MÃE, CUIDADORA E TRABALHADORA As Multiplas Identidades de Mães Que Trabalham
MÃE, CUIDADORA E TRABALHADORA As Multiplas Identidades de Mães Que Trabalham
MÃE, CUIDADORA E TRABALHADORA As Multiplas Identidades de Mães Que Trabalham
RESUMO
ABSTRACT
In the last decades, several Brazilian middle class mothers began to work. Lower
class women have always both worked and taken care of their children. Assuming
the perspective of the Network of Meanings, this study investigates the senses
of motherhood, child care and labor among four middle class working mothers
and six groups of lower class working mothers. We carried out interviews and
focus groups. These women understand that the education and the caring of the
children is the mother’s exclusive responsibility. They find it difficult to integrate
motherhood and work. Labor has different senses in those two social classes
★
Programa EICOS / Instituto de Psicologia / UFRJ. End.: Av. Pasteur, 250 - fds. Pavilhão Nilton
Campos. Praia Vermelha. Rio de Janeiro (RJ). 22290-000. Tel.: (21) 3873-5348.
E-mail: [email protected]
Leila Sanches de Almeida
INTRODUÇÃO
O trabalho feminino sempre esteve presente na história social das famí-
lias brasileiras através das mulheres das camadas populares. Contudo, especial-
mente a partir dos anos de 1960, tem-se assistido a uma grande valorização do
trabalho feminino por parte das mulheres das camadas médias. Assim, as mães
trabalhadoras das camadas médias se vêem diante de um processo já conhecido
pelas mães trabalhadoras das camadas populares: a necessidade de integrar à sua
identidade mais um papel - o de trabalhadora. Sabendo-se que o papel de mãe,
desde o século XVIII, evoca o lar e os cuidados infantis e que o papel de traba-
lhadora usualmente requer o afastamento do lar, este estudo tem como objetivo
conhecer como as mulheres desses dois grupos sociais atualmente lidam com as
identidades de mães e trabalhadoras e que sentidos elas atribuem à maternidade,
aos cuidados infantis e ao trabalho.
lar, emergiu este novo arranjo familiar, formado por pai, mãe e filhos, e que limi-
tava suas trocas sociais aos avós, tios e primos (FROTA, 2003). As atribuições
dos papéis familiares pouco mudaram em relação ao modelo patriarcal. A mulher
deveria desempenhar o papel de boa mãe, cuidando e educando os filhos, e de boa
esposa, dando suporte para o trabalho do marido fora do lar (NEDER, 2004). O
trabalho ainda era um encargo masculino.
Até hoje ainda é difundido em nossa sociedade que cabe apenas à família
conjugal a criação e educação dos filhos, sendo os cuidados infantis atribuídos
à mulher. Diante da tarefa de cuidar dos filhos, as mulheres trabalhadoras da ca-
mada média buscam vários arranjos: avós, tias, babás, creches e escolas são as
soluções mais utilizadas. Algumas, eventualmente, podem contar com o auxílio
do marido. Entretanto, como o trabalho é organizado por gênero na nossa socie-
dade, ainda não foi absorvida a participação masculina em atividades familiares
domésticas (RIDENTI, 1998; ROCHA-COUTINHO, 2003).
Já na história das camadas populares, raramente as mães puderam se dedi-
car inteiramente a seus filhos. No início do século XX, 42% das mulheres pobres
do Rio Grande do Sul já trabalhavam, sendo seus filhos cuidados por avós ou
outras pessoas (FONSECA, C., 1989). Atualmente, nas famílias pobres, a tarefa
materna de cuidadora ainda é dividida com membros da rede familiar mais ampla
ou com vizinhos da comunidade (SARTI, 1995). Porém, muitas vezes, é o filho
mais velho quem toma conta dos irmãos menores (AMAZONAS et al., 2003).
A representação da família nuclear ainda é predominante na atualidade,
apesar da família também assumir outras configurações A valorização dada ao
seu modelo e às atribuições dos pais alcança e permanece nas famílias das cama-
das populares como um ideal almejado (BILAC, 1995). É a família pensada no
cotidiano das famílias que vivem na pobreza (SZYMANSKI, 1997), revelando-
se especialmente nos momentos de autocrítica sobre o próprio modo de vida.
Tomando-se, agora, especificamente a questão do trabalho feminino, os
estudos nos apontam que mulheres de diferentes camadas sociais têm objetivos
diversos em relação a essa atividade. De modo que, nomeá-la como uma ativida-
de “extrafamiliar”, pode ser um tanto impreciso.
Nas camadas médias, o trabalho feminino é um projeto individual, ela-
borado no interior de uma história familiar (VELHO, 1987), apesar de circuns-
crito pela cultura. É uma atividade voltada para a satisfação pessoal que, além
de proporcionar status, leva ao crescimento individual, faz parte do processo de
constituição da identidade. No entanto, mesmo tendo as mulheres das camadas
médias conquistado o direito ao trabalho e à escolarização, continuam a lhes ser
atribuídos antigos valores e funções, tais como submissão, abnegação, tarefas
domésticas, cuidados infantis, entre outros (BIASOLI-ALVES, 2000). Estes
valores, chocando-se com suas recentes conquistas, fazem com que elas se sin-
tam responsáveis e culpadas pelas mudanças e acontecimentos indesejáveis no
âmbito de suas relações familiares.
incompleto. Como a maioria não terminara de cursar o primeiro grau, grande par-
te dessas mulheres era faxineira. Uma parcela menor era empregada doméstica e
uma minoria tinha outras ocupações (auxiliar de creche, vendedora ambulante...).
