Conexões

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Tom Martins

Conexões:
perspectivas transcendentes comparadas

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Tom Martins

Conexões:
perspectivas transcendentes comparadas

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Wellington Martins Junior

Conexões:
perspectivas transcendentes comparadas

2ª edição

Luce Editora
Jundiaí - SP
2020
7
Copyright © 2020 Wellington Martins Junior

Projeto gráfico e diagramação: Lucia Fontes


Revisão: Wanderley Carvalho e Paloma Ferraz
Capa: Lucia Fontes
Imagem de capa: Oaurea | shutterstock.com
Impressão:

Todos os direitos reservados.


Proibida a cópia, reprodução ou duplicação desta obra, no todo ou em parte,
sem a autorização expressa do autor.

Luce Editora e Artes Ltda


www.luceeditora.com.br

Impresso no Brasil | 2020

8
AGRADECIMENTOS

Cinco pessoas foram fundamentais na realização desta obra,


quatro delas, meus familiares:

Carla Nardi Martins, que manteve meus pés no chão.


Gabriel Nardi Martins, com suas reflexões contundentes.
Giulia Nardi Martins, com suas inspirações.
Adua Schiavi Martins, pelo ercúleo esforço na minha criação.
Wanderley Carvalho, maior incentivador e revisor da obra.

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10
SUMÁRIO

PREFÁCIO
Wanderley Carvalho 13

INTRODUÇÃO
Isso versus aquilo 17

PRIMEIRO BLOCO: Conceitos preliminares


1. Cosmos e kosmos 35
2. Hólon e holarquia 41
3. O método na Ciência clássica, na Filosofia Integral e na
Conscienciologia 53
4. Paradigmas materialista, consciencial e integral 65
5. Os três olhos do pluralismo epistemológico integral 77

SEGUNDO BLOCO: Elementos da Filosofia Integral


6. Primeiro elemento: níveis 97
7. Segundo elemento: linhas 119
8. Terceiro elemento: estados 147
9. Quarto elemento: tipos 157
10. Quinto elemento: quadrantes 165

TERCEIRO BLOCO: Postulados da Conscienciologia


11. Multidimensionalidade e multiexistencialidade 193
12. Holossomaticidade e pensenidade 201
13. Projetabilidade e bioenergeticidade 219
14. Assistencialidade, cosmoeticidade, maxifraternidade e
universalidade 231

QUARTO BLOCO: Epifanias


15. Sou, logo existo 249
16. A quarta “dessoma” 267
17. O autor modela a obra ou vice-versa? 275

POSFÁCIO: Teoria e prática


18. Estágios do desenvolvimento moral 285

ÍNDICE DETALHADO 300

11
12
Prefácio

Wanderley Carvalho

13
14
Prefácio

Tecer comentários que façam jus à robustez teórica e vivencial deste livro
constitui-se em desafiadora tarefa, haja vista os vários atributos que neces-
sitariam ser pontuados e discutidos para que tal propósito fosse atingido a
contento. Afinal, a sinergia entre a temática enfocada e a abordagem uti-
lizada pelo autor fazem com que adjetivos como “ousado”, “provocativo”,
“instigante” e “contundente”, embora merecidos, estejam bastante aquém
de traduzir fielmente o significado deste valioso trabalho intelectual. Além
disso, não posso correr o risco de contaminar demasiadamente os leitores
com meu ponto de vista, antes ainda que eles tenham tido a oportunidade
de dialogar diretamente com o próprio autor. Que fazer?

Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Os olhos enxergam de onde os pés pisam,
diz o teólogo Leonardo Boff. Do meu lugar de educador, dirijo quase que
instintivamente meu olhar para o processo que culminou com esta obra. O
produto, o resultado de tal processo, está agora devidamente materializa-
do e ao alcance do leitor que, dessa forma, fica livre para ter suas próprias
impressões. Inicio meu exercício, que prefiro chamar de contemplação crí-
tica, tomando de empréstimo parte das ideias de Joseph Campbell, uma
das maiores autoridades do mundo em mitologia. Em suas considerações a
respeito da importância dos mitos na existência humana, Campbell inclui
a chamada “saga do herói”, na qual defende haver íntima semelhança entre
uma jornada heroica e a vida de cada um de nós.

Dos dois tipos de proezas que, segundo Campbell, podemos realizar


nessa jornada, atenho-me à que ele denomina “espiritual”. Tal proeza
ocorre quando o indivíduo aprende ou encontra uma maneira de ex-
perimentar um nível da vida espiritual humana mais elevado do que
aquele em que se encontra e, posteriormente, volta para comunicar sua
vivência aos outros. Nesse percurso, recria-se a si mesmo e oferece con-
dições para que ele próprio e seus semelhantes partam em busca de no-
vas realizações e novos retornos. Trata-se, em suma, de um infindável
ciclo partida – realização – retorno.

Pois bem, esse estudioso incansável e disciplinado chamado Tom Martins


acaba de retornar de uma vivência para a qual partiu há mais de uma dé-
cada – talvez duas ou até mais – e nos comunica, por meio desta obra, não
apenas suas realizações, mas as reflexões e considerações que elas suscitam.

15
Prefácio

Uma jornada heroica, diria Campbell; uma atitude educativa, ousaria eu


acrescentar. Afinal, no que mais consiste o ato de educar senão em comu-
nicar a um grupo de pessoas – que nossa sociedade convencionou chamar
de “alunos” – nossas experiências e concepções a respeito de um determi-
nado assunto?

Concluída a leitura, a comunicação do relato terá se consumado. Aos que


decidirem partir para suas próprias buscas, pautadas pela vivência aqui
sintetizada, boa viagem. E um feliz retorno!

Jundiaí (SP), julho de 2014


Wanderley Carvalho

16
Introdução

Isso versus aquilo

17
18
Isso versus aquilo

Quem não gostaria de ter conhecimento e solidez intelectual suficiente


a ponto de ser reconhecido mundialmente como Einstein da Consciência?
Ken Wilber recebeu tal epíteto, não somente por sua precoce sagacidade e
maiúscula capacidade de absorção e associação de informações suposta-
mente desconexas, mas também por consistente mapeamento de caminhos
evolutivos por cinco elementos de sua filosofia, que adjetivou de integral,
aclarados no segundo bloco desta obra:
1. Níveis
2. Linhas
3. Estados
4. Tipos
5. Quadrantes

Nos próximos capítulos, explicarei sinteticamente os preceitos necessá-


rios à compreensão da Filosofia Integral e seu pluralismo epistemológi-
co, além das impactantes conexões com alguns postulados do Cristianis-
mo, da Conscienciologia, além das relações com conceitos pitagóricos,
ensinamentos holárquicos, mandamentos filosóficos e inúmeras epifa-
nias pessoais.

A Filosofia Integral trouxe-me clareza sobre um dos mais completos ma-


pas da existência humana que tive a oportunidade de estudar, além de di-
ferenciar e integrar a beleza das artes, a verdade das ciências e a moral
coletiva; tudo com espetacular abrangência, conectado aos quatro cantos

19
Introdução • Isso versus aquilo

de um universo multidimensional e em empolgante diálogo com grandes


pensadores da história humana, enfim, uma inusitada integração de varia-
das teorias e autores, de Buda a Freud.1

O estudo da Consciência, aqui entendida como sinônimo de alma, espírito


ou ser essencial, acenou-me com a possibilidade de nossa essência assumir-
-se como pesquisadora de si própria, ou seja, como sujeito ativo e concomi-
tantemente o próprio objeto ou foco da pesquisa. Dessa forma, pesquisador
e pesquisado estão concentrados em um único ser, que será autodesnudado
pela análise atenta de seus veículos de manifestação e respectivos produ-
tos – pensamentos, sentimentos e ações – também avaliados no decorrer
desta obra, tudo sob a égide de sete postulados estruturais explicitados no
terceiro bloco através dos seguintes neologismos:
ƒ Multidimensionalidade
ƒ Multiexistencialidade
ƒ Holossomaticidade
ƒ Pensenidade
ƒ Projetabilidade
ƒ Bioenergeticidade
ƒ Cosmoeticidade

Iniciei esta obra como uma jornada pessoal e anotei conceitos lado a
lado, buscando convergência máxima entre tudo que lia e todos os cur-
sos que fazia nas mais diversas áreas, da política à espiritualidade, das
ideologias tirânicas às libertárias, do Direito à Psicologia. Portanto, a
presente compilação não se resume ao meu estudo jurídico, psicológico,
filosófico ou científico, tampouco à Filosofia Integral ou à Conscien-
ciologia, pois utilizei essas últimas estruturas “apenas” como um polo
centrípeto ou base agregadora de conhecimentos de meu interesse, ini-
cialmente soltos em meu espaço mental e posteriormente alocados so-
bre um único eixo.

Os postulados em torno de temas transcendentes foram meus focos prin-


cipais e outorgaram-me interessante alicerce para acolher e compreender

1 Referência ao título de uma das obras WILBER, Ken. Uma breve história do Universo. Via
Optima: 2004.

20
Introdução • Isso versus aquilo

os mais variados estudos, como forma eficaz de agrupar cada autor no seu
respectivo quadrante,2 além da condição de melhor interpretar suas teorias
e identificar as respectivas lacunas.

Reconheço a facilidade pessoal para assimilação de informações através


dos peculiares neologismos conscienciológicos, porém recuso-me a igno-
rar outras importantes vertentes do conhecimento humano por conta de
uma certa dificuldade com a linguagem arcaica, frequentemente ligada a
terminologias antigas. Em suma, as Tradições de Sabedoria (em especial a
tradição cristã), as vertentes orientais, os postulados pitagóricos e de pen-
sadores pretéritos, além da própria Filosofia Integral, a meu ver, podem
e devem receber comparação e confronto com qualquer ramo da ciên-
cia, obviamente sob a égide da urbanidade, distante da competitividade
excludente e bastante próximo do espírito cooperativo centrado na suple-
mentação informacional recíproca.

O problema da ambivalência
Diante de vertentes de notável abrangência, mas aparentemente antagôni-
cas – uma decidida a integrar arte, ciência e religião,3 outra interessada
exclusivamente em estruturar-se como ciência 4 – passei a estudar ambas
e pesquisar suas ligações externas com as demais áreas e artefatos do sa-
ber humano. Objetivei a comparação entre tais vertentes e a verificação
de qual delas ofereceria um campo teórico e prático adequado as minhas
inquietações intelectuais e curiosidades pertinentes a todos os campos do
conhecimento, em especial a esfera transcendente.

Adianto ao leitor que, desde a infância, detenho curiosidade aguçada


sobre a transcendência, mas também uma tendência científica natural.
Haveria uma ponte possível entre tais gostos? Surpreendi-me positi-
vamente ao verificar a extraordinária utilidade dos conceitos e ma-
pas wilberianos, cuja visão unia todos esses aspectos. Utilizei vários
constructos5 da Filosofia Integral e seus cinco elementos, bem como

2 Termo wilberiano que, por ora, podemos entender como jurisdição, território ou setor.
3 Filosofia Integral: proposta integrativa da arte, religião e ciência.
4 Conscienciologia: exclui de seu aparato técnico tanto a arte quanto a religião.
5 Constructo: o “c” mudo foi suprimido pela nova ortografia, mas mantido pelo autor.

21
Introdução • Isso versus aquilo

os experimentos da Conscienciologia, sem descarte da minha indivi-


dualidade, juízo crítico, filtros e estilo personalíssimo. Iniciei e concluí
cursos, dinâmicas e assimilei vorazmente as obras conscienciológicas,6
integrais7 e alguns clássicos científicos e filosóficos como sistemas
abertos, em abandono ao dilema fechado representado pela expressão
“isso versus aquilo”.

Passei a aplicar técnicas plurais, mas havia um grande problema, pois a


Conscienciologia distanciava-se das religiões e a Filosofia Integral visava o
estabelecimento de um método integrativo, aproximando-se das religiões.
Existiria espaço para conciliar o que, a princípio, parecia-me inconciliá-
vel? Julguei impossível a edificação da ponte que superaria esse abismo e
uniria tais perspectivas, enfim, desenhava-se um óbvio e futuro conflito:
Filosofia Integral versus Conscienciologia.

Contudo, o que preteritamente apresentava-se como uma escolha exclu-


dente, surgiria no presente como um desafio factível, que culminou em ga-
rimpo intelectual frente às respectivas propostas e demais autores envol-
vidos em vários outros ramos do conhecimento humano, obviamente com
suas divergências e dissonâncias, mas, acima de tudo, com seus conceitos
assistenciais, saudáveis técnicas e bússolas apontadas para um horizonte
coerente e evolutivo. Em apertada síntese, emergira naturalmente minha
pesquisa: “isso e aquilo”.

O que é Consciência?
No contexto desta obra, o termo Consciência, quando iniciado com letra
maiúscula, será utilizado no sentido conscienciológico, ou seja, para desig-
nar o princípio individualizado e organizador de nossa existência ou, em
palavras mais simples, aquilo que somos em essência. Reconheço inúmeras
variações de significados, a exemplo da Filosofia Integral que diferencia os
termos alma e espírito; apesar disso, genericamente, podemos dizer que essa
essência individualizada ou Consciência não se confunde com corpo físico,
energia, emoção ou pensamento.

6 O termo conscienciológico, no contexto desta obra, se refere à Conscienciologia.


7 O termo integral, no contexto desta obra, se refere à Filosofia Integral.

22
Introdução • Isso versus aquilo

A literatura considerada transcendente usa como sinonímia de Consciência,


não raro também iniciado por letras maiúsculas, os termos alma, atman, ego,
espírito, essência, eu superior, individualidade, mente, mônada, self, ser essencial,
testemunha, entre outros.

Estudiosos da Consciência diferenciam essa entidade existencial de seus


veículos de manifestação, a saber: soma,8 energossoma,9 psicossoma10 e men-
talsoma.11 Nesse diapasão, comprometo-me a justificar, até o final desta
obra, porque considero a frase atribuída a Descartes, “penso, logo existo”
(cogito ergo sum), passível de aprimoramento para designar a existência.
Na esteira dessa trilha transcendente, advogarei com argumentos que
considero racionais, uma expressão substitutiva e mais abrangente ao
pensamento cartesiano.

A hipótese da existência além do pensamento transcenderá sua união


univitelina com o corpo mental e gerará alguns questionamentos sobre as
tradicionais figuras conscienciológicas representativas do veículo do dis-
cernimento e da própria Consciência. Não estou propriamente negando
o postulado conscienciológico, mas sim colocando-o de uma forma que
simbolize melhor minha própria visão sobre a transcendência. Assim, não
somente coloco em dúvida a hipótese do pensamento como “o” agente
identificador da existência, mas também proporei uma outra imagem re-
presentativa para a relação entre corpo mental e essência.

Desde logo, aceitarei eventual crítica por tangenciar a Mateologia, mas mi-
nha construção racional a favor da transcendência ao reducionismo ma-
terialista levou-me a postular as conclusões aqui expostas. Resta-me a es-
perança de positivos questionamentos, reflexões e diálogos suplementares.

8 Soma: corpo físico.


9 Energossoma: corpo energético, corpo bardo (tibetanos), corpo vital (rosacrucianos), du-
plo etérico (inúmeras linhas espiritualistas), veículo do prana, etc.
10 Psicossoma: corpo das emoções, carne sutil da alma (Pitágoras), carro sutil da alma (Pla-
tão), corpo astral, corpo desencarnado, corpo dos desejos (rosacrucianos), kama-rupa (budis-
mo esotérico), perispírito (Allan Kardec), segundo corpo (Parapsicologia), sexta consciência
(budismo) etc.
11 Mentalsoma: corpo da sabedoria, sétima consciência (budismo), paracorpo do discerni-
mento.

23
Introdução • Isso versus aquilo

A Conscienciologia
O sufixo -logia, do grego lógos (palavra, discurso, linguagem, estudo, teoria)
é o elemento linguístico que exprime a noção ou campo de estudo, um con-
junto de conhecimentos sobre tema específico. Conscienciologia, portanto,
é o campo de estudo da Consciência e suas manifestações, interações, ca-
pacidades, percepções e relações materiais e imateriais.

Apesar de ter constatado rotundas falhas políticas na Conscienciologia


(dissonância entre ações centralizadoras de poder e discurso descentraliza-
dor), interpreto-a como um movimento sadio que pretende “jogar apenas
a água do banho”12 (mistificações embusteiras) e preservar sadiamente o
“bebê” (Consciência) como objeto de pesquisa. O paradigma 13 consciencial
(existência objetiva da consciência, alma, espírito, self ou outros sinônimos)
trouxe uma perspectiva peculiar para a espiritualidade, com excelentes
ferramentas para experimentações técnicas, a fim de transcender o mate-
rialismo grosseiro ou niilismo radical.

Do modelo científico clássico, esse ramo do conhecimento extraiu a lógica,


a racionalidade, o gosto pela experimentação e repudiou o apego, o fascínio
paradigmático, as “gurulatrias” e o hermetismo, muito embora eu tenha
constatado tais características em muitos de seus integrantes.

A proposta conscienciológica difere consideravelmente do modelo integral no


tocante à terminologia, em especial ao uso e criação de neologismos em
larga escala. Mantém ainda parciais objeções sobre os limites da jurisdição
científica e não integra religião em seus postulados, sempre com o contun-
dente acréscimo da importância visceral do aspecto vivencial.

Parece-me nascer da Conscienciologia um método para alcançar informa-


ções transcendentes através de técnicas precisas e catalogadas, com valores
e instrumentos que a colocam como candidata a atrair os holofotes dos
buscadores de uma cosmovisão desprovida de religião, mas que também

12 Alusão jocosa à expressão idiomática “jogar o bebê com a água do banho”.


13 Paradigma: termo bastante desgastado e talvez usualmente mal compreendido por in-
térpretes da obra A estrutura das Revoluções Científicas, do físico e filósofo estadunidense
Thomas Samuel Kuhn, mas que, nesse caso, exprime a perspectiva multidimensional da exis-
tência.

24
Introdução • Isso versus aquilo

integre a multidimensionalidade para além do materialismo. Opostamen-


te, a Filosofia Integral visa justificar e validar alguns pontos convergentes
entre as religiões.

Esta obra mostrará perspectivas que ampliam a visão meramente mate-


rialista. Discordo de qualquer interpretação que considere tais vertentes
como panaceias salvacionistas, porém admito o potencial positivamente
transformador de algumas técnicas, especialmente para mitigar traços
fardos e otimizar características edificantes, motivo pelo qual compar-
tilharei com o leitor o Quadro I.1, no qual constam as principais di-
ferenças entre a concepção que inclui a Consciência, ao menos como
possibilidade, e a materialista grosseira, onde tudo que existe é mero
epifenômeno material.

Quadro I.1
Comparativo entre os exemplares materialista e consciencial

Inclusão da Consciência (espiritualismo) Exclusão da Consciência (materialismo)


Consciência e Holossoma14 Soma15
Multidimensionalidade Intrafisicalidade
Multisserialidade 16
Unisserialidade17
Parapsiquismo e sentidos físicos Cinco sentidos físicos

A Filosofia Integral
No sentido usado pela filosofia wilberiana, o termo integral pressupõe a
junção de partes, união, integração, reconciliação, conexão, enfim, algo que
abraça, abarca e, como no sentido literal, integra. Wilber esclarece expres-
samente que o termo integral não possui o sentido de uniformidade, nem
relação com a tentativa de eliminar multiplicidades ou diferenças.

Notei, com especial satisfação, que a Filosofia Integral não se harmo-


niza com o conceito anti-hierárquico de homem genérico, padroniza-

14 Holossoma é o conjunto de todos os corpos ou veículos de manifestação que, para a


Conscienciologia, são quatro: soma, energossoma, psicossoma e mentalsoma (Capítulo 13).
15 Soma, neste contexto, significa corpo físico ou biológico.
16 Possibilidade da Consciência experimentar várias vidas ou séries existenciais.
17 Crença ou defesa da existência de apenas uma vida ou experiência corpórea.

25
Introdução • Isso versus aquilo

do, previsível ou cuja condução possa ocorrer sob perspectiva exclusi-


vamente determinista, seja ela coletivista ou individualista, socialista ou
liberal, generalista ou detalhista. Entre as propostas antagônicas, como
as de Karl Marx18 e Adam Smith19 ou Freud20 e Gautama Buda,21 além
de outros autores e teorias considerados contraditórios, Wilber aponta
contextos específicos nos quais emergem equívocos e acertos parciais em
níveis e quadrantes. Existe uma ideia wilberiana que me é clara: diferenciar
sim, dissociar não.

Imagino o termo integral muito além das ideias pretensamente monopoli-


zadoras da virtude ou detentoras da grande solução para todos os infortú-
nios cósmicos. O significado mais profundo parece combinar-se com uma
forma de individualização sem desconexão e legitimação de um abrangente
abraço à arte, à ciência e aos valores morais, com o propósito de desnudar
suas conexões em fantástica teia multidimensional. Refratária à ilusão de
uma igualdade proposta por inocentes saudosistas românticos, a Filosofia
Integral advoga o respeito à diversidade, numa tentativa de harmonização
consciente, onde há espaço e oxigênio para a convivência dos pronomes
eu, nós e isso, ou seja, a pacificação entre:
1. Individualidade:22 o subjetivo, o meritório, o estético, o artístico.
2. Coletividade:23 a ética, o justo, o comum, o social.
3. Cientificidade:24 o verdadeiro, o comprovado, o demonstrado.

“O paradigma integral será inteiramente crítico com relação às aborda-


gens que são comparativamente parciais, restritivas, superficiais, menos
abrangentes e menos integrativas”.25 Nessa linha de argumentação, Wilber
tece críticas ao chamado reducionismo newtoniano cartesiano, que também
será objeto de análise no decorrer desta obra, em fomento e estímulo por
sua transcendência, porém insistência na sua inclusão.

18 Igualdade e engenharia social, da qual sou crítico e cético.


19 Liberdade na busca de interesses individuais, da qual sou apreciador.
20 Reforço do ego.
21 Morte do ego.
22 Na linguagem integral, condensam-se esses conceitos pelo pronome eu.
23 Na linguagem integral, condensam-se esses conceitos pelo pronome nós.
24 Neste caso, a condensação faz-se pelo significante isso.
25 WILBER, Ken. Uma teoria de tudo, Oficina do Livro: 2005, p. 14.

26
Introdução • Isso versus aquilo

Os propositores
Waldo Vieira é dissidente do Espiritismo e propositor da Consciencio-
logia. Provido de notável acuidade, norteia-se pela lógica e alega possuir
farta experiência no estudo parapsíquico, em especial do fenômeno proje-
tivo.26 Manifesta aberta e contundente crítica a qualquer sistema religioso
ou dogmático. Pessoalmente, julgo exagerada a crítica de Vieira.

Dotado de impressionante força presencial e aparência exótica, manteve


em sua vida uma longa barba e costumava usar roupas brancas. Faleceu
em 2015, aos 83 anos. Constatei pessoalmente, em algumas visitas ao pro-
fessor Vieira, na cidade de Foz do Iguaçu (PR), sua qualidade de trabalha-
dor incansável, tenacidade implacável e personalidade que ele próprio ad-
jetivaria de “javalina” e que rotulo jocosamente de “testosterônica”.

Sem receio de falar o que pensa, sua intensidade impressionou-me, bem


como suas opiniões firmes e pontiagudas. Proprietário de escrita pecu-
liar e amante de neologismos, enfrenta corajosamente debates tranqui-
los ou acalorados. Utiliza, quando necessário, a irreverente ferramenta
que denominou de “banana technique”.27 Apesar de minhas maiúsculas
divergências com Vieira no campo político,28 reconheço aspectos inte-
ressantes em sua proposta, que apresentou uma perspectiva inovadora
dos assuntos transcendentes.

Ken Wilber, por sua vez, passou pela linha budista e propôs a Filosofia
Integral, por meio da qual aponta um sistema que integra arte, religião
e ciência, com diferenciações e associações inseridas num abraço integral.
Também mantém uma apresentação exótica, com a cabeça raspada, estilo
sereno e físico atlético, apesar do enfrentamento de alguns problemas de
saúde. Intelectualmente brilhante, possui uma escrita conciliadora e busca,
de forma competente, a integração – como o nome de sua filosofia sugere

26 Fenômeno projetivo: conhecido como projeção astral ou desdobramento, entre outras variações.
27 “Banana technique” é expressão que representa a esnobação, irreverência e humor, ao
modo de bordão, dirigida a pessoas não pesquisadoras ou superficiais que inundam o de-
bate com questionamentos vazios. Consiste no gesto de dobrar o braço com a mão fechada,
apoiando ou não a outra mão na dobra do cotovelo.
28 No campo político, interpreto a tendência de Vieira mais voltada para o socialismo, enquan-
to que minha predileção é mais conservadora e focada na autonomia individual (algo entre o
Liberalismo Clássico Europeu e o Conservadorismo). Em linguagem conscienciológica, podería-
mos dizer que, ao adotar tal postura, utilizo-me do princípio da admiração-discordância.

27
Introdução • Isso versus aquilo

– além de preferir a análise das questões polêmicas pelo prisma do “par-


cialmente correto”. Dedicou sua obra Graça e Coragem29 a sua esposa, que
faleceu prematuramente.

Asseguro ao leitor tratarem-se de estilos diversos e personalidades abso-


lutamente distintas,30 porém ambas dignas de estudo para auferirmos não
somente as similaridades de suas vertentes transcendentes, mas também
de seus aspectos conflitantes. Um observador atento notará que as carac-
terísticas personalíssimas acompanharam as respectivas propostas desses
autores, cujo contato está no gosto pela transcendência e estudo da Cons-
ciência. A partir desse momento, algumas questões poderão invadir a men-
te do leitor, como ocorreu comigo:
ƒ Estariam as respectivas propostas em irremediável conflito?
ƒ Quais as eventuais conexões e dissonâncias?
ƒ Existem conceitos complementares de uma teoria para outra?

Este livro pretende responder, ou pelo menos iniciar, uma reflexão fran-
ca e desapaixonada sobre tais questões, além de trazer ponderações, su-
posições e epifanias pessoais emergentes desse processo. Todavia, para
iniciarmos essa jornada, o leitor necessitará de alguns esclarecimentos
prévios sobre o estilo linguístico de cada autor e da maneira que en-
contrei para estabelecer uma conexão apta a viabilizar o diálogo entre
ambas as teorias e também com os mais diversos autores e filosofias que
estudei paralelamente.

Linguagens e bissociações31
A Conscienciologia utiliza neologismos que apreciei a princípio, mas
atualmente julgo que os conscienciólogos ultrapassaram o limite do uso
razoável dos neologismos e adentraram no abuso dos mesmos, o que
poderá dificultar a compreensão e interação com outras abordagens.

29 Obra traduzida para o português pelo especialista wilberiano Ari Raynsford.


30 Vieira com expressões mais contundentes e esclarecimentos assertivos, no estilo “soco
na cara e fratura exposta” para descartar o que não presta; Wilber com expressões mais doces
como “transcendência e inclusão”, em verificação dos “acertos parciais” de cada teoria.
31 O termo bissociação foi proposto por KOESTLER, Arthur. The act of creation, 1964. Envolve
criatividade, aprendizagem significativa e está além do sim e do não. Também definida como
a associação simultânea de uma ideia ou objeto com assuntos que comumente não se rela-
cionam entre si.

28
Introdução • Isso versus aquilo

Reconheço a importância desse instrumental linguístico na tarefa de


encontrar significantes para novos conceitos ou significados, mas não
negarei minha preocupação quando percebo a cunhagem de neologis-
mos de forma desnecessária e no mesmo ritmo que milho de pipoca es-
toura no micro-ondas. Dito isso, julgo importante esclarecer que farei
uso dos neologismos conscienciológicos com notas explicativas para
os leigos e aplicarei o uso dos sufixos “-ismo”, “-dade” e “-logia” em sua
significação clássica:
ƒ -ismo como “caminho de”.
ƒ -dade como formador de substantivos abstratos a partir de adjetivos.
ƒ -logia como campo de estudo.

Opostamente ao que ocorre na Conscienciologia, a linguagem wilbe-


riana resgata termos antigos e traz interfaces com misticismo, religião,
ciência, arte e toda hierarquia evolutiva em níveis crescentes de comple-
xidade. Alguns termos específicos, a exemplo da linguagem consciencioló-
gica, demandarão esforços dos leitores e trarão dificuldades, felizmente
superáveis.

A bissociação é a técnica associativa decorrente da justaposição de uma


ideia ou estrutura básica com outros diferentes campos, a fim de produzir
descobertas, inovações, invenções e captação de ideias originais ou poten-
cialização da criatividade. Trata-se de pareamento conceitual associativo
ou correlação inteligente, cujo oposto seria a repetição, a monotonia, a ri-
gidez ideológica e a prisão ou gaiola mental.

Haverá contundente desafio interpretativo entre a vocação consciencio-


lógica por neologismos e a preferência wilberiana pelo linguajar milenar
das grandes tradições que admitiram correlações multidimensionais. Ape-
sar das diferenças linguísticas, a viabilização dessa conexão será um dos
muitos enfrentamentos desta obra, onde o leitor necessitará de perspicácia
redobrada para evitar anfibologias32 e contextualizar os significantes para
entender os reais significados dos termos, pois, em muitos casos, palavras

32 Anfibologia é o estudo das construções linguísticas com duplo sentido, considerado um


vício de linguagem ou duplicidade de sentido numa edificação sintática, o que permitirá mais
de uma interpretação.

29
Introdução • Isso versus aquilo

consideradas antagônicas por tais vertentes serão utilizadas para repre-


sentar conceitos semelhantes.

O termo místico é típico exemplo: Wilber trata-o com prestígio de signifi-


car uma experiência direta, avançada e comprobatória de alguma verdade
espiritual, em sentido diametralmente contrário ao empregado pelo lin-
guajar conscienciológico, onde tal significante representa uma experiência
marcada pela carência técnica, poluída por rituais ou simbologias confu-
sas, não lúcida, atrasada e sem prestígio algum.

Resguardados os contextos e devidas adaptações, pode-se dizer que a


Conscienciologia aproxima o significado de místico ao que Wilber entende
por mítico. Nesse caso, portanto, uma única letra “s”, que diferencia as pa-
lavras, fará gigantesca diferença na compreensão contextualizada dos ter-
mos. Apesar dos significantes conflitantes, ambas as vertentes diferenciam
com clareza as hipóteses de experiências de pico, parapsíquicas, avançadas
e lúcidas, das menos lúcidas, mal interpretadas ou embusteiras.

Superada a questão da nomenclatura, obviamente restará a interpreta-


ção das identidades, semelhanças e oposições conceituais. Eis a função
mais avançada das bissociações. Considerei hercúleo esse trabalho, espe-
cialmente pela necessidade de transpor tais dissonâncias terminológicas,
compará-las, complementá-las, confirmá-las ou negá-las, em complexa
dissecação de significados e significantes, para somente então adentrar a
verificação conceitual.

Volto a destacar que as pontes edificadas nesta obra foram muito além da com-
paração entre Filosofia Integral e Conscienciologia, pois atuei livremente pelas
mais diversas conexões mentais permitidas pelos meus limites intelectuais.

A jurisdição religiosa
Nesse território residirá o ponto nevrálgico, centro das divergências e
possíveis tensões ou antagonismos entre as abordagens. Como afirmei, a
Conscienciologia abandonou a postura dogmática; já a Filosofia Integral
classifica o vocábulo religião em dois grandes grupos com hierarquia valo-
rativa, o primeiro denominado como translativo e o segundo, transformativo,
conforme elucidado pelo Quadro I.2.

30
Introdução • Isso versus aquilo

Quadro I.2.
Quatro diferenciações entre religião translativa e transformativa,
segundo a visão integral

Religião Translativa Religião Transformativa


Proselitista Não proselitista
Focada no LOC externo
33 34
Focada no LOC interno35
Não vivenciada Vivenciada
Exotérica Esotérica

Tive a oportunidade de perguntar pessoalmente a Ari Raynsford,36 a quem


considero a maior autoridade em Filosofia Integral do Brasil, se a religião
transformativa não adentraria na jurisdição científica ou, ao menos, na
filosófica, justamente por seu cunho vivencial. A resposta atingiu questões
semânticas sutis, pois a apreensão da sabedoria oriunda da experiência,
enfrentará possíveis equívocos interpretativos, fato que será investigado
no decorrer da leitura.

A jornada do autor
Desde meu nascimento, em 25 de março de 1966, estudei vários segmentos
de estudos transcendentes em busca de conceitos claros e úteis para
uma análise abalizada e mapeamento da Consciência e seus aspectos
existenciais. Muito embora restem desafios e lacunas em todas as vertentes,
ousadamente buscarei mitigá-las por meio desta obra. As propostas cons-
cienciológica e integral, associadas aos valores cristãos e autores clássicos
da filosofia e ciência, outorgaram-me incrível bússola na aventura do

33 LOC: locus of control (local de controle).


34 O LOC externo é uma expressão utilizada para referenciar o comportamento daquele in-
divíduo que dá excessiva ênfase às influências externas, outorgando-as poderes determinan-
tes e exagerados.
35 O LOC interno é uma expressão utilizada para referenciar o comportamento daquele in-
divíduo autônomo e capaz de exercitar o controle e o domínio de suas manifestações, apesar
das influências externas.
36 Ari Raynsford, Doutor em Engenharia Nuclear e Mestre em Engenharia Mecânica pelo
Massachusetts Institute of Technology (MIT), e Engenheiro Naval pela Escola Politécnica da
USP. Estudioso da obra de Ken Wilber, trabalha há treze anos (ano base 2013) na sua divulga-
ção. Ministra palestras e cursos, coordena grupos de estudo, traduz livros e artigos, além de
prestar consultoria a empresas.

31
Introdução • Isso versus aquilo

autodescobrimento, enquanto Consciência multifacetada repleta de dúvi-


das, complexidades, limitações e conexões multidimensionais.

A gênese desta obra, bem como sua posterior revisão, ocorreu após apre-
sentação de cento e trinta programas televisivos, a maioria deles sobre
transcendência e política. Digno de nota meu reencontro com a proposta
da Filosofia Integral, a mim apresentada magistralmente por Raynsford
em dois cursos com o objetivo de esclarecer os conceitos integrais e gerar
novas oportunidades para a realização pessoal, profissional, familiar e co-
munitária.

Minha proposta segue os mesmos objetivos, mas pretende agregar à dis-


cussão aspectos associativos e eventuais confrontos entre as visões cons-
cienciológica e integral, além de temas emergentes, que abordarão ou, ao
menos, orbitarão reflexões sobre crescimento pessoal e interpessoal, cor-
pos, energias, emoções, mentes e Consciências. Deixo claro ao leitor que
respeito tais vertentes, mas mantenho críticas pontuais que externarei no
decorrer do texto.

Nesta segunda edição, acrescentarei meus estudos sobre os valores cris-


tãos, feitos com critério investigativo, psicológico, sociológico e filosófi-
co. Embora não os observe do prisma religioso, pois ainda mantenho um
fascínio pelos aspectos científicos, julgo tais valores um verdadeiro patri-
mônio moral da humanidade, merecedores de conservação e do meu mais
profundo respeito.

A organização dos capítulos procura uma sequência lógica dos conceitos


necessários para a compreensão do modelo integral e seus elementos.
Nesse caminhar organizacional, a partir da Filosofia Integral, inseri o
olhar conscienciológico, quando julguei cabível, e busquei pontos con-
vergentes e divergentes, além de transcrever conceitos emergentes e in-
sights pessoais. Ao leitor, caberá a aventura de trilhar por tais vertentes
do conhecimento humano e, na qualidade de autor, cabe-me auxiliar no
processo e facilitar:
1. Acesso a ambas as propostas.
2. Emersões criativas.
3. Compreensão das divergências terminológicas e conceituais.

32
Introdução • Isso versus aquilo

Beba na fonte
Preocupo-me em deixar transparente a separação entre:
ƒ Proposições integrais.
ƒ Proposições conscienciológicas.
ƒ Proposições pessoais.
ƒ Proposições dos inúmeros filósofos e pesquisadores citados.
ƒ Interpretação pessoal das respectivas propostas.
ƒ Novas proposições oriundas dessas conexões.

Insisto no esclarecimento de que as bases conceituais da Filosofia Inte-


gral, da Conscienciologia e das inúmeras correntes filosóficas por mim
pesquisadas podem, obviamente, ser objeto de consulta direta nas obras
de seus respectivos autores, mormente porque meus escritos estão irreme-
diavelmente impregnados por percepções, vivências, filtros, cosmovisão
e interpretações absolutamente personalíssimas. Considero vital o escla-
recimento de que não escrevo como representante da Conscienciologia,
da Filosofia Integral ou dos demais pensadores pesquisados, mas em meu
próprio nome e por minha visão subjetiva e particular de cada assunto
tratado. Esta obra, antes de mais nada, pretende honrar o título que porta
e conectar todos os assuntos nela tratados, mas não renunciará à minha
própria perspectiva.

Em nenhum momento pretendi escrever como wilberiano ou conscienciólogo


(até mesmo porque não sou uma coisa nem outra), mas sim como livre
pensador. Diante desse cenário específico, senti necessidade ética de su-
gerir ao leitor sérias ponderações sobre quatro questionamentos antes de
adentrarmos aos conceitos integrais e conscienciais:
1. Este é um livro científico?
2. Este é um livro da Filosofia Integral?
3. Este é um livro da Conscienciologia?
4. Este livro representa os pensadores nele citados?

Reitero que as respostas são negativas aos quatro questionamentos, pois


insisto que meus escritos têm a pretensão de relatar as ecléticas conexões
existenciais sob entendimento particular. Tranquilizo a todos os conscien-
ciólogos, wilberianos e simpatizantes dessa ou daquela vertente, pois não
defendi conceitos conscienciológicos ou integrais mas, como destaquei, ape-

33
nas coloquei-os lado a lado para externar aquilo que penso serenamente.
Consequentemente, desejo que esta obra auxilie no trânsito entre Filosofia
Integral, Conscienciologia, vertentes filosóficas e exemplares científicos,
mas, para um entendimento mais profundo sobre a essência dessas e ou-
tras propostas pelo prisma de seus propositores, deixo a frase do presente
tópico: beba na fonte.

34
Primeiro bloco

Conceitos
preliminares

35
36
Cosmos e kosmos 1

A informação que julgo prioritária para visualizarmos o espectro de


abrangência da Filosofia Integral, da Conscienciologia e de inúmeras
abordagens multidimensionais é justamente o alcance das jurisdições ou
contextos dos objetos de estudo das respectivas propostas. Afinal, quando
utilizamos o significante “cosmos” em ambientes mais transcendentes ou além do
materialismo grosseiro, sobre o que falamos? Poderíamos afirmar que o concei-
to aborda todo o espaço preenchido por matéria densa e sutil ou ampliá-lo
para incluir alguma dimensão que consideremos imaterial. Todavia, uma
resposta simplista geraria outro problema: onde terminaria a jurisdição ma-
terial? Feliz ou infelizmente, a resposta parece-me mais complexa e exigirá
um certo aprofundamento do conceito dicionarizado.

Qual o alcance do conceito cosmos?


Cosmo ou cosmos, grafados com “c”, são conceituados basicamente como
“espaço universal composto de matéria e energia e ordenado segundo suas
próprias leis”.37 Atualmente, o vocábulo é empregado para designar a tota-
lidade das coisas desse universo ordenado, desde as estrelas até as partículas
subatômicas. Os termos matéria, energia, coisas, estrelas ou partículas, incluí-
dos em várias conceituações dicionarizadas, pelo ângulo de visão cons-
cienciológico (ou espiritualista), integral ou holístico,38 sugere a exclusão

37 HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, 2001, p. 561.
38 Holístico: termo bastante desgastado por sua utilização indiscriminada, mas que nes-
te contexto será utilizado para designar a necessidade de compreensão da totalidade, bem
como do entendimento das partes e suas inter-relações.

37
Capítulo 1 • Cosmos e kosmos

conceitual das dimensões emocionais, mentais e espirituais, consideradas


“não físicas” ou ao menos fisicamente mais sutis. Nessa análise gramatical
e comparativa, o significante cosmo(s) tem abrangência restrita ao ambien-
te energético-material ou, na melhor das hipóteses, carece de clareza, em
falha linguística ou ambiguidade conceitual.

Um segundo embasamento teórico para justificar a limitação do conceito


ao universo material advém do dicionário analógico de Francisco Ferrei-
ra dos Santos Azevedo,39 onde o termo universo também está relacionado
ao conjunto das coisas criadas, aos corpos celestes e outros termos indicati-
vos do materialismo. Nesse sentido, lembro que o materialismo científi-
co é modernamente interpretado como sendo a única verdade científica e
aponta, equivocadamente no meu entender, para o uso restrito e reducio-
nista do termo em estudo.

No universo ou cosmovisão materialista, não há espaço para as demais


dimensões validadas pela Conscienciologia, Filosofia Integral, tradições
de sabedoria milenarmente conhecidas e uma infinidade de parapsíqui-
cos e pesquisadores independentes que perscrutaram aspectos que estão na
fronteira da ciência convencional. Diante de tais argumentos, concluí que
o termo cosmo(s), na forma majoritariamente conceituada nos dicionários
da língua portuguesa, representa apenas a grandeza do universo material,
inserida, na cosmovisão planificada ou achatada, à matéria densa.

E = m.c2
Poderíamos argumentar que o termo cosmo(s) não seria reducionista por
incluir, além da matéria, também o aspecto energético, com base nas citadas
conceituações dicionarizadas. Antecipo-me a tal contestação e reafirmo o
reducionismo do termo. A despeito dos meus superficiais e precaríssimos
conhecimentos sobre Física e ciências exatas, não resisto a compartilhar
com o leitor as ponderações associativas entre os termos matéria e energia e
a famigerada formulação einsteiniana. Assim sendo, diante da confessada
limitação de meus conhecimentos específicos, farei uma análise perfunc-
tória para posterior aprofundamento e crítica de profissionais mais capa-

39 AZEVEDO, Francisco Ferreira dos Santos. Dicionário analógico da língua portuguesa. 2ª


ed., 2010, p. 318.

38
Capítulo 1 • Cosmos e kosmos

citados, deixando apenas um embrião de minha reflexão. Passarei à análise


dos elementos da formulação “E = m.c2”, onde:
E = energia
m = massa
c2 = velocidade da luz ao quadrado

Verifica-se, na fórmula em questão, que velocidade da luz ao quadrado é agen-


te meramente multiplicador. Portanto, parece-me improvável uma radi-
cal alteração ontológica da natureza essencial ou qualitativa do elemento
multiplicado. Nessa linha de raciocínio, depreendi que massa e energia
diferenciam-se tão somente pela constante40 velocidade da luz ao quadrado,
fato que corrobora a visão reducionista dos termos utilizados na descrição
de cosmo(s). Vale dizer, os referidos termos matéria e energia não abrangem
todos os níveis cósmicos transcendentes à dimensão física.

Em outras palavras, massa e energia, por minha rústica interpretação da


fórmula do notável Albert Einstein, ainda encontram-se encarceradas no
conceito de matéria e não alcançam as dimensões transcendentes que são
validadas pelos exemplares integrais, conscienciais ou espirituais. Portan-
to, o conceito tradicional e dicionarizado de cosmos é reducionista e está
aquém da inclusão de todas as realidades cósmicas e não abarca, ao me-
nos em tese, a dimensão da consciência (aqui entendida como sinônimo de
alma ou espírito).

A formulação citada, salvo melhor juízo, configura interessante argumento


suplementar para reforçarmos a conclusão inicial de que as conceituações
dicionarizadas de cosmo(s) sejam, de fato, reducionistas. Todavia, se admi-
tirmos equivocada tal linha de raciocínio, outros argumentos poderão ser
avaliados e apresentados como embasamento suplementar.

Escola pitagórica (século IV a.C)


Wilber atribui aos pitagoristas41 a criação do termo Kosmos, iniciado com
a letra “k”, cujo significado incluía outros domínios da existência, muito
além da jurisdição material que adjetivo de grosseira, densa e facilmente

40 Constante: termo aplicado neste contexto no sentido matemático, como um valor fixo
que pode ou não ser especificado.
41 WILBER, Ken. Uma breve história do Universo. Via Optima: 2004, p. 37.

39
Capítulo 1 • Cosmos e kosmos

perceptível por nossos cinco sentidos conhecidos popularmente.42 Veja-


mos a classificação multidimensional da referida escola pitagórica:
1. Fisiosfera (cosmos).
2. Biosfera (bios ou vida).
3. Noosfera (nóos ou mente).
4. Teosfera (teos ou espírito).

Apesar de chamarmos esse cosmos (com “c”) de tridimensional, em razão dos


três modos de observação da dimensão material (altura, largura e profun-
didade), utilizarei o termo unidimensional pela perspectiva de sua natureza
exclusivamente material.43 A representação gráfica de minha preferência
sobre o tema posiciona o reduzido cosmo(s) dicionarizado, perante o kosmos
pitagórico tetradimensional, em sintonia com o pensamento de Wilber e a
didática de Raynsford. Na impossibilidade de reproduzir a competência
das personalidades citadas, limito-me a compartilhar uma representação
gráfica, devidamente adaptada para o presente contexto, onde o Kosmos,
iniciado com a letra “k”, envolve todas as dimensões validadas pela escola
pitagórica, da material à espiritual (Figura 1.1).

Fisiosfera Biosfera
Cosmos

Matéria Vida

Espírito Mente

Teosfera Noosfera

Figura 1.1 – Representação das dimensões do kosmos pela escola pitagórica do


século IV a.C.

42 Visão, audição, tato, paladar e olfato.


43 Neste caso, considerarei “energia” como sinônimo de “matéria sutilizada”.

40
Capítulo 1 • Cosmos e kosmos

A referência à teosfera ou domínio espiritual, termo de origem religiosa


(teos), distancia os textos pitagórico e wilberiano do conscienciológico, este
último refratário aos termos de origem eclesiástica em seu arcabouço téc-
nico. Imaginei facilmente uma leitura pitagórica adaptada aos postulados
da Conscienciologia e concluí que o próprio Pitágoras, se estivesse entre
nós, poderia observar e, porventura, classificar as dimensões kósmicas pelas
cinco jurisdições conscienciológicas:
1. Física
2. Energética
3. Emocional
4. Mental
5. Espiritual44

Nesse sentido, teríamos outra imprecisão no tocante ao número ou tipos


de dimensões incluídas no significante kosmos, pois inúmeras escolas di-
vergem na quantidade de corpos ou veículos de manifestação da Cons-
ciência e suas respectivas dimensões consideradas imateriais45 ou, pelo me-
nos, além do fisicalismo grosseiro. Como profilaxia desse novo problema
e ciente da necessidade de maior precisão dos significados e especificida-
des terminológicas, proponho a seguinte classificação, baseada na abran-
gência dos termos:
ƒ Cosmo(s): dimensão energética-material.
ƒ Kosmos: todas as dimensões.

Cosmologia ou “Kosmologia”?
Como visto, as cosmologias em geral reduziram o termo cosmos como
significante do materialismo galáctico, universo intrafísico ou unidimen-
sional. Essa concepção de cosmos moderno esmagou o kosmos pitagórico
contra a parede e sangrou-o até a morte conceitual do universo multi-
dimensional. Para agravar o problema, o termo cosmo(s) continua sendo
utilizado com duplo significado. A primeira concepção, como visto, reduz
o significado do termo ao universo energético-material; a segunda amplia

44 O termo técnico conscienciológico seria “consciencial”, mas preferi usar o termo “espiritual”
por seu uso mais generalizado.
45 Imaterial: termo compreendido em vários sentidos, condicionado ao que entendemos
como além da matéria densa. Portanto, tratarei o termo material para designar o materialis-
mo grosseiro, onde tudo que existe é matéria ou, no máximo, seu epifenômeno.

41
Capítulo 1 • Cosmos e kosmos

e inclui um contexto multidimensional. Estou seguro em afirmar que a


diferenciação dos significados e significantes entre cosmos (unidimensio-
nal) e kosmos (multidimensional) outorgaria maior exatidão naquilo que se
pretende comunicar.

Portanto, apoio o resgate wilberiano do termo kosmos para abrir possibili-


dades de designação precisa da multidimensionalidade kósmica, haja vista
a necessidade de ampliação e extrapolação do universo material para uma
impactante visão de um universo em múltiplas dimensões e jurisdições.
Essa sugerida precisão terminológica e conceitual auxiliaria, entre outras
possibilidades, em duas questões fundamentais para alcançarmos aquilo
que considero a nova fronteira da ciência:
1. Diálogo desprovido de imprecisões terminológicas entre cientistas
materialistas e não materialistas.
2. Extrapolações transcendentes à dimensão material ou fisiosfera, do
intra para o extrafísico, da matéria à Consciência, da Cosmologia à
Kosmologia. 46

46 WILBER, Ken. The collected works of Ken Wilber. 7º volume. Shambhala: 1999. p. 68.

42
Hólon e holarquia 2

Considero vital a compreensão dos conceitos-chave deste capítulo para fu-


tura apreensão dos elementos da Filosofia Integral, em especial do primeiro
componente desta fantástica aventura pelo universo wilberiano: os níveis de
consciência. O entendimento de uma estrutura holárquica demandará o aban-
dono da teratológica confusão entre as modalidades naturais47 e dominado-
ras48 de hierarquias. Compartilho minha posição sobre o tema ao afirmar
que a diversidade quantitativa e qualitativa dos seres humanos prescinde da
nossa concordância: ela é um fato. Esse contexto é adequado para introduzir
significado de hólon e holarquia, termos cunhados por Arthur Kostler que ou-
torgaram o título do atual objeto de estudo e também inspiraram os tópicos
que serão discutidos a seguir, no âmbito do presente capítulo.
ƒ Os conceitos-chave.
ƒ Individualidade e coletividade.
ƒ Autotranscendência e autoimanência.
ƒ Emersão criativa.
ƒ Conexões hierárquicas.
ƒ O que está em cima está embaixo?
ƒ Epifania mateológica.

47 Hierarquias naturais é expressão wilberiana. Para tratar especificamente dos níveis hu-
manos, prefiro os adjetivos meritocráticas ou técnicas.
48 Hierarquia dominadora é a expressão que designa o ato de intrusão tirânica de um grupo
ou indivíduo sobre outro(s), como um agente familiar controlador, um grupo etnocêntrico,
ou ainda, o problemático caso de governos tirânicos, em geral com o discurso falacioso “pelo
povo” ou “pelo social”.

43
Capítulo 2 • Hólon e holarquia

Os conceitos-chave
Hólon vincula-se à ideia de que qualquer totalidade conhecida é também
parte de um todo ainda maior, fato gerador da paradoxal expressão “to-
do-parte”. O conjunto desses hólons ou “totalidades parciais” forma a ho-
larquia ou conjunto de hierarquias naturais, componentes de uma ordem
de totalidades crescentes que simultaneamente são partes de outras to-
talidades. Trata-se de um padrão de conexão da visão wilberiana, cujos
estágios subsequentes aumentam sua complexidade e demandam maior
organização. Dentre os muitos exemplos possíveis, selecionei um de mi-
nha preferência e representei-o didaticamente por meio do Quadro 2.1
abaixo.

Quadro 2.1
Exemplo de hólons, do átomo ao organismo
(nesse caso, sem nenhum juízo de valor)

Aspecto “parte” Aspecto “todo”

Partículas subatômicas Átomo

Átomo Molécula/Composto iônico

Molécula Célula

Célula Tecido

Tecido Órgão

Órgão Sistema

Sistema Organismo

Organismo População

No exemplo acima, percebe-se que um mesmo agente atua individualmen-


te como todo, mas, simultaneamente, atua também como parte de um ní-
vel superior. Aprecio particularmente a casuística do hólon humano, onde
o indivíduo detém sua totalidade decisória para escolhas, direitos e liber-
dades individuais, mas também uma contraposição repleta de compromis-
sos e deveres pelo aspecto de fazer parte de uma família, uma sociedade e
assim por diante.

Na Conscienciologia, tem-se a expressão “minipeça de um maximeca-


nismo” que pode ser analogicamente conectada ao conceito ora apre-

44
Capítulo 2 • Hólon e holarquia

sentado se observarmos que todas as peças têm sua própria individuali-


dade, função específica, certas liberdades e características particulares,
mas concomitantemente fazem parte de uma estrutura maior, numa
espécie de conexão simbiótica que, não raro, sofre desvirtuamento so-
cial para patologicamente adentrar em relação parasitária.

Em suma, apesar de possíveis críticas à expressão conscienciológica,


em razão da associação de seus termos com o mecanicismo, exercitarei
minha criatividade e flexibilidade imaginativa, a fim de associar tais
conceitos da seguinte forma:
ƒ Minipeça conectada ao conceito de hólon.
ƒ Maximecanismo conectado ao conceito de holarquia.

A partir da compreensão desses dois conceitos basilares da Filosofia Inte-


gral, uma série de outras conexões emergem naturalmente, aprofundadas
nos vinte princípios holárquicos e nas possibilidades relacionais de cada hó-
lon, que Wilber classifica em:
1. Capacidades horizontais: ação49 e comunhão.50
2. Capacidades verticais: autotranscendência 51 e autoimanência.52

Individualidade e coletividade
Contundentes embates físicos e ideológicos emergem dos defensores da
comunhão ligada à coletividade em detrimento da liberdade ou ação-
-individual conectada ao aspecto saudável de nossa desejada autono-
mia evolutiva e vice-versa. Inúmeros litígios causaram mortes, polari-
dades e muito sofrimento. A humanidade parece girar em movimentos
circulares e retornar sempre ao mesmo problema maniqueísta, tratado
nesta obra como “isso versus aquilo”. Relembrarei os pontos cruciais
dessa discussão, fazendo uso de uma lista comparativa exemplificativa
(Quadro 2.2 na próxima página).

49 Ação: no sentido de manifestação da individualidade ou aspecto todo do hólon.


50 Comunhão: aqui aplicado no sentido da partição solidária para uma coletividade.
51 Autotranscendência: referente ao aspecto dinâmico, evolutivo ou progressista.
52 Autoimanência: no sentido de autopreservação, permanência ou conservador.

45
Capítulo 2 • Hólon e holarquia

Quadro 2.2
Exemplos dos embates entre os ideais da individualidade e os da
coletividade

Individualidade versus Coletividade


Ação versus Comunhão
Autonomia versus Dependência
Direitos individuais versus Direitos coletivos
Liberalismo versus Coletivismo
Liberdade versus Responsabilidade
Meritocracia versus Solidariedade
Particularidade versus Semelhança
Totalidade 53
versus Partição54
Transcendência versus Inclusão

Considero interessante a solução desses dilemas pela via integrativa, em


repúdio ao caminho excludente, a fim de mantermos as fundamentais e
legítimas manifestações enquanto totalidade portadora de identidade, au-
tonomia e ação própria, mesmo diante das mais hostis pressões ambien-
tais ou sociais, posição que interpreto ser compartilhada também pelo
postulado wilberiano.55 De outro lado, esse aspecto todo do hólon deve estar
em sintonia com sua realidade como parte de uma outra totalidade, em si-
multânea harmonia entre a preservação de sua identidade e ajuste funcional
como integrante assistencial desses outros “mecanismos, sistemas ou orga-
nismos”, palavras utilizadas por falta de melhores termos.

Novamente, temos conexões existenciais aparentemente paradoxais na


manifestação simultânea como todo e parte. Por exemplo, na hipótese do
hólon humano falhar como totalidade, restará um indivíduo subserviente,
fanático, sem ação própria, mera marionete, títere robotizado ou “inocente
inútil”.56 Por outro lado, na ocorrência da falha como parte, será uma peça
solta, desconectada, um indivíduo impróprio, inadaptado, psicopático, ti-

53 Cada indivíduo é uma totalidade, livre para contratar.


54 Cada indivíduo é apenas parte do todo social, obrigado a contratar.
55 WILBER, Ken. Uma breve história do Universo. Via Optima: 2004, p. 39-40.
56 “Inocente inútil”: contraposição à popular expressão “inocente útil”.

46
Capítulo 2 • Hólon e holarquia

rânico ou “socialmente cancerígeno”. Diante desses argumentos, parecem-


-me coerentes os ditos populares “nem oito, nem oitenta” ou “nem tanto ao
mar, nem tanto à terra”, além da virtude da prudência sugerida por Tomás
de Aquino, no século XIII, corporificada pelo aforismo popular de origem
aristotélica:57 virtus in medium est.58

Complicado? Resta-me a franqueza de uma resposta afirmativa. Lembro-


-me de mais uma frase do passado religioso da humanidade, indicativa de
uma solução para as relações de controle no contexto do hólon humano:
“não me deixe ser um cordeiro perante os fortes e nem um leão diante dos
fracos”.59
 Fora do contexto religioso, temos a jurisdição filosófica, terri-
tório a partir do qual afirmarei que o desenvolvimento gradual do bom
senso e a conjugação de valores oriundos de características meritocráticas e
assistenciais sejam as chaves que abrirão as portas das soluções harmônicas
entre as perspectivas todo e parte do hólon humano, inserido no universo
mais complexo da lógica e do discernimento. Portanto, as capacidades ho-
rizontais dos hólons podem sintetizar-se pelo binômio “ação-comunhão”,
cujas potencialidades verticais verificaremos a seguir.

Autotranscendência e autoimanência
Na hipótese do hólon fracassar nas suas funções horizontais (ação e comu-
nhão), poderá ocorrer uma anomalia e até mesmo sua autodissolução em
movimento destrutivo, pois um organismo pode decompor-se ou fragmen-
tar-se em órgãos, estes em células, estas em moléculas, seguidas de átomos
e assim por diante. Todavia, considero mais interessante o estudo de seus
saudáveis movimentos verticais de autopreservação (autoimanência) ou
de autotranscendência. Pela proposta wilberiana, o universo material pro-
porcionará a manifestação da vida, que viabilizará a expressão da mente,
em níveis sucessivos. Daí a conclusão de que a mente não pode ser redu-
zida à vida, e esta também não pode ser reduzida à matéria. Justamente o
oposto, os níveis sucessivos aparecem na forma transcendente denomi-
nada de emersão criativa. Assim, diante do que foi apresentado e discutido
até o momento, podemos inferir mais três princípios básicos da estrutura
wilberiana proposta:

57 ARISTÓTELES. Ética a nicômaco. Martin Claret: 2016. p. 47-50.


58 “A virtude está no meio”.
59 Trecho da conhecida “oração da sabedoria”, de Sir Rabindranath Tagore.

47
Capítulo 2 • Hólon e holarquia

1. O Kosmos é composto de hólons.


2. Os hólons possuem quatro impulsos, dois horizontais e dois verticais.
3. Os hólons emergem.

Emersão criativa
No contexto da Filosofia Integral, emersão criativa é o produto autotrans-
cendente, que leva em consideração justamente esse surgimento e essa
originalidade, onde novas entidades ganham vida e novos modelos se
desenvolvem. Na hipótese de descartamos a condição randômica como
principal impulso evolutivo, partiremos para a conclusão de que os hólons
possuem uma espécie de tendência, consciência ou vocação transcendente,
no sentido de ir além do previamente existente. A ideia é que essa supe-
ração ocorra por via dessa emersão, dessa criatividade, dessas novas co-
nexões, desses crescentes desafios, para culminar justamente na criação
dessas novas entidades, onde novos exemplares ganham vida e novos hó-
lons são desenvolvidos. A partir dessas ponderações, comecei a encontrar
um sentido lógico em frases geralmente citadas sem a devida explicação
racional, a exemplo destas três:
1. O todo é maior que a soma das partes.
2. Um mais um pode ser algo maior que dois.
3. Não se conhece o todo pelas partes.

Aprecio os exemplos linguísticos, pois não se conhece um conceito ou


uma palavra pela mera análise das letras. A simples observação indivi-
dualizada das consoantes “r”, “s” e “c” e da vogal “a” não tem o mesmo
significado, por si só, do conceito representado pelo verbo “casar”, que
somente fará sentido pela apropriada conexão entre as letras, uma or-
dem específica, um contexto social, um intérprete alfabetizado e assim
por diante. Da mesma maneira, o mero estudo isolado de palavras não
transmitirá a ideia contida em frases, livros, tratados, teorias e assim su-
cessivamente. Em suma, você e eu poderemos analisar minuciosamen-
te todos os componentes de um relógio isoladamente etiquetados sobre
uma mesa, todavia, por maior que seja nossa especialidade nessas peças,
elas não nos indicarão o horário correto nessas condições. Tornam-me
óbvias as integrações sistêmicas e a mensagem que o todo contém um po-
tencial e elementos de que as partes isoladas estão completamente des-
providas: as conexões.

48
Capítulo 2 • Hólon e holarquia

Conexões hierárquicas
Particularmente, valorizo estudos em campos desafiadores e que proble-
matizem a existência, mormente nas jurisdições políticas e relacionais,
motivo pelo qual reputo, como uma das maiores contribuições wilberianas
para a humanidade, a classificação que diferencia dois tipos de hierarquias:
1. Hierarquias “naturais”60 ou meritocráticas.
2. Hierarquias dominadoras.

Compreendo uma organização de hierarquias meritocráticas como um


conjunto de princípios e valores que buscam assistência inclusiva,61 na qual
todos são beneficiados. Por exemplo, ao partir do referencial humano, ve-
rificamos que os princípios ético-sociais devem incluir os princípios éti-
co-individuais, em processo integrativo e assistencial, jamais tirânico ou
dominador, motivo pelo qual a liberdade individual passa a ser protegida e
respeitada também por interesse coletivo. Nesse diapasão, interesse indivi-
dual e coletivo passam a ser um só nesse ambiente assistencial baseado nos
resultados práticos e não em ingênuas utopias, motivo que levou muitos
liberais clássicos62 a diferenciar interesses individuais benéficos dos pre-
judiciais, baseados na polêmica distinção entre o egoísmo positivo63 e o
egoísmo negativo.64

Nessa linha de raciocínio, um conjunto de indivíduos tirânicos ou um


grupo coletivista dominador, sustentados pelo fenômeno social conhecido
como “ditadura da maioria”65 ou imposição pelo “politicamente correto”,
poderá sufocar outros indivíduos,66 com a consequente usurpação da legí-
tima posição atuante do hólon enquanto “todo-parte” do sistema, fato que
resultará inexoravelmente numa hierarquia doentia. A dominação patoló-

60 Terminologia utilizada por Wilber.


61 Expressão contraposta à assistência exclusiva, em que a ajuda pode beneficiar um pa-
rente ou amigo em detrimento de outro, como os exemplos do nepotismo e do raciocínio
etnocêntrico.
62 Liberais clássicos de origem europeia defendem o Estado minimalista e as liberdades in-
dividuais (nos EUA, seriam mais próximos dos Republicanos). Opõem-se à interferência go-
vernamental na vida das famílias e dos indivíduos.
63 O padeiro faz o pão não por altruísmo, mas na busca de seus próprios interesses (egoísmo
positivo).
64 Um cidadão prejudica alguém para beneficiar seus próprios interesses (egoísmo negativo).
65 Aqueles que confundem democracia com ditadura da maioria; basta relembrar os fatos
históricos da eliminação de minorias pela vontade da maioria.
66 O indivíduo não é meio sacrificável pelo todo.

49
Capítulo 2 • Hólon e holarquia

gica também poderá partir de baixo para cima, no momento em que um


único hólon tenta dominar o todo, como uma célula cancerígena que ataca
um organismo, um ego repressor perturba um contexto familiar ou ainda
um ditador domina e manipula um sistema social.

Preocupa-me frequentemente um equívoco terrível no combate às hierar-


quias dominadoras, pois líderes e eleitores, ainda que de boa-fé, visualizam
o problema da dominação, mas advogam ingenuamente a falácia da igual-
dade como meio de combater tais hierarquias, esquecendo-se que existem
diferenças naturais, legítimas, meritocráticas e assistenciais nas estruturas
hierárquicas.

Percebo uma tendência pós-moderna de nefasta generalização de qualquer


graduação ou escala hierárquica ou valorativa, como agente dominador
patológico. Dessa confusão conceitual, classificatória e universalização
inoportuna, nasceram teratologias teóricas, litígios e fanáticas doutrinas
polarizadas e duais, em processo de habitual demonização de um dos lados
dessas moedas sociais (Quadro 2.3).

Quadro 2.3
Exemplos dos embates etnocêntricos cotidianos

Um lado versus Outro lado

Capital versus Trabalho

Elite versus Povo

Empregadores versus Empregados

Indivíduo versus Sociedade

Líderes versus Liderados

Livre-arbítrio versus Regras

Pais versus Filhos

Professores versus Alunos

Riqueza versus Pobreza

A problemática está em reconhecer e diferenciar as hierarquias naturais


das dominadoras, motivo pelo qual valido muitas causas que considero
justas e adequadas, mas mantenho séria preocupação com as aberrações

50
Capítulo 2 • Hólon e holarquia

atuais no sentido de rotular ou estigmatizar as hierarquias como se fos-


sem todas ilegítimas, além do infantil combate às hierarquias naturais,
meritocráticas, técnicas, positivas e assistenciais. Retornaremos ao tema
oportunamente e aprofundaremos no detalhamento e diferenciação das
hierarquias assistenciais e patológicas no Capítulo 6, onde os níveis de
consciência estarão no centro das atenções.

O que está em cima está embaixo?


A frase sofre variações e ficou conhecida em grupos esotéricos, maçons,
teosofistas e estudiosos do princípio da correspondência, creditado a Her-
mes, o Trismegisto.67 Wilber atribui a Aristóteles a frase: “tudo que está
embaixo está em cima, mas nem tudo que está em cima está embaixo”.68 As
íntimas conexões desse estudo com todos os capítulos desta obra, mormen-
te com o primeiro elemento da Filosofia Integral, são flagrantes e validam
o pensamento wilberiano, segundo o qual as hierarquias naturais estão em
processo evolutivo, em desejável transcendência e inclusão. Nessa linha
de considerações e com o objetivo de manter o estilo de representação di-
dática sempre que possível, elaborei o Quadro 2.4 a seguir, onde procurei
facilitar a compreensão do binômio transcendência-inclusão.

