Locke - Segundo Tratado Do Governo
Locke - Segundo Tratado Do Governo
Locke - Segundo Tratado Do Governo
John Locke
[5]
É precisamente na medida em que se afastam do mundo
concreto ou de opções políticas concretas, eventualmente populares
num determinado período, para nos disponibilizarem paradigmas
de organização social e política capazes de nortear as nossas opções,
que as grandes obras adquirem uma dimensão que as projecta
para além do tempo e das circunstâncias em que foram redigidas,
e assumem um valor que resiste ao próprio tempo. Quando tal
acontece, os seus autores superam as contingências da conjuntura
histórica em que lhes é dado viver, libertando-se, assim, da "lei da
morte". Porém, e paradoxalmente, quanto maior é o fascínio de
uma obra, maiores, mais díspares e mais complexas são as leituras
a que dá origem . E quanto maior a estatura de um autor, maiores
as dificuldades que esperam quem o procure situar, muito em
particular tratando-se de alguém que, durante toda a sua vida,
primou pela privacidade e por permanecer para aquém do escrutí-
nio público e, após a morte, atraiu a atenção de um número sempre
crescente de comentaristas.
É o caso, manifestamente, do texto que agora se publica e do
seu autor.
[6]
com a perspectiva escolástica que, na altura, enformava os estudos
filosóficos, cultiva os novos saberes, então em emergência. Interessa-
-se em particular pela medicina, disciplina que viria a ter um
impacto directo sobre a sua vida, embora nunca tivesse exercido
a actividade. Foi professor de Grego, de Retórica, de Latim e de
Filosofia, cultivando ao mesmo tempo uma aproximação à inves-
tigação que se começava a desenvolver, na química e na medicina
em particular, o que lhe granjeia a eleição para a Real Sociedade,
em 1668.
Entre 1660 e 1662 redige os seus primeiros textos, os
Two Tracts on Government, bastante afastados das teses
liberais que viria a adoptar, nunca publicados durante a sua vida.
Um ano mais tarde, escreve os Essays on the Law of Nature,
provavelmente como sebenta para uma cadeira. Notáveis pelo seu
pendor empiricista, pela negação de ideias inatas, apresentam já o
gérmen do que viria a ser a filosofia do conhecimento do Essay
Concerning Human Understanding 1.
Ainda em 1663, recusa a carreira eclesiástica, contra-
riamente ao que se esperava de quem pretendia uma carreira
académica, e, no ano seguinte, experimenta uma actividade nova,
partindo numa missão diplomática junto do eleitor de Bran-
deburgo. A experiência não lhe deve ter sido particularmente grati-
ficante, uma vez que recusou dar-lhe continuidade, optando, antes,
por regressar a Oxford. É por esta altura que descobre Descartes,
que lê com gosto, vendo nele uma alternativa à escolástica, o que
o leva a dedicar-se à Filosofia.
Locke conheceu Lorde Ashley, mais tarde Conde de Slu:iftes-
bury, em Oxford, em 1662. E os dois travaram de imediato relações
de amizade. Quatro anos mais tarde, haveriam de voltar a encontrar-
-se, e desta vez os caminhos de ambos cruzar-se-iam diftnitivamente.
[7]
Graças ao envolvimento directo de Sluiftesbury, Locke consegue
uma dispensa real que lhe assegura o lugar em Oxford, mesmo
sem ordenação sacerdotal. Em Julho de 1666, encontrando-se Lorde
Ashley gravemente doente, Locke aconselha uma delicada interven-
ção cirúrgica, que dirige pessoalmente, salvando-lhe a vida de forma
quase milagrosa. A partir de então passa a viver com ele, como
médico privado, como secretário pessoal e como assessor.
Exerceu, durante algum tempo, as funções de Secretário
do Conselho de Comércio e Plantações. E, se bem que não seja
possível distinguir com precisão as partes do texto que são da sua
autoria daquelas que lhe terão sido ditadas por Sluiftesbury, Locke
esteve envolvido na redacção da Constituição da colónia da
Carolina. São igualmente deste período dois textos de Locke. O
primeiro, é o An Essay concerning Tolerance, um pequeno
ensaio onde se começa a notar uma viragem liberal no seu pensa-
mento. O segundo tem por título Some of the Consequences
that are like to follow upon the Lessening of Interest to
4 Per Cent. E, embora não seja fácil datá-las com precisão, as suas
primeiras reflexões em matéria de filoscifia do conhecimento seguir-
-se-ão pouco depois. Reportamo-nos aos textos que ficariam
conhecidos como Drafts A e B, o último dos quais data de 1671 .
A associação a Shajtesbury marcou Locke indelevelmente,
começando a fazer-se sentir de imediato. Transportando-o para a
vida política do seu tempo, permitiu-lhe, simultaneamente, o
contacto com a actividade política - o que lhe ofereceu a oportuni-
dade de conhecer de perto os seus meandros concretos-, e o distan-
ciamento necessário para poder reflectir sobre ela. Shajtesbury era
uma das figuras mais influentes da época, e das mais controversas
também , e, para além disso, os tempos que corriam eram ainda
particularmente conturbados, caracterizados pela censura, pela
intolerância e pelo conflito pela sucessão dinástica . Eram tempos
em que as ideias políticas de um homem o podiam levar à desgraça
e, inclusivamente, ao cadafalso.
Entre 167 6 e 1675, Locke encontra-se embrenhado
nos negócios e na actividade política de Sluiftesbury. Em 1675,
[8]
Sluiftesbury é já líder da oposição ao absolutismo real. É nesta
altura que Locke parte para o continente europeu, onde perma-
neceu, viajando muito. Não se conhecem ao certo os motivos reais
da deslocação e, no dizer de David Wootton, não podemos ter
a certeza de qual a melhor maneira de o descrever durante este
período, se como 'filósofo convalescente", "exilado político", ou
"agente secreto" ao serviço de Shqftesbury2. Certo é, no entanto,
que Locke aproveitou esse período, para cultivar relações com as
principais figuras do seu tempo e aprofundar o estudo da filosofia
que se fazia no continente europeu, do cartesianismo, em parti-
cular. Durante a sua estadia em França tem oportunidade de
continuar a trabalhar a sua filoscifia do conhecimento e escreve
um ensaio intitulado De Intellectu.
Ao regressar a Londres, na primavera de 1679, encontra a
vida política inglesa em ebulição e o país profundamente dividido.
A liderar afacção Wig, liberal, Shajtesbury encontra-se no âmago
da luta política, e a ele junta-se Locke. Depois de passar um
ano preso na Torre de Londres por se opor ao rei, Shajtesbury
é nomeado para o governo, envolvendo-se nas conspirações maqui-
nadas para assegurar a exclusão do católico Jaime ao trono
protestante inglês, dentro e fora do Parlamento. A sua ligação a
Shajtesbury torna-o suspeito. Em 1681, Shqftesbury é novamente
preso, ficando os seus associados expostos. Um dos seus apoiantes,
Stephen College, é preso por apelar a que o Parlamento assuma o
controlo do poder e que o rei o respeite. E quando um júri lon-
drino o iliba, a coroa leva o julgamento para Oxford, onde ele é
condenado e executado. O próprio Shqftesbury é preso, acusado
de alta traição, e são enviados espiões para vigiar de perto os
movimentos de Locke.
[9]
Shajtesbury é entretanto absolvido e libertado - quando
deixa de constituir ameaça séria. No entanto, o período revolucio-
nário e conspiratório perdura . Em Julho de 1683, é descoberto o
conhecido "Rye House Plot'', visando prender e neutralizar o rei,
Carlos II, e o irmão, Jaime. Não é possível identificar com rigor
o grau de envolvimento de Locke na conspiração. Todavia, justi-
ficada ou injustificadamente, ele ter-se-á sentido em perigo. E
acabaria por ver os principais conspiradores pagarem a temeridade
com a vida. N o julgamento de um deles, Algernon Sidney, uma
das peças principais que haveriam de conduzir à pena de morte é
o livro, Discourses concerning Government, onde apresenta
princípios e ideais políticos não muito diferentes daqueles difen-
didos por Locke.
Nesse mesmo período, Locke terá testemunhado aquela que
acabaria por ser a última queima de livros na Inglaterra, no pátio
da sua Universidade, muitos deles títulos que ele próprio possuía
na sua biblioteca. Duas semanas mais tarde, abandona defini-
tivamente Oxford. Pouco depois, consegue fugir para a Holanda,
de forma completamente inesperada e com total secretismo, uma
semana antes da coroa começar a prender os conspiradores. Prender,
julgar e executar.
No prifácio que preparou para os Dois Tratados do
Governo, Locke manifesta a esperança de que a obra pudesse
contribuir para legitimar o poder do novo monarca inglês, o rei
Guilherme. Algumas passagens, curtas, terão sido adicionadas a
posteriori, no entanto, hoje é comummente aceite que o texto foi
escrito muito antes da "gloriosa revolução", e que a redacção do
Segundo tratado, que agora se publica, terá sido pelo menos
iniciada ainda em Londres.
Já no exílio, Locke vê o seu nome incluído na lista de
conspiradores. É banido de Oxford e, pior ainda, é emitido um
mandato de captura em seu nome. Nem no exílio está seguro,
sentindo necessidade de se esconder e de ocultar a sua identidade.
Em todo o caso, liberto de actividades políticas e administrativas,
estabelece contacto com outros exilados e com os prir1cipais vultos
[lO]
da sociedade holandesa do tempo, passando a dedicar-se aos seus
dois grandes interesses de sempre, a Medicina e a Filosifia. Nesta
última disciplina, são as áreas do Conhecimento e da Política que
centram a sua atenção. Continua a trabalhar no Ensaio, que em
1686 estará terminado. Por essa altura redige a Epistola de
Tolerantia, que seria publicada imediatamente após o regresso a
Inglaterra, em latim, com o pseudónimo curioso de PAPOILA.
Dois anos mais tarde, publica em francês na Bibliotheque
universelle et historique uma primeira versão, resumida, do
Ensaio, que faz circular em separata .
A ascensão ao poder de Guilherme de Orange, "o nosso
grande restaurador", como lhe chama Locke, e afuga para o exílio
de Jaime II marcam o encerramento do período revolucionário.
Locke pode regressar a Inglaterra, o que faz em Fevereiro de
1689. No entanto, não é uma Inglaterra totalmente pacificada
e estável que encontra, havendo sempre a possibilidade de um
regresso de Jaime II, o que significaria o retorno "de Morbo
Gallico ", da doença francesa, não só a sifilis, mas o absolutismo
monárquico3. É novamente tentado com a carreira diplomática:
oferecem-lhe o lugar de Embaixador em Brandeburgo, cargo que
rejeita. A sua saúde está a deteriorar-se, e opta por se dedicar à
in vestigação, revisão e publicação dos seus trabalhos.
[11]
Ao regressar a Inglaterra, não desenvolve grandes esforços
no sentido de recuperar o seu lugar em Oxford. Em vez disso,
estabelece-se temporariamente em Londres, e, a partir de 1691,
em Oates, no norte de Essex, como convidado permanente de
Sir Francis Masham, cuja mulher, Damaris, era uma amiga e
correspondente de longa data. A partir de então, passa o seu tempo
em Oates, com excepção dos períodos em que as suas actividades
prcifissionais o levam a Londres.
Em 1689 publica finalmente o Essay Concerning
Human Understanding, bem como os Two Treatises of
Government- estes últimos anonimamenté. Nesse mesmo ano,
publica a Letter concerning Toleration, tradução inglesa da
Epistola, que se esgota rapidamente, tal como a segunda edição.
No final do verão do mesmo ano publica uma Second Letter
concerning Toleration, que assina com o pseudónimo de
"Philanthropos", em difesa da primeira e em resposta às críticas
que entretanto lhe haviam sido dirigidas, de entre as quais
sobressai, pela sua vivacidade, a de Jonas Proast, um clérigo de
Oxford. Em Novembro do ano seguinte, faz publicar a Third
Letter for Toleration, bem mais circunstanciada do que a
anterior, nomeadamente em resposta a novo ataque de Proast,
que, desta feita, não reage. Paralelamente, volta-lhe o interesse
antigo por questões económicas, publicando, em 1691, um ensaio
intitulado Some Considerations of the Consequences of the
Lowering of Interest and Raising the Value of Money, em
que retoma muito do que havia escrito sobre a matéria para
Shajtesbury em 1668.
Em 1692 retoma outra vertente de que se havia ocupado
durante o exílio na Holanda: o ensino. A partir da correspon-
[12]
dência que havia trocado com um amigo a propósito da educação
do filho dele, publica Some Thoughts concerning Education.
É a segunda obra que publica com o seu nome, a seguir ao
Ensaio. Em Maio de 1694 aparece a segunda edição do Ensaio,
revista e alargada, em que procura responder à crítica que,
entretanto, havia originado. No ano seguinte, publica, anonima-
mente, o seu primeiro trabalho produzido inteiramente depois do
exílio, The Reasonableness of Christianity, uma obra bas-
tante controversa que haveria de ser alvo de violentos ataques
e que levaria Locke a publicar, sempre sob anonimato, duas
Vindications, uma em 1695 e a outra, bem mais aprofundada,
na primavera de 1697.
Para Locke, são tempos de intensa actividade, intelectual
e política também. A crise monetária trá-lo de novo para a vida
política, levando-o a publicar, no início de 169 5, um pequeno
trabalho intitulado Short Observations on a Printed Paper e,
no final do ano, um trabalho de maior fôlego, Further consi-
derations Concerning Raising the Value of Money. A
partir do ano seguinte, vê-se de novo envolvido na política comer-
cial e colonial inglesa, integrando o Conselho de Comércio e
Plantações, até se reformar, em 1700. O tempo que lhe sobra,
reserva-o para a defesa do Ensaio. Publicado em terceira edição em
169 5 e em quarta, em 1700, seria objecto de crítica por parte
do Bispo de Worcester, Edward Stillingfleet, com quem Locke
acabaria por se envolver em acesa polémica.
Locke passou os últimos anos de vida em Oates, empenhado
na redacção da sua última grande obra, Paraphrase and Notes
on the Epistles ofSaint Paul, publicada apenas postumamente,
e na elaboração de uma versão corrigida dos Dois tratados do
governo, considerando que as primeiras duas edições continua-
vam a apresentar muitas imprecisões.
Peter LAslett relata com pormenor a história das primeiras
edições desta obra5 . A primeira data de 1690 e apresenta erros
[13]
graves que a tornam de todo insatisfatória. Quando, cinco anos
mais tarde, é necessário proceder a uma segunda edição, Locke
apresenta um novo manuscrito, com uma série de alterações. Esta
segunda edição, no entanto, acaba por ser ainda pior do que a
primeira. Tanto assim que o editor acede em vender todos os
exemplares a baixo preço, de modo a que a edição "se espalhasse
por entre leitores comuns". Quatro anos depois, esta edição mais
barata encontra-se igualmente esgotada, procedendo-se, então, a
uma terceira edição, de maior qualidade, a partir de novo texto
corrigido por Locke. Mas nem esta terceira edição de 1698 o
satisfaz. É, portanto, à revisão desta edição que Locke se dedica,
primeiro pessoalmente, depois através do seu secretário, Pierre
Coste. Esta versão corrigida será utilizada para a quarta edição
dos Dois tratados, inserida na primeira edição, já póstuma, das
obras completas de Locke, que data de 1713 . A partir daí, os
Dois tratados foram reeditados, com regularidade quinquenal,
tendo-se assistido a uma degradação gradual da qualidade do
texto, na medida em que para cada nova edição se recorria ao texto
da edição imediatamente anterior, copiando e aumentando os seus
erros. Este processo apenas seria travado em 17 64, quando
Thomas Hollis adquire e publica o manuscrito com as correcções
iniciadas por Locke e concluídas por Pierre Coste ao texto da
terceira edição. E é a esta edição de 17 64 que Laslett recorre para
a sua edição crítica e que também nós utilizamos.
Em 1702, Locke redige ainda um pequeno opúsculo
intitulado Discourse of Miracles, publicado apenas postuma-
mente. Com o agravamento do seu estado de saúde, passa os
últimos anos de vida em casa, na companhia de Lady Masham,
saindo cada vez menos. Não chega a terminar a última obra de
que se ocupa, a Fourth Letter on Toleration, a degradação do
seu estado de saúde não o permite. Tem ainda oportunidade para
reconhecer a autoria dos Dois tratados do governo, no codicilo
que introduz, já em 1704, no seu testamento para "legar à
Biblioteca Pública da Ur!Íversidade de Oxford [. .. } Two
Treatises of Governement, do qual o Sr. Churchill publicou
[14)
várias edições, mas todas muito incorrectas". A autoria do texto
fica assim afirmada em definitivo. Finalmente John Locke, o
filósofo do Ensaio, corno gostava de ser conhecido, reconhece ser
também o autor dos Tratados, mas para a posteridade, já que
perante os seus conterrâneos, nunca a assumiu, nem jamais
permitiu que fosse divulgada6.
John Locke acabaria por falecer tranquilamente em Oates,
pelas 15 horas do dia 28 de Outubro de 1704, enquanto LAdy
Masham lhe lia os Salmos.
Para o seu túmulo adoptou o epitéifio, redigido em latim
"Aqui repousa John Locke. Se perguntares como viveu, res-
ponderá que viveu satiifeito com a mediania". Na verdade, teve
sempre uma vida simples, "unaffected", como diria LAdy Masham
para o descrever. Profundamente religioso, é em Deus e no Direito
natural que encontra o suporte último para o seu pensamento, bem
como para a sua vida. Meticuloso e peifeccionista, nada deixava
ao acaso e registava tudo, o que nos permite hoje um conhecimento
aprofundado dos seus passos e da sua vida, não obstante a priva-
cidade por que primou e o anonimato que insistiu em emprestar a
boa parte da sua obra. Porém, a mediania para Locke está longe,
bem longe, tanto da falsa modéstia, como da concepção que hoje
lhe atribuímos. A mediania que imprimiu à sua vida e que o
satiifez foi, antes, a aurea mediocritas clássica. Uma medio-
critas que, imediatamente após a sua morte, o catapultaria para
a ribalta do pensamento ocidental, destacando-se, de toda a sua
obra, dois textos, que continuam a ser utilizados nas Univer-
sidades e nas Academias, não só como referências, mas como livros
de base: o Ensaio sobre o entendimento humano, ao nível do
conhecimento, e o Segundo tratado do governo, ao nível da
política .
Reeditado centenas de vezes e traduzido em inúmeras
línguas, começando pelo fran cês e incluindo o russo, o hebraico, o
[15]
árabe, o japonês, e o hindi, para além de praticamente todas as
línguas europeias, o Segundo tratado do governo depressa
se tornaria no "A B C da política", levando a que fosse univer-
salmente reconhecido como "pertencendo à mesma classe que a
Política de Aristóteles"7 . A sua influência é enorme, na
Inglaterra, nos Estados Un idos, em França ... , tanto em termos
intelectuais como em termos positivos concretos. Em termos
intelectuais, John Locke, "o apóstolo da liberdade", como lhe
chama Simone Goyard-Fabre8, haveria de ter um impacto
profundo sobre homens como Thomas ]ifferson, Voltaire,
Montesquieu, Jean:facques Rousseau ... Em termos positivos, está
bem presente tanto na Revolução Norte-americana como na
Revolução Francesa . E não será seguramente por acaso que o
primeiro tradutor português do Segundo tratado se apressou a
oferecer o texto de Locke que acabara de verter para a nossa língua
"aos constitucionais portugueses, como princípios fundamentais
para a consolidação da Carta Constitucional, datada de 29 de
Abril de 1826"9. Não obstante trazer a marca do espaço e do
tempo em que foi redigido, o Segundo tratado do governo
ultrapassou de imediato as fronteiras da Inglaterra, adquirindo
uma projecção europeia, ocidental e planetária. Paralelamente,
resiste ao tempo, transportando uma actualidade e uma urgência
que perduram.
7 Cf. Ibid.
8 Cf. a interessantíssima introdução, muito erudita, que preparou para
a tradução francesa do Segu11do tratado do govemo publicada em 1984, op. rir.
9 Como se pode ler na capa da edição publicada em Londres em
1833. Cf. John Locke, Ensáio sobre A Verdadeira Origem, Extemão e Fim do
Covêmo Civil, Escrito em l11glez por j o/111 Locke e Traduzido para Por/t4guez por
João Oliveira de Carl!alho, Eswdmlte do Terceiro Atll10 de Cât~o11es. Qffererido aos
Co11stiturionais Portuguezes como Pri11ripios Ftmdametttaes para a CoiiSolidação da
Carta Constitucio11al, datada de 29 de Abril de 1826. Londres, Impresso por
Ricardo Taylor, 1833.
[1 6]
O Segundo tratado do governo hoje
É certo que não foi para nós que Locke escreveu. Aquele
em que viveu, não foi o nosso mundo, e as suas preocupações não
são as nossas. John Locke é um homem de "muitas faces", muitas
"máscaras", tornando-se difícil reuni-las a todas de modo a pode-
rem espelhar o homem singular e concreto a que pertencem e que
enformam: pai do iluminismo britânico, para uns, ideólogo da
emergente burguesia, para outros, principal exponente do constitu-
cionalismo inglês, intelectual empenhado, livre-pensador, beato
e teólogo, introdutor do liberalismo, libertário, percursor do socia-
lismo e do comunitarismo... , consoante as interpretações ou os
aspectos do seu pensamento que se querem privilegiar. Por outro
lado, John Dunn sublinha ainda o que apelida de "am bi-
guidades " do Segundo tratado do governo, que conduzem às
leituras mais variadas e mais contraditórias e elevam o texto à
condição defundamento ideológico da R evolução Norte-americana
- se bem que tenha sido igualmente invocado como demonstração
da sua ilegitimidade-, modelo inspirador da Revolução Francesa
e da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, matriz do
liberalismo capitalista, ao mesmo tempo que é admirado por
revolucionários e socialistas, causa do colapso do Ancien Régime
na Europa, não obstante o conservadorismo e o apelo a Deus e à
ordem que permeiam toda a obra .. . E, paralelamente, denuncia a
dimensão teocêntrica da filosofia política lockeana, o que a tornaria
pouco mais do que inútil para os nossos dias10.
Acresce, e paradoxalmente até, que durante a sua vida
Locke não só nunca reconheceu ser o autor dos Dois tratados do
governo, como ainda, a acreditar no prifácio que preparou para
o segundo, o terá escrito com o objectivo, peifeitamente datado, de
"legitimar o poder do nosso grande restaurador". Como explicar,
l O Cf. John Dunn, T11e Politica/ 17wught <!f Johtr Locke. A11 historical
aaormt of the argume11t <![ the 'Ttvo Treatises of Govemment', Cambridge,
Cambridge University Press, 1969.
[17]
então, o interesse para os nossos dias deste texto, velho de já mais
de três séculos?
Ele reveste-se de um interesse que vai muito para além da
dimensão histórica. Não obstante o que se afirma no prefácio, não
descreve a Inglaterra do seu tempo, nem legitima o universo ou o
modelo de organiz ação social e política então em vigor: aqueles
subjacentes à "gloriosa revolução " de 1688. Pelo contrário, apre-
senta uma filosofia política que, alicerçada sobre um conhecimento
empírico muito próximo e muito directo dos meandros do poderll ,
se propõe compreender um universo, que é, simultaneamente,
novo, e de sempre. Um universo novo, em gestação no seu tempo
e que, não sendo ainda o dele, em boa parte é já o nosso: o
universo político da modernidade, dos direitos fundamentais, do
Estado de direito, do liberalismo, do socialismo, do comunita-
rismo.. . Um universo que é de sempre, na medida em que procura
responder à questão, ínsita à própria condição humana, de iden-
tificar "o primeiro e verdadeiro alcance e finalidade do governo
civil", conforme propõe o subtítulo do Segundo tratado do
governo . E, o Jacto de dar az o a tantas leituras, e tão díspares,
é bem a medida da prcifundidade e da amplitude do pensamento
lockeano, bem como da pluralidade de argumentos que desenvolve,
quer de natureza religiosa, quer de naturez a secular.
Não foi para nós que Locke escreveu. Porém, e na medida
em que não atingimos "o fim da história ", e "o último homem"
está ainda por descortinar, as preocupações que enformam as suas
[1 8]
reflexões permanecem connosco, e, graças à sua dimensão filosófica,
as propostas que oferece, em vez de datadas, retêm todo o seu valor.
Se bem que o Segundo tratado do governo não seja do século
XXI, ele é importante para a compreensão, quer da realidade
política com que nos deparamos hoje, quer do processo que esteve
subjacente à sua criação e à sua consolidação. Para além disso,
abre-nos igualmente pistas de reflexão relativamente aos caminhos
de futuro que, nestes tempos de agora, tão ou mais conturbados
ainda do que aqueles em que ele viveu, teremos que forjar para nós
próprios. Tanto assim que, de algum modo, hoje nos encontraremos
mais próximos do quadro conceptual em que John Locke se move
e mais carenciados da reflexão que desenvolve do que em qualquer
outro período histórico - pelo menos no mundo Ocidental -,
conforme se procurou evidenciar ao longo desta introdução12.
Foi também para nós que Locke escreveu, isto é, para as
gerações que se seguiram, daí ter optado pela filosofia política e não
pela persuasão panjletária. E é por isso que, segundo a proposta
de A. John Simmons, o Segundo tratado do governo constitui
"um eiforço acabado e sistemático de produção de uma filosofia
política coerente", merecendo, por isso ser lido, não apenas como
um texto que ainda tem alguma coisa para nos dizer, mas como
um texto que foi escrito, também, para nós13 .
Parafraseando John Dunn e Ian Harris, na Introdução que
prepararam para uma colectânea em dois volumes sobre Locke,
[19]
reunindo mais de meia centena de ensaios sobre o nosso autor,
proceder, nesta introdução, a uma apresentação sumária do argu-
mento do Segundo tratado do governo, seria, no mínimo,
supéljluo, senão mesmo impertinente1 4 . Daí optarmos, em alter-
nativa, por procurar sublinhar as razões ~elas quais continua a
valer a pena, em pleno século XXI, estudar Locke e, no caso
concreto, o seu Segundo tratado do governo . Numa palavra,
diríamos que vale a pena fazê-lo na medida em que, em boa
parte, continuam a enformar o mundo em que vivemos e em que,
nele, continuamos a encontrar instrumentos que nos permitem
lidar com as preocupações suscitadas por este mundo que é o nosso,
e que Locke e o Segundo tratado do governo ajudaram a
forjar.
É comum ver-se os filósofos que se dedicam à política aproxi-
marem-se de agentes políticos, procurando, através deles, tradu-
z ir algum aspecto do seu pensamento para a prática concreta. O
exemplo mais dramático será, provavelmente, a ida de Platão
para a corte do tirano de Siracusa, na esperança de o converter à
filosqfia . Maquiavel, por outro lado, dedicou o seu Príncipe a
Lourenço de Médicis. Locke, por seu turno, desde que conheceu
Shaftesbury, esteve no coração da vida política do país e quando,
ao regressar do exílio na Holanda, publica finalmente os Dois
tratados do governo, no prifácio que preparou não deixa de
manifestar a esperança de que o seu trabalho possa servir para
legitimar e consolidar Guilherme de Orange no trono, "o nosso
grande restaurador", como o apelida. Guilherme é bem-vindo e
aplaudido na medida em que se apresenta como o restaurador das
liberdades do povo inglês, usurpadas pelos desvios absolutistas de
Carlos e de Jaime, os seus antecessores imediatos. E a liberdade,
enquan to 'fundamento de tudo o mais que um homem possa
ser ou ter" 15 constitui o bem político que Locke mais valoriza,
(20]
ao ponto de Simone Goyard-Fabre justamente o apelidar de
"Apóstolo da liberdade"16. Tanto assim que, visando desenvolver
uma teoria capaz de explicar a legitimidade do poder político e de
estabelecer as suas fronteiras, é a liberdade que sobressai como
grande tema do Segundo tratado do governo.
Locke, porém, não confunde liberdade com libertina-
gem, muito menos com a ausência de regras. Pelo contrário, é preci-
samente o respeito pela lei que, colocando-nos a salvo do arbítrio,
oferece à liberdade a possibilidade de florescer. Daí, igualmente
sublinhar o constitucionalismo e o ideal de Estado de direito.
Liberdade, Estado de direito, constitucionalismo, tolerância,
respeito pelos outros, direitos do homem, responsabilidade- por si
próprio e, até determinado nível, pelos outros - e solidariedade
social, governo representativo e governo responsivo, comunidade
política e personalidade, eis algumas das dimensões em relação
às quais continua a valer a pena recorrer a Locke e, em parti-
cular, ao seu Segundo tratado do governo. Assim acontece
na medida em que nos disponibiliza instrumentos que podem
auxiliar a desenvolver as nossas próprias perspectivas e a encontrar
as respostas que, hoje, somos chamados a forjar para os desa-
fios que se nos colocam, nas nossas comunidades locais e nacionais,
na União Europeia e até mesmo ao nível do sistema interna-
cional.
