundada no alto do Morro da Vila Velha, onde séculos depois
foi construído o Forte Defensor Perpétuo. Havia provavelmente
algumas casas rústicas e uma capela dedicada a São Roque.12
Em 1636, Dona Maria Jácome de Melo doa parte da
sesmaria que havia recebido anos antes da donatária da Capi-
tania de São Vicente, a Condessa de Vimieiro, para a construção
de uma vila entre os rios Paratii-guaçu e Paratiitiba (atualmente
Perequê-Açu e Mateus Nunes), com a condição de que se cons-
truísse uma capela dedicada a Nossa Senhora dos Remédios, e
que não se molestassem os indígenas Goaromenis que ali habi-
tavam – como referimos no tópico anterior.13
Poucos anos após a construção da nova igreja, a cidade
se encontrava “sem câmara, nem justiça: um valhacouto de
malfeitores”, segundo o ouvidor geral João Velho d’Azevedo.14
10
Em 1660, apoiada pelo capitão-mór Domingos Gonçalves de
Abreu, a população revoltada institui o pelourinho – símbolo
de autonomia municipal - e declara-se independente da vila de
Angra dos Reis e Ilha Grande. Apesar da resistência da câmara
daquele município, a iniciativa de independência é apoiada pelo
governador da província do Rio de Janeiro, o poderoso Salvador
Correia de Sá e Benevides.15
Em data controversa, mas ainda na década de 1660, nasce
oficialmente a vila de Paraty.16
11
4. Caminhos e descaminhos
Ainda em 1660, o mesmo Salvador Correia de Sá e Bene-
vides ordena a abertura de um caminho sobre as picadas da
antiga trilha indígena, que ligaria Paraty ao Vale do Paraíba
através da Serra do Mar.17 Não se sabe ainda ao certo o que o
motivou. O espectro da descoberta de metais preciosos no inte-
rior já rondava os desbravadores portugueses há tempos, e por
outro lado o comércio de africanos escravizados começava a se
intensificar, tendo Paraty como um notável entreposto.
A abertura da estrada, que viria a ser conhecida como
Caminho do Ouro, fez florescer o comércio no porto de Paraty, e
a vila passou a ser frequentada por mercadores das cidades altas
da serra como Taubaté, Guaratinguetá e Jacareí, que buscavam
víveres como o sal, o azeite e o vinho trazidos por navios ao
porto, bem como a aguardente produzida localmente.18
Pouco após a descoberta do ouro na região de Cataguases,
em fins do século XVII, institui-se o caminho de Paraty como
a passagem oficial dos garimpeiros e tropeiros. Uma Casa dos
Quintos e uma nova fortificação na estrada da serra foram cons-
truídas em 1703, tornando Paraty um porto incontornável para
o escoamento oficial dos metais preciosos, que seguiam por mar
com base em uma suposta carta régia de D. Afonso VI datada deste dia no ano de 1667.
Cassio COTRIM (Op. Cit.) questiona tal atribuição, tendo reproduzido carta régia da
mesma data que na verdade não diz respeito à fundação da vila. Outras informações
contidas em ARAÚJO, op. cit., apontam as datas de 2 de outubro e 28 de outubro de
1667 como referências à dita carta régia.
17 IHGB. Vários documentos sobre Angra dos Reis, Ilha Grande e outros lugares
da capitania do Rio de Janeiro. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasilei-
ro. Vol. 271, abril/junho de 1966. p. 348.
18 Ver verbete sobre Paraty em SANTA MARIA, Agostinho de. Santuario mariano,
e historia das imagens milagrosas de Nossa Senhora, e das milagrosamente appareci-
das, em graça dos pregadores, & dos devotos da mesma Senhora. Lisboa, 1707. Rio de
Janeiro: INEPAC, 2007.
