Literatura Brasileira III 1360182914

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LITERATURA

BRASILEIRA III
LITERATURA BRASILEIRA III

ANA CLÁUDIA FÉLIX GUALBERTO

Caros estudantes, boas vindas a todos vocês!

A disciplina Literatura Brasileira III foi dividida em duas Unidades, para que você possa
assimilar da melhor maneira possível as discussões aqui sugeridas. Aspectos relevantes deste
período e importantes conceitos analíticos, teóricos e críticos foram distribuídos, ressaltando-
se aspectos como contextualização histórica, principais produções literárias, autores
representativos de maneiras do fazer literário, fragmentos de suas principais obras, alguns
comentários críticos e, principalmente, possíveis leituras destes textos.

Na primeira Unidade, iremos tratar de um dos maiores nomes da Literatura Brasileira,


Machado de Assis. Neste momento, transitaremos pelos contos e romances machadianos a
fim de desvendar algumas das particularidades de sua escrita e, assim, conhecer um pouco
mais os múltiplos Machados. Nesse tópico, leremos algumas narrativas de Machado e
estabeleceremos um diálogo com outras produções literárias. O objetivo principal dessa
Unidade é você conhecer a diversidade da obra de Machado de Assis e a sua importância para
a maturidade da prosa brasileira.

Na segunda Unidade, estabeleceremos interfaces da literatura realista e naturalista


com uma temática bastante em voga na contemporaneidade: a questão da raça. Aqui você irá
trabalhar com algumas narrativas que abordaram este tema, além de textos teóricos para
subsidiar o debate. Ao finalizar esta Unidade, há indicações para o estudo da poesia deste
período, que será explorado, exclusivamente, no Ambiente Virtual de Aprendizagem.

É interessante ressaltar que, sempre que possível, será feita uma relação entre a
leitura e a prática docente, para que você possa (re)pensar sua experiência em sala de aula.
Esperamos que você aproveite estas semanas para pesquisar, ler e compartilhar suas
experiências.

Aproveite as leituras e participe das discussões sugeridas!


UNIDADE I

O MÚLTIPLO MACHADO DE ASSIS

Ilustração sobre Machado de Assis,


para a revista Entre Livros, publicada
pela Editora Duetto, ano 2006.

Apresentação

Nesta primeira Unidade iremos nos deter em um dos escritores de maior destaque da
Literatura Brasileira: Machado de Assis. A obra de Machado de Assis, de acordo com a
historiografia literária, está inserida no Realismo. Você poderá perguntar: quais foram os
critérios utilizados para esta classificação? A resposta para este questionamento está centrada
no processo de canonização literário.
Agora é
com Caso você esteja esquecido do conceito cânone para a Literatura, leia o texto
Cânon de Roberto Reis que aborda esta temática, que se encontra disponível
você na Biblioteca Virtual desta disciplina.
REIS, Roberto. Cânon. In: JOBIM, J. Luís (Org.). Palavras da crítica: tendências
e conceitos no estudo da literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992.

A fim de buscar uma possível resposta para o questionamento inicial – O que levou a
crítica literária a classificar esse autor como realista? – observaremos de que modo a
linguagem é utilizada em seus textos e quais são as temáticas, geralmente, abordadas por
Machado.

O nosso percurso analítico terá início com a trajetória e a obra em prosa de Machado de
Assis. Aproveite, agora, para mergulhar
mergulhar na vida literária do Brasil do final do Século XIX tendo
como cenário o Rio de Janeiro.

Machado de Assis: os vários

Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no morro do Livramento, no Rio de Janeiro, a


21 de junho de 1839. Seu pai, o mulato forro Francisco
Francisco José de Assis, carioca da gema, neto de
escravos, pintor e dourador de profissão, sabia ler e escrever, o que não era comum entre os
de sua classe social. A mãe era portuguesa, Maria Leolpodina Machado da Câmara nascera na
ilha de São Miguel, nos Açores. A família de Machado de Assis vivia como agregada à imensa
chácara de Maria José de Mendonça Barroso Pereira. Machado viveu na chácara do
Livramento até os 15 anos de idade.1 Conforme Ubiratan Machado:

Machado afasta-se
afasta da chácara, mas nunca se libertaria
bertaria de seu ambiente,
onde aprendera as primeiras lições sobre os contrastes dos destinos
humanos e as desigualdades sociais. Ali, sentira o despertar de desejos de
ascensão social, o inconformismo com a pobreza, a sedução pelo mundo dos
ricos e dos poderosos,
poderosos, dos quais procurou se acercar durante toda a vida. A

1
MACHADO, Ubiratan. O enigma do Cosme Velho.
Velho In: Machado de Assis:: uma revisão. Rio de Janeiro: In-Fólio,
In
1998. p. 18.
chácara do Livramento se incorporara ao seu espírito e seria recriada, 40
2
anos depois, em forma de ficção, na novela Casa velha.

Machado demonstra sua vocação para as letras quando ingressa na imprensa. Nesta
ocasião, publicara mais de 50 trabalhos, a maioria poemas de um romancista piegas, sem
qualquer originalidade. No entanto, a prática jornalística diária exerceu uma influência sensível
sobre a sua escrita literária. Obrigou-o a escrever com simplicidade e graça, a evitar “os
colarinhos do estilo grave”. Como cronista, se habituaria a flertar com o leitor, a instigá-lo, a
dialogar com ele, o que se tornaria uma marca de seus romances da maturidade.3

Mas o que seria esta “maturidade” em relação à obra machadiana? No que diz
respeito à produção literária, é comum a crítica dividir a vida de Machado de Assis nitidamente
em duas partes: até 1879, a preparação, e depois, a realização. Entre estas duas fases, ocorre
uma enfermidade passada em Nova Friburgo, em um isolamento a dois: ele e sua esposa,
Carolina Augusta de Novaes. Machado publicou nove romances ao todo: quatro no período de
preparação ou “crescimento”, Ressurreição (1872), A mão e a luva (1874) e Helena (1876); três
no da maturidade, Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891) e Dom
Casmurro (1899); e dois na fase de “dissecação” ou de recuo, Esaú e Jacó (1904) e Memorial de
Aires (1908).4

Conforme alguns críticos e historiadores literários, o laboratório operoso do artesão


Machado de Assis é percebido nos contos. É o que afirma em primeira mão José Veríssimo:

Do conto foi ele, se não o iniciador, um dos primeiros cultores e porventura


o primacial escritor na língua portuguesa. Efetivamente ninguém jamais
nesta contou com tão leve graça, tão fino espírito, tamanha naturalidade,
tão fértil e graciosa imaginação, psicologia tão arguta, maneira tão
interessante e expressão tão cabal, historietas, casos, anedotas de pura
fantasia ou de perfeita verossimilhança, tudo recoberto e realçado de
emoção muito particular, que varia entre amarga e prazenteira, mas
infalivelmente discreta. Histórias de amor, estados d’alma, rasgos de
costumes, tipos, ficções da história ou da vida, casos de consciência,
caracteres, gente e hábitos de toda a casta, feições do nosso viver, nossos
mais íntimos sentimentos e mais peculiares idiossincrasias, acha-se tudo
superior e excelentemente representado, por um milagre de transposição

2
Id., p. 19.
3
Id., p. 21.
4
PICCHIO, Luciana Stegagno. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1997. p. 273-
293.
artística, nos seus contos. E sem vestígio de esforço, naturalmente, num
5
estilo maravilhoso de vernaculidade, de precisão, de elegância.

Os contos foram publicados em coletâneas que ponteiam toda a vida do escritor e


preenchem os vazios editoriais que medeiam entre os romances: Contos fluminenses (1870),
Histórias da meia-noite (1873), Papéis avulsos (1882), Histórias sem data (1884), Várias
histórias (1896), Páginas recolhidas (1899), Relíquias de casa velha (1906). Conforme Luciana
S. Picchio, dos cento e setenta e oito textos publicados, os maiores êxitos nesse universo
univ são:
“Cantiga de esponsais”, “O espelho”, “Missa do galo”, “O alienista”, “Uns braços”, “D.
Benedita”, “Trio em lá menor”, “Um homem célebre”.6
E você, conhece alguns dos contos ou romances citados acima? De qual você mais
gosta? Saiba que além do romancista e do contista, restam outros Machados: o autor de
teatro, o crítico, o epistológrafo, o poeta.

Aproveite para conhecer mais a obra machadiana visitando alguns


sites que contêm toda a produção literária deste autor:
http://machado.mec.gov.br/ (acesso realizado em 11/dez./2009).
http://www.machadodeassis.org.br/ (acesso realizado em
12/dez./2009).

No primeiro link você poderá encontrar, além


além da obra completa, o vídeo Machado de
Assis: um mestre na periferia produzido pela TV Escola para a série Mestres da Literatura. Este
vídeo traz informações sobre a vida do autor e o contexto histórico em que ele produziu suas
obras, incluindo também depoimentos
poimentos de especialistas na obra machadiana.

5
VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira.
Brasile Ministério da Cultura, Fundação Biblioteca Nacional,
Departamento Nacional do Livro, 1915. Disponível em:
<http://p.download.uol.com.br/cultvox/livros_gratis/historia_da_literatura_brasileira.pdf
http://p.download.uol.com.br/cultvox/livros_gratis/historia_da_literatura_brasileira.pdf>.>. Acesso realizado em
11/dez./2009.
6
PICCHIO, op. cit., p. 288.
Agora é
Acesse os seguintes endereços eletrônicos para ver o vídeo:
com
você Machado de Assis: um mestre na periferia parte 1
http://www.youtube.com/watch?v=mIsVRZJocTQ&feature=related
Machado de Assis: um mestre na periferia parte 2
http://www.youtube.com/watch?v=OEsz4fxZAYA&feature=related
Machado de Assis: um mestre na periferia parte 3
http://www.youtube.com/watch?v=bmEvW6ogWh4&feature=related
Acesso realizado em 21/nov./2009.