Quadro 2.4
Demonstração das hierarquias naturais, transcendentes e inclusivas

Nível hierárquico 1 Nível hierárquico 2 Nível hierárquico 3 Nível hierárquico 4 Nível hierárquico 5
Átomos Moléculas Células Órgãos Organismos
Egocentrismo Etnocentrismo Mundocentrismo Cosmocentrismo Kosmocentrismo
Letras Sílabas Palavras Frases Livros
Ruas Bairros Cidades Estados Nações
Terra Sistema solar Galáxias Dimensão física Multidimensões

Estamos diante de uma estrutura organizacional hierárquica ou holárquica,


sobre a qual a linguagem de Kostler vale ser relembrada: “uma organização
de totalidades crescentes que são concomitantemente parte de outras to-
talidades”. Seria absurdo pensar que moléculas seriam hierarquicamente

67 Trismegisto: três vezes grande.


68 WILBER, Ken. Uma breve história do Universo. Via Optima: 2004, p. 50.

51
Capítulo 2 • Hólon e holarquia

tirânicas em relação aos átomos69 ou que médicos seriam autoritários por


comandarem uma cirurgia 70 e por darem ordens para os instrumentado-
res, motivo pelo qual destaco os argumentos lançados para posicionar-me
contrário tanto ao movimento do radical sócio-igualitarismo rousseauniano
ou marxista quanto a seu disfarce consubstanciado num capitalismo-de-com-
padres, conhecido como capitalismo de Estado71 (uma forma de sustentar a
falácia socialista).

Em suma, valido e aceito um modelo holárquico baseado nas nossas sadias


diferenças e hierarquias sociais meritocraticamente emergentes das respec-
tivas qualidades individuais, criatividade, escolhas existenciais, capacidade
de assumir riscos, prever lucros e outros elementos personalíssimos.

Epifania mateológica
Experimentalmente, considerarei uma hipótese estrutural da Filosofia
Integral, a de que a Consciência (nível superior) contém a matéria (nível
inferior) e admitirei a suposição de que a recíproca não é verdadeira. Nes-
se exercício filosófico em termos holárquicos, levarei a proposta de hólons
transcendentes e inclusivos às últimas consequências como exercício refle-
xivo em indagações mateológicas e aparentemente inalcançáveis:
ƒ O que deu origem à matéria?
ƒ Seria “algo” ainda não manifesto?
ƒ A Consciência teria potencial para tal manifestação?
ƒ Surgiria a própria Consciência como elemento causal da matéria?

Na hipótese de condicionarmos a existência da Consciência aos níveis


inferiores, retornaríamos ao indigesto pensamento de sermos epifenôme-
nos ou subprodutos de um processo material, a menos que admitíssemos
a possibilidade da própria Consciência preceder à existência material e
participar dessa criação para que sua manifestação possa adentrar em pro-
cessos evolutivos que minha racionalidade é incapaz de perscrutar, para o
meu lamento. Ao escrever tais linhas, senti-me como se estivesse diante de
gotas de claudicantes convicções e oceanos de incertezas. Tentei sair desse

69 Hierarquia natural.
70 Hierarquia técnica.
71 Capitalismo de Estado contrapõe-se ao Capitalismo de Mercado, este defendido pelo au-
tor e economista brasileiro Rodrigo Constantino, sob meu aplauso.

52
Capítulo 2 • Hólon e holarquia

labirinto e vertigem paradoxal, numa tentativa de ruptura dessa muralha


mateológica e resgate dos conceitos estudados em epifanias pretéritas, o
que me levou a classificar a Consciência em:
1. Não manifesta.
2. Manifesta.

Entretanto, parece-me que “amarrar essas pontas” seja tarefa complexa


que transcende minha capacidade intelectual. As antigas perguntas filosó-
ficas, em especial o questionamento de onde viemos, ecoam com vigor, mas
as respostas são demasiadamente abstratas e a clássica afirmação que vie-
mos do plano extrafísico, embora me pareça verdadeira, é-me insatisfatória
diante de outra pergunta: e antes disso? Sinto-me novamente com o dever
ético de informar ao leitor que estou distante de conclusões definitivas,
pois minha estrutura lógico-racional contorce-se para libertar-me de dois
condicionamentos que julgo limitantes: tempo e espaço.

Resta-me o consolo de uma precária hipótese pessoal e ainda carente de


qualquer validação ou negação científica: o processo evolutivo iniciou-se pela
Consciência não manifesta e esta, por sua vez, está em processo gradual, contínuo,
evolutivo, conectivo72 e infinito, não apenas de sua manifestação e descobrimento,73
mas de sua própria criação e aprimoramento em crescente integração, do incons-
ciente ao consciente, da sombra à luz, do não-manifesto ao manifesto, do dual à
conectividade.

72 Conectivo ou reconectivo? Deixarei em aberto por confessada ignorância.


73 Descobrimento ou redescobrimento? Fica também essa questão em aberto.

53
54
O método na Ciência clássica,
na Filosofia Integral e na
3
Conscienciologia

No presente capítulo, iniciaremos uma incursão pelas fases do método


científico clássico, as três etapas metodológicas utilizadas na Filosofia Inte-
gral e, posteriormente, uma ousada comparação com o método conscien-
ciológico, quando analisarei um exemplo pela óptica dessas duas últimas
abordagens para, a seguir, outorgar meu posicionamento pessoal frente
aos procedimentos particularmente adotados por cada vertente. Entendo
útil para o leitor o seguinte mapa do presente capítulo para avaliação da
sequência do raciocínio desenvolvido, até culminar em preferências e po-
sicionamentos pessoais:
1. Método científico clássico:
• Navalha de Ockham.
• Indução e dedução.
2. Método integrativo wilberiano:
• Primeira etapa: recuo ao abstrato.
• Segunda etapa: incorporação sistêmica.
• Terceira etapa: teoria crítica.
3. Método conscienciológico.
4. Posicionamento pessoal.

Método científico clássico


Aventurar-me-ei na apresentação do método científico considerado
conservador, porém antecipo minha posição no sentido de desacredi-
tar na existência de uma única metodologia para aquisição de conheci-
mentos confiáveis. Apesar da presente observação, o método científico

55
Capítulo 3 • O método na Ciência clássica, na Filosofia Integral e na Conscienciologia

demonstrou sua fabulosa confiabilidade e habilidade para impulsionar


avanços na ciência, mormente a partir da mitigação da influência dog-
mático-religiosa iniciada no século XVIII e incrível incremento tecnoló-
gico dos séculos XIX e XX, com a outorga à humanidade de fantásticas
inovações em, praticamente, todas as áreas do conhecimento. Diante de
todos esses fatores, sintetizarei o método científico clássico em três eta-
pas distintas, a saber:
1. Instrução, procedimento ou protocolo científico.
2. Apreensão ou percepção do resultado.
3. Confirmação por replicação e comparação.

A instrução ou injunção instrumental é o protocolo garantidor de que o


processo para saber alguma coisa seja o mesmo, a fim de possibilitar a
comparação futura dos resultados com o menor número de distorções pos-
síveis. Em linguagem coloquial, trata-se de uma ordem direta do tipo “faça
assim” ou da “receita do bolo”, consubstanciada na expressão: se quiseres
acessar tal conhecimento, execute isso.

A apreensão, por sua vez, é o fruto da experiência imediata do âmbito


exposto pela injunção ou protocolo científico. Compreendo essa segun-
da etapa como a constatação do resultado produzido após a realização
primorosa de todos os procedimentos da primeira fase do método cien-
tífico. Se o primeiro procedimento foi comparado analogamente a uma
“receita”, o segundo tratar-se-á do próprio “bolo”, com a descrição mi-
nuciosa do ocorrido, ou seja, do produto emergido pelo rígido cumpri-
mento da instrução.

A terceira etapa da confirmação ou rejeição é consubstanciada pela com-


paração dos resultados com outros experimentos que tenham completado,
com o citado detalhamento e rigor, os processos anteriores da injunção
instrumental e apreensão. Obviamente, quão maior a replicação em labo-
ratório com identidade de resultados, maior será a segurança do cientista
para chancelar o experimento com status de confiabilidade científica.

Pessoalmente, aprecio a representação gráfica do método científico expos-


to pela Figura 3.1 que, evidentemente, não prescinde do aprofundamento
do leitor em cada um dos estágios acima especificados.

56
Capítulo 3 • O método na Ciência clássica, na Filosofia Integral e na Conscienciologia

2. Apreensão
(percepção)

1. Instrução 3. Confirmação
(procedimento) (comparação)

Método
científico

Figura 3.1 – Representação do método científico.

Portanto, poderíamos sintetizar o método científico como o caminho per-


corrido pelos cientistas na utilização de ideias e informações para respon-
der perguntas. Há quem prefira observar o método científico por outro
ângulo, como a definição de um problema e geração de uma pergunta,
seguida da formulação de uma hipótese devidamente testada por experi-
mentos, que levará a uma conclusão seguida ou não de uma nova hipótese.
Elaborei abaixo um maior detalhamento do método científico, dessa vez
por suas palavras-chave:
ƒ Problema
ƒ Hipótese
ƒ Experimentação74
ƒ Conclusão
ƒ Nova hipótese

Uma tentativa de ensinar a mim mesmo sobre qual seria o momento em


que poderíamos afirmar que um determinado saber seja efetivamente
científico foi a análise do conhecido esquema reproduzido na Figura 3.2,
uma didática representação das conexões entre as hipóteses que “sobrevi-
veram” ao método científico e aquelas ainda no território das proposições,
das crenças, das possíveis verdades ainda não demonstradas.

74 Instrução, apreensão e confirmação.

57
Capítulo 3 • O método na Ciência clássica, na Filosofia Integral e na Conscienciologia

Proposições

Verdades
Ciência
Crenças

Figura 3.2 – Conexões entre proposições, verdades, crenças e ciência.

Freire-Maia adjetiva o processo científico e sua metodologia como “sim-


ples e elementar”75 e acrescenta tratar-se de um saber cujas bases se as-
sentam na “observação (ver os fatos como eles realmente parecem ser),
experimentação (provocar o aparecimento de fatos e descrevê-los com
fidelidade), comparação de amostras de acontecimentos e análise se estas
deverão ser aceitas como diferentes ou iguais,, ampliação da capacidade de
ver através de aparelhos especialmente delineados para isso, elaboração
de conclusões, previsões, antevisões, tipos de regularidades, tentativas de
explicação et coetera”.76

Utilizei todo o meu poder de síntese nas explicações acima, mas compar-
tilho que não analiso o processo científico com a mesma facilidade de
Freire-Maia e encontrei sérias dificuldades na compreensão de toda a sua
complexidade e magnitude, motivo pelo qual continuei minhas investiga-
ções até o encontro com o conceito da navalha de Ockham e os métodos
indutivo e dedutivo.

Navalha de Ockham
William de Ockham foi um frade franciscano inglês do século XIV que
defendeu a ideia de que as premissas não devem ser multiplicadas além da
necessidade, concepção esta conhecida pela expressão Lex Parsimoniae ou
Lei da Parcimônia, baseada na lógica de que a natureza é econômica. Esse

75 FREIRE-MAIA, Newton. Verdades da ciência e outras verdades: a visão de um cientista.


Editora Unesp: 2008. p. 76.
76 Ibid. referência 75.

58
Capítulo 3 • O método na Ciência clássica, na Filosofia Integral e na Conscienciologia

caminho e opção pelo mais simples ficou posteriormente conhecido, no


século XX, como a navalha de Ockham, ou simplesmente navalha de Occam, e
está longe de ser uma unanimidade.

Os veementes opositores, especialmente entre os religiosos, apresentaram


argumentos a favor da complexidade, onde a ideia de um Deus criador
desafia a navalha de William Ockham. A questão tornou-se polêmica e
precedeu o agressivo acrônimo KISS – Keep It Simple, Stupid,77 expressão
pejorativa que transmite a necessidade da simplificação e valoriza o des-
carte das hipóteses mais complexas, pois as mais simples contém maior
probabilidade de estarem corretas. Prefiro a versão mais suave: KISS – Keep
it Short & Simple.78

Exemplificarei a navalha de Ockham com a suposição aleatória de cinco ní-


veis crescentes de complexidade para a solução de um problema, na qual
percebemos uma hipótese mais simples e direta e outras mais complexas
e repletas de interferências alienígenas. Trata-se de cenário interessante
para cortarmos com a navalha em estudo as hipóteses complexas e priori-
zarmos a pesquisa das mais simples (Quadro 3.1).

Quadro 3.1
Níveis de complexidade das hipóteses científicas e a navalha de
Ockham

Hipóteses Nível de complexidade Status na pesquisa

Hipótese 1 Nenhum Prioridade

Hipótese 2 Pequeno Prioridade

Hipótese 3 Médio Zona cinzenta

Hipótese 4 Grande Cortada pela navalha

Hipótese 5 Complexíssima Cortada pela navalha

Mantenho certa distância dos acalorados debates nesse particular, mas acei-
tarei trabalhar com a navalha quando for necessária no caso de eventual

77 Keep it simple, stupid: mantenha isso simplificado, estúpido.


78 Keep it short & simple: mantenha isso curto e simplificado.

59
Capítulo 3 • O método na Ciência clássica, na Filosofia Integral e na Conscienciologia

necessidade de focar nas possibilidades estatisticamente mais viáveis, até


mesmo para a administração dos recursos disponíveis. Em suma, particular-
mente valido a utilização da navalha para seleção das hipóteses prioritárias.

Indução e dedução
O método indutivo parte do conhecimento dos fatos específicos para uma
conclusão ou conhecimento generalista. Como exemplo, sugiro a hipótese
de um cientista ter analisado um milhão de exemplares humanos e consta-
tado a característica comum de que todos têm dois olhos, em validação da
presunção lógica, racional e indutiva de que o próximo exemplar da espécie
humana também possua a mesma característica ou até mesmo que todo
o exemplar humano possua dois olhos. A esse processo dá-se o nome de
lógica indutiva.

As críticas ao método indutivo concentram-se na incerteza de que no pró-


ximo evento continuará o respeito ao padrão observado. Estamos diante
do óbvio problema do limite da certeza ou verdade científica que, em aná-
lise extremada, fluirá para o reconhecimento da força e da autoridade da
expressão verdade relativa de ponta,79 que representa a validação da verdade
científica, porém refratária às posturas dogmáticas em genuflexão às ver-
dades absolutas.

A dedução, por sua vez, parte do conhecimento da situação geral para uma
conclusão ou conhecimento particular. Utilizarei o mesmo exemplo aci-
ma, só que adaptado ao método dedutivo: determinado cientista possui o
conhecimento geral que a espécie humana possui dois olhos e que uma
mulher espera um bebê da mesma espécie, motivo pelo qual deduz que o
nascituro possuirá dois olhos.

Esse método também possui evidentes limitações, pois poderá haver exce-
ções à regra, aberrações, premissas equivocadas e uma série de eventos que
nos levarão à mesma conclusão de que a incômoda dúvida sempre acom-
panhará o cientista legítimo que aplicar tais métodos. Entretanto, diante de
tantas dificuldades, teríamos, como prêmio de consolação, ao menos a certeza de que

79 Verdade relativa de ponta é a expressão antidogmática que indica o cume das pesquisas
mais avançadas e, portanto, prioritárias para o estudo e refutação.

60
Capítulo 3 • O método na Ciência clássica, na Filosofia Integral e na Conscienciologia

a ciência está baseada em fatos, correto? Sinto noticiar outra incerteza, pois,
segundo Newton Freire-Maia, nem mesmo essa premissa podemos anun-
ciar, eis que abundam casos de postulados que se mostraram científicos
sem nenhum embasamento fático. O mencionado autor citou em sua obra
o exemplo de Einstein, que postulou, por pura criação mental, que a luz
deveria se encurvar em direção a uma grande massa de matéria. Frise-se:
sem os fatos.80

Face ao exposto, caro leitor, surgiram-me três questões:


1. Como emergem as cosmovisões da realidade?
2. Talvez a pergunta correta seja: como surgem novas realidades?
3. E finalmente, qual a nova fronteira da ciência?

No decorrer desta obra, imprimi esforços pessoais na obtenção dessas res-


postas e, desde logo, intuo que a bússola da pesquisa sobre novas realidades
apontará para um processo criativo intimamente relacionado a inovadoras
conexões entre as Consciências. Todavia, até o presente momento e dian-
te das desafiadoras indagações, resta-me a utilização da jocosa expressão
coloquial “durmamos com esse barulho”, mas, apesar do chiste, explorarei,
no decorrer dos capítulos futuros, a possibilidade de que a nova fronteira
não esteja num novo produto Apple, na descoberta de um planeta distante
ou algum insólito sítio cósmico, mas na comprovação da existência obje-
tiva da Consciência como um fato científico, não mais como mero delírio
místico ou produto da imaginação fértil de desacreditados parapsíquicos.

Método integrativo wilberiano


Por meio da literatura wilberiana, em especial das obras Uma Breve História
do Universo81 e O Olho do Espírito,82 compreendi que o método integrativo
não descarta abordagens aparentemente conflitantes. Contrariamente ao
senso comum, Wilber procura visualizar um modo de encaixar e integrar
as verdades parciais de cada teoria. O exemplo wilberiano clássico, nesse
contexto, é a integração das abordagens aparentemente antagônicas entre
Freud e Buda, em que o pai da psicanálise advoga o reforço do ego e o propo-

80 FREIRE-MAIA, Newton. Verdades da ciência e outras verdades: a visão de um cientista.


Editora Unesp: 2008. p. 97.
81 WILBER, Ken. Uma breve história do Universo. Via Optima: 2004, p. 35-37.
82 WILBER, Ken. O olho do espírito. Cultrix: 2001, p. 8.

61
Capítulo 3 • O método na Ciência clássica, na Filosofia Integral e na Conscienciologia

sitor do Budismo, sua morte. Entre Freud versus Zen, existencialistas versus
comportamentalistas, materialistas versus espiritualistas e demais conflitos
filosóficos nesse estilo, remeto-nos ao velho problema excludente repre-
sentado pela expressão “isso versus aquilo”, dilema que o método desenvol-
vido por Wilber pretende solucionar. Diante disso, vejo-me comprometido
com dois questionamentos:
1. Como resolver a questão pelo método integrativo?
2. Afinal, quais as etapas desse método?

Primeira etapa: recuo ao abstrato


A primeira fase do método integrativo consiste na identificação do nível
abstrato da teoria e respectivo recuo, onde diferentes abordagens ali-
nham-se. Ken Wilber chama essa técnica de generalizações orientadoras, fer-
ramenta pela qual reúne as verdades que cada campo oferece à humani-
dade, desprovido da preocupação com tal aceitação por outras vertentes.
O próprio Wilber explica: “se observarmos os vários campos do conheci-
mento humano – da física à biologia, à psicologia, à sociologia, à teologia
e à religião –, surgem determinados temas gerais e abrangentes sobre os
quais existem, na verdade, poucas divergências”.83

Utilizarei alguns exemplos do método wilberiano, contidos na já citada


obra O Olho do Espírito, sobre desafiadores temas ligados ao conceito reli-
gioso de Deus. A Filosofia Integral considera que as fontes de estudo sobre
os temas em foco estão nas grandes tradições religiosas do mundo e estipula
o desafio de responder duas questões pelo método integrativo wilberiano:
1. Jesus é Deus?
2. O que é Deus?

A primeira questão e sua eventual resposta positiva não encontra guari-


da no conhecimento generalizado entre as grandes tradições religiosas do
planeta. Portanto, descarta-se essa possibilidade pelo método wilberiano e
responde-se negativamente à pergunta. Entretanto, qual seria a generalização
orientadora referente à segunda pergunta? O significado de Deus, segundo o
método wilberiano, estaria em conformidade com a abstração geral das
grandes tradições religiosas do mundo, ou seja, “um Espírito inqualificável

83 WILBER, Ken. Uma breve história do Universo. Via Optima: 2004, p. 35.

62
Capítulo 3 • O método na Ciência clássica, na Filosofia Integral e na Conscienciologia

de diversas maneiras, do Vazio dos budistas ao mistério judeu do Divino”.84


Se isso funcionar como generalização diretiva, poderemos avançar para as
outras fases do método.

Outro exemplo de generalização orientadora com temática menos polêmica,


mas também desafiadora, refere-se aos estágios do desenvolvimento moral
ou axiologia de valores, que apesar das inúmeras discordâncias, são ge-
nericamente reconhecidos pela hierarquia que se segue e validados pelo
método wilberiano:
1. Pré-convencional: indivíduo não socializado.
2. Convencional: aderente aos valores sociais básicos.
3. Pós-convencional: reflexivo e propositor de ressignificações.

Segunda etapa: incorporação sistêmica


O segundo passo do método integrativo envolve a tarefa de identificar um
sistema que abarque as generalizações orientadoras das áreas pertinentes ao
objeto de pesquisa, ou seja, mesmo após o trabalho árduo e centrípeto de
coleta de dados em todas as fontes disponíveis, Wilber ainda proporá a se-
guinte questão: qual o sistema coerente que incorporaria o maior número possível
dessas generalizações?

Essa segunda etapa distancia-se do mero ecletismo e propõe a inserção


dessas generalizações numa organização sistêmica. Por exemplo, mesmo
sem concordar totalmente com a generalização dos freudianos sobre a re-
comendação de reforçar o ego ou, opostamente, a dos budistas no sentido
de descartar o ego, Wilber elaborou um sistema para integrar ambas as ver-
tentes em algum nível de sua estrutura organizacional e compreendeu-as
como válidas em determinadas camadas ou contextos dessa mesma estru-
tura, justamente por diferenciar momentos evolutivos mais precoces ou
imaturos85 de outros mais avançados86 do desenvolvimento humano. Nes-
se diapasão, ambas as teorias tiveram seu lugar ou, em uma única palavra:
encaixaram.

84 WILBER, Ken. O olho do espírito. Cultrix: 2001, p. 8.


85 Período imaturo da personalidade: validação do reforço freudiano do ego.
86 Período da maturidade: o ego já não é importante e pode ser descartado.

63
Capítulo 3 • O método na Ciência clássica, na Filosofia Integral e na Conscienciologia

Terceira etapa: teoria crítica


A terceira e última etapa do método global wilberiano é a aplicação da
teoria crítica, que consiste na verificação da parcialidade das abordagens,
com o objetivo de extirpar a estreiteza de seu alcance ou eventual reducio-
nismo da vertente analisada. Manterei nesse contexto o exemplo citado na
segunda etapa, onde verificaremos que o fortalecimento freudiano do ego
procede em jurisdição específica (infância ou imaturidade evolutiva), en-
quanto o descarte do ego de Sidarta Gautama, conhecido como Buda, pos-
suiria jurisdição transcendente. Pela visão integral, portanto, ambos esta-
riam parcialmente certos em suas respectivas áreas de atuação e podem
ser integrados. Nessa hipótese, a etapa da teoria crítica refutaria qualquer
solução excludente, baseada na possibilidade de apenas um desses ramos
do conhecimento humano estar com toda a verdade.

Em síntese, Wilber não critica a verdade contextualizada da teoria, mas


sim eventual pretensão narcísica de representar uma espécie de panaceia
universal. Em palavras mais simples, se a teoria for eficaz dentro de cer-
tas jurisdições, o método wilberiano confirmará tal solução, mas apontará
suas fronteiras, ou seja, seus limites dentro de um sistema integral e liberta-
dor, no sentido de liberar os simpatizantes de determinada teoria da busca
inglória de justificá-la fora de seus limites.

Método conscienciológico
Interpreto a questão do método de pesquisa como a mais significativa di-
ferença entre Filosofia Integral, Conscienciologia e ciência clássica. En-
quanto o cientista clássico vale-se da tríade instrução, apreensão e com-
paração, Wilber utiliza-se de generalizações orientadoras e Vieira afirma que
“toda generalização é limitada”87 e lança argumentos nesse sentido: “quan-
to mais evoluímos, maiores são os detalhes da vida universal que distingui-
mos. Daí porque a generalização pode criar problemas”.88

O método conscienciológico valoriza, prioriza e foca na autopesquisa, na


experimentação interdimensional pela projeção lúcida da Consciência
para além do corpo físico, na introspecção e na autopercepção, onde a vi-

87 VIEIRA, Waldo. 700 experimentos da Conscienciologia. Instituto: 1994, p. 70.


88 Ibid., referência 87.

64
Capítulo 3 • O método na Ciência clássica, na Filosofia Integral e na Conscienciologia

vência pessoal surge como o grande orientador metodológico, corolário do


Princípio da Descrença assim simplificado: não acredite em nada, vivencie.

Particularmente, penso que o saber oriundo da experiência pessoal seja


inigualável, mas também vejo um paradoxo na frase “toda generalização
é limitada”, já que ela própria é uma generalização e, como tal, atrai para
si o efeito bumerangue de sua crítica. Apesar das rotundas dificuldades no
avanço do conhecimento, parece-me que a Conscienciologia optou pela
segurança da vivência pessoal para validação do experimento, em flagran-
te outorga de maior credibilidade para o experimentador. Nesse sentido,
percebo uma afinidade do método conscienciológico com uma exótica e
inovadora espécie de “empirismo interior”, no sentido de recorrer à expe-
riência e percepções pessoais para fundamentar suas proposições.

Aplicarei o método conscienciológico ao mesmo exemplo utilizado no mé-


todo integral, ou seja, analisaremos também nesse contexto questões sobre
a conceituação de Deus. Na Conscienciologia, a temática torna-se margi-
nal, no sentido de estar deslocada e periférica aos objetivos prioritários da
jurisdição conscienciológica. Ao invés de respostas, o tema traria outras
perguntas para o pesquisador interessado nessa questão:
1. Você vivenciou Deus?
2. De que forma?
3. Quais as comprovações?
4. E suas reciclagens pessoais, como estão?89

Essas seriam perguntas que, ao fechar os olhos, consigo imaginar saindo


dos lábios de meus colegas conscienciólogos e até mesmo dos meus pró-
prios. No ambiente conscienciológico, a pergunta “o que é Deus?” não é
priorizada e, para indivíduos que insistirem nessa legítima curiosidade,
provavelmente surgirão respostas tais como:
ƒ Não sei, pois não possuo tal vivência.
ƒ Trata-se de tema mateológico e fora da minha compreensão.
ƒ Não é minha prioridade, pois essa se concentra na correção de meus
traços imaturos.

89 Pergunta com finalidade de retomar a prioridade evolutiva pessoal pelo ângulo conscien-
ciológico.

65
Capítulo 3 • O método na Ciência clássica, na Filosofia Integral e na Conscienciologia

Posicionamento pessoal
Particularmente, julgo-me identificado com o pensamento lógico, filosófico
ou racional. Ao mesmo tempo, reconheço-me como um amante dos assun-
tos transcendentes e considero o método integral de uma riqueza ímpar,
mormente para jurisdições onde meu conhecimento está mais capacitado
para entender e validar. Acredito que a maioria dos leitores esteja mais
confortável junto à segurança científica ou ao lado do ceticismo. Porém,
devo admitir que os paradigmas espiritualista e integral foram de marcante
utilidade prática no meu processo evolutivo, auxiliaram-me no desenvol-
vimento intelectual, ampliaram minha forma de ver o mundo e facilitaram
a identificação dos limites jurisdicionais das respectivas teorias e autores,
motivo pelo qual delego meu respeito à muitas vertentes espiritualistas, ape-
sar de manter intimamente minhas predileções personalíssimas.

Antecipo-me à possível crítica da dubiedade para afirmar, sem tibiez, que


apliquei ambos os métodos em inúmeras pesquisas pessoais, não por in-
definição, mas sim por interesse deliberado e postura de pesquisador. Por
fim, reitero o argumento lançado na introdução desta obra, no sentido de
abandonar a expressão “isso versus aquilo”, para um caminhar consciente e
autônomo, por meio do qual encontrei liberdade e gratidão pela possibili-
dade de experimentar ambos os métodos de pesquisa (integral e conscien-
cial), além de incorporar e aplaudir todo o avanço oriundo da metodologia
clássica da ortodoxia científica.

66
Paradigmas materialista,
consciencial e integral
4

Neste capítulo, adaptarei um texto de minha autoria, apresentado em ar-


tigo e palestras públicas pretéritas, mas que no contexto atual será impres-
cindível, a fim de possibilitar a compreensão dos postulados da Filosofia
Integral, da Conscienciologia e do materialismo, muito embora o termo
paradigma esteja deveras desgastado – talvez de forma irremediável – face
ao seu uso indiscriminado e equivocadas interpretações. Na intenção de
melhor cumprir a tarefa didática e esclarecedora deste capítulo, optei por
dividi-lo em seis partes distintas:
ƒ Limites paradigmáticos e interpretação kuhniana.
ƒ Desgaste ou desvirtuamento do exemplar newtoniano-cartesiano?
ƒ Um ponto de contato.
ƒ Darwin: a nota dissonante?
ƒ Casuísticas cartesianas, newtonianas e darwinianas.
ƒ Paradigmas: materialista, consciencial e integral.

Limites paradigmáticos e interpretação kuhniana


Thomas Kuhn, em sua obra A Estrutura das Revoluções Científicas,90 publica-
da em 1962, tratou, entre outros temas, dos efeitos paradigmáticos e consi-
derou “paradigmas as realizações científicas universalmente reconhecidas
que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para
uma comunidade de praticantes de uma ciência”.91 Kuhn e seus paradigmas

90 KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. Perspectiva: 2010, p. 13; 15; 25; 64; 65;
77; 105; 127.
91 KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. Perspecriva: 2010, p. 13.

67
Capítulo 4 • Paradigmas materialista, consciencial e integral

são citados por Wilber como um dos maiores mal-entendidos do século


XX92 e também objeto de estudo de inúmeros conscienciólogos com quem
mantenho contato, todos interessados em estudar seriamente a questão.

Joel Barker, por sua vez, pesquisou o assunto por um dos prismas possíveis
e conceituou paradigma como todo e qualquer conjunto de regras e regu-
lamentos que atendam a dois quesitos essenciais, a saber:
1. Estabeleçam limites, delimitem fronteiras.
2. Forneçam meios para resolução de problemas dentro desses limites.

Considero paradigma um tema neutro, passível de gerar duas consequên-


cias principais, a que Barker chamou de “efeito paradigma”,93 a primeira
delas altamente positiva e utilizada para decifrar enigmas, facilitar novas
descobertas e melhorar a qualidade de vida dos cidadãos; a segunda de-
fluência, lamentavelmente, é negativa e gera uma espécie perniciosa de fil-
tragem dos dados, o que gosto de nominar de condicionamento paradigmático,
pois impede a emergência criativa de novas descobertas para além de seus
limites, não apenas no meio científico, mas também no social, no ideológi-
co, no familiar e, principalmente, no político, como veremos na sequência
deste capítulo e no decorrer desta obra.

Importante reflexão mereceu a advertência de Ken Wilber, no sentido


de que a ideia kuhniana sofreu distorções narcísicas da “geração eu” dos
anos sessenta,94 para uma espécie de “vale tudo” interpretativo. Valorizo
sobremaneira a observação wilberiana e preocupam-me as falácias e es-
tandartes da nova era, quando novos paradigmas estouram como milho de
pipoca no micro-ondas. Da visão romantizada do paradigma transpessoal
onde “tudo é amor” ao paradigma quântico pós-moderno onde “tudo é re-
lativo”, pondero existir certa miopia na generalização de tais exemplares,
pois ambos flertam com o exagero ao ambicionarem representar o novo
paradigma espiritual ou o representante holístico dos novos tempos. Diante
desses “tempos interessantes”,95 vale relembrar o que a mim soa como ób-
vio: nem tudo é amor e nem tudo é relativo. Costumo exemplificar que a indi-

92 WILBER, Ken. A união da alma e dos sentidos. Cultrix: 2001, p. 28-38.


93 BARKER, Joel. Discovering the future: the business of paradigms. ILI Press: 1985.
94 WILBER, Ken. O olho do espírito. Cultrix: 2001, p. 83.
95 Alusão ao provérbio chinês: “que você viva em tempos interessantes”.

68
Capítulo 4 • Paradigmas materialista, consciencial e integral

ferença psicopática não é amor e nenhuma relatividade pós-moderna fará


com que o abacateiro que plantei em meu quintal produza maçãs ou que
os seres humanos do sexo masculino passem a amamentar após gestação e
parto. Portanto, questiono a panaceia “vale tudo” do relativismo paradig-
mático e não subestimo a força empírica da ciência, tampouco os eventos
históricos e o pragmatismo.

Paralelemente a tudo isso, constatei uma consequência psíquica ao ob-


servar o mundo por apenas uma vertente paradigmática: a emergência de
paradoxal conflito entre a curiosidade humana na busca de verdades relativas de
ponta e o apego às verdades pré-estabelecidas. Compartilho com o leitor que
somente vivenciei avanços “cosmovisionários”96 quando desenvolvi traços
de desapego da autoimagem, arrisquei-me ao ridículo e ao desprezo dos
meus pares, questionei as teses e as “verdades” da moda, interiorizei cora-
gem libertadora do padrão social coletivista e do nauseante “politicamente
correto” imposto por grupos, instituições, indivíduos e entidades gover-
namentais que se arvoram como detentores do monopólio da virtude e
pretensamente acreditam saber como o mundo deve funcionar, o que nos
remete diretamente ao conceito de paradigma. Contudo, essa desejada li-
berdade de pensamento não deve negar o óbvio e suas evidências científi-
cas, nem validar qualquer interpretação. Em outras palavras, compreendo e
ecoo a repulsa às incômodas “camisas-de-força coletivistas”, mas também
rechaço o excesso individualista do culto narcísico em achar que qualquer
opinião estará igualmente correta e qualquer cultura será igualmente ética.

Também convém esclarecer que aprecio alguns argumentos de dedicados


estudiosos do movimento new age ou transpessoal, apesar de basicamente
identificar-me como um crítico de muitos de seus postulados, que consi-
dero parcialmente desprovidos de um padrão de razoabilidade. Assim, fi-
nalizarei essa ponderação sobre a perspectiva khuniana e seus exemplares
científicos ou paradigmas com cinco precauções profiláticas que, a meu ver,
deveriam estruturar qualquer segmento que ostente a pretensão de ser o
novo modelo científico ou estandarte holístico da nova era.
1. Imprescindibilidade de fatos ou sérias evidências.
2. Prioridade khuniana aos exemplares e provas, além da mera teoria.

96 Expressão utilizada no sentido de nossa visão mais abrangente de universo.

69
Capítulo 4 • Paradigmas materialista, consciencial e integral

3. Existência de limites interpretativos, apesar da subjetividade.97


4. Vínculo da teoria ao objeto.
5. Cautela nas generalizações.

Desgaste ou desvirtuamento do exemplar newtoniano-cartesiano?


Preliminarmente, ousarei afirmar que o problema não está nas proposi-
ções cartesianas, newtonianas, einsteinianas, quântica ou ainda na teoria
sistêmica, mas sim na tentativa de transformá-las em cosmovisões, redu-
zindo o kosmos ou a desconcertante imensidão do universo a meros exem-
plares laboratoriais, pois a cosmovisão multidimensional, seja pitagórica,
holística, integral, consciencial ou outra com nomenclatura conhecida pelo
leitor, não pode ser compartimentada nas respectivas jurisdições onde fun-
cionaram alguns específicos experimentos. Vejamos quatro modelos apa-
rentemente bem sucedidos em determinados setores, mas inaptos a repre-
sentarem uma perspectiva mais ampla que envolva múltiplas dimensões e
a própria Consciência:
1. Descartes e Newton: jurisdição material ordinária.
2. Einstein: jurisdição material macro.
3. Teoria quântica: jurisdição material micro.
4. Teoria sistêmica: jurisdição das conexões materiais.

Não obstante minha condição de leigo nesses ramos do saber, julgo coe-
rente vincular tais exemplares apenas às correspondentes áreas de atua-
ção, onde são perfeitamente validados e eficazes, ou seja, legítimos em de-
terminados setores específicos do universo material. O problema ocorreu
justamente quando alguma comunidade defendeu soluções setorizadas li-
mitadas a um contexto, como a grande cosmovisão supostamente capaz de
englobar todos os aspectos e dimensões da existência, o que denomino de
reducionismo grosseiro. Mantenho uma convicção íntima no sentido de que
os agrupamentos humanos, quando estão diante de uma nova descoberta,
seja por excesso de entusiasmo, arrogância ou autoritarismo, tendem a su-
pervalorizá-la e impeli-la como a panaceia universal para solucionar ab-

97 Exemplo: como veremos no Capítulo 5 (Os três olhos do pluralismo epistemológico inte-
gral), Hamlet não trata de uma divertida caçada na floresta amazônica. Essa é uma interpreta-
ção falsa.

70
Capítulo 4 • Paradigmas materialista, consciencial e integral

solutamente tudo. Notei essa característica “demasiadamente humana”98


não apenas nos ambientes científico, new age, transpessoal, institucional,
familiar, religioso e acadêmico, mas também e principalmente ao observar
indivíduos articulados, mas fanatizados por ideologias políticas, especial-
mente99 as que se autodenominam igualitárias, sociais, coletivistas ou altruís-
tas,100 nas quais seus seguidores cultuam postulados materialistas, socialis-
tas e de engenharia social, como totens mágicos ou pílulas salvacionistas,
sempre em detrimento das liberdades e direitos individuais meritocráticos.

Na contramão de muitos autores, não direciono minhas críticas para os


notáveis cientistas René Descartes e Isaac Newton ou seus exemplares, mas
apenas para a exacerbação materialista desses paradigmas como o único
olhar científico possível para todas as áreas do conhecimento humano, em
flagrante e rotunda deturpação das demarcações limitadoras de um exem-
plar científico, inclusive aqueles com traços transcendentes, que implaca-
velmente obrigam-nos a admitir modestamente nossa ignorância.

Outro aspecto digno de comentário no cenário mecanicista em que todo


o universo poderia ser determinado, previsível e comparado a um gran-
de relógio, foi a migração do foco humano em Deus para o indivíduo –
movimento conhecido como antropocentrismo – do LOC externo para o
interno, em que a intitulada Modernidade trouxe-nos indiscutíveis facilida-
des, conforto e maravilhas tecnológicas, mas seu exagero gerou isolamento
individual e “coisificação” da Consciência, esquecendo-se das fundamen-
tais interações e valores humanísticos. Banalizou-se o amor, a honradez,
a ética e, posteriormente, eliminou-se a própria Essência, o Self, o Espírito,
enfim, a Consciência que age por meio de seus veículos de manifestação. O
momento demonstra-se oportuno para o resgate desses valores e concei-
tos transcendentes, sentido para o qual tanto a Filosofia Integral quanto
a Conscienciologia e várias vertentes do saber humano, religiosas ou não,
apontam veementemente.

98 Alusão à expressão “humano, demasiadamente humano”, que outorgou o título da pri-


meira obra de Friedrich Nietzsche, após o rompimento com o romantismo.
99 Especialmente, não exclusivamente.
100 Em geral baseado num pseudo altruísmo, onde o bônus é reivindicado e o ônus socializa-
do.

71
Capítulo 4 • Paradigmas materialista, consciencial e integral

Um ponto de contato
Podemos considerar as postulações transcendentes ao chamado materia-
lismo como um primeiro ponto de contato entre Filosofia Integral e Cons-
cienciologia. Isaac Newton e René Descartes são vistos atualmente como
os ícones do paradigma moderno, também conhecido como materialis-
ta,101 fisicalista,102 determinista,103 dualista,104 reducionista,105 mecanicista 106
ou, em homenagem aos dois grandes cientistas citados, paradigma newto-
niano-cartesiano. Apesar dos termos citados terem nuances e diferenciações
específicas, aqui são utilizados pelo resultado comum: desconsideração da
Consciência.

Essa limitação, anomalia, desconexão sistêmica, atomização do indivíduo,


foi magistralmente demonstrada por Charles Chaplin no filme Tempos Mo-
dernos107 e aponta para nova demanda evolutiva, fato de fácil assimilação por
estudiosos tanto da Filosofia Integral quanto da Conscienciologia. Eis outro
maiúsculo ponto de contato, ou seja, considerar indevida a redução de todo o
kosmos108 ou universo multidimensional109 aos exemplares científicos de:
ƒ René Descartes e respectiva fragmentação ou dualidade.
ƒ Isaac Newton e respectivo mecanicismo.

Darwin: a nota dissonante?


Em minha vivência nos meios conscienciológico e integral, estudei, ouvi
e concordei frequentemente com o combate ao reducionismo conhecido
como newtoniano-cartesiano, que será objeto de reflexão mais profunda no
Capítulo 16. Todavia, o combate à teoria darwiniana não possuiu a mes-
ma ênfase; ao contrário, notei posição neutra e até mesmo algum prestígio
evolucionista entre alguns colegas de estudo e, para o leitor interessado, su-

101 Materialista: tudo é matéria.


102 Fisicalista: baseado na verificação empírica e formalismo lógico.
103 Determinista: nega o livre-arbítrio e entende que tudo no universo, inclusive a vontade
humana, é regido pela necessidade. Tudo está determinado ou é determinável.
104 Dualista: admite a Consciência, mas como ente isolado e mera testemunha sem partici-
pação ativa no experimento material.
105 Reducionista: reduzem-se fenômenos naturais às ações corpusculares regidas por leis
materiais. Em outra acepção, o todo poderia ser explicado pelo estudo das partes.
106 Mecanicista: universo enquanto máquina e utilização análoga da imagem do relógio, a
grande novidade para a medição do tempo da época.
107 CHAPLIN, Charlie. Tempos modernos (Modern times), 1936.
108 Linguagem integral.
109 Linguagem conscienciológica.

72
Capítulo 4 • Paradigmas materialista, consciencial e integral

giro um memorável filme sobre a biografia de Charles Darwin, sob o feliz


título Criação, que obviamente envolve a história da revolucionária obra A
Origem das Espécies e uma série de dramas e dilemas pessoais que orbitaram
entre a fé e a razão, donde emergiu o vigor da polêmica entre criacionismo
e evolucionismo.

No tocante à Filosofia Integral, notadamente pelo que compreendi de


primorosa explicação cedida pelo especialista wilberiano Raynsford, o
pensamento chamado de evolucionismo darwiniano, baseado no conceito de
seleção natural das espécies, seria também reducionista. Reluto a aceitar
facilmente tal proposição, pois o próprio Darwin afirmou: “… estou con-
vencido de que a seleção natural foi o meio mais importante, mas não o
único, de modificação”.110

Assim sendo, admito a hipótese de considerarmos uma rotunda exacer-


bação da luta pela sobrevivência e citada seleção natural, com demasiado
foco competitivo, onde não há espaço para valores cooperativos ou cria-
ções mentais e tecnológicas tipicamente humanas, o que obviamente reduz
e limita a esfera de atuação evolucionista pela leitura hodierna da visão
darwiniana. A crítica wilberiana questiona inicialmente a própria limita-
ção do contexto primário para o termo evolutivo, pois este estaria restrito
à sobrevivência das espécies “subumanas”111 que melhor se adaptaram ao
meio ambiente, como consequência de uma competitividade predatória
pelos recursos naturais.

A dedução de que o conceito de evolução darwiniana não inclui processos


colaborativos e racionais pareceu-me viável, tal qual a redução das possibi-
lidades de sobrevivência pela seleção natural estarem mais concentradas na
força bruta e aspectos instintuais do que propriamente nos diferenciais e ca-
pacitações características da espécie pensante. Obviamente, esse raciocínio
não pode ser aplicado em termos absolutos, pois sempre haverá aspectos de
inteligência evolutiva em todas as espécies, mas, evidentemente, refiro-me a
uma ética valorativa mais elaborada, em associação da inteligência do Homo
sapiens às características da bondade, da fraternidade e da solidariedade, or-

110 DARWIN, Charles. A origem das espécies. Martin Claret: 2009. p. 17.
111 No sentido de que são desprovidas da razão ou inteligência típica da espécie humana.

73
Capítulo 4 • Paradigmas materialista, consciencial e integral

ganizadas em sistemas e estruturas construídos pela lógica e racionalidade


da nossa espécie supostamente mais evoluída. Em suma, Wilber outorga-nos
a visão de um sistema operacional, baseado na crítica aos limites das modernas
perspectivas newtoniana, cartesiana e darwiniana, assim simplificadas:
ƒ René Descartes: redução pela fragmentação ou dualidade.
ƒ Isaac Newton: redução pelo mecanicismo.
ƒ Charles Darwin: redução pelo competitivo.

A partir dessa interessante ponderação wilberiana, a Filosofia Integral


aponta para uma estimulante cosmovisão merecedora do meu aplauso e
baseada nas três características listadas a seguir, cuja reflexão profunda
parece tangenciar os novos desafios desse nosso empolgante período evo-
lutivo, que muitos adjetivam de pós-moderno:
1. Evolucionista (transcendente ao mecanicismo).
2. Integrativo (transcendente ao dualismo).
3. Cooperativo (transcendente ao competitivo).

Casuísticas cartesianas, newtonianas e darwinianas


Em sua clássica e mencionada obra, Thomas Khun afirma que René Des-
cartes, com o reconhecimento de suas obras após 1630, obteve a aceitação
da maioria dos físicos. Estes assumiram como verdadeiro que todo o Uni-
verso era composto por corpúsculos microscópicos e que todos os aconte-
cimentos da natureza poderiam ser explicados em termos de forma, tama-
nho, movimento e interação desses corpos (reducionismo). Decorrência: a
explicação deveria reduzir qualquer fenômeno natural a uma ação corpus-
cular regida pelas leis estabelecidas.

O filme Descartes (Cartesius), de Roberto Rossellini,112 posiciona a recu-


sa cartesiana em explicar os fenômenos físicos desprovidos de conexões
materiais, ou seja, não haveria possibilidade da matéria ser influenciada
pelas qualidades que pertencem à mente. Apontou, com isso, a ruptura ou
dicotomia cartesiana entre espírito e matéria. O documentário sob o título
Isaac Newton: A Gravidade do Gênio,113 por sua vez, deixa claro que o texto
intitulado Principia, publicado em 1687, baseia a ciência moderna e é con-

112 ROSSELLINI, Roberto. Descartes (Cartesius), 2009.


113 The Biography Channel. Isaac Newton: a gravidade do gênio.

74
Capítulo 4 • Paradigmas materialista, consciencial e integral

siderado uma das obras mais importantes já publicadas, com a descrição


da estrutura do Universo. Newton traz o paradigma do tempo absoluto,
sendo possível determinar todos os eventos. Isso deu origem ao chamado
paradigma determinista no mundo ocidental.

O médico brasileiro Alírio Cerqueira Filho também coloca Descartes entre


os maiores filósofos franceses e aponta que sua colaboração para o atual
paradigma foi o “dualismo absoluto entre mente (res cogitans) e matéria (res
extensa), que resultou na crença de que o mundo material pode ser descrito
sem referência ao observador humano”.114 As anomalias da chamada nova
física apontaram para padrões de incertezas, abalando conceitos anterior-
mente sedimentados, do absoluto para o relativo. Nesse momento, con-
vém destacar a crítica wilberiana sobre as físicas quântica e einsteiniana
como candidatas a estruturar uma visão de mundo abrangente, pois níveis
superiores de complexidade transcendentes à dimensão material não po-
dem ser descritos por exemplares fisicalistas.

Famigerada casuística encontra-se exposta na obra A Origem das Espécies,


de Charles Darwin (1809-1882), por meio da qual o autor ficou conhecido
por abalar a visão eclesiástica-criacionista. Vejamos a afirmação do autor:
“estou completamente convencido de que as espécies não são imutáveis e
de que as que pertencem ao que se chama mesmo gênero são descendentes
diretos de alguma outra espécie”.115 Admiro a coragem do autor, mormen-
te diante de seu difícil contexto existencial.

Marco Callegaro, em sua moderna obra O Novo Inconsciente,116 trouxe-nos


amostras de revoluções paradigmáticas promovidas por pensamentos co-
nectados a Darwin e Freud, com ataques ao narcisismo humano pela der-
rubada de três conceitos:
1. Geocentrismo
2. Antropocentrismo
3. Domínio do consciente

114 CERQUEIRA FILHO, Alírio. Curso de aperfeiçoamento em Psicologia transpessoal, módulo


2, p. 17.
115 DARWIN, Charles. A origem das espécies. Martin Claret: 2009. p. 17
116 CALLEGARO, Marco. O novo inconsciente. Artmed: 2011. p. 22.

75
Capítulo 4 • Paradigmas materialista, consciencial e integral

A queda do Geocentrismo retirou o hábitat humano do centro do universo; o


antropocentrismo, após Darwin, rendeu-se ao fato de que nossa espécie não
é o único e último objetivo da evolução; por fim, a descoberta do inconsciente
removeu a vida mental consciente do centro da atividade psíquica e
desferiu o terceiro golpe ao narcisismo. Diante das reflexões gentilmente
compartilhadas pelos vários autores ora citados, restou-me ponderar sobre
uma frase jocosa que pudesse nortear a espécie humana rumo a autoevolu-
ção lúcida e mitigar os estragos que fazemos aos nossos pares nessa desafia-
dora caminhada: desculpem-nos pelo transtorno, estamos em obras.

Paradigmas: materialista, consciencial e integral


O leitor deve lembrar-se do Quadro 1.1, exposto de forma sintética no Ca-
pítulo 1, cuja reapresentação neste momento entendo pertinente, mas acres-
cido de outros comparativos entre o exemplar materialista e o consciencial,
que inclui a Consciência como elemento indispensável e prioritário para
as pesquisas. Seguem, portanto, sete paralelos básicos e meramente infor-
macionais no Quadro 4.1 abaixo, que auxiliarão na compreensão de cada
abordagem, independentemente daquela mais confortável para o leitor.

Quadro 4.1
Comparativo entre os exemplares consciencial e materialista

Consciencial: inclusão da Consciência Materialista: exclusão da Consciência


Consciência e Holossoma 117
Soma118
Multidimensionalidade “Intrafisicalidade”
“Multisserialidade” “Unisserialidade”
Além dos cinco sentidos Cinco sentidos
Laboratório consciencial Laboratório físico
Sentido: subjetividade-objetividade Sentido: objetividade-subjetividade
Validação: vivência individual Validação: replicabilidade em laboratório

Na sequência, disponibilizo uma representação gráfica (Figura 4.1) do


paradigma integral referido nos subtítulos pretéritos, uma microscópica

117 Holossoma é o conjunto de todos os corpos ou veículos de manifestação que, para a


Conscienciologia, são quatro: soma, energossoma, psicossoma e mentalsoma (Capítulo 13).
118 Soma, neste contexto, significa corpo físico ou biológico.

76
Capítulo 4 • Paradigmas materialista, consciencial e integral

síntese dos pilares do Sistema Operacional Integral, que será explicitado com
maior profundidade nos capítulos vindouros, e cuja compreensão pelo lei-
tor acredito e desejo que será mais fácil do que no início destes escritos.

Evolução Integração

Cooperação

Figura 4.1– Representação esquemática sintética da cosmovisão integral.

Relativamente à tormentosa dicotomia entre mente e corpo, constatei que


tanto a Filosofia Integral quanto a Conscienciologia declaram-se mani-
festamente contrárias ao isolamento cartesiano e estabelecem construc-
tos transcendentes, coerentes e dignos de estudo pelos cientistas de ponta.
Todavia, a questão do vetor evolutivo, seja a hipótese da matéria para a
Consciência (vetor objetivo-subjetivo) ou vice-versa (vetor subjetivo-obje-
tivo), ainda é ponto polêmico, talvez uma mesma realidade observada por
diferentes perspectivas. Voltaremos aos temas cartesianos no Capítulo 16,
mas, neste instante, julgo prioritário apresentar a posição wilberiana sobre
as raízes da fragmentação moderna e redução de todo o conhecimento à
epistemologia empírico-monológica, cuja explicitação demandará capítu-
lo específico e compreensão dos três olhos do saber:
1. Olho da carne.
2. Olho da mente.
3. Olho do espírito.

77
78
Os três olhos do pluralismo
epistemológico integral
5

Gostaria de cumprimentar o leitor por chegar até o último capítulo des-


ta parte introdutória, reconhecidamente densa e repleta de conceitos que
demandam atenção e eventualmente uma certa dificuldade na assimilação
do conteúdo. Penso que o esforço pretérito do leitor será recompensado a
partir deste momento e os obstáculos assimilativos mitigados, o que certa-
mente atuará em favor de uma leitura mais leve e fluida.

Nos vinte e cinco anos em que atuei no mundo jurídico, meus textos foram
considerados longos e excessivamente combativos. Todavia, após cursos
de pós-graduação dentro do universo jurídico, da psicologia transpessoal,
da política, da filosofia e posteriores estudos transcendentes, em especial
uma década de leitura conscienciológica, deixei a escrita barroca para um
estilo sintético, sempre em busca da máxima concisão. Nesse sentido, agra-
deço ao revisor desta obra por lembrar-me do caminho intermediário e
por incentivar-me a recuperar a fluidez que sempre foi minha caracterís-
tica, apenas com atenção e evitando exageros. Também aqui farei uma ten-
tativa no sentido de abandonar a escolha dicotômica entre clareza versus
fluidez, para a opção da integração harmônica entre clareza e fluidez.

No tocante ao título do presente capítulo, mister seu reconhecimento


como, no mínimo, assustador. Cabe-me tranquilizar o leitor e assumir o
compromisso no sentido de elaborar um texto inteligível para interiori-
zarmos esse conhecimento que será o alicerce estrutural para a compreen-
são de futuros postulados. Portanto, outorgo minha tentativa nesse senti-

79
Capítulo 5 • Os três olhos do pluralismo epistemológico integral

do e submeto-a ao público, dividindo-o nos seguintes tópicos:


ƒ O que é “isso”? Como conheço “isso”?
ƒ Os três olhos de São Boaventura.
ƒ Do passado ao moderno método científico.
ƒ John Locke, Tomas Kuhn e Karl Popper.
ƒ Epifania wilberiana.
ƒ O olho “abelhudo” da razão.
ƒ Os erros de categoria.
ƒ Bissociação integral-conscienciológica.
ƒ Conclusões.

O que é “isso”? Como conheço “isso”?


Esclareço que não me aprofundarei nos conceitos de ontologia e epistemo-
logia, mas apenas apresentarei uma noção resumida para entendermos os
termos em foco e a pluralidade em que a Filosofia Integral foi concebida.
Assim, simplificarei os significados dos termos em estudo em duas pergun-
tas centrais e auxiliares na respectiva compreensão, o que evidentemente
não dispensará o leitor de um estudo mais detalhado:
1. Ontologia: o que é “isso”?
2. Epistemologia: como conheço “isso”?

Epistemologia, portanto, é o ramo da Filosofia que estuda a origem, a es-


trutura, os métodos, os limites e a validação do conhecimento humano.
Opõe-se à crença meramente subjetiva para focar no conhecimento como
verdade justificada. Segundo o dicionário Houaiss: “reflexão geral em torno
da natureza, etapas e limites do conhecimento humano, especialmente nas
relações que se estabelecem entre o sujeito indagativo e o objeto inerte”.119
Resta-nos perguntar: porque a epistemologia integral é plural?

As vias de acesso ao conhecimento adotadas por Wilber estão baseadas no


que ele chamou de “três olhos do saber”, que passaremos a estudar deta-
lhadamente a partir de seu histórico, surgimento e desenvolvimento com
São Boaventura. Na sequência, analisaremos aquilo que o filósofo estadu-
nidense chamou de “erros de categoria”, ou seja, os resultados e consequên-
cias de avaliarmos um conhecimento específico pela via equivocada.

119 HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa, 2001, p. 783.

80
Capítulo 5 • Os três olhos do pluralismo epistemológico integral

Os três olhos do conhecimento de São Boaventura


Wilber citou em sua obra os místicos cristãos Hugo de São Vítor (1096-
1141) e São Boaventura (1221-1274) como precursores do pluralismo epis-
temológico integral, sendo o segundo, o responsável pela proposição de
que o ser humano tem três olhos do saber:120
1. Olho da carne.
2. Olho da mente.
3. Olho do espírito.

O primeiro “olho” representa a capacidade de percepção dos acontecimentos


físicos; o segundo, o “olho da mente”, bastante conhecido pela espécie huma-
na, percebe imagens, desejos, conceitos e ideias; finalmente, o “olho do espí-
rito” seria aquele veículo de contemplação das experiências e “estados espiri-
tuais”.121 As três possibilidades epistemológicas em estudo devem considerar
outros três elementos para acesso à informação, ou seja, o olhar de quem vê,
a luz capaz de iluminar o objeto visto e o próprio objeto observado. Elaborei
o Quadro 5.1 a seguir com a intenção de representar as possibilidades episte-
mológicas de São Boaventura e seus elementos, procurando retratar fielmen-
te o contexto, o linguajar e a finalidade religiosa da época de seu precursor.

Quadro 5.1
Possibilidades epistemológicas de São Boaventura e seus elementos

Olho Luz Visão


Olho da carne Luz inferior (exterior)
Cinco sentidos Empirismo Vestígio de Deus122
sensibilia (sensorial) Observação
Olho da mente Luz interior (racionalidade)
Razão Racionalismo Imagem de Deus
intelligibilia (inteligência) Interpretação
Olho do espírito Luz superior (transcendência)
Consciência Misticismo123 Deus
transcendelia (transcendência) Contemplação

120 WILBER, Ken. A união da alma e dos sentidos. Cultrix: 2001, p. 22.
121 WILBER, Ken. O olho do espírito. Cultrix: 2001, p. 41.
122 Face ao contexto religioso da época, o método era aplicado para temas sacralizados.
123 Aqui utilizado no significado wilberiano, que é oposto ao consciencial.

81
Capítulo 5 • Os três olhos do pluralismo epistemológico integral

Do passado ao moderno método científico


No Capítulo 4 desta obra, quando estudamos os métodos científico, in-
tegral e conscienciológico, tivemos a oportunidade de verificar o proble-
ma da limitação pertinente à ciência clássica, em razão de sua fronteira
objetiva. Em consequência desse estudo, considerei exagerada a negação
peremptória da realidade subjetiva do ente humano, ou seja, pelo fato de
não termos capacidade probatória para demonstrar cientificamente que
Maria sonha com João várias vezes por semana, não devemos presumir
juris et de jure124 a inocorrência do fenômeno, pois todos sabemos que
tal fato é possível, embora não demonstrável cientificamente. O mesmo
pode ser dito a respeito de eventos transcendentes, como alguns estados
incomuns de consciência ou a própria projeção lúcida para além do cor-
po físico.

A problemática da inclusão, no universo da ciência, de fenômenos de exis-


tência possível e até provável, mas cuja validação não resiste aos rigorosos
critérios científicos, é muito antiga. Freud enfrentou tal dificuldade em sua
carreira, em especial em 1900, quando publicou sua famigerada obra A In-
terpretação dos Sonhos. Entrementes, a despeito de não conseguirmos provar
alguns fenômenos transcendentes, não observo motivos relevantes para
negá-los radicalmente, atitude que adjetivo jocosamente de “fanatismo do
não”. A partir dessas ponderações, outras reflexões emergiram e desafia-
ram-me na busca por novas soluções:
ƒ Existiria uma via científica para confirmar fenômenos transcendentes?
ƒ Poderíamos articular conhecimentos do passado ao moderno método
científico?
ƒ Há possibilidade de um novo método científico, mais afinado com esses
tempos ditos pós-modernos?

São perguntas provocativas, cujas respostas tiveram sua busca auxiliada


pela genialidade de Wilber e pelo pragmatismo conscienciológico. Para
tanto, mantive em mente uma estrutura básica e absolutamente resumida
do método científico clássico, aqui representado pelas três etapas já trata-
das e explicitadas no capítulo anterior:

124 Juris et de jure é uma expressão que significa o fato estabelecido por lei como verdadeiro ou
presunção legal tida com expressão da verdade, que não admite prova em contrário.

82
Capítulo 5 • Os três olhos do pluralismo epistemológico integral

1. Instrução, procedimento ou protocolo científico.


2. Apreensão ou percepção do resultado.
3. Confirmação por comparação.

A partir desses parâmetros metodológicos, faremos conexões com o em-


pirismo, as influências paradigmáticas e a importância da refutação, com
intenção de solucionar o problema da conjugação de quatro pressupostos
importantes para a possibilidade científica, por mim adjetivada de orto-
doxa: a racionalidade,125 a evidência experimental,126 a objetividade127 e o
realismo.128

Os dois últimos pressupostos causarão sérios problemas por considerarem


o fenômeno observado independente do sujeito (objetividade), em flagrante
desconsideração dos aspectos considerados subjetivos (vontade, intenção,
etc.), além de reforçar a visão cartesiana da separação entre o chamado
“mundo exterior” e a mente humana. Diante dessa complexidade, apre-
cio as palavras-chave de cada etapa, ou seja, entre outras características, a
ciência experimenta, contextualiza e compara, obviamente sempre acompa-
nhada dos respectivos registros.

John Locke, Thomas Kuhn e Karl Popper


Escolhi essas três grandes personalidades históricas para auxiliar-me a en-
tender determinados trechos da obra O Olho do Espírito,129 sob a égide do
subtítulo O Problema da Prova, no qual Wilber considera a filosofia da ciên-
cia dividida em três abordagens principais e aparentemente excludentes,
que classificarei de:
1. Empírica, representada por John Locke.
2. Paradigmática, de Thomas Kuhn.
3. Refutável, liderada por Karl Popper.

O empirismo exige que todo conhecimento genuíno esteja fundamenta-


do na evidência experiencial. Parece-me bastante razoável tal exigência,

125 Racionalidade: qualquer crença deve submeter-se ao teste da realidade.


126 Evidência experimental: necessária à admissão como hipótese científica.
127 Objetividade: o fenômeno observado não depende do sujeito, ou seja, pode ser replicado
por qualquer indivíduo.
128 Realismo: mundo exterior independente da mente humana e passível de compreensão.
129 WILBER, Ken. O olho do espírito. Cultrix: 2001, p. 82-84.

83
Capítulo 5 • Os três olhos do pluralismo epistemológico integral

principalmente considerando a primeira etapa do método científico, mas


seu excesso negará equivocadamente as ideias inatas e defenderá o con-
ceito de tabula rasa ou “quadro em branco”, defendido por Locke no século
XVII, segundo o qual a mente seria gravada exclusivamente pelas experiên-
cias sensoriais. Alguns filósofos reconhecidamente notáveis são comumen-
te associados ao empirismo: Aristóteles, Tomás de Aquino, Francis Bacon,
Thomas Hobbes, o próprio John Locke, George Berkeley, David Hume e
John Stuart Mill.

No tocante à abordagem paradigmática ou vertente kuhniana, as evi-


dências e os dados não estariam estáticos ou no aguardo paciente de sua
observação, em flagrante identificação com a segunda fase do clássico
método científico. Eles são revelados e avançam por meio de paradig-
mas ou exemplares. A ideia de Kuhn parece considerar não apenas os
filtros interpretativos e paradigmáticos, mas também uma forma con-
textualizada de acesso ao conhecimento, revelando dados através de injun-
ções ou exemplares.

Finalmente, Karl Popper entra em cena com sua abordagem e enfatiza a


refutabilidade, em absoluta sintonia com a terceira etapa do método cientí-
fico, ou seja, o conhecimento genuíno deve estar aberto aos juízos críticos
mais aguçados e ser validado apenas após enfrentamento de comparações
e rigorosas refutações, sob pena de ser considerado um dogma travestido
de conteúdo científico. Particularmente, considero Popper um dos mais
influentes filósofos a problematizar a ciência e um dos expoentes liberais
implacáveis em oposição ao totalitarismo, mormente com sua obra A socie-
dade aberta e seus inimigos.

Epifania wilberiana
O que fez Ken Wilber ao estudar o método científico, suas vertentes filosóficas
e os antigos métodos epistemológicos de São Boaventura no contexto religioso?
A resposta a essa pergunta passa pela contextualização dos métodos e
adaptação para as necessidades hodiernas, que caminham muito além
das crendices míticas e termina sua jornada na brilhante integração das
etapas contidas no método científico clássico com as respectivas jurisdi-
ções dos três olhos do conhecimento, conforme elucidado pelo Quadro
5.2 a seguir.

84
Capítulo 5 • Os três olhos do pluralismo epistemológico integral

Quadro 5.2
Integração do pluralismo epistemológico de São Boaventura ao
método científico

Veículo do saber Método científico


Instrução ou procedimento
Olho da carne
Apreensão ou percepção
sensibilia
Confirmação ou comparação
Instrução ou procedimento
Olho da razão
Apreensão ou percepção
intelligibilia
Confirmação ou comparação
Instrução ou procedimento
Olho do espírito
Apreensão ou percepção
transcendelia
Confirmação ou comparação

A cada via de acesso ao conhecimento (sensibilia, intelligibilia e transcendelia),


a epifania wilberiana e seu pluralismo epistemológico incorporam o méto-
do científico e a busca humana pelo conhecimento em suas três vertentes
– representadas por Locke, Kuhn e Popper – em flagrante conexão, respec-
tivamente, com a instrução, a percepção e a comparação. A grande novida-
de metodológica e compreensão que depreendo de Wilber, até o presente
momento, segue em direção à possibilidade de implementação do método
científico para além do mundo sensorial, sensibilia ou “olho da carne”.

