Transtornos Por Uso de Substâncias - Conceituação E Modelos Teóricos
Transtornos Por Uso de Substâncias - Conceituação E Modelos Teóricos
Transtornos Por Uso de Substâncias - Conceituação E Modelos Teóricos
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Desde a última edição deste livro, houve mudanças importantes a respeito dos conceitos
relacionados à dependência química. O DSM foi lançado em sua quinta versão com mu-
danças na forma de entender e classificar esse transtorno. O DSM é um norteador para
todos aqueles que trabalham diretamente com transtornos mentais, seja no tratamento
direto, seja em pesquisas e em outros setores, como companhias de seguro, políticas
públicas e a própria indústria farmacêutica. Apesar das críticas relacionadas ao manual
escrito pela American Psychiatric Association (APA), não se pode negar a influência
direta deste, que envolve desde diagnósticos até decisões diversas a respeito de vários
assuntos relacionados ao tema, bem como sobre a própria CID (DSM-5).
Nos últimos anos, foram desenvolvidos modelos teóricos na tentativa de explicar
de forma distinta os critérios clínicos do TUS e as construções psicológicas envolvidas
nesse processo. A organização de tais modelos tem a intenção de investigar, controlando
estímulos ambientais, como apenas alguns indivíduos vulneráveis, após a exposição pro-
longada a substâncias, tornam-se compulsivos em seu consumo. Atualmente, o conceito
de dependência química entende esse problema como um transtorno neuropsiquiátrico
que afeta algumas pessoas que utilizam substâncias. Os estudos genéticos têm contri-
buído para que haja um melhor entendimento da vulnerabilidade de determinadas
pessoas. O grande desafio para o futuro será integrar esses resultados, identificando
significados funcionais e correlacionando a genética aos modelos comportamentais
e aos processos cognitivos em indivíduos que passam de usuários recreacionais para
consumidores compulsivos.1
A evidência atual mostra que a maioria das drogas exerce seus efeitos de reforço
inicial ativando circuitos de recompensa no cérebro. Porém, com a continuidade do
consumo, ocorre prejuízo cerebral: esse órgão se torna progressivamente mais sensível
a fatores estressantes, produzindo interferências no autocontrole e, por fim, uma tran-
sição para o consumo automático e compulsivo. Essa evolução pode se dar com maior
facilidade em indivíduos com vulnerabilidades genéticas, que apresentam transtornos
psiquiátricos, que tiveram experiências precoces de consumo de substâncias na adoles-
cência e que estão sob a ação de estresse crônico.2
Com o desenvolvimento das tecnologias, novas formas de realizar diagnósticos
são desenvolvidas e apuradas. Para a maioria das especialidades médicas, existem
diferentes exames laboratoriais ou de imagem que podem ser utilizados para apontar
a presença de determinada patologia ou distúrbio. Quando um paciente apresenta
pressão arterial de 180/120 mmHg, não há dúvidas de que ele é ou pelo menos está
hipertenso. Se a contagem de hemácias estiver baixa, podemos dizer, de forma gros-
seira, que a pessoa tem anemia. No entanto, o fato de alguém beber todos os dias
não o torna necessariamente dependente de álcool. Por exemplo, alguns clínicos
são favoráveis ao consumo diário de uma taça de vinho, o que diminuiria o risco de
acidentes cardiovasculares.3
Da mesma forma que outros temas relacionados à psiquiatria, a dependência tam-
bém sofre por não dispor de exames laboratoriais ou de imagem para a realização de
diagnóstico apurado e preciso.
Essa complexidade no diagnóstico de problemas relacionados ao consumo de
substâncias gera inúmeras possibilidades de erro, desde a elucidação do problema
até sua resolução e, por fim, seu prognóstico. O profissional da saúde que trabalha
com tal especialidade deve ter familiaridade com os sistemas diagnósticos para não
minimizar quadros de maior gravidade ou para não cometer o oposto, isto é, dar
importância exagerada a situações em que o quadro de dependência ainda não está
instalado. Na primeira situação, o profissional peca por fazer menos que o neces-
sário; na segunda, por realizar tratamentos que podem produzir iatrogenia (p. ex.,
a introdução de medicamentos em paciente que obteria mais benefícios com outro
tipo de intervenção).4
O conhecimento e a frequência na utilização das classificações auxiliam o profissional
da saúde mental a identificar melhor a sintomatologia dos pacientes, diminuindo, dessa
forma, a possibilidade de erros.
MODELO MORAL
Nesse modelo, quatro traços relacionados ao funcionamento individual criariam o senso
de moralidade: simpatia, autocontrole, justiça e dever. “Defeitos” nessas características
gerariam problemas no convívio social, promovendo um colapso. A falta de autocon-
trole seria a própria impulsividade. Comportamentos criminosos surgiriam quando
impulsividade se somasse a agressividade e falta de empatia. James Q. Wilson acredita
que tanto o criminoso como o indivíduo com TUS devem ser julgados moralmente para
prevenir e corrigir seus comportamentos.5 No modelo moral, tanto o uso de substâncias
como a própria dependência são escolhas pessoais. Acredita-se que esse consumo seja
um desrespeito às normas sociais, transformando o paciente em um transgressor. Esse
tipo de entendimento torna o indivíduo sujeito a críticas sobre a doença, como se ele
fosse responsável por ela e, logo, estivesse apto a arcar com todas as consequências em
quaisquer situações.6,7 Esse é o modelo que muitas vezes torna o paciente intoxicado
alvo de críticas, desatenção e punição em serviços de saúde, bem como de pensamentos
populares do tipo: “Tanta gente doente, e esse aí causando confusão porque bebe”,
“Esse paciente vive chegando drogado no pronto-socorro. Melhor atender rápido e
mandar logo embora”, “Apanhou na rua? Foi estuprada? Também, quem mandou usar
droga/beber?”.
