12 Teses de Regis Debray
12 Teses de Regis Debray
12 Teses de Regis Debray
Régis Debray
Toda a cultura se define pelo que decide ter por real. Há cerca de um
século que chamamos “ideologia” a esse consenso que cimenta cada grupo
organizado. Nem reflexivo nem consciente, tem pouco a ver com as ideias. É
uma “visão do mundo”, e cada uma leva consigo o seu sistema de crenças.
sejam boas”. Uma foto será mais “credível” que uma figura, e uma cassete de
compreendo”. “Já está visto” significa que não há nada a acrescentar. Ontem:
imagem. Uma visibilidade não se refuta com argumentos. Substitui-se por outra.
O que é apresentado como “digno de ser visto” por cada idade do olhar
teocracias, posso contestar as aparências visíveis, mas não que exista um “mais
além” do visível e que eu deva focalizar na sua direcção o meu olho espiritual.
No regime de “arte” que anuncia as ideocracias, posso dúvidar dos deuses e dos
ídolos mas não da verdade, e de que ela deva ser decifrada no grande livro do
os espíritos quanto não é reflectido enquanto tal. Cada regime de autoridade dá-
se como evidente. O que nos faz ver o mundo é também o que nos impede de o
ver, a nossa “ideologia”. Esta última, que nunca é tão virulenta como no
dispensar das ideias, ocupa o lugar de “a menina dos nossos olhos”. Em vez de
nos deixar estupefactos, transforma-nos em medusas, petrificamos em lugares-
Cidade do Cabo. Mas uma vez apagado o ecrã, resta-nos aceder aos olhares
interiores que regem cada universo visível. Este acesso só pode ser feito com a
visibilidade. Como ver o que nos cega? Mas todas cultivam a virtude intelectual
e física da clarividência, pois têm por ideal ver, através daquilo que aparece,
aquilo que é (ainda que possam negar essa faculdade aos nossos olhos de
carne). É mais fácil fazer dialogar as filosofias do que as luzes, as bocas do que
A pedra angular que sustenta o edifício das nossas crenças e das nossas
suporte destas operações, por assim dizer secundárias, que dizem respeito ao
restante, tudo o que “não é digno de ser visto”, será considerado não-ser,
natural de uma civilização passa por ilusão noutra. Cada uma tem
sujeitos sem objectos nem passado, reunidos para deliberar na praça da aldeia.
Somos herdeiros inovadores, cercados por muitos mitos mas dotados também
como as revoluções do século XIX, foi “modelizado” pelo teatro à italiana, com
o público nas ruas aclamando os actores, ou seja, a vanguarda que actua e fala.
Essa foi sem dúvida “a última sessão”, a última grande representação teatral da
nossa história (o estúdio televisivo impôs desde então o seu décor e a sua
imaginário. Com um imaginário cada vez mais equipado, teremos cada vez mais
espíritos”, até hoje, listavam em rodapé. Não “o quê e porquê?” mas “por onde e
nos ocupar delas, mas são elas então que se ocupam de nós.
coisa que eu? Questão tanto mais incontornável quanto a nossa margem de
tecnologia do fazer crer, desde a ágora grega e sem dúvida muito antes. Mas
uma mediavisão do mundo, dispositivo que dispõe de nós, dotado de uma força
de arrasto planetária.
substituição por toda a parte do global pelo fraccionário, que por vezes se
anos para substituir uma cultura binária por uma cultura trenária (base teológica
(dois, raramente três) e a segunda volta das eleições não deixam muito espaço
àqueles que não estão nem a favor nem contra, àqueles que não dizem nem
branco nem preto, mas um pouco dos dois, ou seja, nenhum deles. É mais que
provável que uma cultura extraespectiva (que projecta a inspecção para o
activamente. Ignora-se, então, como criador, origem das suas imagens (como
Mas o que aqui se extraverte e se sublima, não é mais a ideia de Deus mas a
Somos a primeira civilização que pode pensar estar autorizada pelos seus
ontem, estimavam que a imagem impede de ver. Agora, a imagem vale como
prova. O representável dá-se como irrecusável. Mas como o mercado fixa cada
tem valor o que tiver uma clientela. O alinhamento dos valores de verdade com
do poder de compra? O olhar de amanhã será regido pelo “pay for view”?
ganhar a lotaria.
9
alinhar o direito sobre o facto, o dever ser sobre o estar lá, o longo sobre o curto.
oferece dez mil vezes mais imagens e muito mais alegres que os ícones dos
podemos negar as coisas tal como estão. Mas a imagem registada redobra a
Uma sociedade WYSIWYG (what you see is what you get) já não é uma
possíveis do acontecimento que faz lei – “está errado porque não tem nada para
dialética que a humanidade terá conhecido, se lhe dermos plenos poderes. Hoje
a luta pela imaginação passa pela luta contra “o tudo é imagem”. Não se salvará
10
ocorria ontem nas culturas egipcia, grega, bizantina e medieval; e hoje com a
não tem rosto nem corpo. Ele é a palavra. Querer dar-lhe uma imagem seria um
recuperado a sua dignidade, mas como contigência que persegue ou regula uma
cego é o que está em melhores condições para fazer geometria”. Tinha-se então
por evidente que o mundo se explica pelo que nos oculta. Nessa esfera a
se”.
Na videosfera, esta dissimulação testemunha o falso ou o inconsistente, e
Justiça, Estado, etc. Pilares “abstractos” (mas noutro tempo efectivos) dos
pseudo-concretos que nos rodeiam mas que não ”aparecem” em nenhum ecrã.
menos espaço existe para as imaterialidades na vida social. Será que os nossos
literária hoje. Eu posso ver, numa foto de satélite, uma porção de terra, no
Mas nunca poderia ver os milhares de anos de história que fizeram um país
dessa mancha ocre e verde sobre fundo negro: uma singularidade imaterial e
decisiva.
11
cresce com a redução do válido ao visível. A parecença como ideal contém nos
todo o mundo, e a lei do mais forte na minha regra suprema. Uma videosfera
espécie e a simples busca do prazer, tanto nos indivíduos como nas nações
sonho.
12
distâncias, dos orgãos e das suas doenças, das nossas construções por planos
está fora do nosso alcance sem ter de ir lá e programar o futuro antes que se
produza. O microscópio desce até 1/10.000 milímetros. E o macroscópio ganhou
soldado com uma bazooka, ver à noite, sem ser visto. A ecografia, por ultrasons,
magnética (IRM) permite entrar nos tecidos, nas células, nos neurónios. A
dimensões as cheias dos rios, o avanço das dunas ou dos glaciares, a estrutura
dos espaços observáveis parece ter-se saldado numa amputação dos territórios
directo).
***
traduções visuais possíveis, ainda que fossem apenas virtuais, num cyberspace.
Como pode existir um aqui sem um ali, um agora sem um outrora e um amanhã,
***
seu desejo de agora em diante, saindo da sua disciplina, seria tomar o partido
do invisível.
Tradução: André Camecelha (estudante de Ciências da Comunicação, FCSH – UNL, 2009)
Edição original
DEBRAY, Régis, «Douze thèses sur l’ordre nouveau et une ultime question», in Vie et mort de