Sob a minha óptica, a Filosofia Integral parece considerar legítimas as prin-


cipais vertentes científicas; em contrapartida, Wilber revela e critica um
escorregão reducionista da ciência materialista ortodoxa, quando esta res-
tringe seu método à jurisdição limitada à experiência sensorial. Particular-
mente, penso que a situação do reducionismo científico moderno seja ainda
mais grave, pois não somente adquiriu uma miopia em relação aos conceitos
transcendentes, mas preferiu negá-los taxativamente e fechou as portas do
ambiente acadêmico para uma discussão séria sobre os temas respectivos.

Os empíricos focam em demasia nas experiências sensoriais, negando as


possibilidades mentais e espirituais;130 os kuhnianos não percebem que as

130 Espirituais: equivalente a conscienciais, no linguajar conscienciológico.

85
Capítulo 5 • Os três olhos do pluralismo epistemológico integral

injunções podem aplicar-se a todas as formas de conhecimento válido, não


apenas à ciência sócio-motora; finalmente, os popperianos equivocam-se
pela excessiva concentração da “refutabilidade” ao mesmo mundo senso-
rial. Em outras palavras, a limitação dessas vertentes à percepção sensório-
-motora impõe cruel reducionismo silencioso, pois impede o sadio policia-
mento metodológico às jurisdições da intelligibilia – “olho da mente” – e da
transcendelia – “olho do espírito” – condenando-as a todo tipo de engodo
parapsíquico em razão dessa exclusão ou negação científica.

Na esteira da modernidade e seu marco iluminista do século XVIII, vieram


os exageros empírico-positivistas que, apesar de inúmeros acertos, consi-
deram todos os aspetos transcendentes ou religiosos como remanescentes
infantis e imaturos da humanidade. Não contesto os parciais e assistenciais
acertos modernos, mas aponto limites e distorções das supostas cosmovi-
sões, cujos principais representantes são Auguste Comte, Bertrand Russell,
Karl Marx e Sigmund Freud, aos quais conservo respeitosa distância ideo-
lógica e mordaz posição crítica em muitas proposições.

Mantenho a linha de raciocínio para considerar razoável a posição de mui-


tos autores em relação às extremas imaturidades de um grande contingente
humano ainda ingênuo, inclusive de alguns integrantes dos grupos de es-
tudos supostamente transcendentes, que originaram a expressão: “religião
é o ópio do povo”. Todavia, ao considerar toda a transcendência e todos os
estudiosos desse domínio como crianças imaturas que ainda acreditam em
“Papai Noel”, a modernidade atingiu um exagero também merecedor de
minha objeção.

Antes de concluir a temática ligada ao excesso materialista que restringe


a área de atuação do conceito moderno de ciência, devo confessar minha
própria limitação para comentar a transcendelia ou “olho do espírito”. Con-
tudo, para facilitar a compreensão de cada “olho” ou “veículo” da episte-
mologia wilberiana, utilizarei novamente a didática de Raynsford, con-
jugada com eficazes exemplos da obra wilberiana The eye of spirit e sua
versão traduzida para língua portuguesa 131 (Quadro 5.3).

131 WILBER, Ken. O olho do espírito. Cultrix: 2001.

86
Capítulo 5 • Os três olhos do pluralismo epistemológico integral

Quadro 5.3
Exemplo de aplicação do método científico aos três olhos de São
Boaventura e habilitação técnica para as respectivas validações

“Olho da carne”
Conhecimento Desejamos saber se está chovendo
Instrução Usar os sentidos físicos e verificar132
Apreensão Informação se está chovendo ou não
Confirmação Comparação com outros resultados
Comunicação Monológica133
Quem está habilitado? Em geral, qualquer pessoa

“Olho da mente”
Conhecimento Interpretação de Hamlet no original
Instrução Ler Hamlet134
Apreensão Interpretar o texto (subjetividade)135
Confirmação Comparação com outros resultados
Comunicação Dialógica136
Quem está habilitado? Círculo específico de literatos

“Olho do espírito”
Conhecimento Atingir um estado chamado transpessoal
Instrução Fazer uma prática dita espiritual ou transpessoal
Apreensão Samadhi, satori, êxtase, epifania
Confirmação Comparação com outros resultados
Comunicação Translógica137
Quem está habilitado? Círculo de praticantes da técnica específica

132 Ver, tocar, ouvir ou sentir o cheiro da chuva.


133 Monológico deriva de monólogo. Observar pedras, rios, corpos, planetas, células ou qual-
quer objeto visível aos olhos da carne, que dispensa, ao menos numa primeira análise per-
functória, um diálogo mental com estes elementos.
134 Além de outros pré-requisitos: aprender a ler e conhecer o inglês clássico.
135 Apreender seus significados.
136 Dialógico decorre do vocábulo diálogo. Ao ler este livro, não basta sua observação, mas
também sua interpretação, hermenêutica e uma certa interação entre autor e leitor. Você não
observará o autor como uma pedra, mas como um sujeito ao qual tenta compreender dialo-
gicamente.
137 Translógico significa além do lógico. Como a comunicação está no nível espiritual (além
do mental), a interpretação racional dar-se-á por paradoxos.

87
Capítulo 5 • Os três olhos do pluralismo epistemológico integral

Portanto, na hipótese de selecionarmos os grupos de indivíduos habilita-


dos para aplicar o método científico nas diversas e respectivas jurisdições
específicas, abrir-se-ão novas possibilidade de avaliações ou modalidades
de ciência, muito além do foco materialista atual, fato que poderia outor-
gar para a humanidade uma inédita classificação: Ciências naturais, Ciên-
cias racionais e Ciências espirituais.

O olho “abelhudo” da razão


A característica marcante do “olho da mente” é a curiosidade. A espécie
humana destaca-se justamente por tal característica pensante e capacida-
de lógica, em contundente obstinação pela investigação racional de todas
as dimensões epistemológicas. De fato, o olho da razão não se contenta
em analisar somente sua própria jurisdição, mas também insere sua racio-
nalidade nos demais domínios da sensibilia e da transcendelia. Vejamos, no
Quadro 5.4 abaixo, a visão wilberiana sobre o momento em que o olho da
mente adentra e estuda seu próprio domínio e os demais.

Quadro 5.4
Análise dos resultados do olhar da razão para os três domínios

Olho da mente Domínio Resultado


Sensibilia
Olhar interpretativo-empírico
Mundo “grosseiro” Ciências naturais
Olhar analítico-empírico
Mundo “objetivo”
Conhecimento racional
Intelligibilia Linguagem (conceituação)
Olhar interpretativo
Mundo “sutil” Matemática
Olhar analítico
Mundo “subjetivo” Filosofia (pura)
Hermenêutica
Transcendelia
Conhecimento espiritual
Olhar interpretativo-transcendente Mundo “causal”
Religiões exotéricas
Olhar analítico-transcendente Mundo “espiritual”
Conhecimento consciencial
Mundo “consciencial”

Tudo parecia caminhar bem para o “olho da razão” na observação dos


domínios objetivos e subjetivos. Todavia, entendo a mensagem wilberiana
como uma advertência no sentido de que o olhar racional para o domínio
do espírito carecerá de ferramental próprio e gerará imprecisões descriti-

88
Capítulo 5 • Os três olhos do pluralismo epistemológico integral

vas e indigestos erros de categoria merecedores de considerações suplemen-


tares em tópico próprio.

Os erros de categoria
Na visão wilberiana, os erros de categoria são as distorções e os embo-
tamentos oriundos da observação com o “olho” inadequado, no domínio
transcendente do espírito. Nessa linha de raciocínio, pode-se concluir que
a transmissão dos conhecimentos de máxima transcendência espiritual,
pelos indivíduos que passaram por uma legítima experiência espiritual di-
reta ou experiência de pico, dependeria de uma comunicação que driblasse
ou superasse a linguagem racional,138 considerada limitada para descrever
a transcendelia. Assim, a visão do olho do espírito somente poderia ser tradu-
zida para a razão através de alegorias, símbolos, poesia, arte ou paradoxos.

Na hipótese de validarmos a reflexão wilberiana, estaremos diante de um


sério e contundente problema de comunicação. Não é demais lembrar que
essa deficiência, ao longo da história, levou a humanidade a hediondas
hostilizações contra os indivíduos que ousaram comunicar as ocorrências
transcendentes a outros que ainda não abriram esse canal, fatos seguidos
de ignorância e horror consubstanciado em sangrentas guerras religiosas,
crucificações, fogueiras humanas e outras tristes e lamentáveis atrocidades.

A metáfora da caverna,139 inserida na obra A República,140 de Platão, é consi-


derada uma das mais importantes alegorias da história da Filosofia e pode
ser analisada também pela perspectiva da multidimensionalidade e transcen-
dência, consoante particular observação e interpretação de seus elementos, o
que faço no Quadro 5.5. Tal iniciativa, que caracterizo como didática, faz-se à
luz da minha leitura pessoal e tentativa conectiva entre os postulados integral

138 Na Concienciologia, fala-se em “conscienciês”.


139 O mito fala sobre prisioneiros nativos que conhecem somente a caverna em que nasceram,
todos acorrentados, e onde é possível verificar apenas uma parede no fundo, em que são pro-
jetadas sombras de estátuas representando pessoas, animais, plantas e objetos. Os prisioneiros
nomeiam tais imagens sombrias, analisam e julgam as situações dentro dos limites de suas re-
duzidas possibilidades. Na hipótese de um detento abandonar a caverna e entrar em contato
com a realidade exterior, perceberia obviamente outras perspectivas e voltaria para contar aos
seus colegas; contudo, seria ridicularizado ao contar tudo que viu e sentiu, pois seus companhei-
ros de caverna estariam condicionados a acreditar na realidade que enxergam e produziriam
zombarias, imputar-lhe-iam a condição da loucura e ameaçar-lhe-iam de morte caso não pa-
rasse de pronunciar sandices ou ideias interpretadas como heresia, blasfêmia ou absurdo.
140 PLATÃO. A República. Edipro: 2018, p. 210-213.

89
Capítulo 5 • Os três olhos do pluralismo epistemológico integral

e conscienciológico, onde admito a possibilidade da existência de dimensões


intra141 e extrafísicas,142 e lanço mão de uma associação analógica da teoria pla-
tônica para percepção do mundo sensível143 e do mundo inteligível.144

Quadro 5.5
Interpretação pessoal dos elementos da metáfora da caverna

Elementos da metáfora da caverna Interpretação pessoal


Prisioneiros A humanidade
Caverna Dimensão material ou mundo sensível
Grilhões e cadeias Influências sociais ou paradigmáticas
Sombras Sensibilia ou mundo material
Caminho ascendente Acesso libertário às perspectivas superiores
Endireitar-se com dor Enfrentamento da nossa imaturidade
Olhar para os objetos iluminados Enfrentamento da nossa ignorância
Câmara intermediária e seus objetos Olho da mente ou mundo racional
Olhar para a própria luz do Sol Contemplação pelos olhos do espírito
Descida do homem que viu a luz do Sol Retorno de um estado transcendente
Hostilidade dos demais habitantes da caverna Fobia do novo e arrogância humana145

Obviamente, trata-se de apenas uma perspectiva e mera interpretação in-


dividual dentre muitas outras realizadas por filósofos e especialistas mais
capacitados. Todavia, resta-me a intuição de que perdemos algo nesse ca-
minhar evolutivo, da pré-modernidade à modernidade e desta à pós-mo-
dernidade. Parece-me que os possíveis erros de categoria foram os respon-
sáveis por terríveis litígios fundamentalistas, atualmente agravados pela
força tecnológica, onde a carência de uma visão fraterna transformou-se
no epicentro de muitos dissabores sociais.146 Vejamos uma síntese de pos-
síveis reflexos desses equívocos ao longo da história humana.

141 Intrafísico: referência ao mundo material denso ou sensibilia.


142 Extrafísico: postulado conscienciológico de dimensões além da material.
143 Mundo sensível: conhecido pelos sentidos, pelo olho da carne ou sensibilia.
144 Mundo inteligível: conhecido pela razão, pelo olho da mente ou intelligibilia.
145 O mito fala de agressão mortal: crucificações e ataques fundamentalistas, mais comuns na pré-
-modernidade ou Idade Média. Já o riso, associo à chacota moderna aos assuntos transcendentes.
146 Relembro o marcante episódio do ataque às torres gêmeas, na triste data de 11 de setem-
bro de 2001, além de tantos outros incidentes de difícil interpretação, mas tendo sempre como
pano de fundo uma causa fundamentalista ou ideal monopolizador da verdade e da virtude.

90
Capítulo 5 • Os três olhos do pluralismo epistemológico integral

Quadro 5.6
Exemplos de hipotéticas consequências por erros de categoria e a
tentativa atual para solução dessa problemática

Período Metodologia Consequências


Interpretação literal de textos sagrados
Da Antiguidade à Revelações do olho do espírito e
Movimentos tirânicos-coletivistas
Idade Média interpretações por erros de categorias
Exemplos: Giordano Bruno e Galileu147
1. Empirismo: todo conhecimento 1.1. Método indutivo de Bacon e Locke
Do Renascimento vem do olho da carne
2.1. Método dedutivo de Descartes
ao Iluminismo 2. Racionalismo: todo conhecimento
vem do olho da mente 2.2. Desconstrução da transcendência

Integração do kosmos à ciência


Do Iluminismo 1. Método integral
aos dias atuais Integração da multidimensionalidade à
2. Método consciencial
ciência

Bissociação integral-conscienciológica
Estou consciente de que inúmeros estudiosos da Conscienciologia encon-
trarão significativos pontos de divergência ao pensamento wilberiano e
vice-versa, o que vejo com positividade. Este espaço será destinado a com-
pilar tais discordâncias para as próximas edições deste trabalho, mas, nes-
se primeiro momento, julgo prioritário concentrar-me nas indagações que
ainda turvam minhas reflexões. Seria possível uma adaptação dos três olhos do
conhecimento e respectiva epifania wilberiana à visão conscienciológica? Farei um
ensaio nesse sentido em adaptação epistemológica para os requisitos que
me parecem imprescindíveis para a Conscienciologia:
ƒ Eliminação da terminologia religiosa.
ƒ Aplicação do princípio da descrença.
ƒ Vivência sobre tema de pesquisa.
ƒ Respeito à lógica e à racionalidade.

Entretanto, deparei-me com um sério problema nessa adaptação específica,


pois não ostento vivência em todas as propostas que constam no Quadro 5.7,
onde explicito minha tentativa de integrar as epistemologias da Filosofia Inte-
gral e da Conscienciologia. Tal intento poderá ser compreendido com a ressal-

147 Personagens historicamente vitimados pelo que chamo de tirania coletivista, que Wilber
nomina genericamente de “absolutismo de quadrante”.

91
Capítulo 5 • Os três olhos do pluralismo epistemológico integral

va de que nossa espécie, a humana, está muito identificada com a visão mental
e, diante disso, inexoravelmente buscará analisar com o “olho abelhudo148 da
razão” todas as informações acessadas pelos demais “olhos”. Diante de minha
carência vivencial, definitivamente perderei o prestigiado status de uma pro-
posta científica à luz das exigências conscienciológicas, mas insistirei na apre-
sentação de minhas epifanias pessoais no campo das possibilidades filosóficas.

Quadro 5.7
Integração da visão wilberiana ao postulado conscienciológico e
veículos de manifestação da Consciência

Ferramenta Atributo Resultado racional


Objeto de estudo
epistemológica epistemológico Mente: porque olha?
Domínio: onde olha?
Por qual instrumento olha? Modo: como olha? Finalidade do olhar
Soma Sensorial físico 1. Ciências naturais
Sentidos físicos Cinco sentidos Dimensão física 2. Psicologia
“Olhos” físicos somáticos comportamental

Energossoma Sensorial energético 1. Homeopatia149


Corpo energético e chacras Percepções Dimensão energética 2. Acupuntura
“Olhos” energéticos energéticas 3. Shiatzu
1. Psicologia junguiana
Psicossoma Sentimentos Dimensão
2. Vertentes religiosas151
“Olhos” do psicossoma Emoções psicossomática150
3. Projeciologia152
1. Matemática
Razão Dimensão mental 2. Filosofia
Mentalsoma Discernimento Fenomenologia 3. Linguagem
“Olhos” do mentalsoma Pensamento mental 4. Hermenêutica
Reflexão 5. Parapsicologia
6. Projeciologia153
Consciência Atributos Consciência 1. Linguagem não verbal
“Olhos” conscienciais conscienciais Dimensão respectiva 2. Apreensão direta

148 O termo “abelhudo” foi empregado no sentido jocoso e bem-humorado.


149 Homeopatia, acupuntura e shiatzu: possuo vivência nos três exemplos citados com mais
de uma década de utilização dessas ferramentas e com a constatação de resultados efetivos.
150 Dimensão psicossomática: conhecida popularmente como dimensão emocional ou astral.
151 Vertentes religiosas: 1) Racionalismo Cristão, que particularmente conheço e respeito; 2)
Espiritismo e demais segmentos voltados à compreensão da realidade conhecida como extra-
física, entre outras.
152 Projeciologia: vertente científica no campo da projeção do psicossoma para além do corpo físico.
153 Projeciologia: neste contexto, refere-se à projeção do mentalsoma.

92
Capítulo 5 • Os três olhos do pluralismo epistemológico integral

Ressalto que a anatomização apresentada é meramente didática e distante


do isolamento cartesiano, especialmente por considerar e validar as pro-
fundas interconexões e interpenetrações complexas em todas as dimensões
expostas, mormente pela nossa habitual perspectiva de tudo interpretar
pelo “olho da razão”. Nessa linha de raciocínio, poderíamos adentrar ao
campo de estudo da Projeciologia e adaptar as três etapas científicas ao
processo de validação das informações captadas pelos “olhos do psicosso-
ma”, consoante linguagem tipicamente conscienciológica (Quadro 5.8).

Quadro 5.8
Exemplo de adaptação metodológica à Projeciologia

Conhecimento Veracidade da projeção lúcida


Instrução Aplicação da técnica projetiva escolhida
Apreensão Realização da projeção lúcida
Confirmação Testes repetitivos e comparações dos resultados
Comunicação Lógica
Quem está habilitado? Círculo de projetores veteranos

Conclusões
Segundo o pensamento wilberiano, o Ocidente tentou explicar, pelos
“olhos da mente”, assuntos que somente seriam explicáveis pelos “olhos do
espírito” e, no momento em que Immanuel Kant exigiu uma evidência da
verdade empírica ou racional, a transcendência metafísica naufragou, pois
“nem o empirismo, nem a razão pura, nem a razão prática, nem qualquer
combinação delas pode ver o que está por dentro da esfera do Espírito”.154

Diante disso, reitero minhas dificuldades na prática da compreensão wil-


beriana a partir da jurisdição da transcendelia, talvez pela minha excessiva
identificação racional, mentalsomática e lógica. Nesse diapasão, lamenta-
velmente, distancio-me do entendimento absoluto da visão integral por
admitida incompetência funcional oriunda da dormência temporária
(espero que breve) de alguns “olhos espirituais”, o que não me impede de
aplaudir a inteligência de suas proposições.

154 WILBER, Ken. O olho do espírito: Cultrix: 2001, p. 88.

93
Capítulo 5 • Os três olhos do pluralismo epistemológico integral

Deixarei uma questão para resposta futura: o experimento conhecido como


iluminação – na linguagem integral – seja uma experiência de pico, kensho, satori
ou visão transcendente diretamente da jurisdição da transcendelia ou pelo olho do
Espírito, equivaleria à projeção do corpo mental ou mentalsoma, no linguajar da
Conscienciologia?

Antes de encerrar meus comentários, transcrevo, com pouquíssimas adap-


tações para o presente contexto, um trecho da obra O Olho do Espírito sobre
as objeções kantianas e repúdio moderno à possibilidade de uma ciência
transcendente ao domínio material grosseiro: “a possibilidade de experiên-
cia direta da sensibilia, da intelligibilia e da transcendelia desarma de forma
radical as objeções kantianas e coloca a busca pelo conhecimento firme-
mente no caminho da evidência, com cada um de seus atestados de valida-
de (verdade, veracidade, imparcialidade e encaixe funcional), guiado pelas
três etapas da genuína acumulação de conhecimento (injunção, apreensão,
confirmação) em cada nível (sensorial, mental e espiritual – cruzando todo
o espectro da consciência).

Em suma, as três etapas da genuína acumulação de conhecimento funcio-


nam para todos os níveis. A aplicação das três etapas (com sua exigência
inerente de evidência, exemplares e refutabilidade) de fato ajudam-nos em
nossa busca de separar o ‘trigo do joio’, o verdadeiro do falso, o demons-
trável do dogmático, o confiável do espúrio”.155

A “moeda” integral disso tudo será a evidência experiencial das três juris-
dições:
1. Sensorial
2. Mental
3. Espiritual

Em linguagem conscienciológica e postulados da Conscienciologia, pode-


-se dizer que esse “pedágio” demandará vivência pessoal como corolário
lógico do princípio da descrença e passará pela experimentação dos níveis
a seguir elencados:

155 WILBER, Ken. O olho do espírito. Cultrix: 2001, p. 88.

94
Capítulo 5 • Os três olhos do pluralismo epistemológico integral

ƒ Físico
ƒ Energético
ƒ Psicossomático
ƒ Mentalsomático
ƒ Consciencial

Desse relato histórico, integral e algumas correlações conscienciológicas,


estou incomodamente distante de satisfazer minhas próprias e inquietan-
tes curiosidades. Portanto, reitero a solicitação de indagações inteligentes e
até mesmo novas soluções ou ponderações para o estabelecimento de uma
ciência transcendente, para que o “olho abelhudo da razão” possa, ao menos,
continuar um crescente mapeamento da trajetória multidimensional hu-
mana, com menor imprecisão e maior credibilidade.

95
96
Segundo bloco

Elementos da
Filosofia Integral

97
98
Primeiro elemento:
níveis
6

Reitero minhas congratulações ao leitor pela superação e conclusão dos es-


tudos preliminares contidos no bloco introdutório. Adentrarei empolgada-
mente neste segundo bloco, que julgo visceralmente conectado aos conceitos
de hólon e holarquia e cujo foco estará na investigação do primeiro compo-
nente da Filosofia Integral e suas insólitas conexões, iniciando a sequência
abaixo, uma listagem didática dos cinco elementos do modelo wilberiano:
1. Níveis
2. Linhas
3. Estados
4. Tipos
5. Quadrantes

Subdividi esse estudo em nove itens listados abaixo em ordem lógica, o que
auxiliará o leitor não somente na compreensão desta primeira estrutura da
Filosofia Integral, como também na fluidez da leitura, especialmente até o
Capítulo 11, quando finalizarei meus comentários sobre cada componente.
ƒ Filosofia perene.
ƒ Grande ninho do ser.
ƒ Impacto da modernidade.
ƒ Grande ninho e três olhos.
ƒ Como percorrer o caminho?
ƒ Patologias “ascendentes”.
ƒ Reação “descendente”.
ƒ Solução integrativa.
ƒ A falácia pré-trans.

99
Capítulo 6 • Primeiro elemento: níveis

O objeto da presente reflexão recai sobre os níveis de consciência, que são


facilmente vivenciados por todos nós, principalmente quando lembramos
de nossa condição no passado remoto. A maioria das pessoas certamente
dirá que aprendeu com as experiências pretéritas e está mais apta em razão
disso, em processo crescente de maturidade ou evolução gradual em etapas
progressivas de lucidez. Essas diferenças qualitativas em direção evolutiva
passam por estágios que foram competentemente identificados por muitos
estudiosos e também pela Filosofia Perene, tema em torno do qual orbita-
remos nas próximas ponderações.

A Filosofia Perene
Em linguagem wilberiana, pode-se dizer que a Filosofia Perene é a essên-
cia esotérica das tradições religiosas, majoritariamente averiguada por
Wilber segundo seu método já apresentado, ou seja, em suas três fases, des-
de o recuo ao abstrato pela técnica das generalizações orientadoras, posterior
incorporação sistêmica e, finalmente, a aplicação da teoria crítica. As filosofias
perenes das grandes tradições encontram-se representadas na Figura 6.1.

COMPLEXO RELIGIOSO
CHINÊS JUDAÍSMO
Níveis de Realidade
infinito

Mundo da
Tao Indescritível Emanação
BUDISMO CRISTANDADE
celestial

T’ien (Paraíso) Mundo da


Shunyata Tao Descritível Criação Divindade
intermediário

Nirvana (apophatic)
Dharmakaya
Paraíso/Terra Mundo da
shen/kwei Formação Deus
Bodhisattvas; (kataphatic)
material

Sambhogakaya
10.000 Mundo da anjos ISLAMISMO
HINDUÍSMO apsaras
coisas Ação demônios
hawiyyah ghalb
natureza (não manifestado)
Nirmanakaya izzah (poder
Devas in Malakut soberano)
Lokas (Domínio)
Saguna
Brahman Jabbarut
Nirguna Prakriti Mulk (Dominação)
Brahaman (reino)
Maya Allah

corpo grosseiro
qalb jinn
(coração) corpo sutil
fitrah nafs
(natureza corpo causal
primordial) ruh
cinco vijnanas Turiya
corpo (cinco sentidos) (Atman)
mano-vijnana
corpo

MUSSULMANO psique shen


(mente grosseira) HINDU
alma alaya-vijnana
mente

hsin (mente sutil)


Espírito
Natureza
Buda
Sefirot ling
alma

CRISTÃO BUDISTA
espírito

shen

Níveis de Individualidade
JUDEU CHINÊS

Figura 6.1 – As diversas filosofias perenes das grandes tradições156

156 WILBER, Ken. Uma teoria de tudo. Oficina do Livro: 2005, p. 75.

100
Capítulo 6 • Primeiro elemento: níveis

As perguntas de muitos estudiosos e interessados nessa temática de cunho


comparativo seriam: qual tradição estaria correta? Estariam todas incorretas?
Nesse ponto, entra em cena a genialidade de Wilber, que foi além da orto-
doxia mental para, ao invés de responder às questões formuladas, alterar
a pergunta e desafiar-se: como todas as teorias poderiam estar corretas ou ao
menos parcialmente corretas? Como visto, ao aplicar o método integral, em
especial pela técnica das generalizações orientadoras, o propositor da Filo-
sofia Integral desembocou nos diversos níveis de consciência ou desen-
volvimento evolutivo por etapas graduais de discernimento e chegou na
base comum das grandes tradições que validam, cada qual à sua maneira, a
nominada Grande Cadeia do Ser.

O Grande Ninho do Ser


Huston Smith, citado por Wilber157 e considerado uma das maiores autori-
dades em religião comparada, concluiu que praticamente todas as grandes
tradições de sabedoria concordam com a ideia da Grande Cadeia do Ser, que
prefiro tratar pela nomenclatura de Grande Ninho do Ser. Os diversos está-
gios desse ninho oscilam, nas grandes tradições, entre dois a doze níveis e
subníveis; porém, a aceitação desses níveis é praticamente unânime, desde
as primeiras tradições xamânicas, representadas de forma rudimentar por
“terra, homem e céu”, até as noções hinduístas e budistas de três grandes
estados ou estruturas do ser:
1. Grosseiro (matéria ou corpo).
2. Sutil (mente ou alma).
3. Causal (espírito).

Algumas tradições preferem apresentar o Grande Ninho com apenas dois


grandes e abrangentes níveis: matéria e espírito.158 Outros autores optaram
por maior detalhamento dos estágios ou níveis de consciência, a exemplo
de figuras como Plotino e Aurobindo, cujas respectivas propostas possuem
incrível similaridade, as quais procurei representar na adaptação159 com-
parativa do Quadro 6.1, também bastante comum na obra integral, rede
mundial de computadores e outras fontes e estudiosos dessas interessantes
personalidades.

157 WILBER, Ken. A união da alma e dos sentidos. Cultrix: 2001, p. 31.
158 Sinonímia: Força, Consciência ou Essência.
159 Ken WILBER, Uma breve história do Universo. Via Optima: 2004, p. 288.

101
Capítulo 6 • Primeiro elemento: níveis

Quadro 6.1
O Grande Ninho do Ser, conforme Plotino e Aurobindo

Plotino Aurobindo
Matéria Matéria (físico)
Função de vida vegetativa Vegetativo
Sensação Sensação
Percepção Percepção
Prazer e dor (emoções) Vital-emocional (impulsos)
Imagens Mente inferior
Conceitos e opiniões Mente concreta
Faculdade lógica Mente lógica
Raciocínio criativo (visão lógica) Mente superior (informatizada)
Alma do mundo Mente do mundo iluminado
Bom senso (mente intuitiva) Mente superior dominante (intuitiva)
O absoluto (Ente supremo) Supermente (Ente supremo)

Cada nível mais abrangente envolve ou abarca as dimensões menores, o que


culmina numa figura que remete a um ninho, ou uma série de ninhos, uns den-
tro dos outros. O modelo wilberiano ficou entre o exemplar mais detalhado
de Plotino ou Aurobindo e os mais simplificados, a fim de consagrar a imagem
reproduzida na Figura 6.2 que, em seu aspecto mais abrangente, baseia-se na
consciência da unidade. Na perspectiva da Filosofia Integral, a formação do
Grande Ninho passa pelos níveis de consciência da matéria, da vida, da mente,
da alma e do espírito, além das jurisdições da Física, da Biologia, da Psicologia e,
mantendo a linguagem wilberiana, da Teologia e do misticismo.
Espírito
Alma
Mente
A Vida
+ A
B + A
+ B + A Matéria
C + B + A 1 2 3 4 5
+ C + B Física
D + C
+ D Biologia
E
Psicologia
Teologia
Misticismo
Figura 6.2 – Grande Ninho do Ser

102
Capítulo 6 • Primeiro elemento: níveis

Esse conhecimento predominou na história pré-moderna 160 humana, ob-


viamente com variações, desentendimentos e sérios litígios, mas, em seu
conjunto, é considerado por muitos autores como a maior contribuição da
pré-modernidade para a humanidade. Aqui, os conceitos de alma e espírito
correspondem a níveis de consciência, o que Wilber representou em muitas
de suas obras – desde 1977161 – por gradações com estruturas básicas do
desenvolvimento da consciência, cujas conexões com outras vertentes do
conhecimento humano procurei sintetizar didaticamente no Quadro 6.2.

Quadro 6.2
Estágios wilberianos do desenvolvimento humano, suas conexões e
respectivas percepções

Estágios wilberianos Conexões Percepções


Piaget: sensório-motor Material
Aurobindo: físico-sensorial Sensitiva
Sensório-físico
Budismo: 1o, 2o e 3o skandhas Perceptiva
Nível pré-pessoal Somática
Freud: libido
Libidinal
Fantasmagórico 162 Aurobindo: mente inferior
Imagística163
emocional Budismo: 4o skandhas
Prânica
Nível pré-pessoal
Piaget: pensamento pré-ocidental
Simbólica164 (2-4 anos)
Aurobindo: mente concreta
Mente-representativa Conceitual165 (4-7 anos)
Psicologia yogue
Chacra umbilical
Nível pré-pessoal
Piaget: pensamento operacional concreto Operações matemáticas
Mente-regra-papel Aurobindo: mente lógica Inclusão de categorias
Nível pessoal Hierarquização

160 Considero a pré-modernidade o período anterior ao marco iluminista situado entre os


séculos XVII e XVIII ou, como preferem alguns, antes do impacto do pensamento de René
Descartes (1596-1650).
161 WILBER, Ken. Transformações da consciência. Cultrix: 2005, p. 17-25.
162 Fantasmagórico: termo cunhado por Arieti, em 1967, que indica a mente inferior (emo-
cional-sexual) ou a forma mais simples de visualização de imagens, desprovida da capacidade
simbólica, conceitual ou de distanciar-se da reação imediata das pulsões ou impulsos mais
básicos (WILBER, Ken. Transformações da consciência. Cultrix: 2005, p. 17).
163 A imagem transcende e inclui a consciência material.
164 O símbolo transcende e inclui a consciência de uma imagem (nível fantasmagórico).
165 O conceito transcende e inclui uma imagem e um símbolo.

103
Capítulo 6 • Primeiro elemento: níveis

Autorreflexão
Piaget: pensamento operacional formal
Formal-reflexivo Introspectiva
Nível pessoal
Hipotético-dedutivo
Bissociações
Conexões
Dialética
Aurobindo: mente superior Integrativa
Visão-lógica
Nível pessoal Lógica-associativa
Rede de ideias
Sintética-criativa
Sintetizações
Aurobindo: mente iluminada Visão interior
Terceiro olho Chacra frontal
Psíquico Contemplação Contemplativo
Budismo: “estágios preliminares” Iluminação
Nível transpessoal Inspiração interior direta
Arquétipos
Platão: mundo das formas
Mente intuitiva
Aurobindo
Iluminação audível
Shabad
Absorção transcendente
Sutil Induísmo
Ishtadeva
Mahayana
Yidam
Gnose
Demiurgo
Meditação vipassana
Pseudo nirvana
Aurobindo Supermente
Gnose Abismo
Vedanta Sem forma
Causal
Mahayana Vazio
Hinduísmo Nirvikalpa samadhi
Vipassana Nirvana
Mente única
Zen
Estado de cessação
Último Wilber: mais do que um estágio, é uma
Absorção causal166
integração, a essência de todos os níveis
Espírito absoluto

166 “Integração e identidade entre a forma manifesta e a ausência de forma não-manifesta”


(WILBER, Ken. Transformações da consciência. Cultrix: 2005, p. 23).

104
Capítulo 6 • Primeiro elemento: níveis

Essa é a essência ou espinha dorsal da chamada filosofia perene e constructo


wilberiano que embasa o estudo desse primeiro elemento integral ou níveis
de consciência, que foi prestigiado por inúmeros estudiosos e intelectuais
pretéritos, até o surgimento da modernidade no Ocidente e seu impacto
cultural, causador de profundas alterações socioculturais e maiúscula in-
fluência na forma de pensar e observar o universo em que vivemos.

Impacto da modernidade
O marco do movimento iluminista do século XVIII representa o início
do que chamamos de modernidade, com o triunfo de uma ciência “palpá-
vel” e vista pelos “olhos da carne”. Houve um gradual distanciamento da
multidimensionalidade do Grande Ninho e aproximação de uma concep-
ção plana167 de universo, composto basicamente de matéria ou, como vis-
to pela analogia a formulação einsteiniana e conceitos dicionarizados:
matéria e energia.

O colapso do Grande Ninho pela modernidade foi verificado por vários


pensadores e caracterizado por várias frases que se tornaram famosas,
por exemplo: “desencanto do mundo”, de Max Weber ou “Deus está mor-
to”, de Nietzsche. Os níveis hierárquicos planificaram-se, ou seja, fica-
ram sem profundidade, com o descarte sumário dos estágios superiores,
supramentais, “transracionais”, espirituais ou conscienciais, fato que ou-
torgou uma coloração preta e branca e um sabor insosso a um mundo
igualitariamente “rochoso”168 e reduzido a um amontoado de átomos ran-
domicamente relacionados.

O ataque moderno ao Grande Ninho do Ser pode ser visto por sua face
sombria, quando esmaga a diversidade multidimensional contra a pa-
rede, sobrando apenas um universo unidimensional169 e sem significado
transcendente que, particularmente, considero desinteressante. A despei-
to do prisma negativo da modernidade, reconheço e enalteço inúmeros
aspectos solares e edificantes deste período marcado pelo surgimento e
fortalecimento das linhas de produção industriais e até certo ponto ideo-

167 Wilber utiliza a expressão flatland (terra plana ou “planura”), de difícil tradução que repre-
sente a amplitude de seu significado.
168 Rochoso: no sentido de material.
169 No sentido de conceber apenas a dimensão material.

105
Capítulo 6 • Primeiro elemento: níveis

logicamente libertário, com bandeiras que Wilber lista de forma compe-


tente e satisfatória em sua obra,170 a saber: democracia liberal; ideias con-
trárias à discriminação; liberdade como valor; justiça como meta; fim da
escravidão; emancipação da mulher e direitos universais da humanidade,
além de incríveis avanços em todos os setores, oriundos dos fantásticos
incrementos tecnológicos.

O grande marco assistencial moderno foi a distinção entre arte, religião e


ciência e consequente ruptura da nefasta fusão pré-moderna, onde a esfe-
ra da moral religiosa tudo comandava tiranicamente, o que liberou os fu-
turos Galileus para olharem livremente por seus telescópios, independente
das “verdades” impostas por pretensos representantes divinos, com seus
dogmas bizarros em que o Sol giraria em torno da Terra. Esta diferenciação
simples rompeu os grilhões ilegitimamente impostos aos cientistas, pou-
pou a humanidade de muito sofrimento, salvou vidas e permitiu avanços
que seriam impensáveis na Idade Média. Mas será que podemos brindar a
modernidade? Bem... temos um problema moderno. A planura ou achata-
mento “científico” das dimensões do Grande Ninho ao plano material, sem
a possibilidade de observá-lo com os três “olhos” do conhecimento, des-
viou a visão dos cientistas, que passaram a ignorar os desafios associati-
vos multidimensionais.

Grande Ninho e os três olhos


Antes da apresentação das conexões entre o Grande Ninho (Quadro 6.3)
e os três olhos do saber, exporei uma fundamental classificação wilbe-
riana, cujo referencial está na atual predominância humana do nível de
consciência racional e típico do olho da mente. Na esteira de outros auto-
res que assim fizeram, Wilber nominou o nível lógico-racional como “pes-
soal” e classificou tudo que está abaixo e acima pelos termos “pré-pessoal”
e “transpessoal”. Nesta abordagem, considero interessante a associação,
pelo prisma da Filosofia Integral, entre os elementos clássicos do Grande
Ninho do Ser, os três olhos do saber e a classificação que partirá do refe-
rencial humano (pessoal) para seus estágios “pré” e “transpessoal”.

170 WILBER, Ken. A união da alma e dos sentidos. Cultrix: 2001, p. 17.

106
Capítulo 6 • Primeiro elemento: níveis

Quadro 6.3
Conexões entre o Grande Ninho do Ser, a classificação wilberiana e
os três olhos do saber de São Boaventura

Grande Ninho do Ser Classificação wilberiana Olhos do saber


Matéria Pré-pessoal Olho da carne171
Vida Pré-pessoal Olho da carne
Mente Pessoal Olho da mente
Alma Transpessoal Olho do espírito172
Espírito Transpessoal Olho do espírito173

Parece que todos os níveis apontados têm consciência de algo, do átomo


– que mantém sua unidade – aos demais processos dos reinos mineral e ve-
getal, até os estágios mentais e espirituais mais complexos. Nessa aperta-
díssima síntese da integração dos conceitos, expus as conexões entre os três
olhos do saber propostos por São Boaventura e o Grande Ninho das tradi-
ções milenares, em níveis crescentes de expansão da consciência, o que nos
indica um caminho espiritual a seguir, da visão mais restrita à cosmovisão,
com diversas gradações dessa crescente amplitude. Em suma, endosso que
a hierarquia evolutiva inserida no Grande Ninho do Ser foi a grande contri-
buição da pré-modernidade em termos de conhecimentos transcendentes
e, se validarmos tal proposição hierárquica como verdadeira, restar-nos-á
a pergunta: como transitar pelos caminhos desse Ninho?

Como percorrer o caminho?


Depreendi das obras wilberianas que, ao longo da história, as grandes e mile-
nares tradições religiosas propuseram duas possibilidades para transitar pelo
Grande Ninho:174 os caminhos ascendente e descendente. Analisei e resumi essa
proposta no Quadro 6.4, no qual transcrevi e acrescentei diversas representa-
ções das respectivas jornadas que não pertencem à jurisdição consciencioló-
gica. Esta preferirá abordagem própria que investigaremos oportunamente.

171 Olho da carne no nível da matéria: restringe-se à interação material, aumentando signifi-
cativamente na jurisdição da vida, conforme as características específicas de cada espécie.
172 Equivaleria aos “olhos” do psicossoma, no linguajar conscienciológico?
173 Equivaleria aos “olhos” do mentalsoma ou da própria Consciência, no linguajar conscien-
ciológico?
174 WILBER, Ken. Uma breve história do Universo. Via Optima: 2004, p. 29-32; 290-301.

107
Capítulo 6 • Primeiro elemento: níveis

Quadro 6.4
Síntese comparativa entre os caminhos ascendente e descendente

Caminho ascendente Caminho descendente


Abstrato Concreto
Busca do Deus transcendente Busca do Deus imanente
Conectado ao “outro” mundo Conectado a “este” mundo
Conectado ao masculino Conectado ao feminino
Divindade invisível Divindade visível e sensível (Terra, Natureza)
Eros (transcendência) Ágape (imanência)
Glorifica o “todo” Glorifica a “parte”
Imaterial Material
Monástico e casto Celebra os sentidos e a sexualidade
Representações: dia, sol, luz Representações: noite, lua, escuridão
Senda da sabedoria (Prajna) Senda da compaixão (Karuna)
Teórico Prático
Transcendência pela renúncia ao prazer Transcendência pelo prazer
Vazio Forma
Yang Yin

Prescinde de esforços hercúleos, mormente após insistente crítica à ex-


pressão excludente “isso versus aquilo”, que a integração harmônica destes
caminhos é a solução proposta por Wilber que, entre estudos de Platão,
Plotino e Whitehead, concluiu pela direção “não dual”, proporcionando-
-me cinco elucubrações:
1. Todo e parte são “não duais”.
2. Vazio e forma são “não duais”.
3. Yin e Yang são “não duais”.
4. O hermetismo dimensional é ilusório.
5. “Este” e o “outro” mundo são experiências “não duais”.

Patologias “ascendentes”
O trânsito religioso pelo Grande Ninho, classificado como “ascendente e
descendente”, poderá tornar-se patológico, como demonstra toda a histó-
ria humana, que adotou uma flagrante visão maniqueísta ao considerar “o
outro” como nefasto e ameaçador. Pode-se apontar a Idade Média como o

108
Capítulo 6 • Primeiro elemento: níveis

período emblemático das virtudes e patologias ascendentes, onde o mun-


do seria impuro e o êxtase apenas possível na dimensão espiritual. Wilber
aponta certos exageros que culminaram no puritanismo monástico e as-
cético, além de considerar pecaminosos o corpo, a carne e o sexo. Foram
tempos de grandes virtudes filosóficas, mas também de severas restrições às
mulheres, impregnando-as de culpa. Outro aspecto comumente lembrado
como negativo foram as torturas e eliminação de seres humanos e animais
considerados, respectivamente, praticantes e objetos de bruxaria.175

A origem do “pecado”, no caminho ascendente, de alguma forma foi co-


nectado à mulher, à sensualidade, à feminilidade e ao corpo, além de trazer
como consequência a formatação de tabus e perversos costumes. Para a
espiritualidade “ascendente”, os “descensos” são considerados “o mal” e a
salvação estaria em algum lugar distante do mundo das formas. Impres-
sionante depoimento e compilação de textos reveladores da dominação
masculina do caminho religioso ascendente pode ser extraído da obra de
Jackeline Bittencourt de Lima,176 em capítulo intitulado Domínio e Poder, no
qual analisa o simbolismo da virgindade de Maria, entre outras passagens
que a autora considerou problemática. Após a constatação dos ataques à
espiritualidade “ascendente”, restou-me verificar se o caminho “descen-
dente” também sofrera críticas.

Reação “descendente”
O movimento renascentista 177 e seus valores humanistas e naturalistas res-
gataram uma espécie de reação ao caminho ascendente pela ideia da na-
tureza como única realidade, a dimensão material como um local a ser
desfrutado e o retorno do homem aos holofotes. Alguns desses postulados

175 Perseguição e morte de gatos na baixa Idade Média por crendices religiosas que adjetivo,
na melhor das hipóteses, de infames. O resultado foi o aumento da população de ratos e dis-
seminação da chamada “peste negra”, no século XIV, e mortes humanas em escala epidêmica.
176 Jackeline Bittencourt LIMA, Maternidade e antimaternidade lúcida: a escolha é sua, 2009,
pp. 53-63.
177 Renascimento, Renascença ou Renascentismo são termos usados para significar o perío-
do europeu entre os séculos XIV e XVI, que representa o desgaste e final da Idade Média e
início da Idade Moderna. O período foi caracterizado pela transição do feudalismo para o ca-
pitalismo e ruptura com a espiritualidade ascendente medieval. O termo renascimento, nes-
te contexto, refere-se a redescoberta e revalorização das referências culturais da antiguidade
clássica e baseia-se em uma série de intricados valores: neoplatonismo, antropocentrismo,
hedonismo, racionalismo, otimismo e individualismo. Digno de nota seu precursor Petrarca e
escritos de Pico della Mirandola e Thomas More.

109
Capítulo 6 • Primeiro elemento: níveis

foram posteriormente adaptados ao Iluminismo,178 como o caso da visão


antropocentrista e racionalista de mundo, que também contribuiu para o
distanciamento ideológico do Grande Ninho, via materialismo científico,
vertentes e pressupostos que geraram o “domínio do ego” através de mar-
cante individualismo refratário a qualquer modalidade de autoritarismo
proveniente da Igreja e do Estado.

O Romantismo179 e seu “domínio do eco”,180 por sua vez, atribuiria uma ca-
racterística de “pureza e nobreza” da natureza, traduzido no mito do selva-
gem nobre, além da celebração dos sentidos, da sexualidade e do conceito
de Gaia como a “mãe Terra”, que extirparia cirurgicamente a espiritualidade
ascendente de seus postulados ideológicos para, atrapalhadamente, outorgar
à humanidade algumas tentativas inconsistentes e frustradas de estabeleci-
mento de um altruísmo descendente através de simulacros de “divindades lai-
cas”, como o marxismo, o estadismo, o materialismo, o intervencionismo e
as “ecofilosofias”, sempre em busca da perfeição do mundo das formas, das
relações humanas, do planeta Terra ou da imanência da mãe natureza. O
grande inimigo, considerado agora como “o mal”, passou a ser a “ascensão”
e toda sua estrutura hierarquizada, fato que desembocou na expressão wil-
beriana flatland ou na planície material e consequente falácia romântica de
que “todos somos iguais” e merecedores do mesmo quinhão dos bens da vida.

Abandonou-se a frase “Deus proverá”,181 mas o romantismo descendente pa-


rece ter edificado altares aos novos provedores governamentais e pronun-
ciamento dos novos mantras “o Estado proverá” ou “mãe Gaia proverá”,

178 Iluminismo foi um movimento amplo, filosófico, político, social, econômico e cultural,
que edificou sólidos valores em torno da razão, da liberdade, da autonomia e da emancipação
do indivíduo. A despeito de algumas divergências, boa parte dos acadêmicos considera seu
início no século XVIII e sua conhecida denominação de “século das luzes” e pode ser identifi-
cado pela recomendação de Immanuel Kant: “sapere aude” ou ouse saber, a fim de alforriar a
humanidade de uma perniciosa tutela estagnadora.
179 Romantismo foi um movimento artístico, político e filosófico iniciado nas décadas finais
do século XVIII, favorável a um nacionalismo que consolidou os estados nacionais europeus.
Considerado por alguns como uma reação ao racionalismo iluminista, o que culminou numa
visão de mundo idealista, lírica, poética, ligada ao sonho, à fantasia, à valorização da criativi-
dade do indivíduo, ao subjetivo, à saudade de um passado perdido, ao sentimentalismo exa-
cerbado, aos ideais utópicos e desejos de escapismos. Considero Jean-Jacques Rousseau e suas
premissas românticas como precursores de muitos equívocos ideológicos em movimentos
que foram posteriormente chamados de “progressistas”.
180 “Eco”, em referência a ecologia ou ecológico.
181 Reducionismo oriundo da exclusão da responsabilidade individual neste processo.

110
Capítulo 6 • Primeiro elemento: níveis

em ramificações de um mesmo tronco comum, em flagrante carência ati-


tudinal que desemboca numa indesejada dependência externa,182 ao invés
do foco na autonomia ou local de controle interno183 da personalidade, onde
o meio é um dos fatores e não o único.

Do velho ao novo sagrado e suas conexões políticas184 e culturais,185 Wilber


verificou incompletudes de ambos os lados, de um abuso hierárquico “as-
cendente” para uma nefasta e irreal uniformidade da senda “descendente”,
ambas autoritárias. Toda a contracultura e falácias do retorno romântico
ao primitivo estado natural de “pureza” cultuou uma espécie de imposição
forjada de uma falsa equiparação entre seres desiguais, em flagrante acha-
tamento da multiplicidade dos níveis de consciência.

Em resumo, ambas as trilhas parecem-me desequilibradas, em alternância


do culto excessivo da hierarquia individual ao ainda mais problemático
nivelamento social anti-hierárquico e coletivista, que apenas desestimulou
iniciativas, empobreceu nações em nome do social e transformou a rique-
za das diferenças personalíssimas numa massa genuflexória impensante e
fanatizada pelas novas divindades laicas, motivo pelo qual ousarei ante-
ver que enquanto não houver flexibilidade para a compreensão que social
e individual (todo e parte) são igualmente relevantes,186 continuaremos nessa
claudicante oscilação entre uma selvageria individualista no estilo “salve-
-se quem puder” e uma injustiça tirânica e coletivista sob a ingênua e fala-
ciosa bandeira do “tudo pelo social”.

Diante de tais argumentos e apesar de minha predileção pelo caminho as-


cendente, pondero a hipótese de certas sincronicidades entre os caminhos
espirituais descendente e ascendente – ambos regidos por leis transcen-
dentes, universais, naturais e imutáveis que regem nosso imenso universo
e suas dimensões (lei da atração, causa e efeito etc.) – influenciarem aspec-

182 Desde a dependência externa ascendente (Deus) até a descendente (Estado ou Natureza).
183 Característica do indivíduo maduro, que não reivindica suas demandas de alguma en-
tidade externa (Deus, governo, classe social ou qualquer figura associada a um grande “pai
protetor”), nem delega seu destino ao sabor aleatório de uma sorte determinista, mas se con-
centra em seu esforço pessoal, competência, criatividade, perseverança e autoevolução.
184 Da chamada “direita” para a “esquerda”.
185 Da frase “Deus proverá” para sua substituta laica e igualmente imatura “o Estado proverá”,
versão que em linguagem liberal é chamada, a meu ver corretamente, de “Estado-Babá”.
186 O indivíduo não é meio sacrificável pelo todo e vice-versa. Meritocracia como valor social.

111
Capítulo 6 • Primeiro elemento: níveis

tos sociais e individuais por uma miríade de conexões atitudinais, energé-


ticas, emocionais, mentais e espirituais.

Solução integrativa
Abundam críticas da Conscienciologia e de muitos indivíduos às religiões,
a maioria de fácil alinhamento com as restrições que acabo de registrar,
depreendidas da obra wilberiana. Apesar de alguns pontos de contato no
tocante às críticas à determinados aspectos religiosos, a vertente integral di-
fere da conscienciológica em relação ao tratamento dos problemas identifi-
cados, consoante o Quadro 6.5, que sintetiza afinidades e dissonâncias entre
os postulados integral e conscienciológico em relação ao problema religioso.

Quadro 6.5
Identificação do problema religioso pela Conscienciologia e pela
Filosofia Integral e respectivas soluções

Identificação do problema religioso Soluções


Caminho pelo método vivencial
Conscienciologia:
Ruptura com qualquer caminho religioso
x religião como dogma
Generalização do contexto religioso como imaturo
x sectarismo religioso
Uma nova alternativa transcendente pela ciência
x terceirização das escolhas existenciais
Descrença nos caminhos religiosos
x verdades religiosas absolutas
Ampliar a ciência para os aspectos transcendentes
Caminho por outro nível religioso (vivencial187)
Integração pelo caminho “não dual”
Filosofia Integral:
Diferenciação de estágios imaturos e avançados188
x patologias do caminho ascendente
Um nova alternativa transcendente pela religião
x patologias do caminho descendente
Proposta de união pelos valores sadios
Ampliar a ciência para aspectos transcendentes189

187 O caminho vivencial, em linguagem wilberiana, é chamado de religião esotérica (com “s”),
diferentemente da Conscienciologia, para quem o termo vem de esoterismo, que representa “dou-
trina antiga ou atitude de espírito antiquada que preconizava reservar-se o ensinamento da verda-
de (científica, filosófica ou religiosa) a número restrito e fechado de pessoas escolhidas, em geral
através de iniciações limitadas e secretas” (VIEIRA, Waldo. Projeciologia. Editares: 2019, p. 59).
188 Wilber diferencia religião exotérica (não vivencial) da esotérica (vivencial). Também clas-
sifica em: 1. Religiões “Translativas”, repletas de mitos, histórias, rituais e dogmas, e 2. Religiões
“Transformativas”, que visam transcender o ego pelo “olho do Espírito”, a partir da vivência de
estados transpessoais.
189 Neste item há interessante conexão.

112
Capítulo 6 • Primeiro elemento: níveis

O foco conceitual de aparente divergência ente Filosofia Integral e Cons-


cienciologia concentra-se no momento em que a primeira integra as reli-
giões em níveis qualitativos e a segunda abandona o contexto religioso por
completo. Interpreto a visão integral pelo prisma inovador ao estabelecer
quatro fases absolutamente distintas para o processo religioso:
1. Crença: certeza, dogma e proselitismo.
2. Razão: dúvidas, hipóteses, racionalidade e não-proselitismo.
3. Experiência: vivências de estados transpessoais.190
4. Adaptação estrutural: domínio ou permanência de um estado transpessoal.

A Conscienciologia propõe que, a partir da etapa vivencial, a jurisdição


religiosa perca sua legitimidade ou exclusividade. Dessa forma, o portador
da vivência estará credenciado ao descarte de qualquer crença religiosa
para adentrar ou, ao menos, tangenciar o universo científico. Neste diapa-
são, considerei as várias possibilidades classificatórias e proponho uma via
mais rigorosa para o enquadramento científico, com estruturas demons-
tradas pelo Quadro 6.6.

Quadro 6.6
Análise comparativa dos níveis de consciência, componente
atitudinal e enquadramento

Níveis Postura Enquadramento


Crença Dogmática Religião
Razão Lógica-racional-analítica Hipótese racional
Experiência Vivencial Hipótese filosófica
Adaptação estrutural Replicação exaustiva Hipótese científica
Análise crítica por comparação Replicação exaustiva e comparativa Ciência

O expoente conscienciológico que combate o dogmatismo religioso, além


da inclusão da transcendência humana na esfera da ciência, chama-se
Marcelo da Luz, ex-sacerdote católico e autor da polêmica obra “Onde
a religião termina?”. Marcelo é crítico das terceirizações das escolhas existen-
ciais,191 que considera típico de muitos ambientes religiosos. De minha par-

190 Maslow classificou tais vivências em: 1. Experiências de Pico; 2. Experiências de Platô.
191 Entrevistas, lançamento e palestra disponibilizadas no sítio: www.youtube.com/tvcom-
plexis.

113
Capítulo 6 • Primeiro elemento: níveis

te, eu prefiro direcionar a mesma crítica do autor Marcelo da Luz para o


nefasto pensamento político estatizante.

O citado autor Marcelo da Luz apontou uma série de problemas religiosos


e guerras existentes ao longo da história. Baseando-me na obra citada,192
elaborei o Quadro 6.7, onde são apontados sete conflitos com envolvimen-
to religioso (não iniciado pelos níveis religiosos mais elevados, acrescenta-
ria Wilber), e algumas de suas consequências.

Quadro 6.7
Marcantes eventos bélicos-religiosos: breve resumo e suma das
consequências principais

Evento Breve resumo Consequências


Guerra santa contra o Islã193

Emergência do orgulho cristão-europeu194


Primeira Cruzada Primeira de um total de oito
grandes expedições militares Retomada de Jerusalém pelos cristãos
(1095-1099) da Igreja Católica
Massacre de 30 mil muçulmanos e judeus

Incentivo à intolerância islâmica


Ataque a Constantinopla

Pilhagem e destruição de obras históricas


Quarta Cruzada Escolhido o Egito como
Derramamento de sangue
(1202-1204) primeiro alvo
“Vitória” islâmica

Agravamento da intolerância religiosa


Enquanto o papa Inocêncio III
planejava uma nova cruzada
para o Oriente e trabalhava
simultaneamente na cruzada Informações imprecisas
Cruzada das Crianças contra os cátaros e em outra
Suposta escravização das crianças
(1212) na Espanha, ocorreu, na
França e na Alemanha, o Supostos naufrágios com vítimas
movimento popular conhecido
como “Cruzada das Crianças”,
promovido por infantes

192 LUZ, Marcelo. Onde a religião termina? Editares: 2011, p. 357-372..


193 No final do século XI, o papa Alexandre II incentivou os príncipes cristãos a unirem-se
contra os “infieis” espanhois.
194 Instigado pelo fato de santuários cristãos na “Terra Santa”, especialmente a Igreja do Santo
Sepulcro em Jerusalém, estarem sob jurisdição islâmica.

114
Capítulo 6 • Primeiro elemento: níveis

Morte de 2 mil protestantes em Paris


Guerras religiosas Conflitos armados Massacre da “Noite de São Bartolomeu”
francesas protagonizados por
protestantes católicos Multiplicação das chacinas
(1562-1598)
Milhares de vítimas
Conflitos político-religiosos
ocorridos em solo alemão, por Invasão do Palácio de Praga195

Guerra dos 30 anos hostilidades entre católicos e Ampliação internacional do combate


protestantes, além de interesses
(1618 e 1648) políticos de Suécia e França, Milhares de mortos
posteriormente envolvendo Incalculável sofrimento
outros países
Confronto na Província de Guangxi
Sucessão de trágicos eventos
Revolta chinesa de na China, culminando com Ofensiva à capital sulista Nanjing
Taiping o desencadeamento do
Morte de 30 mil soldados (1853)
movimento religioso liderado
(1850-1864) por Hung Hsiu-ch’üan (1813- Massacre de milhares de civis
1864)
20 milhões de mortes contabilizadas
Um grupo de terroristas Festejo de grupos islâmicos
afiliados à rede Al-Qaeda
sequestrou quatro aviões, Milhares de mortos
Queda das Torres
Gêmeas rendeu as tripulações e desviou Reação de George W. Bush
suas rotas, atingindo os
(11 de setembro de alvos World Trade Center e o Reação de Barack Obama
2001) Pentágono, símbolos do poder Anúncio da morte de Osama Bin Laden
econômico, militar e político
estadunidense Reiteração do perigo fundamentalista

O quadro acima está longe de ser conclusivo e retrata apenas parte do


problema, motivo pelo qual compreendo as duas tentativas para evitar
derramamento de sangue, tanto a wilberiana como a conscienciológica.
Minha dúvida está em saber se alguma delas seria eficiente. E mais, como
evitar uma reação proporcional e contrária se a agressão vier de terceiro e contra
nossa vontade?

Como visto, a solução de Wilber aponta no sentido do acolhimento e in-


tegração harmônica dos caminhos “ascendente” e “descendente”. A Cons-
cienciologia, por sua vez, advoga uma extirpação cirúrgica das posturas
religiosas e ingresso do caminho transcendente pelo mundo científico.

195 No dia 23 de maio de 1618, a revoltada população invadiu o Palácio de Praga e atirou
três representantes do monarca pela janela. O fato foi apelidado de “Defenestração de Praga”,
estopim à eclosão da guerra (LUZ, Marcelo. Onde a religião termina? Editares: 2011, p. 367).

115
Capítulo 6 • Primeiro elemento: níveis

No Quadro 6.8, transcrevo alguns pontos de divergência entre Cons-


cienciologia e religião, majoritariamente mencionados na citada obra de
Marcelo da Luz:196

Quadro 6.8
Diferenças entre religião e Conscienciologia: aspectos apontados
por Marcelo da Luz

Religião197 Conscienciologia

Apontamentos externos 198


Apontamentos internos199

Consolação Esclarecimento

Crenças injustificadas Hipóteses justificadas

Dogmas, verdades absolutas e infalibilidade Verdades relativas de ponta

Investimento na emoção Investimento na razão

Manutenção da mitologia Aplicação da lógica

Neofobia200 Neofilia201

Oração, devoção, amuletos Domínio bioenergético

Pecados e acentuação da culpa Análise sistemática da consciência

Postura acusatória Autopesquisa

Prêmios ou castigos como motivação Autorresponsabilidade

Proselitismo Estímulo à pesquisa

Rituais Técnicas

Submissão à autoridade Afirmação da autonomia consciencial

Teocracia, totalitarismo e inquisições Afirmação da democracia plena

Vivência do sectarismo Afirmação do universalismo

196 LUZ, Marcelo. Onde a religião termina? Editares: 2011, p. 332.


197 Religião exotérica (no contexto integral).
198 Posso imaginar as ponderações wilberianas sobre este item, a fim de lembrar que os
apontamentos externos, na sua interpretação conceitual, consistem apenas na religião exoté-
rica, com “x”, pois a religião esotérica, com “s”, detém apontamentos internos.
199 Aqui reside uma diferença terminológica marcante entre Conscienciologia e Filosofia In-
tegral, pois Wilber interpreta tais apontamentos internos como típicos da religião esotérica,
enquanto o posicionamento conscienciológico os exclui da jurisdição religiosa.
200 Medo do novo.
201 Apreciação do novo.

116
Capítulo 6 • Primeiro elemento: níveis

De minha parte, reconheço a postura individual de religiosos absoluta-


mente abnegados, assistenciais e voltados ao bem, que reputo como exem-
plos vivos do pensamento wilberiano no sentido de apontar níveis eleva-
dos de seres que galgaram patamares evolutivos dignos de aplauso pelo
caminho religioso.202

Obviamente, o autor Marcelo da Luz possui pontos e críticas interessan-


tes, mas eu penso que não devamos generalizar. Vale dizer, da mesma for-
ma que temos valores maravilhosos de nascedouro religioso, temos proble-
mas com alguns níveis mais primitivos de consciência, que se utilizam do
fanatismo como instrumento de hostilidades, como retratado na biografia
de Ayaan Hirsi Ali.203

Falácia pré-trans
Trata-se de conceito fundamental para a compreensão de toda a estru-
tura da Filosofia Integral, cuja explicação didática pela linguagem escrita
partirá da compreensão dos três níveis básicos já abordados neste capí-
tulo: pré-pessoal, pessoal e transpessoal. O nível pessoal situa-se no compor-
tamento racional do ser humano ordinário, considerado o padrão Homo
sapiens pela concepção tradicional. Objetivarei facilitar o entendimento do
conceito pelo Quadro 6.9, por meio do qual relembro a associação do nível
pré-pessoal de consciência com a existência da matéria e da vida; o pes-
soal relaciona-se com os atributos mentais mais avançados, enquanto o
transpessoal vincula-se às vivências geradoras de padrões transcendentes
de consciência, para além da mente, e compreensão de que, em essência,
somos consciências.204

202 Possibilidade de passagens religiosas na holobiografia de Consciências em estágios avan-


çados.
203 Ayann Hirsi Ali é uma política holandesa conhecida por suas críticas em relação ao Islã.
Foi deputada na Câmara Baixa do parlamento holandês pelo Partido Liberal. Em 1976, seus
pais tiveram que fugir do país por oposição ao regime socialista local, sofreu infibulação do
clitóris aos cinco anos, em ultrajante cerimônia organizada pela avó, apesar da oposição de
seu pai à hedionda prática, além de outros tristes episódios “culturais” que vivenciou. Foi pres-
tigiada com o Prêmio Liberdade do Partido Liberal da Dinamarca por seu trabalho a favor da
liberdade de expressão e dos direitos das mulheres, mas não recebeu pessoalmente o prêmio
diante de ameaças de fundamentalistas; foi também galardoada em 2005 com o prêmio De-
mocracia do Partido Liberal da Suécia.
204 Consciência: aqui empregada no sentido utilizado pela Conscienciologia, como sinônimo
de self, espírito, alma e demais termos, dependendo do segmento em questão.

117
Capítulo 6 • Primeiro elemento: níveis

Quadro 6.9
Simplificação dos níveis de consciência e suas relações na visão
wilberiana

Níveis de consciência Lucidez sobre Ferramenta utilizada


Pré-pessoal Matéria Olho da carne
Pessoal Mente Olho da mente
Transpessoal Espírito Olho do espírito

Isso posto, relembraremos os dois tipos de falácias chamadas pré-trans, já


citados na introdução desta obra: a primeira, que nega a existência do ní-
vel transpessoal, típica do materialismo ou de alguns freudianos que con-
sideram qualquer legítima experiência transpessoal ou parapsíquica como
crendices infantis ou mistificações embusteiras, lamentavelmente exis-
tentes, mas sem que possamos generalizá-las; a segunda falácia, típica de
muitos integrantes de movimentos transpessoais, new age, românticos ou sócio-
-rousseaunianos, que suprimem os níveis pré-pessoais, ao confundir alguns
arquétipos, mitos, experiências ou fenômenos flagrantemente rústicos com
as situações de real transcendência em alto nível de desenvolvimento, den-
tro e fora das religiões (Quadro 6.10).

Quadro 6.10
Representação das falácias pré-trans 1 e 2, ambas reducionistas por
indevida exclusão de um nível de consciência

Níveis de consciência Falácia pré-trans n. 1 Falácia pré-trans n. 2


Pré-pessoal Aceitação Negação
Pessoal Aceitação Aceitação
Transpessoal Negação Aceitação

Como exemplo da falácia pré-trans 1, aprecio o próprio materialismo pre-


dominante na ciência ortodoxa que, majoritariamente, recusa a transcen-
dência, sequer como uma possibilidade a ser pesquisada, consubstanciada
numa negação peremptória de qualquer hipótese transpessoal.