Após conhecer um pouco da biografia e da bibliografia em prosa de Machado, iremos


agora nos deter na análise de três contos: “O espelho”, “Missa do Galo” e “Último capítulo”.
Antes de continuar a leitura do material impresso, é necessário que você vá até a Biblioteca
Virtual e leia estes três contos, só assim será possível acompanhar o estudo destas narrativas.
Aproveite para ler outros contos, depois sugira no mural da disciplina os mais aprazíveis. Boa
leitura!!

2 O espelho

O espelho de um momento

Ele dissipa o dia,


Mostra aos homens as imagens desligadas da aparência,
Rouba aos homens a possibilidade de distração.
Ele é duro como a pedra,
A pedra informe,
A pedra do movimento e da visão,
E seu brilho é tal que todas as armaduras, todas as máscaras diante
dele se desfiguram.
O que a mão pegou desdenha de tomarr a forma da mão,
O que se compreendeu não existe mais,
A ave confundiu-se com o vento,
O céu com a sua verdade,
O homem com sua realidade.
Paul Éluard

Lukács e Machado: uma teoria e um conto

Georg Lukács, em A Teoria do Romance7, traça uma distinção entre a Epopéia e o


Romance, relacionando o surgimento do romance como forma de expressão da classe social
burguesa:

O romance é a epopéia de uma era para a qual a totalidade extensiva da


vida não é mais dada de modo evidente, para qual a imanência do sentido à
vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a
8
totalidade.

Neste mesmo livro, Lukács cria uma tipologia da forma romanesca, na qual está
inserido “o idealismo abstrato”, que corresponde à inadequação do indivíduo (personagem) ao
mundo exterior, à sua situação, ao seu destino, surgindo, assim, o herói problemático do
romance. “Essa inadequação tem grosso modo dois tipos: a alma é mais estreita ou mais ampla
que o mundo exterior que lhe é dado como palco e substrato de seus atos.”9
A fim de estabelecer uma relação entre esta teoria lukacsiana e a literatura brasileira,
iremos fazer uma leitura do conto de Machado de Assis, O espelho: esboço de uma nova teoria
da alma humana, partindo de uma análise da inadequação do protagonista, Jacobina, diante
de sua situação social, o cargo de alferes.
O conto, O espelho,10 trata de um debate entre quatro ou cinco cavalheiros sobre os
problemas mais árduos do universo, numa atmosfera metafísica e filosófica. Sendo que um
dos integrantes do grupo, o Jacobina – cujo significado é “terreno impróprio para a lavoura,
revestido de mato baixo, comumente cerrado e espinhoso” –11 que sempre se encontra alheio
ao debate e não discute nunca, é desafiado por um dos participantes a demonstrar que o seu

7
LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance: Um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Tradução,
posfácio e notas de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34. 2000.
8
Ibid., p. 55.
9
Ibid., p. 99.
10
ASSIS, Machado de. O espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana. In: _____. Papéis Avulsos. Disponível
em: http://machado.mec.gov.br/arquivos/pdf/contos/macn003.pdf. Acesso realizado em: 03/out./2009.
11
HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, versão 1.0, 2001.
argumento de que “...a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem,
como uma herança bestial (...)”12 é verdadeiro.
Ao fazer uso da palavra, Jacobina envereda pelos caminhos da natureza da alma, tema
este que gera uma grande e confusa discussão. Novamente a personagem é solicitada para
opinar sobre o que se discutia, então ele começa a falar de um caso de sua vida em que
ressalta que não há apenas uma alma, mas duas. Assim inicia-se a narrativa do episódio de
quando ele foi nomeado alferes e a justificativa para a existência de duas almas humanas.

Uma verdade almejada

A meditação, que compõe o ambiente de O espelho, apresenta-se como itinerário


espiritual ou intelectual de alguém à procura da verdade. O objeto de estudo da metafísica é a
verdade eterna, circular, irredutível. Logo, as elucubrações metafísicas, que permeiam a sala
de discussão do conto, desembocam numa busca da substancialidade do eu, de uma verdade –
que é, na maioria das vezes, arbitrária, irrefutável no seu próprio conceito.
Na introdução do conto não se sabe ao certo quantos integrantes compunham o
ambiente do debate naquela noite, quatro ou cinco. Percebe-se, então, através da própria
estrutura do texto uma incoerência sobre a verdade totalitária que a metafísica busca. A
dúvida sobre a quantidade de participantes gera uma ambiguidade, uma não certeza,
desconstruindo, assim, esta verdade absoluta.
Jacobina não aceita o debate por pensar que atingiu esta verdade, considerando,
assim, o ato de discutir irrelevante. No seu discurso, ele se assemelha aos anjos querubins e
serafins que eram a perfeição espiritual e eterna, isto o eleva a um plano dos deuses, das
verdades totalitárias, em que eterna é a alma.
A verdade absoluta buscada e apreendida por Jacobina é compreendida a partir de
uma experiência do vivido – que está inserida num mundo manipulável por uma estrutura de
poder. Ele supõe que seu discurso é verdadeiro, portanto, independente de todo
condicionamento psíquico ou social. No entanto, não existe saber neutro, ele sempre favorece
ou legitima uma estrutura político social. Desta forma, “... não há mais a representação de
uma sociedade através de um indivíduo, como acontecia na epopéia, pois cada indivíduo
representa apenas uma das classes sociais.”13

12
ASSIS, Machado de. O espelho, op. cit., p. 80.
13
LUKÁCS, G. “O Romance como Epopéia Burguesa”. In: Revista Ad Hominem 1, Tomo III, Música e Literatura. São
Paulo, Estudos e Edições Ad Hominem, 1999.
Jacobina ao narrar sua história, em um dado momento remete, indiretamente, a esta
lógica social “o certo é que todas essas cousas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim
uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou”.14 Porém,
não é só a vida do Alferes que vai sofrer modificações a partir desta construção social. Na
passagem do conto em que Jacobina fica tomando conta do sítio da tia Marcolina – tentando
suprir todas as necessidades de sua alma exterior – há a fuga dos escravos que na noite
anterior exageram na quantidade de elogios atribuídos ao “Nhô Alferes”. Pode-se perceber,
então, que a representação da sociedade através de um indivíduo torna-se impossível, já que
esta sociedade não reflete mais a totalidade, ela agora se mostra fragmentada e as
necessidades individuais estão muito relacionadas ao interesse de cada classe social.

A fragmentação do sujeito: uma construção social

Jacobina, um rapaz pobre que passa por um processo de construção de uma nova
identidade ao ser nomeado alferes da guarda nacional. Assim, ele é chamado de “meu Alferes”
por sua mãe, sua tia, e, em seguida, todos o chamam pelo título. Observa-se, portanto, uma
preferência à representação, à aparência social. Inclusive quando a tia Marcolina o convida
para passar alguns dias em sua companhia no sítio, ela sugere que ele leve a farda. Porém, esta
identidade imposta pelo social, construída de fora para dentro, chega a incomodar o
protagonista. Neste momento, ele solicita que a tia volte a chamá-lo de Joãozinho, o que
demonstra o conflito entre a alma interior e a alma exterior.
Diante de toda esta problemática, percebe-se que o protagonista foi introjetando o
papel social de alferes, pois houve toda uma construção deste papel, desde a aquisição do
fardamento, que foi uma doação dos amigos, até a incorporação do título ao Ser, “o alferes
eliminou o homem”. Jacobina já não consegue mais viver sem ouvir o eco do título, “Senhor
Alferes”, que, a princípio, era considerado apenas como gracejos de sua mãe e sua tia.
Pode-se, assim, notar que o modo de produção de vida material cria um paradigma
(via ideologia) que regula as práticas e experiências sociais. Sendo através dele que o indivíduo
ganha uma validade social ou adquire identidade. O que fundamenta este modo de produção
é a lógica da mercadoria que não se dá só na forma objetiva – o indivíduo e seu objeto de
trabalho – mas também na forma subjetiva, sua existência torna-se mercadoria. Sendo assim,

14
ASSIS, Machado de, O espelho, op. cit., p. 82.
a reificação do indivíduo é um produto social e vai atestar um tempo em que a sociedade
prefere a representação à realidade, a aparência ao ser.
O Alferes apresenta-se como possibilidade de ascensão social, este título possibilita a
Jacobina uma garantia de soberania e poder sobre os outros. Neste caso, o papel da sociedade
é fomentar necessidades que possam assegurar e garantir a sua lógica. Ela cria, portanto, um
sistema simbólico de etiquetas sociais que vão definir os grupos e as classes. Fora deste
sistema a existência estilhaça-se, há apenas o vácuo, neste momento surge a inadequação do
personagem, ou ele se sente superior ao seu destino ou inferior à sua humanidade, como
afirma Mikhail Bakhtin. 15
Pode-se dizer que, embora o Ser preceda o Ter, é este último quem vai efetivamente
dominar, sobrepor-se. Encara-se, assim, o caráter problemático que tal conflito encerra no
protagonista machadiano. A identidade é móvel e construída por aspectos psicológicos e
sociais. No entanto, Jacobina possui uma identidade completamente obliterada pelo social.
Pode-se observar isto na passagem do conto em que ele se encontra só; não há mais ninguém
para ecoar sua alma exterior (sua segunda alma), ou seja, chamá-lo de Alferes – metáfora da
identidade construída pelo social:

Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma cousa
semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente
levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia, estava
agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em
16
mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil.