Daí igualmente termos optado, na presente tradução, por
apresentar o texto de Locke, não numa tradução literal, nem no
português do século XVII, mas em linguagem corrente- com um
esforço permanente de respeito e de fidelidade ao texto ori-
ginal1 7. Tudo isto para facultar que ele se dirij'a aos dias de hoje
[21]
o mais directamente possível, e, correlativamente, para facilitar a
tarefa de todos aqueles que a ele recorrerem à procura de apoio
para a compreensão e a superação dos desafios da contempora-
neidade.
e Fim do C ovêmo Ci11il, op. cit. Há muito esgotado, este texto foi recen-
temente reeditado pelas Edições 70, mantendo a linguagem do tradutor
do século XIX.
I S Reportamo-nos à edição anónima dos Dois tratados do go11emo,
publicada em Londres por Awnsham e John Churchill.
[22]
que filosófico - ao contrário do que se passa relativamente ao
Segundo tratado .
Acresce que o próprio John Locke não terá sido alheio a esta
diferente natureza, nem ao diferente destino dos seus dois textos.
Em 1691 surge a primeira tradução, em língua francesa, da
responsabilidade de um pastor huguenote radicado na Holanda. O
texto, de reconhecida qualidade, não é, porém, uma mera tradução.
Apenas o Segundo tratado é traduzido e publicado, e tanto o
prifácio como o primeiro capítulo, ligando-o ao Primeiro, são
suprimidos. O texto lockeano conhece, assim, uma nova versão,
publicada anonimamente com um título também ele novo: Ou
gouvernement civil. É esta nova versão que será reeditada mais
de uma dúzia de vezes ao longo do século XVIII e será através
dela que o Segundo tratado irá ser conhecido no continente
europeu e lido e admirado por Montesquieu, Voltaire, Jean-
:facques Rousseau .. .
Conforme Peter Laslett argumenta, esta publicação autó-
noma do Segundo tratado não só sugere que terá sido escrito
antes do Primeiro, como nos mostra Locke a sublinhar a "desco-
nexão" dos dois textos, ao ponto de pelo menos aceitar que se lhes
altere o título. O que o leva a concluir que não teria desagra-
dado a Locke saber que iria ser o Segundo tratado autónomo,
seguindo o modelo da tradução francesa, a "integrar o cânone da
teoria política".
Não deixa, aliás, de ser sintomático que a primeira edição
norte-americana, de 1773, tenha seguido o precedente francês. O
texto é o da 6" edição inglesa, de 1764, preparada por 77wmas
Hollis a partir das correcções introduz idas, primeiro pelo próprio
Locke e, depois, pelo seu secretário, Pierre Coste, sobre a terceira
edição de 1698 - e não o das primeiras edições, relativamente às
quais Locke demonstrou enormes reticências, considerando-as
manifestamente deficientes e insatiifatórias. No entanto, tal como
na tradução francesa, tanto o Primeiro tratado, como o primeiro
capítulo do Segundo são omitidos. A primeira tradução espanhola
data de 1821, e a primeira em língua portuguesa é publicada,
[23]
como se viu, em 1833, seguindo as opções francesa e norte-
-americana de publicação apenas do Segundo tratado .19
E é isto que explica a presente opção pela publicação apenas
do Segundo tratado do governo. Optámos pela manutenção
do título original fixado por Locke, em vez do título da pri-
meira tradução francesa, que ainda é seguido, aliás, por algu-
mas traduções20. Para a presente edição utilizámos o texto do
Segundo tratado tal como fixado por Peter Laslett na edição
monumental dos Dois tratados que preparou em 1960 para a
Cambridge University Press, a partir da edição de Thomas Hollis
de 1764, bem como a página de rosto e o prifácio preparado por
Locke para primeira edição dos Dois tratados2 1. Priferimos não
a sobrecarregar, nem com a longa e muito erudita introdução, nem
com o minucioso aparato crítico desenvolvidos por Peter Laslett22,
de modo a respeitar a natureza eminentemente didáctica e de
divulgação que se pretende para esta edição.
lockeana poderão, seguramente, reco rrer com facilidade aos textos originais,
amplamente reeditados e divulgados.
(24]
TWO
TREATISES
O F
ESSA Y CONCERNING
The True Original, Excent, andEnd
O F
Civil- Government.
L ON DON: Printal for A•nfLmr anel John Cb11rcbill, at the
Bfacl(_s..,"" ia Pttttr-No.f/tr-1?.4•. 1 6 9 8.
[25]
DOIS
TRATADOS
DO
Governo:
No primeiro
São Detectados e Derrubados os Falsos Princípios e Fundamentos
DE
Sir Robert Filmer
e dos seus DISCÍPULOS.
O segundo, é um
ENSAIO
sobre
A Verdadeira Origem, Alcance e Finalidade
DO
Governo Civil.
[26]
PREFACIO
[27]
àquelas partes aqui omitidas, se der ao trabalho de despir o
discurso de Sir Robert do floreado de expressões dúbias
que o caracteriza, de procurar reduzir as suas palavras a
frases directas, positivas e inteligíveis, e, de, por fim, as
considerar na sua totalidade, rapidamente se assegurará de
que nunca tanta verborreia disparatada foi apresentada em
linguagem tão bem sonante. Quem julgar não valer a pena
examinar o seu trabalho na íntegra, que analise a passagem
em que trata da usurpação. Que tente, com todo o seu
engenho, para ver se consegue tornar Sir Robert inteligível
e coerente com ele próprio, ou com o senso comum. Não
deveria falar com tanta franqueza de um cavalheiro de há
muito incapaz de me responder, se o clero não tivesse
adoptado a sua doutrina no púlpito, elevando-a à condição
de verdade divina dos nossos dias. Torna-se necessário
mostrar àqueles homens que, assumindo-se como pro-
fessores , têm desencaminhado outros de forma tão peri-
gosa, qual é, na realidade, a autoridade deste seu Patriarca,
a quem seguem tão cegamente. De modo a que se possam
retractar daquilo que têm espalhado a partir de funda-
mentos tão mal-avisados, e que não podem sustentar. Ou,
então, que justifiquem aqueles princípios que pregam
como se do evangelho se tratasse, apesar de não terem sido
capazes de seleccionar melhor autor do que um cortesão
inglês. Pela minha parte, não teria escrito contra Sir
Robert, nem me teria dado ao trabalho de demonstrar os
seus erros, inconsistências e falta de provas bíblicas
(precisamente daquilo de que faz tanto alarde, e a partir
do qual pretende desenvolver todo o seu pensamento), não
fosse existirem entre nós homens que, apregoando os seus
livros e abraçando a sua doutrina, me ilibam de censura
por escrever contra um adversário morto. Neste ponto
têm demonstrado tamanho zelo que, se tivesse procedido
mal para com ele, não teria qualquer esperança de me
pouparem. Espero que, onde procederam mal para com a
[28]
verdade e para com o povo, se encontrem tão prontos para
o repararem que possamos colocar esta reflexão no bom
caminho e deixar de ter razões de queixa do vozear
eclesiástico. Tudo isto na medida em que maior mal não
pode ser feito a um príncipe ou ao povo do que a
propagação de noções erradas sobre o governo. Por último,
se alguém, verdadeiramente preocupado com a verdade, se
propuser refutar a minha teoria, prometo-lhe uma de duas
alternativas : corrigir o meu erro, caso o venha a
demonstrar, ou responder às suas dificuldades. Mas terá de
ter presente duas coisas.
Primeiramente, que atacar de forma habilidosa, aqui
e ali, uma expressão, ou um pormenor do meu discurso,
não constitui resposta ao livro.
Em segundo lugar, que não aceitarei insultos como
argumentos, nem os reconhecerei, se bem que me sinta
obrigado a dar satisfação a quem se erguer contra mim de
forma objectiva, conscienciosa e escrupulosa, e apresentar
bases sólidas para as suas objecções.
Resta-me advertir o leitor de que, quando no texto
se faz referência a Observações, é sempre de Observações
sobre Hobbes, Milton , & que se trata; e quando surge uma
citação apenas com identificação de página, é à edição de
1680 do Patriarca de Sir Robert Filmer que me refiro.
[29]
SEGUNDO TRATADO DO GOVERNO
[33]
homens convivem em sociedade apenas segundo as leis
dos animais, nos termos das quais impera a lei do mais
forte. Aqueles que não pretenderem assentar os alicerces
da desordem e da injúria perpétuas, do tumulto, da sedição
e da rebelião (precisamente as características que os defen-
sores daquela teoria tanto denunciam) têm necessaria-
mente que identificar outra origem do governo, outro
protótipo do poder político, e outras vias para a identi-
ficação daqueles que o possuem, distintos daqueles que
Sir Robert F nos ensinou.
(34]
Capítulo II
[35]
para com os outros, e ergue os seus grandes princípios de
justiça e de caridade. Eis as suas palavras:
A mesma inclinação natura/leva os homens ao conhecimento
de que o seu dever de amarem ao próximo não é menor do que o
de se amarem a si mesmos. Tudo isto pela razão muito simples de
que aquelas coisas que são iguais exigem uma mesma medida.
Não posso deixar de desejar ser bem tratado pelos outros, tanto
quanto qualquer homem pode desejar ser tratado. De igual modo,
corno posso esperar que uma qualquer parcela dos meus desejos se
venha a realizar, a não ser que esteja pronto para satiifazer os
desejos semelhantes que os outros seguramente sentirão, urna vez
que todos partilhamos de uma mesma natureza? Tratar os outros
de modo contrário a este princípio será seguramente tão ofensivo
para eles como seria para mim. Na verdade, se praticar o mal, devo
esperar vir a sofrê-lo também, já que não há qualquer razão que
me leve a esperar que os outros mostrem por mim um amor maior
do que aquele que lhes dedico. Destarte, o desejo que sinto de ser
tão amado quanto possível por aqueles que são por natureza os
meus iguais, impõe-me o dever natural de lhes prestar o mesmo
afecto. Por último, desta relação de igualdade entre os homens, nos
termos da qual os outros são como nós, decorrem inúmeras regras
e normas traçadas pela razão natural para a direcção da convi-
vência e que nenhum homem pode ignorar (Eccl. Pol. Lib. 1) .
[36]
deve molestar qualquer outro na sua vida, na sua saúde,
na sua liberdade, ou nos seus haveres. Todos os homens
são obra de um mesmo criador omnipotente, e infinita-
mente sábio. Servos de um mesmo senhor soberano,
colocados neste mundo por sua ordem e para o seu serviço,
são propriedade dele, que os criou, para viverem enquanto
entender, e não enquanto os próprios quiserem. Dotados
de faculdades iguais e partilhando de uma natureza
comum, não é legítimo supor que exista entre nós uma
subordinação que nos autorize a que nos destruamos
mutuamente, como se tivéssemos sido criados para que nos
usássemos uns aos outros, tal como usamos as criaturas
inferiores. Para além disso, cada homem está obrigado
a preservar-se e a não abandonar o seu posto voluntaria-
mente. Assim também, pela mesma razão, e sempre que
a sua preservação não estiver em perigo, deve igualmente,
e na medida do possível, preservar o resto da humanidade,
não podendo retirar ou prejudicar, seja a vida dos outros,
seja tudo aquilo que conduza à preservação da vida,
da liberdade, da saúde, dos membros ou dos bens
alheios.
[37]
castigar outro pelo mal que tiver praticado, então todos o
poderão fazer. Naquele estado de igualdade peifeita, por natu-
reza, não há superioridade nem jurisdição de uns sobre os
outros. E tudo aquilo que for permitido a um homem fazer
em prol do cumprimento dessa lei, terá necessariamente
que ser também permitido a todos os outros homens.
[38]
da natureza quanto for necessário para que o prevarica-
dor se arrependa da violação que tiver cometido, ou, então,
para que seja dissuadido de a cometer e para que o seu
exemplo seja instrumento de dissuasão para outros. Nestas
circunstâncias e pelas razões expostas, qualquer homem possui
o direito de punir o delinquente, e de ser o executor da lei da
natureza.
[39]
§. 10. Para além do crime decorrente da violação
da lei e, consequentemente, do desvio da razão recta, em
virtude do qual aquele que a perpetrar se degenera e,
declarando afastar-se dos princípios da natureza humana,
se transforma num ser pernicioso, de uma tal violação
da lei da natureza decorre habitualmente um dano para
uma pessoa ou outra. A transgressão supõe um prejuízo
para alguém. Neste caso, e para além de possuir o direito
de castigar o transgressor, direito este que partilha com
todos os outros homens, a vítima possui ainda o direito de
exigir reparação por parte daquele que a prejudicou. E
qualquer outra pessoa que considerar este procedimento
justo poderá associar-se ao ofendido, ajudando-o a recupe-
rar do delinquente tanto quanto for necessário para asse-
gurar a indemnização pelos danos sofridos.
[40]
possuímos de preservação de toda a humanidade, todos os
homens possuem o poder de punir, por forma a evitar a
repetição do crime. De punir e de desencadear todas as
medidas razoáveis conducentes àquele mesmo objectivo
que possam desenvolver. É assim que, no estado de
natureza, qualquer homem detém o poder de matar o
assassino. Seja para, através do exemplo do castigo que a
comunidade faz corresponder a tal crime, dissuadir outros
de perpetrarem o mesmo delito, que nenhuma reparação
poderá compensar. Seja ainda para assegurar a protecção
de todos os homens contra as acções dos criminosos.
No estado de natureza, a violência injusta e a carnificina
exprimem a renuncia à razão, a regra comum e medida
que Deus ofereceu aos homens. A sua prática constitui
uma autêntica declaração de guerra contra a própria
humanidade, razão pela qual aquele que a perpetrar pode
ser destruído como um leão ou um tigre, ou qualquer um
daqueles animais selvagens com os quais homem algum
pode formar sociedade ou viver em segurança. É sobre
estas bases que se ergue a grande lei da natureza, nos
termos da qual, Aquele que derramar o sangue do homem, pelo
homem será o seu sangue derramado. E Caim estava de tal
modo convencido que qualquer homem possuía o direito
de destruir um tal criminoso que logo após ter assassinado
o seu irmão exclama: Quem me encontrar matar-me-á. Tal
era a clareza com que tudo isto se encontrava escrito no
coração dos homens.
[41]
os outros que possam ser tentados a fazer o mesmo.
Qualquer ofensa cometida no estado de natureza pode nele
ser punida, tanto quanto o poderia ser numa comunidade
politicamente organizada. Não é minha intenção entrar
aqui em considerações específicas sobre a lei da natureza,
a sua identificação ou os castigos que prescreve. Certo é,
contudo, que ela existe, e que para uma criatura racional
ou para um estudante de direito, é tão inteligível e tão clara
como as leis positivas das nossas comunidades políticas, se
não mais ainda. Tudo isto na precisa medida em que a
razão é mais fácil de entender do que os caprichos e as
artimanhas complexas dos homens, cujas palavras, muitas
vezes, escondem interesses obscuros e contraditórios. Isto
mesmo se pode verificar nas leis internas dos vários países,
cuja rectidão é directamente proporcional à sua funda-
mentação na lei da natureza, através da qual devem ser
reguladas e interpretadas.
[42]
fazer justiça e de se castigar a si próprio. Contudo, quem
adoptar esta objecção, deverá igualmente ter presente que
os reis absolutos são apenas humanos. O estado de natureza é
insuportável, na medida em que, nele, os homens são juízes
em causa própria. Portanto, para que o governo civil possa
constituir o remédio adequado para os males de que
enferma, torna-se necessário que me expliquem que tipo
de governo é esse, e que vantagens apresenta sobre o estado
de natureza, já que nele um só homem comanda um povo
inteiro? É juiz em causa própria, e pode tratar todos os seus
súbditos como lhe aprouver, sem que ninguém tenha a mais
pequena possibilidade de o questionar, ou de controlar
aqueles que são chamados para a execução dos seus
comandos. Todos têm de se submeter a este homem em
tudo o que vier a fazer, quer se guie pela razão, pelo erro,
ou pelas paixões? Ao fim e ao cabo, o Estado de natureza é
muito mais aprazível do que isto, já que, nele, os homens
não se encontram à mercê da vontade injusta de outros. E,
se aquele que julgar em causa própria, ou na de outro, o
fizer injustamente, terá de responder por isso perante toda a
humanidade.
[43]
homens poderão fazer outras promessas, ou celebrar outros
contratos entre si, sem contudo escaparem ao estado de
natureza. As promessas e os negócios de troca directa, por
exemplo, celebrados entre dois homens na ilha deserta
de que nos fala Garcilaso de la Vega, na sua História do
Perú, ou aqueles celebrados nas florestas americanas entre
um suíço e um índio, obviamente que os vinculam, se bem
que se encontrem num perfeito estado de natureza entre si.
A verdade e a boa fé são princípios próprios dos homens,
enquanto homens, e não apenas enquanto membros da
sociedade.
[44]
Capítulo III
DO ESTADO DE GUERRA
[45)
entendida como uma declaração evidente dos seus intentos
sobre a vida alheia. E tenho todas as razões para pensar
que aquele que me quiser submeter ao seu poder sem o
meu consentimento, logo que o conseguir, abusará de
mim como entender, e destruir-me-á quando lhe der na
gana. Ninguém desejará submeter-me ao seu poder absoluto, a
não ser para me forçar a agir de forma contrária àquela
que faria livremente, i.e., para me tornar no seu escravo.
A única via para escapar a tal condição e assegurar a mi-
nha preservação está em encontrar-me livre de tal poder.
A própria razão obriga-me a ver nele um inimigo da
minha existência, alguém que me roubaria a liberdade,
único escudo de protecção contra tal calamidade. De tal
modo que todo aquele que tentar traniformar-me no seu
escravo coloca-se automaticamente num estado de guerra
para comigo. Aquele que roubasse a alguém a liberdade que
possui no estado de natureza, tem necessariamente que ser
entendido como possuindo idêntico intento de lhe roubar
todo o resto, já que a liberdade é o fundamento de tudo o
mais que um homem possa ser ou ter. De igual modo, deve
supor-se que aquele que no estado civil roubasse a liberdade
dos membros dessa sociedade ou dessa comunidade,
tirar-lhes-ia igualmente tudo o mais, e por isso deve ser
considerado como encontrando-se num estado de guerra
contra todos nós.
[46]
me retiraria tudo o mais, logo que me tivesse sob o seu
poder. Por isso, possuo toda a legitimidade para o tratar
como alguém que se colocou num estado de guerra contra mim.
Tenho todo o direito de o matar, se puder. É esta a sorte
a que se expõe todo aquele que se colocar num estado
de guerra e nele assumir o estatuto de agressor.
[47]
agressor, caso não me conceda qualquer oportunidade
de recurso ao nosso juiz comum, e, para além disso, uma
decisão judicial posterior de nada me serve, quando o
dano infligido é irremediável. A ausência de um juiz comum
com autoridade sobre as partes atira os homens para um estado de
natureza. Na ausência de um direito que a tal habilite, o recurso
à força sobre a pessoa de um homem conduz a um estado de
guerra; independentemente da existência de um juiz
comum.
[48]
encarregados da administração da justiça, será sempre
de violência e de injustiça que se tratará, por mais que as
suas acções sejam adornadas com o nome, o pretexto ou
a forma da lei, cujo único objectivo, aliás, se prende com
a protecção e a compensação dos inocentes através da
sua aplicação imparcial a todos aqueles que se encontram
unidos sob a sua alçada. Sempre que a lei não for admi-
nistrada bona .fi de, estar-se-á perante um acto de guerra para
com aqueles que são vítimas de uma aplicação iníqua da lei
os quais, não desfrutando de uma possibilidade de recurso
na terra, não possuem outra alternativa, se não apelar
aos Céus.
[49]
no céu , que se poderá recorrer. A questão, portanto, não
se prende com a identificação de quem julgará, quando
alguém se colocar num estado de guerra comigo e quando,
como Jefté, eu recorrer ao Céu. Em tais circunstâncias, ao
entrar em guerra, apenas eu, em minha consciência, serei
juiz, sabendo que, no dia do juízo final , terei de prestar
contas ao Supremo Juiz de todos os homens.
[50]
Capítulo IV
DA ESCRAVIDÃO
[51]
§. 23 . Esta liberdade face ao poder absoluto e arbi-
trário é tão necessária e encontra-se tão intimamente ligada
à própria preservação que ninguém pode renunciar a ela,
sem com isso perder a segurança e a vida. O homem não
detém poder sobre o seu próprio ser. Por esta razão, nem
por contrato, nem por consentimento se pode converter em
escravo de outrem, ou colocar-se de baixo do poder absoluto
e arbitrário de quem quer que seja, que lhe possa tirar a vida
quando entender. Ninguém pode conceder mais poder do
que aquele que possui. Nestes termos, quem não tem poder
sobre a sua própria vida, de modo algum o pode conceder
a outro. Com efeito, se alguém perder o direito à vida, por
quaisquer delitos merecedores da pena de morte que tenha
cometido, aquele para quem tal direito for transferido
poderá (quando o tiver no seu poder) recusar-se a matá-lo,
e, bem assim, usá-lo em seu proveito próprio, sem com
isso lhe prestar qualquer ofensa. E, para além disso, no
momento em que o criminoso considerar que a dureza
da sua escravidão é superior ao valor que atribui à sua
vida, pode sempre atrair sobre si a morte por que aspira,
negando-se a obedecer à vontade do seu senhor.
[52]
evidente, contudo, que era como trabalhadores forçados que
se vendiam, e não como escravos. Manifestamente, as pes-
soas que se vendiam não se encontravam sob um poder
absoluto, arbitrário e despótico, nem aqueles que as com-
pravam adquiriam o poder de as matar. Pelo contrário,
passado algum tempo, tinham a obrigação de as libertar do
seu serviço. E o senhor de tais servos estava tão longe de
possuir um poder arbitrário sobre as vidas deles que bastava
que lhes cegasse um olho ou arrancasse um dente para ter
de os libertar (Êxodo, 21) .
[53]
Capítulo V
DA PROPRIEDADE
(55]
ela e a usarem da forma mais vantajosa e mais conveniente
para as suas vidas. A terra, e tudo o que ela contém, foi dada
aos homens para que dela retirassem o sustento e o con-
forto. Na medida em que são produtos da natureza, os
frutos que nela crescem espontaneamente, bem como
os animais que nela se alimentam, pertencem a todos os
homens, em comum. Para além disso, enquanto permane-
cerem no seu estado natural, ninguém possuirá sobre eles
um direito de domínio privado exclusivo de todos os outros
homens. Foram porém concedidos aos homens para que os
usassem. Por isso, tem necessariamente que existir um meio
de serem apropriados, de modo a poderem ser úteis ou bené-
ficos para qualquer homem particular. O Índio selvagem
não conhece marcos nem cercas, contudo, é um rendeiro
comunal. E o fruto, ou a caça, que lhe servem de sustento
têm de ser seus. De tal modo seus, que, mesmo antes
que lhe possam ser úteis e servir de sustento, mais ninguém
poderá continuar a possuir quaisquer direitos sobre eles.
(56]
sobre ele, nem sobre aquilo em que incidir, pelo menos
enquanto se deixar o suficiente e de igual qualidade para os
demais em comum.
(57]
guir extrair da terra, tornam-se propriedade minha, sem
precisar da anuência ou do consentimento de ninguém.
O trabalho que tive, e que era meu, para as retirar do estado
comum em que se encontravam fixou a minha proprie-
dade sobre elas.
[58]
mesmo entre nós, a lebre que todos caçam pertence àquele
que a persegue no terreno. Sendo um animal que per-
manece propriedade de todos os homens e de nenhum
em particular, pertence àquele que lhe dedicar o trabalho
suficiente para o encontrar e para o perseguir. Retirando-
-o do estado de natureza em que pertencia a todos, teve
início a propriedade sobre ele.
[59]
§. 32. Porém, no momento presente, o objecto
principal da propriedade não se reporta aos frutos da terra,
nem aos animais que subsistem sobre ela, mas à própria terra,
na medida em que é dela que tudo o mais provém. E aqui
também, creio ser evidente que a propriedade se adquire da
mesma maneira que tem vindo a ser exposta. Tanto terreno
quanto um homem possa lavrar, plantar, arrotear, cultivar,
e usufruir dos seus frutos, aí se situará a medida da sua
propriedade. Através do seu trabalho, um homem identi-
fica um território, delimitando-o e retirando-o do espaço
comunitário. E de nenhum modo esse direito é invalidado
pelo argumento de que a terra a todos pertence e que, por
isso, qualquer apropriação carece do consentimento de
todos os co-proprietários, isto é, de toda a humanidade.
Deus, no próprio momento em que concedeu a terra
em comum a toda a humanidade, ordenou aos homens
que a trabalhassem, tal como o exigia, aliás, a penúria da
condição em que se encontravam. Tanto Deus como a
razão lhes mandavam dominar e submeter a terra, isto é,
melhorá-la para beneficio das suas vidas, utilizando para o
efeito aquilo que possuíam, designadamente o seu trabalho.
Aquele que em obediência a este mandamento divino
arroteou, lavrou e semeou terreno, anexou-lhe algo de que
era proprietário, e sobre o qual ninguém poderia apresentar
qualquer título e que, por isso, de modo algum lhe podia
ser retirado sem injúria.
[60]
que ficou a sobrar para os demais. Aquele que deixar para
os demais tanto quanto possam utilizar prejudica-os outro
tanto como se nada houvesse retirado para si. Ninguém se
poderá considerar lesado pelo facto de outro beber da água
de um rio, mesmo que em abundância, quando lhe restar
água desse mesmo rio mais do que suficiente para matar a
sua sede. Ora, com a terra sucede exactamente o mesmo
que com a água. Sempre que nos deparemos com quan-
tidades suficientes de uma ou de outra, a situação será
sempre a mesma.
(61]
todos os cc-proprietários. Ora, isto é assim, na medida em
que o baldio é garantido por um pacto, isto é, pelo direito
positivo do país em causa, o qual não admite violações. E
apesar de se tratar de uma propriedade que é partilhada por
alguns homens, não é de toda a humanidade. É proprie-
dade conjunta apenas desse país, ou dessa aldeia. Para além
disso, o que restasse de uma eventual apropriação, de modo
algum seria tão útil para os restantes cc-proprietários como
o era o baldio no seu todo, quando todos o podiam uti-
lizar. Ao passo que, no início, aquando dos primórdios do
povoamento do grande baldio que era a Terra, as condi-
ções eram obviamente muito diferentes. Na realidade, a lei
a que os homens se encontravam vinculados apontava para
a apropriação. A vontade divina e as necessidades que se
faziam sentir forçaram o homem ao trabalho . Esse trabalho
era propriedade do homem, não lho podendo ser retirado,
onde quer que o fixasse. Por isso, a tomada e o cultivo
eram inseparáveis do domínio da terra e condição sua. De
tal modo que quando Deus ordenou aos homens que
dominassem a terra, deu-lhes igualmente autoridade para
se apropriarem dela. E, reclamando o labor e materiais para
trabalhar, são as próprias condições da vida humana que
introduzem necessariamente a propriedade privada.
[62]
confina as possessões de um homem a uma proporção
bastante moderada, definida em termos daquilo de que se
pode apropriar sem danos para outros. Assim se verificava,
nos primórdios da terra, quando o perigo dos homens se
perderem e se afastarem uns dos outros na vastidão das
terras selvagens do planeta era manifestamente maior do
que a ameaça de se verem prejudicados por uma eventual
falta de espaço para cultivo. E, nos nossos dias, esta medida
permanece válida e sem prejuízo para ninguém, não obs-
tante o planeta estar tão povoado como parece. Imagi-
nemos a condição em que se teria encontrado um homem
ou uma família no momento em que os filhos de Adão e
de Noé primeiro povoaram a terra. Imaginemos ainda que
estabelecia uma plantação num qualquer espaço ainda por
ocupar das grandes planícies da América. Através da
aplicação das medidas que acabámos de fixar, facilmente
verificaríamos que as suas possessões não poderiam ser
muito extensas. Até mesmo nos nossos dias em que a
humanidade se alastrou pelos quatro cantos da terra e
excede infinitamente o pequeno número inicial, aquela
delimitação de propriedade de modo algum prejudicaria o
resto da humanidade, e ninguém teria razões de queixa,
nem se poderia considerar ofendido por ela. Mais do que
isso, a terra vale tão pouco quando não é trabalhada, que já
ouvi dizer que, até mesmo em Espanha, um homem pode
lavrar, semear e colher sem ser perturbado por quem quer
que seja, em terras em relação às quais não possui qualquer
outro título de propriedade para além do uso que delas
faz. Pelo contrário, os habitantes daquele país sentem-se
em dívida para com aqueles que, com o seu trabalho,
desbravam terrenos até então negligenciados ou baldios,
melhorando a sua produção de cereais, de que tanto
necessitam. Em qualquer caso, não insistirei nesta questão.