Os exemplos da falácia pré-trans 2 abundam em alguns movimentos new


age, onde impera a inocente máxima de que “tudo é amor”, além do postu-

118
Capítulo 6 • Primeiro elemento: níveis

lado romântico atribuído a Jean-Jacques Rousseau, segundo o qual a volta


às origens seria um bom trajeto, em inocente validação da figura do nobre
selvagem, ou que o homem nasce puro e a sociedade o corrompe. Tal fa-
lácia figura como geradora do inoportuno repúdio à hierarquia evolutiva
e reduz todas as mazelas humanas aos aspectos mesológicos, em flagrante
descarte dos componentes tipicamente individuais.

Como muitos sabem, feliz ou infelizmente, nem tudo é amor, bom ou


saudável, pois existem problemas sociais e individuais nestas intrigantes
etapas evolutivas, algumas características em patamares mais evoluídos,
outras menos, em constante ligação com determinados talentos. Somos
bons com algumas coisas, excelentes em certos aspectos e menos hábeis
em outros, fato gerador do segundo elemento da Filosofia Integral: as
linhas de desenvolvimento.

119
120
Segundo elemento:
linhas
7

Continuaremos nossa jornada pelos cinco componentes da Filosofia In-


tegral, agora com foco específico no segundo elemento: linhas. Assim, no
presente capítulo, concentraremos nossos esforços na explicitação das li-
nhas ou correntes de desenvolvimento no universo wilberiano.

Importa destacar, a exemplo do que fiz anteriormente, que ampliarei a


mera análise do elemento em questão para aventurar-me nas eventuais
conexões entre conceitos wilberianos e os de outras vertentes do conheci-
mento humano, seguindo uma ordem lógica de exposição, que abrangerá
os seguintes subitens:
ƒ Espirais do desenvolvimento.
ƒ Conexões entre níveis e linhas.
ƒ Conexões entre níveis, linhas e contextos.
ƒ A linha de valores de Clare W. Graves.
ƒ As cores dos conflitos.
ƒ Processo 1-2-3.
ƒ Gerações e contextos.

O aspecto vivencial deste elemento foi bem exemplificado na obra wilbe-


riana pela frase: “sou ótimo em algumas coisas e nem tanto em outras...”.205
Os talentos individuais e predileções absolutamente personalíssimas são
os maiores exemplos em oposição ao nascimento de alguém na condição de

205 WILBER, Ken. A Visão Integral. Cultrix: 2010, p. 37.

121
Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

tabula rasa e representarão nossas escolhas e futuras vivências das diversas


linhas de desenvolvimento, seja pela inata habilidade em alguns aspectos,
seja pela dificuldade em outros.

O melhor quadro-resumo sobre o tema, após longa pesquisa, encontrei em


magistral curso ministrado por Raynsford, cuja síntese pode ser demons-
trada e relacionada com algumas linhas do desenvolvimento humano,
acrescidas das perguntas fundamentais para cada corrente e dos pesquisa-
dores que mais se destacaram nos respectivos estudos (Quadro 7.1).

Quadro 7.1
Conexão entre diversas linhas de desenvolvimento, a pergunta-
chave e o pesquisador respectivo

Linha Pergunta Pesquisador(es)


Identidade Quem sou eu? Loevinger
Cinestésica Como executar fisicamente? Gardner
Cognitiva Do que estou consciente? Piaget; Kegan
Emocional Como sinto isso? Daniel Goleman
Espiritual Qual a preocupação suprema? Fowler
Estética O que é atraente? Housen
Interpessoal Como devo interagir? Selman; Perry
Moral O que devo fazer? Kohlberg; Gilligan
Necessidades Do que necessito? Maslow

Espirais do desenvolvimento
Howard Gardner, nascido em 1943, é considerado um dos expoentes ho-
diernos das linhas de desenvolvimento da Consciência por sua teoria das
Inteligências Múltiplas, por meio da qual propôs nove dimensões ou linhas de
inteligência: linguística, musical, lógico-matemática, visual (espacial), cor-
poral-cinestésica, interpessoal, intrapessoal, naturalista e existencialista.

Em quase meio século após meu nascimento, jamais conheci indivíduos


com identidade absoluta frente às linhas de desenvolvimento humano.
Embora tenhamos características comuns, somos diferentes e ímpares
quando o assunto são nossos talentos e dificuldades em cada nível ou ativi-

122
Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

dade específica. Evidentemente, podemos identificar nossas particularida-


des de inúmeras maneiras, desde a inteligência cinestésica de fenômenos
do esporte como Pelé206 ou Roger Federer,207 até a facilidade linguística dos
poliglotas, a racionalidade e lógica de notáveis matemáticos ou a habilida-
de interpessoal e carisma de grandes comunicadores.

A Conscienciologia ofereceu-me excelente ferramenta na identificação


das linhas ou inteligências mais bem trabalhadas e de outras mais imaturas,
através da listagem de traços força ou talentos da personalidade pesquisa-
da, de um lado, e de traços fardos ou evolutivamente infantis da mesma, de
outro. Acrescentei a este trabalho uma técnica que desenvolvi a partir do
mapeamento dessas características em conexão com os diversos contextos
existenciais.

Apresentei-me como cobaia humana e exemplar de estudo em palestra


pública,208 para os que estiverem interessados na singularidade individual
demonstrada pela técnica da Autopesquisa Contextualizada, por mim desen-
volvida através da adaptação da listagem das avaliações dos traços da per-
sonalidade em determinados contextos. Constatei que tais características
podem oscilar entre diferentes ambientes e considerei incrível como dife-
rentes indivíduos podem avaliar-nos de forma tão distante, pois nossa per-
sona, pode ser lida – ou apresentar-se – com certa assimetria nos diversos
momentos e ambientes de nosso convívio, seja uma jurisdição profissional,
familiar, institucional, política, estudantil ou qualquer outra. Comprome-
to-me, ainda neste capítulo, a esclarecer esse tema com maior didática.

Conexões entre níveis e linhas


Haveria como integrar o primeiro elemento estudado no capítulo anterior (níveis)
com este segundo elemento (linhas), ora em evidência? Definitivamente, opto pela
resposta positiva. Os estágios ou níveis de desenvolvimento representam
marcos importantes no constructo evolutivo e originam-se não somente
da consciência de um nível, mas também da perspectiva de sua observação,
justamente onde as linhas de desenvolvimento entram em cena.

206 Edson Arantes do Nascimento, considerado o atleta do século XX, ícone futebolístico e
tricampeão mundial pela seleção brasileira.
207 Notável tenista suíço e um dos maiores recordistas de seu esporte.
208 Vide sítio eletrônico: www.youtube.com/tvcomplexis

123
Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

Existem inúmeras maneiras possíveis para a apresentação de uma crescen-


te evolução em níveis de consciência, algumas com três, outras com doze
etapas, dependendo do prisma abordado. A obra Espiritualidade Integral
contém ótimos exemplos,209 entre os quais figura a conexão com o cen-
trismo ético e com o sistema de chakras210 ou chacras211 e seus respectivos
níveis principais de consciência. O Quadro 7.2 é uma tentativa de facilitar
a minha própria compreensão e a do leitor, de uma possível integração
entre as linhas de desenvolvimento e seus diferentes sistemas de aferição e
os estágios crescentes de consciência.

Quadro 7.2
Sistemas de medição desenvolvidos pela espécie humana, com
diferentes níveis de consciência

Linhas de desenvolvimento Níveis de consciência


Indivíduo
Família
Bairro
Cidade
Estado
Alcance assistencial212 Nação
Continente
Planeta
Galáxia
Multidimensões
Universalismo
Pré-convencional
Convencional
Carol Gilligan213 (convenções)
Pós-convencional
Integral

209 WILBER, Ken. Espiritualidade Integral. Aleph: 2006, p. 17-21.


210 Chakras (com “k”): escrita tradicional.
211 Chacras (com “c”): escrita conscienciológica. Chacra é considerado um vórtice energético
ou um centro polarizador do intercâmbio bioenergético da Consciência com a própria dimen-
são energética e o ponto de conexão “interveicular” para a energização dos corpos físico, ener-
gético, emocional e mental. Aprofundarei este estudo no capítulo 12.
212 Considero impressionante a semelhança com o conceito da “Cidadania Multidimensio-
nal”, estudado pela Associação Internacional de Pesquisas da Conscienciologia (Assipec).
213 WILBER, Ken. Espiritualidade Integral. Aleph: 2006, p. 46.

124
Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

Egocêntrico
Etnocêntrico
Centrismo ético Globocêntrico
Cosmocêntrico
Kosmocêntrico
Modelo Conscienciológico Modelo oriental clássico
Sexochacra Cásico
Umbilicochacra Sexual
Esplenicochacra Umbilical
Teoria dos chacras
Cardiochacra Cardíaco
Laringochacra Laríngeo
Frontochacra Frontal
Coronochacra Coronário
Corpo
Espiritualidade Mente
Espírito
Arcaico
Mágico
Jean Gebser (cosmovisão) Mítico
Racional
Integrado
Soma
Energossoma
Lucidez sobre os VMC214
Psicossoma
(Conscienciologia)
Mentalsoma
Consciência215
Átomos
Moléculas
Células
Organização ou complexidade Tecidos
Órgãos
Sistemas
Organismos
Eu
Referência Nós
Todos nós

214 VMC: veículos de manifestação da Consciência. Utilizei a proposta da Conscienciologia na


transcrição dos respectivos veículos.
215 Tecnicamente, Consciência não é mero “veículo”, mas sim seu condutor.

125
Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

O Quadro 7.2 poderia ser enriquecido com inúmeras outras linhas de de-
senvolvimento e respectivos níveis ou gradações crescentes, em infinitas
conexões, mas como profilaxia da minha tendência excessivamente deta-
lhista e com receio da prolixidade, optei por reduzi-lo a ponto de apenas
apresentar alguns exemplos.

Com o objetivo de mais bem elucidar o tema e dirimir eventuais dúvidas


porventura ainda existentes, gostaria de acrescentar outros modelos com-
parativos entre os níveis e as linhas do desenvolvimento, o que faço com o
endosso de renomados pesquisadores (Quadro 7.3).

Quadro 7.3
Propositores, perspectivas e estruturas básicas

Propositor Perspectivas (linhas) Estruturas (níveis)

Desejo mágico

Punição-obediência

Hedonismo ingênuo

Respostas morais Aprovação dos outros


Kohlberg
Lei e ordem

Direitos individuais

Consciência individual

Universal-espiritual

Autista

Simbólico

Impulsivo inicial

Impulsivo

Autoprotetor
Identidades
Loevinger Conformista

Conformista consciente

Consciente

Individualista

Autônomo

Integrado

126
Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

Fisiológica

Segurança

Necessidades Pertencimento
Maslow
Autoestima

Autorealização

Autotranscendência
Material

Energética

Vieira 216
Multidimensionalidade Psicossomática

Mentalsomática

Consciencial

Wilber também concebe as estruturas básicas da consciência como níveis


de metabolismos específicos,217 cujo propósito seria o de digerir informações,
argumentação que, a meu ver, aponta para uma consistente conexão com o
postulado conscienciológico dos quatro veículos de manifestação da Cons-
ciência. O Quadro 7.4 procura explicitar essa fantástica similaridade.

Quadro 7.4
Metabolismos informacionais wilberianos e veículos de
manifestação da Consciência

Metabolismos informacionais wilberianos Postulado conscienciológico


Físico Soma
(englobado pelo anterior) Energossoma
Emocional Psicossoma
Mental Mentalsoma
Espiritual Consciência

Conexões entre níveis, linhas e contextos


A integração do primeiro elemento da Filosofia Integral (níveis) com este
segundo componente (linhas), desembocou no psicógrafo integral, devida-
mente representado na obra wilberiana.218 Tive a ousadia de incrementá-lo

216 Waldo Vieira: autor não tratado na obra wilberiana, até onde conheço (ano base 2014).
217 WILBER, Ken. Transformações da consciência. Cultrix: 2005, p. 29..
218 WILBER, Ken. A visão integral. Cultrix: 2010, p. 42.

127
Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

e acrescentei subdivisões contextuais ao modelo original, como poderá verifi-


car o leitor no Gráfico 7.1. Nele, cada grupo de colunas coloridas representa
um nível de inteligência aplicado a três contextos diferentes, por exemplo, o
azul ao contexto familiar, o vermelho ao profissional e verde ao desportivo.

Elaborei ainda, uma divisão gráfica em três níveis de consciência repre-


sentadas pelos números “1, 2 e 3”, que poderão abranger da imaturidade à
maturidade plena, cabendo ao pesquisador estabelecer seus próprios crité-
rios de avaliação em cada nível de cada contexto. Uma das possibilidades
de formulação desses critérios ou parâmetros de avaliação foi demonstra-
da pelos conceitos de “pré-pessoal, pessoal e transpessoal” e também por
classificações com referência no contexto social convencional, sob as de-
nominações “1. pré-convencional, 2. convencional e 3. pós-convencional”:

Psicógrafo integral contextualizado

3
Níveis de consciência

1
Emocional Cognitiva Moral Interpessoal
Inteligências múltiplas
(linhas de desenvolvimento)

Gráfico 7.1 – Conexão entre os níveis de Consciência e as linhas de desenvolvimento


(cada cor representa um contexto diferente para o mesmo traço de personalidade)

A linha de valores de Graves


Como visto, abundam linhas de desenvolvimento humano e muitas delas
foram satisfatoriamente estudadas e objeto de inúmeras pesquisas. Desne-
cessário justificar que esta obra não tem condão de aprofundar-se em todas
as linhas, mas tenho uma preferência pessoal por uma delas, justamente a
escala de valores proposta na década de 1960 pelo emérito professor es-

128
Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

tadunidense de psicologia Clare W. Graves, posteriormente desenvolvida


por Don Edward Beck e Christopher C. Cowan219 sob o título Dinâmica da
Espiral. Nesse trabalho, foram incorporadas importantes pesquisas, como
a do biólogo britânico Richard Dawkins e do psicólogo polaco-americano
Mihaly Csikszentmihalyi. Portanto, se inviável aprofundar-me em todas as
linhas de desenvolvimento, julgo oportuno explorar mais detalhadamente
os estágios progressivos dentro de, pelo menos, esta linha de valores por
mim escolhida para integrar a presente obra.

Uma configuração baseada em valores deverá levar em conta as condições


de vida frente a, pelo menos, quatro variáveis: tempo, seja com referência à
idade do indivíduo ou sua inserção em determinada época histórica; geo-
grafia, no sentido de verificação das condições físicas e climáticas; priorida-
des humanas, no tocante às necessidades, recursos e tecnologias disponíveis;
e cultura, frente às hierarquias sociais, posicionamento do indivíduo e do
grupo, etnia, linhagem, gênero e demais condições.

Beck e Cowan resgataram o conceito de “Meme”,220 de Dawkins e Csiks-


zentmihaly, além de agregarem a letra “v”, de “valores” ao vocábulo, ou
seja, “Vmeme”, cujo resultado representa um estágio de desenvolvimento
e significa um princípio organizador da existência humana que catalisa
agentes culturais, linguagem, crenças, arte, expressões religiosas e modelos
econômicos e atuam nas jurisdições individuais, organizacionais e sociais.
Confuso? Penso que tudo ficará mais claro ao adentrarmos definitivamente
nas etapas desta empolgante caminhada que nos levará a sucessivos des-
cobrimentos e novos despertares.

Após esta curta introdução, apresentarei a Dinâmica da Espiral ou Espiral do


Desenvolvimento da maneira clássica, ou seja, associando comportamentos
humanos distintos a determinadas cores, a saber: bege, púrpura, vermelho,
azul, laranja, verde, amarelo e turquesa. Todas elas representam caracte-
rísticas associadas ao comportamento típico, além do interessante e sedu-
tor postulado de que a humanidade, seja no plano individual ou coletivo,
trilha tais cores em ordem sequencial, inexistindo saltos de um nível para

219 Baseado em intenso trabalho de pesquisa na América do Norte e na África do Sul.


220 Meme: neologismo que define um elemento de uma cultura ou um sistema de compor-
tamento transmitido por processos não genéticos.

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Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

dois ou três acima, o que vale dizer que existe uma lógica evolutiva em ca-
madas sobrepostas. As informações deste item, em particular, possuem três
fontes principais: a obra Dinâmica da Espiral, de Beck e Cowan; Uma Teoria
de Tudo, de Wilber; e o referido curso de Raynsford.

Iniciaremos nossa fantástica jornada pelo nível bege, que representa a cor
das pradarias das savanas africanas, onde o instinto de sobrevivência é
imperativo e as prioridades concentram-se na busca pelo alimento, água,
abrigo, sexo e segurança, sendo a principal demanda a alimentação. Assim
surgiram as primeiras sociedades humanas, com formação de bandos há
cem mil anos, cujas características ainda se fazem presentes em nossa so-
ciedade, como nos exemplos a seguir: bebês recém-nascidos; povos primi-
tivos;221 portadores de Alzheimer avançado; pessoas mentalmente pertur-
badas; massas famintas; traumatizados de guerra; catástrofes como o caso
de Ruanda;222 estresse extremado e limites das condições de sobrevivência.

Superada a questão da sobrevivência, outras necessidades emergem e são


devidamente detectadas pela Dinâmica da Espiral, que estipula o próximo
nível na cor púrpura ou roxo, em simbolização dos chefes tribais. Neste
nível, a prioridade é a segurança e a harmonia, num mundo repleto de mis-
tério, bênçãos, maldições, feitiços e ancestrais bons e ruins, onde o temor
concentra-se em não despertar a ira de espíritos com poderes mágicos.
Existe a formação de tribos étnicas, pensamento animista, com foco nos
vínculos de parentesco e característica marcante de ser altamente influen-
ciável por lideranças carismáticas e entidades místicas.223

Bons exemplos desse nível abundam no mundo como: inocentes histórias


infantis contadas ao redor de uma fogueira; lindas lições do Ubuntu224 an-
cestral das tribos africanas; festividade haloween; mitos de origem estudados

221 Povos primitivos: romantizados pelo mito do bom selvagem.


222 O genocídio de Ruanda foi o assassinato em massa, em 1994, de centenas de milhares
de tutsis e políticos hutus moderados, por parte do governo Hutu, dominado sob a ideologia
Hutu Power, que dizimou aproximadamente 20% da população total do país.
223 Místico e Misticismo: aqui mencionados pelo significado de Beck e Cowan, também usado
na Conscienciologia. A Filosofia Integral utiliza o mesmo significante com outro significado.
224 Ubuntu: “sou quem sou, porque somos todos nós”.

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Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

por Joseph Campbell; infantis superstições;225 eliminação dos pecados pela


água batismal; etnocentrismo familiar; lendas ou fábulas; gangues ou torci-
das organizadas e crenças em poderes fantásticos de tótemes, amuletos, ta-
lismãs ou objetos.226 Certa vez vivenciei prazerosamente o ambiente lúdico
da fértil imaginação roxa ao visitar a cidade de Orlando-EUA e seus incrí-
veis parques temáticos. Certa noite, olhei para cima e parecia nevar, fato
gerador de estranheza e certa confusão, pois estava no estado da Flórida.227
Perguntei a um dos gentis policiais do parque se a neve era verdadeira ou
produzida artificialmente. A resposta foi fantasticamente roxa: você decide.

A fase de saída da jurisdição púrpura ou roxa nem sempre é tranquila. O


indivíduo mais maduro identifica as fraquezas existentes na liderança, seja
política, espiritual ou familiar. O descobrimento que papai e mamãe são
falíveis e que governantes e deuses do trovão não parecem tão poderosos
como antes, motivam um rotundo grito de independência contestatória,
tipicamente adolescente: eu existo!

Na sequência evolutiva dos níveis de consciência pela linha do desenvolvi-


mento dos valores pós-púrpura, encontramos a cor vermelha, que represen-
ta o aspecto sanguíneo das emoções “quentes” de um agente impulsivo, for-
te, desbravador, heroico, conquistador, poderoso, imediatista e explorador.
Note o leitor que não há juízo de valor nessas características, pois todas elas
podem apresentar-se pelo aspecto saudável ou patológico. Aliás, o indivíduo
vermelho saudável é divertido, criativo e suficientemente livre para explo-
rar e apreciar a vida ao máximo. O Vmeme vermelho despreza a fraqueza e
seu mundo assemelha-se a uma selva com seus predadores, onde o melhor
vencerá e desfrutará o aqui-e-agora da glória e do poder. Facilmente encon-
trado em admiráveis ídolos do esporte, mas também na carência ética de
personalidades populistas, na violência doméstica e urbana, no terrorismo,
nos jogos de vídeo em geral, no trote escolar, nas guerras, nos filmes com he-
róis épicos ou imposição pela força,228 nos movimentos políticos anárquicos

225 Pular sete ondas, bater na madeira, fazer o sinal da cruz antes da partida, apertos de mãos
secretos, espetáculos ritualizados, cerimônias de casamento ou acasalamento, trajes simbóli-
cos, consulta a horóscopos etc.
226 Estátuas santificadas, biscoitos da sorte, cruzes, cálices sagrados, anéis de casamento, me-
dalhas religiosas, pés de coelho, figas, ferraduras, o sino da liberdade etc.
227 Estado norte americano em que não ocorre a incidência de neve.
228 Estrelados por ícones vermelhos como Arnold Schwarzenegger Sylvester Stallone e Bruce Lee.

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Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

do MST,229 nos vilões do cinema 230 e dos filmes de James Bond, nas estrelas
selvagens do rock e, historicamente, no feudalismo e nos governos tirânicos.

Obviamente, todo esse ímpeto vermelho demanda por uma saudável or-
dem com hierarquia piramidal e força externa suficiente para bem cana-
lizá-lo e, não raro, aplacá-lo. Portanto, surge o determinado nível azul, cor
representante do firmamento, da ordem, da tradição, dos regramentos e
códigos de conduta que diferenciam o certo do errado, o legal do ilegal e o
legítimo do ilegítimo. A vida segue numa direção e para um propósito no
nível azul, com estabilidade social rígida, construção do caráter, unifor-
midade de pensamento, onde os valores podem e devem ter uma utilidade
positiva, como a obediência, o respeito, a honra, a fibra moral, a civilidade,
o sistema legislativo, a ética, a lealdade e a disciplina. Todavia, seu lado
sombrio está na excessiva preocupação com a cultura coletivista, mesmo à
custa de sacrifícios pessoais, cujo cume patológico poderá gerar fanatismo
ideológico, fundamentalismo, submissão irreflexiva, dogmatismo ou qual-
quer outro raciocínio maniqueísta e manipulador.

Nesse contexto, a liberdade para criar, enriquecer, agir, pensar e emergir


como diferente é restringida pela repressão política, culpa, medo ou castigo.
A jurisdição azul é fértil para o aparecimento de mártires, com os represen-
tantes do “mal” sendo castigados pelo sistema ou pelo agente opressor e sua
interpretação do “politicamente correto”. Tal atitude tem o intuito de coibir
a entidade combatida pela nova moda “político-espiritual”, seja ela a elite,
o povo judeu, a classe empresarial, a burguesia ou algum outro grupo eleito
emblemática e demagogicamente como “o vilão” a ser culpado. Encontram-
-se regimes e cidadãos azuis em sistemas diferentes e, não raro, considerados
opostos, como nos impérios, nas monarquias, nas aristocracias, nos regimes
fascistas, socialistas, comunistas e demais regimes totalitários;231 na América
puritana; nos códigos de conduta, nas relações parentais, nas forças armadas
e também entre policiais, juízes em geral, sindicalistas, escoteiros, maçons
e sistemas sustentados por religiosos ou partidos políticos, onde a questão
básica concentra-se na pergunta: é companheiro?232

229 MST: movimento dos trabalhadores sem terra.


230 O Poderoso Chefão (The Godfather).
231 Estrutura azul, que pode ser agravada por influências vermelhas.
232 Alusão ao linguajar político-brasileiro, mas a questão pode envolver outros contextos:
pertence à irmandade? É do nosso time?

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Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

Neste momento, imagine o extremo azul com seu lema “tudo no devido lu-
gar” e repleto de carga emocional em torno de seus “-ismos”,233 com impo-
sições enfadonhas para a glória do único “Caminho verdadeiro”, regras so-
ciais moralistas ou prescrições rígidas e inflexíveis, em que: os progenitores
decidem que profissão seus filhos devem seguir; supostos representantes
divinos decidem que prazeres podemos aceitar e o “Papai-Estado”,234 pa-
tologicamente azul, decide que seguro devemos fazer,235 qual tomada ou
adaptador devemos usar,236 quem deverá eventualmente julgar a nós e a si
mesmo,237 qual notícia devemos acessar na televisão ou no rádio238 e qual
o nível de melanina necessário para facilitar a entrada na universidade.239
Desagradável, injusto, monótono e tirânico? A resposta afirmativa demandará
um estágio superior que possa libertar o cidadão e a sociedade da menta-
lidade de rebanho e sua genuflexão ideológica à teocracia religiosa ou à
neodivindade laica estatal, que são faces opostas da mesma moeda azul.

Superada a patologia azul, estaremos diante da liberdade realizadora do


nível laranja, cor que representa o aço fundido numa fornalha industrial,
com posturas estrategistas, empreendedoras, arriscadas e focadas no indi-
víduo. O cidadão laranja é otimista, autoconfiante, independente, analítico,
racional, impaciente, ambicioso, competitivo, brilhante e joga para ganhar,
devidamente orientado por resultados. Definitivamente, busca conheci-
mento, autonomia, independência, sucesso e libertação a qualquer preço;
sua cosmovisão direciona-se para um mundo governado por leis naturais
que podem e devem ser investigadas, dominadas e controladas pelo saber
humano, além de possuir afeição pelo desenvolvimento industrial, científico
e tecnológico. Esse nível trouxe-nos situações altamente assistenciais como
os regimes democráticos, a abolição da escravidão e os incríveis avanços
eletrônicos. Pode ser encontrado em Wall Street, Avenida Paulista, nas obras

233 Fanatismos político-ideológicos: encontrados em vários segmentos com manuais rígi-


dos, como o comunismo, fascismo, nazismo, marxismo, estadismo, socialismo, coronelismo,
monarquismo e sistemas paternalistas em geral, que geralmente consideram “o outro” como
inimigo a ser combatido e palavras como “liberdade” e “meritocracia” como demônios laicos.
234 “Papai-Estado” ou “intervencionismo estatal”: expressão de cunho crítico à falta de auto-
nomia individual e sua dependência da esfera governamental como um grande pai protetor.
235 Seguro obrigatório para automóveis.
236 Norma 14.136 e portaria nº 19/2004 do INMETRO.
237 Nomeação dos ministros do Supremo Tribunal Federal pelo Presidente da República.
238 Sistema de concessão estatal.
239 Sistema de cotas raciais.

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Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

de Adam Smith240 e Ayn Rand,241 na economia competitiva de mercado,


no método científico positivista, na popularização da tecnologia, na nova
classe média, na emergência positiva do indivíduo, nos direitos e garantias
individuais, nos vendedores recordistas, no capitalismo,242 nos maníacos
por tecnologia, na moda, em ambientes estressantes de fervor competitivo
e onde houver consumo desenfreado, mesmo à custa de divórcios, úlceras e
ataques cardíacos. Afinal de contas, negócios são negócios.

O lado elogiável do próspero nível laranja prefere investir nas pessoas ao


invés de ofertar caridade e, como os demais, é extremamente assistencial e
resolve muitos problemas no nível antecessor, mas também cria novos de-
safios e patologias facilmente identificadas, como sua tendência consumis-
ta, materialista, vaidosa e excessivamente individualista, em padrões não
sustentáveis do ponto de vista ecológico e ambiental. Diante das tonalidades
sombrias do laranja, houve necessidade de desabrochar o nível verde há 150
anos, com a preocupação planetária, sensibilidade pluralista e ecológica.

Os indivíduos e posturas verdes são igualitários, simpáticos, criativos, coope-


rativos, amistosos, comunitários, humanistas, relativistas e mantêm repulsa
às hierarquias, rotulações e julgamentos. Seu lado sadio está na conscien-
tização do prazer da partilha espontânea (não mais pela imposição azul),
pois existem valores superiores e princípios morais muito além do sucesso
material alaranjado. Todavia, a faceta verde mais sombria está na excessiva
submissão ao “politicamente correto”, na falta de praticidade, nos intermi-
náveis diálogos sem objetividade e nas tentativas de decisões baseadas num
consenso utópico que, na maioria das vezes, inexiste. Costumo dizer, em
jocosa combinação de cores, que numa reunião verde, as pessoas laranjas
saem vermelhas. As virtudes e as patologias verdes são facilmente encontra-
das em movimentos como Green Peace, Ecovilas, instituições assistenciais e
indivíduos ligados à preservação da natureza e proteção ambiental.

A politização verde parece estar ligada a uma espécie de “socialismo light”


ou “capitalismo humanitário”, ao vegetarianismo, à utopia da bela canção
Imagine, de John Lennon, e no apoio sensível às causas justas e filantrópicas,

240 A Riqueza das Nações.


241 A Revolta de Atlas.
242 Capitalismo de livre mercado, iniciativa privada e laissez-faire.

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Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

tudo para o bem da comunidade e consciência do respeito à diversidade


cultural, desde que essa liberdade para ser diferente atenda aos interes-
ses verdes e de sua cosmovisão específica. Todavia, a crise verde inicia-se
pelo questionamento sobre os limites da tolerância e aceitação, onde tais
virtudes passam a tangenciar a permissividade nada educativa e uma con-
fusão onde a vítima iguala-se ao delinquente. Se todos formos iguais, Gandhi
poderia ser igualado a Hitler? A diferença entre eles poderia ser creditada apenas ao
meio ambiente? Será que todos os problemas podem ser reduzidos ao mal-encami-
nhamento social? Parece-me evidente que agentes externos têm expressiva
influência comportamental, mas considero imaturo o romântico mito do
selvagem nobre e credito boa parte – mérito ou demérito, ônus ou bônus – ao
componente interior, subjetivo, particular e personalíssimo do próprio in-
divíduo. A ingênua igualdade verde começa a ruir face à crueza da reali-
dade apresentada pelo cotidiano e seus noticiários, onde as certezas esver-
deadas começam a “amarelar”, não para distribuir estereótipos, mas sim
para compreender e identificar as necessidades assistenciais de cada cida-
dão, a partir do que haverá um fluxo que auxilie a todos indistintamente.
Nas palavras de Beck e Cowan: “aqueles que experimentaram o socialismo
na sua versão verde descobrem que também não é a resposta”.243

Na sequência de nossa escala evolutiva de valores e apesar do reconheci-


mento de muitos ao carinhoso Vmeme ligado ao verde das matas e flores-
tas, urge reconhecer sua romântica limitação anti-hierárquica, que nada
decide porque tem que partilhar sensivelmente todas as opiniões de to-
dos os seres, lembrando o slogan hippie “paz e amor” do final da década de
1960. Assim, com o objetivo de solucionar a indefinição verde e iniciar
uma nova ordem integrativa baseada no conhecimento e reconhecimen-
to das hierarquias que Beck e Cowan chamaram de “naturais” (prefiro o
termo meritocráticas), surge o “salto monumental”244 para o nível amarelo,
que lembra a abrangência solar, resgata o aspecto sadio da individualida-
de sufocada pelo grupo, harmoniza e sintoniza sistemas, mantém a solida-
riedade, espontaneidade e flexibilidade, sem genuflexão patológica às opi-
niões majoritárias, impróprias ou inoportunas, em flagrante priorização
da competência e funcionalidade. A individualidade amarela é respeitosa

243 BECK, Don Edward; COWAN, Christopher. Dinâmica da Espiral. Instituto Piaget: 1996, p. 333.
244 Salto monumental: expressão usada por Claire Graves para designar a passagem dos níveis
mais primários, chamados de “primeira ordem”, para os níveis integrais de “segunda ordem”.

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Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

ao coletivismo roxo, azul e verde e também ao individualismo vermelho


ou laranja, mas vai além deles, pois compreende, coopera e aprende com
os diferentes graus de maturidade e excelência personalíssima dos indiví-
duos, dos hólons, das gradações multidimensionais e da holarquia como um
todo, onde ocorre o resgate do Grande Ninho do Ser.

A autoridade amarela não é pleiteada pelo indivíduo que alcançou este ní-
vel, mas emerge natural e contextualmente, baseada em seus valores, méri-
to e maior vivência. Aqui, o “ganha-ganha” otimizado e sua liberdade pres-
cindem dos convencionalismos ou festividades sociais; não prejudicam
nem agridem o meio ambiente e conseguem discernir entre as verdades
parciais e equívocos de cada cosmovisão de primeiro nível, com as escolhas
do tipo “isso versus aquilo” dando lugar para ricos e pobres, mercado e esta-
do, público e privado, masculino e feminino e assim por diante; tudo muito
além da ingenuidade igualitária verde, do “perde-ganha” interesseiro la-
ranja ou do “altruísmo com dinheiro alheio” de boa parte do pensamento
político-ideológico atual, baseado na imposição patológica do azul.

Tentarei ousadamente ofertar um exemplo do fluxo amarelo para o tur-


quesa com alguns lampejos de inspirações desta própria obra, que preten-
de demonstrar, até onde minha cosmovisão conseguiu alcançar e apesar
das confessadas limitações pessoais, as conexões entre os vários sistemas,
ciências, filosofias, pensamentos e padrões de comportamento, entrelaçan-
do-os em jurisdições nas quais possam emergir produtos reciprocamente
assistenciais de todas as cores. Considero outro autor nestas condições:
Mihaly Csikszentmihalyi e sua obra com o “amarelado” título A descoberta
do fluxo – a psicologia do envolvimento com a vida cotidiana.

Se a funcionalidade é a tônica do Vmeme amarelo, a visão global integrati-


va e sinérgica em busca da causalidade universal emerge no nível seguinte
sob a cor turquesa,245 onde as conexões entre os níveis são compreendidas
em sua profundidade e vivências comunitárias, com identificações de pa-
drões assistenciais. O maestro turquesa produz acordes e não apenas notas
musicais, ou seja, mistura harmonicamente as diferenças sistêmicas numa
rede global universalista, na qual os elementos transformam-se em vibran-

245 Cor escolhida em alusão aos oceanos vistos do espaço.

136
Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

tes conexões muito além das excentricidades laranja, da ingenuidade verde


ou qualquer etapa pretérita. Os níveis pós-turquesa, seja o coral ou outra
cor que mais bem represente a próxima etapa desta dinâmica teia multi-
dimensional de interligações, certamente surgirá entre poucos habitantes
terrenos, talvez fadados à incompreensão em seu tempo. Todavia, para en-
tendermos melhor os elos evolutivos de valores até então estudados pela
humanidade, elaborei o Quadro 7.5, portador da minha interpretação das
conexões da Dinâmica da Espiral.

Quadro 7.5
Conexões entre os níveis, cores, palavras-chave, cosmovisões,
virtudes, deficiências e justificativas bélicas na Dinâmica da Espiral

Justificativa
Nível Cor Palavra-chave Cosmovisão Virtudes Fardo
bélica
Instintos
1 Bege Sobrevivência Instintiva Precariedade Subsistência
aguçados
Tradição
2 Púrpura Ancestralidade Tribal Grupal Superstição
ritualística
3 Vermelho Poder Egocêntrica Força Impulsividade Conquista
Nacionalismo
4 Azul Ordem Autoritária Organização Rigidez
heroico246
5 Laranja Racionalidade Estratégica Realização Ganância Novos mercados
Proteção dos
6 Verde Fraternidade Consensual Comunitário Indecisão
oprimidos
Macro-
7 Amarelo Fluidez Integrativa Flexibilidade Não belicista
sinergia
Identifica
8 Turquesa Conectividade Sinérgica Em estudo Não belicista
padrões

Inúmeros outros quadros possíveis abundam na obra de Beck e Cowan247


para uma infinidade de conexões entre os elementos dessa extraordinária
espiral. Selecionei correlações de minha preferência e adaptei ao meu pensa-
mento nos Quadros 7.6 e 7.7, focados na motivação para o trabalho, no com-
prometimento entre os cidadãos e na interpretação política de seus valores.

246 Divisão sadia entre “certo e errado”, porém seu desvio patológico poderá apresentar um et-
nocentrismo marcado pela divisão entre nós e eles (ricos versus pobres, capital versus trabalho,
classe trabalhadora versus elite, nacional versus estrangeiro, enfim, “isso versus aquilo”).
247 BECK, Don Edward; COWAN, Christopher. Dinâmica da Espiral. Instituto Piaget: 1996.

137
Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

Quadro 7.6
Conexões entre os níveis, cores, motivação laboral e laços pessoais

Cor Motivação laboral Laços interpessoais


Bege Evitar a fome Ligações em prol da sobrevivência
Púrpura Manter a família e organização tribal Casamento intergrupal e nepotismo como naturais
Vermelho Aumentar sua força Domínio pela liderança forte
O labor é um valor em si e um dever
Azul União pelo correto a fazer, consoante as regras
a cumprir
O labor objetiva competição,
Laranja Elo como atingimento de recompensas pessoais
crescimento e resultados
O labor para partilhar
Verde Respeito, aceitação e sentimento de uniformidade
voluntariamente o fruto social
Liberdade informacional,
Amarelo Adaptações meritocráticas personalíssimas
funcionalidade e competência
Turquesa O labor como significado da vida Laços espirituais e aproximação das Consciências

Quadro 7.7
Conexões entre os níveis, cores, interpretação política e respectivos
valores

Cor Política Valores políticos


Bege Não há conceito de governo Formação de bandos
Ditada pelos mais velhos e espíritos
Púrpura Formação de tribos e conselhos de clãs
ancestrais
O poder do povo é ditado pelo “grande
Vermelho Impérios armados, ditatoriais e autocráticos
chefe”
Justiça e lealdade para quem segue as Autoritário e aversão à tripartição do
Azul
regras Poder248
Iniciativa de livre mercado e direitos
Laranja Políticas pluralistas num jogo econômico
individuais
Compartilhamento de decisões em
Verde Comunitária, com foco nos direitos coletivos
democracia direta
Integração dos direitos individuais e
Amarelo Alinhamento dos fluxos meritocráticos249
coletivos
Macroadministração de todas as formas
Turquesa Redes mundiais conectadas
de vida

248 Casuística emblemática: condenação da cúpula petista pelo crime conhecido popular-
mente como “mensalão”, consistente na corrupção ativa dos agentes públicos do Poder Execu-
tivo para a compra de votos de integrantes do Poder Legislativo.
249 A compreensão da meritocracia como ferramenta do “ganha-ganha” cooperativo, assis-
tencial e voluntário é, a meu ver, a chave para diferenciar os níveis superiores e de segunda
ordem dos que ainda não conseguiram alcançar esse nível de consciência.

138
Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

Outra classificação importante na Dinâmica da Espiral é a que se refe-


re às estruturas de primeira e segunda ordem. Os Vmemes ou estágios de
primeiro nível abrangem a subsistência bege, os rituais púrpuras, os he-
roicos conquistadores vermelhos, a lealdade às tradições azuis, o sucesso
realizador laranja e a sensibilidade comunitária verde. Entretanto, existe
um marcante diferencial nos chamados estágios de segunda ordem, a par-
tir do Vmeme amarelo, justamente o momento da quebra paradigmática
dualista, segregada, bairrista ou separatista das camadas anteriores, onde
as conexões verdadeiramente tornam-se acessíveis à compreensão cons-
ciente, num abraço integral, pacifista, magno e funcional de toda a cadeia
assistencial, do mais primitivo ao mais evoluído. Emerge a cosmovisão
multidimensional de que tudo importa e todos são relevantes, mas sem a
ingênua padronização dos indivíduos, que cede espaço para as diferentes
perspectivas e valoração do alcance ético de cada cidadão. Nos sistemas
de segundo nível, ocorre um fluxo aberto, sistemático, flexível, rico em in-
formação e interativo, com o foco na competência, na funcionalidade e na
qualidade de cada ser.

Tudo bem até aqui? Espero que sim. Todavia, o leitor poderia questionar-me:
qual a utilidade e vantagem de uma visão de segundo nível? Estamos diante de
uma bela pergunta, cuja resposta retrata uma entusiástica capacidade as-
sistencial, pois, ao quebrar a barreira separatista de um nível para outro,
emerge a visão de que o nível seguinte contém justamente os componentes
amparadores, assistenciais e complementares do nível anterior ou de cos-
movisão mais restrita. Analogamente, poderíamos dizer que os elos dessa
corrente evolutiva estão todos, sem exceção, conectados numa gigantesca
teia cósmica multidimensional ou simplesmente kósmica, para utilizar o
linguajar pitagórico resgatado por Wilber.

Beck e Cowan outorgam-nos ainda um exemplo do que chamaram de


“Vmeme entrincheirado”,250 repleto de guardiões251 e mecanismos de defesa
do ego que defendem sua respectiva “univisão” como se fosse a cosmovi-
são máxima e última “verdade suprema”. Essa situação poderá exigir um
desenraizamento doloroso, como a transição de um azul burocrático, es-

250 BECK, Don Edward; COWAN, Christopher. Dinâmica da Espiral. Instituto Piaget: 1996, p. 58.
251 Guardiões: síndrome do justiceiro, que pretensamente pensa que sabe o que é melhor
para mim e para você e deseja impor-se “para o nosso bem”.

139
Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

tatizante e repleto de regras para a democracia de livre mercado laranja,


em continuidade evolutiva para uma responsabilidade verde, além do salto
amarelo para uma visualização da importância meritocrática de todos os
níveis em seus contextos evolutivos, onde a etapa seguinte, ao invés de des-
truir, transcende e integra a anterior.

Os estágios expressam-se por suas qualidades saudáveis ou patológicas.


Por exemplo, o mesmo Vmeme púrpura pode produzir maravilhosas his-
tórias de Júlio Verne e Walt Disney ou incitar um terror coletivo por mal-
dições; um Vmeme azul regrador poderá outorgar um edificante propósito
espiritual e ordenado para muitas vidas, mas também poderá escravizá-las
por fanatismo ideológico; a elogiada autonomia, independência e estraté-
gia do Vmeme laranja também poderá adoecer para a ganância a qualquer
preço; finalmente, a capacidade empática e comunitária verde poderá con-
taminar-se pela ingênua miopia igualitária, anti-hierárquica e incapacida-
de decisória.

No tocante aos Vmemes mais autoritários e mais libertários, Beck e Cowan


identificaram um padrão que Wilber julga questionável, mas que particu-
larmente considero interessante: “... as cores frescas são, regra geral, mais
autoritárias; as cores quentes mais flexíveis. A rigidez é alta no azul e no
verde. O dogmatismo passa do seu ponto mais alto no azul ao seu ponto
mais baixo no amarelo. A culpa vem à superfície no azul, desaparece no
laranja, volta a aparecer no verde e sumir no amarelo. As exigências de
liberdade estão no seu ponto mais elevado no vermelho, um tanto suaviza-
das na autonomia laranja e tornam-se uma individualidade imperturbável
e sadia no amarelo”.252

O ponto culminante de minha absoluta preferência está justamente no ní-


vel turquesa, onde a consciência de todas as entidades como sistemas com
padrões integrados é a tônica, mas o que realmente faz toda a diferença
para mim está na noção das ligações da inteligência humana coletiva, sem
abrir mão ou sacrificar as individualidades e genialidades personalíssimas.
Nesse nível de consciência, a individualidade não guerreia com a coletivida-
de, a responsabilidade acompanha a liberdade e as escolhas pessoais estão

252 BECK, Don Edward; COWAN, Christopher. Dinâmica da Espiral. Instituto Piaget: 1996, p. 97-98.

140
Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

em harmonia com o todo. A expressão “isso versus aquilo” resta totalmente


superada, para a emergência de um vultoso “isso e aquilo, eu e você, nós e
vós”, na mais colossal conexão de “tudo-com-tudo e todos-com-todos”, sem
a nefasta supressão da maior riqueza humana: a particularidade individual.

Da teoria ao aspecto prático, Beck e Cowan parecem orientar-nos no sen-


tido de que cidadãos púrpuras e vermelhos demandam uma autoridade
azul, cuja ordem será um solo fértil para empresas e empresários laran-
jas nascerem, que necessitarão de uma consciência verde para equilíbrio,
onde emergirá o indispensável maestro com sua batuta amarela para gerir
essa eclética e colorida orquestra, na qual será necessário identificar pa-
drões assistenciais turquesas. Todo esse caleidoscópio fará parte da minha
tentativa de simplificação didática no Quadro 7.8, onde procurei máxima
sintetização e exemplificação com filmes e músicas característicos.

Quadro 7.8
Conexões entre a síntese máxima de pensamentos, estruturas e
processos com filmes e músicas respectivas

Cor Pensamento Estrutura Processo Filme Música


Wake up and live, de
Bege Automático Faixas soltas Sobrevivência O Náufrago
Bob Marley
Pisca-pisca
Púrpura Animista Tribal Ancestral Avatar
estrelinha253
O Fortuna, de
Vermelho Egocêntrico Explorador Imperialista Átila, o Huno
Carmina Burana
A Lista de America First,
Azul Absolutista Piramidal Autoritário
Schindler marcha militar
O Dia Antes do You Can Get It If You
Laranja Racional Empreendedor Estratégico
Fim Really Want254
Uma Verdade Imagine, de John
Verde Relativista Comunitária Consensual
Inconveniente255 Lennon
Amarelo Sistemático Interativa Integrativo Gandhi O Peregrino, de Enya
Dinâmica da Orinoco Flow, de
Turquesa Holístico Universal Fluido
Espiral256 Enya

253 Canção popular.


254 Canção de Jimmy Cliff, onde o laranja poderá ser verificado a partir do título: Você pode
obtê-lo se você realmente quiser.
255 Dança com Lobos, estrelado por Kevin Costner, também contém uma moral verde.
256 Vídeo educativo disponível no portal Youtube.

141
Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

Em conclusão, terminaremos nossa jornada por essas fantásticas conexões


espiraladas com a lembrança dos autores Beck e Cowan,257 no sentido da
classificação das cosmovisões de primeiro nível – do bege ao verde – em que
impera a limitação do pensamento setorizado, no estilo “nós versus eles”. A
partir do Vmeme amarelo, este ranço belicista acaba e tudo passa a ser mais
claro, integral e reciprocamente assistencial, situação em que os cidadãos,
ainda que conectados fraternamente com tudo e todos, são respeitados em
sua individualidade e, portanto, dotados de livre-arbítrio para assumir ônus
e bônus de suas escolhas, ou seja: arcam com as consequências dos seus atos;
atuam como fornecedores de informação e não como supervisores do con-
teúdo; honram suas relações contratuais, independentemente de coerção;
articulam propostas que ultrapassam os interesses apenas do “seu” grupo;
entendem que as diferenças humanas são positivas; descartam o infantil ar-
gumento de que todos seríamos igualmente puros ou angelicais; respeitam
a meritocracia individual, que cumula os benefícios da Justiça258 e da funcio-
nalidade social;259 renunciam às falácias que simplificam os problemas sociais
em torno de raça, classe social, diferenças econômicas ou gênero; além de
conectarem construtivamente as pessoas, a tecnologia e os procedimentos
para, finalmente, reconhecerem padrões e colocarem ordem no caos, em
ambiente onde as pessoas possam exercer livremente suas aptidões em bus-
ca do florescimento e excelência de suas manifestações.

As cores dos conflitos


Farei uma enxuta análise de históricos litígios entre os valores da espiral do
desenvolvimento de primeiro nível, cuja ênfase hodierna está na transição
do azul para o nível laranja e, em alguns grupos, do verde para o amare-
lo. Iniciarei pela Inglaterra, em seu momento histórico de caos econômico
de um azul patológico, repleto de máfias sindicais estagnadoras e trava-
mento do país, que foi impactado (positivamente, sob minha perspectiva)
por Margaret Hilda Thatcher e sua política econômica de valores laranja.

257 BECK, Don Edward; COWAN, Christopher. Dinâmica da Espiral. Instituto Piaget: 1996, p. 161.
258 Grafei o termo “Justiça” com “J” maiúsculo para representar um significado muito além do
confronto “justiça individual versus justiça social”. A ideia é a de que temos apenas uma Justi-
ça, aquela que aponta para a emergência positiva da expressão harmônica “justiça individual
e social”. Sob esta ótica, uma pequena diferença na escrita trará gigantescas consequências
evolutivas.
259 Vale dizer, onde não há meritocracia, a sociedade simplesmente não funciona. Convido
qualquer indivíduo a trazer-me exemplos concretos que provem o oposto.

142
Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

Entre naturais erros e acertos de qualquer liderança, houve contundentes


ataques ao thatcherismo, inclusive com deselegantes manifestações de repú-
dio à Dama de Ferro após sua morte, fartamente noticiada pela imprensa
(ano base 2013). Penso que, acima de qualquer embate pessoal, as aquecidas
dissonâncias políticas representam descompassos clássicos entre uma ten-
dência controladora azul e um movimento industrial laranja, ambos com
suas virtudes e patologias específicas.

Outra conjuntura de enorme interesse mundial envolve o gigante chamado


China, uma nação de tradições milenares, economia com tendências laranja
e sistema político comunista azul, inclusive com tendências que, no ocidente,
chamaríamos de antidemocráticas, fatos merecedores de observação deta-
lhada por sua complexidade e magnitude. Ouso desejar que nossos parceiros
chineses, no futuro, avancem evolutivamente da desgastada tradição políti-
ca azul para as eficazes estruturas laranjas, cooperações verdes e, posterior-
mente, um sistema político fluido e meritocrático tipicamente amarelo.

Ao reler esses modelos históricos – o inglês e o chinês – o leitor pode-


ria pensar que o nível azul seja “o” grande vilão da evolução planetária.
Nada mais equivocado. Analisemos o caso do grave problema da violência
provocada por lideranças vermelhas sombrias, que, convém frisar, não es-
colhe classe social. Pois bem, a patologia vermelha demanda assistência
justamente dos valores azuis, que são incrivelmente úteis no contexto aver-
melhado. Encontramos princípios azuis entre religiosos, militares, sistema
judiciário, regras esportivas, patrióticas ou quaisquer outras atividades de
características homeostáticas em penitenciárias ou locais sujeitos a uma
violência descontrolada, onde o contexto azul representará positivo agen-
te de equilíbrio para toda a dinâmica da espiral.

O Brasil e a maioria dos países da América do Sul, vistos por minha óptica
política, sofrem historicamente de lideranças vermelhas e azuis extrema-
mente tirânicas, autoritárias e intenção nitidamente centralizadora, com
uma economia oscilante entre bandeiras azuis de um segregacionismo
sindical oriundo de um falido socialismo até um Capitalismo de Estado opor-
tunista e condenável, principalmente quando o comparamos ao seu primo
alaranjado mais evoluído chamado Capitalismo de Mercado, que também
está longe de ser uma panaceia salvacionista, mas apresenta-se historica-

143
Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

mente como a opção menos condenável e que apresentou melhores resul-


tados. Na condição de apreciador do liberalismo responsável e pragmático,
mantenho esperança na consolidação de uma estrutura de livre mercado
amarela,260 cuja saúde seja suficiente para manter boas instituições azuis
(ao invés de destruí-las) e consolidar parques industriais laranjas e uma só-
lida consciência ecológica verde em direção a novas lideranças turquesas.

Neste sobrevoo através dos momentos de transição azul para o laranja, a


Revolução Francesa também merece coloridas pinceladas. Uma população
com impulsos de uma revolta vermelha, sob a liderança de valores ilumi-
nistas laranjas e embriões verdes, derrubou o governo monárquico pato-
logicamente azul do rei Luís XVI. Todavia, com a queda da Bastilha (sím-
bolo azul da patologia monárquica), em 1789, a massa enfurecida, com
sangue vermelho nos olhos, guilhotinou representantes azuis integrantes
da monarquia, entre eles o próprio Luís XVI e sua esposa Maria Anto-
nieta, inclusive com o confisco dos bens da igreja, outro forte mecanismo
azul de contenção vermelha. Ao invés da transmutação da patologia azul
para seus aspectos sadios, optou-se por sua total extirpação e, diante disso,
a espiral desequilibrou-se com excessos avermelhados, contexto propício
para o aparecimento de uma outra liderança azulada ainda mais forte e,
frequentemente, com patologia agravada. O restante conta a história sobre
a ascensão ditatorial e militarista do general francês Napoleão Bonaparte.

Termino com a análise da nação mais poderosa do planeta, que desperta


polêmicas, admiradores, paixões e furiosos desafetos. Os Estados Unidos
da América possuem uma estrutura de valores políticos dividida em repu-
blicanos e democratas, ambos de economia laranja sedimentada em for-
tíssimas instituições azuis (forças armadas, polícia, religião, cultura patrió-
tica e esportes coletivos) e insipientes gotículas verdes.

Todavia, as abordagens republicana (chamada de conservadora) e demo-


crata (chamada de liberal,261 nos EUA) são diferentes nas propostas de solu-
ções para os problemas. Tive contato com pensadores que enfrentaram tal

260 Onde “não importa a cor do gato, desde que ele cace o rato” (provérbio chinês).
261 Liberal: termo com duplo significado. Nos EUA, os valores liberais estão à esquerda dos
republicanos. Na Europa e Brasil, o termo liberal está à direita dos partidos que governaram o
país nas últimas décadas.

144
Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

questão e vivenciaram a cultura estadunidense, especialmente Raynsford,


que, em meados de 2013, ofertou-me um exemplo que nunca mais esqueci
diante da polêmica postura em relação a um indivíduo desempregado, seja
por estar desprovido de ambiente que otimize a oferta de trabalho, seja
simplesmente por sua opção pessoal.

A política democrata, com maior afinidade para o que é conhecido no


Brasil como “esquerda progressista”, atuará neste caso outorgando-lhe be-
nefícios262 à custa do aumento da carga tributária pela oneração do gas-
to público, obviamente pago pelo cidadão contribuinte; por outro lado, a
política republicana, alinhada com a visão chamada de “direita conserva-
dora”, optará pela priorização da massa contribuinte em detrimento do
indivíduo. Qual é a mais “eficaz, moral ou justa”? São antagônicas perspectivas
de um mesmo problema, oriundas de diferenças sutis nas tonalidades de
uma mesma coloração, o que torna o problema da resolução de confli-
tos carente de um desprendimento da arrogância dos detentores da gran-
de panaceia ideológica que resolverá todos os problemas. Muito embora
adote postura pessoal conservadora no caso específico, reconheço que a
dicotomia oriunda de valores convencionalmente identificados com a des-
gastada expressão “direita versus esquerda” deva ser objeto de análises de-
sapaixonadas e com critérios lógicos e objetivos de avaliação. Aliás, fica a
provocação: quem tem medo da objetividade?

Processo 1-2-3
Inexiste melhor contexto para introduzir a observação sobre a dinâmica
da evolução ou como ocorre o processo evolutivo. Wilber simplificou ma-
gistralmente a questão pela nomenclatura “processo 1-2-3”, pois detectou
três etapas distintas e recorrentes nas interseções entre as diversas linhas e
os níveis de consciência, às quais chamou de “fulcros”. Em síntese, são ne-
cessários três passos bastante definidos para o surgimento da cosmovisão
transcendente: fusão, diferenciação e integração.

Esmiuçarei o “processo 1-2-3” e suas etapas diante da classificação entre


sadio e patológico. O processo sadio atravessará a primeira fase (fusão) pela
identificação e abertura mental para a ideia mais avançada que antes des-

262 No Brasil: seguro desemprego, saúde pública, bolsa família, sistema fundiário etc.

145
Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

conhecia ou resistia, obviamente seguido de curiosidades, estudo e desco-


bertas de novas possibilidades; a segunda fase (diferenciação), quando o
indivíduo compreende o funcionamento do nível em que atua, mas trans-
cende o padrão daquela suposta cosmovisão; finalmente, na terceira etapa
(integração), o navegante do Grande Ninho do Ser e seus níveis ou da espi-
ral de desenvolvimento de Claire W. Graves, procederá a inclusão daquele
pensamento que transcendeu. Portanto, o “processo 1-2-3” saudável im-
plicará em: identificação, transcendência e inclusão.

O processo patológico apresenta-se de forma diferente: ao invés de iden-


tificação poderá haver nefasta fixação aos valores ou à cosmovisão daquele
nível, fator estagnador e preocupante quando tendente ao discurso ideoló-
gico monotemático, típico da submissão clássica aos representantes religio-
sos ou às divindades laicas, como o deus “Estado-provedor” com tendências
tirânicas azuladas; o deus “dinheiro e poder” como um alaranjado fim em
si mesmo; finalmente, o esverdeado deus “natureza”. Gosto de relembrar,
quanto toco nestes temas polêmicos, que não sou contra o Estado, o dinheiro
ou a natureza, muito menos avesso ao livre mercado capitalista, mas deixo
claro que transformá-los em divindades ou panaceias cósmicas encontra a
patologia aqui denominada de fixação.263 Na segunda etapa (diferenciação),
enquanto o indivíduo saudável transcende, o patológico dissocia, muitas vezes
com veemente repúdio revolucionário, intensidade que apenas evidencia o
maior grau da sua patologia. Por fim, na terceira fase (integração), o indiví-
duo troca a saudável inclusão pela dolorida repressão. Difícil? Penso que sim.
Todavia, elaborei o Quadro 7.9 com todos os elementos acima discutidos,
medida que, espero, possa facilitar a compreensão do leitor.

Quadro 7.9
Síntese do “Processo 1-2-3” da evolução em suas versões saudável e
patológica

Dinâmica 1-2-3 da evolução Processo saudável Processo patológico


1. Fusão Identificação Fixação
2. Diferenciação Transcendência Dissociação
3. Integração Inclusão Repressão

263 Faço tal observação, mas destaco minha preferência pelo Mercado, em relação ao Estado.

146
Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

Gerações e contextos
A esta altura, o leitor deve ter notado que tentei simplificar, por meio de
quadros, as mais diversas conexões existentes entre os prismas da Filoso-
fia Integral, Dinâmica da Espiral e demais correntes/autores, medida que
entendo como facilitadora. Apesar das sínteses apresentadas, tais conexões
são complexas e merecem estudo também sob a óptica das influências me-
sológicas, sustentadas principalmente pelo contingente majoritário de uma
sociedade em determinado nível da escala de valores de Clare Graves, tam-
bém influenciada pelas diferentes condições da vida humana conforme a
época histórica, o lugar geográfico e os agentes climáticos e sociais. Lem-
bremos que tudo está conectado a tudo e um modelo dessas influências264
foi popularizado e por mim retratado no Quadro 7.10.

Quadro 7.10
Gerações: síntese conceitual e principais características

Geração Síntese conceitual Características

Baby Boom265 ou Baby Paridos no ambiente das décadas de 1960-1970,


Boomers entre rupturas educacionais tradicionalistas,
movimentos pelo amor livre e emancipação Idealistas
Nascidos na década feminina
de 1960 (alguns Receberam educação
consideram a partir da No Brasil, vivenciaram a ditadura militar; a rígida
década de 1950) constituição de 1988; abertura das importações,
Outorgam educação
sequestro das poupanças e impeachment da era
Viram as mudanças flexível
Collor; privatizações e controle inflacionário da
culturais de 1970 a era Fernando Henrique Cardoso e condenação Trabalho precoce
1980, por exemplo: a do mensalão, crescimento econômico mundial e
música “disco” escândalos de corrupção generalizada (era Lula)
Geração “X” Paridos com a popularização da televisão, Educação dialogada
Nascidos entre instalação da cultura consumista e posterior
crise econômica Superproteção
1966-1985
Apego tecnológico
Geração “Y” São os chamados “nativos digitais” pela explosão
tecnológica e extremamente hábeis com tais Foco mercadológico
Nascidos entre ferramentas. Os relativamente abastados Imediatismo
1985-1995 desfrutam de facilidades materiais
Alto nível cognitivo

264 Influências mesológicas: reforçadas por convenções sociais, tradições, costumes.


265 Explosão de bebês: referente ao aumento de natalidade pós-segunda Guerra Mundial.

147
Capítulo 7 • Segundo elemento: linhas

Rapidez
Paridos num mundo conectado à rede mundial
Geração “Z” de computadores e altamente influenciados Impaciência

Nascidos após 1995 por este veículo informacional. Considerados Multitarefas


superficiais, avaliação que julgo precipitada
“Antenados”

Relutei intimamente para inserir o quadro acima neste capítulo, mas deci-
di pela inclusão ao relembrar como as dificuldades culturais de uma épo-
ca podem turvar a visão dos guetos sociais e dos espaços mentais entrin-
cheirados ou, na terminologia de José Ortega y Gasset, do homem-massa.
A intenção desse quadro é convidar a todos para uma reflexão de nos-
sos contextos e sobre aquilo que nele representamos com nossas posturas,
acrescidas de todos os agravantes e atenuantes sociais que apenas o pró-
prio autopesquisador terá conhecimento suficiente para avaliar em toda
a sua grandeza e complexidade. Os contextos não devem sofrer a super-
valorização atual, mas também não podem ser ignorados na avaliação de
nosso componente atitudinal (ações e reações) nos diversos níveis desta
fantástica aventura evolutiva da Consciência.

Em audaciosa adaptação desses conceitos, permiti-me desenvolver, no


Capítulo 18, uma impactante técnica de mapeamento e avaliação contex-
tualizada do nosso nível de moralidade, sob o título Estágios do Desenvolvi-
mento Moral. Por ora, convidarei o leitor a outra empolgante aventura pelo
terceiro elemento da Filosofia Integral: os estados da consciência.

148
Terceiro elemento:
estados
8

Caro leitor, compartilho minha satisfação pelas reflexões anteriores e suas


empolgantes conexões, motivo pelo qual passaremos ao estudo atual com
essa contagiante energia. Destacarei e tecerei comentários sobre o curioso
terceiro elemento da Filosofia Integral, exposto como estado de consciência,
desde logo lançando uma primeira questão: como observamos a “realidade”?
Note que a resposta dependerá justamente do seu estado.

A orientação didática ora adotada seguirá a classificação tradicional em


inúmeros segmentos entre “estado natural” e “incomum”, no linguajar inte-
gral, ou “estados alterados”, na terminologia conscienciológica. Opto pela
linguagem integral neste contexto e distribuí as colunas de sustentabilidade
desse estudo em quatro subtópicos:
1. Estados naturais.
2. Estados incomuns.
3. Matriz Wilber-Combs.
4. A visão conscienciológica.

Como ocorre com todos os elementos da Filosofia Integral, o aspecto vi-


vencial dos estados pode ser observado neste exato momento. Ao escrever
estas linhas, manifesto-me no estado de vigília física 266 e espero que o leitor
assim esteja. Todavia, se a leitura estiver exaustiva ou o indivíduo cansado

266 Vigília é o estado desperto ou “acordado”. Presumo e espero que seja o estado atual do leitor.

149
Capítulo 8 • Terceiro elemento: estados

após um dia de trabalho intenso, haverá certa tendência ao devaneio267 ou


até ao sono, o que modificará radicalmente nossa percepção da realidade
ou, em digressão ainda mais contundente e transcendente, acessaremos
outras realidades, em possibilidades que oscilarão da vigília física ao sono
profundo, do misticismo à ciência, do patológico ao saudável, em macro
classificação bipolar: estados naturais ou incomuns.

Estados naturais de consciência


O primeiro esclarecimento sobre este terceiro componente do modelo
integral (estados) vincula-se a sua característica transitória, independente-
mente do nível de consciência no qual esteja o indivíduo em sua linha de
desenvolvimento. Os estados naturais são aqueles obtidos através da vigí-
lia física ordinária e também durante o sono, além dos chamados estados
meditativos, que são variações dos estados naturais que nos possibilitam
acessar domínios diversos, conhecidos na Filosofia Integral pelos seguintes
significantes: psíquico, sutil e causal (Quadro 8.1).

Quadro 8.1
Representação dos estados naturais

Estados naturais Domínios


Vigília Psíquico
Sonho Sutil
Sono profundo Causal

A tradição espiritual Vedanta, por exemplo, inclui mais dois estados ci-
tados por Wilber:268 “observação”269 (turiya) e “não dual”270 (turiyatita) para
um domínio também “não dual”, ou seja, de consciência da “unidade”, que
prefiro tratar como “conectividade”. Particularmente, encontro dificulda-
de em validar todas essas informações ou descrever o significado de cada
domínio, por sentida e confessada carência experimental dessas ricas e

267 Devaneio é o estado mental furtivo da realidade, geralmente por cansaço.


268 WILBER, Ken. Espiritualidade Integral. Aleph: 2006, p. 101..
269 Estado de observação: capacidade de observar ou presenciar todos os outros estados, por
exemplo, a capacidade de atenção ininterrupta no estado de vigília e a capacidade de ter um
sonho lúcido ou vívido (Ibid.).
270 Percepção “não dual”: onipresente, que vai além dos estados, para percebê-los como “to-
dos” os estados.

150
Capítulo 8 • Terceiro elemento: estados

intrigantes informações. O que posso refletir com segurança vivencial é


que o estado de consciência altera nossa realidade ou, pelo menos, nos-
sa percepção dessa realidade, além de ponderar sobre a lógica de grandes
pesquisadores como Abraham Harold Maslow, que estudou, entre outras
situações, as vias de acesso – voluntárias e involuntárias – aos domínios
psíquico, sutil e causal pelas chamadas experiências de pico.

Estados incomuns (ou alterados) de consciência


Os inúmeros estados ordinários e extraordinários de consciência estão far-
tamente tratados por inúmeros segmentos das grandes tradições místicas
e religiosas (misticismo cristão, hinduísmo Vedanta, budismo Vajrayana e
cabala judaica, entre outras). Primeiramente, abordarei o tema pela visão
integral para, posteriormente, tecer comentários sob a perspectiva cons-
cienciológica, tratando a mesma questão pelo prisma técnico, não ritualís-
tico, vivencial e pragmático. Seguem tipos de estados incomuns (alterados)
de consciência pela óptica wilberiana, sejam eles ocasionais, induzidos ou
desenvolvidos, cujo aprofundamento extrapola os objetivos desta obra:271
ƒ Estados meditativos.
ƒ Experiências de pico.
ƒ Experiências de quase-morte.272
ƒ Experiências fora do corpo.273
ƒ Experiências perinatais (estado puerperal).274
ƒ Hipnóticos.
ƒ Induzidos por drogas.
ƒ Induzidos por excessos físicos.275
ƒ Induzidos por respiração.276
ƒ Mediúnicos.
ƒ Percepções extra-sensoriais.
ƒ Retrocognições.277
ƒ Sonambúlicos.
ƒ Viagens xamânicas.