12
até o Rio de Janeiro.19
A partir de 1710, passa a ser utilizado o chamado Caminho
Novo, que ligava por terra o Rio de Janeiro à região das minas
através da Serra dos Órgãos. O transporte de ouro pelo porto
de Paraty, agora designado Caminho Velho, é então proibido
pela coroa, mas o trajeto continua movimentado ao longo das
décadas seguintes. Pedidos para que se continuasse utilizando o
Caminho Velho diante da aridez e dos perigos do Caminho Novo
foram eventualmente atendidos pela coroa, além de prolife-
rarem os descaminhos e atalhos para os muitos contrabandistas
13
poucos dispostos a pagar o quinto sobre suas cargas.20
Na década de 1720, Paraty atinge o mais alto nível de cres-
cimento desde sua fundação. As Igrejas de Santa Rita de Cássia,
do Rosário e da Nossa Senhora da Conceição do Paraty-Mirim
são inauguradas, assim como novas casas de pedra e alvenaria.
Alguns estudos atuais têm discutido a relevância do contra-
bando de escravos para esta primeira fase de florescimento. A
cachaça, amplamente utilizada como moeda de troca na compra
de escravos ao longo da costa brasileira, passa a ter em Paraty
uma produtividade sem precedentes, acompanhada posterior-
mente por grande prestígio.21
Mulheres e homens africanos e seus descendentes foram
a grande força de trabalho por trás da produção agrícola e do
crescimento urbano da vila durante os séculos XVIII e XIX, além
de sua presença ativa na formação de nosso complexo socio-
cultural. Alguns testemunhos históricos da presença afro-bra-
sileira em Paraty estão na formação das comunidades quilom-
bolas do Campinho da Independência e do Cabral, na construção
das igrejas do Rosário e de Santa Rita, no toque dos tambores
do jongo, na devoção e nos festejos a São Benedito, nas técnicas
em metal, madeira e couro dos objetos remanescentes e em
muitos outros elementos que forjaram múltiplas manifestações
da cultura local.22
14
5. Paraty nos tempos do Império
15
para exportação no Vale do Paraíba. Assim, durante o século
XIX, houve mais um período de notável crescimento urbano. A
capela de Nossa Senhora das Dores foi finalizada, a nova Igreja
da Matriz teve suas obras continuadas até a inauguração em
1860 e a Santa Casa de Misericórdia foi construída às margens
do Perequê-Açu. Também outras esferas tiveram seu período
de progresso: havia mais de uma escola de primeiras letras e
uma cadeira de gramática latina que contava com 27 alunos em
1832. Um serviço de correio entre Rio de Janeiro, Ilha Grande e
Paraty foi estabelecido pelo governo imperial em 1823. A vila é
alçada ao título de Condado em 1813, e Dom Miguel Antonio de
Noronha Abranches Castelo Branco se torna o primeiro Conde
de Paraty.
Em 1822, Paraty comemora a Independência do Brasil com
um entusiasmado relato dos festejos que se seguiram à emanci-
pação na vila, encaminhado ao Império para publicação.24 No
mesmo ano foi construído sobre o Morro da Vila Velha o Forte
Defensor Perpétuo, que se torna o principal prédio militar da
vila. Outras fortificações, como as da Ilha da Bexiga, do Manti-
mento, do Iticopê e da estrada da serra, são munidas de equipa-
mentos e pessoal.
Com as restrições ao comércio de escravos iniciadas na
década de 1830 e consumadas em 1850, intensifica-se o contra-
bando de africanos pelo porto de Paraty.25 Denúncias de fazen-
deiros sobre roubos e ataques por parte de quilombolas atestam
a resistência dos escravos à opressão senhorial na região. Há
uma grande intensificação do transporte de café pela cidade
16
entre 1830 e 1850, e uma preocupação constante com o estado
da estrada da serra, que ganha uma grande reforma em 1840.26
Em 1863, o próprio Imperador D. Pedro II passa pela
cidade e registra suas impressões em diário. Porém, em 1864, a
inauguração da Ferrovia Pedro II, ligando Rio de Janeiro e São
Paulo através do Vale do Paraíba isolou Paraty da rota comercial
do café. Os quartéis e baterias sofrem da falta de pessoal e de
equipamentos. A cidade cai em franca decadência econômica e
em longo e relativo isolamento, com forte êxodo da população
mais jovem e consequente diminuição populacional.