Todas trabalhavam, apesar do índice de desemprego nas favelas em que elas resi-
diam ser muito alto. A maior parte delas não tinha marido ou companheiro. Quan-
to a seus filhos pequenos, freqüentavam uma creche comunitária. Cabe esclarecer
que a maior demanda dos moradores das favelas na esfera dos cuidados infantis
era a ampliação do número de creches.
Os dados coletados nas entrevistas e grupos-focais, gravados, foram trans-
critos na íntegra (considerando-se os erros gramaticais, pausas, ênfases, hesita-
ções, choro, riso, etc.) e submetidos à análise de conteúdo (BARDIN, 2000).
Após exaustivas leituras, procedeu-se a um recorte das falas. Obteve-se um total
de 95 recortes: 41 de entrevistas (15 sobre maternidade, 11 sobre cuidados infan-
tis, 3 sobre trabalho e 12 sobre maternidade X trabalho) e 54 das falas nos grupos-
focais (21 sobre maternidade, 16 sobre cuidados infantis, 14 sobre trabalho e 3
sobre maternidade X trabalho).
O estudo atendeu às normas e procedimentos instituídos na Resolução
196/1996 do CNS-MS. Todos os participantes assinaram um termo de con-
sentimento informado.
Uma fala ilustra como o trabalho feminino, mesmo que seja a única fonte
de renda na família, é tido como uma renda complementar: “... elas precisam
ajudar no orçamento. Às vezes o marido tá desempregado... é mais fácil pra ela,
porque existe casa de família. A mulher pode ser diarista, pode passar, lavar e o
homem não” (mãe do GF5). Viu-se, ainda, que a grande maioria dessas mulhe-
res não conseguiu conciliar o trabalho com os estudos e acabou abandonando a
escola (“... eu tenho que trabalhar e não tenho como estudar” _ mãe do GF6). O
trabalho nessa camada costuma ter como características: baixos salários e horário
de trabalho extenso. Em muitos casos, também se situa em bairros distantes.
Por fim, cabe analisar a integração das identidades de mãe e trabalhadora.
Todas as mães da camada média tiveram dificuldade em conciliar a maternidade
e o trabalho. Duas delas relataram, inclusive, que haviam achado que não conse-
guiriam retornar ao trabalho após a licença-maternidade. Vejamos uma das falas:
“... eu achava que nunca iria conseguir deixá-la para voltar a trabalhar” (mãe c).
Com o retorno ao trabalho, era clara a divisão que sentiam entre o investimento
no trabalho e a dedicação aos cuidados do bebê:
[...] A volta ao trabalho é fundamental [...] Às vezes têm
pessoas que param, né, vão [...] Não. Num, num pode. A
A mãe, cujo marido estava desempregado, sentia muita tristeza por não po-
der ficar com a filha (“ah, eu não posso cuidar da minha filha” _ mãe b). Cumpre
esclarecer que ela era formada em uma área distinta da qual estava empregada.
Nos grupos de mães da camada popular, houve apenas três queixas sobre a
dificuldade de conciliar a maternidade com o trabalho. Uma mãe contou:
[...] às vezes eu sinto que eu abandono um pouco a minha
família... Esses dias eles estavam reclamando: a senhora só
quer saber da creche, você não quer mais saber da gente [...]
Aí tem dia que tenho que dedicar a eles, pra poder suprir
aquela falta que eles sentem. (outra mãe do GF3).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Existe uma atribuição no sentido de maternidade que se mostrou comum en-
tre as mulheres trabalhadoras das camadas média e popular que participaram deste
estudo: o cuidado e a educação dos filhos. Estes valores sempre foram atribuídos
à figura feminina desde o tempo do Brasil Colônia. Provavelmente por isto é que
estes significados integram a matriz sócio-histórica das mulheres estudadas.
Na camada média, as mães continuaram a se ver como a responsável pela
educação e cuidados infantis, mesmo quando podiam contar ou dividir essas ta-
refas com uma rede social de apoio, como o marido, avó, etc. Já algumas mães
da camada popular parecem conseguir dividir, e algumas até mesmo delegam a
educação e o cuidado dos filhos a um membro da família ou a alguma outra ins-
tituição (creche, escola,...).
Acredita-se que, em parte, o maior nível de dificuldade apresentado pelas
mães trabalhadoras da camada média em conciliar a maternidade com os cuidados
infantis seja devido ao significado primeiro dado ao trabalho por essas mulheres:
é um projeto individual (VELHO, 1987) que requer o dispêndio de grande quan-
tidade de tempo fora do lar, implicando em menor participação direta na vida fa-
miliar. Enquanto que na camada popular trabalha-se, acima de tudo, para garantir
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, L. S. de. Rede de relações sociais: um processo dialógico. Série
Documenta, Rio de Janeiro, ano VIII, n. 12-13, p. 97-109, 2001-2002.
FREIRE, G. Casa-Grande & Senzala. 17. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1975.
NEDER, G. Ajustando o foco das lentes: um novo olhar sobre a organização das
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