271 Indicação para aprofundamento: WILBER, Ken. Espiritualidade Integral. Aleph: 2006.
272 PARNIA, Sam. O que acontece quando morremos. Larousse: 2008.
273 Waldo VIEIRA, Projeciologia, 1999.
274 Pelas leis brasileiras, este estado chega a excluir a ilicitude de alguns atos.
275 Exemplo: superação do cansaço após um extremo esforço físico.
276 Exemplo: respiração holotrópica, proposta por Stanislav Grof.
277 ALEGRETTI, Wagner. Retrocognições. Iipic: 2000.

151
Capítulo 8 • Terceiro elemento: estados

No Quadro 8.2 explicito, em integração com a visão wilberiana, as cone-


xões entre algumas classificações de estados de consciência, seus fatores
indutivos e avaliação qualitativa dos resultados sob meu prisma pessoal,
obviamente em caráter meramente exemplificativo, face à infinidade de
subclasses e derivações.

Quadro 8.2
Comparação didática entre tipos, fatores indutivos e resultados dos
estados da consciência na visão wilberiana

Classificações dos estados278


Fatores indutivos279 Qualificação dos resultados
pela origem do fenômeno
Álcool
Alucinógenos280 Devastador, quando utilizado por
viciados incautos
Anestésicos
Raramente benéficos
Fatores exógenos Calmantes
Desaconselhável, sem a
Cocaína
assistência técnica de um médico
Danças especializado
Esforço extremo
Positivos, se houver compreensão,
Ioga
contexto e nível adequados para
Fatores endógenos
Prece tais práticas
(técnicas meditativas ou
Contemplação Negativos, se não houver preparo
oriundas de antigas tradições)
intelectual adequado e correta
Meditações diversas
interpretação das ocorrências
Prática sexual
Positivo, como regra
Experiências de pico Caminhar
Saudável, no equilíbrio
Ouvir boa música
OLVE281
Respiração holotrópica
Positivo, majoritariamente
Injunções específicas Técnicas projetivas
Saudável, como regra
Clarividência282
Técnicas respiratórias

278 WILBER, Ken. A Visão Integral. Cultrix: 2010, p. 28.


279 Listagem exemplificativa.
280 Exemplos: Ayahuasca e LSD.
281 OLVE: oscilação longitudinal voluntária das energias (TRIVELLATO, Nanci. Atributos Men-
suráveis da Técnica do Estado Vibracional. Journal of Conscientiology, IAC - International Aca-
demy of Consciousness. v. 11, n. 42, p.163, 2008).
282 MEDEIROS, Rodrigo. Clarividência: teoria e prática. Editares: 2012.

152
Capítulo 8 • Terceiro elemento: estados

Matriz Wilber-Combs
Essa matriz expôs uma fundamental diferença entre o desenvolvimento
dos estados de consciência (terceiro componente) e os estágios ou níveis de
desenvolvimento (primeiro componente). Vale mencionar que as tradi-
ções antigas, mormente as linhas orientais, são focadas justamente no
desenvolvimento de técnicas para o atingimento dos citados estados in-
comuns de consciência, fato que não é tão prestigiado pela modernidade
ocidental, mais ligada aos estágios de desenvolvimento, particularmente
no campo tecnológico. Diante disso, Ken Wilber e Allan Combs propu-
seram uma matriz com desenvolvimento horizontal para identificar os
estados de consciência e vertical para simbolizar os diferentes níveis ou
estágios (Figura 8.1).

Figura 8.1 – Representação da matriz Wilber-Combs, onde as linhas horizontais


representam os estados e as verticais, os níveis.

Pareceu-me confuso, no início, mas quando compreendi a profundidade


da matriz Wilber-Combs, percebi que indivíduos podem possuir grande
facilidade para atingir legítimas e fantásticas experiências em estados trans-
cendentes e dignos de pesquisa, porém essas pessoas interpretarão tais fe-
nômenos consoante seus respectivos níveis de consciência.

153
Capítulo 8 • Terceiro elemento: estados

Essas possíveis diferenças interpretativas não somente dificultam as pes-


quisas, como também criam obstáculos para uma solidez científica sobre
episódios humanos dessa categoria. Observei que interpretações equivoca-
das dos estados de consciência geraram guerras, mortes, sofrimento e outras
barbáries em torno dos desentendimentos conceituais ou ideológicos.283
Certamente não foi por acaso que, a partir de experiência vivencial, o pes-
quisador Marcelo da Luz propôs o termo “engano parapsíquico”, expressão
cunhada em seu corajoso e citado livro intitulado “Onde a religião termina?”

Urge uma compreensão coerente e profundo debate científico dos fe-


nômenos ainda desconhecidos da ciência dita convencional, sejam eles
oriundos das experiências de pico (na terminologia de Maslow), de estados
incomuns (Stanislav Grof), viagens astrais (linhas esotéricas), desdobra-
mentos (Racionalismo Cristão) ou de projeções da consciência (Projeciolo-
gia). Em suma, independentemente do estágio ou nível do indivíduo nas di-
versas linhas do saber humano, os estados avançados poderão ocorrer, mas
a interpretação de um mesmo fenômeno poderá alterar significativamente,
dependendo da sua cosmovisão, tudo ligado a inúmeros fatores culturais,
históricos e geográficos, entre outros.

De maneira mais simples e em linguajar familiarizado com a Consciencio-


logia: as experiências transcendentes, anímicas ou parapsíquicas, em fun-
ção das infinitas possibilidades oriundas de projeções da consciência ou de
estados alterados, carecem de correta interpretação, que está condicionada
obviamente com o nível cognitivo, intelectual, paradigmático e, visceral-
mente, ligada à “cosmovisão” do experimentador.

Um fervoroso cidadão que tenha vivenciado um fenômeno de clarividên-


cia e observado uma imagem humana ou uma suposta consciência extra-
física qualquer, poderá acreditar que teve uma experiência com um ser
altamente iluminado e, ao comunicar essa mistura de fenômeno legítimo

283 “Neodivindades laicas”: marxismo, estadismo, comunismo, socialismo, fascismo, nazis-


mo, stalinismo e vários “ismos” ligados a determinada ideologia tida como a panaceia salva-
cionista, comparadas ao paradigma dogmático em vertente laica, com “neodeuses” corporifi-
cados em códigos ideológicos, com seus fanáticos seguidores. No aspecto prático e pessoal,
mesmo reconhecendo minhas tendências liberais e, em alguns casos, conservadoras, não vejo
o livre mercado como uma panaceia salvacionista, mas apenas e tão somente como a opção
mais adequada ou menos nefasta, como queiram.

154
Capítulo 8 • Terceiro elemento: estados

e possível interpretação equivocada, poderá confundir outras pessoas que


acreditarem nesse erro interpretativo. Note-se que, nessa hipótese, não há
má-fé, mas mero e inocente equívoco.

No Quadro 8.3 farei uma conexão entre a Dinâmica da Espiral, analisada


no capítulo anterior e as possibilidades interpretativas de uma vivência
transcendente, considerando a informação básica, ou seja, que as expe-
riências incomuns podem ser vivenciadas não apenas por pessoas especiais
ou iluminadas,284 mas sim por qualquer indivíduo em qualquer estágio de
consciência. Trata-se, portanto, de outra conexão destacada nesta obra,
justamente a espiral de Claire Graves, com o segundo e o terceiro compo-
nentes do modelo integral, ou seja, as ligações entre espiral, linhas e estados.
O fato curioso é que, para cada estágio de desenvolvimento, a experiência
transcendente será interpretada diferentemente.

Quadro 8.3
Conexão entre diferentes interpretações de uma experiência
transcendente, com as respectivas perspectivas da Espiral do
desenvolvimento de Graves

Cor Cosmovisão Interpretação de vivência transcendente

Bege Instintiva Insipiente


Tribal, ligado à ancestralidade e tradição
Púrpura Contato com espíritos ancestrais
ritualística
Vermelho Egocêntrica, ligado à força e ao poder Deus escolheu-me para salvar o mundo
Autoritária, ligada à ordem e Deus escolheu o meu povo para salvar o
Azul
etnocentrismo mundo
Laranja Racional, ligado à lógica materialista Emersão de arquétipo inconsciente285

Verde Consensual, ligado à fraternidade Seres de luz emanaram amor universal

Amarelo Integrativa Verificação flexível do nível da informação


Identificação do padrão e sua união a tudo
Turquesa Sinérgica
e todos

284 Vale a pergunta: o que é iluminação? Isso nos remete ao capítulo 8 e ao segundo elemen-
to da Filosofia Integral, ou seja, as linhas de desenvolvimento.
285 Laranja: busca-se uma explicação racional de algum ramo científico aceito como tal.

155
Capítulo 8 • Terceiro elemento: estados

Não bastasse a complexidade até aqui apresentada, em razão do entrelaça-


mento e integração dos diversos níveis (primeiro componente) passíveis de
interpretação de uma vivência dos estados (terceiro componente) avança-
dos, temos a considerar ainda a infinidade de linhas (segundo componente)
de desenvolvimento, fato gerador de uma multiplicidade de interpretações
que tende ao infinito, o que nos levará à questão: qual interpretação apro-
xima-se da realidade? A pergunta poderia ser ainda mais profunda: o que é
real? Talvez todos estejam “parcialmente certos”, para usar uma expressão
wilberiana; porém, acredito que a aproximação das respostas minimamen-
te satisfatórias sobre o conceito de “verdade ou realidade” esteja mais bem
interpretada pela conjugação de estágios superiores286 e estados transcen-
dentes, devidamente contextualizados e integrados ao maior número de
linhas possíveis, com a aplicação prática de seu aspecto “todo e parte”, que
revisaremos no próximo capítulo sob o título tipos. A contrario sensu, indi-
víduos com “cosmovisões” limitadas, reduzidas e de níveis inferiores que
vivenciaram fenômenos avançados poderão apresentar interpretação ec-
tópica e gerar entropia e caos informacional.

A visão conscienciológica
O tratado Projeciologia, de autoria de Waldo Vieira, possui capítulo especí-
fico sob o título Estados Alterados da Consciência,287 ou seja, utiliza o adjeti-
vo “alterado”, que a nomenclatura wilberiana substitui por “incomum”. A
referida obra, na minha visão pessoal e respeitadas as opiniões adversas,
atenderá muitas demandas técnicas dos mais rigorosos e exigentes pesqui-
sadores. Divergências terminológicas à parte, trata-se do estudo da Xeno-
frenia, termo de origem grega (xenos, estranho; phrem, mente), exposto no
referido tratado como os estados da consciência humana fora do padrão
normal da vigília física ordinária, induzido por agentes físicos, fisiológicos,
psicológicos, farmacológicos ou parapsíquicos.

O autor Vieira extrapola os objetivos deste capítulo e aprofunda-se nas di-


ferenças entre diversos estados alterados de consciência e, principalmente,
do fenômeno da projeção lúcida ou consciente. Por dedução lógica, con-
cluo que o médico de origem mineira não apenas diferencia, mas também

286 Níveis amarelo e turquesa.


287 VIEIRA, Waldo. Projeciologia. Editares: 2019, p. 202-203.

156
Capítulo 8 • Terceiro elemento: estados

qualifica o fenômeno projetivo lúcido em termos utilitários, relativamente


aos seguintes estados: alucinação, auto-hipnose ou autosugestão, autoas-
sédio, catalepsia, consciência dupla, devaneio, sonho lúcido ou dirigido,
experiência psicodélica, hipnagogia ou estado semidesperto, hipnopompia,
meditação,288 pesadelo, sonambulismo e transe hipnótico ou parapsíquico.

Vale destacar que muitos autores reconhecem a importância dos estados


alterados (incomuns) de consciência, mas apontam como fenômeno central
a projeção consciente como forma de aquisição de conhecimento multidi-
mensional para a transcendência de paradigmas ou cosmovisões materia-
listas. Considero o tratado Projeciologia uma interessante e vasta cataloga-
ção do fenômeno projetivo, notadamente pelo seu diferencial técnico. Na
hipótese de parecer exagerado, convido todos à leitura e ao estudo deta-
lhado dessa obra, onde o leitor poderá realizar aprofundamento pormeno-
rizado de cada estado e suas derivações. No momento, passaremos para a
análise atenta do quarto elemento da Filosofia Integral: os tipos.

288 Meditação: mais valorizada pela Filosofia Integral.

157
158
Quarto elemento:
tipos
9

Considero o presente componente especialmente mais simples que os de-


mais, mas não menos intrigante e repleto de particularidades jocosas entre
as diferenças da famigerada classificação dual entre masculino e feminino.
A análise deste quarto elemento será feita pelos subitens abaixo:
1. Carol Gilligan: masculino e feminino.
2. Patologia e saúde dos gêneros.
3. Outras tipologias.

A vivência desse elemento, a meu ver, pode ser considerada a mais óbvia
de todos os cinco componentes da Filosofia Integral, além de facilmente
ilustrada pela tipologia masculina e feminina. Adjetivo tal diferença como
contundente, não apenas pelo aspecto mesológico como também sob o
prisma eminentemente individual, pois a feminilidade induz naturalmen-
te para algumas facilidades e dificuldades específicas, ligadas à flexibilida-
de, ao compartilhamento e à contextualização; já os seres da testosterona
apresentam maior explosão muscular, robustez, autonomia e valores co-
nectados ao ambiente da lógica matemática e das regras claras. O exemplo
utilizado em sala de aula por Raynsford advém da sabedoria popular, que
identificou dois tipos de reações diante da situação hipotética de um mo-
torista encontrar-se perdido no trânsito: a primeira inclinação será a de
compartilhar o problema, pedir ajuda ou perguntar para os transeuntes a
direção correta para seu destino; a segunda tendência será a de resolver
o problema sozinho, seja pela consulta ao mapa ou ao GPS. Responda você
mesmo, leitor, qual das tendências acima é mais feminina ou masculina?

159
Capítulo 9 • Quarto elemento: tipos

Embora esses estereótipos sejam perigosos e, não raro, levados para o as-
pecto negativo e geradores de tolos preconceitos, pude validar por mim
mesmo e pelas pessoas do meu convívio a ocorrência de características li-
gadas ao gênero. Importante finalizar essas observações com o repúdio às
ingênuas e infantis competições “machistas versus feministas”, mas também
destacar a obviedade das flagrantes diferenças comportamentais, cada
qual adequada, oportuna e assistencial em contextos específicos.

Carol Gilligan: masculino e feminino


O leitor poderá aumentar o nível de complexidade em interessante cone-
xão das diversas tipologias com os outros elementos estudados. A psicóloga
estadunidense Carol Gilligan, conhecida por observar os tipos masculi-
nos e femininos, estabeleceu contundentes diferenças entre os gêneros, que
procurei ampliar didaticamente por meio do Quadro 9.1.

Quadro 9.1
Caracterização comparativa dos tipos masculino e feminino

Elementos masculinos Elementos femininos


Ação Comunhão
Autogestão Gestão compartilhada
Autonomia União
Direito Dever
Independência Dependência
Indivíduo Contexto
Introspecção Comunicação
Justiça Perdão
Liberalismo Assistencialismo
Liberdade Solidariedade
Lógica Intuição
Olhar Toque
Particularidade Coletividade
Razão Emoção
Regras acima dos sentimentos Sentimentos acima das regras
Rigidez (regras são cumpridas) Flexibilidade (regras são flexíveis)
Sabedoria Compaixão
Totalidades Partes

160
Capítulo 9 • Quarto elemento: tipos

Reputo como característica fantástica do quadro anterior a constatação de


que as diferenças existem, mas não há juízo valorativo absoluto do que seja
melhor ou pior; o contexto definirá a melhor ferramenta a ser utilizada.

Neste momento, ressalto que os tipos não se confundem com os níveis, li-
nhas ou estados, pois, independentemente do tipo (quarto elemento), este
poderá evoluir em níveis de consciência (primeiro elemento), em diversas
linhas de desenvolvimento (segundo elemento) e vivenciar diferentes esta-
dos naturais ou incomuns (terceiro elemento). A partir dessas digressões,
consegui entender que cada elemento da Filosofia Integral está conecta-
do com os demais, mas deles se diferencia por manter suas características
próprias, únicas e exclusivas.

Patologia e saúde dos gêneros


Os gêneros masculino e feminino podem desviar-se dos caminhos saudá-
veis e sucumbirem à condição patológica, cada qual com suas característi-
cas majoritárias, que abordaremos com horizontalidade de nível. Enquanto
a força desbravadora, a autonomia e a independência são valores legítimos
e majoritários (porém, não exclusivos) do gênero masculino, o seu exagero
ou subutilização podem levar a sérios problemas como a horrenda tirania
individualista (no excesso) ou a perda da virilidade (na escassez). O mes-
mo pode-se dizer do saudável e maravilhoso aspecto relacional feminino
que, no desequilíbrio, partirá para a verborragia, submissão ou chantagens
emocionais, além da perda de seu maior encanto: a própria feminilidade.

Diante disso, procurei elaborar, com a habitual intenção didática e sintéti-


ca, o Quadro 9.2 (na página seguinte) com foco na exposição da patologia
de gênero, apenas acrescentando uma coluna com um componente exclu-
dente e dominador.

161
Capítulo 9 • Quarto elemento: tipos

Quadro 9.2
Representação comparativa das patologias masculina e feminina
pela inclusão do agente desagregador “versus”

Elementos masculinos Elemento desagregador Elementos femininos


Ação versus Comunhão289
Autogestão versus Gestão compartilhada
Autonomia versus União
Direito versus Dever
Independência versus Dependência
Indivíduo versus Contexto
Introspecção versus Comunicação
Justiça versus Perdão
Liberalismo versus Assistencialismo
Liberdade versus Solidariedade
Lógica versus Intuição
Olhar versus Toque
Particularidade versus Coletividade
Razão versus Emoção
Regras acima dos sentimentos versus Sentimentos acima das regras
Rigidez (regras são cumpridas) versus Flexibilidade (regras são flexíveis)
Sabedoria versus Compaixão
Totalidades versus Partes

Alguém poderia perguntar o que seria pior: sabedoria sem amor ou vice-versa?
Recuso-me a responder esta pergunta, pois estaríamos diante do problema
maniqueísta e retorno à introdução desta obra: “isso versus aquilo”. Assim
sendo, terminarei este subtítulo com serenidade, alegria e solução contex-
tualizada para este conflito e espero contribuir com o leitor nesta saída
conciliatória e facilitar sua compreensão por meio do Quadro 9.3, no qual
o elemento excludente do quadro anterior foi substituído por um elemento
integrativo.

289 Ação e comunhão são tendências horizontais do hólon. Embora não possuam propria-
mente uma relação de oposição, participam do elenco no terreno das prioridades masculinas
e femininas.

162
Capítulo 9 • Quarto elemento: tipos

Quadro 9.3
Representação comparativa da integração entre masculino e
feminino pela inclusão do agente conectivo “e”

Elementos masculinos Elemento conectivo Elementos femininos


Ação e Comunhão
Autogestão e Gestão compartilhada
Autonomia e União
Direito e Dever
Independência e Dependência
Indivíduo e Contexto
Introspecção e Comunicação
Justiça e Perdão
Liberalismo e Assistencialismo
Liberdade e Solidariedade
Lógica e Intuição
Olhar e Toque
Particularidade e Coletividade
Razão e Emoção
Regras acima dos sentimentos e Sentimentos acima das regras
Rigidez (regras são cumpridas) e Flexibilidade (regras são flexíveis)
Sabedoria e Compaixão
Totalidades e Partes

Portanto, temos a existência de dois gêneros: masculino e feminino. Cada


qual com suas particularidades, mas não para o fomento de uma ridícula
disputa egocêntrica, mas sim para uma linda comunhão de amor e com-
plementariedade.

Outras tipologias
Wilber trabalhou com inúmeras tipologias em várias obras, entre elas a re-
cente A Visão Integral,290 a ponto de identificar, validar e reiterar o elemento
tipo como um dos componentes de sua filosofia. No Quadro 9.4, sintetizo

290 WILBER, Ken. A Visão Integral. Cultrix: 2010.

163
Capítulo 9 • Quarto elemento: tipos

alguns exemplos, como os oriundos de Myers-Briggs291 e Carl Gustav Jung,


além da intrigante listagem tipológica do Eneagrama. Deixei de incluir a
classificação por gênero por entender que o tratamento dado nos subitens
precedentes atendeu às pretensões deste capítulo.

Quadro 9.4
Três exemplos de tipologias

Introvertido

Extrovertido
Jung
Sensação-intuição

Pensamento-sentimento
Sensação

Intuição
Myers-Briggs
Pensamento

Sentimento
Perfeccionista

Doador

Executor

Trágico-romântico

Eneagrama Observador

Temeroso

Diletante

Combativo

Moderador

A franqueza obriga-me a confessar que não possuo conhecimento sufi-


ciente para um aprofundamento contundente e rigoroso em cada tipologia
e respectivos detalhamentos. A boa notícia é que, para os objetivos desta
obra, a apresentação deste quarto elemento da Filosofia Integral cumpriu o
seu papel, motivo pelo qual passarei empolgadamente para a conclusão da
apresentação condensada deste poderoso modelo wilberiano e seu quin-
to e último elemento que, particularmente, conquistou minha preferência

291 Katharine Cook Briggs e Isabel Briggs Myers.

164
Capítulo 9 • Quarto elemento: tipos

justamente por elucidar as jurisdições de atuação de cada pensamento ou,


em linguagem coloquial, coloca cada um no seu quadrado. Adentraremos
agora, caro leitor, na maior aventura intelectual que enfrentei com minha
voraz curiosidade, situação na qual o insight wilberiano conquistou meri-
toriamente minha atenção. Assim, tenho a honra de apresentar e recomen-
dar veementemente o estudo e o aprofundamento dos quatro quadrantes.

165
166
Quinto elemento:
quadrantes
10

Concluiremos a insólita aventura para a compreensão da Filosofia Inte-


gral com o estudo do quinto e último componente, que objetiva localizar,
setorizar e, principalmente, conectar os demais, motivo pelo qual manifes-
to especial interesse pelas quatro perspectivas kósmicas representadas pelos
quadrantes, que considero o grande marco do “holo-abraço” wilberiano.
Esse impactante mapa tetra-angulado, inserido no que Wilber chamou Sis-
tema Operacional Integral, impressiona por sua abrangência e é digno do
meu aplauso. Se bem compreendido, otimizará a cosmovisão de qualquer
cidadão interessado em ampliar sua consciência para diferentes perspecti-
vas, distante do jargão popular: “a verdade é uma só”.

Dividirei o estudo nos importantes subitens a seguir listados, a fim de enca-


minhar uma sequência lógica proporcionando a autoderrogação das amarras
doutrinárias seculares impostas por limitações reducionistas do que nomina-
rei de poli-genuflexão sócio292-político293-ideológico294-dogmática295 da atualidade.

292 Genuflexão ao “politicamente correto”, criticado pelo filósofo contemporâneo Luiz Felipe
Pondé. Exemplos: a ditadura da moda e de opiniões impostas como verdades absolutas para
assuntos polêmicos, entre eles, a homofobia, o machismo, o preconceito social ou racial.
293 Genuflexões ao socialismo-da-moda, às falácias sócio-populistas-eleitoreiras e ao fanatismo
partidário. Exemplos: a cegueira e o “vale-tudo” da militância política; a utilização do jargão “tudo
pelo social” para encobrir injustiças meritocráticas; o uso popular da bandeira altruísta em que os
outros devem fazer alguma coisa, além da panaceia salvacionista de algum agente exógeno.
294 Genuflexão à neo-divindade laica (Estado) sob o jargão “o Estado proverá” (em substitui-
ção ao jargão religioso “Deus proverá”), majoritariamente encontradas nos gramscistas, mar-
xistas, comunistas e esquerdistas de base rousseauniana.
295 Genuflexão ao fundamentalismo. Exemplo: disputa de qual mártir seria melhor, mais le-
gítimo ou mais “verdadeiro”.

167
Capítulo 10 • Quinto elemento: quadrantes

1. Como conectar tudo?


2. Como vivenciar os quadrantes?
3. Os três grandes.
4. A dignidade da diferenciação dos três grandes.
5. O desastre da dissociação dos três grandes.
6. O absolutismo político-ideológico de quadrante.
7. Os elementos integrais nos quadrantes.
8. As conexões entre os quadrantes.

Como conectar tudo?


Obviamente, as obras wilberianas são as mais indicadas para explicar os
“quatro quadrantes kósmicos”, desde as leituras mais desafiadoras, como
Uma Breve História do Universo, até as mais simplificadas e didáticas, no
estilo da Visão Integral, onde encontramos de forma sintética as “quatro
dimensões ou perspectivas profundas que mantêm seu universo coeso”.296
Exibirei este tetra-mapeamento supostamente simples, mas cujas pro-
fundidade, transcendência e genial capacidade integrativa estimularão
nossas habilidades para sofisticadas analogias, em constantes interações
multidimensionais.

Sem maiores delongas, apresento as possibilidades basilares de observação


do kosmos wilberiano:
ƒ Interior e exterior.
ƒ Individual e coletiva.

Da conjugação desses elementos, emergiram os quatro quadrantes que


evidenciam o fato de que praticamente todas as divergências entre os
autores, teorias ou ideologias decorrem da parcialidade de uma verdade
reduzida e isolada em apenas um deles, assunto em que nos aprofunda-
remos no tópico Absolutismo político-ideológico de quadrante. Mantenho a
esperança de que o Quadro 10.1 a seguir – no qual os números acinzenta-
dos representam os quatro quadrantes – possa iniciar o esclarecimento
da questão.

296 WILBER, Ken. A Visão Integral. Cultrix: 2010, p. 62.

168
Capítulo 10 • Quinto elemento: quadrantes

Quadro 10.1
Representação dos quatro quadrantes e suas respectivas
características

Interior297 Exterior298

Quadrante superior direito

Interior-individual 1 Quadrante superior esquerdo

Exterior-individual 2
Subjetivo Objetivo

Intencional Comportamental
Individual299
Exemplos de prioridades: Exemplos de prioridades:

x Psicologia x Behaviorismo

x Tradições de sabedoria x Neurologia

x Análises de consciência x Materialismo científico

Quadrante inferior direito

Interior-coletivo
3 Quadrante inferior esquerdo

Exterior-coletivo
4
Intersubjetivo Interobjetivo

Coletivo300 Cultural Social

Exemplos de prioridades: Exemplos de prioridades:

x Hermenêutica x Sociologia

x Filosofia da ciência x Economia

Como vivenciar os quadrantes?


O lado direito ou exterior, que Wilber considera empírico, quantitativo e
monológico, ou seja, observável sem necessidade de diálogo com o “objeto”
de observação, terá percepção mais mensurável ou epidérmica, na falta de
melhores termos. Neste exato momento, o leitor poderá focar suas percep-
ções na respiração, na maneira que está sentado, no posicionamento de
seu corpo físico ou simplesmente observar a manipulação de algum objeto,
em vivência individualizada e exterior do quadrante superior direito; em

297 Aspecto “consciencial”.


298 Aspecto “material”.
299 Aspecto “singular”.
300 Aspecto “comum”.

169
Capítulo 10 • Quinto elemento: quadrantes

outra experiência, poderá simplesmente redirecionar sua atenção para o


clima, o meio ambiente ou a teoria de sistemas, quando estará diante das
condições interobjetivas, típicas do quadrante inferior direito.

As experiências do lado esquerdo do mapa tetra-dimensional wilberiano são


interpretativas, qualitativas e dialógicas, ou seja, se eu quiser saber as in-
formações que sua Consciência trabalha neste momento (quadrante su-
perior esquerdo), terei que perguntar a você e confiar na veracidade das
suas informações. Finalmente, na hipótese do diálogo em determinado
idioma, ocorrerá uma troca intersubjetiva pela ferramenta da linguagem,
em interpretação consoante valores culturais e costumes característicos,
possivelmente influenciados pela intersubjetividade familiar, profissional
ou social, típicas do quadrante inferior esquerdo.

Um exemplo surgido em grupo de estudos do qual participei abordou o


caótico trânsito paulistano (quadrante inferior direito – interobjetivo), que
poderá despertar irritação e consequente intenção (quadrante superior es-
querdo – subjetivo) de buzinar, xingar ou acelerar seu veículo (componen-
te atitudinal do quadrante superior direito – objetivo), momento em que o
nosso cidadão hipotético refreia tal impulso (ou não) por aspectos de uma
cultura familiar baseada na cortesia, tolerância, compreensão e amor ao
próximo (ou vice-versa - quadrante inferior esquerdo – intersubjetivo), mo-
tivo pelo qual este sujeito apenas respira fundo, relaxa e coloca uma boa
música para acalmar-se (novamente, o quadrante superior direito – ob-
jetivo). Importante perceber que podemos analisar uma mesma situação
por várias perspectivas (intencional,301 comportamental,302 cultural303 e so-
cial304) e nenhuma delas necessariamente será a mais verdadeira ou a pa-
naceia salvacionista da situação, mas tampouco podemos abandoná-la sob
a alegação de ser uma vertente desprezível ou absolutamente inócua para
a resolução da problemática em foco. Elaborei o Quadro 10.2, concentra-
do nas perguntas típicas de cada quadrante, cujas vinculações são íntimas e
portadoras de intrincada relação de causa e efeito.

301 Subjetivo.
302 Objetivo.
303 Intersubjetivo.
304 Interobjetivo.

170
Capítulo 10 • Quinto elemento: quadrantes

Quadro 10.2
Perguntas típicas de cada quadrante

Interior Exterior

Comportamental
O que significa para mim?
O que isso faz?
O que sinto ou penso?

Intencional
Qual o comportamento?
Individual Qual minha intenção?
Como observo isso?
Como interpreto?
Como funciona?
Isso é belo?

O que significa para nós? Como isso interage com outros “issos”?

Qual nossa cultura? Qual o nosso comportamento social?


Cultural
Coletivo
Quais nossos valores? Quais nossas instituições?

Social
Isso é bom? Qual o fluxo burocrático disso?

Trarei mais dois exemplos adaptados da obra A Visão Integral,305 um deles


aplicado à área médica (Quadro 10.3) e o outro, à área empresarial (Qua-
dro 10.4), na tentativa de esclarecer eventuais dúvidas conceituais ainda
pendentes a respeito do tema.

Vale lembrar que, na sociedade ocidental, a Medicina ortodoxa recebe um


tratamento majoritariamente destinado ao quadrante superior direito,
direcionado para o organismo físico e intervenções diretas sobre ele por
meio de drogas e cirurgias. No campo empresarial, onde tive a oportuni-
dade de atuar profissionalmente desde o ano de 1988, estou seguro para
afirmar que o grande objetivo está no lucro, o que traz aspectos positivos e
de importância econômica crucial, mas torna-se incompleto e até mesmo
sombrio, se for essa sua única meta.

305 WILBER, Ken. A Visão Integral. Cultrix: 2010, p. 95.

171
Capítulo 10 • Quinto elemento: quadrantes

Quadro 10.3
Visão integral para a Medicina

Interior Exterior

Comportamental
Tratamento do doente: Tratamento da doença:

x Emoções x Cirurgia

Intencional
Individual x Pensamentos x Drogas

x Fantasias x Remédios

x Visualizações x Mudança de hábitos

Tratamento cultural: Tratamento social:

x Valores grupais x Influência econômica

Coletivo x Significado da doença x Sistema previdenciário


Cultural

Social
x Grupos de apoio x Políticas de assistência à saúde

x A cultura do fast food x Sistema de assistência social

Quadro 10.4
Exemplo do tetra-foco de uma empresa integral

Interior Exterior
Comportamental

Suporte psicológico Verificação comportamental

Satisfação individual Componente atitudinal


Intencional

Individual
Motivação íntima Adequação postural

Méritos individuais Medições individuais

Suporte cultural Regras sistêmicas

Valores institucionais Ambiente de trabalho


Coletivo
Cultural

Cultura organizacional Sistema social


Social

Gestão cultural meritocrática Igualdade de oportunidades

172
Capítulo 10 • Quinto elemento: quadrantes

Outro modelo didático mais genérico, com palavras-chave facilitadoras da


compreensão e identificação da proposta dos quatro quadrantes, encon-
tra-se expresso no Quadro 10.5, onde objetivo demonstrar que, qualquer
que seja o quadrante pelo qual iniciemos nossa pesquisa, poderemos esten-
dê-la para outras jurisdições ou perspectivas com o propósito de comple-
mentá-la e ampliá-la. Entre a veracidade e a verdade, a sinceridade e seu corres-
pondente objetivo ou a justiça e seu ajuste funcional, podemos ficar com tudo,
em cosmovisão que honra a abrangência deste termo. A conduta lançará
seu laço integral e alcançará todos os contextos, numa análise completa,
dentro e fora, individual e coletiva.

Quadro 10.5
Palavras-chave de cada quadrante e suas perspectivas
independentes e interligadas

Individual – Interior - Subjetivo Individual - Exterior - Objetivo

Veracidade Verdade

Sinceridade Correspondência

Integridade Representação

Coletivo – Interior – Intersubjetivo Coletivo – Exterior - Interobjetivo

Justiça Ajuste funcional

Ajuste cultural Rede de teoria de sistemas

Retidão Malha de sistemas sociais

Empenhei-me no sentido de clarear a ideia básica dos quadrantes, pois


ingressaremos em nova aventura e desafio associativo que demandará
essa compreensão. Bem-vindo, leitor, aos três grandes da obra wilberina,
cuja importância para a condensação da ideia dos quatro cantos do kosmos
considero vital e envolve desde pronomes pessoais até a estética, a moral e
a ciência, num abraço integral ao (1) belo, ao (2) bom e ao (3) verdadeiro.

Os três grandes
A Filosofia Integral postula que alguns fatores podem ser considerados
universais, independentemente de raça, cor, credo, gênero, contexto ou
qualquer outra condição. O presente tópico oferta-nos o número desses
elementos (três) e também sua magnitude (grandes) e, de fato, cogito a difi-

173
Capítulo 10 • Quinto elemento: quadrantes

culdade em negar uma certa universalidade difusa306 dos conceitos de beleza,


bondade e verdade.

Iniciarei minhas ponderações pela analogia com a linguagem, vital no con-


texto da Filosofia Integral. A esmagadora maioria dos idiomas possui uma
estrutura baseada em três pronomes pessoais ou três perspectivas básicas:
uma primeira pessoa – “eu” ou quem fala; uma segunda pessoa – “tu”, com
quem falo e, neste momento, surge o “nós” ou o diálogo; e uma terceira pes-
soa “ele” ou “isso”, de quem ou do que falo. O Quadro 10.6 pretende inse-
rir essa estrutura idiomática de praticamente toda a espécie humana nos
quatro quadrantes, apenas com uma adaptação, chamada de prestidigitação
linguística, relativa ao quadrante inferior direito, diante da dificuldade para
significar o plural de “isso” na língua portuguesa. Aproveitarei o mesmo
quadro para inserir os três ideais platônicos acima mencionados – a beleza,
a bondade e a verdade – em outras palavras, a arte (estética), a moral e a ciência.

Quadro 10.6
Integração entre os três grandes e os quatro quadrantes

Interior Exterior
Eu Isso

Individual Belo (subjetividade) Verdadeiro (perspectiva individual)


“Issos” Isso
Eu

Arte Ciência (materialista objetiva)


Nós (“eu” e “tu”) “Issos” (inexistente em português)

Coletivo Bom (intersubjetividade) Verdadeiro (perspectiva relacional)


Nós

Moral ou ética Ciência (sistêmica e interobjetiva)

Externarei algumas digressões sobre os argumentos lançados até o pre-


sente momento, cuja compreensão auxiliou-me no posicionamento mais
seguro em relação aos assuntos que são exclusivamente individuais, em
flagrante emancipação da ordinária confusão entre egoísmo patológico e
individualidade sadia.307 O típico exemplo está no caráter eminentemente
personalíssimo do conceito de beleza, identificado com a subjetividade in-

306 No sentido de serem objeto de reflexão, consciente ou inconscientemente, de pratica-


mente todos os seres genuinamente pensantes.
307 Jurisdição do “eu”, do subjetivo, das artes, da estética, das legítimas preferências indivi-
duais, do conceito de beleza, da liberdade sadia, em suma, do quadrante superior esquerdo.

174
Capítulo 10 • Quinto elemento: quadrantes

tuitiva do pronome “eu”; nossa preferência individual por uma cor, estilo
de vida, vestimenta, estética ou opinião sobre qualquer tema da jurisdição
do quadrante superior direito poderá ir contra tudo e todos, sem que nin-
guém possa legitimamente acusar-nos de egoístas ou antissociais.

No momento em que adentrarmos no território cultural do “nós”, urge a ne-


cessidade de incluirmos “o outro” nas nossas ponderações, situação em que
a liberdade individual sofre mitigação e o componente atitudinal deverá
respeitar um padrão ético-moral de conduta do quadrante intersubjetivo.

Finalmente, no momento em que observamos o que uma máquina ou siste-


ma faz ou deixa de fazer, estaremos em busca da apreciação monológica e
desprovida de interpretações ou valores, retratada pela popular expressão
“verdade nua e crua”, circunstância na qual a prioridade concentra-se na
precisão técnica da informação duela a quien duela,308 independentemente
do que faremos com o dado específico, para, somente num segundo mo-
mento, elaborarmos a pergunta ética: isso seria bom?

A maravilha da diferenciação dos três grandes


A obra wilberiana de minha preferência sobre a importância histórica da
diferenciação dos três grandes, ou seja, entre os domínios do “eu” (subje-
tividade), do “nós” (intersubjetividade) e do(s) “isso(s)” (objetividade + inte-
robjetividade) possui o título A União da Alma e dos Sentidos. Nela, o autor
detectou a histórica problemática da fusão e da invasão religiosa (jurisdi-
ção do “nós”) na ciência (jurisdição do “isso”), fato que impediu gigantescos
avanços tecnológicos e informacionais, considerados heresia, além de im-
por-nos séculos de irreparáveis mortes e sofrimentos. Ao ápice e símbolo
dessa tirania dogmática convencionou-se chamar de santa inquisição, he-
diondo rastro de atrocidades “em direção ao céu” , cujos horrores e detalhes
solicito licença para omitir deste capítulo, principalmente por terem sido
suficientemente esclarecidos pela história e por obras modernas.309

O que Wilber chama de dignidade da modernidade310 está justamente rela-


cionada à diferenciação dos três grandes e, principalmente, à redução da

308 Doa a quem doer.


309 Entre tais obras, figura a já referida Onde a religião termina?, de Marcelo da Luz.
310 WILBER, Ken. A união da alma e dos sentidos. Cultrix: 2001, p. 39-46.

175
Capítulo 10 • Quinto elemento: quadrantes

inconveniente dominação e controle religioso da ciência, mormente pela


imposição de míopes valores pretensamente morais311 ao território cien-
tífico,312 às artes ou às preferências legitimamente individuais.313 Estou
ciente da dificuldade em alcançarmos o que seja o exato conceito de mo-
dernidade, mas a autonomia e separação das jurisdições das artes, ética e
ciência (eu, nós e isso) parece-me um bom começo para compreendermos
a descrição da era moderna como a “idade da razão e da revolução”, ter-
mo creditado a Will e Ariel Durant.314 Os valores do “iluminismo ocidental
liberal” estão visceralmente conectados à independência dos três grandes
e abrangem a liberdade, a justiça, os direitos civis, a meritocracia e a igual-
dade perante as leis, o que as sociedades e os valores pré-modernos esta-
vam muito distantes de aceitar com facilidade.

A maravilha da diferenciação dos três grandes pela modernidade, como


visto, alforriou a arte e a ciência da escravidão dogmática, representante
épica do rústico nível ético eclesiástico da época, que, felizmente, galgou
avanços até os dias atuais, ainda que claudicantes em alguns setores.315
Mesmo sob a crítica do reducionismo, sou grato aos hercúleos indivíduos
que nos outorgaram a condição social para a gloriosa ousadia do saber316 e
libertaram mentes pensantes como a de René Descartes, que lançou sua
visão “representativa” do mundo, também chamada de “espelho da natu-
reza”; de artistas como Monet ou van Gogh, que pintaram a natureza em
primeiro plano, emancipados da mítica dogmática; finalmente, de cien-
tistas como Newton, que observaram e registraram os dados empíricos e
sensoriais com um pouco mais de autonomia. Os tempos modernos defini-
ram e delimitaram claramente as jurisdições da arte, da ciência e da mo-
ral, possibilitando aos cientistas a utilização de telescópios317 sem denúncias
inquisitórias, fatos que delegaram à espécie humana o direito de flamular
as bandeiras dos direitos individuais e universais. Diante de tantas glórias,
devemos erguer altares à modernidade?

311 Quadrante inferior esquerdo, intersubjetivo ou ético.


312 Quadrantes direitos, objetivo e interobjetivo.
313 Quadrante superior esquerdo, subjetivo ou individual.
314 WILBER, Ken. A união da alma e dos sentidos. Cultrix: 2001, p. 40.
315 Não queimam pessoas nas fogueiras da Idade Média, mas ainda extirpam a saúde e a
vida das mesmas ao condenar o uso de preservativos e limitar a ciência em vários aspectos,
entre outras posturas que considero ultrapassadas.
316 Ousadia ou atrevimento do saber: alusão à expressão sapere aude, atribuída a Kant.
317 Telescópio: alusão ao caso histórico de Galileu.

176
Capítulo 10 • Quinto elemento: quadrantes

O desastre da dissociação dos três grandes


Qualquer perspectiva restrita ou aprisionada a apenas um elemento dos três
grandes ou que pretenda que um único quadrante adquira o status holístico,
posicionar-se-á equivocadamente como panaceia salvacionista e portará o
indesejado absolutismo de quadrante.318 Ótimo exemplo moderno está no
que chamamos de materialismo científico ou paradigma newtoniano-cartesiano319
(absolutismo do “isso”), que passou a colonizar as demais dimensões, vilificar
indevidamente todas as religiões e eliminar a própria Consciência, pois esta
não pode ser vista por um microscópio ou provada por qualquer aparelho. O
Grande Ninho do Ser e sua multidimensionalidade ficaram achatados pelo
materialismo, que esmagou a Consciência com seu poderoso rolo compres-
sor e caminhou para um desencanto frio e “coisificante” de um mundo ino-
doro, incolor e sem profundidade, imortalizado por Charles Chaplin em sua
prestigiada obra Tempos Modernos e sintetizada pela frase wilberiana: “arte,
moral, contemplação e espírito, tudo foi arrasado pelo touro científico na
loja de porcelanas da consciência. E foi esse o desastre da modernidade”.320

Urgem soluções pela via integrativa, ou seja, uma saída honrosa para os
males modernos, sem as enfadonhas teorias e panaceias sócio-ideológicas
(novo absolutismo do “nós”) ligadas ao fracassado passado político testado e
reprovado, sob a enganosa cortina de fumaça do “politicamente correto”, do
“tudo pelo social” ou do que chamo de “Coletivismo sócio-consolatório de
Estado”.321 Carecemos de um olhar futurista que conserve o ceticismo polí-
tico, mas visualize uma oportunidade de aproximar os três grandes para um
diálogo pacífico, desprovidos de intenções tirânicas e situações rancorosas.
Wilber sugere que a cura para esse desastre moderno esteja justamente na
manutenção da diferenciação e eliminação da dissociação entre a grande trinca
“eu, nós e isso”, “arte, ética e ciência” ou “belo, bom e verdadeiro”.

Os elementos dos três grandes ou dos quatro quadrantes encontram suas


particularidades e perspectivas assistenciais e positivas, ainda que anali-
sados isoladamente. Contudo, a visão exclusivista, intramuros ou por um

318 Absolutismo de quadrante: noção equivocada de que a ação isolada em uma única pers-
pectiva será a panaceia salvacionista de todos os quatro quadrantes.
319 Expressão que julgo equivocada, consoante explicitado no capítulo 16.
320 WILBER, Ken. A união da alma e dos sentidos. Cultrix: 2001, p. 51.
321 “Coletivismo sócio-consolatório de Estado”: expressão de uso pessoal para designar a busca
do coletivo por benesses estatais consolatórias e não pelo autonomia meritocrática individual.

177
Capítulo 10 • Quinto elemento: quadrantes

único prisma isolacionista, que chamarei de “univisão”,322 merecerá a pe-


cha de reducionista. Em outros termos, estudos focados em determinado
quadrante obviamente proporcionarão avanços fantásticos oriundos de
sua especificidade, mas sua observação excessivamente segmentada pode-
rá adoecer e arrogar-se no detentor da paternidade assistencial cósmica e
distanciar-se da saudável dose de ceticismo pragmático para considerar o
alcance e as fronteiras de seus próprios postulados.

O Quadro 10.7 é uma boa oportunidade para dirimir eventuais dúvidas su-
plementares, já que nele dou sequência à estilística desta obra com exemplos
didáticos acerca dos conceitos trabalhados, mas sob a ótica exclusivista e
desconectada dos demais quadrantes. O reducionismo pode ser satisfatoria-
mente explicado pelo aprisionamento de uma teoria em um dos quadrantes
wilberianos, bem como seu absolutismo ao afirmar seu ângulo de visão como
“a única verdade”, um enganoso paradigma “holístico” que, na verdade, não
passa de perspectivas diferentes na proposta, mas similares na limitação.

Quadro 10.7
Visões reducionistas pretensamente holísticas

Interior Exterior
Quadrante intencional Quadrante comportamental

Idealismo reducionista: Cientificismo reducionista:


Individual
x A mente 323
é a única realidade x A matéria é a única realidade

x Reducionismo “espiritual” x Reducionismo materialista grosseiro


Quadrante cultural Quadrante social

Pós-modernismo reducionista: Reducionismo sistêmico:


Coletivo
x Significado cultural é a única realidade x A teia da vida é a única realidade

x Reducionismo cultural x Reducionismo materialista sutil

Como visto, o estudo específico de um único exemplar ou com foco prio-


ritário no que classificarei como reducionismo de quadrante, poderá ser po-
sitivo e assistencial e, particularmente, reconheço os notáveis esforços de
dedicados autores e cientistas na construção de teorias e especialidades

322 “Univisão”: neologismo proposto para contrapor-se ao termo “cosmovisão”.


323 Mente: no sentido de Espírito, Consciência, Alma ou Essência.

178
Capítulo 10 • Quinto elemento: quadrantes

facilitadoras de nossa existência. Todavia, apesar de reconhecer tal contri-


buição, não compactuo que seus exemplares teóricos comprimam todas as
perspectivas em um único prisma monológico-materialista,324 social-cole-
tivista 325 ou narcísico-individualista,326 pois tal visão pelo prisma exclusi-
vista gerará o absolutismo de quadrante, impondo verdades de uma perspec-
tiva para as demais, sem levar em conta a interação entre elas.

A realidade pode ser infinitamente mais ampla do que o limitado alcance


de nossos olhos e até mesmo de nossas mentes. O Quadro 10.8 explicita o
foco majoritário de cada autor, tomando-se por base a tendência à “univi-
são” de quadrante em seus respectivos postulados.

Quadro 10.8
Foco de autores conhecidos por suas teorias e seguidores

Interior Exterior

Dialógico Monológico327

Interpretativo Empírico

Subjetividade/intersubjetividade Objetividade/interobjetividade

Sigmund Freud
B. F. Skinner
Carl Gustav Jung
John Watson
Jean Piaget
Individual John Locke
Aurobindo
Empíricos
Platão
Isso

Behavioristas
Eu

Gautama Buda

Thomas Kuhn Talcott Parsons

Wilhelm Dilthey Auguste Comte

Coletivo Jean Gebser Karl Marx


“Issos”

Max Weber Gerhard Lenski


Nós

Hans-Georg Gadamer Teoristas sistêmicos

324 Reducionismo do “isso”.


325 Reducionismo do “nós”: coletivismo, marxismo, socialismo ou comunismo.
326 Reducionismo do “eu”: capitalismo “de Estado”, “de compadres” ou “selvagem”.
327 Monológico: Podem ser vistos em um monólogo. O pesquisador observa seu comporta-
mento objetivo e não precisa “falar” com eles. Podemos notar o comportamento de átomos,
células, populações, indivíduos, sociedades ou ecossistemas.

179
Capítulo 10 • Quinto elemento: quadrantes

Considero espantosa a capacidade centrípeta desses pesquisadores que,


reconhecidamente, formaram legiões de seguidores, mas estou conven-
cido de que muitas teorias foram superestimadas como panaceias ho-
lísticas, fato que gerou ideologias absolutistas sob uma aura mística de
pílula evolucionista para qualquer situação. Nesse âmbito, os exemplos
de minha preferência estão relacionados às ideologias políticas ligadas
ao que se convencionou chamar de “sociais”. Permitam-me, leitores, a
franqueza ao afirmar que estas frentes coletivistas obviamente enrique-
cem a discussão, mas se analisadas sem as devidas patologias e conexões
externas, serão tão reducionistas e nefastas quanto qualquer outra ver-
tente menos abrangente que, evidentemente, também merece uma série
de outras críticas.

Absolutismo político-ideológico de quadrante


Finalmente, poderei apresentar o tema de minha predileção: o absolutismo
de quadrante no delicado campo político-ideológico. Boa parte desse tema foi
antecipado no tópico anterior, focado no desastre da modernidade pela
dissociação dos três grandes, mas estou seguro ao afirmar que outros cam-
pos reflexivos surgirão e despertarão paixões belicistas, temática à qual a
expressão idiomática “campo minado” ajustar-se-á perfeitamente, motivo
pelo qual comunico profilaticamente que haverá lugar para todos nessa
arca 328 universalista, na qual pacificação será a palavra de ordem. Bom iní-
cio foi a colocação de cada autor “no seu quadrado”329 e focaremos a seguir
na questão da sangrenta batalha político-ideológica que aflige pratica-
mente todo o planeta.

Interpreto como positiva a migração do coletivismo moralista ditatorial330


para o moderno individualismo egocêntrico,331 mormente no mundo ociden-
tal, que nos libertou da teratológica fusão dos três grandes wilberianos.
Porém, vimos que os altares à modernidade ruíram, pois esta mantém pa-
tologias ligadas a uma espécie de competição darwiniana, no estilo “cada
um por si” ou “salve-se quem puder”, na qual a dissociação completa dos

328 Alusão ao mito da arca de Noé, onde animais de várias espécies foram preservados e ali
conviveram apesar da turbulência.
329 Alusão jocosa à música popular “Dança do Quadrado”.
330 Tirania do “nós”.
331 Tirania do “eu”.

180
Capítulo 10 • Quinto elemento: quadrantes

valores éticos da jurisdição do “nós” trouxe-nos uma individualidade dese-


quilibrada e vitimada por imaturidades.

Todavia, as reações ao exagero individualista cometeram o equívoco ro-


mântico e, ignorantemente, “jogaram o bebê com a água do banho”, ou
seja, ao invés de extirparem apenas o excesso, também arremessaram para
longe o aspecto saudável. Ao combater o lado sombrio de uma individua-
lidade justificadamente traumatizada com as tiranias dos coletivistas do
passado (jurisdição do “nós”), os neo-coletivistas pós-modernos voltaram a in-
vadir e atacar todo o espaço individual e não somente seu exagero, numa
espécie de eliminação do doente para matar a doença. Tudo fartamente
regado pelo fanatismo ideológico onde o “social” ou o Estado-Interventor
reencarnam como novas divindades laicas e seus seguidores consideram-
-se como os novos messias que conduzirão nossa sociedade para um “mun-
do melhor”,332 ainda que seja necessário queimar os infiéis “retrógrados e
reacionários conservadores” na fogueira purificadora “canhota”.333 Subs-
tituiu-se a expressão “Deus proverá” pelo novo mantra “o Estado prove-
rá” e uma legião de inocentes úteis clama inadvertidamente por benesses,
“avanços” e direitos cada vez maiores, através de sistemas comprovada-
mente insustentáveis,334 demandas estas que passam distantes das respon-
sabilidades meritocráticas.

Eis minha crítica e sugestão por uma política mais equilibrada entre os
lados positivos de cada perspectiva: a cooperação sociocultural e os valores li-
berais-meritocráticos.

Considero correto o pensamento wilberiano de que a desgraça da moder-


nidade deu-se pela dissociação entre a ética 335 e os valores individuais336
e científicos.337 Contudo, mantenho veemente discordância ideológica da

332 Alusão à obra Contra um Mundo Melhor, de Luiz Felipe Pondé.


333 Alusão aos movimentos igualitaristas conhecidos como “esquerda”, que extirparam indevidamen-
te os aspectos individuais, meritocráticos ou subjetivos, tornando-se patologicamente reducionistas.
334 Crença infantil na infinidade dos recursos estatais.
335 Jurisdição do “nós” (coletivismo).
336 Jurisdição do “eu” (individualismo).
337 Jurisdição do “isso” (materialismo).

181
Capítulo 10 • Quinto elemento: quadrantes

queles que se arvoram nos detentores da verdade,338 monopolizadores da


boa intenção339 e dos novos messias do “politicamente correto”.340

Temo um retrocesso do individualismo obviamente deficitário (mas su-


perior ao que havia antes dele) para situação ainda mais agravada por
uma ditadura oculta sob o “casaco de cordeiro”341 representada pela ex-
pressão “tudo pelo social” ou “vontade da maioria”,342 sempre presente
nos discursos de líderes demagogos. Parece-me evidente que a espécie
humana esbarra em mazelas resultantes de tais posturas nos mais va-
riados sistemas políticos, motivo pelo qual constatamos uma legião de
críticos do individualismo narcísico moderno343 (dissociação dos três
grandes) e outros que, como eu, abominam o pensamento tirânico-cole-
tivista 344 (fusão dos três grandes).

Quem está com a razão? Evoco uma resposta tipicamente wilberiana para
a questão formulada: talvez ambas as críticas estejam parcialmente cor-
retas. Ninguém com bom senso e racionalidade mediana suporta o au-
toritarismo narcísico de um lado (tirania do “eu”), e o avanço da cultura
coletivista no espaço individual de outro (tirania do “nós”), situação em
que um grupo de burocratas “santificados” pelo voto da maioria ditam
normas morais absurdas e usurpam direitos individuais legítimos em
nome da “justiça social”.

338 Estandartes do fundamentalismo religioso e panaceias em torno de crenças sócio-políti-


cas e em paradigmas salvacionistas da nova era.
339 Ordinariamente encontrados em fanáticos segmentos políticos polarizados entre esquerdis-
tas e direitistas, onde os maniqueístas detentores da “boa intenção” poderão “vestir a carapuça”.
340 Tipicamente encontrados nos críticos sociais dos chamados, justificada e pejorativamen-
te, de “esquerdinhas festivos”, desprovidos do ceticismo pragmático e meritocrático; ou da não
menos indigesta ação de religiosos de uma pseudo “direita”, que impede a aplicação prática do
Estado Laico e mantém símbolos religiosos em repartições públicas.
341 Alusão à expressão popular “lobo em pele de cordeiro”.
342 Norberto Bobbio, um dos mais respeitados cientistas políticos do século XX, diferencia
“vontade da maioria” de “tirania da maioria” (BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. Edi-
pro: 2005, p. 55).
343 Narcisismo individualista: abuso patológico dos interesses individuais sobre ética. Ab-
solutismo do quadrante superior esquerdo. Como profilaxia, os valores liberais defendem a
individualidade agregada à responsabilidade.
344 Tirania coletivista: prevalência patológica dos interesses coletivistas sobre os direitos indi-
viduais meritocráticos. Absolutismo do quadrante inferior esquerdo.

182
Capítulo 10 • Quinto elemento: quadrantes

A aludida tirania se vê corporificada na espoliativa carga tributária bra-


sileira, no flagrante ataque ao legítimo direito de individual propriedade
através do hediondo IPTU,345 nas tentativas de implementação da nova
CPMF,346 na escravização cultural pelo sistema de concessões de rádio e
televisão,347 nas reservas de mercado,348 nas falácias do “Estado-empresá-
rio”,349 “Estado-Babá”350 ou “Estado-de-bem-estar-social”351 e nos incon-
táveis exemplos secularmente distantes do pragmatismo e lógica meri-
tocrática.352 Apesar dessas pesadas críticas à tirania coletivista, espero ter
deixado suficientemente esclarecido que não defendo o individualismo
moderno, pois este desencaminhou-se para a insensibilidade humanista,353
o hedonismo superficial354 e o culto ecologicamente insustentável do con-
sumo355 (dissociação dos três grandes).

Infelizmente, abundam exemplos de ambas as mazelas oriundas da fu-


são e da dissociação dos três grandes, quando a carência de valores le-
vou interesses sectários a apossarem-se da aura da citada divindade laica
para curvar e dominar o público e o privado. Nesse cenário, segmentos
político-ideológicos ostentam suas logomarcas nos jardins da residência
oficial do Presidente da República,356 os atos de vandalismo perpetrados
nas vias públicas, em flagrante desconhecimento do que significarei por
urbanidade razoável,357 tudo sob os olhos de policiais com poucos recur-

345 IPTU: imposto predial territorial urbano, por meio do qual pagamos “aluguel” daquilo que
já nos pertence.
346 CPMF: contribuição por movimentação financeira.
347 Existente desde os governos militares e mantido por seus sucessores supostamente de-
mocráticos.
348 O Estado administra deficitariamente e o indivíduo paga os prejuízos através do erário
público.
349 O Estado deve cumprir e respeitar os limites de sua jurisdição estatal, à qual não pertence
a função empresarial, tipicamente privada.
350 Expressão utilizada por David Harsanyi.
351 Tema competentemente abordado pelo economista e autor brasileiro Rodrigo Constantino.
352 Onde a “justiça social” é bem vinda desde que não camufle uma “injustiça individual”.
353 Banalização das condições mínimas de salubridade.
354 Culto ao corpo ou ao jargão forever young.
355 Prática desmedida de compras-tampão, com a finalidade de encobrir a falta de conteúdo
existencial pelo brilho fugaz das embalagens egóicas.
356 Lamentável fato histórico registrado no primeiro ano do governo petista de Luis Inácio
Lula da Silva, em teratológica confusão entre partido, governo e Estado, que é a base de qual-
quer estrutura pública ditatorial.
357 Desde atos mais graves àqueles considerados “pecadilhos veniais”, como jogar lixo na rua,
impor a fumaça do seu cigarro aos demais, pichar muros alheios etc.

183
Capítulo 10 • Quinto elemento: quadrantes

sos tecnológicos, mal treinados, pessimamente remunerados e temerosos


das reprimendas dos “críticos de gabinete”,358 que não compreendem o
amargor dos remédios nada populistas para correção da rota de implo-
são social que vivemos.

Fomos do uso humano do teocentrismo como agente tirânico ao antropo-


centrismo narcísico e chegamos no autoritarismo coletivista, da pré-moder-
nidade à pós-modernidade, para culminarmos numa disputa maniqueísta
entre a morte de valores culturalmente validados359 e a eliminação da auto-
nomia individual,360 litígio que nos levou para o campo do jargão adotado
e criticado nesta obra, ou seja, “isso versus aquilo”, dessa vez em sua forma
tríplice: “individualidade versus moralidade versus cientificidade”, “autono-
mia versus bondade versus verdade”, “subjetividade versus intersubjetividade
versus objetividade” e finalmente “eu versus nós versus isso”.

Concluo e constato uma considerável reação à autonomia individual (in-


dividualismo) pelo movimento genuflexório aos sedutores e enganosos
argumentos românticos, no âmbito do qual ocorre o reinado das utó-
picas ideologias de base rousseauniana (coletivismo), em que o homem
nasceria bom (tabula rasa) e a sociedade seria a grande responsável por
corrompê-lo.

Esse absurdo reducionista impôs a toda a sociedade que suportasse todo


o ônus pelas patologias individuais, em flagrante estímulo à manutenção
da infantilidade humana, análogo ao pai superprotetor que, na verdade, é
o próprio causador da imaturidade pelo mimo excessivo. Em outras pala-
vras, o zeitgeist361 moderno extrapolou, mas a solução parece-me estar na
contramão dos insanos exageros das falácias coletivistas.

Nesse momento, como profilaxia de que minha crítica seja deveras gene-
ralizada, aplaudirei o mérito das conquistas modernas e as tentativas de
inserção social de maior solidariedade e cooperação, mas advogo aber-

358 Alusão aos críticos meramente teóricos ou “do ar condicionado”.


359 Solidariedade, bondade, ética, altruísmo, fraternidade etc.
360 Autonomia, merecimento, criatividade e desvalorização a tudo que é legitimamente indi-
vidual, meritocrático, artístico ou personalíssimo.
361 “Zeitgeist”: espírito da época, espírito do tempo ou sinal dos tempos. Significa o conjunto
cultural e intelectual em determinado período, por suas características genéricas.

184
Capítulo 10 • Quinto elemento: quadrantes

tamente a introdução de uma oportuna dose de liberalismo, como antí-


doto ao entorpecimento do enfrentamento individual das consequências
de nossas respectivas escolhas, obviamente com a inclusão e reconheci-
mento das demandas sociais para as correções graduais das imperfeições
que Wilber chamou de “desastre da modernidade” ou dissociação dos três
grandes.

Em suma, demandamos justiça social e individual (com especial atenção


para o elemento “e”, grafado em itálico), desprovidas do nefasto absolu-
tismo de quadrante para o correto encaminhamento da questão para uma
interação e fluidez assistencial que evite a constatação de Clive Staples
Lewis, citado por David Harsanyi, que tristemente valido: “Entre todas as
tiranias, a exercida para o bem de suas vítimas é a mais opressiva. Talvez
seja melhor viver sob o olhar de ‘nobres’ usurpadores do que intrometidos
moralistas onipotentes. A crueldade do ‘nobre’ usurpador às vezes descan-
sa, sua cupidez por vezes é saciada. Mas aqueles que nos atormentam para
o ‘nosso próprio bem’ o farão sem descanso, pois o fazem com a aprova-
ção de suas consciências”.362

Os elementos integrais nos quadrantes


Antes de aprofundarmos e inserirmos os quatro primeiros elementos da
Filosofia Integral (níveis, linhas, estados e tipos) nos quatro quadrantes,
numa desafiadora conexão conceitual, proponho um resumo para, ao me-
nos, reforçarmos a compreensão das perspectivas focadas na subjetivi-
dade e intersubjetividade dos indivíduos mais relacionadas aos aspectos
objetivos ou interobjetivos.

Tal resumo encontra-se no Quadro 10.9 a seguir, baseado na obra wil-


beriana, e tem finalidade exclusivamente didática, pois a análise mais
aprofundada não suportará interpretação em termos absolutos e pode-
rá estabelecer saudáveis conexões entre os quadrantes, além de permitir
questionamentos a respeito do modelo apresentado.

362 HARSANYI, David. O Estado babá. Litteris: 2011.

185
Capítulo 10 • Quinto elemento: quadrantes

Quadro 10.9
Exemplos didáticos das tendências interiores e exteriores

Proposta Lado esquerdo363 Lado direito364


Tendência histórica Oriente Ocidente
Psicologia Freud 365
Watson366
Sociologia Weber Comte
Filosofia Heidegger Locke
Antropologia Taylor Lenski
Linguística Hermenêutica Estruturalismo
Teologia Agostinho Aquino
Espiritualidade Espírito Energia
Materialismo Exclusão Validação
Cartografia Cartógrafo Mapa
Paradigmas Consciencial Material
Foco Veracidade Verdade
Palavras-chave Interpretação Fato
Perguntas-chave O que isso significa? O que isso faz?

Colocarei uma última proposta didática (Quadro 10.10), que apresenta


exemplos que julgo facilitadores para a compreensão desses conceitos e
das principais diferenças entre os lados direito e esquerdo dos quadran-
tes. Nela, exploro componentes relacionais entre os quadrantes superiores,
com a primeira coluna focada na perspectiva interior-individual e a se-
gunda, na contraparte exterior.

363 Interior, dialógico e interpretativo.


364 Exterior, monológico e empírico.
365 Obviamente, não se limita à psicanálise (citada apenas como referência histórica), mas
estende-se a todas as terapias “falantes” ou focadas na cura interpretativa das palavras, seja ela
cognitiva, interpessoal, junguiana, Gestalt ou análise transacional.
366 Abordagens empíricas, relacionadas à coleta e mapeamento de dados.

186
Capítulo 10 • Quinto elemento: quadrantes

Quadro 10.10
Comparativo didático entre elementos dos quadrantes superiores,
esquerdo e direito

Quadrante superior esquerdo367 Quadrante superior direito368


Apreensão Átomos
Irritabilidade 369
Células370
Sensação rudimentar Organismos metabólicos371
Sensação Organismos protoneurônicos372
Percepção Organismos neuronais373
Percepção / impulso Cordão neural374
Impulso / emoção Tronco cerebral375
Emoção / imagem Sistema límbico376
Símbolos Neocórtex377
Conceitos Neocórtex complexo378

Resta-me integrar o primeiro elemento integral (níveis), bem representado


pelo conceito de hierarquias naturais (Capítulo 6), aos quatro quadrantes,
o que farei pela Figura 10.1, onde, em um mesmo quadrante, poderemos
observar estágios suficientes para validar teorias aparentemente contradi-
tórias como a de Buda 379 e Freud,380 ambas do quadrante superior direito,
mas em patamares evolutivos distintos.