O que afirmo, sem qualquer hesitação, é que esta mesma
regra de propriedade que tenho vindo a apresentar, nos
[63]
termos da qual cada homem deve possuir tanto quanto
possa utilizar, permanece válida nos nossos dias, sem
prejuízo de quem quer que seja. A invenção do dinheiro, e o
acordo tácito celebrado entre os homens de atribuição de
um valor monetário à propriedade, conduziu à introdução,
por consentimento, de grandes propriedades, bem como
o direito a elas. Não fora esta circunstância, e as terras
existentes no planeta seriam mais do que suficientes
para o dobro dos seus habitantes actuais. Como tudo
isto se processou, teremos a oportunidade de ver mais
adiante.
[64)
proveito deles do que seria possível obter de cem hec-
tares que permanecessem no seu estado natural. Por esta
razão, poder-se-á dizer que, quem assim agir, está a ofere-
cer noventa hectares de terreno à humanidade, já que o
seu trabalho lhe fornece provisões que, dantes, apenas
se poderiam obter de cem hectares de baldio. A avaliação
que aqui fiz da terra cultivada é manifestamente muito
baixa. Apresentei uma produção de dez para um. Ora, a
capacidade de produção de um terreno arroteado quando
comparado com igual terreno baldio aproxima-se de uma
relação de cem para um. Por isso pergunto se, porventura,
nos bosques selvagens e nos baldios da América, mil hec-
tares de terra no seu estado natural, sem amanho da
terra ou qualquer tipo de actividade agrícola, fornecem
aos míseros e desgraçados habitantes daquelas para-
gens tantos géneros e comodidades como dez hectares de
terra igualmente fértil do Devonshire devidamente culti-
vados?
Antes da apropriação da terra, apenas se abriam
ao homem as actividades de colher frutos silvestres, caçar
ou domesticar animais selvagens, tantos quantos pudesse.
Aquele que assim utilizasse as suas energias sobre qual-
quer um dos frutos espontâneos da natureza, por forma
a alterar de algum modo o estado em que a natureza os
havia colocado, adquiria, através do seu trabalho, um direito
de propriedade sobre eles. Contudo, caso deixasse que se estra-
gassem, na sua posse, sem serem devidamente utilizados,
caso os frutos apodrecessem ou o veado se putrefizesse
antes de consumidos, então aquele que deles se tivesse
apoderado teria cometido uma ofensa contra a lei comum
da natureza, susceptível de ser castigada. Agir assim mais
não é do que invadir o quinhão do vizinho, já que nin-
guém possui o direito de tomar para si mais do que pode usar
com vista à obtenção das comodidades da vida.
[65]
§ 38. A propriedade sobre a terra rege-se por idênticas
medidas. Cada homem possui um direito de propriedade
sobre aquilo que cultivar e colher, sobre o que armazenar
e utilizar, sem deixar que se estrague. Seu é ainda todo
o gado que recolher, alimentar e utilizar, tal como, aliás,
todos os produtos que dele obtiver. Contudo, se permitir
que a erva das suas pastagens se estrague no solo, ou que os
frutos do seu pomar apodreçam sem serem apanhados,
então este terreno de que se havia apropriado deverá ser
tido como sendo baldio, e, por isso mesmo, susceptível de
ser apropriado por qualquer outro que o queira traba-
lhar. Assim aconteceu no princípio dos tempos. Caim pôde
assenhorear-se de todo o terreno que foi capaz de cultivar,
contudo, deixou espaço suficiente para as ovelhas de Abel
pastarem . Uns poucos hectares bastavam para as neces-
sidades de ambos. Porém, à medida que as famílias cres-
ciam e, pela sua diligência, aumentavam os géneros que
conseguiam obter, cresciam igualmente as suas possessões,
enquanto as suas necessidades se desenvolviam. Inicial-
mente, porém, cultivavam a terra sem delimitarem com
precisão a propriedade de cada um, até que se constituíram
em sociedades, se estabeleceram em conjunto e fundaram
cidades. Foi então que, com o passar do tempo, definiram
consensualmente a extensão do território de cada um , e chega-
ram a acordo sobre os limites que os separavam. E adopta-
ram leis entre si, estabelecendo as propriedades de todos
aqueles que pertenciam à mesma sociedade. Isto mesmo
observamos naquela parte da terra que foi habitada
primeiro e que, por isso mesmo, é mais densamente
povoada. Já nos tempos de Abraão, os homens deambu-
lavam livremente por ali com os seus rebanhos e com as
suas manadas, que eram o seu sustento. Assim viveu Abraão
num país em que era um estrangeiro. Torna-se, portanto,
evidente que pelo menos uma grande parte da terra era
possuída em comum, que os seus habitantes não lhe atribuíam
[66]
grande valor, nem reclamavam para si qualquer direito de
propriedade, excepto sobre aquelas parcelas que de facto
utilizavam. Porém, quando naquele mesmo lugar deixou
de haver espaço suficiente para alimentar em conjunto
os seus rebanhos, então, por mútuo acordo separaram-se,
partindo cada um para onde entendeu, em busca de espaço
para aumentar as respectivas pastagens. Assim fizeram
Abraão e Lot, conforme nos relata o Livro do Génesis
(Gen . 13, 5) . E foi ainda por esta razão que Esaú deixou
o pai e o irmão para se estabelecer sobre a montanha de Seir
(Gen . 36, 6).
[67]
crer que, numa abordagem bastante modesta, se pode
afirmar que noventa por cento do valor dos produtos da
terra úteis para a vida dos homens são imputáveis ao trabalho .
Mais do que isso, se avaliarmos devidamente as coisas tal
como nos são apresentadas para uso corrente e fizermos
um balanço das várias despesas que entram na sua
produção, o que nelas se deve exclusivamente à natureza, e
o que nelas decorre do trabalho, facilmente chegaremos à
conclusão de que, na maioria dos casos, noventa e nove por
cento do seu valor deve ser atribuído exclusivamente ao
trabalho do homem.
[68]
tante, as bolotas, a água, as folhas e as peles teriam de ser o
nosso alimento, a nossa bebida e o nosso vestuário, não fora
a capacidade do trabalho nos fornecer estas comodidades
bem mais agradáveis. É inteiramente devido ao trabalho e à
indústria que o pão vale mais do que as bolotas, que o vinho
vale mais do que a água, e que o pano ou a seda valem
mais do que as folhas , as peles ou os musgos. As bolotas, as
folhas e as peles serão o alimento e o vestuário que a
natureza nos fornece por ela mesma. Já o pão, o vinho e o
pano serão as provisões que preparámos para nós próprios
através da nossa indústria e do nosso trabalho. A medida
com que o valor dos segundos ultrapassa o dos primeiros
bastará para nos apercebermos de quanto o trabalho é respon-
sável pela maior parte do valor das coisas de que desfrutamos
neste mundo. E o solo que produz estes materiais de modo
algum poderá ser considerado como desempenhando mais
do que um papel insignificante neste processo de aferi-
ção do valor das coisas. Tão insignificante que, até mesmo
entre nós, a terra que não é cultivada, que não conhece
qualquer exploração, seja para pastagem, seja para uma
qualquer actividade agrícola, é justamente designada de
baldio. A sua utilidade é pouco mais do que nula. Isto mostra
bem quanto uma população numerosa é preferível à exten-
são territorial, e, bem assim, que é na conquista de novas
terras e na aquisição do direito de as explorar que se situa a
grande arte de governar. E o príncipe, que for suficiente-
mente sábio e semelhante a Deus para assegurar a protecção
do povo contra a opressão do poder e estreiteza das facções
sociais e encorajar o trabalho honesto dos homens através
de leis justas, rapidamente se tornará demasiado forte para os
seus vizinhos. Mas disto trataremos adiante. Para já, regres-
semos à discussão do tema que agora nos ocupa.
[69]
semos o mesmo cuidado produziria o mesmo, possuem, ma-
nifestamente, o mesmo valor natural intrínseco. Ora, do pri-
meiro, a humanidade recebe um beneficio anual de 5 libras;
já do segundo, nem um centavo sequer, caso pudésse-
mos avaliar e vender neste país todo o produto que um
índio dele retira. Mais do que isso, creio poder em verdade
afirmar que nem valerá uma milésima parte do primeiro.
É, portanto, o trabalho que é responsável pela maior parte do
valor que a terra possui, sem o qual pouco ou nada valeria. A
ele devemos igualmente a maior parte dos produtos úteis
que extraímos do solo. Ninguém duvidará que a palha, o
farelo e o pão que obtemos de um alqueire de trigo, valem
manifestamente mais do que aquilo que um hectare de
terra baldia de igual qualidade poderá produzir esponta-
neamente. E é obviamente ao trabalho do homem que
essa diferença se fica a dever. Não podemos esquecer que
o valor do pão que comemos não advém apenas do esforço
do lavrador, da faina do ceifeiro e do moleiro, ou do suor
do padeiro. Há igualmente que ter em conta o trabalho
daqueles que domaram os bois, habituando-os à canga,
que extraíram e fundiram o ferro e as pedras, que cortaram
e trabalharam a madeira com que se constrói o arado, o
moinho, o fogão e todos os inúmeros utensílios necessários
para que a semente possa crescer e ser transformada em
pão. Todos eles têm de ser atribuídos ao trabalho do homem,
dele decorrendo. A natureza e a terra apenas nos forne-
cem materiais que, por si sós, são pouco mais que inúteis.
Se os pudéssemos identificar a todos , seria um catálogo
estranho de instrumentos, aqueles que a indústria proporciona
e utiliza na produção de cada fatia de pão: ferro, madeira,
cabedal, cortiça, lenha, pedra, tijolos, carvão, cal, pano,
corantes, breu, alcatrão, mastros, cordas e todos os mate-
riais necessários nas embarcações de transporte de qualquer
uma das mercadorias utilizadas em todos os momentos
desta grande tarefa por cada um dos trabalhadores, cujo
[70]
elenco pormenorizado é demasiado complexo para aqm
o podermos fixar.
[71]
consentimento mútuo, renunciaram igualmente a qualquer
reivindicação do direito natural anterior que possuíam
sobre os países respectivos. Deste modo, estabeleceram a
propriedade nas várias partes e parcelas da terra, mediante
um acordo positivo entre si. Contudo, existem ainda grandes
quantidades de terreno por descobrir. Terras cujos habitantes
não se aliaram ao resto da humanidade na partilha do
consentimento sobre o uso do seu dinheiro comum e que,
por isso mesmo, permanecem baldios e em comum, já que a
sua extensão ultrapassa a capacidade dos seus habitantes as
trabalharem e as aproveitarem. Apesar de que dificilmente
se poderá dizer que isto ainda se verifica naquela parte da
terra cujos habitantes adoptaram consensualmente o uso
do dinheiro.
[72]
que as utilize antes que se estraguem. De outro modo ultra-
passará o seu quinhão; apanhando mais do que devia, estará
a roubar aos outros. E na verdade, açambarcar mais do
que se podia utilizar seria manifestamente uma estupidez,
para além de uma desonestidade. Se oferecesse a outros
uma parte do que havia adquirido, não permitindo que se
estragasse inutilmente na sua posse, estaria igualmente a agir
de forma legítima. Tal como não estaria a prejudicar quem
quer que fosse, caso conseguisse trocar as suas ameixas, que
se estragariam numa semana, por nozes que poderia guardar
para ir comendo durante um ano inteiro. A partir do
momento em que não permitisse que se estragassem nas
suas mãos, não estaria a dilapidar o património comum,
nem a destruir qualquer parcela dos bens dos outros. Além
disso, se trocasse as suas nozes por um pedaço de metal,
encantado com a sua cor, ou as suas ovelhas por conchas, lã
por pedra brilhante ou diamante, e os guardasse durante
toda a sua vida, de modo algum estaria a invadir o direito
dos demais. Nada o impedia de acumular a quantidade
que entendesse destes objectos imperecíveis, porquanto
não é por obter amplas propriedades que alguém ultrapassa
os limites da propriedade legítima, mas por permitir que se
estraguem inutilmente em seu poder.
[73]
garem no seu donúnio. Neste contexto, imaginemos uma
ilha, impossibilitada de estabelecer relações comerciais com
o resto da terra. Uma ilha onde não existisse mais do que
uma centena de famílias, apesar de contar com carneiros,
cavalos, vacas e outros animais úteis para o homem, frutos
salutares e terra suficiente para produzir cereais que dariam
para abastecer uma população cem vezes maior. Contudo,
imaginemos ainda que nada naquela ilha podia ser utilizado
como dinheiro, seja por causa da sua abundância ou vulga-
ridade, seja pela sua natureza efémera. Que razões poderia
alguém ter naquela ilha para alargar as suas possessões para
além daquilo que a sua fanúlia fosse capaz de utilizar?
Para que quereria obter mais do que uma provisão gene-
rosa daquilo de que necessitaria, seja para consumo próprio
directo, seja para utilizar como moeda de troca com os
demais, para obtenção das mercadorias igualmente pere-
cíveis e úteis que não fosse capaz de produzir pelos seus
próprios meios? Onde não existir algo que seja simultanea-
mente duradouro e escasso, e tão valioso que justifique ser
amealhado, os homens não terão qualquer inclinação para
aumentar as terras que possuam, por melhores ou mais ricas
que sejam aquelas que se encontrem à sua volta, ou por
mais livres que sejam de se apropriarem delas. Pergunto,
pois, que valor terão para um homem dez mil ou cem mil
hectares de terra excelente, já cultivados e bem providos de
gado também, no coração do interior da Arnérica, se não
tiver qualquer esperança de comércio com as outras partes
da terra, de modo a poder obter dinheiro a partir da venda
dos seus produtos? Todos esses terrenos e o gado que neles
pastasse valeria menos do que a cerca necessária para o
vedar. Quem deles se apropriasse, seguramente que os
abandonaria de imediato, devolvendo ao estado natural
todas aquelas propriedades que excedessem o suprimento
das comodidades de vida que naquela parte da terra po-
diam ser asseguradas, para si e para a sua fanúlia.
[74]
§ 49. No prinop10 dos tempos, pois, toda a terra
era como a América. Aliás, era mais semelhante à América
daquele tempo do que à de agora. Naquela altura nenhuma
parte da terra conhecia o dinheiro. E a partir do momento
em que um homem descobrir entre os seus vizinhos algu-
ma coisa com o valor do dinheiro e que possa usar, começará
imediatamente a aumentar as suas possessões.
[75]
direito de propriedade sobre aquelas coisas que a natureza a
todos oferecia em comum, com a salvaguarda de que cada
um apenas se podia apropriar daquilo que fosse capaz de
consumir. De tal modo que, não podia haver qualquer
razão para disputas acerca deste direito, nem quaisquer
dúvidas sobre o tamanho das possessões que dele decorria.
O direito e a conveniência andavam de mãos dadas. Na
medida em que qualquer homem possuía um direito sobre
tudo aquilo que trabalhasse, ninguém ficaria exposto à
tentação de trabalhar para obter mais do que aquilo que
fosse capaz de utilizar. Ora, isto não deixava qualquer
espaço para controvérsias sobre o título de propriedade,
nem tão pouco para a usurpação do direito dos outros.
Estava à vista de todos a parcela de propriedade que cada
homem lavrava para si mesmo, e era tão inútil como deso-
nesto reclamar para si em excesso, ou apoderar-se de mais
do que era necessário.
[76]
Capítulo VI
DO PODER PATERNAL
[77)
atenção que merecem, e talvez a humanidade tivesse
conseguido evitar os erros grosseiros que têm sido come-
tidos a propósito deste poder dos pais sobre os filhos . Num
certo sentido, e na medida em que pertencer exclusi-
vamente ao pai, este poder paternal poderá seguramente ser
qualificado de domínio absoluto e de poder régio. Con-
tudo, na medida em que falarmos de um poder parental,
seria estranho atribuí-lo apenas ao pai. O próprio conceito
utilizado é suficiente para demonstrar que é igualmente
atributo da mãe. Para além disso, em nada interessa ao
argumento daqueles que defendem vigorosamente o poder
absoluto e a autoridade de paternidade, como lhe chamam,
que a mãe tenha alguma coisa a ver com o assunto, parti-
lhando de tal poder. Muito menos serve esta constatação
de fundamento para a monarquia, como alguns tanto gos-
tam de sustentar. O próprio conceito a que recorrem torna
evidente que a autoridade fundamental, a partir da qual
se propõem derivar o seu governo de um só, não se situa
numa só pessoa, mas em duas , em conjunto. Não nos
detenhamos, porém, nesta discussão de nomes e passemos
adiante.
[78]
dade em que todos os homens se encontram relativamente
à jurisdição ou ao domínio mútuo. Era a esta igualdade que
me referi como sendo específica da matéria que agora nos
ocupa, e que se reporta ao igual direito que cada homem
tem à sua liberdade natural, em virtude da qual ninguém
se encontra sujeito à vontade ou à autoridade de qualquer
outro homem.
[79]
preservar, alimentar e educar os filhos que conceberam - não
como obra sua, mas como obra do seu criador, o Todo
Poderoso, perante o qual seriam chamados a dar contas
deles.
[80]
Porém, a liberdade não é, como por vezes nos querem
fazer crer, uma licença para cada homem agir como entender.
Se assim fosse, quem poderia ser livre, caso se pudesse
encontrar sujeito aos caprichos de qualquer outro homem?
Pelo contrário, a liberdade reside na capacidade de dispor e
ordenar como entender a sua pessoa, as suas acções, os seus
haveres e toda a sua propriedade, dentro dos limites que
forem estabelecidos pelas leis a que estiver sujeito, e, neste
contexto, não estar subordinado à vontade arbitrária de
outros, mas seguir apenas a sua, sem quaisquer constran-
gimentos.
[81]
lei? O que lhe permitiu dispor livremente da sua proprie-
dade, segundo a sua vontade própria, e dentro dos limites
dessa mesma lei? Respondo apontando para o estado de
maioridade, no qual se supõe que o homem é capaz de
conhecer esta lei , de modo a manter as suas acções dentro
dos limites por ela prescritos. Ao atingir aquela idade,
presume-se que saiba até que ponto se deve guiar por
aquela lei e até que ponto poderá fazer uso da sua liber-
dade, sendo certo que é deste modo que a poderá adquirir.
Até lá, necessita de alguém que o guie, alguém que se
presume conheça a justa medida em que a lei permite a
liberdade. Se atingir uma tal idade da razão e do discerni-
mento emancipa um homem, tornando-o livre, também o
pai emancipará o seu filho, logo que a ela aceder. Quando
é que um homem se encontra sujeito à lei da Inglaterra? O
que o torna livre perante essa lei? Quero dizer, o que lhe
concede o direito de dispor das suas acções e dos seus
haveres, de acordo com a sua vontade e dentro daquilo
que a lei lhe permite? Nada mais, nada menos, do que a
capacidade de conhecer essa mesma lei; o que, nos termos
por ela prescritos, surge aos vi nte e um anos de idade, e
nalguns casos antes ainda. Ora, isto que fez do pai um
homem livre, fará do filho um homem livre também. Até
lá, vemos que a lei não permite ao filho qualquer vontade,
devendo ser guiado pela vontade do seu pai ou do seu
guardião, a quem incumbe entender e decidir por ele. E se
o pai morrer sem indicar um substituto para esta sua tarefa,
caso não tenha providenciado um tutor para guiar o filho
durante a sua menoridade, então, enquanto carecer de
entendimento, a própria lei assumirá essa tarefa e indicará
alguém para o governar, para lhe dirigir a vontade, até que
atinja a idade de liberdade, e o seu entendimento se encontre
apto para assumir o governo da sua vontade. Depois disso,
contudo, pai e filho serão igualmente livres, tanto quanto o
são o tutor e o pupilo depois da menoridade. Um e outro
[82]
serão igualmente súbditos da mesma lei, não restando ao
pai qualquer donúnio sobre a vida, a liberdade ou a
propriedade do seu filho, quer se encontrem apenas sob a
alçada da lei da natureza, guer se encontrem sujeitos ao
direito positivo de um governo estabelecido.
[83]
a qualquer uma destas condições. A idade que traz uma,
desencadeia a outra também. Assim vemos como é que a
liberdade natural e a submissão aos país são perfeitamente
compatíveis, decorrendo de um princípio único. Uma
criança é livre na medida em que o seu pai também o for, e
é pelo entendimento do pai que se deverá reger até que
desenvolva aquele que lhe é próprio. A liberdade de um
homem de idade adulta, e a submissão de uma criança aos
seus país enquanto for de menoridade, são dois princípios
simultaneamente tão compatíveis e tão distintos que nem
os mais cegos defensores da monarquia, por direito de
paternidade, se podem negar a reconhecê-lo. Nem os mais
obstinados podem negar a sua compatibilidade. Para o
sublinhar, admitamos a sua doutrina como verdadeira,
isto é, admitamos a possibilidade de se conhecer, hoje, o
herdeiro legítimo de Adão. Suponhamos ainda que, por
esse mesmo título, este homem se encontra devidamente
estabelecido no seu trono, investido do poder absoluto e
ilimitado de que Sir Robert Filmer nos fala. Caso morresse
por altura do nascimento do seu herdeiro, não deveria o
recém-nascido, por maior que fosse a sua liberdade ou o
seu poder, ser entregue à mãe, ou a uma ama, a tutores e a
guardiões, até que a idade e a educação o trouxessem à
idade da razão e o habilitassem a governar-se a si próprio
e aos outros? As necessidades da sua vida, a saúde do seu
corpo e a instrução da sua mente exigiriam que se orien-
tasse pela vontade de outros, e não pela sua. E, contudo,
quem considerará que tais restrições e uma tal submissão
sejam inconsistentes ou que lhe arruinem a liberdade e o
poder a que teria direito, ou que conduzam à perda do seu
império em favor daqueles que o governaram durante a sua
menoridade? Este dominio que teriam exercido sobre ele
apenas o teria preparado para, melhor e mais rapidamente,
aceder ao seu império. Se alguém me perguntar quando é
que o meu filho terá idade para ser livre, responderei : logo
[84]
que atinja a idade que o meu rei necessita de ter para poder
governar. Conforme nos diz o judicioso Hooker (Eccl.
Pol., Livro I, Secção 6): Identificar o momento preciso em que
se pode dizer que um homem atingiu a idade da razão, em que se
torna capaz de conhecer aquelas leis pelas quais deve nortear as
suas acções, não é tarefa simples. É muito mais fácil determiná-lo
empiricamente, discernido pelos sentidos quando emerge, do que
pela perícia ou pela erudição de quem quer que seja.
[85)
inteligência, para o bem dos seus filhos, enquanto tal for
necessano.
[86]
pai morre enquanto os filhos são ainda menores? Não
passam para a tutela da mãe, a quem ficam a dever a mesma
obediência que deveriam ao seu pai caso permanecesse
vivo? E, por acaso, alguém dirá que a mãe possui um
poder legislativo sobre os filhos, através do qual possa
estabelecer regras permanentes que os vinculem para todo
o sempre, nomeadamente no que respeita à regulamen-
tação da sua propriedade e à limitação da sua liberdade,
em todos os momentos das suas vidas? Ou que tenha
autoridade para as impor de forma coerciva, inclusiva-
mente através da aplicação da pena de morte? Este é o
poder específico do magistrado, que em nada se assemelha ao
poder que um pai detém sobre os seus filhos. O seu
domínio sobre os filhos é apenas temporário, não atin-
gindo, nem as suas vidas, nem as suas propriedades.
Pelo contrário, não é mais do que um auxílio que lhes é
prestado, em face das fraquezas e das imperfeições que são
próprias da infancia, bem como uma disciplina que lhes é
concedida, necessária para a sua educação. E ainda que um
pai possa dispor dos seus próprios bens como entender,
sempre que os seus filhos não se encontrarem em perigo
de vida por indigência, o seu poder não se estende, de
modo algum, às suas vidas ou aos beneficias que o seu
trabalho, ou a generosidade de outros, lhes tenha
proporcionado. Muito menos o poder de um pai toca a
liberdade dos filhos, a partir do momento em que obtive-
rem a alforria que decorre da transição para a maioridade.
Cessa, então, o império paterno. Daí em diante, um pai não
poderá dispor da liberdade do seu filho mais do que da de
qualquer outro homem. E aquela jurisdição a que um
homem se poderá subtrair, já que conta com a autorização
expressa da autoridade divina para deixar pai e mãe e unir-
-se à sua mulher, será forçosamente tudo menos absoluta
ou perpétua.
[87]
§ 66. Chega uma altura em que um filho se torna
livre relativamente à vontade e ao domínio do seu pai, tal
como o pai se encontra livre em relação à vontade de qual-
quer outro homem. A partir desse momento, pai e filho
permanecem igualmente livres de quaisquer constrangi-
mentos, a não ser aqueles que forem comuns a ambos,
decorrentes, seja da lei da natureza, seja do direito interno
do seu país. Contudo, esta liberdade de modo algum exime
o filho do dever de honrar pai e mãe, que lhe é imposto pela
lei de Deus e pela lei da natureza. Deus criou os pais para
que fossem instrumentos do seu grande desígnio de perpe-
tuação da humanidade e causa da vida dos seus filhos.
Por isso, ao mesmo tempo que atribuiu aos pais a obri-
gação de alimentarem, preservarem e educarem os seus
filhos, Deus atribuiu aos filhos a obrigação de perpetua-
mente honrarem os seus progenitores. Para além disso, esta é
uma obrigação que compreende um dever de demons-
tração pública de estima e de reverência para com os
pais, que assume duas facetas e compromete duplamente
os filhos. Por um lado, inviabilizando comportamentos
que possam ofender, afrontar, perturbar, ou pôr em perigo
a felicidade ou a vida daqueles de quem receberam as
suas. E, por outro, atribuindo-lhes a responsabilidade de
participarem em todas as acções de defesa, apoio, assis-
tência e conforto daqueles que os geraram e lhes permi-
tiram que pudessem desfrutar de todos os prazeres que a
vida nos traz. E nenhum Estado, nem nenhum privilégio,
podem libertar os filhos destas obrigações. Ora, tudo isto
está longe, contudo, de atribuir aos pais um poder de
comando sobre os seus filhos, ou uma autoridade de defi-
nirem leis e de disporem como entenderem das suas vidas
ou das suas liberdades. Uma coisa é ter a obrigação de hon-
rar, respeitar, mostrar gratidão e prestar assistência; outra,
muito diferente, é exigir obediência e submissão absolutas.
Um rei, no seu trono, tem o mesmo dever de honrar a mãe
[88]
que qualquer filho tem para com os seus pais, todavia, isto
não diminui a sua autoridade, nem o coloca sob o governo
materno.
[89]
procedia como um pai, que castiga seu filho (Deuteronómio,
8, 5) , isto é, com ternura e afecto, não lhes impondo uma
disciplina mais severa do que a mais conveniente, sendo
certo que teria demonstrado menos amor por eles caso a
abrandasse. É a este poder que os filhos devem obediência,
de maneira a que os sacrificios e os cuidados que os pais
colocam na sua educação não aumentem, nem sejam mal
recompensados.
[90]
instrução dos filhos ficar concluída. Esta é, aliás, uma tarefa
que poderá ser alienada ainda antes deste momento, já que
um homem poderá colocar a educação dos seus filhos
nas mãos de outros. Aquele que assim agir, coloca o filho
como aprendiz de outro, para quem transfere uma boa
parte da obediência que o filho lhe devia, a ele e à mãe. Ao
invés, e no que diz respeito à outra parte dos deveres
dos filhos para com os pais, o dever de honrar, esse perma-
nece sempre intacto, já que nada o pode cancelar. E de tal
modo inseparável de ambos, que a autoridade do pai não é
capaz de retirar este direito à mãe, nem poderá homem
algum libertar o filho do dever de honrar aquela que o deu
à luz. Contudo, quer a primeira, quer a segunda parte
destes deveres, estão longe de co nsubstanciar um poder
legislativo, capaz de ditar leis e de as fazer cumprir coerci-
vamente, através do recurso a penas que possam incidir
sobre a propriedade de um homem, a sua liberdade, o seu
corpo e a sua própria vida. O poder de domínio tennina
com a menoridade. Por outro lado, o dever que um filho
tem para com o pai, de o honrar, respeitar, auxiliar e defen-
der, e de lhe oferecer todos os seus préstimos que a gra-
tidão possa exigir, este é já um dever que se prolonga
durante toda a vida. Contudo, nada disto coloca um ceptro
real nas mãos de um pai , nem lhe confere um poder sobe-
rano sobre os filhos. Não possui qualquer donúnio sobre a
propriedade ou o comportamento dos filhos, nem o me-
nor direito de lhes impor a sua vontade em todas as coisas.
Se bem que ao filho de modo algum fique mal mostrar
deferência para com o pai em tudo aquilo que não acarre-
tar grandes inconveniências, para ele ou para a sua família.