Este quadro começa a se transformar apenas na década
de 1950, com a construção da estrada Paraty-Cunha. Em 1958,
o Centro Histórico de Paraty é tombado pelo Instituto do Patri-
mônio Histórico e Artístico Nacional, e em 1966 o tombamento
abrange todo o município. A chegada da estrada Rio-Santos em
1973 abre permanentemente os potenciais turístico-culturais
da cidade, que a partir de então se constitui num dos maiores
destinos turísticos do Brasil e do mundo.
17
da Biblioteca Nacional. Seu conteúdo parece referir uma fortifi-
cação a ser erguida no portão de entrada da cidade, que pudesse
controlar a entrada e saída de garimpeiros e tropeiros que
do Brasil, Paris, 1863, 2º vol. pag. 242: “(...) em 1703 construirão-se dous fortes, um ao
norte perto do ribeiro Perequê-Guaçu, e outro ao sul nas vizinhanças do Patitiba”; na
obra de LIMA, Honório. Notícia histórica e geográfica de Angra dos Reis e províncias
anexas, 1889; e em artigo no jornal O Paratyense (1891, p.2): “No auto da Collina em
que foi instalada a antiga Villa com a invocação de S. Roque [...] foi mandado construir
um pequeno Forte com o título – Defesa, que só ficou concluído em 1706”.
18
seguissem às minas ou que delas chegassem, evitando assim os
descaminhos de ouro e pedras preciosas, e não uma construção
defensiva em elevação à beira-mar como o local da Vila Velha.28
Historiadores mais recentes como Adler Homero Fonseca
de Castro, acompanhados também de outros autores mais
antigos29, defendem a tese de que o Forte Defensor Perpétuo
foi construído apenas em 1822, projetado para encabeçar o
complexo defensivo de Paraty sobre pelo menos outras seis
posições estratégicas. A designação prestava homenagem a D.
Pedro I, agraciado com o título de Defensor Perpétuo do Brasil.
Apesar da nomenclatura oficial, a construção não se configura
tecnicamente como um forte, e sim como uma bateria – posição
19
de canhões aberta na sua gola.
O chamado Morro da Vila Velha foi o local escolhido
para o estabelecimento da fortificação. Como o nome sugere,
a elevação abrigou o primeiro núcleo de povoamento da região
de Paraty, ainda no início do século XVII. Seu fundador, João
Pimenta de Carvalho, atribuiu a São Roque o patronato da povo-
ação, construindo uma capela em sua homenagem. Após 1636,
o povoado foi transferido para a planície entre os rios Perequê-
-Açú e Matheus Nunes, e uma nova igreja foi edificada tomando
por padroeira Nossa Senhora dos Remédios.
O contexto do estabelecimento do Forte Defensor
Perpétuo em 1822 remonta ao reforço da defesa da região em
meio às tensões que culminaram com a Independência do Brasil.
Após o Sete de Setembro, a ameaça de um contra-ataque portu-
guês por parte das tropas leais à coroa lusitana – que ainda
dominavam praças importantes, como Salvador – levou o novo
governo independente a projetar um amplo incremento defen-
sivo ao longo da costa brasileira, especialmente na província do
Rio de Janeiro.
Mesmo após o reconhecimento da Independência, a forti-
ficação continuou a ser guarnecida devido à Guerra da Cispla-
tina contra as Províncias Unidas do Rio da Prata (atual Argen-
tina) que durou de 1825 até 1828. A partir deste ponto houve
um corte de gastos com o complexo defensivo brasileiro. O
Forte Defensor Perpétuo alternou momentos de abandono com
eventuais rompantes de preocupação em abastecer a posição de
soldados e munições – como ocorreu no caso da crise diplomá-
tica com a Inglaterra em 1850.