367 Capacidade consciencial; subjetividade.


368 Reflexo exterior, material; considerado mais empírico, objetivo. É o quadrante da ciência
convencional ou padrão.
369 Capacidade de responder ativamente ao estímulo ambiental.
370 Exemplo: genética.
371 Exemplo: plantas.
372 Coelenterata. Exemplo: anêmonas.
373 Anelídeos. Exemplos: minhocas.
374 Exemplos: peixes e anfíbios.
375 Répteis.
376 Paleomamíferos.
377 Primatas.
378 Humanos.
379 Sidarta Gautama: morte do ego.
380 Sigmund Freud: reforço do ego.

187
Capítulo 10 • Quinto elemento: quadrantes

Figura 10.1 – Sobreposição dos níveis (Grande Ninho) nos quatro quadrantes.

Receio que esteja demasiadamente acelerada a apresentação destes intrin-


cados conceitos e respectiva integração, mas ousarei avançar para inserção
do segundo elemento da Filosofia Integral (linhas)381 nos quatro quadrantes,
a partir de exemplos retirados diretamente das obras wilberianas e dos ensi-
namentos de seu principal intérprete brasileiro, Raynsford (Quadro 10.11).

Quadro 10.11
Inserção do elemento “linhas” nos quatro quadrantes

Interior Exterior
Comportamental

Linhas com foco intencional: Linhas com foco comportamental:


x Cognitiva x Motora
Intencional

Individual
x Emocional x Cerebral
x Espiritual x Cinestésica

Linhas com foco cultural: Linhas com foco social:


x Interpessoal x Produtiva
Coletivo
Cultural

x Moral x Econômica
Social

x Valorativas x Político-sistêmica

381 Capítulo oitavo desta obra.

188
Capítulo 10 • Quinto elemento: quadrantes

Pretendo manter o estilo didático, desta vez integrando o terceiro elemen-


to da Filosofia Integral (Estados)382 nas perspectivas dos quadrantes (Qua-
dro 10.12). O intuito é o de que os aspectos intencional, comportamental,
cultural e social emerjam intuitivamente no leitor e que as diversas asso-
ciações com fenômenos adjetivados de espirituais possam ser investigadas e
interpretadas sob novos e empolgantes aspectos.

Quadro 10.12
Inserção do elemento “Estados” nos quatro quadrantes

Interior Exterior

Comportamental
Naturais Intencional Desempenho

Individual Incomuns Cerebrais

Fenomênicos Biológicos

Interpessoais Econômicos

Coletivo Emoções coletivas Políticos


Cultural

Social
Comunicativos Climáticos

Por meio dessas conexões, concluí que muitos conflitos podem ser dirimi-
dos pela compreensão de que nossas diferenças podem ser quantitativas
ou qualitativas. O leitor notará que os valores individuais setorizados em
diferentes estados e identificados pelas inúmeras linhas383 de desenvolvi-
mento podem cooperar com o todo, sem a necessidade do nivelamento
rasteiro da tabula rasa e da mítica expressa pela frase “todos somos iguais”.
Isso posto, apresento a integração do quarto componente integral (tipos)
na tetra-óptica wilberiana (Quadro 10.13).

382 Capítulo 9.
383 Segundo componente da Filosofia Integral.

189
Capítulo 10 • Quinto elemento: quadrantes

Quadro 10.13
Inserção do elemento “tipos” nos quatro quadrantes

Interior Exterior

Comportamental
Corporais
Personalidade

Intencional
Individual Sanguíneos
Gênero (sentimentos)384
Comportamentais

Democracias
Relacionais
Coletivo Transportes
Cultural

Culturais

Social
Linguísticos

Após este longo exercício mental na identificação e setorização das diver-


sas perspectivas, teorias, autores e exemplares ideológicos, restam-nos
duas opções, digamos, metodológicas: a escolha de uma abordagem em
detrimento de outra ou a possibilidade integral para o aproveitamento de
tudo e todos. No que diz respeito a esta última opção, o “segredo” deste
universalismo acolhedor está na palavra que outorgou o título desta obra:
conexões.

As conexões entre os quadrantes


O presente tópico responde ao questionamento sobre a evitação do re-
ducionismo de quadrante, pois, quando reconhecemos as conexões entre
os quadrantes, identificamos suas múltiplas dimensões em níveis comple-
mentares e não excludentes, o que Wilber denominou de all quadrants in all
levels.385 Qualquer evolução, seja ela “apenas” intencional, comportamental,
cultural ou social, ficaria restrita à “univisão” respectiva. Todavia, insistirei
perseverantemente na inexistência de hermetismo absoluto, cuja restri-

384 Os trabalhos da notável Carol Gilligan demonstram que os homens tendem a ferir os sen-
timentos para salvar as regras, enquanto as mulheres tendem a ferir as regras para salvar os
sentimentos.
385 Todos os quadrantes em todos os níveis.

190
Capítulo 10 • Quinto elemento: quadrantes

ção meramente ilusória interagirá no caleidoscópio holístico, onde o gosto


final da “salada mista” possui a colaboração de cada ingrediente. Somos
mais que meros atores e fazemos parte do próprio palco, do público e deste
gigantesco teatro cósmico multidimensional.

Aprecio a imagem do oceano com suas várias ondas interpenetrando-se,


mas não podemos permitir que a beleza de tais pensamentos usurpem
aquilo que temos de único e precioso: a nossa própria individualidade. Finali-
zam-se as disputas entre a influência da mesologia e a personalidade individual,
para encontrarmos uma jurisdição onde ambas as realidades e seus valores
sejam reciprocamente relevantes, numa apoteótica conexão entre totali-
dades, perspectivas, autores, teorias, ideologias e posicionamentos.

191
192
Terceiro bloco

Postulados da
Conscienciologia

193
194
Multidimensionalidade
e multiexistencialidade
11

Reitero meus cumprimentos ao leitor pelo atrevimento intelectual e enfren-


tamento desta empolgante aventura pelo universo da Filosofia Integral e
seus cinco elementos. Todavia, esta viagem repleta de componentes e refle-
xões transcendentes está apenas no início, pois, neste terceiro bloco, apre-
sentarei os postulados e valores que considero basilares na Conscienciologia.

Seguindo o padrão adotado até o momento, os referidos postulados seguem


listados abaixo, sendo o primeiro o foco central do presente capítulo. Aqui,
o leitor poderá vasculhar as diversas conexões entre conceitos, ciências,
filosofias e ideias polêmicas repletas de inovações, tanto conscienciológicas
quanto de outros segmentos.
ƒ Multidimensionalidade e Multiexistencialidade.
ƒ Holossomaticidade e Pensenidade.
ƒ Projetabilidade e Bioenergeticidade.
ƒ Assistencialidade, Cosmoeticidade, Maxifraternidade e Universalidade.

Preliminarmente ao estudo mais aprofundado, tranquilizo o leitor no to-


cante ao excesso de prefixos e sufixos que, no início, parecem aberrantes
mutações linguísticas, mas cujos significados e importância serão paulati-
namente compreendidos. Os neologismos são necessários para designar
novos postulados, pois os novos significantes pontuam a que veio a Cons-
cienciologia e sua firme proposta de fincar sua bandeira na jurisdição vi-
vencial, em flagrante abandono aos termos antigos ligados aos assuntos
transcendentes.

195
Capítulo 11 • Multidimensionalidade e multiexistencialidade

Outra peculiaridade também poderá incomodar, relativamente ao uso ex-


cessivo do sufixo “-dade”. Porque ao invés de “multidimensionalidade”,386 não
utilizei apenas a expressão “várias dimensões”?387 Esse pequeno detalhe faz dife-
rença para minha concepção da Conscienciologia, pois, enquanto propos-
ta edificada em vivências pessoais, não bastaria a crença na multiplicidade
dimensional, mas sim nossa efetiva qualidade ou capacidade de experimen-
tar tais dimensões através de inúmeras ferramentas, em especial a projeção
lúcida, cuja importância outorgou-a capítulo específico.388 As múltiplas di-
mensões são as jurisdições específicas de atuação da consciência e multidi-
mensionalidade, no sentido empregado nesta obra, representa a faculdade
das consciências manifestarem-se em tais dimensões.

As presentes afirmações seriam menos inquietantes se a Conscienciolo-


gia estivesse inserida em algum movimento new age ou vertente transpes-
soal, porém, diante da proposta enquanto ciência e sob a égide da des-
crença, em ambiente antidogmático, onde a refutação é bem-vinda, uma
primeira dificuldade surge em relação à hipótese multidimensional: como
prová-la? Ao cumprir o objetivo de responder a tal pergunta, teremos que
adentrar a uma questão anterior: quantas e quais dimensões são estas? A par-
tir dessa pergunta, farei o mapa deste capítulo, contendo suas subdivisões
didáticas:
ƒ Dimensões da Conscienciologia.
ƒ Imortalidade da Consciência.
ƒ Multiexistencialidade.
ƒ As ferramentas vivenciais.

Dimensões da Conscienciologia
Diferentemente da escola pitagórica e suas quatro dimensões (matéria,
vida, mente, espírito) estudadas no bloco introdutório da presente obra, es-
pecificamente no Capítulo 2, sob o título Cosmos e Kosmos, a Conscienciolo-
gia valida cinco dimensões, cujas particularidades exploraremos a seguir:
material, energética, emocional, mental e consciencial.

386 Além do mero estado ou condição multidimensional, incluindo a vivência destas dimen-
sões.
387 Mero estado ou condição multidimensional.
388 Capítulo 14: Projetabilidade e Bioenergeticidade.

196
Capítulo 11 • Multidimensionalidade e multiexistencialidade

A dimensão material, bem como a energética, são as mais perceptíveis do


ponto de vista dos sentidos físicos e podem ser exemplificadas pelo simples
ato de caminhar, correr, brincar, gesticular, praticar algum esporte ou até
mesmo verificar os polêmicos fenômenos de ectoplasmia,389 em suma, situações
predominantes do conceito ordinário de ação e correspondente verbo agir.

As dimensões emocional e mental, respectivamente, podem ser significadas


pelas jurisdições pertinentes aos verbos sentir e pensar, onde gostar, entu-
siasmar, apaixonar ou odiar não representam apenas emoções que dizem
respeito ao seu emissor, mas também a todos os demais que, na qualida-
de de receptores conectados, receberão uma certa influência pelo efetivo
impacto oriundo de pensamentos e sentimentos alheios. Destacarei a di-
mensão mental ou do discernimento, na qual pensare paga gabela,390 já que
a sociedade hodierna está carente de autoenfrentamento sincero quanto
ao simples, mas importante, questionamento: qual a qualidade de nossos sen-
timentos e pensamentos? Eis uma apertada síntese das quatro primeiras di-
mensões conscienciológicas.

A dimensão consciencial requer explicação mais interpretativa e conside-


ravelmente mais polêmica, pois arranharei a Mateologia para tratar do
tema. Não possuo expressivas percepções para afirmar a existência des-
te universo existencial desprovido da faculdade de pensar, muito embora,
no campo das hipóteses, defenda sua independência em relação ao pensa-
mento, mormente pelo raciocínio dedutivo. Utilizo-me da capacidade de
reflexão e patrocino, como constructo lógico, a proposição consciencio-
lógica de que somos Consciências e participamos de múltiplas dimensões em
existências contínuas e sucessivas, em empolgante crescendo evolutivo em
vários níveis, linhas e atributos conscienciais.

O pesquisador e autor Wagner Alegretti, em sua obra Retrocognições, pro-


põe a classificação dos estados conscienciais pelo prisma da multidimen-
sionalidade: “intrafísico, extrafísico, projetado e livre”.391 Farei uma breve

389 Ectoplasmia: termo conhecido na Parapsicologia, introduzido por Charles Richet, para
designar uma substância esbranquiçada, fluídica, que pode ser exteriorizada para fora do cor-
po de algumas pessoas, mais frequentemente pela boca ou ouvidos.
390 Pensare paga gabela: pensar paga imposto. Contraposição ao dito italiano que escutava
na minha família: pensare non paga gabela ou pensar não paga imposto.
391 ALEGRETTI, Wagner. Retrocognições. Iipic: 2000, p. 64.

197
Capítulo 11 • Multidimensionalidade e multiexistencialidade

explicação de cada um deles e sugiro ao leitor a manutenção de seu juízo


crítico, mas, de outro lado, que se dispa dos excessos e exerça livres refle-
xões no campo das possibilidades.

ƒ Intrafísico. Refere-se à manifestação corpórea, ou seja, através do nosso


conhecido corpo físico. A linguagem consciencial utiliza-se do signifi-
cante ressomado para designar a Consciência “detentora” ou conectada
ao veículo físico; na orientação vinda do Espiritismo e também nos pos-
tulados do Racionalismo Cristão, prefere-se o termo encarnado.
ƒ Extrafísico. Ambiente “típico” ou condição da Consciência desprovida do
corpo físico, cuja manifestação mais “flagrante” ocorrerá basicamente
pelo psicossoma, também conhecido como corpo emocional, carro sutil
da alma, perispírito e corpo viajante, entre inúmeras designações e cujo
estudo mais detalhado faremos no capítulo seguinte, sob o título Holos-
somaticidade e Pensenidade.
ƒ Projetado. Interessante e polêmica condição em que a Consciência en-
contra-se vinculada ao corpo físico por ligações energéticas, mas o psi-
cossoma descoincide do soma em situação otimizada para vivência da
dimensão chamada de extrafísica. Vale mencionar o postulado da pro-
jeção de mentalsoma, na qual o corpo mental aloca-se em situação ainda
mais peculiar da qual possuo parco conhecimento teórico.
ƒ Livre. Condição da Consciência que descartou os três corpos a saber: so-
ma,392 energossoma 393 e psicossoma,394 manifestando-se exclusivamente
com o veículo mentalsomático, em tese, pelo amadurecimento suficiente
e desnecessidade das sondas consideradas mais grosseiras.

Imortalidade da Consciência
Uma vez vivenciada, compreendida ou apenas admitida como hipótese a
existência da multidimensionalidade, o indivíduo curioso perscrutará as
consequências desse postulado. Confesso que possuo a curiosidade citada
e estudei inúmeras vertentes filosóficas e teorias que se interessam pelo
tema ora focado e validaram a condição da imortalidade da nossa essên-
cia inteligente. A Conscienciologia, por sua vez, além de apontar para a
sobrevivência da Consciência após a morte biológica, também oferece téc-

392 Corpo físico.


393 Corpo energético.
394 Corpo emocional.

198
Capítulo 11 • Multidimensionalidade e multiexistencialidade

nicas e ferramentas para que o próprio pesquisador verifique a realidade


extrafísica através da mencionada projeção consciencial lúcida e outras
possibilidades parapsíquicas, temática na qual o leitor terá oportunidade
de se aprofundar em capítulo posterior.395

Poderíamos discorrer sobre a imortalidade da Consciência, em abordagem


atualmente em moda na Medicina, no tocante ao fenômeno conhecido pela
sigla EQM (experiência de quase morte),396 pesquisado ao redor do mundo
por inúmeros cientistas sérios como é o caso do Dr. Sam Parnia,397 um dos
maiores especialistas do mundo no estudo científico da morte, dos estados
da mente humana, do cérebro e das experiências de quase morte, que divi-
diu sua pesquisa entre os hospitais do Reino Unido e a Cornell University,
em Nova York, em parceria com outros centros de estudos inovadores.
Contudo, embora reconheça os fenômenos de quase morte, o norte cons-
cienciológico apresenta técnicas para vivenciar fenômeno semelhante de
forma mais tranquila ou menos traumática.

Outra vertente que estive tentado a seguir neste capítulo é a descrita na


obra A República, de Platão,398 que conta a história de um suposto soldado
armênio, de nome “Er”, que fora dado como morto em combate, mas na
verdade vivenciara o fenômeno da EQM, do qual trouxe informações que
sugerem uma vivência extrafísica, relatada pelo linguajar típico da época e
do famoso autor e expoente da Filosofia. Neste momento, o leitor poderá
novamente questionar-se: diante de duas vertentes, uma científica e outra filo-
sófica, porque a Conscienciologia insiste no aspecto vivencial? Esta é a pergunta
central e a base do seu valorizado princípio da descrença, pois a busca por,
de fato, experimentar os postulados conscienciológicos, diferenciará o ci-
dadão meramente teórico daquele que está muito além de ensinamentos
doutrinários. A vivência supera a crença e delega ao pesquisador a auto-
comprovação, que obviamente deve ser interpretada com racionalidade e
prudência, em contundente distanciamento do fundamentalismo étnico,
religioso, ideológico e dos temores reverenciais ou sociais.

395 Capítulo 14.


396 EQM: experiência de quase morte.
397 PARNIA, Sam. O que acontece quando morremos. Lumen: 2008.
398 PLATÃO. A República. Edipro: 2018, p. 313-319.

199
Capítulo 11 • Multidimensionalidade e multiexistencialidade

Estamos diante de um nó górdio que ocupou a mente de filósofos, cientistas


e religiosos: sobreviveremos à morte biológica? Aos olhos de muitos, inclusive
dos meus, um dos caminhos para uma resposta consistente e distante das
infantis crendices humanas está no estudo minucioso e na experimentação
de fenômenos parapsíquicos e projetivos. Solicito ao leitor um pouco mais
de paciência e que mantenha esta questão em mente até o término da leitu-
ra deste segundo bloco, onde os conceitos de holossoma399 e projeção lúcida400
ajudar-nos-ão na edificação de nossas próprias conclusões, cada qual con-
soante nossas respectivas vivências, cosmovisões e interpretações.401

Multiexistencialidade
Destacarei a sequência lógica das decorrências do pressuposto multidi-
mensional, evidentemente condicionada ao aspecto vivencial ou à aceitação
desta premissa, ao menos como hipótese. Assim, adentraremos o conceito
da multisserialidade, ou seja, consideraremos a possibilidade de existência
objetiva de várias séries existenciais em oscilação intra e extrafísica, fenô-
meno que a Conscienciologia denomina ciclo de ressomas e dessomas, conhe-
cido por inúmeras doutrinas ou tradições esotéricas como reencarnação,
roda de samsara, em suma, morte e renascimento.

Diante de todo o vasto histórico, antigo e atual, ao redor da temática, tive o


cuidado de acionar uma série de filtros para eliminação dos conteúdos mí-
ticos ou simplesmente imaturos. Encontrei esse garimpo racional tanto em
experimentos da Conscienciologia quanto na Filosofia Integral e, na hipó-
tese das minhas conclusões não estarem equivocadas (sugiro ao leitor que
mantenha essa possibilidade sempre em mente), a multiexistencialidade pode-
rá ser concebida como uma realidade objetiva, motivo pelo qual questiono
enfaticamente nossas “certezas científicas” em relação à unidimensionalidade
material. Aliás, nesse sentido, uma infinidade de pesquisadores trouxeram-
-nos robustos argumentos dignos de reflexão mais profunda, alguns total-
mente desconhecidos do público leigo, como Charles Tart e sua obra The End
of Materialism e o já mencionado Dr. Sam Parnia, além de famosos filósofos
da antiguidade, grandes tradições de sabedoria, infinidades de relatos dignos

399 Capítulo 14.


400 Capítulo 15.
401 Vide conexões paradigmáticas expostas no capítulo quinto e perspectivas do capítulo
sexto.

200
Capítulo 11 • Multidimensionalidade e multiexistencialidade

de credibilidade e hipóteses de rara felicidade, que questionam seriamente a


redução de todas as instâncias dimensionais ao plano material.

As ferramentas vivenciais
O desafio conscienciológico e seu diferencial em relação às religiões pare-
cem-me estar no equilíbrio entre a descrença cética e a abertura mental em
busca de vivências transcendentes. Portanto, ao validar as dimensões que
direcionam o foco de seus estudos, a Conscienciologia propõe ferramentas e
técnicas vivenciais, a fim de que o próprio pesquisador – ou seja, eu ou você
– possa não apenas observar, mas, efetivamente, participar do experimento.
A conclusão segue o perfil impactante e nada ortodoxo desta vertente do
conhecimento: somos os pesquisadores e, concomitantemente, os objetos da pesquisa.

Considero prudente seguir esta linha de raciocínio para algumas digressões


sobre a base de que não somos apenas os cientistas, mas também o experi-
mento e o próprio laboratório. Nesse sentido, nossas relações interpessoais,
ações, reações, enfim, tudo, passará a conter preciosas informações para
nossa autopesquisa e, com essa reflexão, chegaremos à compreensão de que
todas as pessoas e o próprio universo são nossos professores. O biotério cós-
mico multidimensional pode ser comparado a uma gigantesca escola onde
inexistem ilhas de isolamento, justamente por um aspecto absolutamente
notório em minhas divagações mais íntimas: a evolução ocorre nas conexões.

Nesse momento de insight e escrita mais fluida, lembro-me do tema des-


te tópico – ferramentas vivenciais – que, por sua vez, está inserido em um
bloco principal que porta o título Postulados da Conscienciologia. Diante dis-
so, embora reitere e valide as divagações esposadas, obrigo-me a retornar
para a questão autoprobatória ou autoconfirmatória sobre a existência da
multidimensionalidade. Assim, recomendo ao leitor que leia atentamente
o próximo capítulo, cujo foco são nossos corpos de manifestação que, entre
outras utilidades, atuam como ferramentas ao mesmo tempo investigati-
vas e investigáveis à nossa disposição. O estudo dessas ferramentas pela
comunidade científica clássica deveria entrar na pauta do mundo atual,
com o objetivo de facilitar as respostas para algumas problemáticas mo-
dernas. Ao leitor que ainda não conheça tais corpos, apresentarei as teorias
do holossoma e do pensene e a possibilidade de aplicação de técnicas para
experimentos pessoais.

201
202
Holossomaticidade
e pensenidade
12

Ao pensar neste texto introdutório, resisti à vontade de colocar o presente


capítulo na abertura do terceiro bloco desta obra, eis que considero tais
conceitos basilares para a compreensão dos demais, além de facilitado-
res da proposta vivencial conscienciológica. Holossoma402 é o conjunto de
corpos, instrumentos ou veículos de manifestação da Consciência; holosso-
maticidade, por sua vez, representa a faculdade das Consciências manifes-
tarem-se por estas sondas. Retornaremos às questões de temas pretéritos
referentes ao complexo probatório: como provar o holossoma? Afinal, quantos
e quais corpos possuímos? A partir destas perguntas, faremos o mapa deste
capítulo, que contém as seguintes subdivisões didáticas:
ƒ O protagonista.
ƒ Os quatro veículos.
ƒ Onde entram os chacras?
ƒ As ferramentas vivenciais.
ƒ As três dessomas.
ƒ Posso pensar em quarta dessoma?
ƒ Pensenidade.

O protagonista
O condutor ou protagonista de nossa existência pode ser explicado como
aquele que pensa, sente e age, mas não se confunde com pensamento,

402 O prefixo holo, do grego holos, significa “todo ou conjunto”. O sufixo soma, também do
grego, significa corpo.

203
Capítulo 12 • Holossomaticidade e pensenidade

sentimento ou ação. No linguajar conscienciológico, este protagonista,


ou aquilo que somos em essência, é designado pelo termo Consciência,
enquanto um dos elementos organizadores da matéria física, cuja com-
plexidade penso estar além das minhas limitações temporais e espaciais e
no âmbito da qual a compreensão da frase “eu sou Consciência” torna-se
ainda mais desafiadora. Muitos segmentos filosóficos e religiosos admi-
tem a existência da Consciência, mas por significantes distintos, ora re-
lembrados: atman, essência, individualidade, sujeito, testemunha, self, ser, alma,
espírito, causa da vida psíquica, controlador, corpo causal, eu central, eu maior, eu
real, verdadeiro eu, princípio espiritual, jiva, mônada e condutor do soma, entre
outras denominações.

Os quatro veículos403
O presente tópico responde questão referente ao número de corpos va-
lidados pelo postulado conscienciológico, ou seja, possuímos quatro veí-
culos de manifestação da Consciência (VMC), a saber: soma, energossoma,
psicossoma e mentalsoma. Esta estrutura foi bastante explorada, com algumas
variações, por teosofistas, rosacruzes, hindus, tibetanos, yogues e muitos outros
povos, linhas do conhecimento humano e tradições milenares. O Quadro
12.1 sintetiza e compara algumas terminologias no âmbito de três corren-
tes distintas.

Quadro 12.1
Resumo comparativo das terminologias empregadas pela proposta
conscienciológica, a filosofia hindu e outras linhas

Conscienciologia Hindus404 Outras linhas


Consciência Anandamayakosha Corpo causal
Mentalsoma Vijnanamakosha Corpo mental
Psicossoma Manomayakosha Corpo emocional
Energossoma Pranamayakosha Corpo energético
Soma Annamayokosha Corpo material

403 Grande parte das informações deste subtítulo foram extraídas do tratado Projeciologia e
da obra Retrocognições, respectivamente dos autores Waldo Vieira e Wagner Alegretti.
404 SILVA, Roberto. Ativando o corpo energético. Instituto: 1991, p. 19.

204
Capítulo 12 • Holossomaticidade e pensenidade

Entendo serem desnecessários esclarecimentos suplementares a respeito


do soma ou corpo físico no presente contexto, tarefa que não se coaduna
com o propósito desta obra, motivo pelo qual apenas registrarei que o cor-
po biológico ou celular é nossa sonda mais densa, que permite à Consciên-
cia uma interação mais perceptível, rústica ou primária com a dimensão
que se nos apresenta como material, ordinária ou “intrafísica”.

O energossoma, por outro lado, traz um primeiro aspecto relativamen-


te incomum para a cultura ocidental e consideravelmente desconhecido
pela Medicina convencional alopática, porém com maior aceitação na
Medicina Chinesa para explicar o funcionamento da Homeopatia, da
Acupuntura, do Do-in, da Digitopressura e do Shiatzu. Na definição do
tratado Projeciologia,405 energossoma é o “invólucro vibratório, energético,
luminoso, vaporoso e provisório que coexiste estruturalmente e circun-
volve o corpo humano”.

Antes de adentrarmos às demais sondas ou veículos de manifestação da


Consciência, entendo pertinente elencar outros significantes sinônimos de
energossoma: corpo energético, holochacra, corpo Bardo (tibetanos), corpo de vita-
lidade, corpo ou duplo etérico (espíritas), corpo prânico, corpo unificador, corpo vital
(rosacrucianos), grande fantasma, lastro do psicossoma, paracorpo energético, véu
etérico, veículo do prana, veículo da vitalidade e veículo semifísico, entre outras
denominações.

O veículo ou sonda de manifestação que atua, digamos, “vocacionalmen-


te”, na dimensão extrafísica,406 com forma assemelhada ao corpo físico,
foi denominado pela Conscienciologia de psicossoma, cujo estudo sino-
nímico407 considero dos mais interessantes, motivo pelo qual apontarei
como esta sonda foi representada terminologicamente em outras linhas
do conhecimento humano, desde a mais remota antiguidade: alma via-
jante (Apaches), astroeidê (neoplatônicos da Escola de Alexandria), mano-
mayakosha ou kosha (Vedanta), carne sutil da alma (Pitágoras), carro sutil da

405 VIEIRA, Waldo. Projeciologia. Editares: 2019, p. 257.


406 Dimensão extrafísica: aprofundamento no capítulo seguinte; no momento, ficaremos
com a explicação simplista, como a jurisdição além da dimensão que conhecemos como ma-
terial ou intrafísica.
407 VIEIRA, Waldo. Projeciologia. Editares: 2019, p. 282.

205
Capítulo 12 • Holossomaticidade e pensenidade

alma (Platão), segundo corpo (Parapsicologia), sexta consciência (budismo),


kama-rupa (budismo esotérico), ka ou duplo (hermetismo egípcio), ruach
(cabala hebraica), nephesph (antigos hebreus), eidolon (gregos), enormon
(Hipócrates: 460-356 a.C.), corpo sutil ou etéreo (Aristóteles), corpo vital
(rosacrucianos), corpo vital da alma (Tertuliano, escola apologética), corpo
espiritual (apóstolo Paulo), aerossoma II (experimentadores contemporâ-
neos), corpo astral ou evestrum (Paracelso: 1490-1541), corpo das emoções,
corpo ou pequeno fantasma, hambarnan (Indonésia), hóspede oculto (Maurice
Maeterlinck, Nobel de literatura em 1911: 1861-1949), hóspede desconhe-
cido408 (Brian Inglis), larva (romanos), umbra (Roma antiga), kha (Egito),
khi (vietnamitas), luz cintilante (chineses), perispírito (Allan Kardec)409, su-
ckshuma upadhi (Raja Ioga) e utai ( Japão), além de muitas outras nomen-
claturas ao redor do planeta, cujo registro dispensarei por mero temor à
prolixidade.

Finalmente, abordarei o veículo mental ou mentalsoma, consoante termi-


nologia conscienciológica. Encontrei pouca literatura a respeito, mesmo
no tratado Projeciologia, onde constatei a existência de uma maior riqueza
de conteúdo sobre os demais veículos. Apesar disso, o referido autor Wag-
ner Alegretti afirmou que este corpo do discernimento, “em nosso nível
evolutivo, confunde-se com a própria consciência, já que até hoje não foi
observada nenhuma forma de projeção em que a consciência abandonasse
o mentalsoma ou nenhuma forma de percepção ou manifestação que fosse
além da dimensão mental”.410

Particularmente, valido a segurança argumentativa de Alegretti, que está


inserido em jurisdição portadora do prestígio vivencial, porém não resis-
to à aventura de arriscado vôo mateológico e flutuação que se descola de
qualquer vivência, a fim de elaborar livremente questionamentos e ponde-
rações nesta interface entre veículo mental e Consciência, distanciando-
-me de uma margem de segurança empírica. Assim, entrego-me à pergun-
ta: mentalsoma seria a própria Consciência?

408 INGLIS, Brian; WEST, Ruth. The Unknown Guest. White Crow Books: 2018 (título mal tra-
duzido como O mistério da intuição).
409 Pseudônimo escolhido pelo codificador do Espiritismo, professor Hippolyte Léon Deni-
zard Rivail.
410 ALEGRETTI, Wagner. Retrocognições. Iipic: 2000. p. 55-56.

206
Capítulo 12 • Holossomaticidade e pensenidade

Ousarei uma resposta negativa no campo das possibilidades filosóficas,


mesmo sob o custo de estar desprovido da segurança científica. Esclare-
ço que esta última linha de raciocínio distancia-se da exigência vivencial
conscienciológica, mas não consigo evitar pensamentos em torno da on-
tologia 411 dos conceitos e também questiono se a experiência de projeção
mentalsomática ou de cosmoconsciência confunde-se com as experiências co-
nhecidas como samadhi, satori ou nirvana. Lido diariamente com tais in-
quietantes e infindáveis dúvidas.

Gosto da hipótese em que nossa Essência não se confunde com seus veícu-
los de manifestação e que talvez seja realmente possível uma experiência
transcendente de radical aquietação – e até mesmo descarte – de nossas
ações físicas, sentimentos e pensamentos para uma jurisdição transmental,
transracional, exclusivamente consciencial ou qualquer nomenclatura que
entendamos mais adequada para significar o conceito de uma manifesta-
ção “original, pura ou direita” da Consciência, sem intermediários corpó-
reos, nem mesmo o mentalsoma.

Esclareço que, neste momento, não pretendo advogar uma tese específica,
mas sim fomentar a dúvida, a reflexão e o questionamento, não apenas pela
multiplicidade de “coincidências” em toda história conhecida da humani-
dade em torno destes “outros corpos”, mas também por mera investigação
curiosa e impetuosidade filosófica para perguntar: por quê não?

Onde entram os chacras?


Os chacras podem ser conceituados como núcleos concentradores de ener-
gia ou vórtices energéticos, de anatomia sutil, que constituem a base in-
terativa do energossoma e são os grandes responsáveis pelos fluxos ener-
géticos entre o soma (corpo físico) e os demais veículos de manifestação
da Consciência, em especial o psicossoma. A tradição oriental, o Budismo
tibetano e uma infinidade de segmentos considerados espirituais ou es-
piritualistas estão familiarizados ao conceito de lótus,412 padmas ou chacras,

411 Mesmo em prejuízo da epistemologia vivencial ou empírica.


412 Lótus: flor exótica que floresce na água, cujas raízes estão enterradas no lodo abaixo da
superfície. Metaforicamente, pode representar a condição humana, enraizada no lodo, mas
sob a luz do sol.

207
Capítulo 12 • Holossomaticidade e pensenidade

de origem sânscrita (chakras ou tchakra),413 cujo significado literal é roda ou


disco, interligados por condutos conhecidos como meridianos ou nadhis, e
estudados por diferentes ângulos e tradições metafísicas como “as energias
do Tantra, as hierarquias dos Neo-Confucianos, os intervalos keni-kou
dos taoístas, as kosas do Vedanta, o sefirot da Cabala e as séries de trans-
mutação dos Alquimistas”.414

Convido o leitor interessado em aprofundar-se no conceito e teoria dos


chacras a buscar uma triagem técnica e mais próxima possível do rigor
científico, portadora de bom senso e razoável credibilidade, apesar das di-
vergências e de algum nível de desinformação ao redor de qualquer temá-
tica nos limites da ciência. Nesse sentido, uma das obras de minha prefe-
rência é o tratado Projeciologia, que trouxe uma leitura ocidental dos sete
chacras considerados maiores ou magnos: coronochacra, frontochacra, larin-
gochacra, cardiochacra, umbilicochacra, esplenicochacra e sexochacra.

Todavia, solicito licença aos meus colegas conscienciólogos para trazer


ao debate uma vertente conectada aos antigos clarividentes indianos, que
além de identificar os sete chacras mais reluzentes, associaram-nos as sete
glândulas do sistema endócrino. Portanto, os hindus passaram a consi-
derar os principais centros vitais energéticos aqueles conectados com as
referidas glândulas produtoras de hormônios, o que gerou um proposta
diferente sobre os principais centros de força, com a exclusão do espleni-
cochacra415 dentre os sete principais e diferenciação entre chacras sexual e
básico. Procuro demonstrar essa diferença conceitual no Quadro 12.2.

413 BLAVATSKY, Helena. Glossário teosófico. Ground: 1991, p. 105.


414 VIEIRA, Waldo. Projeciologia. Editares: 2019, p. 300-301.
415 Chacra esplênico, ligado ao baço.

208
Capítulo 12 • Holossomaticidade e pensenidade

Quadro 12.2
Os chacras segundo as propostas concienciológica, ocidental e
oriental

Chacras maiores Conscienciologia416 Proposta ocidental Proposta oriental

7º chacra magno
Coronochacra Coronário Chacra coronário
Diferença apenas terminológica
6º chacra magno
Frontochacra Frontal Chacra frontal
Diferença apenas terminológica
5º chacra magno
Laringochacra Laríngeo Chacra laríngeo
Diferença apenas terminológica
4º chacra magno
Cardiochacra Cardíaco Chacra cardíaco
Diferença apenas terminológica
3º chacra magno
Esplenicochacra Umbilical Chacra umbilical
Diferença conceitual
2º chacra magno
Umbilicochacra Esplênico Chacra sexual
Diferença conceitual
1º chacra magno
Sexochacra Básico Chacra básico
Diferença conceitual

Embora a proposta desta obra esteja limitada à apresentação genérica dos


controvertidos chacras e sua conexão com os temas aqui tratados, decidi
pela investigação aprofundada desta aparente divergência conceitual, em
especial sobre a questão da improcedência da inclusão do esplenicochacra
no rol dos principais centros de força e a diferenciação entre chacra sexual e
básico, que algumas linhas do conhecimento tratam como um único centro
de força (Conscienciologia e pesquisadores ocidentais) e outras vertentes
como vórtices distintos (linha oriental).

A despeito de ter cursado a faculdade de Direito, onde os ensinamentos da


anatomia humana estão limitados às aulas da cadeira de Medicina legal,
parece-me lógica e portadora de coerência a associação dos centros ener-
géticos com as sete glândulas do sistema endócrino, motivo pelo qual, após

416 VIEIRA, Waldo. Projeciologia. Editares: 2019, p. 301-302.

209
Capítulo 12 • Holossomaticidade e pensenidade

pesquisa em variadas fontes como vídeos, internet e obras que apresentam


certa divergência com o postulado ocidental, elaborei o Quadro 12.3.

Quadro 12.3
Principais chacras segundo linhas orientais e conexões com as
glândulas endócrinas417

Região que energiza Relação corpórea419 e


Nome e sinonímia Sistema endócrino418
por diferentes linhas funções básicas
Primeiro chacra420

Chacra básico Plexo coccígeo


Ânus
Chacra raiz Plexo pélvico
Suprarrenais Adrenalina
Lótus de 4 pétalas Base da coluna dorsal
Instintos
Sede da kundalini Períneo

Muladhara
Segundo chacra
Plexo do sacro
Chacra sexual
Plexo hipogástrico Gônadas Genitais
Chacra do sacro
Abaixo do umbigo (testículos e ovários) Reprodução
Lótus de 6 pétalas
Região urinária
Swadhistana421
Terceiro chacra

Chacra umbilical Plexo solar Pés e pernas

Chacra do plexo solar Plexo epigástrico Pâncreas Região gástrica

Lótus de 10 pétalas Umbigo Digestão

Manipura422

417 AVALON, Manville. O poder dos chackras. Martin Claret, 1995. p. 16.
418 AVALON, Manville. O poder dos chackras. Martin Claret, 1995. p. 9-27.
419 AVALON, Manville. O poder dos chackras. Martin Claret, 1995. p. 28-62.
420 Nas linhas ocidentais, confunde-se com o chacra sexual.
421 Swadhistana ou Svadhishthana: divergências terminológicas e conceituais sobre sua liga-
ção com o chacra esplênico ou sexual. Particularmente, penso que represente o chacra sexual.
422 Manipura: apontado como o segundo grande chacra pelo tratado Projeciologia e como o
terceiro chacra pelas linhas orientais, entre elas a do autor Harish Johari.

210
Capítulo 12 • Holossomaticidade e pensenidade

Chacra esplênico423
Distribuição energética
Esplenicochacra424
Não está ligado às Conhecido como “chacra
Baço
Polêmica: considerado glândulas endócrinas astral” em algumas
secundário por alguns linhas
pesquisadores425
Quarto chacra Plexo cardíaco Mãos

Chacra cardíaco Região torácica Cardiorrespiratório


Timo
Lótus de 12 pétalas Pulmões Emoções

Anahata Coração Manifestações artísticas


Plexo faríngeo Boca
Quinto chacra
Garganta Comunicação
Chacra laríngeo
Laringe Tireoide Respiração
Lótus de 16 pétalas
Faringe Expressão
Vishuda
Traqueia Mastigação
Sexto chacra

Chacra frontal Plexo carótico Aprendizado

Lótus de 2 pétalas Entre as sobrancelhas Clarividência


Hipófise
Terceiro olho Olhos Observação

Terceira visão Região nasal Intuição

Ajna
Sétimo chacra

Chacra coronário Expansão consciencial


Plexo meridiano
Lótus das 1000 pétalas Serenidade
Crânio Pineal
Auréola luminosa Ideias elevadas
Parte superior
Chacra da coroa Aponta para cima

Sahasrara

Desconfiei que o chacra esplênico não fazia parte dos grandes chacras liga-
dos ao sistema endócrino, mormente quando Hiroshi Motoyama 426 afir-
mou que o swadhistana (chacra sexual) estava localizado “de três a cinco

423 Motoyama aponta-o como único sem referência em sânscrito (MOTOYAMA, Hiroshi .
Teoria dos chakras. Pensamento: 2012. p. 186).
424 Esplênico: do grego splén, ‘baço’; + sufixo ico, ‘relativo a’.
425 Chacra secundário: assim considerado por Wagner Borges, Harish Johari e algumas li-
nhas orientais.
426 MOTOYAMA, Hiroshi . Teoria dos chakras. Pensamento: 2012. p. 21 e 186.

211
Capítulo 12 • Holossomaticidade e pensenidade

centímetros abaixo do umbigo e relaciona-se com o sistema gênito-uriná-


rio”. Os vinte e cinco anos de atuação na área jurídica apuraram meu nível
de observação das palavras e algo estava confuso em relação ao esplenicocha-
cra: seria ele o swadhistana como apontado no tratado Projeciologia?427 Motoya-
ma apontava localização distinta entre o chacra do baço428 e o swadhistana
e sinalizava expressamente suas diferenças com a proposta do reverendo
Charles Webster Leadbeater; Naomi Ozaniec citava-o como o chacra se-
xual com atuação principal nas gônadas; Satyananda afirmou que o swa-
dhistana (svadhishathana, em muitas traduções) “está localizado no cóccix, ao
lado do muladhara (chacra básico) e ambos estão ligados aos plexos nervo-
sos sacral e coccígeo”429 e as autoras Shafica Karagulla e Dora van Gelder
Kunz também os diferenciavam.430

Consultei outras duas obras para confirmar que o chacra swadhistana ou


svadhishthana era considerado o segundo dos grandes sete chacras princi-
pais; de fato, a literatura majoritária apontava tais significantes sânscritos
para o chacra sexual, também chamado de sacral e não o chacra do baço.
Harish Johari431 e John R. Cross432 assim afirmam expressamente em suas
respectivas obras, o que reforçou minha suspeita de que o chacra do baço
era importante, mas secundário em relação aos sete considerados magnos
pela linhagem oriental. Cross chega a listar alguns chacras secundários,
onde inclui o chacra do baço ou esplênico.

Neste momento, posso imaginar que o leitor questione porque a presente


obra deva entrar em tal nível de detalhamento e enviar-me a seguinte in-
dagação: o autor não poderia limitar-se a apresentar o sistema de chacras e passar
para o próximo tema? A resposta é absolutamente positiva e talvez eu deves-
se fazer exatamente isso. Todavia, solicito paciência para enfrentarmos
essa questão em definitivo e comprometo-me a compensar o leitor com
meu posicionamento franco em relação à polêmica lançada.

427 VIEIRA, Waldo. Projeciologia. Editares: 2019, p. 302.


428 Chacra esplênico ou esplenicochacra.
429 MOTOYAMA, Hiroshi . Teoria dos chakras. Pensamento: 2012. p. 213.
430 KARAGULLA, Shafica; KUNZ, Dora. Os chakras e os campos de energia humanos. Pensa-
mento: 1991, p.85.
431 JOHARI, Harish. Chakras: centros de energia de transformação. Pensamento: 2001, p. 117.
432 CROSS, John. Acupuntura e o sistema de energia dos chakras: tratando a causa das doen-
ças. Manole: 2010, p. 11-12 e 30-31.

212
Capítulo 12 • Holossomaticidade e pensenidade

Estava decidido a ingressar no estudo da obra de Charles Webster Lea-


dbeater (1847-1934) e entender o motivo da exclusão do chacra sexual no
rol dos principais e magnos centros de força e sua substituição pelo cha-
cra esplênico. No momento em que tomei ciência de que esta marcan-
te personalidade londrina fora sacerdote, maçom e influente membro da
Sociedade Teosófica, suspeitei que o chacra sexual433 sofrera exclusão por
motivação religiosa. Todavia, carecia de certeza e levei anos para escla-
recer o tema, mas justamente na obra do notável Leadbeater, numa nota
de rodapé,434 encontrei a chave para decifrar este enigma conceitual que
transcrevo textualmente: “o chakra do baço não está indicado nos livros da
Índia, e em seu lugar aparece um centro chamado de Swadhisthana, situa-
do na vizinhança dos órgãos genitais, ao qual se assinalam as mesmas seis
pétalas. Em nosso entender435 o despertamento deste centro deve conside-
rar-se como uma desgraça pelos graves perigos com ele relacionados. No
plano egípcio de desenvolvimento se tomavam esquisitas precauções para
evitar tal despertamento”.

Com as palavras do próprio Leadbeater e diante de todas as considerações


aqui expostas detalhadamente, havia chegado ao final de minha pesquisa
para validar a corrente oriental, particularmente a indiana, além de três
importantes argumentos a seguir expostos: o primeiro afirma que os cha-
cras magnos estão vinculados energeticamente às principais glândulas en-
dócrinas; o segundo no sentido da nomenclatura sânscrita swadhistana436
referir-se ao chacra sexual; finalmente o terceiro: que o chacra esplênico é
importante, mas não estaria no rol dos sete magnos, como fora apontado
pela perspectiva ocidental.437

Outra argumentação interessante está no pressuposto de que os centros


de força principais emergem do encontro dos meridianos ou canais ener-
géticos conhecidos como sushumna, ida e pingala, no processo de ascensão

433 Reforço que não se confunde com chacra básico.


434 LEADBEATER, Charles. Os chakras: os centros magnéticos vitais do ser humano. Pensa-
mento: 1960, p. 30.
435 Trata-se da opinião pessoal de Leadbeater, em relação à qual respeitosamente apresento
minha divergência.
436 Swadhistana: existem variações terminológicas como swadhisthana ou svadisthana, con-
forme a tradução ou fonte consultada.
437 VIEIRA, Waldo. Projeciologia. Editares: 2019, p. 257.

213
Capítulo 12 • Holossomaticidade e pensenidade

energética vertical, denominada de elevação da kundaline ou “poder da ser-


pente”. Fica a questão em aberto para o debate mais robusto, porém deixo
ao leitor minha convicção íntima de que o tema, embora controvertido, seja
uma excelente porta de entrada para os estudos transcendentes e rico em
analogias, interconexões e infinitas possibilidades para quem deseja romper
barreiras em busca de conhecimentos mais amplos, incomuns e ousados.

Encerrarei minhas considerações sobre essa polêmica com uma possibili-


dade integrativa entre as propostas de vários autores e a contida no trata-
do Projeciologia. Novamente, ousei elaborar uma propositura sintetizada
no Quadro 12.4, onde tento unificar as três vertentes estudas, a ocidental, a
oriental e a conscienciológica. Espero que a concentração centrípeta ado-
tada atinja minha intenção assistencial, além de encontrar a meta de eluci-
dar essa intrincada confusão conceitual e propor uma solução harmônica
e portadora de rigor, tanto terminológico438 quanto conceitual.

Quadro 12.4
Proposta integrativa sobre os chacras considerados magnos

Chacras magnos e esplênico Nome em sânscrito Sistema endócrino Localização aproximada


Chacra básico 439
Muladhara Suprarrenais Base da espinha dorsal
Chacra sexual 440
Swadhistana Gônadas Abaixo do umbigo
Chacra umbilical 441
Manipura Pâncreas Umbigo
Chacra esplênico 442
- - Baço
Chacra cardíaco443 Anahata Timo Coração
Quinto laríngeo444 Vishuda Tireoide Garganta
Chacra frontal445 Ajna Hipófise Testa
Chacra coronário 446
Sahasrara Pineal Topo da cabeça

438 Lembro apenas das variações das traduções dos termos sânscritos.
439 Primeiro chacra magno.
440 Segundo chacra magno.
441 Terceiro chacra magno.
442 Importante chacra secundário.
443 Quarto chacra magno.
444 Quinto chacra magno.
445 Sexto chacra magno.
446 Sétimo chacra magno.

214
Capítulo 12 • Holossomaticidade e pensenidade

As ferramentas vivenciais
Após questionamentos motivadores e transcendentes, urge adentrarmos nas
ferramentas vivenciais e autocomprobatórias dos quatro veículos de mani-
festação da Consciência validados pela Conscienciologia. Dispensarei a abor-
dagem da vivência material ou do corpo físico, como fiz no início deste capí-
tulo, em razão de sua obviedade, a fim de focar na autoexperimentação das
dimensões energética, emocional e mental. Afinal, como podemos vivenciá-las?

Iniciarei pela ferramenta de minha preferência sob o prisma da pratici-


dade: a Oscilação Longitudinal Voluntária de Energias (OLVE)447 e sua
interessantíssima possibilidade de atingimento do Estado Vibracional ou
EV.448 Trata-se de técnica eminentemente homeostática, energética e con-
substanciada, como o próprio nome sugere, na oscilação longitudinal das
energias pelo atributo da vontade, por meio da qual a percepção do ener-
gossoma tomará cautelosa distância da mera teoria para tornar-se uma
vivência prática. Particularmente, aprecio a prática da OLVE com o corpo
retilíneo, em estado de acalmia física, emocional e mental, momento em
que concentro minha atenção da cabeça aos pés e vice-versa, num crescen-
do em direção à máxima vibração energética.449

Do energossoma para a vivência do psicossoma e do mentalsoma como


corpos objetivos, considero a projeção lúcida do corpo emocional e, supos-
tamente, do mental, o grande divisor de águas para abandono da crença
e entrada no universo vivencial conscienciológico. As técnicas projetivas
foram esmiuçadas detalhadamente, à exaustão, na obra Projeciologia, que
respeita e sugere, em todos os seus postulados, o princípio da descrença,
cuja síntese reitero: não acredite em nada, vivencie.

Paralelamente às possibilidades vivenciais específicas acima tratadas, gos-


taria de destacar um termo abrangente que, em sua rica diversidade de

447 OLVE: expressão cunhada por Nanci Trivellato, em proposta substitutiva à Circulação Fe-
chada de Energias ou CFE (In: TRIVELLATO, Naci. Measurable attributes of the vibrational state
technique Journal of Conscientiology. 2008;11(42):163-251).
448 Estado vibracional: expressão cunhada por Waldo Vieira para designar o resultado da téc-
nica da OLVE, em oscilação longitudinal voluntária de energias, entre outros objetivos para a au-
todefesa ou assepsia energética, expansão das “parapercepções” e assistência interconsciencial.
449 Para maior aprofundamento, sugiro a entrevista com a especialista Nanci Trivellato, dis-
ponibilizada pelo canal tvcomplexis, do portal de vídeos Youtube.

215
Capítulo 12 • Holossomaticidade e pensenidade

episódios, emerge como maiúscula ferramenta autocomprobatória dos


conceitos aqui tratados: o parapsiquismo. A presente obra não tem o condão
de classificar todo o cenário parapsíquico, mas destaca, a título de exem-
plo, dois importantes e polêmicos fenômenos: a projeção da Consciência para
fora do corpo humano (tratada em capítulo próprio) e a clarividência, temas
carentes de esclarecimentos técnicos e rodeados de muita desinformação e
crendices populares.

As três dessomas
Primeiramente, um vital esclarecimento sobre o acrônimo consciencioló-
gico dessoma, originado da síntese conceitual de “descarte do soma”, fenô-
meno popularmente conhecido como morte, passagem, primotanatose, via de
mutação, desencarne, trespasse, última projeção, libertação e perecimento, entre
outros. Todavia, essa desativação do veículo que chamamos de corpo fí-
sico ou material não consiste no único descarte das respectivas sondas de
manifestação da Consciência, mas apenas na primeira consequência do
fenômeno de desativação biológica. A primeira dessoma, portanto, consiste
na desativação do corpo humano, pela ruptura das ligações energéticas,
aniquilação das células, caos orgânico e retorno do foco consciencial ao
ambiente extrafísico450 e manifestação desprovida do corpo biológico.

A segunda dessoma envolve o descarte do corpo energético ou energossoma


e constitui a depuração de todas as emanações ectoplásmicas da Consciên-
cia que deixou a matéria condensada, o que ocorreria, consoante teorias
e postulados, em um tempo médio estimado entre dois e três dias após a
primeira dessoma,451 muito embora as particularidades dos casos envolvam
a impossibilidade de uma generalização, ainda que imprecisa. A análise
sinonímica, também neste caso, é extremamente esclarecedora, a saber:
morte do terceiro dia, bitanatose, pós-desencarnação, pós-morte, segunda desencar-
nação, segunda morte e separação do duplo composto, dentre inúmeras outras
expressões.

Finalmente, a terceira dessoma, pelo postulado da Conscienciologia, implica


na desativação do psicossoma ou terceiro corpo e manifestação conscien-

450 Em linguagem consciencial, retorno ao ambiente extrafísico, diferentemente do abando-


no completo da existência e manifestação, pelo exemplar materialista.
451 VIEIRA, Waldo. Projeciologia. Editares: 2019, p. 331.

216
Capítulo 12 • Holossomaticidade e pensenidade

cial na condição de Consciência Livre, ou seja, em atuação exclusivamente


pelo mentalsoma, desprovida dos demais corpos (soma, energossoma e
psicossoma). Também neste contexto, vale o estudo dos sinônimos: tritana-
tose, moksha, morte extrafísica, terceira morte, fim das vidas sucessivas e libertação
consciencial, entre outros.

Posso pensar em quarta dessoma?


Obviamente, somos livres para pensar e levantar hipóteses, especialmen-
te em ambiente não dogmático, filosófico ou científico. Todavia, antes de
aprofundar nesta especulação, ressalto enfaticamente que coloco tal pon-
deração por mero amor ao argumento, sem nenhum histórico conscien-
ciológico ou pretensão probatória. Espero, firmemente, deixar transpa-
rente que o postulado da Conscienciologia limita-se às três dessomas e que
a presente suposição de uma eventual quarta dessoma é personalíssima e
absolutamente hipotética. Isso posto, lançarei argumentos favoráveis a tal
possibilidade.

O primeiro deles baseia-se na própria conceituação conscienciológica


do mentalsoma como “apenas” um veículo ou sonda de manifestação da
Consciência. No contexto vivencial ou de maior cientificidade, a huma-
nidade ainda não consolidou um arcabouço empírico ou autoprobatório
sobre a diferenciação entre mente e Essência, motivo pelo qual compreendo
e aplaudo todas as precauções e reservas de vários autores ao redor da te-
mática. Todavia, atrevo-me a pensar out of the box452 ou “fora da casinha”453
e outorgarei asas aos meus mais livres pensamentos, sem nenhuma preo-
cupação científica (ao menos neste momento), cujo fio lógico esforço-me
para manter.

Seguirei o raciocínio em tangência mateológica para provocar positiva-


mente a intelectualidade dos leitores com a seguinte indagação: se o pa-
radigma consciencial considerou o mentalsoma um veículo, seu Condutor poderia
dispensá-lo? Em sentido contrário, se a Consciência não puder dispensá-lo, seria ele
um veículo ou parte integrante da própria Consciência? Na absoluta carência
de certezas, proponho a reflexão eminentemente filosófica do descarte do

452 “Fora da caixa”, em tradução literal. Expressão coloquial que significa “além do ordinário”.
453 Linguagem coloquial do meu contexto pessoal.

217
Capítulo 12 • Holossomaticidade e pensenidade

mentalsoma como corolário lógico das premissas estudadas, além de dei-


xar outra pergunta não menos desafiadora: poderíamos, futuramente ou neste
exato momento, cunhar o termo “quarta dessoma”, como possibilidade de descarte do
corpo mental? Assim ouso fazer.

Pensenidade
O neologismo pensene é outro acrônimo conscienciológico, oriundo dos
termos pensamento, sentimento e energia. É dele que deriva o termo pen-
senidade, que utilizei para ressaltar a nossa capacidade de pensar, sentir e
agir. Convido o leitor a refletir sobre isso, ou seja, quanto ao fato de que
toda a manifestação humana que conhecemos até o presente momento
evolutivo tem um aspecto ou predomínio mental, emocional ou atitudinal.

Antes de avançarmos em nossas considerações, mister se faz esclarecer


os motivos pelos quais concentrei em um mesmo capítulo temas tão ricos
como holossomaticidade e pensenidade. No momento em que compreender-
mos a proposta conscienciológica do holossoma, consubstanciada em qua-
tro veículos de manifestação, poderemos estabelecer uma primeira ligação
facilitadora do entendimento do conceito pensene, o que pode ser alcançado
em consulta ao Quadro 12.5.

Quadro 12.5
Proposta simplificada das conexões entre os veículos de
manifestação conscienciológicos e pensene

Veículos de manifestação Pensene


Mentalsoma Pensamento
Psicossoma Sentimento
Energossoma Energia
Soma Ação (energia concentrada)

Um atributo do pensene que demorei para compreender foi sua unidade


indissociável. Emanamos todo o tempo um padrão pensênico para o am-
biente, que se vê impactado não apenas por nossas ações, mas também pe-
los nossos sentimentos e pensamentos. Tal reflexão endossa a conclusão
exposta no capítulo Multidimensionalidade e Multiexistencialidade, pois, pela
teoria do pensene, um pensamento ou sentimento patológico, mesmo dissi-

218
Capítulo 12 • Holossomaticidade e pensenidade

mulado, pode contaminar e prejudicar terceiros e gerar responsabilidades


e comprometimentos que muitas vertentes de estudos transcendentes de-
nominam como karma ou carma.

Aprecio momentos como este, quando emergem possibilidades mais os-


tensivas de compreensão da riqueza das conexões, como entre os conceitos
de holossoma e pensene, destes com a multidimensionalidade, desta com a
multiexistencialidade e de todos com os futuros capítulos desta obra. Tudo
parece estar conectado a uma teia interdimensional que nutre positivas e
negativas relações, interferências e interligações entre pessoas, locais, si-
tuações e múltiplos contextos e dimensões. A magnitude deste pensamento
levou-me, em última instância, a questionar se existe “coincidência” ou se
poderíamos estar sincrônica e inteligentemente vinculados uns aos outros,
no estilo do filme de ficção científica Efeito Borboleta, mutatis mutandis e
guardadas as distâncias entre o mundo que chamamos de “real” e as ro-
mantizações artísticas do drama hollywoodiano e sua máxima: change one
thing, change everything.454

O leitor poderá concluir que o raciocínio estava caminhando bem, mas


que a analogia cinematográfica foi exagerada. Valido tal reflexão, pois
apesar “da arte imitar a vida”,455 muitas vezes aquela guarda distância de
representar esta última com precisão. Todavia, deliberadamente optei pela
comparação até certo ponto extremada, a fim de destacar a responsabili-
dade por nossas ações, sentimentos e pensamentos, pois as ligações desta
teia multidimensional podem reverberar consequências de difícil mensu-
ração e reparação, com pequenos atos podendo fazer grandes diferenças.

Impactante? Arriscarei a resposta afirmativa, mesmo antes da análise do


conceito de holopensene,456 alusivo ao conjunto dos pensamentos, sentimen-
tos e energias que formam uma cultura, seus costumes ou ações massifi-
cadas. A ideia em estudo pode ser compreendida pela somatória da dis-
sipação das energias individuais, cujo resultado formará o que os alemães
nomeiam de zeitgeist, que poderíamos traduzir sinteticamente por espírito
da época ou sinal dos tempos.

454 Mude uma coisa, mude tudo.


455 Alusão jocosa à conhecida questão: a arte imita a vida ou a vida imita a arte?
456 Conhecido também como “egrégora”.

219
Capítulo 12 • Holossomaticidade e pensenidade

Não bastassem as polêmicas e tormentosas reflexões ora propostas, outros


questionamentos bastante desafiadores surgiram em minha mente: a Cons-
ciência pode simplesmente não pensar? Pensamento é realmente a base da existência
humana? Particularmente, acredito que tais respostas estejam intimamente
conectadas com a questão da quarta dessoma e também com minha pro-
posta de ampliação da máxima cartesiana “penso, logo existo”, tema que
explorarei em capítulo próprio, mormente pela magnitude das conclusões
envolvidas.

Terminarei o presente capítulo em ação preparatória para a compreensão


do próximo desafio. Aliás, é provável que o leitor tenha notado que todos os
capítulos desta obra estão estreitamente interligados, evidenciando a pre-
sença implícita do fenômeno-título Conexões nos conceitos e contextos ex-
plicitados. Assim, recomendo uma consulta ao Quadro 12.6, cuja proposta
é facilitar a compreensão do elo existente entre os postulados em estudo.

Quadro 12.6
Conexão consciencial dos VMC e analogias possíveis

Veículos de manifestação Analogias possíveis


Soma Ferramenta ou sonda material457
Energossoma Ferramenta ou sonda energética458
Psicossoma Ferramenta ou sonda emocional459
Mentalsoma Ferramenta ou sonda mental460
Consciência Ferramenteiro

Por derradeiro, perguntará o leitor, após analisar as notas de rodapé do


quadro acima: afinal, o que é projeção do psicossoma ou mentalsoma? Podemos
realizar a projeção lúcida da Consciência com discernimento e comando de nossas
ações extrafísicas? Seria verdadeiro esse conhecimento tão antigo? Qual o papel das
bioenergias nesse processo? Existem técnicas para isso? Bem-vindo ao próximo
capítulo, Projetabilidade e Bioenergeticidade.

457 Ação física.


458 Ação energética e possibilidade de balonamento ou expansão.
459 Ação psicossomática e possibilidade de projeção.
460 Ação mentalsomática e possibilidade de projeção.

220
Projetabilidade e
bioenergeticidade
13

Estamos prestes a adentrar no estudo da ferramenta que possibilitou a


construção do tratado Projeciologia que, juntamente com posterior obra de
referência 700 Experimentos da Conscienciologia, foi o grande manancial das
informações deste capítulo. A projeção lúcida da Consciência para fora do
corpo físico já foi descrita como a responsável por maravilhosas epifanias
e tenebrosos equívocos históricos, com envolvimento direto na política,
filosofia, ciência e estarrecedora desinformação de muitas vertentes de es-
tudos transcendentes.

Enfim, muitos alegam serem capazes de vivenciar satisfatoriamente a con-


dição projetiva e outros ridicularizam-na como fruto da fértil imaginação
humana, divergências que geram muitos questionamentos, entre eles:
ƒ O fenômeno realmente existe?
ƒ Há, pelo menos, sérios indícios para sua existência?
ƒ Se positiva a resposta, porque não foi profundamente estudado e pesquisado, sal-
vo raríssimas exceções, pela comunidade científica?

Porto a pretensão de iniciar uma construção reflexiva para essas e outras


questões que surgirão no decorrer do presente capítulo e proponho ao lei-
tor que mantenha em mente os conceitos dos capítulos anteriores, que es-
tão relacionados a todas as questões ora destacadas. Desenvolvi os seguin-
tes subtítulos com a finalidade de facilitar a compreensão dos polêmicos
temas aqui tratados:

221
Capítulo 13 • Projetabilidade e bioenergeticidade

ƒ Conceito.
ƒ Classificações.
ƒ Resistência científica.
ƒ Histórico da bioenergia.
ƒ Bioenergeticidade.
ƒ Energia imanente e consciencial.

Lembro ao leitor dos nossos estudos sobre a Dinâmica da Espiral,461 de Claire


Graves, e posterior digressão sobre os estados da consciência,462 que trouxe-
ram a reflexão da possibilidade de diferentes interpretações fenomênicas
condicionadas às diversas cosmovisões dos intérpretes, para que perceba-
mos o tamanho do problema comprobatório. Todavia, comecemos por
explicitar o objeto de nossa análise, ou seja: o que é projeção da Consciência?

Conceito
Um conceito simples e eficaz para compreensão elementar do fenômeno
da projeção da Consciência considerará o prévio conhecimento dos veí-
culos de manifestação da Consciência, em especial o psicossoma, assunto
apresentado no capítulo anterior. Trata-se do descolamento, soltura ou
descoincidência do corpo emocional (psicossoma) em projeção para além
do corpo material (soma), levando consigo parte do corpo energético (ener-
gossoma), o corpo mental (mentalsoma) e, teoricamente, a própria Cons-
ciência. Dá-se naturalmente pela estrutura humana holossomática e poderá
ocorrer com ou sem lucidez.

O detalhamento do fenômeno e suas técnicas foram exaustivamente com-


pilados na obra Projeciologia, motivo pelo qual reitero a importância de sua
leitura, que certamente contribuirá para a compreensão mais aprofunda-
da do fenômeno da projeção da Consciência para fora do corpo físico. Na
referida obra, pode-se encontrar, entre outras informações relevantes, o
estudo sinonímico a seguir: “OBE (out-of-the-body experience); experiência
fora do corpo; desdobramento; emancipação da alma; viagem espiritual;
separação astral, excursão parapsíquica; desprendimento de pessoa viva;
escape perispiritual, experiência do outro mundo; extrusão do duplo psí-

461 Segundo elemento da Filosofia Integral: linhas (capítulo 8).


462 Terceiro elemento da Filosofia Integral: estados (capítulo 9).

222
Capítulo 13 • Projetabilidade e bioenergeticidade

quico; extrusão do psicossoma; jornada da alma; libertação da consciên-


cia; morte provisória; projeção da alma; projeção do segundo corpo; pro-
jeção espiritual; viagem multidimensional ou astral; videha (Índia), visita
interdimensional, vôo anímico; vôo xamânico e viagem in spirito (Benan-
danti; Lorena; Século XVI e XVII), entre outras”.

Classificações
Dentre os fenômenos parapsíquicos, muitas classificações merecem apro-
fundamento, a exemplo da categorização por sua leitura (telepatia, intuição,
psicometria), pela ampliação dos sentidos físicos (clarividência, clariaudiên-
cia, autoscopia, heteroscopia), pela cronologia (retrocognição, precognição,
dejaismo), pelo transe (psicografia, psicofonia) e até mesmo pelos efeitos
físicos (ectoplasmia, telecinesia, raps, poltergeist, cosmoconsciência), além de
muitas outras catalogações possíveis. Entretanto, focarei o presente subtí-
tulo na separação entre a projeção do psicossoma e a do mentalsoma.

A primeira espécie de projeção é a mais divulgada, que ousarei chamar


de clássica. Como visto, trata-se do “descolamento” do psicossoma para
fora do corpo biológico, com a possível manutenção de nossa capacidade
decisória, racionalidade e percepções conscienciais. Estou seguro em afir-
mar que, dentre os leitores mais familiarizados com as pesquisas desses
fenômenos transcendentes, essa modalidade de “desdobramento” do cor-
po emocional será a mais conhecida. A projeção do mentalsoma, além de
mais rara em termos literários, extrapola em demasia meus parcos conhe-
cimentos, o que me obriga a reiterar minha assumida ignorância, motivo
pelo qual deixo apenas este registro para um maior aprofundamento do
próprio leitor que, na qualidade de pesquisador interessado, provavelmen-
te notará as conexões com os postulados do holossoma, pensene e multidimen-
sionalidade, tratados nos capítulos anteriores.