O olhar dos outros, então, seria substituído pelo espelho, onde ele se veria vestido de
Alferes. Não mais através de uma imagem fragmentada, mas totalitária, ele passaria a sentir-se
sujeito, “...o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum
contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim a alma exterior.”17
Jacobina no seu aterro existencial aceita a máscara imposta pela sociedade. É através
dela que ele se reconhece como indivíduo, e é assim que ele opta por viver – refletido em um
espelho. Vestir-se de Alferes é enquadrar-se no padrão da sociedade vigente, sair dos conflitos
internos, que o deixavam disforme perante o mundo. Abandonar, então, o que não se
enquadrava na normalidade, o que produzia uma imagem difusa. A reificação é total, ele é um
intelectual capaz de pensar e refletir sobre a sua situação; até de perceber que a segunda alma
muda (ela é construída, histórica, temporal), mas, ainda assim, talvez pelo privilégio, as

15
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo, Unesp/Hucitec, 1993.
16
ASSIS, Machado de, O espelho... op. cit., p. 82-83
17
Id., p. 85.
prerrogativas da posição conferida a ele – o sujeito Alferes prefere não lutar, não agir. Assim,
“...o contato entre homem e mundo tornou-se puramente periférico e o homem assim
constituído, uma necessária figura acessória, que orna e ajuda a expandir a totalidade, mas
que é sempre apenas peça integrante, nunca o centro.”18
O herói em busca da sua essência, do sentido da sua existência, ingressa numa luta,
um combate com os valores da sociedade. Mas este combate dá-se dentro do indivíduo, e não
propriamente no cenário social. Este herói busca uma coerência para o seu eu, aspira à
unidade. No entanto, isto é impossível em uma sociedade fragmentária, automatizada e
dividida em classes. A totalidade é utópica, o indivíduo é o acidente dos erros desta sociedade.
O sujeito torna-se fragmentário, embora ainda deseje a coerência, a união com o elo perdido.
Assim, por não suportar a sua incoerência, os seus fragmentos, ele resolve tomar emprestadas
algumas máscaras que lhe dêem a ilusão de uma existência plena:

...a falta de correspondência entre alma e realidade torna-se misteriosa e,


ao que parece totalmente irracional, pois o estreitamento demoníaco da
alma revela-se apenas negativamente, no ter de abrir mão de tudo quanto
conquista por nunca ser ‘aquilo’ de que precisa, por ser mais amplo, mais
19
empírico e mais vivo do que aquilo de que a alma partiu em busca.

Agora que você acompanhou uma leitura de O espelho de Machado, chegou o


momento de estabelecer uma relação entre este conto e a narrativa de título homônimo do
escritor mineiro João Guimarães Rosa. O espelho de Guimarães encontra-se disponível na
Biblioteca Virtual desta disciplina. Aproveite para se deleitar com mais leitura!

A seguir iremos analisar uma outra narrativa do bruxo do Cosme Velho, Missa do Galo
sob o viés dos estudos de gênero. Para poder acompanhar a leitura sugerida é necessário ler o
conto que se encontra disponível na Biblioteca Virtual da disciplina.

18
LUKÁCS, Georg, O romance como epopéia...op. cit.
19
Ibid.
Missa do Galo sob uma perspectiva de gênero

A figura feminina, nas mais diversas literaturas, serviu de mote para inúmeros poetas
da antiguidade clássica aos nossos dias. As musas foram exploradas em diferentes aspectos
(físico, emocional, intelectual); em seus diversos flancos (virgem, santa, prostituta, mãe,
amante), sendo, talvez, em todas as culturas, alvo do olhar e do desejo masculino.

No âmbito da Literatura Brasileira, as musas – tanto a mulher amada quanto à


imaginária – também fomentaram a lavra poética de muitos imortais: junto a uma infinidade
de anônimas (que inspiraram os poetas, sobretudo os românticos, a transpor para o verso suas
fantasias eróticas) encontram-se Ana Amélia (de Gonçalves Dias), Eugênia Câmara (de Castro
Alves), e, mais próximo de nós, Helo Pinheiro (de Vinícius de Moraes), só para ilustrar com
algumas das mais famosas.

Affonso Romano de Sant’Anna, em seu livro O canibalismo amoroso, percebe, através


de análise de poemas do Romantismo, Parnasianismo e Simbolismo, “que o corpo feminino
ocupa grande parte do discurso, enquanto o corpo masculino é silenciado. (...) essa ausência
do corpo masculino essa abundância do corpo feminino começam a ser explicadas pelo fato de
que o homem sempre se considerou o sujeito do discurso, reservando à mulher a categoria de
objeto”20.

Sobre este aspecto, Judith Butler, em seu artigo Sujetos de sexo/genero/deseo, ao


fazer uma leitura de O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, afirma que “esta associação do
corpo com o feminino funciona sobre relações mágicas de reciprocidade mediante as quais o
sexo feminino se restringe a seu corpo, e o corpo masculino, totalmente negado,
paradoxalmente se converte em um instrumento incorpóreo de uma liberdade supostamente
radical”.21 Vale salientar que a apropriação do corpo feminino sofre mudanças, dependendo da
época, podendo ocupar o imaginário da santa, da prostituta, da virgem, da Vênus, da noiva.
Transitando entre o celeste e o terreno, o sagrado e o profano, a concretização amorosa
nestes textos é, geralmente, inatingível, causando muito sofrimento para o eu lírico masculino.

Esta cena muda a partir da revolução cultural dos anos 60, a mulher idealizada começa
“...a avaliar a extensão e as consequências da sua condição de inferioridade e ensaia as
primeiras denúncias”. De acordo com Helena Parente Cunha, “enquanto na ficção a fala da
mulher não se liberta da força do falo, na poesia o princípio do prazer reina descontraído,
numa outra modalidade de desafio aos códigos falocêntricos”.22 Assim sendo, o eu lírico dos
versos de autoria feminina deixa a libido livre para seus investimentos, despindo a figura
masculina da idealização, da aura – invólucros comuns à imagem da mulher nos textos
clássicos da Literatura Brasileira.

Neste sentido, é interessante observar que na produção poética de autoria feminina,


predominantemente, há uma líber(t)ação do corpo, ele parece estar desnudo das amarras
psicológicas, sociais ou culturais que o aprisionavam; a mulher deixa de ocupar o lugar do
silêncio, da ausência, e passa a ser sujeito desses textos através da enunciação, da fala, do
discurso, da escrita, enfim. De outro modo, ela passa a valorizar e, até mesmo, a exaltar o
corpo feminino ao mesmo tempo em que inaugura um mundo de experiências próprias que
não aceita a ordem imposta pelo sistema patriarcal.

20
SANT’ANNA. Affonso Romano. O canibalismo amoroso: o desejo e a interdição em nossa cultura através da
poesia. 4 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p. 12.
21
BUTLER, Judith. Sujetos de sexo/genero/deseo. In: CARBONELL, Neus; TORRAS, Meri (Compilación de textos y
bibliografía). Femininos literarios: J. Butler, T. Ebert, D. Fuss, T. De Lauretis, M. Lugones, J. W. Scott, G. Ch. Spivak, S.
Winnett. Madri: Arco/Libros, S.L., 1999. p. 42.
22
CUNHA, Helena Parente. O desafio da fala feminina ao falo falocêntrico. In: RAMALHO, Cristina (Org.). Literatura e
feminismo: propostas teóricas e reflexões críticas. Rio de Janeiro: Elo, 1999. p. 162.
A escritura de autoria masculina que irá nos permitir demonstrar alguns dos aspectos
explicitados acima no que diz respeito à subjetivação do corpo através da linguagem literária
corresponde ao conto Missa do Galo23 de Machado de Assis.

O pecado mora ao lado...

As personagens que compõem o conto, como você deve ter observado, são: o
escrivão, Sr. Meneses; a segunda esposa do Sr. Meneses, D. Conceição; a mãe de D. Conceição,
D. Inácia; duas escravas e o Sr. Nogueira, primo de uma das primeiras núpcias do Sr. Meneses
e também narrador do conto. Já na apresentação das personagens podemos perceber a
presença das normas patriarcais, os homens são designados pelo sobrenome, o que dá mais
autoridade e prestígio, enquanto as mulheres são identificadas pelos nomes.
Missa do Galo trata-se de um diálogo entre uma mulher de 30 anos, D. Conceição, e
um rapaz de 17 anos, Sr. Nogueira, o qual narra a história. Ele vem do interior, Mangaratiba,
para estudar no Rio de Janeiro, na casa do Sr. Meneses, ex-marido de uma de suas primas. Na
noite de Natal, ao aguardar a hora da missa do Galo, meia-noite, ele trava uma conversação
com a atual esposa do seu hospedeiro, D. Conceição.
D. Conceição é considerada uma santa, por não apenas suportar, mas achar que era
muito direito o seu marido possuir uma amante. Vale salientar que o fato do homem ter mais
de uma mulher implica em prestígio e poder, inclusive o financeiro, pois fica subentendido que
ele irá manter mais de um lar. Indo além, portanto, da questão da virilidade:

Boa Conceição! Chamavam-lhe "a santa", e fazia jus ao título, tão facilmente
suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento
moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No
capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as
aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e
passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que
chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava
24
tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar.

O nome Conceição pode nos remeter à Nossa Senhora da Conceição, que no


sincretismo religioso é representada por Iemanjá, a sereia do mar – esta figura mítica que

23
ASSIS, Machado de. Missa de Galo. In: _____. Páginas recolhidas. Disponível em:
http://machado.mec.gov.br/arquivos/pdf/contos/macn006.pdf. Acesso realizado em: 12/dez./2009.

24
ASSIS, Machado de, Missa do Galo..., op. cit., p. 27.
encanta os homens através do canto, da fala. Em a Missa do Galo, a imagem da mulher-santa
ocupa uma boa parte do conto, mas aos poucos a santa vai se transformando em mulher-
sedutora, mulher-sereia. Desta forma, D. Conceição, embora seja uma pessoa boa, vai seduzir
e encantar o Sr. Nogueira a partir da fala, do olhar, o que nos faz transitar entre o divino e o
profano.

Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça


reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio
cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos
beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse nada;
ficamos assim alguns segundos. Em seguida, via-a endireitar a cabeça, cruzar
os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da
25
cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos.

Ao ser instaurada a imagem da mulher-sedutora no conto, a personagem feminina


deixa de ser tratada pelo narrador como a boa, a coitada, a ingênua, a santa, a inofensiva.
Inclusive os vocábulos que acompanham o ingresso desta mulher-pecado na narrativa nos
remetem à representação convencional do ato sexual: “enfiando os olhos por entre as
pálpebras meio cerradas”; “passava a língua pelos beiços, para umedecê-los”.
D. Conceição deseja transitar entre o privado e o público, ou seja, sair deste lugar em
que se encontra a sua vida conjugal e buscar um novo envolvimento amoroso, quem sabe...:
“De costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranquilas; agora, porém, ergueu-se
rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a
porta do gabinete do marido.”26 A mulher que despertava pena por parte do adolescente de
17 anos, agora o seduz. Seria uma forma de se vingar de seu marido? Ou quem sabe a inserção
de mais uma representação da mulher na literatura, a mulher-esfinge que amedronta o
homem que não consegue decifrar o enigma; imaturidade, talvez?
Esta sedução não é unilateral o mancebo também compactua deste jogo. Ele a observa
e é observado, demonstra-lhe desejo e é desejado, tenta “desvendar” o tecido que cobre o
corpo daquela mulher que o paralisa. Porém, quem se movimenta durante a conversação, que
mais parece uma relação sexual devido ao ritmo imposto pela narrativa – além da utilização de
vocábulos que lembram a luxúria como já foi evidenciado anteriormente – é D. Conceição, ele
fica estático, durante a maior parte do tempo, deslocando-se apenas para fugir daquela
mulher-esfinge.
Nos primeiros parágrafos da narrativa, o narrador vai ambientar o leitor. Depois, ele
fixa o olhar na D. Conceição que ainda estava vestida de santa. Quando a mulher-sereia,

25
Ib., p. 28.
26
Id., p. 29.
mulher-esfinge e mulher-sedutora entram na história o compasso passa a ser outro, ele vai
ficando sem fôlego e nós também, depois de passado o clímax, o ambiente de paz retorna,
como se ambos tivessem concluído o ato sexual e extasiados contemplando tudo que há em
volta, até serem acordados pelos gritos do vizinho lembrando a hora da Missa do Galo.

Havia, também, umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via
dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono
nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas
vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os
tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impressões
dessa noite, que me parecem truncadas ou confusas. Contradigo-me,
atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião,
ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os
braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs
uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia
dizer alguma cousa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio,
voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali
relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapé, falou de duas
27
gravuras que pendiam da parede.

Os dois quadros, conforme Sr. Nogueira, representam o principal negócio do Sr


Meneses, as mulheres. É interessante observar que D. Conceição chega aos quadros depois de
passar pelo espelho, neste caso, o narrador parece sugerir que a esposa do escrivão se via
refletida nas imagens daquelas duas mulheres – consideradas vulgares e dignas de enfeitarem
uma sala de barbeiro e não uma casa de família – uma delas era Cleópatra.
D. Conceição embora represente a figura da santa, da sedutora, da sereia, da esfinge,
da Cleópatra, ela não consegue se desvencilhar do lugar de submissão destinado à mulher. No
dia seguinte, retorna ao seu comportamento habitual, distante de tudo, sem demonstrar
muito interesse pelo seu companheiro de conversa da noite passada. Ela reassume o lugar no
pedestal criado pelo marido.
No final do conto, o marido é punido, morre de apoplexia, enquanto D. Conceição
casa-se com o seu escrevente juramentado. Na maioria dos textos em que há a consumação
do adultério por parte das mulheres, elas sofrem punição, neste caso a personagem feminina
saiu ilesa. Mais uma vez Machado surpreende o/a leitor/a.
Agora chegou o momento de você conhecer um outro Machado, o ácido, o pessimista,
como bem define Ubiratan Machado:

27
Id., p. 30.
O sofrimento físico e moral, a incerteza angustiosa quanto ao futuro,
amadurecem o artista, e aguçam o pessimismo do homem em relação à
crueldade da vida e à incerteza do destino humano. (...) Atormentado pela
idéia do nada, a indiferença da natureza, a precariedade de tudo, parece
deliciar-se em atirar ácido nas feridas alheias. Disseca com perversidade
28
satânica, mas com a elegância de um lorde, a alma de seus personagens.

Para isto escolhemos o conto Último capítulo29 que se encontra disponível na Biblioteca Virtual
da disciplina. Antes de continuar esta leitura, é fundamental que você conheça o conto em
análise.

Último Capítulo: a acidez da escrita machadiana

Analisar um conto machadiano, como você já deve ter percebido, é deveras um


encontro com a liberdade textual devido a sua maneira muito particular de estruturar um
texto, a qual nos possibilita mergulhar nas entrelinhas e escutar o silêncio do não dito para
compreender a essência do que queria ser explicitado com toda a liberdade que, por questões
sociais vivenciadas na época, era, por vezes, tolhida. Desta forma, pode-se desmembrar o
texto de Machado sem que se percam partes, já que em cada parágrafo defende-se uma nova
teoria, não havendo, portanto, preocupação com a estrutura textual linear, mas dando ênfase
à narrativa circular. Por estes motivos, podemos iniciar este estudo pelo desfecho do conto,
pois só assim o leitor poderá entender todo o processo desta análise e assim opinar sobre o
que será explicitado.

28
MACHADO, Ubiratan, op. cit., p. 25.
29
ASSIS, Machado de. Último capítulo. In: _____. Histórias sem data. Disponível em:
http://machado.mec.gov.br/arquivos/pdf/contos/macn004.pdf. Acesso realizado em: 08/out./2009.
A morte é a personagem mais viva do conto Último Capítulo, ela permeia toda a vida
caipora do narrador personagem, Matias Deodadato, um suicida que deixa seu testamento e
em seguida decide escrever um resumo autobiográfico para explicar o que foi defendido neste
documento responsável pelo destino dos seus míseros bens. As pessoas mais idosas e, às
vezes, mais sábias afirmam que minutos antes da morte o ser humano passa por uma espécie
de “melhora da morte”, ou seja, um momento de lucidez. Esta sabedoria popular servirá como
alicerce para a nossa leitura, pois foi no último capítulo da vida de Matias Deodato que ele
teve a visão de um incidente, que se transforma em o fio condutor de uma vida inteira.

Após entender que a felicidade não existia no nível terreno e que a grande saída seria
mergulhar nas avenidas da eternidade através da morte, ele presenciou um cidadão bem
trajado, mas bastante maltratado pela vida, exalando felicidade ao se deslumbrar com um par
de sapatos reluzentes que calçava os seus pés. Este homem, “o homem das botas”, parecia
não possuir um vintém no bolso, talvez nem tivesse almoçado, embora fosse quase meio-dia,
mas estava muito feliz. Assim, a personagem Matias descobre neste momento de lucidez “pré-
óbito” que a felicidade nada mais é que um par de botas.

Mas, o que vem a ser um par de botas? Respondendo de forma prática, o sapato é um
utensílio utilizado pelo ser humano a fim de proteger seus pés da agressividade dos terrenos
arenosos, pedregosos, cortantes, escaldantes, pelos quais caminhamos diariamente. Há outra
forma de responder esta questão, não me refiro à forma filosófica, mas àquela baseada na
“teoria da máscara” defendida por Alfredo Bosi, já que neste conto um par de botas não é
utilizado apenas como proteção, mas como máscara, os sapatos mascaram os pés, impedindo-
os de entrar em contato com o real, com o solo quente ou frio, arenoso, aveludado, liso ou
pedregoso. Desta forma, os pés mais finos, mais delicados, ausentes de rachaduras são
aqueles que quase não entram em contato com a realidade natural dos diversos tipos de solos,
ou seja, são os pés que se envolvem numa máscara constante. Já os pés que se encontram
repletos de rachaduras, fendas, às vezes, sangrentas demonstram, a olho nu, seu contínuo
atrito com a terra, o qual os tornou mais ásperos, mais duros, mais secos.30

Ninguém melhor do que a personagem principal do conto, o caipora Matias, para


servir como exemplo do “pé rachado”; pois aos oito anos de idade já percebeu que o seu pé
estava descalço – ao cair de uma rede de costas e quebrar o nariz – e o mais grave era saber
que os terrenos a serem trilhados eram longos e nada fáceis. Por começar com a avalanche de

30
Vale ressaltar que esta metáfora dos sapatos também pode ser empregada em relação à ascensão social, pois o
fato de calçar os pés indica status, já que os subalternos, os agregados ou (ex) escravos, andavam descalços,
demonstrando o lugar que ocupavam na sociedade.
mortes – morre pai, morre mãe, morre padre – enrijecendo “seus pés”. Além de sua condição
de órfão, Matias era pobre e possuía personalidade fraca, pois a maioria das decisões
importantes que tomava na vida era proveniente de opiniões sugeridas por terceiros, ele não
conduzia os seus próprios passos, ou seja, não era sujeito de sua história. Por este motivo,
quase sempre não sentia seus pés, já que era conduzido pelos pés dos outros, porém, mais
tarde, começou a sentir a consequência desses passos em falso.

Quando começa a sofrer as reações do solo arenoso e pedregoso em que está pisando
culpa o destino, pois se considerava um caipora por natureza. Nesta passagem, percebe-se a
falta de consciência da personagem em relação aos empecilhos sociais aliados às fraquezas do
ser humano (traição explícita do amigo com a noiva viúva, ou a implícita do seu melhor amigo,
Gonçalves com sua esposa Rufina).