[91]
benfeitor, de tal grandeza que nada do que possua ou do
que possa fazer será suficiente para a saldar. E, contudo,
nada disto concede a quem quer que seja uma autori-
dade ou um direito de legislar sobre aquele que assim se
encontrar obrigado ou endividado. E é evidente que, em
si mesmo, o mero título de paternidade não é suficiente
para desencadear tais obrigações. Não só porque, tal como
ficou dito acima, são igualmente devidas à mãe, mas tam-
bém porque estas obrigações para com os pais, e os níveis
daquilo que, em função delas, é exigido aos filhos, poderão
variar consoante os cuidados e a ternura, as moléstias e as
despesas que muitas vezes são dedicados a um filho mais do
que a outro.
[92]
mais ténue parcela do tipo de domínio que um príncipe ou
um magistrado detém sobre os seus súbditos.
[93]
por quem a tomar naquelas condições, isto é, por quem
se mostrar disposto para aceitar a jurisdição do governo
em que se situa, e este não é um qualquer vínculo ou
compromisso natural, mas antes uma submissão voluntária.
Os filhos de cada homem são, por natureza, tão livres como
o próprio pai ou como o foi qualquer um dos seus ante-
passados. Deste modo, e enquanto permanecerem livres,
podem obviamente escolher a que sociedade querem
pertencer e a que comunidade política se submeterão.
Contudo, para poderem usufruir da herança dos seus ante-
passados, terão de a aceitar precisamente nos mesmos
termos em que os seus antepassados a possuíram, e de a
sujeitar a todas as condições a que a sua posse se encontrar
submetida. Trata-se, portanto, de um poder através do qual
os pais podem comandar a obediência dos filhos, mesmo
quando ultrapassam a menoridade, e, bem assim, submetê-
-los a este ou àquele poder político. Não o fazem, con-
tudo, por um qualquer direito peculiar de paternidade, mas
pela possibilidade que assim se lhes oferece de recompen-
sarem a adesão dos filhos. Ora, este não será um poder
maior do que aquele que um francês exercerá sobre um
inglês, quando o segundo, na expectativa de receber por
herança a propriedade do primeiro, tem seguramente um
forte motivo para lhe obedecer. E, para usufruir da herança
em causa, quando finalmente a receber, terá necessa-
riamente de se submeter às condições anexas à posse da
terra adoptadas pelo país em que se situa, seja a França ou a
Inglaterra.
[94]
durante toda a vida e em todas as circunstâncias, entre
os quais se incluem o auxílio e a defesa, a honra, o respeito,
e tudo aquilo que os romanos incluíam no conceito de
piedade. Contudo, nada disto confere aos pais um poder de
governo, isto é, de adoptar leis e de as fazer aplicar coerci-
vamente sobre os seus filhos. Apesar de tudo o que lhes é
devido, os pais não possuem qualquer poder de dorrúnio
sobre a propriedade ou sobre o comportamento dos seus
filhos . E, no entanto, é perfeitamente compreensível que,
em circunstâncias bem precisas, os pais de família se consti-
tuam como príncipes, tal como se verificou no início dos
tempos, e ainda hoje se pode testemunhar, naqueles lugares
onde a fraca densidade populacional decorrente da escassez
de habitantes fornece às fanúlias um amplo espaço de
manobra para se poderem dispersar e instalar em regiões
até então inabitadas I. Em tais circunstâncias, o pai teria
sido um governante para os seus filhos desde o início da sua
[95]
infancia. Ora, uma vez que teria sido difícil para os homens
viverem em conjunto sem um qualquer governo, torna-
-se plausível que, ao atingirem a idade adulta, os filhos
elegessem o pai para o desempenho dessas funções , por um
consentimento tácito ou expresso, já que, deste modo,
estariam praticamente a dar continuidade ao poder que
havia exercido até então. Para o efeito, nada mais se exigia
do que a autorização para que o pai continuasse a exercer,
sozinho, na sua família, aquele poder da lei da natureza que
cada homem livre possui. Por via deste consentimento
cada membro adulto da família cedia o seu poder ao pai,
conferindo-lhe, assim, um poder monárquico enquanto a
família permanecesse unida. Torna-se, contudo, evidente
que este poder monárquico do pai não decorria de um
qualquer direito paternal, mas do consentimento dos filhos.
Disto ninguém poderá duvidar. Suponhamos que um
estrangeiro se introduzia na sua casa, por acaso ou em
virtude de uma relação comercial, e ali matava algum dos
seus filhos ou cometia outro delito qualquer; seguramente
que o poderia condenar à morte e executá-lo, e, bem
assim, aplicar-lhe outra sanção qualquer, exactamente do
mesmo modo como o faria caso o delito em causa tivesse
sido cometido por um dos seus filhos . Contudo, é im-
possível que o pudesse fazer em virtude de uma qualquer
autoridade paterna, já que o delinquente não era seu
filho. Nesta circunstância, a legitimidade da sua actuação
decorreria directamente da lei da natureza e do poder
executivo que lhe fora conferido enquanto homem livre.
E, por outro lado, apenas ele poderia punir crimes
cometidos no seio da sua família, uma vez que o res-
peito que os filhos tinham por ele havia levado a que
consentissem que tal poder continuasse a ser exercido pelo
pai , a quem deste modo reconheciam uma dignidade e
uma autoridade superiores às dos restantes membros da
família.
[96]
§ 75. Portanto, terá sido com facilidade e quase
naturalmente, que, através de um consentimento tácito e
praticamente inevitável, os filhos abriram caminho à auto-
ridade e ao governo do pai. Acostumados como estavam,
desde a infancia, a seguir as suas instruções e a submeter-
-lhe as suas pequenas disputas, uma vez atingida a idade
adulta, quem melhor do que o pai para os governar? O
facto de as suas propriedades serem de dimensões redu-
zidas e de a sua cobiça ser ainda menor, conduzia a que
raramente surgissem grandes controvérsias entre eles.
Por outro lado, quando alguma delas surgia, de facto, onde
poderiam encontrar um árbitro mais apropriado para a
dirimir do que aquele homem que os havia criado e
educado e que a todos tratava com grande ternura? Não
será, portanto, de espantar que não tivessem estabelecido
qualquer distinção entre menoridade e maioridade, nem
que não esperassem com ansiedade por atingir os vinte e
um anos, ou qualquer outra idade que lhes pudesse atribuir
o direito de dispor livremente de si próprios e das suas
fortunas, uma vez que tudo o que desejavam era poder
continuar sob a sua tutela. O governo a que se encon-
travam sujeitos continuava a visar a sua protecção, mais do
que a sua repressão. E em lado algum poderiam encontrar
maior segurança para as suas vidas, para as suas liberdades e
para as suas fortunas do que aquela que lhes era assegurada
pelo governo de um pai.
(97]
emergiram. Contudo, se os príncipes devem este título ao
seu direito de paternidade, e se isto bastar para provar o
direito natural dos pais de jàmília à autoridade política, na
medida em que eram eles quem geralmente exercia de
Jacto o poder, então, caso este argumento seja considerado
válido, afirmo que provará com igual força que todos os
príncipes, ou melhor dizendo, que apenas os príncipes,
devem ser sacerdotes, já que é certo que, no início, o pai de
família era sacerdote, ao mesmo tempo que era governante na sua
própria casa.
[98]
Capítulo VII
[99]
tados e criados pelos pais até que sejam capazes de cuidar
de si próprios.
[100]
até que os filhotes sejam capazes de usar as asas, e procurar
o seu próprio sustento.
[101]
jugal pudesse ser dissolvida com facilidade ou com
frequência, a capacidade de ambos de agir com previdência
e de garantir os bens necessários para o sustento e a instru-
ção da sua descendência comum ficaria profundamente
perturbada.
(102]
da mulher do que aquele que ela detém sobre a dele. Este
poder do marido está tão afastado do poder de um rei abso-
luto, que a mulher possui, em muitos casos, o privilégio de
se separar dele, sempre que o direito natural ou o con-
trato conjugal o permitir. Tudo isto independentemente
da questão de saber se o contrato foi celebrado por ambos
num estado de natureza, ou de acordo com os costumes e
as leis do país em que vivem. E, em caso de separação, os
filhos permanecerão com o pai ou com a mãe, conforme
o contrato em causa o determinar.
(103)
ao regulamento próprio que for adoptado por ocasião da
celebração do contrato que reúne marido e mulher na
referida sociedade. De todas elas apenas se exige que sejam
compatíveis com a finalidade específica que as enforma,
designadamente a procriação e a instrução dos filhos, já
que nada se pode exigir de uma sociedade que não seja
necessário para a concretização dos fins para os quais ela
foi constituída.
[104]
estado, de modo algum poderão ser considerados como
integrando a sociedade civil, cujo objectivo principal
é a preservação da propriedade.
(105]
§ 87. Tal como tivemos já a oportunidade de de-
monstrar, o homem nasce com um direito à liberdade
perfeita e ao gozo incontrolado de todos os direitos e de
todos os privilégios da lei da natureza, em igualdade de
circunstâncias com todos os outros homens ou grupos de
homens. Por isso, possui, por natureza, o poder, não ape-
nas de preservar a sua propriedade, isto é, a sua vida, a sua
liberdade e os seus bens, contra os danos e os ataques de
outros homens, mas também de julgar todos aqueles que
violarem aquela lei, aplicando-lhes as sanções que consi-
derar adequadas à natureza das ofensas cometidas, sem
excluir a pena de morte, nos casos em que a atrocidade
do crime assim o exigir. Porém, jamais poderá existir, ou
subsistir, uma sociedade política que não detiver o poder de
preservar a propriedade, e, para o efeito, punir todas as
ofensas que possam ser cometidas por qualquer um dos
seus membros. Nestes termos, só existirá uma sociedade
política quando cada um dos membros que a integra abdicar
deste seu poder natural, colocando-o nas mãos da
comunidade, em todos os casos em que não se encontrar
impedido de recorrer à protecção da lei por ela estabele-
cida. Deste modo, excluem-se todos os juízos privados de
qualquer um dos seus membros particulares, e a comu-
nidade emerge como árbitro, estabelecido mediante um
sistema de leis promulgadas e vigentes, imparciais e comuns
a todos os membros, que actua através de homens
autorizados pela comunidade para desempenharem três
grandes tarefas, a saber, executarem as leis por ela esta-
belecidas, dirimirem todos os diferendos que possam surgir
entre os membros dessa sociedade quanto a questões de
direito, e punirem todas as ofensas que um dos mem-
bros possa cometer contra a sociedade assim estabelecida,
aplicando as penalidades previstas na lei. Torna-se assim
fácil identificar quem está e quem não está reunido numa
sociedade política. Vi11em numa sociedade civil, uns com os
[106]
outros, todos aqueles que se encontrarem reunidos num
só corpo e possuírem um sistema jurídico e judicial a que
possam recorrer, com autoridade para resolver todas as
controvérsias que surjam entre eles, bem como para punir
os transgressores. Pelo contrário, quem não usufruir de
uma tal possibilidade de recurso comum, neste mundo,
entenda-se, permanecerá num estado de natureza, em que,
à falta de outro, cada um é juiz, intérprete e executor, em
tudo o que lhe disser respeito - o que, tal como já ficou
demonstrado, constitui um estado de natureza perfeito.
[107]
delitos que forem cometidos no seio da comunidade, de
acordo com as leis que tiverem sido promulgadas para o
efeito, e determinar, com base nos juízos que adoptar e a
partir das circunstâncias concretas de cada caso, o modo
como deverão ser punidas as ofensas cometidas a partir do
exterior. E , tanto num caso como no outro, utilizarão a
força de todos os membros da comunidade, sempre que
necessário.
(108]
§ 90. Torna-se assim evidente que a monarquia abso-
luta, tida por alguns como sendo a única forma de governo
possível na terra, é, na verdade, incompatível com a sociedade
civil, razão pela qual não pode sequer ser considerada como
uma forma de governo civil. O objectivo da sociedade civil é
evitar e remediar os inconvenientes do estado de natureza
que decorrem, precisamente, do facto de cada homem
se constituir como juiz em causa própria . Desiderato que
cumpre através do estabelecimento de uma autori-
dade comum reconhecida por todos, a que cada um dos
membros dessa sociedade poderá recorrer sempre que
for vítima de injúria ou se vir envolvido em qualquer
controvérsia que possa surgir, e à qual todos devem obe-
diência2. Onde quer que se encontrem quaisquer pessoas
que não disponham de uma autoridade a que possam
recorrer para a resolução das disputas que surjam entre elas,
essas pessoas permanecerão num estado de natureza, que é
precisamente a condição em que se encontram todos os
príncipes absolutos relativamente àqueles que se encontram
sob o seu domínio.
[109)
às suas ordens. Um tal homem, seja qual for o título que
detiver, Czar, Grand Signior, ou como o quisermos chamar,
encontrar-se-á num estado de natureza, quer em relação
a todos aqueles que estejam sob o seu domínio, quer em
relação a todo o resto da humanidade. Onde quer que
encontremos dois homens, que não possuam uma regra
permanente nem um juiz comum a quem recorrer neste
mundo para dirimir as controvérsias de direito que surjam
entre ambos, diremos que permanecem no estado de natu-
reza e sujeitos a todos os seus inconvenientes3. Apenas esta
lastimável diferença os separa do súbdito, ou, melhor, do
escravo, de um príncipe absoluto. No estado de natureza
normal, um homem detém o privilégio de identificar os
seus direitos, bem como de os salvaguardar, na medida das
[110]
suas possibilidades. Já quando a propriedade de um homem
é invadida pela vontade ou pelas instruções do seu mo-
narca, não só lhe é negada qualquer possibilidade de
recurso, própria de todos aqueles que vivem em sociedade,
como também lhe é recusada qualquer possibilidade, seja
de julgar, seja de defender os seus direitos. Nestas circuns-
tâncias, um homem vê-se degradado da condição comum
a todos os seres racionais e exposto às misérias e aos
inconvenientes que são de esperar de quem, encontrando-
-se num estado de natureza em que não conhece quaisquer
constrangimentos, está corrompido pela lisonja e investido
de um poder imenso.
[111]
mentos violentos que possam ser adoptados pelos súbditos
no seu inter-relacionamento mútuo. Esta é uma prerro-
gativa reconhecida universalmente; e ninguém deixará de
considerar que quem a negar ou a tentar destruir, merece
ser considerado inimigo declarado da sociedade e da hu-
manidade. Existem, contudo, razões para duvidar se isto se
fica a dever a um verdadeiro amor pela sociedade e pelo
género humano e à caridade que todos devemos uns
aos outros. Nada separa esta atitude daquilo que seria de
esperar e de exigir, naturalmente, de todos os que aprecia-
rem verdadeiramente o seu poder, o seu lucro ou a sua
grandeza, na medida em que tratariam de evitar que qual-
quer um dos animais que se esforçam e trabalham como
escravos unicamente para o seu poder e para o seu proveito,
alguma vez se pudessem prejudicar ou destruir uns aos
outros. Os cuidados que lhes são prestados não decorrem
de um sentimento de amor do senhor para com eles, mas
do amor que tem para consigo próprio, bem como para
com os beneficias que deles possa receber. Que protecção,
que barreiras existem numa tal condição que possam trazer
segurança contra a violência e a opressão deste senhor absoluto?
Esta é uma questão que dificilmente se poderá colocar.
Dir-nos-ão que a simples procura de segurança merece a
morte. Por um lado, concederão prontamente que nas
relações entre súbditos deverão existir medidas, leis e juízes
capazes de garantir a paz e a segurança mútuas. Por outro
lado, porém, entendem que o governante deve ser absoluto e
encontrar-se acima de todas estas circunstâncias. Na
medida em que detém poder para infringir os maiores
prejuízos e os maiores males, é sempre com total justiça
que os comete. Por isso, perguntar como é que uma pessoa
se pode proteger dos males e das injúrias que lhe possam
ser provocados por quem detém todo o poder, é logo
considerado facciosismo e rebelião. Como se os homens,
ao deixarem o estado de natureza para se reumrem em
[112]
sociedade, tivessem chegado a acordo que todos estariam
submetidos aos constrangimentos das leis, excepto um, que
continuaria a gozar de todas as liberdades do estado de
natureza, acrescidas de um poder imenso e desregrado pela
impunidade. Isto equivaleria a pensar que os homens são
tão estúpidos ao ponto de se preocuparem com os pre-
juízos que lhes possam ser causados pelas doninhas ou pelas
raposas, procurando evitá-los; mas não só estão prontos para
serem devorados por leões, como ainda procuram segurança
entregando-se a eles.
(113)
negligência e pela inocência dos primeiros homens,
acabaria por assumir uma certa autoridade, ou um hábito
de santidade, conforme alguns nos pretendem persuadir.
Nesta circunstância, porém, o próprio tempo se teria en-
carregado de demonstrar que os sucessores destes chefes
naturais primitivos eram homens de outra cepa, tornando-
-se, então, manifesto para todos os membros da comu-
nidade que as suas propriedades não encontravam qualquer
segurança sob o governo destes homens, contrariamente
ao que dantes se verificava. (E não podemos esquecer que
a única finalidade do governo se prende com a preservação
da propriedadé.) Tornava-se assim manifesto para todos
que ninguém poderia estar seguro, nem descansado, muito
menos considerar-se inserido numa sociedade civil, até que o
poder legislativo fosse atribuído a um corpo colectivo,
tal como um Senado ou Parlamento ou o que se quiser.
Assim, cada pessoa singular ficaria igualmente submetida
com as demais àquelas leis que elas mesmas tivessem
adoptado, enquanto parte integrante do legislativo. Nin-
guém escaparia, por autoridade própria, à força das leis
que viessem a ser adoptadas, nem poderia reivindicar
[114]
qualquer estatuto de superioridade que lhe permitisse estar
acima das leis, ou justificar os seus atropelos, ou os dos seus
familiares ou protegidos. Nenhum membro de uma sociedade
civil pode estar isento das leis que essa sociedade adopta,S . Senão
vejamos. Um homem que se comportar como bem en-
tender, e em relação ao qual não existir qualquer instância
na terra a que se possa recorrer para obtenção de repa-
rações ou de segurança contra os danos que cometer,
permanecerá obviamente num estado de natureza e não será
parte de qualquer sociedade civil. A menos que se afirme que
o estado de natureza e o estado civil são uma e a mesma
coisa. E ainda estou para encontrar quem adopte a causa da
anarquia com entusiasmo suficiente para o afirmar.
[115]
Capítulo VIII
[117]
da mmona. Tudo aquilo que constitui um só corpo terá
necessariamente que se movimentar numa só direcção.
Nestes termos, uma comunidade apenas pode agir atra-
vés do consentimento dos membros individuais que a
integram. Para além disso, um corpo terá de se mover na
direcção em que o impulsionar a maior de todas as forças
a que estiver sujeito, a qual, no caso de uma comunidade
política, é indubitavelmente o consentimento da maioria. De
outro modo, jamais poderia agir ou até mesmo continuar
a existir como um corpo, uma comunidade, que é aquilo, ao
fim e ao cabo, que os membros individuais que a integram
acordaram construir com o seu consentimento. Daí que,
pelo consentimento que exprimiu, cada um dos mem-
bros de uma comunidade tenha o dever de se submeter à
vontade da maioria. E é por esta razão que, nas assembleias
parlamentares, encarregadas de accionar as comunidades a
que se reportam, através da adopção de normas de direito
positivo, sempre que não se estabelece um número mínimo
de votos para que uma decisão seja validamente adoptada,
uma lei decretada pela maioria constitui sempre uma norma
jurídica estatuída pelo todo, e é obviamente vinculativa,
tão vinculativa como se possuísse, pelas leis da natureza e
da razão, o poder de toda a comunidade.
[ 118)
uma tal atitude se assemelharia a um contrato? Que novos
compromissos traria, se cada um não tivesse qualquer
obrigação de obedecer aos decretos da sociedade assim
estabelecida, a não ser àqueles que, numa avaliação caso
a caso, julgasse convenientes e aos quais decidisse dar o
seu consentimento? Em tais circunstâncias, um indivíduo
continuaria a gozar exactamente da mesma liberdade que
detinha antes do pacto, e que todos os homens possuem
enquanto permanecem num estado de natureza: uma
liberdade de se submeter apenas àquilo que considerar ser
do seu interesse e da sua conveniência.
[119]
jamais poderá agir como um corpo, e, consequentemente,
dissolver-se-á de novo imediatamente.
[120]
facto de a história não nos oferecer mais do que um
relato muito sumário dos homens que viveram em conjunto
num estado de natureza. Mal os inconvenientes de uma
tal condição, a par do amor e da necessidade que todos
sentiam pelo convívio com os outros, fizeram com que
os primeiros agrupamentos humanos se constituíssem, os
homens começaram logo a unir-se e a incorporar-se em
comunidades políticas, de modo a poderem permanecer
juntos. Para além disso, se, pelo facto de não ouvirmos falar
que tivessem vivido numa tal condição, não pudermos
supor que os homens alguma vez tenham vivido num estado
de natureza, poderemos igualmente concluir que os solda-
dos de Salmanasser ou de Xerxes nunca foram crianças,
já que a história nada nos diz deste período das suas
vidas, e só os refere como adultos incorporados nos seus
exércitos. Por toda a parte, o governo é anterior aos
registos históricos, e a escrita só surge depois de um longo
período de convivência em sociedade civil ter propor-
cionado aos homens, por outros meios mais necessários, a
segurança, o bem-estar e a abundância. Só quando estas
condições se encontraram devidamente asseguradas é que
os homens começaram a procurar a história, em busca
dos seus fundadores e das suas origens, e, nessa altura, já a
memória de tudo isto se havia perdido. Tal como as pessoas
particulares, também as comunidades políticas costumam
desconhecer o seu nascimento e a sua infância. É aos relatos aci-
dentais deixados por outros que ficam a dever o pouco que
conhecem das suas origens. E todas as indicações que pos-
suímos dos primeiros regimes políticos estabelecidos entre
os homens (excepto aquelas que se referem aos judeus, em
que se verifica uma interferência directa do próprio Deus,
o que em nada favorece o domínio paternal) constituem
exemplos claros desta origem das sociedades políticas que
tenho vindo a apresentar, ou, então, pelo menos, para isso
apontam.
[121]
§. 102. Para uma pessoa não aceitar que Roma e Véneza
tiveram a sua origem na associação de vários homens, livres
e independentes uns dos outros, entre os quais não exis-
tiam quaisquer relações naturais de superioridade ou de
subordinação, é preciso que possua uma inclinação bem
estranha para negar os factos palpáveis mais evidentes, sempre
que estes não estiverem de acordo com as suas teorias. Para
além disso, a acreditar no que nos diz José Acosta, muitas
partes da América não conheciam qualquer forma de governo.
É muito provável, escreve a propósito dos habitantes do
Peru, que estes homens durante muito tempo não tiveram reis nem
comunidades políticas, mas viviam em bandos, como ainda hoje
vivem os cheriquanas na Flórida, ou os índios no Brasil, ou muitas
outras nações que não têm reis fixos, escolhendo os seus chifes
consoante a ocasião, tanto na paz como na guerra, conforme melhor
lhes convém. (Livro I, capítulo 25 .) E ficou já provado que, em
tais circunstâncias, cada um destes homens se encontrava, por
nascimento, sujeito ao seu pai, ou ao chefe da sua família -
sendo certo, contudo, que o dever de submissão que cada
criança tem para com o seu progenitor em nada lhe retira a
liberdade de se unir à comunidade política que entender,
quando atingir a idade da razão. De qualquer modo, é
evidente que estes homens eram de facto livres. Os nossos
políticos podem atribuir a um ou outro destes homens uma
superioridade hierárquica sobre os demais. O certo, porém,
é que eles próprios não a reivindicavam; pelo contrário,
por consentimento consideravam-se todos iguais, até que,
também por consentimento, decidiram eleger alguém de
entre eles para os governar. Deste modo, todas as suas
sociedades políticas surgiram a partir da união voluntária e do
acordo mútuo entre homens que agiam livremente na
escolha dos seus governantes e das suas formas de governo.
[122]
de Justino (Livro III, capítulo 4), saíram de Esparta com
Palanto para se organizarem politicamente sob um governo
estabelecido pelo seu consentimento mútuo, eram todos
homens livres e independentes uns dos outros. E creio ter
já apresentado vários exemplos, retirados da história, de
homens livres vivendo num estado de natureza, que, uma vez
juntos, se incorporaram numa comunidade política. Por outro
lado, se a falta de exemplos históricos constituísse prova de
que os governos não tiveram, nem podiam ter tido uma tal
origem, julgo que os defensores do império paternal não
podiam fazer melhor do que abandonar os seus intentos de
invocar uma tal circunstância como prova dos seus
argumentos contra a liberdade natural de todos os homens.
Em boa razão, não se pode atribuir grande força a um
argumento no qual se justifica aquilo que se propõe - o
dever ser, de direito - a partir da identificação daquilo
que, de facto, se verificar ou nos for proposto pelo registo
histórico. Apesar disso, caso fossem capazes de nos apre-
sentar outros tantos exemplos históricos de gor;ernos consti-
tuídos originalmente por direito paterno, como aqueles que
acabei de apresentar com origem contratual , então pode-
ríamos, sem grande perigo, aceitar a sua causa. Contudo, se
me fosse permitido dar-lhes um conselho sobre a matéria,
dir-lhes-ia que fariam melhor em não esquadrinhar tanto
o passado em busca da origem dos governos, como têm vindo,
de Jacto, a fazer ultimamente, uma vez que se arriscam a
encontrar na base da maior parte deles algo muito pouco
favorável aos intentos que procuram promover, ou ao tipo
de poder que preconizam.
[123]
consentimento do povo. Tanto assim é que não há margem
para dúvida, seja sobre onde está a razão, seja sobre qual
terá sido a opinião e o comportamento dos homens no
momento em que ergueram um governo pela primeira vez.
[124]
que os governasse, e uma vez que o governo dificilmente
se poderá evitar entre aqueles que vivem em conjunto,
quem melhor para ocupar o lugar do que o progenitor
comum de todos eles, excepto se uma especial negligência,
crueldade ou outro qualquer defeito, mental ou fisico, o
tornassem incapaz de o exercer? Mas, suponhamos que o
pai morre, deixando como herdeiro alguém menos capaz,
seja por falta de idade, sabedoria ou coragem, seja por
qualquer outra razão. Ou suponhamos ainda que várias
famílias se reúnem e, por comum acordo, decidem perma-
necer unidas. Em tais circunstâncias, não se poderá duvidar
que os membros da comunidade usarão a sua liberdade
natural para entregarem o poder àquele que considerarem
mais apto e mais capaz de os governar bem. Assim encon-
tramos os povos da América que, vivendo fora do alcance
das espadas e da dominação sempre crescente dos dois
grandes impérios, o do Peru e o do México, gozavam da sua
liberdade natural, se bem que, caeteris paribus, habitual-
mente preferiam ser governados pelo herdeiro do seu
falecido monarca. Contudo, caso vissem nele um fraco, ou
um incapaz, não hesitavam em pô-lo de lado e substituí-lo
pelo mais robusto e mais valente de entre todos.
[125]
não será despropositado considerar neste momento as
razões que levaram os homens, no início dos tempos, a
adoptar, na generalidade, esta forma de governo. No
momento da instituição de algumas comunidades políticas,
é possível que a preeminência do pai de familia tenha dado
origem à concentração do poder e à sua colocação nas
mãos de um só homem. Porém, é evidente que a sobre-
vivência desta forma de governo unipessoal de modo algum
se ficou a dever a qualquer respeito pela autoridade
paterna, já que, na sua origem, praticamente todas as pe-
quenas monarquias, em geral, eram electivas, se não habi-
tualmente, pelo menos de forma esporádica.
[126]
quer exorbitâncias daqueles a quem se havia concedido
autoridade sobre toda a sociedade, seja de equilibrar o po-
der do governo, organizando-o em partes distintas e atri-
buindo cada uma a pessoas também diferentes. Os homens
não haviam ainda sentido a opressão do domínio tirânico.
As modas da época, as suas possessões e formas de vida
davam azo a poucos motivos de cobiça ou de ambição.
Nem umas, nem outras, lhes forneciam quaisquer motivos
de apreensão ou de precaução contra um tal perigo. Por
isso, ninguém se deverá espantar pelo facto de os homens
se terem entregue a uma tal forma de governo que, aliás, e
como se viu, se apresentava como a mais óbvia e a mais
simples, e, para além disso, era a mais adequada ao estado e
à condição em que se encontravam nesse momento, já que,
naqueles dias, a defesa contra invasões e injúrias do exterior
era bem mais urgente do que poder contar, a nível interno,
com a protecção de numerosas leis. A igualdade decorrente
de um modo de vida pobre e simples confinava os desejos
de cada um aos limites estreitos das suas pequenas proprie-
dades , razão pela qual as controvérsias não abundavam.