A resistência científica
Conceituado o fenômeno da projeção da Consciência e apresentados os
termos análogos e classificações, retomarei alguns questionamentos ini-
ciais deste capítulo: por que não investigamos profundamente tal condição? Por
que tamanha resistência? Dentre vários prismas de observação, focarei na
questão histórica entre religião e ciência, até chegarmos na divisão carte-
siana entre mente e matéria.

223
Capítulo 13 • Projetabilidade e bioenergeticidade

Pois bem, vimos nos capítulos pretéritos que Pitágoras, Platão e outros
grandes pensadores tinham esse tema como objeto de interesse e admitiam
o fenômeno, ao menos como hipótese. Posteriormente, adentramos num
tumultuado período que chamamos de Idade Média, cujo domínio religio-
so excessivamente controlador provocou um repertório de imaturidades e
fanatismos que me entristecem enquanto integrante da espécie humana. A
simples menção aos fenômenos naturais e humanos, considerados “inex-
plicáveis”, era vista como heresia, blasfêmia, feitiçaria ou coisas do gêne-
ro e pessoas eram torturadas ou queimadas pela “Santa Inquisição” e por
guardiões do “sagrado”. Diante da abjeta violência medieval e implemen-
tação do terror, nada mais compreensível que as questões transcendentes
ou que denotassem alguma divergência com os dogmas religiosos da épo-
ca fossem retiradas dos diálogos científicos e arrastadas para o interior
das sociedades fechadas, secretas e dissimuladamente instaladas. Naquele
contexto, tratava-se da única possibilidade de manter tais conhecimentos
e respectivo estudo, mesmo assim, sob constante risco das mais hediondas
barbáries perpetradas pelos detentores do poder eclesiástico da época.

A despeito e independentemente da divergência sobre qual o início do que


chamamos de “Modernidade”, se na Renascença ou no Iluminismo, consi-
dero o movimento moderno como o grande marco ou divisor de águas do
que nossa sociedade entende como liberdade científica, cuja ideia central
baseia-se na interpretação atual da concepção de René Descartes, que teria
delegado as “coisas” do espírito, da dimensão extrafísica e dos fenômenos
parapsíquicos, entre eles a projeção da Consciência, para a esfera religio-
sa e limitara a jurisdição científica ao aspecto material da “representação
dualista de mundo”.463 Eis o surgimento do materialismo.

Desconheço e questiono se esta era a real intenção de Descartes, porém


atualmente conhecemos a expressão “paradigma newtoniano-cartesiano”
como sinônimo ou algo próximo do materialismo científico. Reconheço o
desgaste dos termos paradigma e cartesiano, a meu ver fruto da equivocada
leitura hodierna do autor Thomas Kuhn e do difícil contexto de Descar-
tes, mas arriscarei compartilhar um de meus pensamentos, que responde à
pergunta elaborada no preâmbulo deste capítulo: considerou-se ciência ape-

463 Existência da Consciência e da matéria, mas sem conexão alguma entre elas.

224
Capítulo 13 • Projetabilidade e bioenergeticidade

nas a “representatividade” material do universo, a natureza, o espelho d’água, o me-


canismo, dentre as diversas nomenclaturas existentes para designar que a jurisdição
científica seria exclusivamente o mundo perceptível por nossos cinco sentidos físicos.

Todos os demais fenômenos projetivos, dimensões sutis e temas transcen-


dentes receberam o estigma pejorativo de “não científico, mítica popular
ou idiotismo cultural”. Obviamente, todo cidadão com bom senso e “pés no
chão” identifica oceanos de crendices imaturas em torno desta temática,
mas reitero o questionamento: jogamos o “bebê”464 com a “água do banho”?465
Haveria excesso materialista? Existiria um espaço moderno para uma religiosidade
ou espiritualidade positiva? Existiriam fenômenos transcendentes legítimos e dignos
de um olhar científico? A quem não interessa tal pesquisa?

O complemento deste aspecto histórico ligado à projeção da Consciência,


bem como a compreensão do impacto do materialismo moderno, está ma-
gistralmente colocado na obra wilberiana A União da Alma e dos Sentidos466 e
no tradado Projeciologia,467 que traz quatro períodos referentes à história do
fenômeno em estudo: antigo,468 esotérico,469 exotérico470 e laboratorial.471
Sobre os termos esotérico e exotérico, recomendo especial atenção do lei-
tor para seus significados absolutamente distintos nos contextos conscien-
ciológico e integral.

A Conscienciologia considera o período esotérico da projeção consciencial


como aquele pré-científico do século XV ao XIX, quando o conhecimento
do fenômeno projetivo, como visto, ficava restrito aos círculos elitistas e
corporativistas que buscavam motivadamente a proteção e preferiam ter

464 Transcendência legítima.


465 Mistificações embusteiras.
466 WILBER, Ken. A união da alma e dos sentidos. Cultrix: 2001, p. 111-137.
467 VIEIRA, Waldo. Projeciologia. Editares: 2019, p. 58-62.
468 Período antigo: lendas que citam homens sábios cujas almas deixavam seus corpos e se
comunicavam com deuses; rituais são praticados para sair do corpo desde as culturas mais
primitivas. No Antigo Egito (5004-3064 a.C.) prestava-se culto aos mortos através do kha, o
duplo.
469 Esotérico: compreendido na Conscienciologia como ligado à superstição, opostamente à
Filosofia Integral, que o concebe como vivência interior de alto nível.
470 Período exotérico: em Conscienciologia, o termo refere-se a quando o fenômeno e o co-
nhecimento a ele correspondente podem ser divulgados junto ao público geral.
471 Período laboratorial: observação desapaixonada, técnica e metodológica do fenômeno pro-
jetivo, que contou com o pioneirismo de Charles Theodore Tart (1937-) que, em 1966, pesqui-
sou, nos Estados Unidos da América, uma jovem desconhecida sob o pseudônimo de Miss Z.

225
Capítulo 13 • Projetabilidade e bioenergeticidade

a garganta cortada a revelar os perigosos segredos, repletos de palavras


secretas, métodos rebuscados (circunlóquios), práticas escondidas, rituais e
terminologia confusa (jargão primitivo). Lembro que, no contexto integral,
o termo esotérico está ligado a uma sadia religiosidade vivenciada e voltada
à virtude, em nada ligado ao significado do ambiente conscienciológico.
Remeto o leitor à introdução desta obra, onde comentei que tais dificul-
dades terminológicas apareceriam, porém, o importante é mantermos a
mente lúcida para realizar tais diferenciações e não confundirmos um sig-
nificante com seus diferentes significados em múltiplos contextos.

O termo exotérico, por sua vez e pela perspectiva integral, parece significar
a característica de uma espiritualidade “por fora” ou proselitista, no sen-
tido de não alinhar-se ao discurso, a autoridade moral da correspondente
vivência interior. Na vertente conscienciológica, o mesmo significante ad-
quire o sentido do período histórico em que houve possibilidade contextual
da divulgação da espiritualidade ou certos assuntos transcendentes, mo-
mento este em que podemos destacar as seguintes personalidades: Vincent
Newton Turvey (1873-1912), cujas experiências projetivas foram revela-
das publicamente na Inglaterra; Hugh Callaway (1886-1949) sob o pseu-
dônimo de Oliver Fox, com obra publicada em 1920, também na Inglater-
ra; Sylvan Joseph Muldoon (1903-1971) a começar de 1929, nos Estados
Unidos; a obra de Marcel Louis Fohan, na França, e Robert Crookall, entre
1960 e 1965, também na Inglaterra, entre outros.

Independentemente da utilização dos termos estudados no contexto cons-


cienciológico ou integral, aprecio a argumentação favorável ao estudo des-
te fenômeno por cidadãos, céticos ou não, desde personalidades como Her-
mótimo de Clazomene, filósofo da Escola Jônica, Gautama Buda (563-483
a.C), Heródoto (485-425 a.C) e Platão (428-347 a.C), até o caso do primeiro
ministro americano Thomas Say (1709-1796); do filósofo e teólogo sueco
Emanuel Swedenborg (1688-1772) e do escritor francês Honoré de Balzac
(1799-1850); de Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869), codificador
do Espiritismo na França e conhecido como Allan Kardec; de personalida-
des brasileiras, como Francisco de Paula Cândido Xavier (1910-2002) e o
próprio Waldo Vieira (1932-), além de inúmeros outros nomes não menos
conhecidos, dentre outras testemunhas anônimas e uma legião de pessoas
que alegaram a vivência do fenômeno.

226
Capítulo 13 • Projetabilidade e bioenergeticidade

Em conclusão, considero a violência das históricas disputas pelo domínio


da transcendência, mormente no mundo ocidental – período da idade mé-
dia – um dos grandes responsáveis pela desinformação mítica ao redor
do fenômeno projetivo, que originou o afastamento científico e obriga-
-me a retomar questionamentos ligados a ética humana, que aprofundarei
no próximo capítulo, sob o título Assistencialidade, Cosmoeticidade, Maxifra-
ternidade e Universalidade. Desde logo, afirmo que esta perspectiva da re-
ligiosidade ou espiritualidade humana parece-me estar entre as grandes
ferramentas carecedoras de pesquisas científicas mais profundas em nos-
so tempo. Neste momento, julgo importante compartilhar alguns conhe-
cimentos que objetivam, em tese, a otimização da nossa projetabilidade e
também nosso equilíbrio ou homeostase holossomática, de forma prática e
à luz do princípio da descrença, o que farei através do estudo de algumas
estruturas bioenergéticas.

Histórico da bioenergia
Desde tempos imemoriais, sacerdotes ou líderes de diversas religiões e cul-
turas primitivas interessaram-se pelo tema das energias sutis e suas cone-
xões com o corpo ou a existência humana. Após tratarmos da resistência
científica ao fenômeno projetivo, cujas restrições também são bastante
contundentes com o tema bioenergético, urge colocar a lanterna na popa
e aventurarmo-nos na pesquisa de nosso passado remoto, onde encontra-
remos certamente lamentáveis atrocidades, mas também tesouros infor-
macionais que a modernidade negligenciou.

Estou consciente de que o tema foi abordado por inúmeras linhas, sob a égi-
de de escolas místicas, esotéricas, exotéricas e também algumas tentativas
científicas. A título ilustrativo, vale destacar que, embora milenarmente in-
tegrada à Medicina tradicional chinesa, a acupuntura obteve aceitação na
Medicina ocidental472 apenas recentemente. Em 19 de novembro de 2010,
essa técnica foi declarada Patrimônio Cultural Intangível da Humanidade
pela United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (Unesco).
Registros e algumas obras apontam como verdadeira a história que, “por
volta do ano 3.200 a.C., sob o comando do Imperador Chin-Nong, o povo

472 Acupuntura no Brasil: ainda sob discussão parlamentar, imbróglio legal e mixórdia legis-
lativa (projeto de lei 1549/2003, Classificação Brasileira de Ocupações – CBO e protegida por
alguns sindicatos registrados no Ministério do Trabalho).

227
Capítulo 13 • Projetabilidade e bioenergeticidade

chinês desenvolveu as bases de sua Medicina tradicional, com o surgimen-


to da acupuntura, cujo objetivo principal consistia em estimular o fluxo de
energias (chi), através de canais energéticos (nadhis ou meridianos)”.473

Diante da macro-visão que pretendo explorar nesta obra, não houve tem-
po para um aprofundamento em fantásticas personalidades dignas de
estudo, como Hipócrates, da ilha de Cós, ou o admirado Jesus Cristo, de
Nazaré, sobre quem uma pesquisa mais detalhada e desapaixonada po-
deria ser útil para o tema aqui abordado. Optei, todavia, por dar um salto
histórico para o século XVIII, quando o austríaco Franz Anton Mesmer
(1733-1815) revelava a capacidade do magnetismo humano, sob mordazes
críticas científicas, e Christian Friedrich Samuel Hahnemann (1755-1843),
que interessou-se pela cura da malária e acabou por comprovar a máxima
de Hipócrates (cura pelo semelhante), lançando o princípio básico da Ho-
meopatia, segundo o qual as dinamizações aumentam a potência do pro-
duto por seu aumento energético e diminuição medicamentosa, informa-
ções ainda recebidas com enormes incompreensões e restrições por muitos
médicos alopatas.

No século XIX, apesar dos holofotes estarem mais voltados para as ma-
ravilhas do progresso oriundo da revolução industrial, o aspecto energé-
tico esteve presente nas mentes de influentes e polêmicas personalidades,
como os austríacos Sigmund Freud (1856-1939), propositor da psicanálise
e da teoria sobre a libido, e seu discípulo dissidente Wilhelm Reich (1897-
1957), radical propositor da natureza essencialmente sexual das energias,
às quais chamou de orgônio, posteriormente acusado de charlatanismo.474
Constatava-se a consolidação dos fundamentos do que futuramente cha-
maríamos de Medicina psicossomática, base intelectual dos trabalhos de
Alexander Lowen, propositor da Bioenergética.475

Encerraremos nossa microscópica passagem pela história da bioenergia


conscientes de que inúmeras outras intrigantes personalidades e fatos re-
levantes poderiam fazer parte deste relato, apesar de todo o bolor infor-
macional agregado ao tema. Todavia, antes de trabalharmos o conceito

473 SILVA, Roberto. Ativando o corpo energético. Instituto: 1991, p. 15.


474 Acusado de charlatanismo pela FDA – Food and Drugs Association.
475 LOWEN, Alexander. Bioenergética. Summus: 1975.

228
Capítulo 13 • Projetabilidade e bioenergeticidade

propriamente dito, mencionarei o casal Kirlian e relatos das fotografias


eletrônicas popularizadas especialmente na Itália e Inglaterra.

Bioenergeticidade
Como explicado, o sufixo –dade, neste contexto, significa a capacidade
da Consciência vivenciar informações oriundas das bioenergias, mor-
mente via corpo energético, chamado na Conscienciologia de energos-
soma, que é justamente uma ferramenta adequada para tais pesquisas.
Bioenergia também merece um estudo sinonímico aprofundado, como
profilaxia da confusão generalizada, inoportuna, prejudicial e foco de
muita desinformação oriunda do antigo problema da mistura entre sig-
nificantes e significados.

Isso posto, saberemos tratar-se de tema ao menos coligado ao bioenergé-


tico, em determinados contextos, quando nosso interlocutor utilizar as ex-
pressões energia orgânica, sutil, primária ou cósmica. A seguir seguem algumas
expressões correlatas: ki (Japão), chi (China), prana (Índia, Teosofia), orgônio
(Wilhelm Reich 1897-1957), luz astral (Cabala), telesma (creditado à tradição
hermética de Hermes Trismegisto), energia vital, energia mesmérica (Franz An-
ton Mesmer), libido (Sigmund Freud), e sopro ou fluido vital (Kardec, Espiri-
tismo), dentre outras designações.

A Conscienciologia identifica uma dimensão específica para a atuação do


energossoma e interação bioenergética: a chamada dimener, acrônimo de di-
mensão energética. Em outras palavras, na hipótese de considerarmos a
superfície que chamamos de material como a terceira dimensão e a pers-
pectiva “extrafísica” como a quarta dimensão, eu não hesitaria em ecoar
Vieira 476 e numerar a dimensão energética ou a chamada dimener, com a
fração dimensional três e meio (três vírgula cinco).

Digressões e sutilezas à parte, sabemos que “bio” possui origem grega (bios)
e significa “vida”. Como prefixo ou sufixo, o vocábulo é utilizado para ex-
pressar conceitos relacionados à vida, a exemplo de: biodiversidade ou varie-
dade da natureza viva; Biologia, a ciência que estuda os seres vivos, sua es-
trutura, composição, evolução e relação com o meio ambiente, entre outros

476 VIEIRA, Waldo. 700 Experimentos da Conscienciologia. Instituto: 1994, p. 159.

229
Capítulo 13 • Projetabilidade e bioenergeticidade

fatores; biotecnologia ou tecnologia empregada sobre processos biológicos.


Portanto, bioenergia não é sinônimo de energossoma, mas sim um padrão de
energia vital que permeia nosso mundo, concentra-se de forma abundante
na natureza,477 atua em nossa saúde e pode ser modelada de várias manei-
ras e utilizada para inúmeras finalidades. A situação bioenergética ora des-
crita está diretamente ligada ao padrão energético denominado “primário
ou puro” e dá-me oportunidade de tratar de outra classificação energética:
imanente e consciencial.

Energia imanente e energia consciencial


À primeira vista, trata-se de uma conceituação simples: energia imanente
é aquela não manipulada pela Consciência, ou seja, em seu estado virgem,
ainda não codificada, programada ou destinada a um propósito específico.
No momento em que produzirmos emoções, pensamentos, ideias, imagens,
palavras ou qualquer ação, passaremos a utilizar ou programar esta maté-
ria prima impoluta para uma determinada finalidade.

Reconheço o cuidado com a expressão “nós criamos o mundo”, tendo em


vista as mais bizarras e imaturas interpretações que tive a oportunidade de
ouvir, mas não posso negligenciar ou negar a força do atributo conscien-
cial da vontade, para o que as poderosas ferramentas mental, emocional e
atitudinal devem ser utilizadas com responsabilidade, mormente quando
adquirimos lucidez quanto ao seu imenso poder.

Não é por mero acaso que inúmeros rituais religiosos associam os compo-
nentes da vontade humana, firmeza de pensamento e locais de abundância
energética. Lamentavelmente, não raro, tais práticas são acompanhadas de
emoções desajustadas, visão etnocêntrica ou egocêntrica, além de agentes
mitigadores de uma otimização evolutiva equilibrada. Sugiro respeito-
samente a desnecessidade de qualquer ritualística desta natureza, pois o
diferencial evolutivo está em nossa Consciência e seus reflexos mais per-
ceptíveis,478 ou seja, valorizo sobremaneira os aspectos interiores positivos
em contato direto com a energia exterior, o que dispensa intermediários
litúrgicos.

477 Exemplos: floresta amazônica, cataratas de Foz do Iguaçu, serra do Japi (Jundiaí-SP), Ilha
Grande, em Angra dos Reis-RJ, enfim, rios, florestas, praias, cachoeiras etc.
478 Pensamentos, sentimentos e componente atitudinal.

230
Capítulo 13 • Projetabilidade e bioenergeticidade

Diante disso, importa redobrar a atenção quando estivermos diante de


exuberância energética, seja uma caminhada na mata, um futebol na praia
com os amigos ou uma visita às cataratas da cidade de Foz do Iguaçu, onde
o bom encaminhamento dos nossos pensenes – pensamentos, sentimentos
e ações – pode conduzir este notável potencial energético para as mais
nobres finalidades. O mais incrível é a simplicidade deste processo, para
cujo bom resultado basta o nosso sorriso, a palavra edificante, a serenidade
da compreensão, enfim, o exercício em torno do altruísmo, do perdão, da
bondade, do companheirismo, da generosidade, da ética, da fraternidade
e, principalmente, do respeito aos assuntos que extrapolam a nossa com-
petência intelectual.

A energia consciencial, como o leitor poderá notar, é justamente o agen-


te modelador, transformador ou destinatário da energia imanente, plas-
mando-a consoante nossos pensamentos e sentimentos. Face ao exposto
e diante da consciência de nosso potencial criativo e responsabilidade
transcendente, convido o leitor a tornarmo-nos “agentes incorruptos da
evolução”.479 Para tanto, entendo necessário o estudo aprofundado de
quatro princípios fundamentais para o enfrentamento das nossas imatu-
ridades, sejam elas ainda rudimentares ou mais sutis, tarefa em que mais
importante que a identificação de nosso nível ou padrão ético-evolutivo é
o esforço pessoal em movimento evolucionário. Esses prestigiados valores
– Assistencialidade, Cosmoeticidade, Maxifraternidade e Universalidade – serão
objetos do próximo capítulo.

479 “Agentes incorruptos da evolução”: expressão cunhada pelo pesquisador brasileiro Wag-
ner Alegretti, presidente da International Academy of Consciousness (ano base: 2014).

231
232
Assistencialidade,
cosmoeticidade,
14
maxifraternidade e
universalidade

No presente capítulo, farei uma leitura dos valores que considero essen-
ciais após a análise dos postulados conscienciológicos, sejam eles viven-
ciados, aceitos, refutados ou apenas tidos como mera possibilidade filosó-
fica pelo leitor. Entendo que somente após toda esta carga informacional
tenhamos condição para compreender a resposta à pergunta que talvez
muitos imaginem que devesse estar na primeira linha deste terceiro bloco:
afinal, o que é Conscienciologia?

No intuito de esclarecer e responder à questão, valho-me do conceito ex-


posto publicamente por estudiosos do tema: “Conscienciologia é a ciên-
cia dedicada ao estudo da consciência ‘inteira’, constituída por todos os
seus corpos (holossoma), atuando a partir de diversas dimensões (multi-
dimensionalidade), considerando as suas múltiplas existências (multiexis-
tencialidade), sob influência das energias (bioenergias) e das manifestações
parapsíquicas (parapsiquismo)”. A Conscienciologia foi proposta em 1986
pelo médico e pesquisador Waldo Vieira, no tratado Projeciologia: Panorama
das Experiências da Consciência Fora do Corpo Humano, e ratificada com publi-
cação da obra 700 Experimentos da Conscienciologia, em 1994. Desnecessário
frisar que os temas são polêmicos e regados com momentos de tranquilida-
de, mas também com acalorados debates e divergências.

Finalmente, uma vez compreendidos, vivenciados ou apenas considerados


como meras possibilidades e hipóteses filosóficas, os pressupostos basila-
res da multidimensionalidade, da multiexistencialidade, da holossomaticidade,

233
Capítulo 14 • Assistencialidade, Cosmoeticidade, Maxifraternidade e Universalidade

da pensenidade, da projetabilidade e da bionergeticidade poderão incentivar o


leitor, como ocorreu comigo, a desenvolver seu próprio código de ética,480
cujo constructo lógico passará por quatro valores fundamentais, que cons-
tituirão a ordem sequencial deste capítulo:
1. Assistencialidade
2. Cosmoeticidade
3. Maxifraternidade
4. Universalidade

Importante destacar que tais valores ou princípios norteadores estão ab-


solutamente interligados, ou seja, foram divididos por questões meramen-
te didáticas e serão analisados sob minha perspectiva individual. Passa-
rei, sem mais delongas, ao estudo e ponderações sobre tais atributos, mas
antes destaco que as observações e comentários não devem ser atribuídos
exclusivamente aos estudos conscienciológicos ou integrais, pois, além da
bissociação de conceitos pertinentes a tais vertentes, utilizei-me suplemen-
tarmente de edificações intelectuais com nascedouro exterior a ambas.

Assistencialidade
À medida em que amadureci com o passar dos anos, com os erros e os
acertos e, evidentemente, com as dores e as delícias da vida, alcancei a cos-
movisão de que a existência humana ou o indivíduo não estão hermetica-
mente isolados daquilo que os cerca, mas, justamente o contrário, estamos
contundentemente conectados a tudo e todos, numa teia interdimensional
profunda, similar à explicação poética de um antigo texto hindu chamado
Avatamsaka Sutra, cujo conceito restou conhecido por “Rede de Indra”;481
para o mesmo conceito, a Conscienciologia prefere a analogia da “mini-
peça no maximecanismo”. Percebi claramente não apenas a necessidade

480 Em Conscienciologia, utiliza-se o termo “cosmoética”.


481 “Rede de Indra” descreve e representa a interconexão de todas as coisas, como a imagem
de uma rede ou teia em que em cada conexão esteja uma joia infinitamente facetada que re-
flete, em cada uma de suas faces, todas as facetas de todas as outras. Vale dizer, quando qual-
quer desses diamantes é alterado, todas as outras modificam-se de alguma forma. Trata-se de
explicação poética da divindade hindu (Indra) para as conexões cósmicas. A ciência procura
tais conexões em teorias do big bang e ligações cármicas que mitigam o conceito de “coincidên-
cia”, mas, apesar de apreciar os conceitos e atuar consoante tal teoria, considero tudo ainda
demasiadamente carente de validação científica.

234
Capítulo 14 • Assistencialidade, Cosmoeticidade, Maxifraternidade e Universalidade

de assistir,482 mas também a utilidade e efeito bumerangue desta proposta


assistencial extrema e radicalmente paradoxal, pois quando saímos de nós
mesmos em movimento altruísta, descobrimos a nossa própria felicida-
de, donde emerge indigesta questão ambivalente e supostamente incoe-
rente: se o altruísmo traz benefícios ao altruísta, poderíamos cultivar o altruísmo
por egoísmo? Eis o paradoxo desses conceitos antagônicos, mas que encon-
traram uma conexão pelo raciocínio exposto. Neste contexto de citações
paradoxais, relembro o trecho da música de Jorge Ben Jor, “se malandro
soubesse como é bom ser honesto, seria honesto só por malandragem”;483
e também a citação contida na oração atribuída a São Francisco de Assis,
“é dando que se recebe”; seguido de um conselho jocoso e irreverente de
minha autoria: seja altruísta, ainda que por mero egoísmo.

O leitor poderá estar confuso e questionar-se: o que ele quis dizer com isso?
Concluí que, para responder a esta indagação, devemos transcender – e
até mesmo questionar – o conceito dicionarizado de altruísmo a seguir
transcrito: “segundo o pensamento de Comte (1798-1857), é a tendência
ou inclinação de natureza instintiva 484 que incita o ser humano à preocu-
pação com o outro e que, não obstante sua atuação espontânea, deve ser
aprimorada pela educação positivista, evitando-se assim a ação antagôni-
ca dos instintos naturais do egoísmo; amor desinteressado ao próximo;
filantropia; abnegação” .485 Colocar-me-ei novamente como um crítico ao
reducionismo da filosofia comteana aos fatores instituais e concentração
exógena do altruísmo, para incluir e considerar a destinação endógena de
cada indivíduo. Parece-me inexistir uma via assistencial de mão única, o
que validaria a generalização do conceito de que toda a assistência man-
tém um padrão de reciprocidade, configurando-se numa interassistência.

Todavia, cabe-me sugerir a todos os bem intencionados que desejarem au-


xiliar aos outros e a si, para redobrarem a atenção e terem cuidado, hones-
tidade e franqueza ao responder às perguntas básicas a seguir: minha atitude

482 Assistir: no sentido de ajudar “o outro”, que está entre aspas porque tudo ao seu redor
passará a fazer parte de você mesmo em algum nível.
483 BEN JOR, Jorge. Caramba… Galileu da Galileia, 1972.
484 Natureza instintiva: contesto tal natureza, por acreditar na natureza consciencial em es-
tágios evolutivos mais avançados que o instintual, mas fica o registro dicionarizado.
485 HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Objetiva:
2009, p. 104.

235
Capítulo 14 • Assistencialidade, Cosmoeticidade, Maxifraternidade e Universalidade

ajudará a longo prazo?486 O assistido em questão deseja ser ajudado?487 Tenho o


gabarito e a competência necessários para tal assistência?488 Será que minha real
motivação não é apenas egóica?489 Estas indagações e uma dezena de outras
descendem de três questões-chave, ora simplificadas: o que é ajudar? Posso
ajudar? Como ajudar?

Reputo importante, neste contexto, abordar dois conceitos bastante co-


muns no universo conscienciológico: tacon e tares. Tratam-se de dois
acrônimos, o primeiro oriundo da expressão tarefa da consolação, em que o
agente assistencial conforta ou simplesmente anima o receptor de maneira
perfunctória, superficial e passageira e o segundo – tares ou tarefa do esclare-
cimento – designa ação mais profunda e, definitivamente, busca a autono-
mia do assistido pela transmissão de ensinamentos libertadores, para que
o necessitado consiga superar, por si mesmo, os problemas evolutivos que
ele próprio atraiu por ignorância ou imaturidade. Imagino que todos nós
tenhamos ouvido o provérbio que prioriza o ensinamento confuciano da
pesca ao conforto de receber o peixe, o que nos oportuniza uma associação
de ideias simples: o consolo conecta-se ao ato de dar o peixe; o esclarecimento, por
sua vez, liga-se ao ensinamento da pesca.

Levantarei uma terceira condição menos óbvia, mais profunda e extraída


da mesma analogia utilizada: entre o peixe e a pesca, o prioritário é criar o lago.
Diante dessa nova perspectiva, proponho a tarefa da criação, na qual o agen-
te assistencial cria as condições necessárias para que a evolução ocorra. Te-
nho especial predileção por exemplos do mundo empresarial, onde a citada
criação estaria vinculada à estruturação de ambiente facilitador para que
as próprias Consciências encontrem seus respectivos espaços profissionais
e fluam meritocraticamente por caminhos próprios e padrões assistenciais
bem adaptados e úteis a todo o contexto evolutivo e demandas pragmáticas
cotidianas. Para meus amigos conscienciólogos que apreciam acrônimos,

486 Vale o dito popular: “muito ajuda quem não atrapalha”. Na dúvida, abstenha-se.
487 Respeito ao livre-arbítrio é ética primária. Pergunte-se sempre: ele pediu ajuda?
488 Modéstia para compreender que nem sempre somos os detentores da solução para os
problemas alheios. Vale outra sabedoria popular: “cada um sabe onde aperta o sapato”.
489 E se for, não vejo problema nisso, desde que você não prejudique a terceiro. Endosso o
conceito do utilitarismo do interesse próprio, de Adam Smith, e a virtude na sua busca, de Ayn
Rand.

236
Capítulo 14 • Assistencialidade, Cosmoeticidade, Maxifraternidade e Universalidade

sugiro a expressão tacri,490 cuja analogia ou estilo assemelha-se ao filme de


ficção científica Campo dos Sonhos,491 estrelado por Kevin Costner. No cha-
mado “mundo real”, poderia ofertar como exemplo a criação do projeto TV
Compléxis,492 programas Ciência e Consciência493 e VideoDebate,494 os primei-
ros destinados aos temas transcendentes, e o último aos interessados em
filosofia política. Essas ferramentas oportunizam o “comércio de ideias”
franco e debate desapaixonado. Considero a criação desses veículos de co-
municação uma etapa focada no longo prazo, ao contrário do curtíssimo
prazo consolatório. Poderia classificar as três tarefas ou oportunidades
existenciais numa escala valorativa, da menos para a mais duradoura:
1. Tarefa do consolo ou “dar o peixe”.495
2. Tarefa do esclarecimento ou “ensinar a pescar”.496
3. Tarefa da criação ou “criar o lago”.497

Antes de encerrar meus comentários sob o presente tópico, sinto-me no


dever de esclarecer aos leitores não habituados com essa complexa termi-
nologia que as tarefas do consolo (tacon) e do esclarecimento (tares) estão
incorporadas pela Conscienciologia, com farta leitura suplementar à dispo-
sição. A tarefa da criação é epifania pessoal e sujeita a críticas e refutações
mais agudas, sem nenhuma validação conscienciológica até o momento.
Aliás, como ocorreu em muitos insights expostos no decorrer desta obra, em
processo que lembra a Gestalt, esforço-me para deixar claro ao leitor – seja
ele conscienciólogo, integral ou leigo – o caráter absolutamente hipotético
de minhas propostas, por meio do qual trafego pelo território das suposi-
ções, no estilo de escrita “solta e despretensiosa”, com foco na fluidez dos
textos, dos pensamentos e das reflexões. Portanto, desejo cumprir minha
responsabilidade ética e “cosmoética” de reiterar que esta obra utiliza-se de
pressupostos conscienciológicos, integrais e de muitas outras vertentes, mas
sob perspectiva irremediavelmente individual. Diante da citação do termo
“cosmoética”, o leitor poderá questionar-me: afinal, o que é isso?

490 Tacri: acrônimo de “tarefa da criação”.


491 Título original: Field of Dreams.
492 Sítio eletrônico: www.portalcomplexis.com.br
493 Sítio eletrônico: www.youtube.com/tvcomplexis
494 Sítio eletrônico: www.youtube.com/videodebate
495 Política do “pão e circo” (bolsa família e estádios de futebol).
496 Política focada na manutenção e desenvolvimento do conhecimento.
497 Política focada na criação da infraestrutura para o desenvolvimento individual meritocrá-
tico e personalíssimo.

237
Capítulo 14 • Assistencialidade, Cosmoeticidade, Maxifraternidade e Universalidade

Cosmoeticidade
O neologismo “cosmoética” obviamente é formado pelos termos cosmo e
ética. Cosmo, neste contexto, traz a noção de ampliação, maior abrangên-
cia, transcendência e inclusão de todas as dimensões; ética, pelo significado
tradicional, estaria ligada aos assuntos morais oriundos ou pertencentes
ao caráter. Entendo desnecessário o aprofundamento das nuances e parti-
cularidades entre ética e moral, o primeiro conceito geralmente entendido
como o costume ou hábito ligado ao comportamento exterior e o segun-
do, destinado a buscar a fundamentação teórica para encontrar o melhor
modo de viver, o que abrange interesses da antropologia, direito, psicolo-
gia, sociologia, economia, pedagogia e praticamente tudo que envolva uma
conexão com valores interiores.

Quando penso em ética e cosmoética, inundam minha mente associações


entre conceitos jurídicos e transcendentes como legitimidade assistencial, co-
nectados ao universo onde nossa atuação seja válida e não intrusiva, jamais
em espaço onde o efeito “cosmoético” reste mitigado. Portanto, podemos
abordar o tema sob o prisma individual, coletivo, privado, público, pessoal,
familiar, profissional, social, religioso, científico, legal, histórico, pactual,
contextual e outras infinidades classificatórias.

Os ângulos de visão de minha preferência são o tributário e o político,


com suas borbulhantes divergências ideológicas que deixarei para refle-
xão do leitor em forma de tormentosas perguntas: será ético obrigarmos
nosso semelhante a ser altruísta, consoante as nossas prioridades “altruístas”?
Podemos levar uma “ética obrigatória” até as últimas consequências? A pesada
carga tributária obrigatória ao redor do mundo,498 cobrada através dos
impostos, taxas ou contribuições de melhoria, que, teoricamente, ajuda-
ria os mais necessitados, baseada no modelo europeu do welfare state,499
representa o ícone do “altruísmo-obrigatório”, coercitivamente imposto
ao cidadão e que retira do indivíduo a liberdade de escolha ou destinação
daquilo que lhe pertence.

498 Em especial no Brasil, onde o custo-benefício entre tributação-serviços é escandalosa-


mente desfavorável ao contribuinte.
499 “Estado de bem-estar social” que, para muitos, é agente provocador do caos econômico.
Particularmente, valido e compartilho tal raciocínio, mormente se não houver equilíbrio com
o chamado livre mercado.

238
Capítulo 14 • Assistencialidade, Cosmoeticidade, Maxifraternidade e Universalidade

O oposto desse raciocínio configura a base do liberalismo e do chamado


estado minimalista.500 Entre as ideologias liberais e sociais, o desafio da pós-
-modernidade, no meu entender e a despeito de minha tendência confes-
sadamente liberal,501 é abandonar as posturas de radicais ideológicos de
lado a lado e encontrar uma via inclusiva dos direitos e deveres, coletividade e
individualidade, em suma, liberdade com responsabilidade.

Vivo numa sociedade em que está em moda uma “ética intrusiva”, uma
ditadura do “politicamente correto” e falácias que abusam da expressão
“tudo pelo social”, sobre a qual o filósofo contemporâneo Luiz Felipe
Pondé elaborou contundentes críticas espalhadas por seus artigos e obras
com títulos provocativos como Contra um Mundo Melhor e Guia Politica-
mente Incorreto da Filosofia. Aliás, frise-se que o suposto “politicamente
correto”, a moda, o pensamento coletivista grupal, os governantes que
pensam deter a grande orientação para a população502 e esta generosida-
de sócio-igualitária onde o “altruísmo é meu, mas o esforço é seu”, não me
parecem posturas alinhadas com os princípios cosmoéticos. Distorções
éticas em achatamento valorativo503 dos iludidos românticos-igualitários de
sempre e, na outra ponta, os insensíveis-durões que não conseguem esten-
der suas mãos para além de seus umbigos,504 estão na gênese de muito so-
frimento e movimentos racistas,505 classistas,506 nacionalistas,507 machis-
tas,508 feministas,509 e etnocêntricos.510 Eventuais privilégios delegados

500 Um estado minimalista é uma forma de governo em que as funções do Estado são resi-
duais, de forma a interferir o menos possível na liberdade e nas ações dos indivíduos. Os adep-
tos da minarquia afirmam que a função do Estado será justamente garantir livres relações
entre os indivíduos.
501 No sentido europeu do termo. Nos EUA o termo possui conotação oposta, circunstância
em que meu pêndulo político caminharia na direção republicana.
502 Considerada arrogantemente pelos governantes de mentalidade anti-libertária, como
um grupo de mentecaptos carentes de um líder com a panaceia salvacionista.
503 Wilber possui um bom nome para isso: flatland.
504 Embora providos de condições suficientes para tanto.
505 Geralmente baseados na cor da pele (ex.: cotas raciais).
506 Baseado na luta de classes (ex.: marxismo).
507 Baseado na nacionalidade (slogans: “o petróleo é nosso”; “Brasil: ame-o ou deixe-o” ou a
ridícula e tirânica obrigatoriedade do serviço militar).
508 Sociedade patriarcal. Confundem-se as habilidades naturalmente mais bem desenvolvi-
das pelos homens como superioridade masculina.
509 Sociedade matriarcal. Confundem-se as habilidades naturalmente mais bem desenvolvi-
das pelas mulheres como superioridade feminina.
510 Baseado na responsabilidade “deles” e nos “nossos” direitos.

239
Capítulo 14 • Assistencialidade, Cosmoeticidade, Maxifraternidade e Universalidade

ao arrepio da meritocracia, salvo raríssimas exceções,511 a um grupo de


indivíduos classificado por suas características semelhantes, poderemos
adjetivar de preconceituosos.

Portanto, qualquer seita, governo ou ideologia que apregoe a demoni-


zação de um grupo qualquer, seja ele de empresários, patrões, empregados,
brancos, negros, amarelos, vermelhos, mestiços, religiosos, ateus, judeus, alemães,
brasileiros, argentinos etc., para alguma finalidade ou qualquer bandeira
falaciosa de anti-dominação ou de “justiça social”, causará efeito con-
trário, justamente o oposto do ostentado em seus enganosos tótemes, ou
seja, terminará por encontrar a injustiça, a miséria, a escravização, a ti-
rania e a manipulação ditatorial pelo poder, explicada contundentemen-
te pelas obras do economista contemporâneo Rodrigo Constantino512 e
por consagrados autores como Adam Smith, Ayn Rand,513 Karl Raimund
Popper,514 dentre os opositores ideológicos dos pensamentos de Rous-
seau, Hegel e Marx.

Embora extremamente polêmica, essa questão ético-político-ideológica,


sobre a qual possuo opinião assemelhada ao sistema laissez-faire, ao ceti-
cismo político e antagônica à tendência coletivista atual,515 reconheço a
importância de algumas provisões consolatórias, além de parciais acertos
e equívocos de qualquer ideologia política,516 mas clamo pela compreensão
de que os chamados direitos sociais não deveriam colidir com os chama-
dos direitos individuais, meritocráticos e personalíssimos.

Insisto, como fiz inúmeras vezes nesta obra, que abandonemos o “isso ver-
sus aquilo”, ou seja, não se trata de uma escolha dicotômica do tipo “in-
divíduo versus coletivo”, mas do tipo indivíduo e coletivo, eu e você, nós e eles,
privado e público, cada qual na sua jurisdição específica de atuação ou, em
linguagem coloquial, “cada um no seu quadrado”. No momento em que o

511 Exemplo: ocupação do cargo de presidente da república por brasileiro.


512 Economia do indivíduo, Liberal com orgulho, Uma Luz na Escuridão e Privatize Já.
513 Romancista e autora da obra A revolta de Atlas. Random House: 1957.
514 Neste contexto, citarei a obra A sociedade aberta e seus inimigos. Routledge: 1945.
515 “Pão e circo para o povo” (bolsa família, carnaval e futebol).
516 Inexiste panaceia salvacionista (política da fé versus política do ceticismo).

240
Capítulo 14 • Assistencialidade, Cosmoeticidade, Maxifraternidade e Universalidade

público invade a área do privado517 (ou vice-versa)518 ou o indivíduo invade


o terreno de outro indivíduo,519 encontraremos a carência ética.

Abandonarei a linha política e abordarei a questão ética sob o prisma


familiar, onde outras provocativas perguntas poderiam ser objeto de
análise: até onde podemos interferir no livre arbítrio de nossos filhos, pais, côn-
juges e parentes mais distantes? Por outro lado, se adotarmos a postura da inércia
radical, não cairemos na indiferença, ou até mesmo na negligência? Coloquei
tais questões com o intuito de demonstrar que o nosso conceito de ética
pode ser ilusório e autocorrupto, cujos valores mais arraigados e tidos
como “os verdadeiros” podem tanto prejudicar certos ambientes como
ajudar em outros.

Todavia, o que fazer quando a abstenção representa a opção prejudicial? Vejamos


um exemplo dramático e hipotético que escutei em cursos sobre ética e
que adaptei para os propósitos deste texto, segundo o qual inexistiria uma
hipótese assistencial para todos, mas apenas soluções em busca do mal me-
nor: após um naufrágio em alto mar, você é o capitão responsável para
escolher, entre sete seres, os quatro que irão compor a tripulação do bote
salva-vidas com esta capacidade máxima. Na hipótese de você tentar a sal-
vação de todos, o bote afundará e todos morrerão, ou seja, você somente
poderá salvar quatro dos sete indivíduos. Segue a questão prioritária: qual
o critério que você usará?

Dentre os sete náufragos, você é o capitão; seu filho e um amigo perfa-


zem o número dos três primeiros desafortunados; Mahatma Gandhi é o
quarto; um cão perdigueiro é o quinto; um prisioneiro condenado e perito
em sobrevivência é o sexto; e uma mulher grávida é a sétima. Está feita
a confusão e você é o responsável por estabelecer um critério de escolha.
No Quadro 14.1 a seguir, veremos, dentre muitas possibilidades, quatro
critérios de escolha, baseados em quatro valores diferentes, todos com suas
razões e motivações.

517 Ditadura do “nós”, tirania coletivista, ou ainda ditadura da maioria.


518 Ditadura do “eu” ou tirania individualista.
519 Manipulação consciencial.

241
Capítulo 14 • Assistencialidade, Cosmoeticidade, Maxifraternidade e Universalidade

Quadro 14.1
Conexões entre valores éticos, justificativas, critérios e possíveis
problemas oriundos das soluções diversas

Valor ético Justificativa Critério Possíveis problemas


O cão e o condenado podem
Todos tem igual direito ocupar o lugar do seu filho, da
Essencial Sorteio mulher grávida, de Mahatma
Visão socioigualitária Gandhi, de seu amigo e do seu
assento no bote.
Mahatma Gandhi, em tese, terá
Moral
presença garantida e talvez seu
Intrínseco O valor de cada um Julgamento amigo, você e a mulher grávida
sejam mais valorosos que seu
Visão meritocrática
filho.
Neste caso, indiscutível o valor
do perito em sobrevivência
Valor contextual no contexto do naufrágio. O
Relativo Técnico
O melhor para a ocasião condenado passa a ter lugar
garantido e eventualmente até
mesmo o cão perdigueiro.
Você, seu filho e seu amigo
terão lugares garantidos e, para
garantir a sobrevivência “dos seus”,
Etnocêntrico O melhor para o clã Apontamento
talvez seja melhor destinar o
quarto assento para o perito em
sobrevivência.

Se houver resposta certa, desconheço-a. O objetivo do exercício foi ex-


ternar a complexidade do problema ético e outorgar uma noção do gi-
gantesco desafio para ampliarmos um único critério para incluir aspec-
tos multiexistenciais e multidimensionais. Consequentemente, passemos da
ética sob o prisma horizontal520 para o vertical,521 onde camadas ou di-
mensões possam sobrepor-se umas às outras para níveis superiores e in-
feriores em múltiplas dimensões; junte-se a isso as diversas linhas do de-
senvolvimento humano e não humano, todos os estados possíveis e todos
os tipos de possibilidades existenciais e estaremos diante da complexida-
de e da magnitude do desafiador conceito do neologismo cosmoética, mas,

520 Intra-hólon. Wilber utiliza o termo flatland para designar o achatamento dos vários níveis
em um único hólon.
521 Vertical: aqui representa a multidimensionalidade tratada pelo primeiro elemento wilbe-
riano (níveis).

242
Capítulo 14 • Assistencialidade, Cosmoeticidade, Maxifraternidade e Universalidade

confrontando-se com todos esses argumentos, alguém poderia elaborar


a seguinte questão: diante de tamanha dificuldade, onde buscar motivação para
ajudar alguém?

Maxifraternidade
O amor, sem dúvida, permanece como robusto manancial motivacional
que consigo identificar a favor da assistência fraterna e cosmoética.522 Esse
motor atitudinal, cujo significante está muito desgastado pela modernida-
de e por valores lineares ligados ao consumo, ainda mantém significado
poderoso e impulsiona diferenciados cidadãos em suas mais diversas mo-
dalidades altruístas: a generosidade, a bondade, a dignidade, a honestidade,
a autenticidade, o companheirismo e tantas outras qualidades que rela-
cionamos com a fraternidade que, por sua vez, pode ser elevada aos mais
nobres níveis de compreensão. Neste momento sutil de empatia com tudo
e todos ao nosso redor, imagino que estaremos próximos de vivenciar esse
magno conceito.

Com sua firmeza característica, Waldo Vieira, em sua obra Nossa Evolução,
trouxe-nos o conceito de maxifraternidade como “a condição interconscien-
cial, universalista, mais evoluída, fundamentada na fraternidade pura da
consciência autoimperdoadora e heteroperdoadora, meta inevitável na
evolução de todas as consciências”.523 Pessoalmente, questiono a eficácia
da condição de “autoimperdoador” e prefiro a inserção de todas as Cons-
ciências na mesma possibilidade do autoperdão, obviamente desde que o
agente causador de qualquer dano evolutivo por ato doloso524 ou culpo-
so525 passe a ter consciência de seus erros, repare-os em toda sua extensão
e evite efetivamente sua reincidência. Outra curiosidade que conquistou
minha atenção na análise das palavras de Viera foi a introdução do termo
“universalista” na conceituação de “maxifraternidade”, conexão com a qual
estou em absoluta concordância, mas poderá restar a seguinte questão na
mente do leitor: enfim, o que é universalismo?

522 Embora o termo cosmoética seja um neologismo e de uso técnico, podendo ser grafado
entre aspas ou em itálico, passarei a grafá-lo normalmente a partir de agora.
523 VIEIRA, Waldo. Nossa evolução. Editares: 2010, p. 112.
524 Ato doloso ou dano comissivo ou intencional, é aquele em que o delinquente ético prevê
o resultado lesivo da sua conduta.
525 Modalidades de culpa: imprudência, negligência ou imperícia.

243
Capítulo 14 • Assistencialidade, Cosmoeticidade, Maxifraternidade e Universalidade

Universalidade
Colocadas algumas questões éticas e um esboço dos conceitos de assisten-
cialidade, cosmoeticidade e maxifraternidade, emergem reflexões sobre o con-
ceito tratado em Conscienciologia como universalismo, aqui sob o título de
universalidade, significante que utilizei para representar a capacidade hu-
mana para desenvolver perspectivas cada vez mais amplas e inclusivas, a
fim de evitarmos a assimetria ética. Para facilitar tal processo, adaptarei
conceitos wilberianos ligados às diferentes cosmovisões e tratados prete-
ritamente nesta obra e que, no momento, pretendo explorar com maior
profundidade: pré-egocêntrica526 ou tribal, egocêntrica, etnocêntrica, globocêntri-
ca, cosmocêntrica527 e kosmocêntrica.528

O cidadão que se encontra momentaneamente na visão pré-egocêntrica está


relacionado ao nível mais primário ou aquém de uma unidade pensante
por si mesma. Trata-se do conceito que José Ortega y Gasset chamou de
“homem-massa” e que Luiz Felipe Pondé talvez chamasse de genuflexão
ao “politicamente correto” – também me lembra das críticas de Rodrigo
Constantino ao “coletivismo”; a cultura regional e popular na qual estou
inserido firmou a expressão pejorativa “vaquinha de presépio” e os mais
técnicos proporiam o tema sob o título de “fanatismo ideológico”. Mutatis
mutandis, prefiro a expressão “mentalidade de rebanho” ou “pensamento
tribal”, em que o indivíduo não consegue diferenciar as respectivas indi-
vidualidades do meio em que vive, numa espécie de fusão inapropriada e
forçada entre sua genuflexão idealizada ao social e a realidade da diversi-
dade individual.529

Um passo à frente do romântico e ingênuo “pensamento tribal”, encontra-


-se a visão egocêntrica, que limita seu universo (cosmovisão) a si mesmo.
O indivíduo reconhece-se como alguém digno de ser ouvido e começa a
desenvolver as primeiras condições de autonomia em relação aos ordena-
mentos exteriores, mas ainda é escravo das limitações do egoísmo e porta-

526 Proponho a inserção da visão pré-egocêntrica ao modelo wilberiano.


527 Centrada no cosmos material e energético (capítulo 2).
528 Centrada em todas as dimensões cósmicas (capítulo 2).
529 Em geral, ingênuos eleitores que se encantam com discursos assistencialistas, seduzidos
pela política do “pão e circo”, pelas falácias do “tudo pelo social” e pelas ilusórias benesses típi-
cas dos excessos do intervencionismo estatal.

244
Capítulo 14 • Assistencialidade, Cosmoeticidade, Maxifraternidade e Universalidade

dor de uma certa agressividade ou maquiavelismo tirânico, que expõe sua


imaturidade flagrante.530

Diante de uma certa obviedade das mentalidades em patamares pré-egocên-


trico e egocêntrico, passarei a tratar da visão etnocêntrica, extremamente fo-
cada nos códigos de comportamento, em geral excessivamente conectada ao
clã,531 à profissão,532 à família,533 às sociedades fechadas,534 a esta ou aquela
ideologia,535 às disputas religiosas,536 ao nacionalismo,537 a uma determina-
da classe social,538 a uma raça 539 ou etnia. Trata-se da visão majoritária dos
líderes hodiernos540 do planeta Terra, cuja aplicação moderada considero
aceitável, mas cujo extremo causará entropia e acobertará lamentáveis in-
justiças meritocráticas.

O formidável passo evolutivo do raciocínio ou cosmovisão etnocêntrica


para a globocêntrica (ou mundocêntrica) dependerá da conscientização de
massa crítica ainda carente deste avanço em direção à simetria ética univer-
salista, que eu prefiro denominar universalismo meritocrático, como profilaxia
da possível confusão com o nefasto nivelamento qualitativo dos indivíduos,
que Wilber nominou como flatland. Nesse âmbito, identifico embriões em
esparsas iniciativas privadas, como algumas ferramentas inseridas na rede
mundial de computadores no estilo Google, Youtube, redes sociais, Wikipédia,
entre sítios e portais menos conhecidos, mas com princípios similares.541

530 Característica típica de líderes egoicos portadores do demagogo discurso social-coletivista


(exemplo típico: políticos brasileiros) ou ideologias selvagens do tipo “salve-se quem puder”.
531 Em geral definido por unidades de parentesco e linhagem.
532 Exemplos: corporativismo dos advogados; dos juízes; dos médicos; dos funcionários pú-
blicos etc.
533 Exemplos: os Fittipaldi; os Orleans e Bragança; os Matarazzo Suplicy etc.
534 Exemplos: os maçons, os rosacruzes etc.
535 Exemplos típicos: os marxistas; os comunistas; as ideologias esquerdistas etc.
536 Felizmente com exemplos atuais de tolerância entre os católicos; os crentes; os budistas;
os protestantes; os espíritas etc.
537 Exemplos: os brasileiros; os argentinos; os estadunidenses; os árabes; os japoneses; os
franceses; os chineses; os portugueses etc.
538 Exemplos: os ricos; os pobres; a classe média; os trabalhadores; os empregadores; a bur-
guesia; os explorados; os exploradores; os empresários etc.
539 Exemplos: os mongoloides (raça amarela); os caucasoides (raça branca); os negroides
(raça negra).
540 Ano base: 2014.
541 Exemplos: portalcomplexis.com.br, portaldebateliberal.com.br, youtube.com/tvcomple-
xis, youtube.com/videodebate.

245
Capítulo 14 • Assistencialidade, Cosmoeticidade, Maxifraternidade e Universalidade

É-me evidente que a compreensão do conceito de universalismo pressupõe


a ação que inclua a tudo e todos – o que não significa equiparar ou nivelar os
indivíduos –, vale dizer, estabelecer uma política receptiva e assistencial542
aos envolvidos e toda sua diversidade ética, além da natureza e dos outros
seres humanos e não-humanos. Tudo parece simples até aqui e talvez o
seja; porém, proporei uma classificação do componente atitudinal em rela-
ção ao universalismo meritocrático, a fim de compartilhar reflexões pessoais,
cuja conexão com o valor assistencial, cosmoético e a maxifraterno considero
profunda e, neste caso, penso ser indissociável. Na síntese classificatória a
seguir (Figuras 14.1, 14.2 e 14.3), denominarei de assistência interior a pos-
tura benéfica concentrada no próprio agente e assistência exterior, a atitude
centrada no outro. Por meio desses recursos, pretendo esclarecer gigantes-
ca confusão entre conceitos antagônicos como bondade e maldade, altruísmo
e egoísmo e ética e anti-ética.

Autoestima sadia
Validação ética
Sem prejuízo
Egoísmo positivo, de Ayn Rand
alheio Self interest, de Adam Smith
Capitalismo de mercado

Assistência
interior

Egoísmo convencional
Com prejuízo
Anti-ética
alheio Exploração
(pseudoassistência) Capitalismo de Estado

Figura 14.1 – Assistência interior ou “foco em si”, com e sem prejuízo.

542 O que não significa “passar a mão na cabeça” ou a prática do “assistencialismo de sarjeta”.
Aliás, não raro, os princípios assistenciais do esclarecimento pressupõem o que chamamos
popularmente de “remédio amargo”.

246
Capítulo 14 • Assistencialidade, Cosmoeticidade, Maxifraternidade e Universalidade

Autruísmo
Sem prejuízo Ética validada
próprio ou alheio Bondade
Generosidade

Assistência
Com prejuízo próprio
exterior Martírio
Pseudouniversalismo
“menos um”

Com prejuízo de terceiro


Cortesia com “chapéu alheio”
Esforço “seu”, altruísmo “meu”
Socialismo/Comunismo

Figura 14.2 – Assistência exterior ou “alheia”, com e sem prejuízo.

Universalismo
Maxifraternismo
Cosmoeticismo
Assistência
interior e Individualidade e coletividade
exterior
(não dual) Meritocracia e solidariedade

Respeito às escolhas individuais para o


bem de todos

Figura 14.3 – Assistência com a cosmovisão “não dual”, onde a ajuda a si afeta
positivamente o outro e vice-versa.

247
Capítulo 14 • Assistencialidade, Cosmoeticidade, Maxifraternidade e Universalidade

Não consigo imaginar melhor fechamento desta terceira etapa, que consi-
dero exagerado chamar de conscienciológica, já que a abordagem impreg-
nou-se de filtros e reflexões de cunho pessoal. De fato, as proposituras e
hipóteses sobre os quatro conceitos analisados passaram por meus valores
e reflexões no que tange à ética (respeito ao indivíduo) e à justiça (meri-
tocracia). Não obstante, convido o leitor a embarcar comigo no quarto e
último bloco desta obra, onde apresentarei as conclusões desta aventura
intelectual e resumo geral das emergências criativas a partir de vertentes
aparentemente tão distintas.

248
Quarto bloco

Epifanias

249
250
Sou, logo existo 15

Dedicarei este capítulo para externar diversas epifanias pessoais que, à


primeira vista, pareceram-me ligeiramente desconectadas com os argu-
mentos e as exposições pretéritas, mas, ao longo do desenvolvimento desta
obra, provarem-se produto emergente desse percurso. O título deste capí-
tulo faz alusão, obviamente, à tradução da frase cartesiana 543 “penso, logo
existo” e mantém pretensão de aplaudir, mas, ousadamente, sugerir outra
tradução ou até mesmo transcender esse postulado, motivo pelo qual re-
lembrarei a frase de Isaac Newton, em carta para Robert Hooke datada de
15 de fevereiro de 1676: “se vi mais longe, foi por estar de pé sobre ombros
de gigantes”.

Nos ombros de gigantes


Considero Descartes digno de estar entre os pensadores mais importan-
tes, influentes e precursores da transição para a era moderna. Todavia,
suas proposições encontraram oposições em futuras interpretações, nem
sempre precisas de seu raciocínio, creditando-lhe a paternidade do ma-
terialismo “científico” grosseiro,544 que teve origem no desvirtuamento do
dualismo absoluto entre mente (res cogitans) e matéria (res extensa).

543 René Descartes (1596-1650).


544 Materialismo grosseiro: postulado onde nada mais exista além da matéria, ou seja, tudo
é matéria. Basicamente, este “fisicalismo rudimentar” sustenta que mente (entendida como
Consciência) é igual ao corpo e que tudo se reduz ao processo físico, onde tudo pode ser des-
crito na linguagem da Física e nada mais existe além dela.

251
Capítulo 15 • Sou, logo existo

Parece-me razoável deduzir que o dualismo cartesiano resultou na crença


de que todo o mundo material pode ser descrito sem referência ao observa-
dor, mas considero equivocada a conclusão exageradamente reducionista
de uma espécie de “cartesianismo-pop”, que afirma que seu pensamento
advogaria nada existir além da matéria. Alguns respeitáveis estudiosos, in-
clusive, afirmam que Descartes postula este fisicalismo rudimentar, crítica
que considero aceitável apenas em parte, por tratar-se, salvo melhor juízo,
de uma má leitura dos textos do filósofo, físico e matemático francês.

Outro aspecto que me causa estranheza reside na dificuldade que enfrentei


para encontrar um conceito contextualizado e minimamente preciso do
vocábulo “mente”. Inoculei-me uma indigesta suspeita de que Descartes
tenha considerado o significante “mente” com significado diferente do ho-
dierno. Trabalho a hipótese de que a contextualização do vocábulo pode-
ria conduzir à possibilidade especulativa da adaptação da res cogitans car-
tesiana ao moderno conceito de Consciência.

Apesar das lacunas informacionais confiáveis, o dualismo, a dicotomia e


o isolamento material depreendido do método cartesiano levou-me não
somente ao estudo das vertentes que aceitam a conexão “Consciência-
matéria” como hipótese, mas também ao movimento no sentido de
transcender (e incluir) a relação entre “existência” e “pensamento”,
valendo-me de ensinamentos e esforços de pensadores atuais e pretéritos.
Reafirmo o presente tópico no sentido de que parto dos ombros de gigantes
intelectuais e também reconheço um oceano de deficiências empíricas e
vivenciais na estruturação do que proponho. Mesmo assim, insistirei na
incompletude, ao menos gramatical, da histórica tradução do postulado
que vincula o pensamento à existência: “penso, logo existo”.

Independentemente das especulações sobre a contextualização e interpre-


tação do conceito ontológico de pensamento, analisarei a frase citada des-
de o sentido literal de seus termos até suas relações lógicas com alguns pos-
tulados wilberianos, conscienciológicos e filosóficos. Em suma, resumirei
abaixo minhas reflexões pelos seguintes prismas:
ƒ Cartesius versus Cartesius.
ƒ Anatomia gramatical.
ƒ Conexão entre pensamento e existência.

252
Capítulo 15 • Sou, logo existo

ƒ Confronto com a Filosofia Integral.


ƒ Confronto com a Conscienciologia.
ƒ Confronto com a lógica.
ƒ Confronto com a teoria dos sete corpos.
ƒ Confronto com a ciência convencional.
ƒ Emergências reflexivas.

Cartesius versus Cartesius


Descartes preocupou-se com as certezas absolutas e a busca metódica da
verdade, tendo a razão como força motriz, num contexto hostil e com pro-
blemas ligados à tirania ideológica, cujo ambiente político exigia sutis ha-
bilidades diplomáticas. A obra Discurso do Método, publicada no século XVII,
precisamente em 1637, trouxe para a humanidade ideias transformadoras
da Europa e de todo o mundo ocidental. A provável origem matemática do
método cartesiano, onde “um mais um é igual a dois”, parece ser a base da
argumentação de seus críticos, que afirmam, a meu ver acertadamente, que
o “todo não pode ser compreendido, avaliado, enfim reduzido à mera soma
das partes”. Neste panorama específico, surgiram-me dúvidas e desconfiei
que estaria diante de paradoxos, pois Descartes validou conceitos como
“Deus”,545 “alma”546 e “intuição intelectual”, o que não se coaduna com o
absolutismo materialista.

A unidade de seu método é outro aspecto importante e foi defendida como


essencial para todas as demais áreas do saber e pode ser analisada pela
imagem de uma “árvore do conhecimento científico”, onde as raízes repre-
sentam a metafísica, os troncos a física e os galhos as demais ciências, que
podem ser reduzidas à Medicina, à mecânica e à moral. Identifico um pro-
blema nesse aspecto, pois, se levarmos o pensamento cartesiano às últimas
consequências, discutiremos a possibilidade de usar o mesmo método para
todas as ciências, já que descendem de um mesmo tronco. Obtive tal infor-
mação nos comentários prévios do audiolivro Discurso do Método,547 o que
denota um certo tipo de reducionismo da filosofia cartesiana, mas a partir
disso não podemos atribuir a Descartes o “achatamento” do universo mul-

545 Descarta sua primeira hipótese de um “Deus enganador” e modifica seu raciocínio para
um “Deus perfeito”, para validar a existência do mundo material.
546 A “coisa pensante” que compôs parte do raciocínio para a expressão “penso, logo existo”.
547 Universidade Falada, Discurso do Método.

253
Capítulo 15 • Sou, logo existo

tidimensional em unidimensional, onde existiriam apenas elementos ma-


teriais. Portanto, considero um certo exagero e severidade interpretativa
em relação a sua proposta original.

Em outras palavras, reitero o explanado no Capítulo 5, no sentido de que


René Descartes, juntamente com o cientista inglês Isaac Newton, foram
“vendidos” pela modernidade, genericamente, como os pais do materia-
lismo, do fisicalismo, do determinismo, do dualismo e do mecanicismo,
sem que uma investigação profunda das diferenciações desses pensamen-
tos fosse conduzida, resultando na desconsideração da Consciência e num
universo exclusivamente material.

Diante do cenário sinteticamente descrito e algumas premissas em que o


pensamento cartesiano desenvolveu-se, além das críticas e interpretações
posteriores, analisarei a expressão “penso, logo existo” de forma livre e
comparativa, desprovido da contaminação de duas correntes extremadas,
a primeira materialista, onde tudo é matéria, o resto seria ilusão, e seu oposto,
onde a tremulante bandeira idealista reina absoluta e o excesso subjetivo
culmina naquilo que considero o exagero contrário, ou seja, tudo é espírito,
o resto seria ilusão.548

Anatomia gramatical
Lembro-me de minha formação acadêmica na área jurídica concluída em
1988, quando, nas aulas de Hermenêutica, meus colegas e eu admirávamos
a grandeza das interpretações históricas, teleológicas e sistêmicas, para, ao
final, concluirmos pela insuficiência da interpretação meramente grama-
tical. Apesar dos limites da literalidade terminológica e sua anatomização
(remeto à crítica ao próprio método cartesiano), considero-a um excelente
início para o desenvolvimento do presente tema, motivo pelo qual lanço
mão do Quadro 15.1, onde tento demonstrar que “a ordem dos fatores al-
tera o produto”.549

548 Alusão ao conceito de maya, em que a ilusão consistiria a natureza do mundo objetivo,
numa espécie de Matrix, produção cinematográfica de inspiração hollywoodiana.
549 Alusão jocosa ao postulado de Giuseppe Peano, matemático italiano do século XIX: “a
ordem dos fatores não altera o produto”.

254
Capítulo 15 • Sou, logo existo

Quadro 15.1
Interpretação gramatical da expressão “penso, logo existo” e sua
inversão

Significantes Penso Logo Existo


Significados Ato de raciocinar Sintetiza ou conclui Existência ou essência
Função Pensar Conector gramatical Conjugação verbal
Inversão Existo Logo Penso

Descartes passou a duvidar de tudo, menos da existência daquele que du-


vida e, portanto, pensa. Esse fato provocou a associação cartesiana “penso,
logo existo”. Portanto, no presente contexto, vale destacar a construção do
raciocínio de Descartes em suas próprias palavras: “Finalmente, conside-
rando que os mesmos pensamentos que temos quando acordados podem
ocorrer-nos quando dormimos, sem que haja então um só verdadeiro, re-
solvi fingir que todas as coisas que outrora me entraram no espírito não
eram mais verdadeiras do que as ilusões dos meus sonhos. Mas, logo de-
pois, observei que enquanto pretendia assim considerar tudo como falso,
era forçoso que eu, que pensava, fosse alguma coisa”.550

Todavia, resistiria seu pensamento à característica da comutatividade551 ou com-


pletude?552 Nesse caso, suponho que a ordem dos fatores altera a validade
da proposição, pois se o ato de pensar leva-me à conclusão existencial, esta
última prescinde do pensamento, conforme depreendo dos postulados ex-
postos nesta obra e inúmeras linhas de estudos transcendentes, algumas
delas comentadas nos tópicos a seguir.