Assim, a estrada percorrida por Matias continua árdua e longa, a morte que antes
tinha apenas se apresentado, agora fazia parte do seu convívio mais íntimo. A primeira mulher
por quem se interessou era viúva, ela possuía a morte no nome. Casou-se com D. Rufina, uma
mulher “morta viva”, zumbi, múmia, sem sentimentos, sonhos, sem vida, levava, pois, a morte
na sua essência. O filho nasce morto, mas conforta-se ao saber que este filho poderia ser tão
caipora quanto ele, pelo menos a morte o poupou.

Embora a morte seja a protagonista do conto, não é percebida a sua morbidez, pelo
contrário, é por sua causa que a vida começa a pulsar no texto. Após a morte de Rufina, Matias
vai realmente se sentir realizado sentimentalmente no casamento, acredita que a única forma
de ser de fato feliz é mergulhando na eternidade. Quando se encontra à beira deste abismo,
percebe que a felicidade resume-se em um par de botas reluzentes.

Depois de percorrer estas trilhas repletas de obstáculos, os pés nus de Matias se


encontram petrificados, secos, áridos, rachados. Se ao menos tivesse calçado alguma coisa
para se proteger destas pedras no meio do caminho... Talvez tivesse sido tão feliz quanto seu
melhor amigo Gonçalves, o qual vivia tudo numa total superficialidade e sabia ser hipócrita nas
horas devidas para que a felicidade nunca deixasse de perpetuar os seus passos. Neste
sentido, as coisas estavam todas fora do lugar, e isto não era culpa da sua “caiporice”...

Após ler alguns contos de Machado, iremos concluir esta Unidade com a leitura de um
dos romances mais extraordinários da Literatura Brasileira, Memórias Póstumas de Brás
Cubas.31 Caso você não tenha este livro impresso, ele está disponível na Biblioteca Virtual da
disciplina. Lembre-se: a leitura desta obra é fundamental para o acompanhamento do debate
sobre a importância da figura do leitor na produção literária de Machado de Assis.

Machado e os leitores: Memórias póstumas de Brás Cubas

O que faz do meu Brás Cubas um autor particular é o que ele


chama “rabugens de pessimismo”. Há na alma deste livro, por
mais risonho que pareça, um sentimento amargo e áspero,
que está longe de vir de seus modelos. É taça que pode ter
lavores de igual escola, mas leva outro vinho. Não digo mais
para não entrar na crítica de um defunto, que se pintou a si e a
outros, conforme lhe pareceu melhor e mais certo.

Machado de Assis, Prólogo de Memórias Póstumas de Brás


Cubas

A respeito do leitor na obra machadiana, Hélio de Seixas Guimarães afirma, em seu


livro Os leitores de Machado de Assis,32 que:

Ao definir o leitor como filho de Deus, pessoa, indivíduo, irmão, alma,


membro e praça, Machado de Assis chama a atenção para a complexidade e
o caráter escorregadio de uma figura que, sob a identidade nominal de
leitor, pode referir-se a seres de naturezas e funções diversas. Em suas
suposições estão incluídas desde noções do leitor como criação divina até
como categoria sociológica, num movimento que compreende gênese,
individuação e socialização. Aqui, o interesse maior está em flagrar o
escritor às voltas com uma definição de leitor que ultrapasse a empiria e

31
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Disponível em:
http://machado.mec.gov.br/arquivos/pdf/romance/marm05.pdf. Acesso realizado em: 22/out./2009.
32
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no
século 19. São Paulo: Nankin Editorial: Editora da Universidade de São Paulo, 2004.
aponte para uma figuração complexa construída a partir de mediações entre
seres, digamos, históricos e ficcionais. Essa procura de um status para a
figura do leitor constitui um dos esportes favoritos do narrador machadiano,
que se dedica a ele com assiduidade e afinco não só na crônica, mas
também na crítica, no conto e no romance. Em versão masculina ou
feminina, como crítico, bibliômano ou mesmo na condição de verme, ora
pacato, ora impaciente, por vezes amigo e por outras apontado como
adversário do narrador no jogo ficcional, o leitor é figura onipresente na
33
obra de Machado de Assis.

Em Memórias póstumas de Brás Cubas, você pôde observar que este diálogo com o
leitor introduz a narrativa, aparecendo antes mesmo do primeiro capítulo. Além de estar
presente nas diversas passagens da narrativa. Segue o prólogo ao leitor:

AO LEITOR

Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para


cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não
admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro
não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem
vinte e, quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na
verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei
a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei
se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra
de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da
melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse
conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas
aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não
achará nele o seu romance usual; ei-lo aí fica privado da
estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas
colunas máximas da opinião.

33
Id., p. 26.
Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o
primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O
melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz
de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito
contar o processo extraordinário que empreguei na
composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo.
Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário
ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te
agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar,
pago-te com um piparote, e adeus.

Brás Cubas.34

De acordo com Guimarães, este prólogo aponta algumas novidades no que diz respeito
ao tratamento do leitor como número e como opinião, além de indicar uma transformação no
modo de elocução do narrador, “que adota um tom mais ligeiro e coloquial, produzindo uma
significativa abreviação das unidades ficcionais.35 E você? Concorda com Hélio de Seixas
Guimarães? Aproveite para ler o capítulo “Brás Cubas e a textualização do leitor”36 na íntegra,
este texto está disponível na Biblioteca Virtual da disciplina. Assim você irá poder participar da
discussão sobre este romance de Machado. Boa Leitura!
Chegamos ao fim da primeira Unidade do material de Literatura Brasileira III, depois de
transitar na desconcertante produção literária de Machado de Assis. Agora chegou o momento
de você exercitar o que foi lido e discutido durante este momento do Curso, realizando a
Atividade de Aprendizagem sugerida no AVA.

34
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas..., op. cit., p. 02.
35
GUIMARÃES, op.cit., p. 180.
36
GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Brás Cubas e a textualização do leitor. In: _____. Os leitores de Machado de Assis: o
romance machadiano e o público de literatura no século 19. São Paulo: Nankin Editorial: Editora da Universidade de
São Paulo, 2004.
REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. O espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana. In: _____. Papéis Avulsos
(1882). Disponível em: http://machado.mec.gov.br/arquivos/pdf/contos/macn003.pdf. Acesso realizado
em: 03/out./2009.

_____. Missa de Galo. In: _____. Páginas recolhidas (1899). Disponível em:
http://machado.mec.gov.br/arquivos/pdf/contos/macn006.pdf. Acesso realizado em: 12/dez./2009.

_____. Último capítulo. In: _____. Histórias sem data (1884). Disponível em:
http://machado.mec.gov.br/arquivos/pdf/contos/macn004.pdf. Acesso realizado em: 08/out./2009.

_____. Memórias póstumas de Brás Cubas (1881). Disponível em:


http://machado.mec.gov.br/arquivos/pdf/romance/marm05.pdf. Acesso realizado em: 22/out./2009.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo, Unesp/Hucitec,
1993.

BUTLER, Judith. Sujetos de sexo/genero/deseo. In: CARBONELL, Neus; TORRAS, Meri (Compilación de
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Scott, G. Ch. Spivak, S. Winnett. Madri: Arco/Libros, S.L., 1999. p. 42.

CUNHA, Helena Parente. O desafio da fala feminina ao falo falocêntrico. In: RAMALHO, Cristina (Org.).
Literatura e feminismo: propostas teóricas e reflexões críticas. Rio de Janeiro: Elo, 1999. p. 162.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1986.

GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de


literatura no século 19. São Paulo: Nankin Editorial: Editora da Universidade de São Paulo, 2004.

HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, versão
1.0, 2001.

LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance: Um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica.
Tradução, posfácio e notas de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34. 2000.

_____. O Romance como Epopéia Burguesa. Revista Ad Hominem 1, Tomo III, Música e Literatura. São
Paulo, Estudos e Edições Ad Hominem, 1999.

MACHADO, Ubiratan. O enigma do Cosme Velho. In: Machado de Assis: uma revisão. Rio de Janeiro: In-
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PAES, José Paulo (org.). Transverso: coletânea de poemas traduzidos. Campinas: Editora da Unicamp,
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PICCHIO, Luciana Stegagno. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1997.

SANT’ANNA. Affonso Romano. O canibalismo amoroso:o desejo e a interdição em nossa cultura através
da poesia. 4 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p. 12.

VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira. Ministério da Cultura, Fundação Biblioteca Nacional,
Departamento Nacional do Livro, 1915. Disponível em:
<http://p.download.uol.com.br/cultvox/livros_gratis/historia_da_literatura_brasileira.pdf>. Acesso
realizado em 11/dez./2009.
UNIDADE II

À FLOR DA PELE: QUESTÕES DE RAÇA EM ALGUNS


CONTOS REALISTAS E NATURALISTAS

Apresentação

Nesta Unidade iremos discutir algumas narrativas produzidas a partir da segunda


metade do século XIX, a fim de proporcionar o entendimento da Literatura Brasileira como
questionamento e projeção da realidade nacional. A fim de sistematizar este segundo
momento da disciplina, optamos por uma temática, a raça, para selecionarmos alguns textos e
autores e assim conhecermos um pouco mais do momento sócio-político-cultural brasileiro
deste período.

Vale salientar que os textos que iremos discutir nesta Unidade são, na sua maioria, de
autores canônicos, estão no livro Questão de pele37 organizado por Luiz Ruffato. A respeito da
discussão de raça no cenário brasileiro, Ruffato afirma que:

37
RUFATTO, Luiz (Org.). Questão de pele. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009. (Coleção língua franca)
Há, ainda hoje, em certos círculos intelectuais, quem defenda a existência
de uma “democracia racial” no Brasil, tese nascida na década de 1930 e
rapidamente assimilada como ideologia nacional pela nossa tradição de
governos autoritários. Essa perspectiva – que relativiza a tragédia de mais
de três séculos de escravidão – sempre impediu uma discussão seria sobre a
questão do preconceito de cor em nosso país. Basta observar que, mesmo a
literatura, arte que busca transcender a hipocrisia, poucas vezes ousou
enfrentar o tema e, quando o fez, deparou-se com a incompreensão e/ou
38
desprezo da crítica.