Não são conhecidos registros históricos da ocorrência de
conflitos marítimos ou tentativas de invasão por parte de piratas
ou corsários, ainda que narrativas sobre naufrágios, piratas e
aparições sempre tenham feito parte do imaginário de Paraty.
20
Em 1856, a fortificação foi desarmada pelo Ministério da
Guerra e transferida para o governo provincial.
Segundo relatos de visitantes, um regimento de pracinhas
foi enviado para guarnecer o Forte durante a Segunda Guerra
Mundial.
Em 1957, o Forte Defensor Perpétuo foi tombado pela
Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN,
atual IPHAN), e restaurado pela mesma instituição na década
seguinte. Em 1989, o edifício passou a abrigar o Centro de Artes
e Tradições Populares, que abriu ao público exposições sobre a
cultura caiçara e suas tradições.
O museu passou à responsabilidade do Instituto Brasileiro
de Museus (IBRAM) desde a criação da autarquia em 2009.
21
ocupadas. Durante os anos 70 e 80 agricultores e pescadores
organizados através do Sindicato de Trabalhadores Rurais de
Paraty resistiram às tentativas de expropriação realizadas
por donos de grandes fazendas e por corporações.32 Processos
semelhantes ocorreram nos municípios vizinhos de Ubatuba e
Angra dos Reis, os quais compõem junto com Paraty uma das
maiores áreas de Mata Atlântica preservada do Brasil. Ainda
hoje conflitos territoriais estão presentes na região.
A proteção ambiental e a proteção do patrimônio histó-
rico e cultural são asseguradas pela legislação federal, estadual
e municipal e pelos órgãos oficiais em Paraty e atuam como
importantes freios aos processos de desenvolvimento de caráter
predatório, carentes de planejamento urbano e regional social e
ambientalmente responsável.
Atores da sociedade civil também possuem um papel
fundamental nesse sentido. Como fruto do processo de resis-
tência das comunidades caiçaras, das comunidades afrodes-
cendentes quilombolas, das aldeias das etnias indígenas e das
comunidades de pescadores e de agricultores tradicionais, a
região apresenta ainda hoje um rico mosaico sociocultural, no
qual a diversidade de culturas está intrinsecamente relacionada
à preservação do patrimônio ambiental.
Os grupos populares que historicamente ocupam a zona
rural e a região costeira de Paraty lutam para assegurar a defesa
dos recursos naturais dos quais dependem para sobreviver.
Esses recursos envolvem a água pura, a terra para o plantio e
moradia, as matas com seus remédios, frutos e matérias-primas
para construção e para produção de objetos artesanais, o peixe
e os frutos do mar, os sítios preservados que representam
marcos de sua história e identidade – recentemente incorpo-
22
rados à atividade do turismo de base comunitária – e tantas
outras riquezas indispensáveis ao seu modo de vida. Noutras
paragens esses mesmos elementos restaram degradados por
força de processos desenfreados de mercantilização da terra,
de urbanização e de modernização. Essas dinâmicas, que aqui
se esboçam desde a chegada da BR-101, ameaçam a construção
de uma identidade associada ao pertencimento comunitário,
deslocando práticas, discursos e significados culturais outrora
compartilhados e gerando processos de desterritorialização e
invisibilização social dos grupos e das famílias e indivíduos que
os compõem.
O poder público e a sociedade cada vez mais se inclinam
ao reconhecimento de grupos e territórios tradicionais em
todo o país, como é o caso em Paraty das mais de 32 comuni-
23
dades caiçaras, das cinco aldeias indígenas envolvendo as etnias
Guarani Mbya (aldeias Itaxim, Araponga e Arandu-Mirim),
Guarani Kaiowá (aldeia Rio Pequeno) e Pataxó (aldeia Iriri) e das
comunidades quilombolas do Cabral e do Campinho.33 Sua exis-
tência e resistência demonstra que os saberes tradicionais e a
preservação do território como espaço de vida ambientalmente
sustentável e socialmente justo se apresentam como possível
utopia e horizonte para a superação da atual crise civilizatória.