Consequentemente, escasseando as transgressões e os de-
linquentes, não se fazia sentir qualquer necessidade de
muitas leis para dirimir as primeiras e punir os segu ndos,
nem de uma variedade de ministros, de juízes e de fun-
cionários para superintenderem os processos e fazerem
justiça. Para além disso, não se poderá deixar de supor que
entre aqueles que se estimam mutuamente ao ponto de se
unirem em sociedade existe, pelo menos, algum conhe-
cimento mútuo e alguma confiança. Assim, é inevitável
que aqueles que não integram a sociedade a que pertencem
lhes suscitem mais e maiores apreensões do que qualquer
um dos seus companheiros. Por isso, só podemos supor que
os primeiros cuidados e as primeiras preocupações destes
homens se tenham dirigido para a sua segurança colectiva
perante as ameaças do exterior. E, em face disto, é natural
[127]
que se tenham colocado sob uma forma de governo mais
capaz de corresponder a este desiderato, e seleccionado o
mais sábio e mais valente de entre eles para os chefiar
nas suas guerras, para os conduzir contra os seus inimigos,
numa palavra, para os governar, já que eram estas as prin-
cipais tarefas que era chamado a desempenhar.
[128]
lias que haviam expulsado, e propuseram-lhe o seguinte
acordo. Jifté ajudá-los-ia na guerra com os Amonítas e, em
contrapartida, o povo de Galaad faria dele o seu chefe. E
foi com estas palavras que o fizeram: O povo proclamou-o
seu chife e general (Juízes, 11, 11), o que, segundo parece, foi
equivalente a transformá-lo emjuiz. Aliás, segundo o texto
bíblico,Jifté morreu depois de ter julgado Israel (Juízes, 12, 7) ,
isto é, depois de ter sido o seu capitão general durante
seis anos. Assim, quando jotam repreendeu os habitantes de
Siquém a propósito das obrigações que tinham para com
Gedeão, que havia sido seu juiz e governante, diz-lhes o
seguinte: ele combateu por vós e livrou-vos dos madianitas, arris-
cando a sua própria vida (Juízes, 9, 17) . Os textos nada mais
nos dizem dele, a não ser dos seus feitos enquanto general,
e, na verdade, isso é tudo o que encontramos na sua histó-
ria, na de Gedeão, bem como na dos restantes Juízes. Para
além disso, Abimelec é particularizado, recebendo o trata-
mento de rei, se bem que, na melhor das hipóteses, mais
não terá sido do que um dos generais de Israel. E quando
os israelitas, cansados dos desmandos dos filhos de Samuel,
desejaram um rei, reivindicando, queremos ser como todas as
outras nações; o nosso rei administrará a justiça, marchará à nossa
frente e combaterá por nós em todas as guerras (1. Samuel, 8, 20),
Deus concedeu-lhes o pedido dizendo a Samuel: enviar-te-
-ei um homem, da terra de Benjamim, e tu o ungirás para chife
do Meu povo de Israel. Ele salvará o povo das mãos dos filis-
teus (1. Samuel, 9, 16). Como se a única ocupação de um
rei fosse comandar os exércitos e lutar em defesa do seu
povo. Tanto assim era que, por ocasião da unção de Saul,
enquanto derramava sobre ele um frasco de óleo, Samuel
declarou: O Senhor te ungiu príncipe sobre a sua herança
(1. Samuel, 10, 1). Por isso, também, depois de Saul ter sido
solenemente escolhido para rei e saudado como tal pelas
tribos em Mispá, a única objecção levantada por aqueles que
se mostraram relutantes em reconhecer a sua monarqma
[129]
foi perguntar: porventura poderá este salvar-nos (1. Samuel, 1O,
27)? Ora, com uma tal pergunta, mais não fizeram do que
mostrar que, em seu entender, aquele homem não podia
ser o rei deles, na medida em que não detinha as com-
petências nem as capacidades de liderança necessárias para
os defender na guerra. E quando Deus decidiu transferir
o poder para David, foi com estas palavras que o fez: Agora
o teu reinado não subsistirá. O Senhor escolheu para si um
homem segundo o Seu coração e fará dele chife do Seu povo
(1. Samuel, 13, 14). Como se a autoridade de um rei não fosse
além da de um general. Por esta razão, as tribos que, antes,
haviam permanecido fiéis a Saul e se haviam oposto ao
reinado de David, ao chegarem a Hebron com os termos da
sua submissão, expõem-lhe, entre outros argumentos que
lhe apresentaram como ao seu rei , o seguinte. Que já no
tempo de Saul, David era com efeito o seu rei, por isso não
viam qualquer razão para não o receberem como tal
naquele momento. Para além disso, argumentam ainda,
tempo atrás, quando Saul era nosso rei, eras tu que dirigias os
negócios de Israel e disse-te o Senhor: «tu apascentarás o meu povo
de Israel e serás o seu chife;> (II. Samuel, 5, 2).
[130)
necessidade de um general que os lidere e os defenda
dos seus inimigos no campo de batalha. Para além disso, a
grande confiança que então imperava entre os homens, a
par da inocência e da sinceridade daqueles tempos, po-
bres mas virtuosos, (como terão sido quase todos aqueles
momentos em que se construíram governos duradouros)
conduziram a que os fundadores de comunidades políti-
cas, no geral, colocassem todo o poder nas mãos de um só
homem, sem quaisquer limitações ou restrições expressas,
para além daquelas que decorriam da própria natureza da
comunidade e eram exigidas pela finalidade do governo.
Independentemente de se saber quem, pela primeira vez,
colocou o poder nas mãos de um só homem, é indubitável
que a ninguém foi confiado, a não ser para o bem e para
a segurança públicas. Do mesmo modo que ninguém
duvidará ter sido precisamente para a concretização de tais
objectivos que o poder terá normalmente sido exercido
durante os primeiros anos de vida de qualquer comuni-
dade política. Se assim não tivesse acontecido, estas jovens
sociedades jamais teriam subsistido. Sem pais fundadores
bondosos e empenhados no bem público como estes, qual-
quer governo se afundaria sob o peso das fraquezas e
das enfermidades próprias da sua infancia, circunstância em
que tanto o príncipe como o povo rapidamente pereceriam
em conjunto.
[131]
giam disputas acerca da obtenção de privilégios capazes de
diminuir ou de travar o poder dos governantes6. Por isso,
não se criavam dissensões entre os dirigentes e o povo,
seja acerca de quem deveria exercer o poder, seja acerca da
forma de governo a ser adoptada. Contudo, em idades
futuras, a ambição e a luxúria haveriam de conduzir a uma
situação em que os governantes passaram a almejar a
retenção e o incremento do seu poder, sem contudo terem
de cumprir as funções para as quais haviam sido empos-
sados. A par disso, a lisonja levou os príncipes a desenvol-
ver um interesse privado, distinto e separado do interesse
do povo. Terá sido então que os homens começaram a
compreender a necessidade de examinarem mais de perto
a origem e as prerrogativas do governo, e, bem assim, de
procurarem desenvolver mecanismos que lhes permitissem
restringir os excessos e prevenir os abusos de um tal poder,
que havia sido confiado a outras mãos exclusivamente para
o seu próprio bem, mas que agora era utilizado para os
prejudicar.
[132]
para, em conjunto, formarem um governo - e que o
tenham feito pelo seu próprio consentimento. Do mesmo
modo, podemos ainda verificar como é provável que,
num caso como no outro, tenham deposto o poder nas mãos
de um só homem, e optado por se colocar sob a alçada de
uma só pessoa, sem se preocuparem minimamente com o
estabelecimento de condições expressas, seja para a limi-
tação, seja para a regulamentação desse poder, já que, aos
olhos de todos, a honestidade e a prudência do governante
constituiriam as melhores garantias de segurança. Para além
disso, jamais terão sonhado sequer que a monarquia fosse
de jure divino, coisa que nunca ouvimos entre o género
humano até nos ser revelada pela teologia deste século.
Nem tão pouco terão permitido ao poder paternal um
direito de domínio que o pudesse elevar à condição de
alicerce do governo. E estou em crer que isto bastará para
demonstrar que, até onde a história nos pode esclarecer,
temos todas as razões para concluir que todos os governos
que tiveram origens pacíficas foram fundados no consenti-
mento do povo. Digo pacificas, na medida em que, noutro
lugar, teremos a oportunidade de tratar da conquista, con-
siderada por alguns como outra das suas origens.
A outra objecção que vejo ser levantada contra a origem da
política que tenho vindo a apresentar é a seguinte:
[133]
iniciar uma monarquia legítima, pela minha parte, mostrar-
-lhe-ei outros dez homens igualmente livres e, simulta-
neamente, capazes de se unirem e de se organizarem sob
um governo político, seja ele monárquico ou de qualquer
outro tipo. Se, por acaso, se verificar que um homem,
tendo nascido sob o domínio de outro, se vier a encontrar
suficientemente livre para possuir um direito de comandar
outros num império novo que venha a estabelecer, então,
torna-se manifesto que qualquer homem que tenha nascido
sob o domínio de outro poderá encontrar-se igualmente livre
de o fazer e, destarte, de se estabelecer como senhor, ou
como súbdito, de uma comunidade distinta e separada
daquela em que havia nascido. Nestes termos, e segundo
o próprio argumento daqueles que invocam uma tal objec-
ção, de duas uma: ou se reconhece que todos os homens
são livres, independentemente da condição em que nas-
ceram, ou, então, não poderá existir mais do que um só
príncipe e um só governo legítimos em toda a terra. E,
neste caso, restar-lhes-ia apenas mostrar-nos quem são.
Logo que o fizerem, não tenho a menor dúvida de que
toda a humanidade aceitará de bom grado render-lhes a
obediência que merecem.
[134]
numa tal condição natural de sujeição, seja a seus pais, seja
aos seus governantes, a eles e aos seus herdeiros.
[135]
mente SU)Cttos ao seu governo, razão pela qual deixamos de
poder invocar qualquer direito ou pretensão de podermos
usufruir da liberdade do estado de natureza. Aqueles que
assim raciocinam (os defensores do poder paternal, a quem,
aliás, tivemos já a oportunidade de responder) mais não
têm para oferecer do que o argumento de que os nossos
pais, ou os nossos progenitores, cederam a sua liberdade
natural e, na medida em que o fizeram, comprometeram-
-se, a si próprios bem como a todos os seus descendentes,
a uma sujeição perpétua ao governo a que eles próprios se
haviam submetido. É bem verdade que um homem tem a
obrigação de cumprir as promessas que fizer e os compro-
missos que assumir pessoalmente. O que não pode é com-
prometer os seus filhos ou a sua posteridade, seja através de
que pacto for. Quando um filho atinge a maioridade, torna-
-se tão livre como o seu pai, daí que nenhum acto do pai
possa diminuir a liberdade do filho, tal como não o pode fazer
em relação a qualquer outra pessoa. O que um homem
poderá fazer, isso sim, é condicionar o usufruto das posses-
sões que mantém, enquanto súbdito de uma comuni-
dade política, às condições que entender. Nomeadamente,
poderá determinar que, para as herdar, o seu filho terá de
permanecer súbdito daquela comunidade. Uma vez que a
herança em causa é propriedade do pai, este poderá dispor
dela como melhor lhe aprouver.
[136]
como qualquer outro dos membros dessa comunidade
política. Assim, apenas o consentimento pode tornar homens
livres em súbditos do governo e membros da comunidade em que
nasceram; o que se opera, individualmente, quando cada um
atinge a maioridade, e não de forma colectiva. As pessoas
não costumam fazer caso deste facto, e, pensando que um
tal consentimento nunca é prestado ou, então, que é
desnecessário, concluem que são naturalmente súbditos da
comunidade em que nasceram.
[137]
quaisquer obrigações pelo facto de o pai ser um súbdito
deste reino. Nem tão pouco estará vinculada a quaisquer
pactos celebrados pelos seus antepassados. Sendo assim, e
seguindo este raciocínio, que razões se poderão invocar
para negar idêntica liberdade a uma criança nascida em
qualquer outro lugar? Afinal, o poder que um pai possui
por natureza sobre os seus filhos é o mesmo, indepen-
dentemente do local onde estes possam ter nascido, e os
vínculos naturais que existem entre ambos não se encon-
tram delimitados pelas fronteiras concretas dos reinos e das
comunidades políticas.
[138)
obrigação de se submeter às leis desse governo como
qualquer outro dos seus súbditos. E isso em qualquer caso,
quer detenha grandes propriedades, que deixe aos seus
herdeiros para todo o sempre, quer possua uma simples
residência temporária, que mantenha unicamente durante
uma semana, quer apenas se limite a viajar livremente pelas
estradas desse país. Com efeito, o simples facto de um
homem se encontrar num território, constitui, por si só,
manifestação de um tal consentimento tácito ao governo
respectivo.
[139]
comunidade política e sujeito ao seu governo, terá de ofazer na
condição em que ele se encontra; quero dizer, terá de se submeter
ao governo da comunidade política em aUa jurisdição aqueles bens
se encontram, nas mesmas condições que qualquer outro
súbdito.
[140)
membro dessa sociedade. Tudo isto mais não constitui do que
uma protecção local e a homenagem que é devida a todos
aqueles que, não se encontrando num estado de guerra,
entram nos territórios de um determinado governo que
estende a todas as partes desse território a força das suas
leis. Em todo o caso, não é isto que traniforma um homem
em membro daquela sociedade e súbdito perpétuo dessa comu-
nidade política. Do mesmo modo, aliás, que ninguém se
torna súbdito de outro pelo facto de residir durante algum
tempo na sua família , embora enquanto lá permanecesse
tivesse a obrigação de acatar as regras e obedecer ao go-
verno doméstico que encontrasse. Assim, vemos que os
estrangeiros que vivem toda a sua vida sob a jurisdição de
outro governo que não o seu, e usufruem dos privilégios e
da protecção que lhes são oferecidos, têm a obrigação, até
mesmo por consciência, de se submeter à respectiva admi-
nistração, tanto quanto qualquer cidadão naturalizado.
Porém, não é por nela viver que alguém se transforma em
súbdito ou membro de uma comunidade. Nada poderá operar
uma tal transformação num homem, a não ser que ingresse
nessa comunidade através de um compromisso concreto, e
de uma promessa e pacto expressos. Tal é a minha opinião
acerca do princípio das sociedades políticas, e daquele con-
sentimento capaz de traniformar qualquer homem em membro de
uma qualquer comunidade política.
[141]
Capítulo IX
[143]
um governo, foi a preservação das suas propriedades. Tarefa
para a qual o estado de natureza se apresentava profunda-
mente inadequado em muitos aspectos.
Em primeiro lugar, carece de um sistema de direito
estabelecido com firmeza e conhecido de todos, recebido e
aceite por consentimento comum para servir de padrão
do bem e do mal, medida comum para a decisão de
todas as controvérsias que possam surgir entre os homens.
A lei da natureza é clara e inteligível para todas as criaturas
racionais. Contudo, perante os seus interesses privados,
os homens tornam-se parciais, e ignorantes, por falta de
estudo dessa mesma lei. Daí não se encontrarem em
condições de a reconhecer como norma obrigatória para
todos eles, aplicável na resolução dos seus conflitos par-
ticulares.
[144]
muitas vezes perigos graves, inclusivamente da própria
vida, para todo aquele que o intentar.
[145]
vícios de homens degenerados, não haveria necessidade de
qualquer outra, nem os homens teriam de se separar desta
grande comunidade natural, para se reorganizarem em
associações mais pequenas e divididas através de contratos
positivos.
O outro poder que um homem possui num estado de
natureza, é o poder de punir os crimes cometidos contra a lei
da natureza . Porém, prescinde destes dois poderes quando
se associa a uma sociedade política privada ou particular, se
assim a podemos chamar, e se incorpora numa comunidade
política destacada do resto da humanidade.
[146]
antes detinha, precisamente aquela parcela que vier a ser
exigida pelo bem, pela prosperidade e pela segurança da
sociedade. Tudo isto não só é necessário, como também é
justo, uma vez que todos os outros membros da sociedade
também o fazem.
[147]
Capítulo X
DAS FORMAS
DE UMA COMUNIDADE POLÍTICA
[149]
verificado, a comunidade poderá dispor dele de novo e
colocá-lo nas mãos de quem entender, dando lugar a uma
nova forma de governo. A forma de governo depende da
atribuição do poder supremo, que é o poder legislativo. Não
se pode conceber que um poder inferior possa ditar o que
quer que seja a um poder superior, muito menos que outro
poder, que não o poder supremo, possa legislar. E é da
atribuição do poder legislativo que decorre a forma de uma
comunidade política.
7 Co mmoll-wcaltil , no original. N . T.
(150]
Capítulo XI
[151]
poderá deter uma capacidade de legislar sobre uma
sociedade, a não ser através do consentimento dessa mesma
sociedade e da autoridade que dela receber. Por isso, o
dever de obediência a que estamos obrigados pelos vínculos
mais solenes, desemboca por inteiro, em última instância,
neste poder supremo, e rege-se pelas leis que promulga. De
igual modo, nenhum juramento que se possa prestar a uma
potência estrangeira, ou a um poder interno subordinado,
poderá alguma vez desobrigar um membro da sociedade
do dever de obediência que tem para com o legislativo que
actue no âmbito do mandato que lhe foi concedido. Nada
poderá obrigar alguém a obedecer a quaisquer comandos
contrários às leis devidamente promulgadas, ou que ultra-
passem aquilo que elas permitem. Aliás, seria ridículo
imaginar alguém vinculado a obedecer, em última instância,
a qualquer poder na sociedade que não seja o poder supremo.
ma11dato expresso para o fa z er, 011 c11tão por 11111a a11toridade assCIIte, 11a s11a origem,
sobre o commtimmto daq11clas pessoas para as quais se e11rorlfram a ~~~ is /ar, mtão
será da mais ger111Ítw tirarlia q11c se tratará. Não são leis, porta11to, aq11ilo q11e a
aprwação p1íhlira 11ão fez como tal (Hooker, Errl. Pol., /i 1m> / , secção I 0). A este
respeito, porta11to, ror111irá S11bli11har q11e t1m h11m l1omem poss11i por tJa t11reza 11111
poder ple11o e perfeito de roma11dar sociedades políticas i11teiras. Por isso, raso 11ão
oferecêssemos a rli11g11ém o 11osso COIISflltim e11to para q11e 11os govemasse, llilll'ríamos
li11res, sem q11e rli11g11ém ma11dasse em 11Ós. O ra, 11Ós ro11se11timos, de farto, em ser
.~<)l!ema dos, 11a medida em que a sociedade de q11e faze mos parte o ti11er fe ito, e até
q11e este COIISflltim e11to llfllha a ser rcr;ogado mediarlfe 11m acordo ig11almmte
1111iversa/.
É o ro11se11timmto q11e imprime 11alidade às leis lruma11as, sejam elas de que
espécie fo rem. lbidem.
[152]
Primeiro. Não é, nem pode ser, um poder arbitrário e
absoluto sobre as vidas e os bens do povo. Não represen-
tando mais do que o conjunto dos poderes que cada um
dos membros da sociedade entregou à pessoa ou à assem-
bleia que constitui o legislativo, um tal poder jamais se
poderá apresentar como algo superior àquilo que essas
mesmas pessoas possuíam enquanto viviam num estado de
natureza, antes de aderirem a uma sociedade, e que transfe-
riram para a comunidade. Nenhum homem pode transferir
para outro mais poder do que aquele que ele próprio
detém, e ninguém possui um poder absoluto e arbitrário
sobre si mesmo, ou sobre quem quer que seja, para destruir
a sua própria vida, ou para se apropriar da vida ou dos bens
de outro. Tal como se demonstrou, um homem não pode
submeter-se ao poder arbitrário de outro. No estado de
natureza, nenhum homem dispõe de um poder arbitrário
sobre a vida, a liberdade ou os bens de outro, mas apenas
do poder que lhe é concedido pela lei da natureza, para a
sua preservação e para a preservação do resto da huma-
nidade. Isto é tudo o que um homem cede, ou pode ceder,
a uma comunidade política, e, por seu intermédio, ao poder
legislativo. De tal modo que o legislativo de modo algum
poderá deter um poder superior a este. Na sua acepção
mais alargada, o poder do legislativo está limitado ao bem
público da sociedade. Trata-se de um poder que não tem
qualquer outra finalidade que não seja a preservação.
Portanto, jamais poderá deter o direito de destruir, escra-
vizar, ou de empobrecer deliberadamente os seus súb-
ditos9. As obrigações que nos são impostas pela lei da
[153]
natureza não terminam com a constituição das sociedades.
Pelo contrário, em muitos casos, são trazidas para perto
de nós pelas leis humanas que adicionam sanções, devida-
mente conhecidas, à lei da natureza para assegurar o seu
cumprimento. Assim, a lei da natureza permanece como
regra eterna para todos os homens, para aqueles que são
legisladores, e para todos os demais. A exemplo das suas
próprias acções e das dos outros, as regras que os legisla-
dores estabelecem para a regulamentação do comporta-
mento dos outros homens têm de ser conformes à lei da
natureza, isto é, à vontade de Deus, da qual é uma manifes-
tação. E uma vez que a lei fundamental da natureza não
prescreve mais do que a preservação da humanidade, nenhuma
sanção humana que se erga contra ela pode ser útil ou
válida.
roração do rorpo políti<"O, é ele que a11ima as partes que o i11tegram , que as ma11tÍ!m
tmidas e que as põe em marrlta, 11a exemção das ta r~fas que possam ser exigidas pelo
bem romum . A s leis políticas adoptadas (otll flista à ordem extema e à ro11rórdia m tre
os ltometts só são det,idammte.forjadas qumtdo partem do pri11rípio de que a 11011tade
do !tomem é i11teriormmte ohsti11ada, rebelde e avessa a qualquer obediê11ria às leis
sagradas da sua ttat~<reza. N uma pala11ra, a 11ào ser pressupondo que, em.fare da sua
mmte depravada , o !tomem é apmas um pouro melhor do que os animais sel11agm s,
as leis 11ão poderão e11quadrar o romportammto dos ltomms de modo a assegurar q~< e
11ão roi!Stitttem obstámlo para o bem romum , para wja sal11aguarda se ro11stituíram
as sociedades. Se 11ão o .fizerem, as leis 11ão serão perfeitas. (Hooker, Errl. Pol.,
livro I, serçào 10).
(154]
um juiz estabelecido, não será fácil convencer do seu erro
todo aquele que, através das suas paixões ou dos seus
interesses, a interpretar incorrectamente ou a aplicar de
forma indevida. Deste modo, a lei da natureza não serve,
como deveria, para determinar os direitos, nem para
defender as propriedades daqueles que vivem sob a sua
alçada, particularmente quando cada um é chamado a agir
como juiz, intérprete e executor em causa própria. E,
quem tiver a razão pelo seu lado, não será capaz de se
defender das ofensas e dos prejuízos que sofrer, nem de
punir os delinquentes, na medida em que apenas possa
contar com a sua própria força. Para evitar estes inconve-
nientes que perturbam os bens de um homem no estado de
natureza, os homens uniram-se em sociedades, de modo a
poderem contar com a força colectiva de toda a sociedade
para a salvaguarda e para a defesa das suas propriedades, e,
bem assim, para poderem dispor de leis permanentes que as
delimitem, através das quais cada um possa saber o que lhe
pertence. É com este objectivo que os homens entregam
todo o seu poder natural à sociedade a que aderem, e a
comunidade coloca o poder legislativo nas mãos de quem
considerar mais capaz de o receber, com o encargo de ser
governada por leis declaradas. Caso contrário, a sua paz, o
seu sossego e a as suas propriedades permaneceriam tão
inseguras como quando os seus membros se encontravam
no estado de natureza.
[155]
dade. Não se poderá supor que, mesmo sendo possível
fazê -lo, os homens alguma vez pretenderam colocar nas
mãos de outro, ou de vários, um poder arbitrário e absoluto
sobre as suas pessoas e sobre os seus bens, ou que alguma
vez atribuíram a um magistrado uma força que lhe permi-
tisse exercer a sua vontade sobre eles, de forma ilimitada
e arbitrária. A agirem assim, ter-se-iam colocado numa
situação pior do que aquela em se encontravam no estado
de natureza, onde possuíam a liberdade de defender os seus
direitos contra as agressões dos outros, e contavam todos
com igual poder para se defenderem uns dos outros, quer
fossem atacados por um só homem, ou por vários em
conjunto. Supor que os homens se entregaram à vontade e
ao poder arbitrário e absoluto de um legislador, é admitir que
se desarmaram a si próprios e o armaram a ele, para que os
atacasse e os devorasse quando entendesse. Aquele que se
encontrar exposto ao poder arbitrário de um homem que
comande cem mil homens encontra-se numa condição
manifestamente pior do que quem se encontrar exposto ao
poder arbitrário de cem mil homens isolados. E ninguém
poderá estar seguro de que a vontade de um tal homem,
que comande cem mil, seja superior à dos seus semelhan-
tes, apesar de ser cem mil vezes mais forte. Por isso,
qualquer que seja a forma que a comunidade política
adoptar, o poder deve ser exercido através de leis promul-
gadas e aceites, e não por ditames improvisados e resoluções
imprecisas. De outro modo, os homens ficariam numa
condição muito pior do que aquela em que se encon-
travam no estado de natureza, se, por acaso, armassem um
só de entre eles, ou um pequeno grupo, com o poder
conjunto de toda a comunidade, apenas para que esse
homem, ou esse pequeno grupo, os forçassem a todos a
obedecer a seu bel-prazer aos decretos exorbitantes e ilimi-
tados, quer dos seus pensamentos repentinos, quer das suas
vontades desenfreadas e até então desconhecidas, sem que
[156]
tivessem ficado estabelecidas quaisquer medidas orienta-
doras e justificativas das suas acções. Ora, todo o poder que
o governo possui destina-se, exclusivamente, para o bem
da sociedade, por isso, assim como não deve ser arbitrário
nem discricionário, também deve ser exercido segundo leis
estabelecidas e promulgadas. As pessoas devem conhecer os
seus deveres e encontrar segurança e tranquilidade dentro
dos limites da lei. Ao mesmo tempo, os governantes devem
manter-se dentro dos seus limites. Não se devem deixar
tentar pelo poder que detêm, muito menos utilizá-lo por
meios e para fins desconhecidos daqueles que lho conce-
deram, ou que nunca teriam aprovado, caso os viessem a
conhecer.
(157]
arbitrária, ou apropriar-se de qualquer parte deles a seu bel-
-prazer. Ora, não é muito de temer que isto venha a acon-
tecer em governos nos quais o poder legislativo está situado,
no todo ou em parte, em assembleias, cuja composição
varia com o tempo e que, quando são dissolvidas, os seus
membros cessam funções e regressam à condição de súb-
ditos iguais a todos os outros perante a lei comum do seu
país. Pelo contrário, no caso de governos onde o poder
legislativo se encontra atribuído a uma assembleia com-
posta sempre pelos mesmos membros, ou a um só homem,
como nas monarquias absolutas, por exemplo, persiste o
perigo real de que os membros permanentes dessa assem-
bleia, ou o homem singular que comandar um tal poder,
venham a considerar que possuem interesses privativos,
distintos daqueles que o resto da comunidade apresenta,
circunstância em que se sentirão inclinados a aumentar as
suas fortunas e o seu poder, a expensas do povo, extor-
quindo-lhe o que entenderem. Com efeito, a propriedade
de um homem jamais estará assegurada, mesmo naquelas
comunidades que contarem com leis boas e equitativas para
a sua delimitação se, por acaso, aquele que as governar
detiver o poder de se apoderar das parcelas que entender da
propriedade de qualquer súbito, e de dispor delas como
lhe aprouver.
[158]
contrário seria equivalente a destituí-los de toda a proprie-
dade e a deixá-los sem nada. E, para vermos que até mesmo
o poder absoluto, onde quer que se torne necessário, não é
arbitrário, uma vez que permanece delimitado por aquelas
razões e confinado àqueles objectivos que por vezes exi-
gem que tenha este carácter, não precisamos de olhar para
além da prática comum da disciplina marcial. A preser-
vação de um exército, e, nele, de toda a comunidade polí-
tica, exige uma obediência absoluta às instruções de cada
oficial superior; de tal modo que desobedecer ou questio-
nar até mesmo a mais perigosa ou a mais irracional destas
instruções acarreta com plena justiça a pena de morte.
Acontece, porém, que o sargento, que poderia mandar um
soldado marchar até à boca de um canhão, ou permanecer
no coração duma luta encarniçada, onde seguramente
acabaria por morrer, de modo algum o pode obrigar a dar-
-lhe um vintém do seu dinheiro. Tão pouco o general, que
pode condenar à morte o soldado que desertar do seu
posto, ou que não obedecer às suas ordens mais arriscadas,
apesar de todo o seu poder absoluto de vida e de morte, de
modo algum poderá dispor da menor parcela dos bens
desse soldado, nem apoderar-se da mais pequena parte das
suas propriedades. O general pode mandar o soldado fazer
o que entender, e mandá-lo enforcar pela mais pequena
desobediência, pois esta obediência cega é necessária para
que o comandante possa cumprir a finalidade para cujo
cumprimento o poder lhe foi confiado, ou seja, a preser-
vação do conjunto da sociedade. Contudo, dispor dos
bens dos subordinados nada tem a ver com o cumprimento
desta tarefa.