Neste sentido, alguns autores afrodescendentes ficaram fora do cânone da Literatura


Brasileira. Mas o que está por trás desta inclusão? É interessante ressaltar que a crítica que
respalda a canonização de algumas obras ou autores se encontra escrita, institucionalizada,
respeitando o processo de valoração ocidental. Porém, no que diz respeito aos escritores
excluídos deste processo, estes não conseguem ultrapassar as muralhas da margem pelo fato
de, eventualmente, receberem uma crítica não especializada e ágrafa, centrada na oralidade.
Neste sentido, tais textos ficam no limbo da academia, já que não possuem o cartão de visitas
para ingressar nos debates nas salas de aula dos cursos de Letras. E quando são apresentados
em alguns cursos de Literatura, geralmente, inibem a maioria dos estudantes, pois não há uma
fortuna crítica sobre a obra em questão, para que possam se embasar e produzir um trabalho
acadêmico.

Assim, a luta pela inclusão implica em compreender o fato da boa literatura produzida
por estes grupos da margem, ainda, enfrentar tanta dificuldade para despertar o interesse do
mercado editorial e para ingressar nos programas acadêmicos, nos suplementos literários, nas
revistas de literatura, na produção acadêmica, nas áreas de pesquisa das pós-graduações e em
outros espaços relacionados aos processos de canonização. O que fazer para inverter esta
situação? Construir um cânone às avessas? Impondo leituras, buscando, assim, redirecionar o
olhar do/a leitor/a, já viciado/a no consumo do cânone ocidental?
Em 2005, foi lançada, através da Editora Agir, uma coletânea de narrativas e poesias de
autores da periferia dos grandes centros urbanos – dentre os escolhidos, há, somente, uma
mulher, proveniente da colônia de pescadores da cidade de Pelotas, do Rio Grande do Sul. Este
livro foi organizado por Ferréz, um dos principais ativistas das reivindicações dos moradores da

38
Id., p. 11.
favela, com o título de Literatura Marginal: talentos da escrita periférica. Segundo o
organizador:

Jogando contra a massificação que domina e aliena cada vez mais os assim
chamados por eles de “excluídos sociais” e para nos certificar de que o povo
da periferia/favela/gueto tenha sua colocação na história, e que não fique
mais quinhentos anos jogado no limbo cultural de um país que tem nojo de
sua própria cultura, a literatura marginal se faz presente para representar a
cultura de um povo, composto de minorias, mas seu todo uma maioria.
(...)Quem inventou o barato não separou entre literatura boa/feita com
caneta de ouro e literatura ruim/escrita com carvão, a regra é só uma,
mostrar as caras. Não somos o retrato, pelo contrário, mudamos o foco e
39
tiramos nós mesmos a nossa foto.

Ruffato ratifica as palavras de Ferréz ao afirmar que há um pequeno número de autores


afrodescendentes inscritos no cânone literário brasileiro – Machado de Assis (1839-1908), Cruz
e Souza (1861-1898), Lima Barreto (1881-1922) – o que já evidencia o lugar destinado ao negro
em nossa sociedade. Ele conclui:

Sem acesso à educação e acantonados no limiar da miséria, os


afrodescendentes não se constituíram como cidadãos; impedidos de agir
como sujeitos da própria história, sucumbiram, pela força da opressão, a
meros coadjuvantes da construção de uma identidade nacional. Raros são,
até pelo menos o último quartel do século XX, os romances ou contos
40
protagonizados por personagens afrodescendentes.

Prepare-se para conhecer algumas narrativas que discutem esta temática e, assim,
aprofundar seus conhecimentos a respeito da produção literária da segunda metade do século
XIX da Literatura Brasileira a partir de alguns autores representantes do Realismo e do
Naturalismo.

39
FERRÉZ. Terrorismo literário. In: _____. (Org.). Literatura marginal: talentos da escrita periférica. Rio de Janeiro:
Agir, 2005. p. 09-11.
40
RUFATTO, op. cit., p. 12.
Manuel de Oliveira Paiva

Iniciaremos este percurso lançando um olhar mais atento na trajetória literária de


alguns escritores do Naturalismo, dentre eles o cearense Manuel de Oliveira Paiva. Em História
concisa da literatura brasileira41, Alfredo Bosi ao tratar do contexto sócio-político-cultural que
influenciou o Naturalismo afirma que:

Do Ceará, terra de Adolfo Caminha, também provieram outros naturalistas


que dariam à região da seca e do cangaço uma fisionomia literária bem
marcada e capaz de prolongamentos tenazes até o romance moderno.
Manuel de Oliveira Paiva, Domingos Olímpio, Rodolfo Teófilo e, pouco
depois, Antônio Sales, abeiraram-se do interior cearense num período em
que tudo concorria para acelerar o declínio do Nordeste, desde as repetidas
secas (a de 77, por exemplo, passou a leitmotiv da poesia oral), até a
conjuntura econômica, que atraía para novos ímãs de riqueza, como o café
em São Paulo e a borracha na Amazônia, boa parte da população rural.

Fortaleza conheceu, nos primeiros anos do Realismo, uma vida literária


ativa, fermentada por ideais abolicionistas e republicanos: é sabido que o
Ceará foi a primeira província brasileira a libertar os escravos, em 1884. Data
de 1872 a fundação de uma Academia Francesa e entre esta e o grupo
militante da Padaria Espiritual, reunido em 1892, formaram-se vários
grêmios onde se colava a moda naturalista às lutas ideológicas do tempo,
42
políticos e literários, que deram abrigo a contos e ensaios.

41
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1983.
42
Id., p. 217-218.
Manuel de Oliveira Paiva (1861-1892) cursou o ginásio no Seminário do Crato. Mudou-
se para o Rio de Janeiro onde começou a frequentar a Escola Militar, mas teve de retornar à
terra natal em 1883, devido a problemas pulmonares. Participou ativamente na luta
abolicionista e fez jornalismo literário ao colaborar no jornal Libertador. Destacou-se, também,
como membro do Clube Literário. Por volta de 90, quando a sua saúde fica mais debilitada, vai
para o interior do Ceará, onde escreve seus dois romances: Dona Guidinha do Poço (1891) e A
Afilhada (1889). Para Lúcia Miguel-Pereira a responsável pelo prefácio da sua obra mais
significativa Dona Guidinha do Poço, “Oliveira Paiva era prosador terso, que sabia descrever e
narrar com mão certeira e intervir no momento azado com talhos irônicos de inteligência fina
e crítica”.43 Vale salientar que a sua obra mais significativa só teve publicação após sua morte.
Agora você poderá conhecer a escrita de Oliveira Paiva através do segundo capítulo de Dona
Guidinha.

Capítulo II

Estava-se em fevereiro, e nem um pingo de água. O poço da


Catingueira, o mais onça da ribeira de Banabuiú, que em 1825 não
pôde esturricar, sumia-se quase na rocha, entre as enormes oiticicas,
de um lado, e do outro o saibro do rio. Era um trabalhão para os
pobres vaqueiros: aqui, levantar uma rês caída; ali, fazer sentinela nas
aguadas a fim de proteger o gado amofinado contra a crueldade do
mais forte; e, todos os dias que dava Nosso Senhor, cortar rama. E
ainda tinham de percorrer constantemente as veredas e batidas para
acudir prontamente à rês inanida de fome e sede, perseguir os porcos
que algum desalmado vizinho teimava em criar, persegui-los a bala,
porque o torpe cabeça-baixa impestava os bebedouros.

43
Id., p. 218.
Era preciso o vaqueiro da Guidinha tornar-se ubíquo, para o que
ocupava os seus filhos e alguns escravos do amo. O boi com a vista do
homem parecia reanimar como se tivera consciência de que ambos
padeciam sob a indiferença do mesmo céu.

E estão, só ali, no espaço de três léguas, cinco fazendas.


Ajuntem a isto as retiradas, que procedem do sertão do Canindé, do
Quixadá, e de tantos outros, e vejam se é possível em tão pouca terra,
com tão pouca rama e pouca água, ter o bastante para tanta boca.

Além da sequidão, o mal, desenvolvido na bebida infeccionada


pelos amaldiçoados paquidermes e pelo contágio doentio da rês
viajada. Só o Major Quinquim Damião do Poço da Moita perdera, até
ali, cinqüenta vacas amojadas, isso apesar dos vaqueiros passarem
todo o dia a tratar do gado. Quanto mais não perdiam os outros que
não se apuravam tanto?

Fizeram-se todos os remédios para chover. O vigário da


freguesia, cuja sede ficava a três léguas e um quarto, além das preces
que a Santa Madre Igreja aconselha, consentiu que o povo, em
procissão, mudasse a imagem de Santo Antônio da matriz para a
capela de Nossa Senhora do Rosário, que era o melhor jeito a dar para
Deus Nosso Senhor ensopar a terra com água do céu. Todavia, apesar
de as seis pedrinhas de sal, da noite de Santa Luzia, 13 de dezembro,
terem marcado inverno para fevereiro, o dito céu permanecia
implacável.

Entrou março, novenas de São José.

O calor subira despropositadamente. A roupa vinha da lavadeira


grudada do sabão. A gente bebia água de todas as cores; era antes
uma mistura de não sei que sais ou não sei de quê. O vento era quente
como a rocha nua dos serrotes. A paisagem tinha um aspecto de pêlo
de leão, no confuso da galharia despida e empoeirada, a perder de
vista sobre as ondulações ásperas de um chão negro de detritos
vegetais tostados pela morte e pelo ardor da atmosfera. As serras
levantavam-se abruptamente, sem as doces transições dos
contrafortes afofados de verdura.