Em determinadas situações, o modelo moral é empregado e pode surtir efeitos
positivos, como os Alcoólicos Anônimos (AA). Esse grupo de 12 passos trabalha
com alguns conceitos em que falhas de caráter são pontuadas e discutidas para que o
indivíduo perceba tais problemas e possa fazer mudanças em seus comportamentos.
Nessa situação, não há uma pessoa “melhor” apontado falhas e cobrando melhorias
por parte daquele com “falhas morais”, mas sim a autopercepção da necessidade de
mudança pela identificação com o coletivo, situação em que todos teriam caracterís-
ticas semelhantes.8
Fora de situações como a exemplificada, a abordagem do modelo moral mostra-se
inadequada no tratamento do TUS. Apenas responsabilizar o paciente pelo quadro de
MODELO ESPIRITUAL
Em 1935, Bill Wilson e Robert Smith criaram os AA. A dependência de álcool, nesse
modelo, é entendida como uma condição que o indivíduo se torna incapaz de superar
por si só. A esperança de mudança consiste em entregar a vida a uma força superior e, a
partir daí, segui-la rumo à recuperação. Praticar os 12 passos é peça fundamental para a
recuperação. A partir dos AA, outras irmandades foram criadas, seguindo basicamente
a programação dos 12 passos. Os grupos Al-Anon e Alateen foram desenvolvidos para
familiares de dependentes de álcool. Além deles, há os Narcóticos Anônimos (NA), o
Dependentes de Sexo Anônimos, o Neuróticos Anônimos, o Comedores Compulsivos
Anônimos, entre muitos outros.6
MODELO PSICOLÓGICO
Várias escolas de pensamento voltadas ao modelo psicológico tentam explicar o sur-
gimento do TUS:
MODELO BIOLÓGICO
Estudos neurobiológicos relacionados ao consumo de substâncias vêm apontando a
dependência química como um transtorno crônico do cérebro e que o estudo minucioso
desses elementos resultará em futuros tratamentos mais individualizados e eficazes.2
O modelo biológico ganhou força a partir dos anos de 1970 e aponta a fisiologia e a
genética dos indivíduos como responsáveis pela etiologia da dependência. Esse modelo
estuda a herança genética e a constituição biológica do indivíduo e como tais carac-
terísticas determinam o surgimento da dependência. Estudos com famílias, gêmeos e
adoção enfatizam a importância das características biológicas dos indivíduos para o
surgimento desse processo, por exemplo, estudos com gêmeos idênticos separados na
infância e adotados por famílias com características diferentes evoluindo para quadros
de dependência química na idade adulta. Na década de 1970, a Organização Mundial
da Saúde (OMS) desenvolveu uma nova conceituação sobre a dependência química,
considerando-a como uma síndrome que obedece a um continuum de gravidade. Houve
distinção entre consumo abusivo e dependência.7,10
Atualmente, sabe-se que as substâncias podem modular a expressão de genes
envolvidos na neuroplasticidade cerebral. Modificações no ácido ribonucleico (RNA)
produzem disfunções nos neurônios, que resultam em alterações duradouras observadas
no TUS.11 O consumo dessas substâncias produz aumento da liberação de dopamina no
cérebro, em regiões, como o nucleus accumbens e a área tegmentar ventral, que estão
diretamente relacionadas ao processo de recompensa.12
Diversos estudos estão sendo apontados como promissores em relação ao papel
biológico do desenvolvimento do TUS. Entre as pesquisas mais importantes, estão:2
MODELO BIOPSICOSSOCIAL
Segundo esse modelo, uma multifatoriedade está envolvida no surgimento da depen-
dência química. As diferentes teorias associadas seriam necessárias para determinar a
doença, e o indivíduo não teria apenas uma única causa para explicar o desenvolvimen-
to, o curso e o prognóstico do problema.10 A substância seria apenas um dos fatores
de uma tríade que incluiria o indivíduo e a sociedade da qual ele faz parte e na qual a
substância se encontra.13
De modo geral, acredita-se que todas ou quase todas as substâncias podem produzir
os quadros descritos. No entanto, tais quadros, além das quantidades e da frequência
de uso, também podem surgir de acordo com suscetibilidades pessoais e com condições
clínicas associadas. Por exemplo, algumas pessoas têm maior predisposição que outras
para apresentar quadros psicóticos; portanto, doses menores ou menor frequência de
uso de substâncias poderiam produzir um quadro de F1x.5.16
Um dos maiores estigmas do diagnóstico de TUS está na impossibilidade de “cura”
ou mesmo na dificuldade de lidar com esses pacientes. Entender a doença e suas carac-
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