24
English version
1. Introduction
25
2. Prehistoric Paraty
Although our knowledge of the peoples who inhabited Paraty before
and during the arrival of the Portuguese is quite limited, some interesting
conclusions and hypotheses can be drawn.
The earliest inhabitants of the Paraty region left us as a record of their
occupation a large set of sambaquis or shell-mounds – fossilized deposits of
organic matter and limestone like shells, bones and animal teeth, accumula-
ted by the action of prehistoric peoples along the Brazilian coast, and dated
between 8 thousand and 2 thousand years before the present. This set of
sambaquis includes those found next to Forte Beach and the Toca do Cassu-
nunga, next to Jabaquara Beach.
According to historical accounts of the time the Portuguese arrived,
the region was inhabited by the Guaianás or Goianás or Wyanasses – the
spellings are the most varied in different narratives. These natives have been
described in many ways by traveling authors as diverse as Father Anchieta,
Gabriel Soares de Souza and Hans Staden, who often present contradictory
characterizations. 16th century English traveler Anthony Knivet describes
them as short and very potbellied. Very fond of tobacco and urucum. They
would use their hair shaven on the top of the head and long at the sides, and
they would sleep in nets made of barks of trees. They would have been the
first wanderers who climbed the Serra do Mar to the region of the Paraíba
Valley, through a route known as the Guaianá Trail, roughly on the path that
was later called Caminho do Ouro.
There is much controversy surrounding the categorization and
linguistic trunk of these natives, and it seems certain that Guaianá would not
be a nation name, but a Tupi word meaning “related people”. Their langua-
ge probably belonged to the Macro-Jê group as their probable remnants Puri
and Coroado. At least two historical documents of the seventeenth century
referring to the inhabitants of Paraty designate them as Goaromimins or
Goiamimins, and others as Maromimis or Miramomis, which could mean
“small people.” According to recent research, these designations would bring
them closer to indigenous inhabitants of the Paraíba Valley, also known as
Guarulhos, and would distinguish them from the Guaianás from the south of
São Paulo, the ancestors of the present Caingang. They were allied with the
Portuguese against the French and their greatest enemies, the Tupinambas.
Historical records indicate that the Goiamimins were enslaved by the Portu-
guese, and that they helped in the construction of the Mother Church of Nossa
Senhora da Conceição of Angra dos Reis, around the year 1636.
26
In an 1977 article, the archaeologist Alfredo Mendonça de Souza attribu-
tes to the ancestors of the Guaianás most of the sambaquis and shelters under
rock of the region and identifies rustic techniques of pottery between them.
There are no known historical records of the presence of these natives
in Paraty since the 17th century.
27
4. Courses and Off Courses
28
of that importance are the devotion to Saint Benedict, the construction of the
church of the Rosário, the metal, wood and leather crafts on remnant objects
and the formation of the quilombola communities Campinho da Independên-
cia and Cabral.
29
In 1863, the Emperor D. Pedro II himself passed through the city and
recorded his impressions in a diary. However, in 1864, the inauguration of
the Pedro II Railroad, connecting Rio de Janeiro and São Paulo through the
Paraíba Valley, isolates Paraty from the commercial coffee route. Barracks
and batteries suffer from the lack of personnel and equipment. The city falls
in frank economic decay and in long and relative isolation, and the population
at the beginning of the 20th century was no more than 600 residents.
This picture begins to change in 1950, with the construction of the
Paraty-Cunha road. In 1958, the Historic Center of Paraty is registered by the
National Historical and Artistic Heritage Institute (IPHAN), and in 1966 the
whole municipality is officially preserved. The construction of the Rio-Santos
highway in 1973 permanently opens the tourist-cultural potential of the city,
which has since become one of the main tourist destinations in Brazil and the
world.