[159]
a partir dos bens que possui. Para isso, contudo, exige-se
sempre o seu consentimento, isto é, o consentimento da
maioria, dado pelos próprios, ou pelos representantes que
vierem a eleger. Todo aquele que se arrogar o poder de impor
e de cobrar impostos ao povo, exclusivamente por auto-
ridade própria e sem contar com um tal consentimento
popular, estará a violar a lei fundamental da propriedade e a
subverter o objectivo do governo. Pois, que propriedade
tenho eu sobre aquilo que outro pode tirar para si quando
entender?
(160)
legislativo, decorrentes da missão que lhe foi confiada pela
sociedade e pelas leis de Deus e da natureza.
Em primeiro lugar, governar segundo leis votadas
e promulgadas, que não poderão ser alteradas em função dos
casos particulares, mas, antes, constituir uma só regra, para
o rico e para o pobre, para o favorito da corte e para o cam-
ponês no arado.
Em segundo lugar, estas leis não podem ser adoptadas
para qualquer outra finalidade que não seja, em última
instância, o bem do povo.
Em terceiro lugar, não deve lançar impostos sobre a
propriedade do povo sem o consentimento desse mesmo povo,
expresso directamente pelos membros da comunidade
política, ou indirectamente pelos seus representantes. E,
em sentido estrito, este é um limite que se aplica apenas
aos governos em que o legislativo é um poder permanente,
encontrando-se sempre em funções, ou, pelo menos,
àqueles em que o povo não reservou uma parcela deste
poder para deputados eleitos periodicamente.
E, em quarto lugar, o legislativo não deve, nem pode,
traniferir para quem quer que seja o poder de legislar que
possui, ou depositá-lo em quaisquer outras mãos que não
sejam aquelas que o povo elegeu para lho entregar.
(161]
Capítulo XII
[163]
outros poderes . Uma vez que as leis que em breve tempo
pode promulgar são de aplicação constante e continuada,
não há razão para que o legislativo permaneça reunido, pois
nem sempre terá que fazer. Terminada esta tarefa, os mem-
bros do legislativo deverão separar-se de novo, e cada um
deles tornar-se-á súbdito daquelas leis que ele mesmo
acabou de produzir. O que constitui uma garantia nova e
mais segura de que todos colocarão a sua actividade legis-
lativa exclusivamente ao serviço do bem público.
[164]
tividade na sua reparação. A comunidade inteira forma
um só corpo, que se encontra num estado de natureza em
relação aos outros Estados ou às pessoas que se encon-
trarem fora dela.
[165)
as atitudes que devem ser adoptadas em relação a estrangeiros
dependem muito das suas acções, daí que a identificação
dos desígnios e dos interesses da sociedade perante elas
tenha, em grande parte, de ser confiada à prudência daqueles
a quem este poder tiver sido atribuído, para que o exerçam
da melhor forma que puderem, em proveito da comu-
nidade política.
[166]
Capítulo XIII
[167]
súbditos. Nenhum homem, ou sociedade, possui o poder
de entregar a sua própria preservação, ou, consequente-
mente, os meios adequados para o efeito, à vontade abso-
luta e ao donúnio arbitrário de outrem. Por isso, todas as
vezes que alguém pretender submetê-los a uma tal con-
dição de escravatura, assistir-lhes-á sempre o direito de
preservar aquilo que jamais poderão ceder a quem quer
que seja, e, bem assim, o direito correlativo de se livrarem
de quem infringir esta lei de autopreservação que os levou
a organizarem-se em sociedade. E esta é uma lei funda-
mental, sagrada e inalterável. Daí poder dizer-se, a este
respeito, que a comunidade detém sempre o poder supremo, se
bem que apenas na medida em que não é perspectivada
enquanto organizada sob uma qualquer forma de governo,
uma vez que o povo só poderá assumir um tal poder
quando o governo se encontrar dissolvido.
[16g]
possuir todo o poder supremo, que é o de legislar, mas na
medida em que nela recai a execução suprema, uma vez
que é dela que todos os magistrados inferiores derivam
os vários poderes subordinados que detêm ou, pelo menos,
a maior parte deles. Na medida em que esta pessoa não
conhece qualquer poder legislativo superior, nenhuma
lei poderá ser adoptada sem o seu consentimento. Por esta
razão, não é legítimo supor que alguma vez se possa en-
contrar subordinada à outra parte do legislativo. E, neste
sentido, aquele que detiver um tal poder é de facto supremo.
Porém, deverá observar-se que os juramentos de fidelidade e
de respeito que recebe não lhe são prestados na qualidade
de legislador supremo, mas na de executor supremo da lei,
dignidade para que foi elevada por um poder conjunto,
dela própria e de outros. Ora, a fidelidade não é mais do
que uma obediência nos termos da lei, daí que um tal executor
supremo não possua qualquer direito a ser obedecido
sempre que violar a lei. Aliás, jamais poderá reivindicar
um tal direito, a não ser na qualidade de pessoa pública
investida com o poder da lei, condição em que deverá ser
considerado como sendo a imagem, o símbolo ou o repre-
sentante da comunidade política, constituído pela vontade
da sociedade, tal como expressa nas suas leis. Por isso, não
possui outra vontade nem outro poder que não sejam os
da lei. Porém, na medida em que se afastar de uma tal
representação, de uma tal vontade pública, e agir de acordo
com a sua vontade particular, degrada-se a si própria, trans-
forma-se numa mera pessoa privada singular, sem poder,
sem vontade e sem qualquer direito a ser obedecida, já que
ninguém tem o dever de obediência, a não ser para com a
vontade pública da sociedade a que pertence.
[169]
contas e pode ser por ele alterado ou afastado a seu bel-
-prazer. Neste caso, o poder executivo não é um poder supremo,
isento de subordinação, a não ser que tenha sido atribuído
a uma só pessoa que, fazendo parte do legislativo, não
conhece qualquer poder legislativo superior a que tenha de
se submeter e de prestar contas, para além daqueles a quem
se vier a associar e a oferecer o seu consentimento. De tal
modo que apenas estará subordinado a quem entender, na
medida em que o entender, o que levará qualquer um à
conclusão de que seguramente será bem ténue a subor-
dinação que uma tal pessoa alguma vez conhecerá. Não
será necessário tratar dos demais poderes ministeriais e subor-
dinados de uma comunidade política. Eles são tantos, e tão
diversos, variando consoante os diferentes costumes e as
constituições de cada comunidade política, que não é pos-
sível tratar de cada um deles individualmente. Lim.itar-nos-
-emos à seguinte constatação, suficiente para os nossos
propósitos actuais: nenhum deles possui qualquer auto-
ridade para além daquela que lhe é delegada através de uma
concessão positiva ou de um mandato, e todos têm de pres-
tar contas a algum outro poder da comunidade política.
[170]
política que se tiver constituído. Neste caso, assume-se
ainda que o legislativo integre várias pessoas. Se, por acaso,
fosse constituído por uma só, não poderia deixar de se
encontrar em actividade permanente, circunstância em
que, como poder supremo, acumularia com naturalidade
os poderes legislativo e executivo. Enquanto órgão colec-
tivo, poderá reunir e legislar nos períodos que tiverem sido
previstos para o efeito pela sua constituição original, ou
pelo seu regulamento interno - ou sempre que o entender,
caso nem aquela, nem este, tenha calendarizado as sessões,
ou então, quando não tiver sido estabelecido qualquer
outro meio de o convocar. Na medida em que ele lhe
foi confiado pelo povo, o legislativo detém sempre o poder
supremo. E porque o detém, pode-o exercer quando
entender, a não ser que a sua constituição original identi-
fique os períodos exactos em que poderá reunir, ou então,
que, recorrendo ao poder soberano de que dispõe, tenha
previamente fixado o período das suas sessões. E então,
sempre que se chegar a esse período, terá o direito de se
reunir e de actuar novamente.
[171]
teriais adequadas para assegurar que a eleição e a reunião
deste órgão têm lugar de acordo com as normas apropria-
das para o efeito. Ou então, a constituição e o funciona-
mento do legislativo terão de ficar ao critério do executivo,
que convocará as eleições e agendará as reuniões na medida
em que verificar que as condições ou as necessidades da
vida pública exigem a alteração das leis já existentes
ou a adopção de outras novas, ou então sempre que, em
seu entender, seja necessário corrigir ou prevenir quais-
quer inconvenientes susceptíveis de surgir ou ameaçar
o povo.
[172]
§. 156. O facto de o executivo deter o poder de reunir
e de dissolver o legislativo, não lhe confere qualquer supe-
rioridade sobre ele. O poder que detém reveste-se de um
carácter fiduciário, tendo-lhe sido confiado para a segu-
rança do povo, para que o exerça quando a incerteza e a
mutabilidade das coisas humanas não forem compatíveis
com uma regra fixa e estável. De modo algum se pode
esperar que, aqueles que primeiro desenharam a estrutura
política de uma sociedade, possuíssem uma capacidade de
previsão capaz de lhes permitir adivinhar o futuro e de os
habilitar a determinar à partida, e para todo o sempre, os
períodos exactos em que a respectiva assembleia legislativa
deveria reunir, bem como a duração das legislaturas, que
lhe permitisse adoptar a legislação adequada para corres-
ponder com precisão a todas as exigências dessa comu-
nidade política. E então, o melhor remédio que se encon-
trou para este defeito foi, de facto, confiar a convocação do
legislativo e a fixação dos períodos de legislatura ao critério
e à prudência de quem estivesse sempre presente e que
tinha precisamente a incumbência de zelar pelo bem
público. R euniões constantes do legislativo, prolongando-se
desnecessariamente, não deixariam de constituir um fardo
para o povo, produzindo, com o passar do tempo, graves
inconvenientes para a comunidade. Por vezes, o desenrolar
dos acontecimentos é tão rápido e assume tais contor-
nos que se torna necessária a intervenção deste órgão, e
qualquer eventual atraso na sua convocação poderia ter
importantes repercussões ao nível da segurança pública. E,
por outro lado, os seus afazeres são por vezes de tal monta,
que o período ordinário de legislatura não será suficiente
para que possa desenvolver cabalmente o seu trabalho,
circunstância em que limitar as sessões aos períodos pre-
vistos seria equivalente a privar o público dos beneficias
decorrentes de uma deliberação amadurecida. Nestes casos,
que mais se poderia fazer para evitar que a comunidade
(173]
venha a estar exposta a perigos tão eminentes derivados
da marcação rígida das reuniões e dos períodos de legislatura, a
não ser confiar a convocação da assembleia legislativa e a
duração das sessões ao critério e à prudência de quem, es-
tando sempre activo e a par dos assuntos públicos, melhor
pode fazer uso de uma tal prerrogativa, em proveito do
bem público? E quem melhor para a exercer, do que
aquele a quem foi confiada a execução das leis, com vista a
este mesmo objectivo? Assumindo, pois, que a constituição
original de uma comunidade política não fixa os períodos
em que o legislativo deverá reunir para desempenhar as suas
actividades, caberá naturalmente ao executivo fazê-lo. Não
como poder arbitrário, dependente dos caprichos do
executivo, mas como encargo que lhe foi confiado, para
que o exerça sempre com vista ao bem-estar público, tal
como o possam exigir o curso dos tempos ou as alterações
da conjuntura. Por agora não me irei ocupar da questão
de saber o que apresenta menos inconvenientes : identi-
ficar períodos fixo s de legislatura, deixar ao príncipe a liber-
dade para convocar o legislativo quando entender oportuno,
ou, talvez, uma mistura destas duas possibilidades. Preo-
cupar-me-ei apenas com a demonstração de que, apesar
do poder executivo possuir a prerrogativa de convocar e
de dissolver as assembleias do legislativo, nem por isso lhe é
supenor.
[174]
modo. O interesse privado mantém muitas vezes hábitos
e privilégios, mesmo depois de terem já desaparecido as
razões que os justificaram. Naqueles governos em que uma
parte do legislativo é constituída por representantes eleitos
pelo povo, acontece com frequência que, com o passar do
tempo, esta representação acaba por ser muito desigual e
desproporcionada, relativamente às razões que estiveram
na origem do seu estabelecimento. Permanecer agarrado
aos costumes antigos, quando desaparecem as razões que
estiveram na base da sua adopção, é um absurdo dos mais
grosseiros. É o que acontece, por exemplo, quando uma
cidade conhece uma tal degradação que se transforma num
amontoado de ruínas, um curral, onde apenas um pastor é
capaz de viver, e contudo continua a enviar para a grande
assembleia legislativa da comunidade a que pertence o
mesmo número de representantes que um condado inteiro, rico
e densamente povoado. Qualquer estrangeiro ficará espan-
tado com uma situação destas, e todos terão de reconhecer
que necessita de ser corrigida. Muitos pensarão que não
será fácil fazê-lo, uma vez que a constituição do legislativo
é o acto supremo e originário de uma sociedade e, por
isso mesmo, anterior a todas e quaisquer leis positivas que
possam ser adoptadas, e, para além disso, na medida em que
depende por inteiro do povo, nenhum poder inferior a
poderá alterar. Daí que, no contexto do quadro político
que temos vindo a apresentar, argumentar-se-á, uma vez
constituído o legislativo, o povo não detém qualquer poder para
agir, enquanto o governo permanecer de pé. E este será,
então, um inconveniente que não tem remédio.
[175]
uma representação verdadeiramente proporcional, estará a
guiar-se pela razão mais recta, em vez de seguir os velhos
costumes. Em todas as localidades que a ela tiverem direito,
nenhuma parcela da população poderá reivindicar uma
representação própria indiscriminada, independentemente
dos termos em que se tiver processado a sua incorporação
na comunidade. Pelo contrário, a representação deve ser
sempre proporcional àquilo com que se participa na
sociedade, razão pela qual, quem corrigir as distorções que
possam surgir com o passar dos tempos, não estará a estabe-
lecer um legislativo novo, mas a restaurar o legislativo
antigo e verdadeiro, rectificando as desordens que o tempo
lhe introduziu , de forma tão inconsciente quanto inevi-
tável. É do interesse do povo contar com uma representação
justa e equitativa, tendo esta sido a sua intenção. Por isso,
todo aquele que aproximar o sistema de organização polí-
tica de qualquer comunidade a este ideal será seguramente
um bom amigo e um bom governante, e não deixará com
certeza de angariar o consentimento e a aprovação popu-
lares. Ora, a prerrogativa não é mais do que o poder,
atribuído ao príncipe, de cuidar do bem público em todos
aqueles casos que não são susceptíveis de ser regula-
mentados com segurança por leis fixas e inalteráveis, na
precisa medida em que decorrem de circunstâncias incertas
e imprevisíveis . Tudo aquilo que for feito manifestamente
para o bem do povo e para o estabelecimento do governo
sobre estes seus alicerces, sólidos e autênticos, é e será
sempre uma prerrogativa justa. O poder de constituir novas
corporações, e, daí, novos representantes, decorre da supo-
sição de que, com o passar do tempo, as proporções da repre-
sentação podem alterar-se, e lugares que dantes não tinham
qualquer representante, poderão perfeitamente passar a
detê-los. De igual modo, outras localidades existirão que
dantes tinham representação parlamentar, mas que, com o
passar do tempo, deixam de ter direito a este privilégio que
[1 76]
dantes possuíam. Não é a introdução de alterações no
governo de uma comunidade, tendo em vista a correcção
de desequilíbrios provocados, talvez, pela corrupção ou
pela decadência sociais, que irá prejudicar o governo. Pre-
juízos existirão, isso sim, pela tendência que os governos
têm de prejudicar ou de oprimir o povo, ou de privilegiar
uma das suas partes ou um partido, outorgando-lhe uma
distinção especial ou colocando os demais membros da
sociedade à sua mercê. Tudo aquilo que não puder deixar
de ser identificado como vantajoso para a sociedade e para
o povo, em geral, e for concretizado através de medidas
justas e duradouras, jamais deixará de se justificar por si só .
E de modo algum se poderá negar que todo aquele que
permitir ou que induzir o povo a seleccionar os seus
representantes através de critérios justos e incontestavelmente
equitativos, adequados ao seu sistema de governo original,
mais não estará a fazer do que a accionar a vontade da
sociedade.
[177]
Capítulo XIV
DA PRERROGATIVA
(179)
de um homem inocente para deter um incêndio que
estivesse já a consumir a do vizinho). Poderá dar-se o caso
de cair sob a alçada da lei, que não distingue entre pessoas,
um homem que tenha praticado actos merecedores de
prémio ou de perdão. Em tais circunstâncias, é justo que o
governante detenha o poder de mitigar a severidade da lei,
e de perdoar a alguns infractores. O fim do governo prende-
-se com a preservação de todos, tanto quanto possível, razão
pela qual até os criminosos devem ser poupados, sempre
que daí não resulte qualquer prejuízo para os inocentes.
[180]
alimentam escrúpulos ou melindres sobre esta matena.
Tanto assim é que não o questionam, na medida em que
é utilizada a um nível tolerável, para o fim subjacente à sua
adopção, isto é, para o bem do povo, e não manifestamente
contra ele. Contudo, qualquer conflito que possa surgir
entre o poder executivo e o povo a propósito de alguma
prática reclamada como constituindo uma prerrogativa,
facilmente se resolverá, consoante uma tal prática constitua,
de facto, um beneficio ou um prejuízo para o povo.
[1 8 1]
por via legislativa. Agindo desta forma, o povo não retira
ao príncipe nada que lhe pertença por direito próprio. Pelo
contrário, limita-se a declarar que o poder atribuído a esse
príncipe, ou aos seus antepassados, de forma indefinida,
para ser exercido em proveito da sociedade, de modo
algum poderia ser utilizado para qualquer outra finalidade.
Uma vez que o objectivo do governo se prende com o
bem da comunidade, toda e qualquer alteração que lhe
venha a ser introduzida para melhor cumprir esta sua
finalidade, de modo algum deverá lesar quem quer que seja,
pela simples razão de que nenhum governante poderá
deter um direito que conduza a qualquer outro objectivo
que não aquele. E só há abuso de poder quando o bem
público sair prejudicado ou estorvado. Quem disser outra
coisa, fala como se o príncipe possuísse um interesse dis-
tinto e separado do bem da comunidade, em vez de ter
sido criado precisamente para o assegurar. E esta é a fonte
e a raiz de onde brotam quase todos os males e as desor-
dens que surgem nas monarquias. Na verdade, se assim
fosse, num tal governo em que os governantes possuíssem
um interesse privativo contrário ao bem da comunidade,
as pessoas jamais poderiam constituir uma sociedade de
criaturas racionais, integradas numa só comunidade para o
seu próprio bem mútuo. Os membros de uma tal comu-
nidade não teriam instituído governantes, a quem se sub-
metiam, para a protecção e a promoção desse bem, pelo
contrário comportar-se-iam como uma manada de cria-
turas inferiores entregues ao domínio do seu dono, que
as manteria e as obrigaria a trabalhar para o seu próprio
prazer ou proveito. Se, por acaso, os homens fossem de
tal modo desprovidos de razão e tão brutos ao ponto
de ingressarem numa sociedade naqueles termos, então a
prerrogatÍ11a poderia, de facto, ser aquilo em que alguns
homens a querem tornar, isto é, um poder arbitrário para
prejudicar o povo.
[182]
§. 164. Ora, de modo algum será lícito supor que
um ser racional, uma vez livre, se venha a submeter a outro
para se prejudicar, o que não quer dizer que quando
encontrar um governante bondoso e sábio, não considere,
talvez, desnecessário, ou inútil, delimitar com precisão o
seu poder em todos os âmbitos em que possa vir a ser
exercido. A prerrogativa não irá além de uma autorização do
povo para que os seus governantes desempenhem várias
tarefas como entenderem, seja perante o silêncio da lei,
seja, por vezes, expressamente contra a letra da lei, desde
que o façam para o bem público, e desde que contem com
o consentimento popular. Na medida em que um bom
príncipe se encontrar consciente do encargo que lhe foi
confiado, isto é, do seu poder para fazer o bem, e cuidar
do bem do seu povo, não será grande a sua prerrogativa. De
igual modo, ao exigir para si, como prerrogativa que lhe
pertence por direito de oficio, o poder exercido pelos
seus antepassados sem qualquer delimitação jurídica, para o
exercer como entender, inclusivamente para desenvolver
ou para promover um interesse privativo, distinto do
interesse público, um príncipe débil e iníquo mais não
estará a fazer do que oferecer ao povo a ocasião para reivin-
dicar um direito qu e lhe pertence, e limitar aquele poder
ao qual, no passado, se havia submetido tacitamente, na
medida em que era exercido para o seu beneficio.
(1 83]
viasse ligeiramente deste objectivo, permanecia manifesto,
contudo, que no essencial a sua conduta se encaminhava
por inteiro para o bem da comunidade. Assim, encon-
trando razões para estar satisfeito com estes príncipes,
mesmo quando agiam à margem ou ao arrepio da letra da
lei, o povo aceitava sem a menor queixa que alargassem a
sua prerrogativa como entendessem. O povo permitia que
assim acontecesse na medida em que considerava, acerta-
damente, que, com a prerrogativa que detinham, estes
monarcas nada fariam em prejuízo das leis da comunidade,
uma vez que governavam em conformidade com o
principal fundamento e a principal finalidade de todas as
leis, a saber, o bem público.
[184]
não podia constituir prerrogativa real aquilo que, na verdade,
nunca o fora. É muito possível, e razoável, que o povo
não deva preocupar-se com a delimitação da prerrogativa
daqueles reis ou governantes que não ultrapassem os limites
do bem público. Porém, é na verdade impossível que algum
membro da sociedade, quem quer que ele seja, tenha o
direito de molestar o povo. Pois a prerrogativa não é mais do
que o poder de promover o bem público à margem de uma regra.
[185]
ser governado por outro para ser prejudicado por ele. Por
isso, qualquer governante que tentar escravizar ou destruir
o seu povo estará manifestamente a ultrapassar os seus
direitos. E, quando o corpo social, ou qualquer homem
individual, for privado dos seus direitos, ou se encontre
submetido a um poder exercido por alguém que não tenha
legitimidade para o exercer, e não disponha de qualquer
possibilidade de recurso neste mundo, então, terá total
liberdade para recorrer aos céus, sempre que entender. É
certo que o povo não pode ser juiz, uma vez que a cons-
tituição da sociedade não lhe atribui um poder superior
que o habilite a dirimir aqueles casos e a passar sentença
sobre eles com eficácia. Porém, onde quer que não exista
uma possibilidade material de recurso, possui o poder de
decidir em última instância se a sua é ou não uma causa
justa, capaz de justificar o recurso aos céus. E este é um
poder que lhe é reservado por uma lei anterior e superior
a qualquer lei positiva que possa vir a ser adoptada. Os
homens, aliás, jamais poderão abdicar dele, na medida
em que ninguém se pode submeter a outro, de forma a
permitir que este o destrua. Nem Deus, nem a natureza
alguma vez permitiram que um homem se abandone a si
mesmo de modo a negligenciar a sua própria preservação.
E, assim como nenhum homem tem o direito de se
suicidar, tão pouco pode conceder a outros o poder de o
matarem. Por outro lado, não se pense que isto constitui
uma causa perpétua de desordem. Trata-se, antes, de um
mecanismo de recurso, que só deverá ser desencadeado
quando se fizerem sentir sobre o povo inconvenientes
de tal monta que recaiam sobre a maioria. O povo, então,
cansado de os sofrer, sentirá a necessidade de se libertar
deles. Em todo o caso, este perigo jamais ameaçará um
executivo ou um príncipe prudente, sendo certo que
constitui aquilo que mais devem evitar, na medida em
que, de todas as circunstâncias, é a mais arriscada de todas.
[186]
Capítulo XV
[187]
razões que permitam supor que este poder paterno atinja,
em qualquer momento, a vida e a morte, e conceda ao pai
um direito sobre os filhos, maior do que aquele que de-
tém sobre a vida e a morte de qualquer outra pessoa. Tão
pouco se poderá pretender que este poder parental possa
manter um filho submetido à vontade dos seus pais, depois
de ter atingido a maturidade. A não ser na medida em
que tem a obrigação, durante toda a sua vida, de respeitar,
honrar, demonstrar gratidão e prestar auxílio e assistên-
cia ao seu pai e à sua mãe, que lhe deram a vida e que o
educaram. Deste modo, é certo que o governo paternal é um
governo natural, mas de modo algum atinge os objectivos e
a jurisdição do poder político. O poder de um pai não atinge,
de modo algum, a propriedade do seu filho, que é coisa de que
apenas ele poderá dispor.
[188]
finalidade e uma medida pela qual o seu exerctcto era
aferido, a saber, a preservação da sociedade, isto é, de toda
a humanidade em geral. Por isso, não pode ter qualquer
outra finalidade, nem medida nas mãos dos governantes,
que não seja a preservação da vida, das liberdades e das
propriedades dos membros da sua sociedade. De modo
algum, portanto, se poderá constituir como um poder
absoluto ou arbitrário sobre as respectivas vidas e haveres,
que deverá, aliás, sempre preservar, na medida do pos-
sível. Trata-se, pelo contrário, do poder de adoptar leis, e de
determinar as pertas que deverão corresponder à sua vio-
lação, tanto quanto for necessário para a preservação do
todo, eliminando aquelas partes, e só elas, que estejam
de tal modo corrompidas ao ponto de constituírem uma
ameaça para as outras que se encontram sãs e de boa saúde.
Fora deste pressuposto, nenhuma severidade poderá ser
legal. Ora, este poder tem a sua origem apenas no Pacto, no
acordo e no consentimento mútuo prestado por todos
aqueles que integram a comunidade.
[189]
homens e como laço comum de união de toda a huma-
nidade numa só sociedade. Todo aquele que a abandonar
abdica dos caminhos da paz que ela nos abre, optando pela
força e pela guerra para alcançar os seus objectivos injustos
e à margem de todo o direito. Ao fazê-lo, renuncia à
sua própria espécie e degrada-se para o nível dos animais
selvagens. Adoptando a força que os caracteriza como
pauta de todo o direito, sujeita-se a ser destruído por
aquele que tiver prejudicado ou pelo resto da humanidade,
que seguramente se aliará para fazer justiça, tal como se
verificaria perante a ameaça de um animal selvagem ou de
uma fera nociva lO, com os quais a humanidade jamais se
poderá relacionar, estabelecer uma sociedade, ou encontrar
segurança. Quem assim agir e vier a ser capturado numa
guerra justa e legal, ficará sujeito a um poder despótico que,
não tendo surgido de qualquer contrato, nem podendo a
ele conduzir, mais não representa do que o prolongamento
do estado de guerra. Pois, que contrato se poderá esta-
belecer com um homem que nem sequer é dono da sua
própria vida? Que obrigações poderá ele assumir? Por
outro lado, se lhe for permitido ser dono da sua própria
vida, mesmo que por alguns instantes, o poder arbitrário
e despótico do seu senhor terminará. Todo aquele que
for senhor de si próprio e da sua vida possui, correlativa-
mente, o direito de a preservar. Tanto assim é que, a partir
do momento em que se estabelece um pacto, a escravidão termina,
e todo aquele que aceitar negociar com aquele que tiver
cativado, abandona o poder absoluto que até então detinha
sobre ele e põe um fim ao estado de guerra em que ambos
se encontravam, um relativamente ao outro.
[190)
§. 173. A natureza concedeu o primeiro destes pode-
res, o poder paternal, aos país, para o exercerem em proveito
dos filhos durante a sua menoridade, de modo a suprirem
a falta de capacidade e de entendimento que neles se faz
sentir para a gestão das suas propriedades (entendendo por
propriedade, aqui, como em todos os outros contextos em
que o conceito é utilizado, a propriedade que cada homem
detém sobre a sua pessoa e sobre os seus bens) . Por outro
lado, é um acordo voluntário que estabelece o segundo destes
poderes, o poder político dos governantes, para o beneficio dos
súbditos, oferecendo-lhes segurança nas suas possessões e
no usufruto das suas propriedades. Por último, é da perda de
direitos que emerge o terceiro destes poderes, o poder despótico
do senhor, que o exerce para o seu beneficio próprio, sobre
aqueles que se viram privados de toda e qualquer pro-
priedade.
[191]
Capítulo XVI
DA CONQUISTA
[193]
cumprir as promessas que lhes forem extorquidas
através do recurso ilegítimo à força . Se um ladrão assaltasse
a minha casa e, encostando-me um punhal à garganta, me
obrigasse a assinar uma escritura cedendo-lhe todos os
meus bens, passaria por isso a deter um direito sobre eles?