Serrotas pareciam umas cabeças de negro peladas de caspa. Ao


meio-dia a cigarra vinha aumentar a impressão ardente. Os bandos de
periquitos e maracanãs atravessavam o ar, em busca do verde,
espalhando uma gritaria desoladora, sem um acento de úmida
harmonia, sem uma doce combinação melódica, no ritmo seco, árido,
torrefeiro, de golpes de matraca. O viajante, ao caminhar por algum
souto de angicos e paus-d'arco, sem uma folha, penetrava
instintivamente com o olhar por entre os troncos e garranchos com
uma sede, já não de água, mas de uma notazinha vibrada por goela de
pássaro cantor. Lá uma rolinha, lá um quenquém apenas piando.

O pobre emigrava como as aves, que vivem ambos do suor do


dia. Eram pelas estradas e pelos ranchos aquelas romarias, cargas de
meninos, um pai com o filho às costas, mães com os pequenos a
ganirem no bico dos peitos chucados — tudo pó, tudo boca sumida e
olhos grelados, fala tênue, e de vez em quando a cabra, a derradeira
cabra do rebanho, puxada pela corda, a berrar pelos cabritos.

Margarida era extremamente generosa para os retirantes que


passavam pela sua fazenda. O que lhes pedia era que não ficassem;
dava-lhes com que se fossem caminho fora a procurar salvação nas
praias, que era só para onde a Rainha olhava. Tinha duas escravas
incumbidas unicamente de servi-los, já a dar leite cozido às
criancinhas, já a passar na água alguns molambos que as pobres mães
não tinham força para lavar, agora a armar-lhes redes no telheiro da
casa de farinha, agora a fornecer-lhes carne-seca, farinha e rapadura.

Mas que se fossem pelo amor de Deus! Bem sabia ela que dois
dias depois o retirante se tornava agregado. E agregado para quê?

Em vindo o inverno, arribavam todos para os seus sertões, e


adeus minhas encomendas. Além disso, gente de toda a parte, até do
Rio Grande do Norte e Paraíba, e quem sabe quantos assassinos?

O marido levava a mal aquela prodigalidade caritativa, mas lho


fez ver em muitos bons termos, com umas delicadezas de quem quer
bem.

Margarida calou-se; e continuou, na expansão natural de uma


vontade sua. Até, pelo contrário, parecia tornar-se mais mãos abertas
para com os famintos. Terceira admoestação do marido. Então ela
voltou-se-lhe friamente:

— Eu dou do que é meu.


— E agora, Senhor Quinquim, que responder-lhe?
resp lhe? — murmurou
consigo o major. Ela dá do que é seu! Dá do que é seu!

Era a primeira vez que a mulher lhe falava com menos respeito.
Se arrependimento salvara... Mas para que a provocou? Para que a
atacou de frente? Bem lhe conhecia a índole. Margarida
Margarida era como um
palácio cuja fachada principal desse para um abismo. Só havia
penetrar-lhe
lhe pela insídia, pelas portas travessas.

O homem quando a desposara possuía apenas alguns vinténs de


seu. Reconhecia que para viver com a mulher precisava de ter uma
certa
rta habilidade, faculdade essa que lhe era porém inacessível. Amara
à Margarida em demasia, creio, e o vigor nervudo e musculento da
herdeira do marinheiro Reginaldo Venceslau era como um moirão a
que o Senhor Quinquim se deixara gostosamente sujigar.44

Agora é
com Caso você queira conhecer este romance de Oliveira Paiva, ela encontra-se
encontra
disponível no seguinte endereço eletrônico:
você
http://www.nead.unama.br/site/bibdigital/pdf/oliteraria/128.pdf
Acesso realizado em: 24/out./2009.

Após conhecer um pouco da escrita de Oliveira Paiva, segue um trecho do conto O


ódio que aborda a temática selecionada para esta Unidade.

O ÓDIO

Junto à amurada engoiava-se


engoiava se uma gaiola de paus,
onde, como um pêndulo, sombras de velas e cordagens
iam e vinham vagarosamente ao bel prazer da flutuação.
Rondava dentro da jaula um gato maior que um
cachorro grande.
Perto, quando clareava, reluzia o olhar de um negro,
acocorado no sopé do mastro, com as mãos cruzadas

44
PAIVA, Manuel de Oliveira. Dona Guidinha do Poço. Disponível em:
http://www.nead.unama.br/site/bibdigital/pdf/oliteraria/128.pdf.. Acesso realizado em: 24/out./2009.
http://www.nead.unama.br/site/bibdigital/pdf/oliteraria/128.pdf
abarcando os joelhos.
Via-se bem o animal preso, movendo-se com pés de
seda e garbo de mulher.
Passeava desdenhosamente. Amarelo fulvo,
lindamente mouriscado com patacos pretos, como não há
veludo. Quando alguém aproximava-se, a fera largava
uma roncaria por entre presas, e dava botes nos paus, ex-
plodindo bufidos espantosos.
O comandante muitas vezes desanuviava a sua cerveja
fazendo-se espectador da eterna aversão e tolhido
orgulho do bicho feroz, de cujo cativeiro abusavam;
faziam-se trejeitos, cutucavam com um bastão, davam-
lhe um pau a morder, de modos que o animal parecia
chorar de raiva.
O piloto, muito chalação, desandava-lhe
descomposturas:
— Anda lá marafona! Pensavas qu'isto qu'era a furna?
Olhe que ela pega-o, comandante!
E daí, amabilizava com uns nomes feios — filha desta,
filha daquela, como se fosse entre duas pessoas:
— Eu não lhe tenho medo, porque lá arrebentar esse
nicho é o que ela não pilha.45

Você poderá ler este miniconto na íntegra, além de outros que discutem a questão da
raça, acessando a Biblioteca Virtual da disciplina. Boa leitura.

Agora você irá conhecer um pouco mais da vida e obra de outro escritor deste período,
Afonso Arinos.

45
PAIVA, Manuel de Oliveira. O ódio. Obra completa. Rio de Janeiro: Graphia, 1993. Disponível em:
http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/arquivos/texto/0006-02233.html. Acesso realizado em: 21/out./2009.
Afonso Arinos

Afonso Arinos de Melo Franco nasceu em Paracatu, Minas Gerais, em 1868. É


considerado, por Alfredo Bosi, o primeiro escritor regionalista de real importância deste
período. Bosi ao situar a obra de Arinos afirma que:

Histórias e quadros sertanejos constituem o grosso de seu livro Pelo Sertão.


Não se lhe pode negar brilho descritivo, não obstante a minudência pedante
e não raro preciosa da linguagem. No afã de caracterizar paisagens e
ambientes, chega a distrair a atenção do leitor, perdendo em força os
efeitos patéticos dos finais. Nele, é evidente um compromisso entre os
46
processos descritivos do Realismo e o sal vernaculizante dos parnasianos.

Alexandre Lazzari, em um artigo sobre a importância da produção literária de Afonso


Arinos para a formação de uma identidade nacional a partir do contexto histórico-político-
social, afirma que:

Afonso Arinos de Melo Franco pode ser considerado, à primeira vista, um


escritor que teve uma atitude singular no contexto literário brasileiro do
final do século XIX. Seus contos narram histórias de tipos rudes do sertão e
valorizam as tradições rurais e o passado da nação, escolhas que parecem
destoar dos valores da “belle epoque” brasileira, com seus desejos de
progresso e sofisticação urbana à moda européia. Mas ele também pode ser
visto como um significativo representante de uma tendência menos
valorizada pela opinião dominante à época, voltada para o folclore e as
tradições regionais, mas que se manteve acesa de forma dispersa entre os
homens de letras, tanto das diferentes regiões como na capital do país. É o
que pretendo mostrar com minha pesquisa de pós-doutorado que tem o
objetivo de comparar autores oriundos de diferentes regiões do Brasil que
se destacaram por relacionar a identidade nacional com a representação de
47
sua terra natal.

Afonso Arinos foi membro da Academia Brasileira de Letras no ano de 1903 e a sua
produção literária é assim composta: Pelo sertão (1898); Os jagunços (1898); Notas do dia
(1900); O mestre de campo (póstumo, 1918); Histórias e paisagens (póstumo, 1921).

46
BOSI, op. cit., p. 234.
47
LAZZARI, Alexandre. Longe do sertão: literatura, política e nacionalismo em Afonso Arinos. Disponível em:
http://www.encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1212974142_ARQUIVO_TEXTOALEXANDRELAZZA
RI-Longedosertao.pdf. Acesso realizado em: 12/out./2009.
Agora você poderá acessar o AVEA do Curso e ler o conto Pedro Barqueiro que está
disponível na Biblioteca Virtual da disciplina Literatura Brasileira III. Aproveite para estabelecer
algumas comparações com outros textos que apresentam personagens negras. É interessante
observar a maneira como estas personagens são exploradas. Conceição Evaristo, ao refletir
sobre a presença/ausência do negro presentes no discurso literário brasileiro, afirma que:

...como um campo simbólico por excelência (...) a literatura nos oferece a


oportunidade de apreensão de um imaginário construído acerca do sujeito
negro na sociedade brasileira. Mesmo como fenômeno específico,
percebemos um discurso lierário que, coincidentemente, ao construir seus
personagens negros, o faz sob a mesma ótica do pensamento e das relações
raciais brasileiras, do Brasil colônia à conteiporaneidade. Há ainda a forte
tendência em inviabilizar o negro, afirmativa que é facilmente verificável. Se
levarmos em consideração a quantidade de obras que compõe a literatura
brasileira percebemos que o personagem negro aparece bem menos como
protagonista em relação ao personagem branco e surge muito mais como
coadjuvante ou mesmo como antagonista do personagem central. E quando
essa representação incide sobre a mulher negra, se evidenciam de modo
bastante contundente as tensões nem sempre desmascaradas do jogo
48
ambíguo da democracia racial brasileira.