30
century. The village founder, João Pimenta de Carvalho, had built a chapel
paying homage to Saint Roch. After 1636, the settlement was transferred to
the plain between rivers Perequê-Açu and Matheus Nunes, with a new chapel,
now dedicated to Nossa Senhora dos Remédios (Our Lady of the Remedies).
The establishment of Forte Defensor Perpétuo in 1822 is historically
related to the reinforcement of Brazilian defenses, in a scenario of political
tensions that culminated with the emancipation of Brazil from Portugal in
September 7th 1822. After the Declaration of Independence, the threat of
a counter offensive by ships and troops still loyal to the Portuguese crown
caused the new independent Empire to project a massive defensive increment
all along the Brazilian shore.
Even after the recognition of the independence in 1825, the fortifica-
tion kept being garnished due to the Cisplatine War against Argentine (1825-
1828). After the war, Forte Defensor Perpétuo gradually lost its military rele-
vance.
Despite the attention dedicated to the defense by the Imperial Gover-
nment in Paraty, there are no documental registries of pirate invasions or
maritime conflicts in the city, even though tales of shipwrecks, pirates and
apparitions have always been frequent amongst the villagers.
In 1856, the fort was disarmed by the Ministry of War and transferred
to the Provincial Government of Rio de Janeiro. According to recent visitors, it
was garnished with soldiers during World War II for a few months.
In 1957, the Defensor Perpétuo was declared part of historical herita-
ge by IPHAN (National Institute of Historical and Artistic Heritage) and now
works as a museum under the administration of IBRAM (Brazilian Institute of
Museums).
31
resisted attempts at expropriation by large farms and corporations. Similar
processes occurred in the neighboring municipalities of Ubatuba and Angra
dos Reis, which together with Paraty constitute one of the largest areas of
preserved Atlantic Forest in Brazil. Even today territorial conflicts are present
in the region.
As a result of the resistance process of Caiçara communities, Afro-
-descendant communities of Quilombolas, indigenous villages, traditional
fishermen and small farmers communities, the region still has a rich socio-
-cultural mosaic in which the diversity of cultures is intrinsically related to
the preservation of environmental patrimony. The popular groups that histo-
rically occupied the rural zone and the coastal region of Paraty struggle to
assure the defense of the natural resources on which they depend to survive.
These resources include pure water, land for planting and housing, forests
with their medicines, fruits and raw materials for construction and for the
production of handicrafts, fish and seafood, preserved sites representing its
history and identity – recently incorporated into the activity of community-
-based tourism – and so many other goods indispensable to their way of life.
Elsewhere, these same elements remained degraded by unbridled processes
of land commodification, urbanization, and modernization. These dynamics
threaten the construction of an identity associated with community belon-
ging, displacing practices, discourses and cultural meanings once shared and
generating processes of deterritorialization and social invisibilization of the
groups and of the families and individuals that compose them.
Public power and society are increasingly inclined to recognize tradi-
tional groups and territories, as is the case in Paraty of more than 32 Caiçara
communities, of the 5 indigenous villages involving the Guarani Mbya, Guarani
Kaiowá and Pataxó ethnic groups and the Quilombola communities of Cabral
and Campinho. Their resistance demonstrates that traditional knowledge and
the preservation of territory as an environmentally sustainable and socially
just living space present themselves as a possible utopia and horizon for over-
coming the current civilization crisis.
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Imagens
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Pág. 13: Rencontre d’indiens avec des Pág.15: Carregadores de café, 1826.
Voyageurs Européens [Encontro de índios Jean-Baptiste Debret. Acervo Museus
com viajantes europeus], Johann Moritz Castro Maya (Ibram).
Rugendas 1827-1835. Litografia, 21,5 x
28,28 cm.
Pág. 18: Planta do Saco de Paraty, Pág. 19: Forte Defensor Perpétuo, 2012.
1877. Antonio Américo Pereira da Henrique Carvalho/Ibram.
Silva. Arquivo Histórico do Exército.
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