Tal é o direito pela espada que detém um conquistador
injusto que me força à submissão. A ofensa e o crime são
idênticos, sejam eles perpetrados por uma cabeça coroada
ou por um canalha mesquinho. O título do criminoso e o
número dos seus seguidores são irrelevantes para a natureza
da ofensa cometida, a não ser para a agravar. A única dife-
rença que se verifica entre ambos é a seguinte. Os grandes
ladrões castigam os mais fracos de modo a poderem asse-
gurar a sua obediência, mas reclamam para si os louros e os
triunfos. Grandes demais para as mãos frágeis da justiça
terrestre, guardam para si todo o poder de modo a serem
eles próprios a castigar os criminosos. Que remédio, então,
terei eu face ao ladrão que assaltou a minha casa? Apelar à
lei, para que se faça justiça. Mas talvez a justiça me seja
negada, ou eu me encontre aleijado, e não me possa mexer,
ou tenha ficado sem recursos que mo permitam. Se Deus
me tiver retirado todos os meios de procurar remédio,
então, nada mais me restará para além da paciência. Mas o
meu filho, quando for capaz, poderá procurar a reparação
jurídica que me foi negada. E este recurso poderá ser reno-
vado, pelo meu filho e pelo filho do meu filho, até à recupe-
ração dos direitos que haviam sido sonegados. Contudo,
nem aqueles que forem conquistados, nem os seus filhos ,
dispõem de um tribunal ou de um árbitro na terra a que
possam interpor recurso. Restar-lhes-á fazer como jifté,
recorrer aos céus, e repetir o recurso, até recuperarem o direito
original dos seus antepassados, a saber, o direito de se
organizarem sob um poder legislativo livremente aprovado
e aceite pela maioria. E se me for apresentada a objecção
que isto conduziria a calamidades infindáveis, respon-
(194]
derei lembrando que estas jamais seriam maiores do que as
que decorrem da própria justiça, a qual se encontra aberta
a todos os que a ela quiserem recorrer. Todo aquele que
perturbar o seu vizinho injustificadamente, será punido
pela justiça do tribunal a que o seu vizinho recorrer. E
todo aquele que recorrer aos céus deverá estar seguro de ter
o direito do seu lado e de que esse direito é superior ao
incómodo do recurso, uma vez que terá de se apresentar
perante um tribunal que não se deixará enganar e que,
seguramente, retribuirá a todos de acordo com os incó-
modos que causarem aos seus concidadãos, isto é, a qual-
quer ser humano. Daí se deduzir com clareza que ninguém
poderá adquirir qualquer direito à sujeição e obediência daqueles
que tiver conquistado numa guerra injusta.
[195]
monarquias, àqueles personagens que, no campo de bata-
lha, se atiram aos combatentes de ambas as partes, esque-
cendo que oficiais e soldados lutaram a seu lado nas bata-
lhas que ganharam, os auxiliaram na subjugação dos países
que conquistaram e que compartilham. Dizem-nos alguns
que o fundamento da monarquia inglesa se encontra na
conquista normanda e que, por isso, os nossos príncipes
detêm um direito de domínio absoluto. Nem que isso fosse
verdade (e não parece que seja, já que é outra a direcção
para que aponta o registo histórico), e o tal Guilherme
tivesse tido o direito de invadir esta ilha, a legitimidade de
dominação que teria adquirido pela sua conquista só se
poderia aplicar aos saxões e aos bretões, os únicos habitantes
deste país na altura. Qualquer que seja o direito de domí-
nio da conquista, o facto é que os normandos que o acom-
panharam e o auxiliaram na guerra permaneceram homens
livres, e com eles todos os seus descendentes, e não súbdi-
tos por direito de conquista. E se eu, ou qualquer outra
pessoa , reivindicar a condição de homem livre invocando
para o efeito o facto de ser descendente destes conquis-
tadores, muito dificilmente alguém poderá demonstrar que
este argumento não é procedente. Para além disso, é óbvio
que, não tendo a lei estabelecido qualquer diferença entre
descendentes de saxões e bretões, por um lado, e descen-
dentes de normandos, por outro, de modo algum poderá
pretender-se que a uns e a outros correspondam liberdades
e privilégios distintos.
[196]
O conquistador apodera-se das vidas dos que lutaram
contra ele numa guerra injusta, mas não das vidas, nem das
fazendas de todos os outros que não se envolveram nesse
conflito, nem dos bens daqueles que de facto participaram
activamente nele.
[197]
§. 180. Em terceiro lugar, um conquistador adquire
um poder perfeitamente despótico sobre aqueles que subjuga
numa guerra justa. Obtém um poder absoluto sobre as vidas
dos que se colocaram num estado de guerra perante ele, as
quais, por isso, lhes foram confiscadas. No entanto, daí não
lhe advém qualquer direito sobre os seus haveres. Não
duvido que à primeira vista isto possa parecer uma dou-
trina muito estranha, já que é tão contrária à prática do
mundo. Não existe nada mais comum quando se fala do
domínio de algum país do que dizer que é consequência
de ter sido conquistado, como se a conquista, de per si,
conferisse um direito de posse. Contudo, de modo algum
podemos esquecer que a conduta dos fortes e dos pode-
rosos, por mais universal que seja, raramente constitui
norma legal, embora faça parte da sujeição dos vencidos
não protestar contra as condições que lhe são impostas pela
espada conquistadora.
[198]
é de uma tal circunstância que nos ocupamos neste mo-
mento. É o recurso injusto à força que coloca um homem num
estado de guerra perante outros, daí que o culpado de uma
tal situação perca o direito à sua vida, que lhe pode ser
confiscado. Abandonando a razão, que é a norma própria
para a regulamentação das relações humanas, e adoptando
a força, que constitui a maneira de proceder dos animais,
fica sujeito a ser destruído por aquele contra quem usou da
força, como qualquer animal selvagem e voraz que ameace
a sua vida.
[199]
quistador tocar nas possessões daqueles que conquistou.
Uma coisa é certa. Aquele que, pela sua vitória na guerra,
conquistou o direito de destruir outro, se assim o entender, não
adquire, por essa razão, qualquer direito de confiscar ou de
usufruir dos seus bens. É o recurso do agressor à força
bruta que confere ao seu adversário o direito de o matar e
de o destruir, se assim o entender, como se tratasse de um
animal nocivo qualquer. Mas apenas os prejuízos que
porventura tenha sofrido poderão conceder a um homem
um direito sobre os bens de outro. Apesar de ser legítimo
matar o ladrão que investir contra mim na estrada para me
assaltar, não tenho qualquer direito de, numa atitude bem
menos grave, o deixar partir tranquilamente, sob condição
de me apoderar do seu dinheiro. Isso constituiria roubo da
minha parte. O ladrão perdeu o direito à vida no momento
em que recorreu à força e provocou um estado de guerra.
O facto de o ter feito, contudo, não me atribui qualquer
título sobre os seus bens. O direito de conquista incide apenas
sobre as vidas dos que participaram na guerra, e não sobre as
suas propriedades, a não ser na medida em que se torna
necessário proceder a reparações pelos prejuízos sofridos,
bem como pelas despesas incorridas com a guerra, sempre
sob reserva de salvaguarda dos direitos de esposas e filhos,
quando inocentes.
[200]
as comunidades políticas se encontram num estado de
natureza, umas relativamente às outras), provocarei um
estado de guerra se prejudicar alguém e me recusar a com-
pensá-lo, e o facto de recorrer à força para defender aquilo
que obtive de forma injusta, transforma-me num agres-
sor. Supondo que sou derrotado, a minha vida, é verdade,
ficará à mercê do meu vencedor, mas não a de minha
mulher, nem a de meus filhos. Nem uma, nem outros,
participaram na guerra, nem contribuíram para ela. O meu
comportamento não pode atribuir a outrem o direito de
confiscar as suas vidas, desde logo porque elas não me
pertencem. Para além disso, a minha mulher é dona de
uma parte dos meus bens, que não lhe pode ser retirada,
por mim, ou por quem quer que seja. E o mesmo se passa
com os meus filhos que, por terem sido gerados por mim,
têm o direito de ser sustentados através do meu trabalho ou
dos meus bens. É este, então, o meu argumento. O con-
quistador tem o direito de ser indemnizado pelos danos
que lhe foram infligidos; e os filhos têm direito aos bens do
pai, para deles assegurarem a sua subsistência. Por outro
lado, tendo a mulher o direito a um quinhão dos bens do
marido, seja em função do seu próprio trabalho, seja em
função do pacto nupcial, torna-se evidente que o marido
não pode perder aquilo que não lhe pertence. O que deve
ser feito, então, em tais circunstâncias? A minha resposta é
a seguinte. A lei fundamental da natureza aponta para a
preservação de todos, tanto quanto possível. Daqui decorre
que na eventualidade de os bens do vencido não serem
suficientes para satisfazer integralmente os direitos de
ambas as partes, a saber, compensar as perdas sofridas pelo
vencedor e assegurar o sustento dos filhos, aquele que já tem
os seus bens, que lhe chegam, e sobram, terá de abdicar de
uma indemnização plena e dar prioridade à salvaguarda dos
direitos mais urgentes daqueles que, sem eles, ficarão com
a sua própria vida em perigo.
[201]
§. 184. Suponhamos, porém, que o vencedor se faz
ressarcir de todas as despesas e de todos os gastos incorridos
durante a guerra, até ao último cêntimo, e que, despojados
de todos os bens paternos, os filhos do vencido se vêem
atirados para a miséria e acabam por morrer de fome. Nem
pela satisfação de todos estes direitos, o vencedor adquirirá
qualquer título de propriedade sobre o país que tiver conquistado.
Em qualquer parte do planeta em que todo o terreno
disponível pertence a alguém e nenhum permanece in-
culto, os prejuízos de uma guerra dificilmente poderão
ser equivalentes ao valor de qualquer parcela considerável de
território. E, não me tendo eu apoderado das terras do
vencedor, o que nunca poderia ter feito na minha quali-
dade de vencido, quaisquer outros prejuízos que porven-
tura lhe tenha causado, dificilmente poderão assumir um
valor equivalente ao das minhas propriedades, assumindo
que se encontram igualmente cultivadas como as dele e
que são aproximadamente tão extensas quanto as que eu
tiver prejudicado. Em regra, o pior dos estragos que podem
ser feitos por um invasor é a destruição de um ou dois anos
de colheitas (pois raramente atingirão os quatro ou cinco
anos). Quanto ao dinheiro e às demais riquezas e tesouros
que possa ter levado, não são bens naturais, nem possuem
mais valor do que aquele que lhes é outorgado conven-
cionalmente, pela fantasia ou pela imaginação. O valor
que detêm não foi a natureza que lho concedeu. Merido
pela bitola da natureza, o valor destes bens não é supe-
rior àquele que um colar de contas de búzios dos índios
americanos possui para um príncipe europeu, ou àquele que
as moedas de prata europeias detinham para os índios. E
onde todo o terreno disponível estiver já na posse de alguém
e nenhum permanecer baldio, de modo a ser tomado
por quem dele se quiser apropriar, cinco anos de colheitas
não valem a herança perpétua de uma propriedade. A não
ser assim, e abstraindo do valor convencional do dinheiro,
(202]
todos concordarão corrúgo em que a desproporção seria
maior do que a que existe entre cinco e quinhentos. Sem-
pre que existirem mais terrenos para além daqueles que
tiverem sido apropriados e estiverem cultivados, eles en-
contrar-se-ão disponíveis para serem tomados por quem os
quiser. Em tais circunstâncias, as colheitas de seis meses
terão um valor superior ao direito de herança da proprie-
dade que as produziu. Mas, quando assim acontece, os
conquistadores não se costumam preocupar com a expro-
priação das terras dos vencidos. Assim, no estado de natureza
(que é, convenhamos, a condição em que os príncipes e os
governantes deste mundo se encontram nas suas inter-
-relações mútuas), nenhum dano que um homem possa
infligir a outro outorgará ao vencedor o direito de destituir
os herdeiros dos vencidos da sua herança, que deveria estar
na sua posse, deles e dos seus descendentes, para toda a
posteridade. O vencedor poderá, de facto, ser tentado a
sentir-se como se fosse senhor, e, dada a condição em que
se encontra, os vencidos não serão capazes de o contestar.
Porém, esta condição de vencedor não lhe concede quais-
quer outros direitos para além daqueles que a força bruta
confere aos mais fortes sobre os mais fracos. E, por este
raciocínio, o mais forte deveria ter o direito de se apropriar
do que bem entendesse.
[203]
§. 186. Pela força da espada que lhes aponta ao
peito, o conquistador tem habitualmente, é verdade, o
poder de compelir aqueles que tiver vencido a curvarem-
-se às condições que houver por bem impor-lhes, e a
submeterem-se ao governo que entender estabelecer para
eles. No entanto, cabe perguntar com que direito é que o
faz? Pois, argumentar que os vencidos se submetem por
vontade própria, equivale a afirmar que o seu consentimento
é necessário para conferir ao conquistador o direito de os governar.
Resta agora indagar se promessas extorquídas pela força, na
ausência de qualquer direito, constituirão expressão de
consentimento, e até que ponto é que comprometem aqueles
que as proferem? Na minha perspectiva, estas promessas em
nada obrigam os que as proferem. Tudo aquilo que alguém
me extorquir através do recurso à força permanece meu
de direito, e essa pessoa tem a obrigação de mo devolver
prontamente. Aquele que tomar o meu cavalo pela força,
tem a obrigação de mo devolver quanto antes, e eu tenho
o direito de o reaver. Pela mesma razão, quem me forçar
a fazer uma promessa, tem a obrigação de ma devolver de
imediato, isto é, tem a obrigação de me libertar das obri-
gações que dela possam decorrer. Ou então, em alter-
nativa, eu mesmo a posso reaver, isto é, escolher se as
cumpro ou não. A lei da natureza impõe-me obrigações
apenas através das regras que prescreve, razão pela qual
nenhuma obrigação me pode ser imposta através da
violação dessas mesmas regras, tal como se verifica quando
alguém recorre à força para tomar algo que é meu.
Para além disso, dizer que eu fiz uma promessa, em nada
altera o que aqui se encontra em causa, do mesmo modo
que o facto de ser eu a pôr a mão no meu bolso e entregar
pessoalmente a minha carteira ao ladrão que a reclama
com uma pistola encostada ao meu peito, de modo algum
desculpa a força que é exercida sobre mim, nem atribui ao
ladrão qualquer direito.
[204]
§. 187. De tudo isto decorre que, nem aqueles que
tiverem sido derrotados numa guerra injusta, nem os que,
numa guerra justa, não tiverem participado nas hostili-
dades, têm qualquer obrigação de se submeter ao governo
de um conquistador que os subjugue pela força.
[205]
§. 191 . Pelo primeiro destes direitos, o homem en-
contra-se naturalmente livre de sujeição a qualquer governo,
mesmo nascendo num local que se encontre sob uma juris-
dição politica concreta. Porém, se um homem repudiar o
governo legítimo do país em que nasceu, terá igualmente
que abdicar dos direitos que lhe são consignados pelas leis
desse país, bem como dos bens que nele tenha herdado
dos seus antepassados, assumindo que esse governo contou
com o consentimento deles.
[206]
de total liberdade para escolher o seu governo e os seus
governantes. Ou, pelo menos, até que lhe sejam promul-
gadas leis a que tenha concedido o seu livre consentiento,
seja directamente, seja indirectamente, através dos seus
representantes. E, bem assim, até que a cada um seja
permitido usufruir das suas propriedades, isto é, até que
cada um seja de facto proprietário daquilo que é seu, de tal
modo que nenhuma parcela lhe possa ser retirada sem
o seu consentimento. De outro modo, nenhum homem
poderá ser livre, seja qual for o governo em que viver, e
não passará manifestamente de um escravo, subjugado por
força da guerra.
[207]
mediante uma renda anual de cinquenta ou de quinhentas
libras. Não possuirá o primeiro um direito aos seus mil
acres para sempre, e o segundo, igual direito, durante a sua
vida e mediante o pagamento da renda acordada? E não
será o arrendatário proprietário de tudo aquilo que, en-
quanto for vivo, com o seu esforço e a sua indústria con-
seguir extrair desses mil acres de valor superior à renda
fixada, supondo que consegue extrair o dobro, por exem-
plo? Poderá alguém dizer que, efectuada uma tal conces-
são, o rei ou o conquistador pode invocar o seu direito de
conquista para deitar a mão a todas ou a parte das terras do
primeiro destes homens, ou dos seus herdeiros, ou das do
segu ndo, enquanto for vivo e pagar a renda estipulada? Ou
que se possa apropriar, sempre que assim o entenda, dos
bens ou do dinheiro obtidos a partir dessas propriedades?
Se fosse permitido a um rei ou a um conquistador agir
assim, então todos os contratos livres e voluntários deste
mundo ficariam nulos e sem efeito, já que para os anular
bastaria dispor de poder suficiente para o efeito. E todas
as concessões e promessas de quem detiver o poder não passa-
rão de escárnio e de conluio. Que haverá de mais ridículo
do que dizer que dou isto a alguém e aos seus herdeiros
para sempre, fazer revestir este acto das maiores solenidades
e atribuir a esta concessão as maiores garantias, só para
acrescentar, de imediato, que o faço no pressuposto de
que tenho o direito de o retirar amanhã, se assim me
aprouver.
[208]
potente se vê comprometido com elas. Concessões, promessas
e juramentos são compromissos que obrigam o Todo poderoso.
Independentemente daquilo que afirmem certos adula-
dores, todos os príncipes deste mundo, com todos os seus
povos, não passam de gotas de água ou de grãos de areia,
puras nulidades, quando comparados com Deus, todo po-
deroso.
[209]
bem sucedido em todas as suas empresas. Sacudiu o jugo do rei da
Assíria e livrou-se do seu domínio (II Reis, 18, 7). Torna-se,
portanto, evidente que recorrer à força para derrubar
um poder imposto de forma ilegítima, embora seja
considerado rebelião, não constitui qualquer ofensa a Deus.
Pelo contrário, esta é uma atitude que Deus não só permite
como também encoraja, mesmo que entretanto tenham
sido proferidas promessas e assinados pactos entre ambas
as partes, caso tenham sido extorquidos pela força . Isto
mesmo poderá ser comprovado por todos aqueles que
lerem com atenção o relato de Acaz e de Ezequias e
analisarem o modo como os assírios derrotaram Acaz e o
depuseram, e fizeram Ezequias rei, encontrando-se o pai
ainda vivo, não restando a Ezequias mais do que concordar
em prestar-lhes homenagem e em pagar-lhes tributo
durante todo o seu reinado.
[210]
Capítulo XVII
DA USURPAÇÃO
[211]
monarquia, sem, contudo, nos preocuparmos com a defi-
nição do modo como se deveria conhecer ou seleccionar
aquele a quem se entregaria o poder, passando assim a ser
rei. Todo aquele que alcançar o poder por outras vias, que
não as prescritas pelas leis, não tem qualquer direito de ser
obedecido, ainda que respeite a forma de governo dessa
comunidade política. Não tendo sido designada pelas leis,
esta pessoa não conta com o consentimento do povo. De
igual modo, nem um usurpador, nem os seus descendentes,
jamais deterão um tal direito, até que o povo esteja em
condições de lho conceder ou confirmar, consentindo
livremente que exerçam o poder que até então haviam
usurpado.
[212]
Capítulo XVIII
DA TIRANIA
[213]
pensa que o seu rei1w e o seu povo existem para a satisfação dos
seus desejos e dos seus apetites irracionais, o monarca recto e justo,
pelo contrário, reconhece ter sido ele que foi instituído para assegurar
a prosperidade e as propriedades dos seus súbditos. E, de novo,
no seu discurso de 1609 recorre a estas palavras: O rei obriga-
-se a si mesmo ao respeito pelas leis fundamentais do seu reino
através de um juramento duplo. Tacitamente, na medida em que é
rei, e, nesta condição, tem a obrigação de proteger o povo e as leis
do seu reino. E expressamente, nos termos do juramento prestado
por ocasião da sua coroação. Em consequência, todos os reis justos
que estão à freme de reinos bem organizados têm a obrigação de
respeitar os pactos que celebraram com os seus povos em todas as leis
que adoptarem, desenvolvendo os seus governos de modo a serem
agradáveis aos súbditos, à imagem do convénio que Deus celebrou
com Noé a seguir ao dilúvio ao proclamar: daqui em diante, os
períodos de semmteira e de colheita, de frio e de calor, de verão e
de inverno, de noite e de dia, jamais terminarão enquanto a terra
existir. Assim, a partir do momento em que um rei que, sendo res-
ponsável por um reino bem organizado, abandonar este princípio e
as leis da sua comunidade, deixa de ser rei e degenera 11um tirano.
E um pouco mais adiante continua. Por isso, todos os reis que
não são tiranos, nem cometerem perjúrio, sentir-se-ão felizes por se
verem obrigados a exercer o seu poder dentro dos limites das suas
próprias leis. E todos aqueles que os persuadirem do contrário não
passarão de víboras e de pragas, tanto para os próprios monarcas
como para as suas comunidades. É deste modo que aquele rei
sábio, que tinha tão boa noção destas matérias, distinguia
um rei de um tira110, afirmando que o primeiro adopta as
leis como fronteiras do seu poder, e o bem público como
objectivo do seu governo, enquanto o segundo não reco-
nhece quaisquer limites à satisfação da sua vontade e dos
seus apetites.
[214)
mas de governo, tanto quanto nestas. O poder, atribuído
para o governo dos súbditos e para a preservação das suas
propriedades, torna-se tirânico a partir do momento em que
for exercido para outros fins e for utilizado para empo-
brecer, molestar ou submeter o povo ao domínio arbitrário
e irregular daqueles que o detiverem, quer se trate de uma
só pessoa, ou de muitas. É assim que a história nos fala dos
trinta tiranos de Atenas e do tirano de Siracusa. E o jugo dos
Decemviri de Roma não foi melhor.
(215]
que um homem rico, proprietano de toda uma reg1ao,
possa retirar desse facto o direito de se apropriar da casa de
campo e do jardim do seu vizinho pobre? O facto de al-
guém possuir legitimamente grande poder e riquezas enor-
mes, muito para além dos que sobram para a maior parte
dos filhos de Adão, está longe de constituir uma desculpa,
muito menos uma razão, para a rapina e a opressão. E é
ainda mais do que rapina e opressão que se trata, quando
um homem prejudica outro sem ter autoridade para o
fazer. Um superior hierárquico não tem maiores direitos
de ultrapassar os limites da autoridade do que o seu subal-
terno. Fazê-lo, não é mais justificável num rei do que num
polícia. Pelo contrário, a violação da lei pelo monarca é
muito mais grave. Na medida em que possui já um qui-
nhão de poder muito maior do que os restantes membros
da comunidade, as suas responsabilidades são também
maiores. Por fim, temos que assumir que, a sua educação,
o cargo que exerce, e os conselheiros de que dispõe, lhe
conferem uma vantagem significativa, concedendo-lhe um
maior conhecimento das medidas do bem e do mal.
[216]
§. 205. Em primeiro lugar, em alguns países, a pessoa
do príncipe é, por lei, sagrada. Independentemente da-
quilo que ordenar ou fizer, a sua pessoa estará sempre livre
de violência, não se encontrando sujeita à força, nem a
nenhuma censura ou condenação judicial. Não obstante,
é legítimo que se resista aos actos ilegais de qualquer fun-
cionário ou agente subalterno, ou dos seus delegados. A
não ser que o príncipe se coloque num estado de guerra
perante o seu povo, proceda à dissolução do governo
e atire para cada um a responsabilidade de se defender,
tal como se verifica num estado de natureza. Nestas cir-
cunstâncias, quem poderá prever como se desenrolarão
os acontecimentos? E, a este respeito, um reino vizinho
ofereceu já ao mundo um exemplo bastante singular. Em
todas as outras circunstâncias, o carácter sagrado da pessoa
do príncipe liberta-o de todos os inconvenientes, colocando-o
a salvo de qualquer violência ou injúria enquanto se
mantiver à frente do governo. Não há princípio mais
sábio do que este. Não é provável que um príncipe
possa, pessoalmente, perpetrar o mal com frequência,
nem alastrá-lo sobre o seu reino. Por si só, não tem força
suficiente para subverter as leis, nem para oprimir o seu
povo. E mesmo que um príncipe fosse de natureza tão
débil e tão depravada ao ponto de o querer fazer, os in-
convenientes decorrentes de uma tal velhacaria, que, de
tempos a tempos pode ser cometida, mormente quando
um príncipe arrebatado alcança o trono, são amplamente
recompensadas pela paz social e pela segurança oferecida
pelo governo na pessoa do seu primeiro magistrado que,
ao ascender ao trono, se coloca fora de todo o perigo. A
segurança da comunidade está mais bem servida quando
alguns dos seus membros correm, por vezes, o risco de
sofrer algum mal, do que quando a cabeça politica da
república pode ser exposta com facilidade e pela menor
trivialidade.
[217]
§. 206. Em segundo lugar, na medida em que se trate
de um privilégio exclusivo da pessoa do rei, nada obsta a
que se questione, e se ofereça resistência a quem recorrer
injustamente à força, mesmo que possua um mandato real
para o fazer, coisa que a lei não autoriza. É manifestamente
este o caso do agente que possui um mandato de captura
assinado pelo rei para prender um homem. Apesar do man-
dato não conter quaisquer excepções, isso não lhe dá o di-
reito de arrombar a casa de um homem, nem de o executar
em determinados dias ou em determinados lugares. A pró-
pria lei fixa estes e outros limites, que não podem ser trans-
gredidos, nem mesmo por um mandato real. A autoridade
do rei advém, exclusivamente, da lei. Por esta razão, não é
permitido ao monarca conceder a ninguém poderes para
agir ilegalmente, nem para justificar o comportamento ilegal
de quem quer que seja, independentemente de agir em seu
nome. Sempre que ultrapassarem as suas competências, os
mandatos, tal como as ordens de qualquer agente de autoridade,
são tão nulos e insignificantes como os de qualquer particular.
A diferença que separa um agente de autoridade de um
particular é precisamente a seguinte. O primeiro, possui
uma série de competências, com o fim de atingir objectivos
específicos. Coisa que o segundo não tem. Não é o mandato,
mas a competência, que atribui ao agente de autoridade o
direito de agir. Ora, ninguém pode ter competência para a,eir
contra a lei. Em todo o caso, e não obstante este direito de
resistência, a pessoa e a autoridade do rei encontram-se
perfeitamente salvaguardadas, razão pela qual nenhum perigo
poderá advir, seja para o governante, seja para o <
eoverno.
[218]
perigo ou perturbará o seu governo, por qualquer trivialidade.
Na medida em que aquele que tiver sido prejudicado por
uma atitude ilegal do governo se puder socorrer da lei para
ser ressarcido pelos danos sofridos, de modo algum lhe
será permitido que recorra à força. O recurso à força só é
legítimo naqueles casos em que um homem se encontrar
impedido de se socorrer da lei. Aliás, é apenas na medida
em que não permite o remédio de um tal recurso à lei, que
a força exercida sobre um homem se reveste de um carácter
hostil. E é apenas esta força que atira para um estado de guerra
quem a ela recorre, tornando legítimo que se lhe resista.
Um homem atravessa-se no meu caminho, de espada em
punho, e exige a minha carteira, na qual tenho, talvez,
algumas moedas. Eu tenho o direito de o matar, se neces-
sário. A outro homem, eu entrego cem libras, para que mas
guarde, enquanto me apeio de uma carruagem. Quando
lhe peço que me devolva o dinheiro, suponhamos que se
recusa, e que saca da sua espada para defender este seu
novo bem, caso eu pretenda recorrer à força para o reaver.
O prejuízo que este homem me causa é cem, ou talvez mil
vezes maior do que aquele que me havia sido imposto pelo
primeiro, que me pretendia roubar alguns cêntimos, e que
eu matei antes que me assaltasse. Contudo, a lei permite-
-me que mate o primeiro, mas não me permite que moleste
o segundo. A explicação disto é simples. O primeiro usou
a força, ameaçando-me a vida, não me deixando tempo para
recorrer à protecção da lei. E quando se fosse embora, seria
tarde demais. A lei não poderia ressuscitar o meu cadáver.
A perda teria sido irreparável. E foi precisamente para
impedir que assim acontecesse, que a lei da natureza me
concedeu o direito de destruir quem se havia colocado num
estado de guerra para comigo, e ameaçado a minha vida.
Já no segundo caso, a minha vida não se encontrava em
perigo e eu continuava a ter a possibilidade de recorrer à lei
para reaver as minhas cem libras.
[219]
§. 208. Em quarto lugar, suponhamos que um gover-
nante utiliza o seu poder para agir ilegalmente, bem como
para bloquear a solução de que a lei dispõe nestas circuns-
tâncias. Ainda assim, até mesmo perante tais actos mani-
festos de tirania, o direito de resistência não perturbará o governo
da comunidade de um momento para o outro, nem por
trivialidades. Se as ilegalidades cometidas pelo monarca
afectarem apenas os interesses privados, então estes homens
terão o direito de se defender e de recuperar pela força, se
necessário, aquilo que pela força ilegítima lhes havia sido
arrebatado. Contudo, não será por terem um tal direito que
estes homens se lançarão de ânimo leve numa contenda em
que seguramente perderão a vida. Um só ou um pequeno
grupo de homens oprimidos não será capaz de perturbar o
governo de uma comunidade, se o corpo social não se
interessar pelo assunto. Do mesmo modo que um louco
em fúria ou um descontente impetuoso não será capaz de
derrubar um governo bem estabelecido. O povo não estará
disposto a segui-lo, como não esteve disposto a seguir o
pnme1ro.