No próximo item desta Unidade iremos tratar de uma escritora não canônica, Maria
Firmina dos Reis. Nesta ocasião, você terá a oportunidade de ler um de seus contos que
apresenta como personagem uma mulher negra. Aproveite, portanto, para transitar por este
universo da Literatura Brasileira tão pouco explorado.

48
EVARISTO, Conceição. Questão de pele para além da pele. In: RUFATTO, Luiz (Org.) Questão de pele: contos sobre
o preconceito racial. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009. (Coleção língua franca). p. 20.
Maria Firmina dos Reis

Maria Firmina dos Reis nasceu na Ilha de São Luís, no Maranhão, em 11 de outubro de
1825. Em 1859, publicou a narrativa Úrsula, primeiro romance abolicionista e um dos
primeiros escritos por mulher brasileira. A partir desde período, começou a colaborar
assiduamente com vários jornais literários. No jornal O Jardim dos Maranhenses, publica o
romance indianista Gupeva, em 1861. Entre as suas narrativas, destaca-se o conto A escrava,
em 1887. Além da obra em prosa, foram divulgados, igualmente, muitos poemas nos vários
jornais em que colaborou.49

Zahidé Lupinacci Muzart ao tratar da autoria feminina no século XIX faz a seguinte
observação a respeito do romance Úrsula:

A questão da Abolição vai ser quase um leit-motiv da pena feminina, mas


somente com este romance, teremos uma visão diferente do problema. O
livro, por ter sido editado na periferia, e por ser de uma mulher e negra,
lastimavelmente, não teve maior repercussão. Foi publicado sob o
pseudônimo Uma Maranhense, em 1859. Publicar sob pseudônimo era
quase de praxe entre as mulheres, que assim se escondiam e se
50
resguardavam de possíveis ataques e maledicências.

Esta é de fato a obra mais significativa de Maria Firmina dos Reis, como também expõe
Eduardo de Assis Duarte, especialista em literatura afro-brasileira:

No prólogo de Úrsula, a autora afirma saber que “pouco vale este romance,
porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada
e sem o trato e conversação dos homens ilustrados.” Por trás dessa

49
MUZART, Zahidé Lupinacci. Maria Firmina dos Reis. In: _____ (Org.). Escritoras brasileiras do século XIX: antologia.
Florianópolis: Editora Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 1999. p. 264.
50
Id., p. 266.
declaração de modéstia, a escritora revela sua condição social: o fato de não
ter estudado na Europa, nem dominar outros idiomas, como era comum
entre os
os homens educados de sua época, por si só indica o lugar que ocupa
na sociedade em que nasceu. É desse lugar intermediário, mais próximo da
pobreza que da riqueza, que Maria Firmina corajosamente levanta sua voz
através do que chama “mesquinho e humilde livro”.
livro”. E, mesmo sabendo do
“indiferentismo glacial de uns” e do “riso mofador de outros”, desafia:
51
“ainda assim o dou a lume”.

Agora é
com Caso você deseje conhecer mais a literatura afro
afro-brasileira,
brasileira, visite o seguinte endereço
eletrônico:
você
http://www.letras.ufmg.br/literafro/frame.htm
acesso realizado em 12/dez./2009

Agora que você conheceu um pouco mais da produção literária que aborda de alguma
maneira a questão racial, concluindo com Maria Firmina dos Reis, chegou o momento de
conhecer outras autoras que estão à margem, ou seja, que não aparecem na historiografia
literária brasileira. Até aqui analisamos apenas a prosa deste período, agora aproveite para
conhecer a poesia através de algumas
algumas escritoras do século XIX que foram excluídas do
processo de canonização: Delminda Silveira; Josefina Álvares de Azevedo; Narcísia Amália;
Adelaide de Castro Alves Guimarães; Francisca Júlia; Júlia da Costa. Estes textos estão
disponíveis na Bibliotecaa Virtual desta disciplina. Boa leitura!!

REFERÊNCIAS

BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1983.

DUARTE, Eduardo de Assis. Maria Firmina dos Reis e os primórdios da ficção afro-brasileira
afro
(Posfácio). In: REIS, Maria Firmina dos. Úrsula.. Florianópolis: Ed. Mulheres; Belo Horizonte:
PUC Minas Editora. Disponível em: http://www.editoramulheres.com.br/ursulaposfacio.htm.
http://www.editoramulheres.com.br/ursulaposfacio.htm
Acesso realizado em: 21/nov./2009.
21/nov.

51
DUARTE, Eduardo de Assis. Maria Firmina dos Reis e os primórdios da ficção afro-brasileira
afro brasileira (Posfácio). In: REIS,
Maria Firmina dos. Úrsula.. Florianópolis: Ed. Mulheres; Belo Horizonte: PUC Minas Editora. Disponível em:
http://www.editoramulheres.com.br/ursulaposfacio.htm Acesso realizado em: 21/nov./2009.
http://www.editoramulheres.com.br/ursulaposfacio.htm.
EVARISTO, Conceição. Questão de pele para além da pele. In: RUFATTO, Luiz (Org.) Questão de
pele: contos sobre o preconceito racial. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009. (Coleção língua
franca).

FERRÉZ. Terrorismo literário. In: _____. (Org.). Literatura marginal: talentos da escrita
periférica. Rio de Janeiro: Agir, 2005. p. 09-11.

LAZZARI, Alexandre. Longe do sertão: literatura, política e nacionalismo em Afonso Arinos.


Disponível em:
http://www.encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1212974142_ARQUIVO_TEX
TOALEXANDRELAZZARI-Longedosertao.pdf. Acesso realizado em: 12/out./2009.

MUZART, Zahidé Lupinacci. Maria Firmina dos Reis. In: _____ (Org.). Escritoras brasileiras do
século XIX: antologia. Florianópolis: Editora Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 1999. p.
264.

PAIVA, Manuel de Oliveira. O ódio. Obra completa. Rio de Janeiro: Graphia, 1993. Disponível
em: http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/arquivos/texto/0006-02233.html. Acesso realizado
em: 21/out./2009.

_____. Dona Guidinha do Poço. Disponível em:


http://www.nead.unama.br/site/bibdigital/pdf/oliteraria/128.pdf. Acesso realizado em:
24/out./2009.

POLINÉSIO, Julia Marchetti. O distanciamento narrativo em dois escritores regionalistas:


Coelho Neto e Afonso Arinos. In: _____. O conto e as classes subalternas. São Paulo:
Annablume, 1994.

RUFATTO, Luiz (Org.). Questão de pele: contos sobre o preconceito racial. Rio de Janeiro:
Língua Geral, 2009. (Coleção língua franca)
Prezados/as alunos/as!

Chegamos ao final da disciplina. Durante este tempo, você teve a oportunidade


de conhecer um pouco mais da produção literária realizada a partir da segunda
metade do Século XIX.

Inicialmente, você teve um contato com a prosa ficcional de um dos mais


significativos prosadores da Literatura Brasileira, Machado de Assis. Nesta ocasião,
aproveitei para analisar alguns dos seus contos e romances, observando a linguagem
irônica e a (re)significação da estrutura narrativa realizada por este autor.

Após experimentar a acidez da escrita machadiana no contexto de um Brasil


oitocentista, na segunda Unidade, você entrou em contato com algumas narrativas do
final do século XIX que abordavam a questão de raça. Este tema foi trabalhado a partir
das narrativas de Manuel de Oliveira Paiva, Afonso Arinos e Maria Firmina dos Reis.
Encerramos, portanto, a disciplina sugerindo alguns poemas de autoria feminina que
não constam no cânone da Literatura Brasileira.

Vale a pena destacar a necessidade de estabelecer uma relação entre o


conteúdo trabalhado durante estes meses e a forma como você poderá desenvolvê-lo
em sala de aula e, assim, (re)pensar o seu papel enquanto professor/a de Literatura.
REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. O espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana. In: _____. Papéis
Avulsos (1882). Disponível em:
http://machado.mec.gov.br/arquivos/pdf/contos/macn003.pdf. Acesso realizado em:
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_____. Missa de Galo. In: _____. Páginas recolhidas (1899). Disponível em:
http://machado.mec.gov.br/arquivos/pdf/contos/macn006.pdf. Acesso realizado em:
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_____. Último capítulo. In: _____. Histórias sem data (1884). Disponível em:
http://machado.mec.gov.br/arquivos/pdf/contos/macn004.pdf. Acesso realizado em:
08/out./2009.

_____. Memórias póstumas de Brás Cubas (1881). Disponível em:


http://machado.mec.gov.br/arquivos/pdf/romance/marm05.pdf. Acesso realizado em:
22/out./2009.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo,


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DUARTE, Eduardo de Assis. Maria Firmina dos Reis e os primórdios da ficção afro-brasileira
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GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o


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HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro:


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Disponível em:
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LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance: Um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da


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MACHADO, Ubiratan. O enigma do Cosme Velho. In: Machado de Assis: uma revisão. Rio de
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PAES, José Paulo (org.). Transverso: coletânea de poemas traduzidos. Campinas: Editora da
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em: 21/out./2009.

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http://www.nead.unama.br/site/bibdigital/pdf/oliteraria/128.pdf. Acesso realizado em:
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Annablume, 1994.

RUFATTO, Luiz (Org.). Questão de pele: contos sobre o preconceito racial. Rio de Janeiro:
Língua Geral, 2009. (Coleção língua franca)

SANT’ANNA. Affonso Romano. O canibalismo amoroso:o desejo e a interdição em nossa


cultura através da poesia. 4 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. p. 12.

VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira. Ministério da Cultura, Fundação Biblioteca


Nacional, Departamento Nacional do Livro, 1915. Disponível em:
<http://p.download.uol.com.br/cultvox/livros_gratis/historia_da_literatura_brasileira.pdf>.
Acesso realizado em 11/dez./2009.

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