[220]
se deve ter grande pena dos governantes que se deixarem
atirar para um tal estado, uma vez que o poderiam ter
evitado com facilidade. Na verdade, qualquer governante
que de facto paute a sua actuação pelo bem do seu povo e
pela preservação dos seus bens e das suas leis, sentirá tanta
dificuldade em transmitir estes seus propósitos aos seus
súbditos, como aquela que um pai sente em transmitir aos
seus filhos que os ama e que cuida deles.
[221]
também o faria, se verificasse que o capitão do navio em
que viajava a estava a levar para um mercado de escravos, a
ela e a todos os seus companheiros, mantendo sempre o
mesmo rumo, apesar de os ventos cruzados, as fendas
no casco ou a falta de homens ou de provisões por vezes
forçarem o comandante a arrepiar caminho, por alguns
instantes apenas, já que retomava o rumo africano, logo
que os ventos, o tempo ou as demais circunstâncias o
permitiam.
[222]
Capítulo XIX
DA DISSOLUÇÃO DO GOVERNO
[223]
de dissolução de governos e suficientemente avançado
para a permitir, não se justificando, portanto, que nos
detenhamos mais sobre esta matéria. Para além disso, não
são necessários muitos argumentos para que fique de-
monstrado que em face da dissolução da sociedade nenhum
governo se poderá manter. A sobrevivência de um tal
governo seria tão impossível quanto o seria a subsistência
da estrutura de uma casa, cujas portas, janelas e demais
componentes lhe tivessem sido arrancadas e dispersas por
um furacão , ou reduzidas a escombros por um terramoto.
[22-t]
ção das pessoas e os vínculos das leis adoptadas por
aqueles a quem uma tal tarefa foi confiada pelo consenti-
mento e nomeação popular. Sem esse consentimento e
sem essa nomeação nenhum dos membros de uma socie-
dade poderá reivindicar a autoridade que lhe permita
adoptar leis vinculativas sobre os demais. Sempre que qual-
quer homem, ou grupo de homens, se propuser legislar,
sem ter sido encarregado dessa tarefa pelo povo, as leis que
adoptar carecerão de autoridade e, por isso, o povo não terá
nenhuma obrigação de lhes obedecer. Numa tal circuns-
tância, permanecerá livre de qualquer sujeição. Por isso
mesmo, poderá adoptar um legislativo novo, como melhor
entender. E terá plena liberdade para resistir à força de
todos aqueles que, sem qualquer autoridade, lhes preten-
derem impor o que quer que seja. Na medida em que
aqueles a quem a sociedade tiver confiado a tarefa de decla-
ração da vontade pública forem impedidos de a desem-
penhar, e o seu lugar for usurpado por outros, sem, con-
tudo, contarem com qualquer autoridade ou delegação
popular para o efeito, então cada um dos membros dessa
sociedade reassumirá a sua vontade própria.
[225]
2. Uma assembleia constituída pela nobreza here-
ditária.
3. Uma assembleia integrando os representantes da
comunidade, eleitos pelo povo pro tempore.
Identificadas estas três formas de governo, torna-se
evidente o seguinte:
(226]
sociedade se vir privada do exerClclO do seu poder. Os
governos não são constituídos por meros nomes, mas pelo
uso e pelo exercício dos poderes que lhes foram cometidos.
Por esta razão, todo aquele que retirar ou que beliscar a
liberdade de acção do legislativo devidamente reunido em
período de legislatura, estará, com efeito, a deitar-lhe a mão
e a pôr um fim ao governo.
[227]
capaz de promover tais alterações sob a capa da sua auto-
ridade legal, ao mesmo tempo que possui os instrumentos
que lhe permitiriam aterrorizar e suprimir todos aqueles
que se lhe opusessem, tratando-os como facciosos, sedi-
ciosos e inimigos do governo. E nenhuma outra parcela do
legislativo, ou do povo, é capaz, só por si, de tentar sequer
alterar o legislativo fora de um contexto de clara e mani-
festa rebelião, que seria prontamente identificada. Em todo
o caso, sempre que uma tal rebelião for bem sucedida, os
seus efeitos não serão muito diferentes daqueles decor-
rentes de uma invasão estrangeira. Para além disso, nestas
formas de governo, o príncipe detém o poder de dissolver
as demais partes do legislativo, transformando, assim, todos
os outros que o integram em meras pessoas privadas . Por
esta razão, com a sua oposição, ou sem o seu consenti-
mento, ninguém poderá alterar o legislativo através da
aprovação de uma lei, uma vez que o consentimento do
monarca é necessário para que os decretos do legislativo
possam ser sancionados como leis . Porém, na medida em
que as outras partes do legislativo participem de algum
modo num atentado contra o governo, promovendo-o, ou
permitindo-o, sem nada fazer para o impedir, estarão a
ser culpadas e a partilhar deste que é certamente o maior
dos crimes que os homens podem cometer uns contra os
outros.
[228]
membro do corpo político no lugar e nas funções que lhe
são próprios. Quando tal deixar de se verificar por com-
pleto, então, o próprio governo ter-se-á extinto e o povo
transformar-se-á numa multidão confusa, sem ordem nem
unidade. Onde a justiça deixar de ser administrada para a
garantia dos direitos dos homens, nem sobrar um poder
dentro da comunidade capaz de dirigir a força pública ou
assegurar as necessidades dos membros da comunidade,
seguramente não restará qualquer governo. Onde as leis não
puderem ser aplicadas, é como se não existissem quaisquer
leis. E um governo sem leis será, presumo, um autêntico
mistério político, inconcebível para as capacidades do
homem, e incompatível com as sociedades humanas.
[229]
tentarem libertar, e que esperassem que lhes fossem pos-
tos os grilhões para poderem agir como homens livres.
Quem adoptar este comportamento, e permanecer nele,
será objecto de escárnio, pois libertação é coisa que jamais
encontrará. Os homens nunca estarão a salvo da tirania, se
só lhe puderem escapar a partir do momento em que se
encontrarem complemente sob o seu jugo. É por isso que
o povo não só tem o direito de escapar à tirania, como
também tem o direito de a impedir.
[230]
da propriedade do povo, ou reduzi-lo à escravidão sob um
poder arbitrário, estarão a colocar-se num estado de guerra
perante toda a comunidade. E, numa tal circunstância, o
povo fica dispensado de qualquer dever de obediência,
restando-lhe o refúgio comum que Deus concedeu a todos
os homens contra a força e a violência. Assim, sempre
que o legislativo transgredir esta regra fundamental da
sociedade, e levado pela ambição, pelo medo, pela loucura
ou pela corrupção, procurar obter, para si próprio ou para outros,
um poder absoluto sobre as vidas, as liberdades e as pro-
priedades do povo, estará a violar o mandato que lhe foi
confiado. Ao agir deste modo, o legislativo estará a come-
ter um abuso de confiança, perdendo, por isso, todo o
direito ao poder que lhe havia sido atribuído pelo povo
para que o exercesse para fins perfeitamente distintos
daqueles para os quais o estava a exercer. Deste modo, o
poder é transferido de novo para o povo, que passa, em
consequência, a deter o direito de reassumir a sua liber-
dade original, e, correlativamente, de estabelecer um novo
legislativo (como bem entender) de modo a assegurar a
sua protecção e a sua defesa - objectivo, aliás, que levou os
homens a integrarem-se em sociedades. O que aqui ficou
dito em relação ao legislativo em geral aplica-se, igual-
mente, ao executor supremo, a quem foi confiado o duplo
encargo de participar no legislativo e de garantir, em
última instância, a execução da lei. Ora, na medida em que
se propuser impor a sua vontade arbitrária como lei da
sociedade, o príncipe estará a violar este duplo encargo que lhe
fora confiado. E o mesmo se passará quando recorrer à força,
às finanças ou aos agentes da sociedade para corromper
os representantes do povo e conquistá-los para os seus pro-
pósitos. Ou quando abertamente comprometer os eleitores
e procurar obrigá-los a eleger aqueles que havia já conquis-
tado para os seus desígnios através de pedidos, ameaças,
promessas ou do que quer que seja. Ou ainda, quando se
[231]
servir dos eleitores para fazer eleger deputados que se
haviam já comprometido com ele, sobre o que votar e
que legislação adoptar. Assim, como apelidar estes propó-
sitos de controlar candidatos e eleitores e alterar o processo
eleitoral, senão de outras tantas tentativas de cortar o go-
verno pela raiz e de envenenar a própria fonte da segurança
pública? O povo reservou para si a escolha dos seus repre-
sentantes para que constituíssem outros tantos muros de
protecção das suas propriedades. De modo algum, por-
tanto, poderia permitir que os seus representantes não fos-
sem eleitos livremente, para, uma vez assim eleitos, serem
livres de agir e de decidir, conforme o que, após um exame
e um debate apurados, concluam ser exigido pelo bem
público ou para a salvaguarda das necessidades da comu-
nidade. E esta é uma tarefa que de modo algum poderá
ser assegurada por quem tenha decidido o seu voto, sem
antes ter participado nos debates e ponderado as razões
apresentadas por todos os lados. Procurar manipular
desta maneira uma assembleia e substituir os verdadeiros
representantes do povo e legisladores da sociedade, por
cúmplices declarados dos seus propósitos arbitrários, cons-
titui, com toda a certeza, um abuso de confiança flagrante, e
a declaração mais evidente de um propósito de subver-
são do governo. Se quaisquer dúvidas restarem sobre
esta matéria, elas desaparecerão por completo a partir do
momento em que se tiver igualmente em conta as recom-
pensas e os castigos que costumam ser adoptados para
a prossecução de tais objectivos, bem como as artima-
nhas a que se recorre para a perversão da lei, ou para a
destruição de tudo e de todos os que se atravessem no
caminho de tais desideratos, não consentindo nem se
curvando perante a traição das liberdades do seu país. Não
é dificil determinar qual é o poder que, na sociedade,
deverá ser atribuído aos que o utilizam para fins contrários
àqueles para os quais este poder lhes havia sido confiado
[232]
em primeiro lugar. E como todos seguramente concor-
darão, quem tentar algo do género, de modo algum voltará
a merecer confiança.
[233]
faz do que lançar um fermento para rebeliões frequentes. Ao
que responderei o seguinte:
Em primeiro lugar, que este argumento não é mais
sedicioso do que qualquer outro. Os governantes podem
proclamar tantas vezes e tão alto como lhes aprouver, que
são sagrados e divinos, filhos de Júpiter, que desceram dos
céus, ou que deles receberam o poder que detêm; poder-
-se-ão fazer passar por aquilo que quiserem. Quando o
povo se vir atirado para a miséria e exposto aos abusos do poder
arbitrário, o resultado será sempre o mesmo. O povo que for
habitualmente mal governado e de forma contrária a todo o
direito, não hesitará em se desembaraçar de um fardo que
lhe pesa, e muito, logo que tenha a oportunidade de o
fazer. Desejará e procurará uma tal oportunidade, que, nas
constantes mutabilidade, debilidade e contingência que
caracterizam as coisas humanas, não tardará a apresentar-se.
Só quem tiver vivido muito pouco tempo neste mundo
poderá ter alguma dificuldade em encontrar entre os seus
contemporâneos exemplos do que afirmo. E só quem tiver
lido muito pouco é que não será capaz de encontrar
exemplos disto em todos os governos da terra.
[234]
tização dos fins para os quais os governos foram on-
ginalmente estabelecidos. Quando o poder é utilizado
para outros fins, os nomes antigos e as formas solenes de
governo de nada valem, já que o povo, em vez de ver a sua
situação melhorada, estará muito pior do que quando vivia
num estado de natureza, ou de anarquia pura. Os incon-
venientes são tão grandes e tão imediatos como o eram no
estado de natureza, mas bem mais dificeis, e as possibili-
dades de remédio encontram-se mais distantes.
[235]
§. 227 . Tanto no primeiro caso acima mencio-
nado, em que o legislativo é alterado, como no segundo,
em que os legisladores actuam de forma contrária aos
objectivos para que foram empossados, os responsáveis por
tais eventos serão culpados de rebelião . Quem recorrer à
força para derrubar o legislativo de uma sociedade e as leis
que tiver adoptado no cumprimento da missão que lhe
fora confiada, estará a dar cabo da arbitragem que havia
sido estabelecida por todos os membros da comunidade
para a resolução pacífica de todas as suas controvérsias,
e como barreira para que não recaíssem num estado de
guerra. Na medida em que alguém destruir, ou alterar, o
legislativo de uma sociedade, estará a apropriar-se deste
poder decisivo, que ninguém poderá possuir a não
ser por nomeação e por consentimento do povo. Todo
aquele que, deste modo, destruir a autoridade criada pelo
povo, que mais ninguém poderá estabelecer, e introduzir
em sua substituição um poder novo, ao arrepio da von-
tade popular, estará na verdade a criar um estado de guerra,
que corresponde precisamente ao exercício da força sem
autoridade. Suprimindo o legislativo estabelecido pela
sociedade (cujas decisões constituíam instrumento de uni-
dade e eram acatadas tal como se decorressem da própria
vontade popular) estará a desfazer o nó que a constitui e
a expor o povo a um novo estado de guerra. E se, no quadro
do primeiro caso referido, aqueles que se apropriam do
legislativo pela força são rebeldes, os próprios legisladores, no
quadro do segundo, e tal como ficou demonstrado, não
podem ser apelidados de outra coisa. Quando aqueles
que foram empossados para assegurar a protecção e a
preservação do povo, das suas liberdades e das suas pro-
priedades, recorrem à força para as invadir e para se
apropriarem delas, colocando-se, assim, num estado de
guerra perante aqueles que os haviam eleito para serem os
protectores e os guardiões da sua paz, transformam-se,
[236]
verdadeiramente, e com as mawres agravantes, em
rebellantes, em rebeldes.
[237]
obediência passiva e exortaria os seus companheiros a que se
submetessem em silêncio, explicando-lhes a importância
da paz para a humanidade, e mostrando-lhes os inconve-
nientes que poderiam decorrer de uma eventual resistência
a Polifemo, que então detinha grande poder sobre eles.
(238]
legítimo censurar o povo por agir como as criaturas racio-
nais e por não poder pensar nas coisas a não ser como de
facto as vê e as percebe? Não deverá a culpa ser atribuída,
antes, àqueles que conduzem as coisas ao ponto de o povo
as não poder ignorar? Reconheço que o orgulho, a am-
bição e as desordens de certos homens particulares causa-
ram, por vezes, grandes desordens em certas comunidades
e que o facciosismo tem sido fatal para repúblicas e para
reinos. Só a história, na sua imparcialidade, nos poderá
mostrar a origem verdadeira das desordens que afectam as
comunidades políticas. Só ela nos poderá esclarecer se os
males decorrem, com maior frequência, da libertinagem dos
povos e de um desejo de derrubarem a autoridade legítima
dos seus governantes, ou da insolência dos governantes e das
suas tentativas para adquirirem e exercerem um poder arbi-
trário sobre o povo. Ou, então, por outras palavras, se é
a opressão, ou a desobediência , que conduz à desordem.
Uma coisa, no entanto, é certa. Todo aquele qu e, sendo
súbdito ou governante, se propuser invadir os direitos de
um príncipe ou de um povo, e lançar as bases para derrubar
a constituição e o aparelho de qualquer governo justo, será
culpado do maior crime de que um homem é capaz, e terá
de responder por todos os maleficios que o desmembra-
mento de um governo acarreta para um país, em termos
de sangue, de rapina e de desolação. Quem o fizer será
justamente considerado praga e inimigo comum da huma-
nidade, e deverá ser tratado como tal.
[239]
que os atiraram para um posto superior ao dos seus irmãos.
Na verdade, a sua dignidade superior torna a ofensa ainda
mais grave. O governante que atentar contra as proprie-
dades dos seus súbditos estará a agir como um ingrato, pois
a lei já o favorece com um maior quinhão de poder e de
benefícios, e estará igualmente a faltar ao encargo que lhe
fora confiado pelos seus irmãos.
[240]
Quapropter si Rex non in singularis tantum personas aliquot
privatum odium exerceat, sed corpus etiam Reipublicae, cujus ipse
caput est, i.e. totum populum, vel insignem aliquam ejus partem
immani et intolerandá saevitiá seu tyrannide divexet; populo,
quidem hoc casu resistendi ac tuendi se ab injuriá potestas competit,
sed tuendi se tatum, non enim in principem invadendi: et resti-
tuendae injuriae illatae, non recedendi à debitá reverentiá propter
acceptam injuriam. Praesentem denique impetum propulsandi non
vim praeteritam ulciscendijus habet. Horum enim alterum à naturá
est, ut vitam scilicet corpusque tueamur. Alterum vero contra natu-
ram, ut inferior de superiori supplicium sumat. Quod itaque popu-
lus malum, antequam factum sit, impedire potest, ne fiat, id post-
quam Jactum est, in Regem authorem sceleris vindicare non potest:
populum igitur hoc amplius quam privatus quisquam habet: Quod
/mie, vel ipsis adversariis judiei bus, excepto Buchanano, nullum nisi
in patientia remedium superest. Cum ille si intolerabilis tyrannis est
(modicum enim ferre omnino debet) resistire cum reverentiá possit.
(Barclay, contra Monarchom. Livro 3, capítulo 8).
Em português:
[241]
comunidade de que ele é a cabeça, e se com propósitos iníquos e
intoleráveis tiranizar cruelmente o conjunto ou uma parte consi-
derável do povo, numa tal circunstância, o povo tem o direito de
lhe ciferecer resistência e de se difender das injúrias que lhe são
perpetradas. Mas tem de o fazer com cuidado. O povo tem o
direito de se difender, mas não tem o direito de atacar o seu rei.
Pode procurar reparar os danos que llze tiverem sido infligidos, mas
em caso algum ceder a provocações e exceder os limites do dever de
reverência e de respeito. Pode repelir as tentativas de opressão de
que estiver a ser alvo, mas não procurar vingança por violências
passadas. É natural que d~fendamos a nossa vida e o nosso corpo.
Mas é contra a natureza que um inferior castigue o seu superior.
O povo pode impedir o monarca de o maltratar. Quando o mal
estiverJeito, no entanto, não pode vingar-se do seu rei, mesmo que
tenha sido ele o autor da pat[faria . É este o privilégio do povo,
em geral, superior àquele que qualquer pessoa privada poderá
possuir. Assim, até mesmo os nossos adversários (com a excepção
de Buclzanan) difertdem que, perante o seu rei e os seus eventuais
desmandos, aos prir;ados não resta outro remédio para além da
paciência . O povo, no entanto, possui o direito de, respeitosa-
mente, oferecer resistência à tirania intolerável, embora a deva
suportar, quando for apenas moderada .
[242]
Todo aquele que se opuser a um ataque armado apenas
com um escudo para travar os golpes que lhe forem
dirigidos, ou então adoptando uma postura ainda mais
respeitosa, não agarrar numa espada para enfraquecer a
ousadia e a força do assaltante, esgotará rapidamente a sua
capacidade de resistência, e constatará que uma tal defesa
serve apenas para atrair abusos ainda maiores. É um tipo de
resistência tão ridículo quanto o modo de combate citado
por Juvenal: ubi tu pulsas, ego valupo tantumll _ E o desfecho
de um tal combate será inevitavelmente igual àquele que
juvenal nos descreve:
[243]
sempre que se verifique, de facto, uma tal relação de supe-
rioridade entre as partes em contenda. No entanto, resistir
à força com a força, pressupõe, à partida, um estado de
guerra que nivela as partes em contenda, eliminando todas as
relações anteriores de reverência, de respeito e de superio-
ridade. Neste contexto, apenas subsiste uma desigualdade
entre os beligerantes, já que aquele que resistir a um agres-
sor injusto tem uma vantagem sobre ele, uma vez que, se o
vencer, terá o direito de o punir, quer pela violação da
paz, quer por todos os maleficios daí advenientes. Daí que
o próprio Barclay, noutra parte de seu texto, e de forma
mais coerente com o seu próprio pensamento, negue que
alguma vez se possa legitimamente resistir a um rei. No
entanto, não deixa de assinalar duas circunstâncias em
que se pode retirar um rei do trono. Estas são as suas
palavras:
Quid ergo nulline casus incidire possunt quibus populo sese
erigire atque in Regem impotentius dominarem arma capere et
invadere jure suo suâque authoritate liceat? Nu/li certe quamdiu
Rex manet. Semper enim ex divinis id obsta!, Regem hono-
rificato; et qui potes ta ti resistit, Dei ordinationi resistit: non
aliàs igitur in eum populo potestatas est quam si id committat
propter quod ipso jure rex esse desinat. Tunc enim se ipse
principatu exuit atque in privatis constituit liber: Hoc modo
populus et superior dficitur, reverso ad eum se. jure i/lo quod ante
regem inauguratum in interregno habuit. At sunt paucorum
generum commissa ejusmodi quae hunc lffectum pariunt. At
ego cum plurima animo perlustrem, duo tantum invenio, duos,
inquam, casus quibus rex ipso facto ex Rege non regem se facit
et omni lzonore et dignitate rega/i atque in subditos potestate
destituir; quorum etiam meminit Winzerus. Horum unus est, Si
regnum [et rempublicam evertere conetur, hoc est, si id ei propo-
situm, eaque intentio fuerit ut] disperdat, quemadmodum de
Nerone fertur, quod is nempe senatum populumque Romanum,
atque adeo urbem ipsam ferro jlammaque vastare, ac novas sibi
[244]
sedes quaerere decrevisset. Et de Caligula, quod palam denun-
ciarit se neque civem neque principem senatui amplius fore, inque
animo habuerit, interempto utrisque ordinis Electissimo quoque
Alexandriam commigrare, ac ut poppulum uno ictu interimeret,
unam ei cervicem optavit. Ta/ia cum rex aliquis meditatur et
molitur serio, omnem regnandi curam et animum illico abjicit, ac
proinde imperium in subditos amittit, ut dominus servi pro
derelicto habiti, dominium .
[245]
e o povo não só se liberta dele como passa a ser o seu superior. O
povo readquire o poder que detivera no interregno, antes de o
coroar como seu rei. São escassas, no entanto, as ocasiões que
podem desencadear um tal estado de coisas. Depois de ponderar
com cuidado este assunto, não encontro mais do que duas. Por isso
afirmo que existem duas circunstâncias, também identificadas
por Winzerus, em que o rei deixa de ser rei, perdendo, ipso
facto, todo o poder e toda a autoridade real que detinha sobre o
seu povo.
Primeiro, sempre que o rei procurar derrubar o governo, isto
é, sempre que albergar o propósito e o intento de destruir o reino
e a comunidade, tal como o registo histórico nos diz ter-se veri-
ficado com Nero, que resolveu destruir o senado e o povo de
Roma, devastar a cidade pelo Jogo e pela espada e, de seguida,
procurar um novo lugar. Temos ainda o caso de Calígula, que
declarou abertamente não querer continuar a ser a cabeça do povo
e do Senado, que tinha a intenção de eliminar os melhores homens
de um e de outro, antes de se retirar para Alexandria, e que o seu
desejo era que o povo tivesse apenas um pescoço, para o poder
eliminar de um só golpe. Ao alber,_'<ar no seu Íntimo des(Rnios como
estes e ao empenhar-se na sua promoção, qualquer rei abandona
por inteiro todos os cuidados que deveria dedicar à comunidade.
Consequentemente, perde todo o direito ao poder de governar os
seus súbditos, do mesmo modo que, ao abandonar os seus escravos,
um senhor perde o direito de domínio que detinha sobre eles.
[246]
poder e ao domínio de uma nação estrangeira. Por um tal acto de
alienação do seu reino, por assim dizer, o rei perde o poder que nele
detinha até então, sem, no entanto, traniferir para aqueles a quem
entregou o reino a menor parcela do direito que detinha sobre
ele. E assim, agindo deste modo, liberta o povo, permitindo que
disponha de si próprio. Podemos encontrar um exemplo disto nos
anais escoceses.
[247]
ficios que estiverem a ser planeados contra ele, antes que lhe sejam
infligidos. Ora, daqui se deduz que permite a resistência,
enquanto a tirania não passar de um desígnio. Ao albergar no
seu íntimo desígnios como estes, escreve ainda, e ao se empenhar
na sua promoção, qualquer rei abandona por inteiro todos os
cuidados que deveria dedicar à comunidade. Quer isto dizer que,
de acordo com Barclay, o facto de o monarca negligenciar
o bem público deve ser tomado como sendo indicativo de
possuir tais desígnios, sendo, no mínimo, causa suficiente de
resistência. E oferece-nos a justificação de tudo isto com
estas palavras: porque estará a atraiçoar ou a forçar o seu povo,
cuja liberdade deveria ter procurado preservar escrupulosamente.
A cláusula que adiciona, ao poder e ao domínio de uma nação
estrangeira, nada acrescenta ao que já havia fixado. A falha e
a perda de direito decorrem da perda de liberdade que o rei
deveria ter preservado, e não de qualquer diferença entre
aqueles a cujo domínio o monarca submete o seu povo. Os
direitos de um povo são igualmente invadidos e as suas
liberdades são igualmente perdidas, quer ele seja entregue
como escravo a qualquer um dos seus membros, ou a uma
nação estrangeira. É nisto que reside a injúria, e é apenas
isto que concede ao povo o direito de se defender. E em
todos os países encontramos exemplos que demonstram
que não é a mudança de nacionalidade dos governantes,
mas a mudança do governo, que constitui o delito. No seu
tratado intitulado A sujeição cristã, Bílson, um bispo da nossa
igreja e um grande defensor do poder e da prerrogativa dos
príncipes, reconhece, se não me engano, que os príncipes
podem perder o seu poder e o título que detêm de obediência
dos seus súbditos. E se fosse necessário recorrer ao argu-
mento de autoridade, num caso como este em que a justi-
ficação é tão evidente, poderíamos remeter os leitores para
Bracton, para Fortescue, para o autor do Espelho, e para tantos
outros. Todos eles autores que de modo algum poderão ser
suspeitos de desconhecerem o nosso governo ou de serem
[248)
inimigos dele. Pensámos que Hooker pudesse ser suficiente
para satisfazer todos os que recorrem a ele para fundamen-
tarem a política eclesiástica que preconizam. No entanto,
estes homens são levados por uma estranha fatalidade a
negar os princípios sobre os quais ele havia alicerçado todo
o seu pensamento. Daí que fosse prudente, da sua parte,
averiguar se não estarão a ser instrumentalizados por outros
operários mais astutos, para deitaram abaixo o próprio
edificio que se propõem erguer. Uma coisa é certa, a polí-
tica civil que advogam é tão nova, tão perigosa e tão des-
trutiva, tanto dos governantes como do povo, que no
passado jamais se permitiu que fosse mencionada sequer. De
igual modo, espera-se que, libertos das imposturas daqueles
subencarregados de obras egípcios, os vindouros detestarão
a memória destes aduladores servis que, enquanto lhes
pareceu ser útil para os seus interesses, reduziram todo o
governo à tirania absoluta e todos os homens àquilo
para que as suas almas mesquinhas os talhavam, a escravidão.
[249]
forem evitados, são muito maiores, e as reparações são
muito mais difíceis, dispendiosas e arriscadas.
[250]
guerra, em que apenas se pode recorrer aos céus. E , num
tal estado, aquele que se sentir prejudicado terá de julgar por si
mesmo qual o momento mais apropriado para recorrer a
este tipo de remédio e entregar-se a ele.
[251]
[252)
ÍNDICE
Introdução . .. . .. .. . .. .. . .. .. .. . . ... . .. .. . .. .. .. .. . .. .. . .. .. .. . .. .. . .. .. .. .. . .. .. . .. .. 5
Capítulo IV Da Escravidão.. .... .. .. ...... .. .... ...... ...... .. .... .. .... .. ... 51
[253]
Capítulo XIII. Da Subordinação dos Poderes de uma Comu-
nidade Política..... ....... ........ .......... ... ..... ........... ... ........ ...... 167
Capítulo XVII. Da Usurpação....... ..... .... .. ..... ........ ... ... .... ... . 211
Capítulo XVIII. Da Tirania.... ..... ........................ ... ... ....... .... 213
Capítulo XIX . Da Dissolução do Governo .... .. ..... .. .... ...... .... 223
[25 4]
Esta edição de "SEGUNDO T RATADO DO Govm. No ",
foi composta, impressa e encadernada para a
Frmdaçào Calo11ste Gulbenkia11 ,
nas ofi cinas da G.C. -Gráfica de Coimbra, Lda.
A tiragem é de I 000 exemplares
M ês de Se tem bro de 2007
Depósito Legal n. 0 2652 17/ 97
ISBN 972-3 1- 11 97- 2