Conexão entre pensamento e existência


Inúmeros pesquisadores da transcendência humana recepcionam a pos-
sibilidade de estados “supra” ou “trans” mentais. Admito que as obras des-
ses estudiosos e inúmeros postulados de tradições milenares que também
apontam no mesmo sentido não gozam – ainda – de credibilidade cientí-
fica.553 Assim ocorre com inúmeros fenômenos da literatura adjetivados

550 DESCARTES, René. Discurso do método: regras para a direção do espírito. Martins Fontes:
1999, p. 41.
551 Comutatividade: “existo, logo penso”.
552 Completude: imprescindibilidade do pensamento como condição existencial.
553 Ano base: 2014.

255
Capítulo 15 • Sou, logo existo

de “espiritualistas”, que sugerem estados de “silêncio, vazio ou ausência de


pensamento”, que permanecem como figuras desconhecidas e até desacre-
ditadas. Contudo, apresento uma questão incômoda: estariam totalmente
equivocados esses indivíduos e todas as tradições de sabedoria? Estados de acalmia
mental, meditativos, de sono profundo, coma ou ausência de pensamentos por limi-
tações físicas congênitas, acidentais, cirúrgicas, medicamentosas ou relacionados à
transcendência “mentalsomática”554 implicariam em negação existencial?

Trabalho a hipótese de que tais respostas sejam negativas, ainda que re-
conheça uma infinidade de crendices infantis na maioria dos segmentos
pretensamente transcendentes e uma legião de fanáticos ideológicos entre
os que desfilam com estandartes dos supostos paradigmas da nova era.555
Diante disso, mantenho um certo acolhimento para estudar as mais exóti-
cas fontes informacionais e, concomitantemente, preservo meu juízo crítico
ereto, aguçado e independente, a fim de movimentar esforços para distinguir
entre “o joio e o trigo” com o devido cuidado para conter os exageros e “não
jogar o bebê com a água do banho”, em delicada combinação harmônica dos
seguintes componentes: abertura mental,556 flexibilidade557 e criticidade.558

A presente reflexão associativa entre pensamento e existência, que envolve


conhecimentos milenares e modernos, sob a égide de meu crivo e certo
juízo de razoabilidade, sugere-me a proposta de que os conceitos estão in-
timamente relacionados, mas não de forma irremovível.

Confronto com a Filosofia Integral


A Filosofia Integral aborda aspectos da “transcendência do ego” e mapeia
estágios “superiores” ao mental; em outras palavras, propõe módulos cen-
trais como corpo, mente e espírito. Wilber expõe interessante escala em sua
obra Uma Breve História do Universo,559 que podemos resumir em cinco ele-
mentos centrais: matéria, vida, mente, alma e espírito. Depreendo do postula-

554 Mentalsomático: termo ligado ao veículo de manifestação da Consciência, denominado


pela Conscienciologia como “mentalsoma”, vinculado ao discernimento, ao raciocínio lógico e,
prioritariamente, ao pensamento.
555 Movimentos conhecidos como new age, humanistas ou holísticos.
556 No sentido de manter a mente desprovida de preconceitos intelectuais.
557 Característica para discernir entre as verdades parciais e equívocos, numa espécie de “ga-
rimpo” intelectual.
558 Manutenção da racionalidade e lógica através do juízo crítico.
559 WILBER, Ken. Uma breve história do Universo. Via Optima: 2004, p. 56.

256
Capítulo 15 • Sou, logo existo

do integral que existem bases reflexivas interessantes para a formulação de


uma argumentação crítica, em sentido kantiano,560 ao postulado represen-
tado pela frase “penso, logo existo”.

Pois bem, as inúmeras obras wilberianas com que tive contato trouxeram-
-me a clara percepção de que existem estágios além do mental, do racional
ou do pensamento. Especialmente para os seres identificados com o pró-
prio ato de pensar, julgo interessante ressaltar que, para atingir esses pata-
mares “transcendentais”,561 o pressuposto seria justamente o “não pensar”
ou o “esvaziamento” mental, ou seja, uma espécie de acalmia ou supressão
pacífica dos raciocínios reflexivos e quietude da “loquacidade interior”. A
leitura das obras da Filosofia Integral reforçou minha suspeita de que a
existência transcende a condição mental e seu produto típico do animal
humano: o pensamento.

Confronto com a Conscienciologia


Do ponto de vista didático e conceitual, a Conscienciologia diferencia a
Consciência dos seus veículos de manifestação, motivo pelo qual relembro
o ensinamento do Capítulo 12 desta obra, no sentido de apontar os veícu-
los de manifestação de nossa essência: soma, energossoma, psicossoma e
mentalsoma. A proposta conscienciológica levou-me à conclusão de que
somos Consciências e manifestamo-nos na condição atual por meio de sondas
que reverberam pensenes – unidades indissociáveis resultantes da interação
de pensamentos, sentimentos e energia.

Relembro que, pelo postulado conscienciológico, nossa essência ou Cons-


ciência poderá intensificar sua manifestação em um dos veículos através
de sua prevalência mais específica. Assim, conforme abordado em capítulo
específico,562 um esportista em ação não deixa de pensar ou sentir, mas sua
manifestação está focada e, portanto, lastreada, pelo conceito consciencio-
lógico de “energia”; ao assistir aos dramas novelescos ou ao futebol, o te-
lespectador ou torcedor fanático carrega sua manifestação de sentimentos

560 Segundo Carlos Eduardo Matheus, Kant utilizou o termo “crítica” para separar os acertos e
equívocos de determinada teoria, distante da conotação atual no sentido de negação integral
da tese criticada (Universidade Falada, Kant: vida e obra).
561 Transcendentais: “transmentais”, espirituais ou outro significante da preferência do leitor.
562 Capítulo 12.

257
Capítulo 15 • Sou, logo existo

ou emoções; e o filósofo ou intelectual, ao aprofundar seus estudos, lastreia


sua manifestação pelo pensamento, pela razão, pela lógica e pelo discerni-
mento, considerando a intensidade da “atuação” do veículo mental.

No contexto deste trabalho, chamo a atenção para o fato de que somos


“algo além” das nossas sondas de manifestação ou seus respectivos produ-
tos, ainda que intensificados e ilusoriamente identificados como “nós mes-
mos”, afirmação que faço por dedução lógica do próprio conceito de “son-
da” ou “veículo”. Imagino que eventuais conscienciólogos que se aventurem
na leitura desta obra possam percorrer a linha de raciocínio ora proposta,
em que um dos objetivos explícitos está na consequente ponderação sobre
a diferenciação do conceito ontológico de Existência563 de quaisquer veículos
de manifestação564 ou respectivos produtos.565

Ainda dentro dessa vertente reflexiva, resta evidente a associação do veí-


culo do discernimento566 com o pensamento. Todavia, diante do postula-
do de que somos Consciências e que o mentalsoma é “somente” um veí-
culo ou sonda de manifestação, reforço minha conclusão, desta vez pelos
postulados conscienciológicos, de que a condição existencial transcende o
pensamento. Logo, valido intimamente minhas próprias suposições de que
a existência prescinde do pensamento e de que a tradução do postulado
cartesiano “penso, logo existo” mereça melhor tradução e transcendência
para a expressão: sou, logo existo.

Não bastasse a magnitude dessas reflexões e minha confessada incerteza


sobre este atrevimento intelectual, levei esse raciocínio filosófico às últimas
e extremas consequências para os próprios postulados da Conscienciolo-
gia. Na hipótese da minha reflexão estar correta, suposição que admito por
mero amor ao argumento, não consegui evitar o método dedutivo para
elaborar a proposta de um quarto descarte corpóreo ou quarta dessoma,
tratada em capítulo próprio, a qual certamente receberá as críticas de meus
colegas ligados aos estudos da Consciência, o que analisarei com a devida
atenção para futuras ponderações e revisões.

563 Consciência.
564 Mentalsoma, psicossoma, energossoma e soma.
565 Pensamento, sentimento e energia (pensar, sentir e agir).
566 Mentalsoma.

258
Capítulo 15 • Sou, logo existo

Confronto com a lógica


Lógica é um tema complexo e conectado à estruturação coerente e organi-
zada do pensamento. Trabalhei com a hipótese da validação da lógica aris-
totélica e seus dois princípios centrais – a lei da não contradição567 e a lei
do terceiro excluído568 – sobre os postulados da Conscienciologia e concluí
que, se adotarmos a premissa conscienciológica de que o mentalsoma seja
um “mero” veículo de manifestação da nossa essência e não a própria con-
dição existencial, este “instrumento” mental, por sua própria conceituação,
não deverá confundir-se com o “Instrumentista”, raciocínio que favorece
as suposições tratadas neste capítulo.

A utilização da lógica está diretamente relacionada às premissas que ad-


mitimos como verdadeiras. Portanto, se admitirmos as premissas cons-
cienciológicas,569 integrais ou a estrutura de tradições orientais, estaremos
intimamente convictos – salvo melhor juízo – de que existe um caminho
racional para a superação da famigerada frase cartesiana em estudo e uma
razoável estrutura argumentativa para expor as consequências desse pas-
so filosófico e sua validação pelo atributo da lógica.

Confronto com a teoria dos sete corpos


No decorrer desta existência, deparei-me com inúmeras teorias fami-
liarizadas com o orientalismo e Tradições de Sabedoria, todas despro-
vidas dos padrões exigidos pela ciência clássica e também pelo método
conscienciológico. Um pesquisador rigoroso tomaria cuidado ao citar
tais linhas do conhecimento humano, mas decidi despir-me dessas pre-
cauções e confrontar minhas reflexões com a teoria dos sete corpos,
em razão da forma reiterada que tal postulado metafísico apareceu-me
“acidentalmente”.

Antes de uma abordagem direta, gostaria de compartilhar com o leitor


alguns sentimentos a princípio paradoxais. Concomitantemente a um
ligeiro incômodo por essas vertentes do conhecimento humano, generi-

567 Lei da não contradição: nenhuma afirmação pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo.
568 Lei do terceiro excluído: aplica-se quando excluímos a terceira hipótese. Por exemplo: este
homem é Aristóteles ou não é Aristóteles; ou ainda pelo questionamento se mentalsoma é
um veículo ou a própria Consciência.
569 Mentalsoma como “mero” veículo de manifestação da Consciência e não a própria “essência”.

259
Capítulo 15 • Sou, logo existo

camente denominadas de “Tradições de Sabedoria”, estarem demasiada-


mente impregnadas com terminologias pouco precisas, mantenho notória
gratidão interior pelos indivíduos que possibilitaram nosso acesso a tais
teorias, pois considero algumas daquelas personalidades genuínos heróis
anônimos que resistiram às barbáries históricas como perseguições, con-
denações por heresia, queima de livros – e pessoas – além de outras lamen-
táveis manifestações de ignorância e intolerância.

Isso posto, adentraremos na teoria dos sete corpos para comentários e


avaliações posteriores. Iniciarei por listar estes corpos, optando pela ma-
nutenção do linguajar místico, muito diferente e distante da linguagem
conscienciológica e daquela a que o público científico está acostumado. Os
corpos recebem os nomes de físico, etérico, astral, mental, causal, búdico e
átmico. Os quatro primeiros possuem incrível similaridade com a propos-
ta do holossoma,570 mas os demais não são validados pela Conscienciologia.
A ciência materialista, por sua vez, valida somente um deles: o corpo físico
(Quadro 15.2).

Quadro 15.2
Resumo comparativo das propostas materialista e
conscienciológica e das Tradições de Sabedoria

Tradições de Sabedoria Conscienciologia Ciência materialista


Corpo átmico Não valida Não valida
Corpo búdico Não valida Não valida
Corpo causal Consciência Não valida
Corpo mental Mentalsoma Não valida
Corpo astral Psicossoma Não valida
Corpo etérico Energossoma Não valida
Corpo físico Soma Corpo físico

Essas diferenças conceituais geram importantes consequências, como no


particular exemplo da memória, que, em linguagem técnico-conscien-
ciológica, poderemos denominar holomemória ou “memória integral”, esta
considerada por Alegretti como sediada no mentalsoma ou corpo men-

570 Soma, energossoma, psicossoma e mentalsoma.

260
Capítulo 15 • Sou, logo existo

tal.571 Não estaria sediada na própria Consciência ou “corpo causal”? As tradições


de sabedoria milenar permanecem na tese de que o corpo causal, também
conhecido pela terminologia mística e religiosa como alma,572 detém os re-
gistros memoriais dos corpos mais densos. Pelo materialismo científico,
toda nossa memória estaria estruturada no cérebro físico, o que inviabili-
za o diálogo entre tais vertentes do conhecimento e consolida uma dificul-
dade abissal de aproximação.

Todavia, o ponto central desta comparação está na superação do postulado


cartesiano e na reflexão sobre a hipótese de uma quarta dessoma, a partir da
teoria dos sete corpos. A existência dos chamados corpos superiores573 após
uma suposta “quarta transcendência”, tese esposada por muitas Tradições
de Sabedoria, está em sintonia com a lógica do meu raciocínio e possi-
bilitou-me a conclusão de que, pelos preceitos sustentados por inúmeros
segmentos ditos “espirituais” ou “espiritualistas”, a tese da “quarta morte”
ou “descarte do corpo mental” e a frase proposta sou, logo existo sobrevivem
ao confronto.

Confronto com a ciência clássica


Tudo caminhava relativamente bem até a confrontação com as deman-
das empíricas, onde a replicabilidade em laboratório físico é absolutamen-
te necessária. Adianto ao leitor que, na jurisdição científica, infelizmente,
não consegui validar a tese que advogo com entusiástica sensação po-
sitiva, já que sensações, motivações ou intuições não são apenas insufi-
cientes, como também impertinentes para a chamada hard Science574 e
também para o ceticismo e a descrença conscienciológica, esta última
baseada na condição vivencial.

O rigor da ciência e seus reconhecidamente brilhantes cientistas, não raro,


ultrapassa o saudável ceticismo e adentra no que chamo de fanatismo da
negativa, ao invés de caminhar pelo território da modéstia representada

571 ALEGRETTI, Wagner. Retrocognições. Iipic: 2000, p. 50.


572 Particularmente, prefiro não usar este termo por existir enorme confusão conceitual ao
redor da terminologia religiosa.
573 Corpo causal, búdico e átmico.
574 Hard Science ou “ciência dura” é uma expressão utilizada para descrever as ciências naturais
de aspecto experimental, com foco na exatidão e objetividade.

261
Capítulo 15 • Sou, logo existo

pela utilização da singela expressão: “isso ainda não sabemos” ou, mais
tecnicamente, “inexiste validação científica neste sentido”.

Em outras palavras, diante de um postulado que ultrapasse a capacidade


probatória ou vivencial de sua época, alguns cientistas materialistas prefe-
rem intensas negativas ao recomendável e sereno posicionamento da sim-
ples “não validação”, o que difere ontologicamente de uma “declaração de
inexistência”, ou seja, invalidar por falta de provas mantém uma distância
galáctica da negação peremptória.575

O lado positivo desta rigidez científica está na maior credibilidade da


ciência clássica, além de métodos mais rigorosos e objetivos para evitar o
gigantesco oceano de ingenuidades humanas que, mesmo após as maravi-
lhas informacionais do século XXI, ainda contaminam a imatura condição
da nossa espécie. Todavia, se analisarmos a questão sob outro prisma, o
rigor científico poderá “cristalizar ou engessar” a mente do cientista, cuja
postura hermética em seu próprio exemplar de ciência impedirá os dese-
jáveis avanços e escravizará qualquer emergência criativa aos grilhões de
seu próprio condicionamento mental.

No mesmo sentido, encontrei um texto do próprio René Descartes: “Pe-


netramos o reino da física e da metafísica com espírito pesquisador. Nem
acreditamos nem deixamos de acreditar. Somos, apenas, neutros”.576 Isso
posto, somado ao esboço didático do Quadro 15.2, reconheço que as pro-
postas da quarta dessoma e da transcendência da histórica frase cartesiana
“penso, logo existo” não poderiam ser objetos nem de validação, tampouco
de negação peremptória, da comunidade científica hodierna e daquilo que
chamamos de “ciência clássica, ortodoxa ou convencional”, apesar de algu-
ma imprecisão dessas terminologias.

Diante dessa incômoda e franca digressão, devo restringir minha proposi-


ção de uma quarta dessoma e transcendência ao pensamento cartesiano ao
campo das possibilidades filosóficas e confessar minha incapacidade argu-
mentativa para o ingresso dessas reflexões no universo científico. Portan-

575 O Direito também diferencia julgamentos com ou sem suficiência probatória.


576 DESCARTES, René. Discurso do método: regras para a direção do espírito. Martins Fontes:
1999, p. 13.

262
Capítulo 15 • Sou, logo existo

to, face à diferenciação entre lógica, convicção e ciência, defendo teses nas
quais a lógica convence-me, mas considero-a insuficiente para um enfren-
tamento popperiano577 e seu conhecido caminho da falseabilidade, ou ain-
da alguma possibilidade de teste por algum sistema empírico-científico de
comprovação pela objetividade da experiência sensível. Em suma e para o
meu lamento, tal proposta não encontra validação científica.578

Emergência reflexiva
Sabemos que os notórios Isaac Newton e René Descartes foram conside-
rados os precursores do materialismo, cujo exemplar quis a história ho-
menagear com seus nomes, através da expressão “paradigma newtonia-
no-cartesiano”. Todavia, antes de encerrar meus comentários, gostaria de
compartilhar uma antiga perturbação intelectual: aqueles que foram conside-
rados os pais do materialismo científico foram, de fato, materialistas?

Porto uma incômoda e surpreendente negativa como resposta. Exempli-


ficarei com trechos de uma das obras de maior expressão de Descartes,
selecionados e comentados no Quadro 15.3 na página seguinte. O título
da obra, por si só, chamou minha atenção para lançar dúvidas sobre o
suposto materialismo de seu autor: Discurso do método: regras para a direção
do espírito.

Nota-se que a palavra espírito não sugere reducionismo material, mas,


justamente, o contrário. Entretanto, reconheço sua ruptura com a
escolástica medieval e elaboração de uma nova doutrina que edificou os
pilares reducionistas das questões centrais da filosofia ocidental, sendo
o autor em análise meritoriamente considerado um dos fundadores do
pensamento moderno.

577 Referente ao célebre autor Karl Popper, detentor de meu profundo respeito intelectual.
578 Pelo menos, até a presente data – ano base 2014.

263
Capítulo 15 • Sou, logo existo

Quadro 15.3
Trechos selecionados da obra cartesiana Discurso do Método e
refutação de seu perfil materialista científico

Refutação da ligação cartesiana ao


Trechos da obra “Discurso do Método”579
materialismo
A obra contempla um perfil de René Descartes
(1596-1650), que ingressou na escola dos
“Porque súbita torrente de luz depara-se de
jesuítas, aos oito anos, onde os mestres
improviso em 1619... ‘Neste ano fui visitado por
encorajavam-no à prática de exercícios
um sonho que veio de cima... Ouvi o estrondo de
“espirituais”. A seguir, o jovem Descartes
um trovão... Era o Espírito da Verdade que descia
vivenciou uma experiência militar cujo
para assenhorar-se de mim’. Na manhã seguinte,
abandono descreveu pelo trecho em destaque,
orou a Deus para que lhe concedesse a luz. Pois a
donde concluo que Descartes distancia-
sua vida, a partir de então, deveria ser dedicada à
se do que entendemos por materialismo,
investigação da Verdade”.
notoriamente por admitir conceitos como
“Deus” e “espírito”.
“O fato de eu pensar revela-me a existência de algo Considero marcante este trecho da obra onde
que pensa. Que é esse algo? Sou eu. Cogito, ergo Descartes deixa claro seu movimento em
sum. Penso, logo existo. A minha própria dúvida descortinar “algo” além do mero corpo físico
demonstra minha existência de ‘duvidador’. De para designar de “existência”. Enfim, poderemos
outra maneira, nem a própria dúvida poderia considerá-lo materialista ou contrário à
existir”. admissão da própria Consciência?
“Mas quem sou eu? Que sou eu? A essa pergunta
Descartes parte de perguntas filosóficas
dá Descartes uma resposta simples e lógica. ‘Sou
notoriamente transcendentes e chega a colocar
aquilo que duvida. Em outras palavras, sou uma
em dúvida o mundo material, em validação
coisa pensante, ou um Espírito. Posso duvidar que
ousada de um universo existencial ligado ao
eu seja um corpo ou que exista um mundo material
pensamento. Novamente, seu discurso não
onde vivo’. Não posso, contudo, duvidar de minha
apresenta sintonia com o materialismo radical.
dúvida nem da existência do meu pensamento.”
Isto é materialismo científico? Penso que
“Disso infiro que sou uma substância cuja natureza
não e questiono se conotação atribuída à
toda consiste em pensar e para cuja existência não
nomenclatura “paradigma newtoniano-
há necessidade de lugar nenhum, nem ele depende
cartesiano” esteja adequada a uma concepção
de nenhuma coisa material; de sorte que esse ‘eu’,
que exclua a Consciência do mundo. Parece-me
isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente
equivocado atribuir a Descartes a paternidade
distinta do meu corpo e é até mais fácil de ser
da coisificação da alma. No máximo, a frase em
conhecida do que este último; e mesmo se o corpo
itálico demonstra mera desconexão cartesiana
não existisse, não deixaria a alma de ser o que é.”
entre corpo e mente.
“E assim, pelo simples processo de pesquisar tudo,
Dispensam-se maiores considerações, pois
inclusive a existência do corpo, alcança Descartes
interpreto a validação do conceito de “alma”, por
(pelo menos a seu juízo) estabelecer uma coisa: a
Descartes, contrária a sua fama materialista.
existência da alma”.

579 DESCARTES, René. Discurso do método: regras para a direção do espírito. Martins Fontes:
1999, p. 12, 14, 15 e 44.

264
Capítulo 15 • Sou, logo existo

Aqui temos duas pistas: a primeira, a distinção


“Meu corpo, como posso ver claramente, é uma
cartesiana entre pensamento (corpo mental)
substância. É uma substância material, assim
e alma (Consciência); a segunda, ligada ao
como minha alma é uma substância pensante. A coisa
chamado dualismo cartesiano que, em minha
chamada eu, conseguintemente, consiste de duas
opinião, não se coaduna ao materialismo
partes distintas – a máquina que se move, ou corpo,
extremo, que reduz tudo à matéria e sua
e a mecânica que pensa, ou alma”.
consequente negativa da Consciência.580
“Mas o que leva tantos se persuadirem que há Descartes valida a existência da alma humana
dificuldade em conhecer Deus e em conhecer e de Deus, ou seja, coleciono também este
também o que é a alma, é o fato de não elevarem argumento para contrapor ao materialismo
nunca o espírito acima das coisas sensíveis...” grosseiro, onde somente existe matéria.

Percebi que muitas interpretações e teorias atribuídas a Descartes estão


equivocadas, motivo pelo qual explorarei uma terceira via. Antes porém,
considero interessante analisar os supostos rebentos do que ficou conheci-
do como sistema dualístico que, supostamente, baseou duas teorias filosó-
ficas divergentes: o materialismo e o idealismo.

O materialismo está associado à ciência materialista, foi compreendido e


disseminado popularmente como excludente da Consciência e seus aspec-
tos transcendentes. Segundo essa corrente de pensamento, o espírito seria
parte da “máquina” corpórea e, obviamente, degeneraria com a referida
“coisa”, fato que originou o pensamento moderno de um “mundo sem
alma”, o que me parece incoerente com o postulado cartesiano.

Os idealistas, por sua vez, afirmam que o corpo é parte do espírito, inclu-
sive com a negação da matéria pelos mais extremados, mutatis mutandis,
conectado ao antigo conceito de maya, em que a ilusão seria a verdadeira
natureza do universo objetivo, o que nos levaria ao extremo oposto do
“mundo sem corpo”.

Parece-me que a questão mereceria uma postura equidistante em relação às


concepções extremadas, mais bem colocada pela perspectiva das conexões. A
ausência reducionista dessas mesmas ligações justifica o título escolhido para
esta obra e enaltece a sua importância. Convido o leitor para um cuidadoso
exame do Quadro 15.4, no qual apresento a minha visão do dualismo carte-
siano e seu posterior desvirtuamento pelos materialistas e idealistas radicais.

580 No sentido de alma, essência ou espírito.

265
Capítulo 15 • Sou, logo existo

Quadro 15.4
Comparativo entre materialismo, idealismo, dualismo cartesiano e
posicionamento pessoal

Materialismo Idealismo Dualismo cartesiano Posição pessoal


Espírito Negação Validação Validação Validação
Conexão Negação Negação Negação Validação
Matéria Validação Negação Validação Validação

Resta-nos perguntar: que reducionismo é esse? Reitero que o reducionismo


cartesiano, ordinariamente, foi interpretado e utilizado de forma exces-
sivamente generalista e para designar situações diferentes, em flagrante
confusão com o reducionismo materialista que concentrou todos os as-
pectos da transcendência humana ao meio exclusivamente material. Em
suma, reconheço a proposta de Descartes como, de fato, reducionista, mas
um tanto diferente do senso comum,581 notadamente pela desconsideração
da emergência multiplicadora das conexões, já que a excessiva ênfase nas
partes individualizadas – e não no todo – trouxe o equivocado raciocí-
nio de que a simples análise dessas “peças” seria suficiente para conhecer
o sistema formado por elas, o que também ficou conhecido através das
expressões mecanicismo e atomismo. Citarei como exemplo dessa afirmação
uma das principais regras do método de Descartes: “... dividir cada uma
das dificuldades que devesse examinar em tantas partes quanto possível e
necessário para resolvê-las”.582

Nesse momento, o cidadão que teve a paciência de chegar neste ponto da


leitura poderá compreender a importância do conceito dos quatro qua-
drantes (Capítulo 11), na qualidade de pré-requisitos para qualquer teoria
que pretenda, legitimamente, portar o status de holística, integral ou transcen-
dente, nomenclaturas utilizadas erroneamente por tantos indivíduos que,
apesar da boa intenção, desgastaram-nas e não perceberam que combatem
o reducionismo cartesiano (matéria e espírito desconectados) como se fosse o
reducionismo grosseiro (tudo é matéria) para afirmar a terceira modalidade
também reducionista (tudo é espírito).

581 Notei que a discussão sofreu um certo sucateamento.


582 DESCARTES, René. Discurso do método: regras para a direção do espírito. Martins Fontes:
1999, p. 31..

266
Capítulo 15 • Sou, logo existo

Em suma, enxergo razoabilidade nos postulados filosóficos propostos nes-


ta obra e respectivas emergências reflexivas para consolidar intimamente
a expressão sou, logo existo. Finalizo este capítulo com a revelação de minha
intenção no sentido de tratar da questão quarta dessoma separadamente da
abordagem e do questionamento da frase cartesiana em foco. O próximo
capítulo atenderá a este anseio pessoal, apesar da antecipação de muitas
ponderações, elaboradas prematuramente em razão do difícil trato isolado
desses desafiadores temas.

267
268
A quarta “dessoma” 16

Argumentos sobre o conceito do neologismo dessoma e todo o postulado


que sustenta sua proposta foram debatidos nesta obra e, para a compreen-
são das próximas considerações, merecem leitura preliminar, especialmen-
te o Capítulo 13, onde encontra-se toda a explicação conceitual e comen-
tários introdutórios. Abaixo uma concentrada síntese para relembrar os
aspectos mais importantes e alguns argumentos suplementares.

As três dessomas
Dessoma é um acrônimo oriundo da expressão “descarte do soma”; como
visto preteritamente, aplica-se ao que chamamos de morte do corpo biológico
e estende-se para o descarte de outros veículos de manifestação da Cons-
ciência, tudo à luz do postulado do holossoma, de acordo com a propositura
validada pela Conscienciologia (Quadro 16.1).

Quadro 16.1
Síntese do postulado da Conscienciologia referente aos veículos de
manifestação da Consciência e sua possibilidade de descarte

Consciência e seus veículos Descarte Visão conscienciológica


Consciência Perenidade Validação
Mentalsoma 4ª Dessoma Não validação
Psicossoma 3ª Dessoma Validação
Energossoma 2ª Dessoma Validação
Soma 1ª Dessoma Validação

269
Capítulo 16 • A quarta “dessoma”

Diante disso, para advogar a tese da quarta dessoma, solicitarei licença ao lei-
tor menos familiarizado com a Conscienciologia para concentrar-me nas
suas premissas, pois somente a partir da convicção íntima desses postula-
dos, poderei desenvolver um raciocínio lógico no sentido de lançar a ousada
proposta de um quarto descarte veicular. Preliminarmente, porém, ressalto
a distinção entre os conceitos de crença, convicção racional e ciência.

Crença, convicção e ciência


Julgo fundamental a diferenciação entre a crença, a convicção filosófica –
ainda desprovida do cumprimento das etapas de validação científica – e
aquilo que nominarei de hipótese vivenciada ou sua repercussão empírica. O
objetivo dessa classificação visa estabelecer a jurisdição pertinente a cada
assunto ou proposta lançada nesta obra, mormente como profilaxia dos
ataques de incautos indivíduos, ainda que bem intencionados, mas com a
balda de criticar sem a devida atenção ao ambiente em que se encontra o
debate. Reitero, pois, que estarei diante da área específica da convicção
filosófica, que não se confunde com crença, dogma e hipótese vivencial,
científica ou empírica.

O que chamamos de fé dogmática nada mais é do que a faculdade do indi-


víduo em acreditar na literalidade de determinados textos considerados
“sagrados” ou propostas míticas, cuja fragilidade argumentativa obriga-
-me a avançar e dispensar considerações suplementares. A ciência que
nominarei de empírica-exterior (muitos chamariam apenas de empírica,
materialista ou ortodoxa) está ligada aos quadrantes direitos da pro-
posta wilberiana, em sítio do “isso”, da “verdade nua e crua”, objetiva ou
“interobjetiva”.

A expressão ciência vivencial interpreto em conexão com a proposta cons-


cienciológica e seus requisitos próprios de validação, incluído aqui o prin-
cípio conscienciológico da descrença.583 Face ao exposto, gostaria de posicionar
este debate na zona intermediária, nem científica e tampouco dogmática,
mas ligada aos aspectos que nomino de convicção razoável ou possibilidade
plausível, circunstância em que muitos optariam pela expressão jurisdição
filosófica.

583 Suma do Princípio da Descrença: não acredite em nada, vivencie.

270
Capítulo 16 • A quarta “dessoma”

Finalmente, aproveitarei estas últimas linhas do presente tópico para com-


partilhar meu desejo de estender o método científico clássico para além
dos componentes exteriores ou materiais, a fim de que possamos verificar
uma espécie de “ciência integral”, empírica e vivencial, material e cons-
ciencial, em que tudo seja objeto de debate sério e investigação profunda.

Nesse cenário, a subjetividade legítima e a intersubjetividade interpreta-


tiva manteriam sua independência moderna (diferenciação dos três gran-
des),584 mas não estariam totalmente dissociadas, a fim de possibilitar uma
aproximação respeitosa, interdependente e assistencial (diálogo dos três
grandes), totalmente distinta do monopólio dogmático da “virtude” (pa-
tologia típica da jurisdição do “nós”585 ou “coletivista”) imposta ao espaço
individual e científico (território do “eu”586 e do “isso”587).

Esse autoritarismo atualmente ocupado pelos “neo-genuflexores” da ho-


dierna divindade laica chamado Estado, em que o “governo-babá” assumiu
o papel de papai protetor e provedor, transforma os existencialmente ima-
turos num grande rebanho ideológico, onde o indivíduo resta sufocado
pela vigília “politicamente correta”.

Não se trata de edificar templos à modernidade individualista, muito me-


nos apreciar um infantil saudosismo romântico de um “bondoso passado
naturalista”, mas de lançar um olhar visionário focado na conservação dos
ganhos modernos e eliminação de suas mazelas, com soluções criativas,
libertárias e adequadas às demandas pela emancipação do indivíduo que,
somente com os respectivos ônus e bônus da responsabilidade por seus
atos, aprenderá a caminhar com autonomia.

Poderá perguntar o leitor: afinal, qual a relação do exagero ideológico-coletivista


com a quarta dessoma? O tema político-ideológico está fortemente impregna-
do em minhas teses, pois, para cogitarmos588 um pensamento novo, ainda
que como mera hipótese, devemos primeiramente estar alforriados de nos-

584 Capítulo 11.


585 Ética, coletividade, intersubjetividade.
586 Estética, arte, individualidade, subjetividade.
587 Verdade, objetividade e interobjetividade.
588 Importante diferenciar, neste contexto, o significado de “cogitar” e “provar”.

271
Capítulo 16 • A quarta “dessoma”

sos próprios condicionamentos, mormente aqueles oriundos de qualquer co-


letivismo ideológico, por meio do qual um grupo, um clã, o próprio Estado, uma
instituição, uma comunidade ou um pensamento relativamente homogêneo
que sufoca a liberdade criativa e personalíssima. Vale dizer, para inserir tal
reflexão voltada a eventual diálogo lógico e racional, necessitarei de interlo-
cutores despidos de verdades absolutas ou do citado ranço da negação pe-
remptória de qualquer tese – ainda como mera suposição – e de tudo que
não estiver rigorosamente demonstrado em algum “tubo de ensaio”.589

Quarta dessoma
Apresentar argumentos para dedução lógica da quarta dessoma parece-me
absolutamente factível e, como visto, está distante do conceito de “fé cega”
ou algum tipo de crença religiosa. Ao contrário, trata-se de convicção ba-
seada em interpretação sistêmica de inúmeros postulados, segmentos e
vertentes aqui analisados. Assim, mesmo diante da carência empírica e vi-
vencial do tema lançado para o debate, patrocino o postulado sintetizado
no Quadro 16.2, limitando-me ao território da mera convicção dedutiva
aos preceitos conscienciológicos, presumindo-os verdadeiros.

Quadro 16.2
Síntese da proposta da quarta dessoma

Consciência e seus veículos Descarte Convicção dedutiva


Consciência Perenidade Aceitação
Mentalsoma 4ª Dessoma Aceitação
Psicossoma 3ª Dessoma Aceitação
Energossoma 2ª Dessoma Aceitação
Soma 1ª Dessoma Aceitação

Mateologia
O estudo de assuntos abstratos ou altamente complexos e inalcançáveis
diante dos recursos disponíveis pela humanidade é chamado de Mateologia
e, não raro, considerado inútil. Mantenho contundente ceticismo em rela-
ção a negar toda e qualquer utilidade ao exercício “mateológico”, pois o ato
de “navegar por estes mares” e dinâmicas do tipo brainstorm ou “tempestade

589 “Tubo de ensaio”: alusão ao materialismo científico.

272
Capítulo 16 • A quarta “dessoma”

de ideias”, na mais conservadora das hipóteses, outorgaram-me prazer re-


flexivo, associações criativas e outros componentes que não posso aceitar
como inúteis, apesar de considerados não científicos.

Por outro lado, ou na expressão estadunidense on the other hand, parece-me


coerente a alegação de perda de tempo quanto à insistente permanência
em debates inconclusivos e totalmente desprovidos de lógica e racionali-
dade. Quanto a esse aspecto, a expressão idiomática “discutir o sexo dos
anjos” elucida e vivifica a informação que desejo comunicar. Nesta linha
de argumentação, o bom senso emerge como importante ingrediente e,
para manter o estilo jocoso ligado à sabedoria popular que tanto respeito,
destacarei a frase “nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, numa avaliação
individualizada do que tem lógica e daquilo que é tolice ou teoria “sem pé
nem cabeça” e desprovida de mínima capacidade argumentativa racional.

Isso posto, interpretei prazerosamente as premissas analisadas nesta obra


e proponho que não somos mentalsoma ou nosso pensamento, mas “algo
que pensa” e apenas utiliza o veículo adequado para este fim, motivo pelo
qual apresentarei uma adaptação e complementação do Capítulo 13 com
uma analogia exposta no Quadro 16.3.

Quadro 16. 3
Conexões entre a Consciência, seus veículos de manifestação e uma
analogia possível

Consciência e seus veículos Analogia possível Conexão


Consciência Ferramenteiro Existência
Mentalsoma Ferramenta mental Pensamento
Psicossoma Ferramenta emocional Sentimento
Energossoma Ferramenta energética Energia sutil
Soma Ferramenta material Energia densa

As questões multiplicam-se a partir desta exposição, cujo destaque passou a


ser a própria Consciência, analogamente apresentada como “o ferramentei-
ro”, que não se confunde com suas ferramentas, mas sim as transcende pelo
postulado conscienciológico e também as inclui, no universo “não dual” wilbe-
riano. Uma questão para reflexão: não estaria “cartesiano demais” o quadro supra?

273
Capítulo 16 • A quarta “dessoma”

Respondo negativamente até o presente momento, principalmente por


considerar justamente aquilo que falta no reducionismo cartesiano, explora-
do e exposto no capítulo precedente, ou seja, as conexões entre todas as par-
tes que compõem as respectivas totalidades. Outras questões supostamente
mais óbvias podem surgir, com respostas que poderão variar conforme o
prisma abordado e ficarão para a reflexão do leitor: somos a ferramenta ou
o ferramenteiro? Somos nosso pensamento? Se negativa a resposta, porque não con-
cluirmos pela possibilidade de descarte do mentalsoma? Podemos responder a tais
questionamentos além do “sim” ou do “não”?

Impacto na representação do mentalsoma


Nos cursos, palestras e entrevistas sobre Conscienciologia de que partici-
pei, o mentalsoma foi representado desprovido da forma humana, por um
círculo ligeiramente difuso, em geral da cor branca ou amarelada e um
pequeno ponto em seu interior, de coloração um pouco diferente ou in-
tensificada, para representar a Consciência. Considero a possibilidade de
futura validação da proposição da hipotética quarta dessoma que, se ocorrer
um dia, demandará a modificação da representação da Consciência e seus
veículos de manifestação, conforme comparativo exposto no Quadro 16.4.

Quadro 16.4
Comparativo entre a representação clássica da Conscienciologia e a
proposta pessoal em investigação

Representação conscienciológica Hipótese pessoal

Consciência

Consciência e Mentalsoma Mentalsoma

274
Capítulo 16 • A quarta “dessoma”

Face ao exposto neste e em outros capítulos, encerro minhas ponderações


e convido o leitor ao ingresso nas próximas propostas de reflexões repre-
sentadas por máximas que envolverão uma pluralidade de conhecimentos
interpenetrados, numa cadeia complexa e bastante dependente do estudo
e compreensão de todos os ingredientes integrais e valores consciencioló-
gicos ligados à demanda pragmática da evolução. Assim, valendo-me de
uma empolgante efervescência de princípios, proporei uma técnica que
vivenciei e observei com o devido cuidado e que representa sugestão alta-
mente desafiadora de elevação do nosso estágio de desenvolvimento moral.

275
276
O autor modela a obra
ou vice-versa?
17

Como é fácil cometer equívocos nos limites da Ciência, em especial nos te-
mas que envolvam a transcendência humana! Poucos autores têm o neces-
sário desprendimento e frieza, no melhor sentido desta palavra, para ad-
mitir suas incompletudes e naturais equívocos no decorrer do processo de
exposição de seu pensamento, circunstância em que é preferível “ser essa
metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre
tudo”, nas palavras da bela composição musical interpretada pelo falecido
cantor Raul Seixas.590

O estadunidense Ken Wilber e o brasileiro Waldo Vieira são figuras públi-


cas e personalidades consideradas polêmicas, ao menos por mim. Ambos
ousaram pensar o universo em suas diferentes vertentes e sobre eles apre-
sentarei sinteticamente minhas impressões, além de explicitar como seus
respectivos e abrangentes interesses a respeito de assuntos transcendentes
atraíram minha atenção. Tal objetivo ocupou-me na construção dos tópi-
cos que compõem este capítulo:
ƒ Wilber I – romântico.
ƒ Wilber II – evolucionista linear.
ƒ Wilber III – evolucionista não-linear.
ƒ Wilber IV – integral.
ƒ Wilber V – perspectivas.

590 SEIXAS, Raul. Metamorfose ambulante, 1973.

277
Capítulo 17 • O autor modela a obra ou vice-versa?

ƒ Waldo I – espírita.
ƒ Waldo II – conscienciólogo.

ƒ Tom Martins I – buscador.


ƒ Tom Martins II – hermético.
ƒ Tom Martins III – integrativo.
ƒ Tom Martins IV – autônomo.

Wilber I – romântico
A obra de Ken Wilber apresenta cinco fases, todas admitidas pelo próprio
autor. A primeira delas, como o título deste tópico sugere, foi marcada
pela visão romântica, que, sinteticamente, apregoa: um passado melhor
ou mais glorioso que o presente; uma idade de ouro; uma inocência es-
quecida; uma bondade ou paraíso perdido; o mito do selvagem nobre; a
pureza da criança ou o exagero que leva à conclusão de que o homem
nasce bom e a sociedade deve suportar o ônus por corrompê-lo. O maior
ícone do equívoco romântico foi o filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau,
considerado pai do movimento político coletivista, e sua teoria do Con-
trato Social, da qual sou um crítico mordaz e conservo distanciamento
ideológico.

Wilber identificou sua fase romântica e, posteriormente, considerou cora-


josamente o romantismo como o movimento inserido no que denominou
de “falácia pré-trans 2”, exposta no capítulo 7 da presente obra e ora sin-
tetizada no Quadro 17.1. Tais falácias não invalidam, mas comprometem
algumas interpretações das informações contidas nas obras O Espectro da
Consciência (1977) e A Consciência sem Fronteiras (1979).

Quadro 17.1
Reapresentação das falácias “pré-trans 1 e 2”, ambas reducionistas
por indevida exclusão de um nível de consciência

Níveis de consciência Falácia pré-trans n. 1 Falácia pré-trans n. 2

Pré-pessoal Aceitação Negação

Pessoal Aceitação Aceitação

Transpessoal Negação Aceitação

278
Capítulo 17 • O autor modela a obra ou vice-versa?

Agradeço publicamente ao especialista wilberiano Ari Raynsford pela fan-


tástica didática que utilizei em muitos momentos nesta obra, não apenas
para ilustrar o conceito em torno da “falácia pré-trans 2”, mas também por
seus aspectos mnemônicos, como o da evolução em “U”, que parte de um
fantasioso “paraíso inconsciente”, seguido de um “inferno consciente” para
um “paraíso consciente”, flagrantemente associado ao movimento român-
tico (Figura 17.1).

Paraíso Paraíso
inconsciente consciente

Inferno
consciente

Figura 17.1 – Falso movimento evolutivo denominado por Wilber de “falácia pré-
trans n. 2”

Associo este ilusório “paraíso inconsciente” à fantasiosa pureza perdida


representada pelo mito do “selvagem nobre”, ao princípio do nascimento
humano como tabula rasa e a uma difusa abstração social vilificada como a
hostil transformadora da vida coletiva no “inferno consciente” do indiví-
duo. Esse, por sua vez, teria o direito de reivindicar e portar-se como legí-
timo credor deste hipotético “paraíso perdido” que lhe fora supostamente
usurpado por essa coletividade, posteriormente personificada no concei-
to de Estado, o que deveria satisfazer às demandas destes “prejudicados”
como forma de reparação. Esse equivocado pensamento, testado e repro-
vado em todos os cantos do mundo, está na base das ideologias político-ro-
mânticas e fez parte desta fase wilberiana.

Wilber II – evolucionista linear


Wilber caminha positivamente na direção certa e ganha progressivamente
maior maturidade intelectual com o abandono da visão romântica, rous-

279
Capítulo 17 • O autor modela a obra ou vice-versa?

seauniana e das falácias igualitárias para incluir em sua obra a visão evo-
lucionista linear, sob a influência do Grande Ninho do Ser e suas ondas
ou níveis de consciência. Na mente de Wilber, surgiu com maior clareza o
primeiro elemento da teoria integral e a preparação para os passos seguin-
tes. A Figura 17.2 traz uma representação da segunda fase do pensamento
wilberiano, período que foi o marco da obra Up from Eden (1981).591

Espírito Paraíso consciente

Alma

Mente Inferno consciente

Vida

Matéria Inferno inconsciente

Figura 17.2 - Representação da visão evolucionista linear wilberiana

Wilber III – evolucionista não-linear


Wilber percebe que a evolução ocorre em diferentes linhas e não apenas
num único nível de consciência linearmente delimitado, o que valida a hi-
pótese de um desenvolvimento não linear, ou seja, alguém poderá estar
deveras desenvolvido na linha cognitiva e usar seus conhecimentos sem
nenhum envolvimento ético ou inteligência interpessoal, por exemplo.
Nesta fase, os quatro primeiros elementos da Filosofia Integral – níveis,
linhas, estados e tipos – foram estruturados e sobre eles caberia o seguinte
questionamento final: como integrar tudo isso?

Wilber IV – fase integral


A fantástica integração de tudo, numa espécie de “tudologia” ou, como o
nome de uma de suas obras sugere, Uma Teoria de Tudo, ocorreu na fase

591 Traduzido por Raynsford sob o título Éden: queda ou ascensão?

280
Capítulo 17 • O autor modela a obra ou vice-versa?

identificada como “Wilber IV”, marcada pela apresentação magistral do


modelo integral e suas quatro perspectivas, iniciada no ano de 1995, com a
obra Sexo, Ecologia e Espiritualidade. A partir dos quatro primeiros compo-
nentes da fase Wilber III – níveis, linhas, estados e tipos – e seu impulso in-
tegrativo, emergiu o insight que considero brilhante: os quatro quadrantes.
A partir desta integração, surgiram as obras Uma Breve História do Universo
(1996), A União da Alma e dos Sentidos (1998), Psicologia Integral (2000), a refe-
rida Uma Teoria de Tudo (2000) e A Visão Integral (2007), entre outras. Para a
compreensão desta fase wilberiana, considero fundamentais os conceitos
tratados no bloco introdutório deste livro.

Wilber V – perspectivas
Reputo a fase mais complexa da obra wilberiana, na qual cada um dos
quatro quadrantes foi impactado por mais duas perspectivas, uma interior
e outra exterior. A obra Espiritualidade Integral (2006) será nosso grande
desafio para a compreensão destes prismas endógenos e exógenos, na falta de
melhores termos.

Waldo I – espírita
Waldo Vieira declara-se um dissidente592 do Espiritismo e sua história
pessoal está coerente com suas palavras. Pela minha percepção, talvez não
muito qualificada – pois observo apenas externamente o processo deste
autor – concluí que a fase espírita do professor Waldo Vieira foi produtiva
e de riquíssimo aprendizado pessoal. Conheço apenas perfunctoriamente
o propositor da Conscienciologia, mas reconheço sua perspicácia evoluti-
va e aguçada inteligência para usufruir positivamente das experiências e
vivências pretéritas, ainda que em contexto ainda ligado a uma estrutura
religiosa, que combateria futuramente.

Waldo II – conscienciólogo
Apesar de uma existência repleta de outras atividades, o médico, odontó-
logo, escritor, empreendedor e lexicógrafo mineiro tem como grande fei-
to a proposição da Conscienciologia. Face à magnitude dessa realização e
à grandiosidade da proposta wilberiana, nominada de Filosofia Integral,
passei a respeitar intelectualmente ambos os autores (embora não comun-

592 Para ser preciso, o termo ordinariamente utilizado por este autor é “maxidissidente”.

281
Capítulo 17 • O autor modela a obra ou vice-versa?

gue com tudo, especialmente em relação à terminologia 593 e tendências


políticas)594 e busquei experimentar as práticas conscienciológicas e suas
longas dinâmicas e eventos assistenciais, sempre relacionados com a di-
mensão extrafísica.

Embora a fase “Waldo I” contenha obras e parcerias com o parapsíquico


brasileiro Chico Xavier, optei por listar apenas a bibliografia consciencio-
lógica ligada à fase “Waldo II”: Projeções da Consciência: Diário de Experiên-
cias Fora do Corpo Humano (1979); Projeciologia: Panorama das Experiências
da Consciência Fora do Corpo Humano (1986); 700 Experimentos da Conscien-
ciologia (1994); O que é a Conscienciologia (1994); Manual da Tenepes: Tarefa
Energética Pessoal (1995); A Natureza Ensina (1996); Máximas da Consciencio-
logia (1996); Minidefinições Conscienciais (1996); Nossa Evolução (1996); Cons-
cienciograma: Técnica de Avaliação da Consciência Integral (1996); 100 Testes da
Conscienciometria (1997); 200 Teáticas da Conscienciologia (1997); Manual da
Dupla Evolutiva (1997); Manual de Redação da Conscienciologia (1997); Manual
da Proéxis: Programação Existencial (1997); Temas da Conscienciologia (1997);
Homo sapiens reurbanisatus (2003); Enciclopédia da Conscienciologia (2006);
Homo sapiens pacificus (2007) e Manual dos Megapensenes Trivocabulares (2009).

Tom Martins I – eclético


Possuo memórias e lembranças, da infância à fase adulta, marcadas pela
curiosidade sobre assuntos transcendentes e bastante complexos. Procurei
respostas em vários segmentos, sociedades fechadas, filosofias e entidades
assistenciais, onde encontrei apoio, edificantes leituras e suporte intelec-
tual dignos de minha gratidão e reconhecimento, mas ainda estava dis-
tante da completude ou, ao menos, de uma serenidade em sintonia com
minhas convicções mais profundas.

Esse ecletismo intelectual marcou esta fase inicial e meu interesse difuso,
desde Maçonaria, Teosofia, Psicanálise, Psicologia, Movimento Transpes-
soal e Espiritismo até a doutrina conhecida como Racionalismo Cristão,
com a qual encontrei afinidade por seus próprios postulados e também

593 Perturbam-me alguns significantes, como o termo “místico”, utilizados com significados
opostos entre Conscienciologia e Filosofia Integral, o que poderá causar muita confusão.
594 Em termos políticos, incomodam-me as visões distributivistas ou sócio-coletivistas.

282
Capítulo 17 • O autor modela a obra ou vice-versa?

através da prática altruísta de minha saudosa avó materna 595 por esta ver-
tente. Todas essas linhas do conhecimento humano, de certa forma, preen-
cheram-me positivamente nos contextos respectivos e agregaram-me valor.

Tom Martins II – hermético


Aproximadamente na virada do milênio, entrei em contato com conceitos
e valores conscienciológicos e manifestei imediata afinidade, especialmen-
te com o estilo técnico da obra Projeciologia, que considero um significativo
marco de elucidação e esclarecimento sobre assuntos transcendentes. Tor-
nei-me um conscienciólogo hermético, um praticante aplicado, estudante
dedicado e leitor das obras e tratados de Conscienciologia, fato que pos-
teriormente levou-me a idealizar programas e promover o debate destas
pesquisas.

Tom Matins III - integrativo


Paulatinamente, senti necessidade de comparar, associar e integrar os co-
nhecimentos da Conscienciologia com outras propostas, em especial com
a Filosofia Integral e seu propositor, Ken Wilber, cujos ideais faziam sen-
tido para mim, apesar de alguma dificuldade com a terminologia utilizada.

Estava em ebulição a fase que adjetivei de fase integrativa, bastante influen-


ciada por posturas saudavelmente abertas e reflexões pessoais sobre diálo-
gos com alguns amigos do paradigma conscienciológico e outros ligados à
perspectiva integral.

Esta obra consiste na tentativa de viabilizar um diálogo entre propostas


diferentes ou, como diria o grupo de estudos ligados à Filosofia Integral,
“extrair o parcialmente correto de cada segmento e integrá-los” ou, ain-
da, na linguagem mais conscienciológica, “buscar as verdades relativas de
ponta pela fricção de ideias”.

Reputo merecedor de destaque o fato de que esta obra extrapolou sua pro-
posta, pois emergiram associações com os autores mais variados, processo
em que identifiquei totalidades e foquei nas conexões identificadas. Estava
consolidada essa fase de minha vivência e formação intelectual, quando a

595 Ida Bergamasco Schiavi.

283
Capítulo 17 • O autor modela a obra ou vice-versa?

vontade de integrar, transcender e incluir emergiu com destaque e repre-


sentou cada linha desta franca atividade comunicativa, em atrevida expo-
sição de algumas propostas.

Tom Martins IV – autônomo


Durante o processo criativo para a confecção da presente obra e pesqui-
sa dos mais diversos autores, da Filosofia à Metafísica, das Tradições de
Sabedoria à Conscienciologia, notei-me absolutamente independente de
qualquer proposta e concomitantemente conectado a todas elas, além de
grato aos esforços dos indivíduos que, no passado, tanto fizeram para que
toda a humanidade pudesse acessar todo um universo de informações
transcendentes, repletas de opiniões e teorias sobre temas como parapsi-
quismo, multidimensionalidade e outros que ainda são considerados pela
esmagadora maioria do contingente humano como misteriosos e, pela
ciência convencional, como inexistentes. Registro meu profundo reconhe-
cimento aos que enfrentaram as barbáries humanas e mantiveram artefa-
tos do saber a nossa disposição para livre acesso, avaliação e crítica.

Nascera o pesquisador autônomo comprometido com as várias vertentes,


teses e cidadãos pesquisados, mas, acima de tudo, conectado e fiel a sua
própria consciência e valores personalíssimos, numa serena simbiose en-
tre autonomia e pertencimento, totalidade e partição, meritocracia e solidariedade,
individualidade e coletividade, independência e conectividade, a fim de observar
a hierarquia evolutiva de cada Consciência e conciliar valores como bon-
dade, solidariedade, fraternidade, compreensão, acolhimento, liberdade,
autonomia, justiça e validação meritocrática. Em suma, aplaudo veemen-
temente e outorgo suporte vivencial para a integração harmônica entre ser
e participar e superação definitiva do conflito representado pela expressão
“isso versus aquilo”.

284
Posfácio

Teoria e prática

285
286
Estágios do desenvolvimento
moral
18

Considerei a presente obra concluída no capítulo pretérito, porém, percebi


que faltava “algo” que convidasse a mim e a cada leitor a atuar positiva
e eficazmente em seu próprio ser e também em seu respectivo ambiente
existencial, preferencialmente na direção do bom senso, do justo, enfim, do
bom, do belo e do verdadeiro. Concluí que este referido “algo” tratava-se
justamente da conexão entre a teoria e a prática.

Este encerramento deixará o estilo mais teórico desta obra e versará sobre
a ação executiva do estudo axiológico, conectado a uma reflexão sobre os
valores em seu sentido moral e uma proposta eminentemente funcional e
classificatória dos princípios pertencentes ao caráter e à dignidade indivi-
dual ou coletiva, com destaque e hierarquização ética. Indispensável reite-
rar, como fiz na abertura destes estudos, minha autonomia em relação aos
postulados conscienciológicos, integrais, filosóficos, político-ideológicos
ou a qualquer conceito aqui tratado, mormente por meu norteamento de-
masiadamente centrado em meus próprios valores pessoais.

Os contatos entre as técnicas de autoconscientização do estágio ético per-


sonalíssimo, a seguir apresentadas, baseiam-se em diversos estudos e uma
série de conclusões íntimas e vivenciadas em amplo laboratório social, pro-
fissional, familiar e institucional, algumas delas ligeiramente indigestas, mas
altamente didáticas e fruto de conhecimentos experimentados, interpreta-
dos e associados livremente, visando a contextualização mesológica e a au-
tomensuração ética. Portanto, se todas as proposições pretéritas desta obra

287
Capítulo 18 • Estágios do desenvolvimento moral

estiverem equivocadas, ainda estarei feliz se o leitor refletir sobre o conteú-


do dos quadros cuidadosamente elaborados que apresentarei a seguir.

Proponho uma técnica, nem sempre agradável, de autopesquisa sob a égide


desta hierarquia moral e valorativa, testada pessoalmente e concentrada
no entendimento do termo “convencional”, bastante utilizado em algumas
obras wilberianas, fato que gerará, no mínimo, três possibilidades ou pers-
pectivas, ou seja, o pensamento atual, seu antecessor e seu sucessor. Associo
o conhecimento teórico e prático ao desafio individual de localizar nosso
nível moral em relação ao ambiente em que vivemos, a partir do qual todos
os conceitos ligados à ética, sem exceção, poderão ter aplicação imediata.

A leitura desta obra, em especial das linhas futuras, exigirá a habilidade de


trabalhar com desconfortos, crises, prováveis arrependimentos e deman-
dará contundente autoenfrentamento. Portanto, não recomendo o avanço
para indivíduos tíbios, acomodados ou refratários à mudança interior, pos-
tura típica dos que se arrogam na condição de “sábios” ou “monopolistas
da virtude” e concebem “o outro” como o grande problema. Recordo-me do
filósofo parisiense Jean-Paul Charles Aymard Sartre, sobre cuja ideologia
política tenho gigantescas restrições, mas em quem reconheço o toque de
um humor provocativo em sua famosa fala: “o inferno são os outros”.

Conceito e contextualização
Estágios do desenvolvimento moral são as fases de amadurecimento
existencial, processo em que a “adultidade”596 e a tomada de consciência
norteiam o indivíduo evolutivamente proativo rumo a patamares e cos-
movisões transcendentes e inclusivos. A contextualização mesológica do
nosso desenvolvimento moral é condição notória para a utilização desta
técnica de pesquisa individual. Aquele que portar maturidade evolutiva
para aplicar esta técnica estará habilitado para diferenciar graus éticos
de indivíduos, famílias, clãs ou sociedades, sempre focado no contraste
com sua ação cotidiana, ou seja, seus costumes ou atos reiterados, já que
os hábitos apontarão para aquém ou além de modismos situados no eixo
“certo-errado” ou “politicamente correto” regional e temporal. A com-

596 No sentido de maturidade evolutiva, que se distingue do conceito meramente cronológi-


co.

288
Capítulo 18 • Estágios do desenvolvimento moral

preensão deste conceito e sua aplicação na “auto e heteropesquisa” pos-


sibilitará o mapeamento, diagnóstico e tratamento evolutivo-existencial,
além de apontar indicativos importantes para classificação hierárquico-
-evolutiva.

Origem do modelo
A Filosofia Integral utilizou-se dos conceitos flagrantemente hierárquicos
através dos termos “pré-convencional, convencional e pós-convencional”,
inspirado em inúmeros autores,597 cujos postulados foram genialmente re-
lacionados em conexões valorativas e escalonadas.598 Contudo, cabe-me es-
clarecer que o modelo que apresentarei abaixo não é idêntico ao das obras
wilberianas, nem representa um perfeito alinhamento conscienciológico,
pois adjetivei de convencional a visão majoritária da unidade geopolítica
do pesquisador. Trata-se, portanto, de um conceito móvel, de construção
adaptada ao contexto, moralmente categorizado, eticamente classificató-
rio, confrontador e comparativo,599 no qual o componente atitudinal con-
textualizado do indivíduo será a referência de si mesmo.

Haverá a demanda específica do atributo da coragem para os autopes-


quisadores que, além do despojamento das respectivas armaduras ego e
etnocêntricas, enfrentarão o maior obstáculo de suas vidas para a evo-
lução de suas Consciências: seus próprios mecanismos de defesa. Isso pos-
to, explorarei ideias e posicionamentos sob o modelo classificatório de
mensuração do desenvolvimento moral, adaptado ao primeiro elemento
integral (Capítulo 7), segundo o qual o conceito de desenvolvimento hu-
mano passa por quatro grandes estágios, o último deles adjetivado de
“pós-pós-convencional”:

ƒ Pré-convencional: neste exercício de autoenfrentamento ético, con-


siderarei pré-convencional a “cosmovisão” ultrapassada e atrasada em
face da existente e dominante na unidade geo-econômico-política do

597 WILBER, Ken. O olho do espírito. Cultrix: 2001, p. 160-162.


598 WILBER, Ken. Psicologia Integral: Consciência, Espírito, Psicologia, Terapia. Cultrix: 2002,
p. 44, 219-237.
599 Considerado “politicamente incorretíssimo” para os dias atuais, quando existe a ilusão da
igualdade, mormente dentre os que alocam externamente suas próprias mazelas e frustra-
ções para que “o outro” (Estado, entidade divina, governo etc.) seja o grande responsável por
seu alento, em esquecimento de si próprio neste processo reconhecidamente complexo.

289
Capítulo 18 • Estágios do desenvolvimento moral

cidadão-pesquisador. No plano individual, poderá tratar de seres des-


trutivos ainda não socializados, de adaptação deficitária e carente do
que chamamos de urbanidade. Podem manifestar-se em tendências ti-
rânicas, dissimuladas ou mecanismos mais rústicos de interação, no esti-
lo viva la revolución.600 Analisado sob o prisma social, verifica-se uma teia
entre valores e costumes retrógrados e justificadamente não incorpora-
dos pelos padrões sociais convencionais.

ƒ Convencional: perspectiva bem adaptada aos costumes, hábitos ou cul-


tura majoritários. Representa a interiorização positiva dos valores so-
ciais básicos e cultura predominante, mas sob o risco da negativa robo-
tização existencial coletiva. Os padrões éticos convencionais comumente
resistem às forças contrárias “pré e pós-convencionais”.

ƒ Pós-convencional: representação inovadora e transcendente ao exem-


plar convencional. O indivíduo pós-convencional dos nossos tempos
é autogestor, reflexivo e aberto ao novo, porém distante de imposi-
ções pretensiosas das panaceias político-salvacionistas. A cidadania
pós-convencional apresenta-se mais madura em comparação com a
exercida pela massa “democraticamente” conduzida pelo modelo con-
siderado “politicamente correto”. Ao conservar sua criticidade sadia e
isenta, o indivíduo pós-convencional demonstra valores invulgares e
está capacitado para proteger o que funciona e propor avanços cons-
trutivos em questões ainda deficitárias – diferentemente da cultura
revolucionária pré-pessoal, que deseja derrubar todos os valores e cos-
tumes pré-estabelecidos.

ƒ Pós-pós-convencional: conceito que supera o binômio espaço-tempo


e outorga perspectiva visionária, de aplicação futurista e além da capa-
cidade interpretativa excessivamente tendente aos convencionalismos
e suas derivações pós-convencionais. O cidadão pós-pós-convencional
portará excentricidades aos olhos dos demais, mas saberá ir além das
demandas ordinárias, com o devido respeito e contextualização tempo-
ral. Trata-se do que chamamos de genialidade, superdotação ou inteli-
gência invulgar.

600 “Viva a revolução”.

290
Capítulo 18 • Estágios do desenvolvimento moral

Enfrentamento pragmático
Escolhi temas do cotidiano mesológico de minha unidade geo-econômi-
co-política temporal,601 alguns vivenciados e outros apenas fruto de obser-
vação, lançados em ordem alfabética no Quadro 18.1. Em referência aos
termos pré-convencional, convencional e pós-convencional, chamarei tal
sistema de “pré-con-pós”, obviamente passível de acréscimo de visões pre-
cedentes “pré-pré-convencionais” ou sucessoras “pós-pós-convencionais”.

Quadro 18.1
Comparativo de posturas “pré-con-pós” e extrapolações hipotéticas
“pós-pós-convencionais”.

Pós-pós-
Temas Pré-convencional Convencional Pós-convencional
convencional
Crescendo Crescendo Crescendo
invertebrado exoesqueleto endoesqueleto
Holoesqueleto
Apêndice moral moral- moral- moral-integração
moral605
exoesqueleto endoesqueleto holoesquelética
moral602 moral603 moral604
Autonomia Dependência Independência Interdependência Inter-assistência
Coerência entre
Adesão ao Contextualização
Malignidade do a crença e o
Batizado costume sócio- e avaliação da
recém-nascido componente
familiar situação
atitudinal
Adesão ou
Coerência entre Contextualização
Casamento manipulação
Crença ritualística valores convicções das macro
ritualístico para sua
e ações necessidades
realização
Pós-pós-
Classificação Pré-modernidade Modernidade Pós-modernidade
modernidade

601 Cidade de Jundiaí, interior do Estado de São Paulo, Brasil, ano base 2014.
602 Indivíduo desprovido de moral interior que busca legitimamente uma “muleta” ou “apên-
dice” externo como apoio assistencial (instituições, códigos de conduta, religiões, alcoólicos
anônimos e demais positivos instrumentos de apoio).
603 Indivíduo que já caminha por suas próprias pernas e mantém razoável equilíbrio ético.
604 Indivíduo agradecido às ajudas recebidas, que passa a apoiar em relação contributiva de
alguma espécie.
605 Indivíduo que desenvolve a fluidez macro para inter-relações assistenciais, cujas ferra-
mentas são próprias e personalíssimas, com adaptação assistencial a cada contexto e suas
conexões. Sugiro a releitura do capítulo 7, particularmente do conceito da “espiral do desen-
volvimento humano”, de Claire Graves.

291
Capítulo 18 • Estágios do desenvolvimento moral

Coletivismo “Individual e coletivo”


Individualismo: Contextualização
Conflito de tirânico e falácias em harmonia.
“ninguém das ferramentas a
interesses em nome: 1. “de Valores meritórios e
manda em mim” serem utilizadas
Deus”. 2. “do povo” assistenciais
Universal ou
Cosmovisão Visão mítica Racional Humanista
kósmica606
Crítica lógica, Crítica
Crítica lógica e
Crítica Crítica emocional racional, e “exemplarista
racional
“exemplarista” translógica”607
Crítica ilógica, Capacidade auto
Satisfação Auto e heterocrítica
vazia, com e heterocrítica
Criticidade sistêmica. focada na macro
jargões ingênuos e resultados
Comodismo gestão
e utópicos fundamentados
Diga-me o que Não me diga o Juntos faremos
Demanda Juntos faremos mais
fazer608 que fazer mais para todos
“Kosmocêntrismo”
Estágios Egocentrismo609 Etnocentrismo610 “Mundocentrismo”611 612

Assimetria e Simetria ética Simetria ética


Ética Assimetria ética
muleta ética individual integral
Diferenciação Diferenciação entre
Fenômenos entre mistificações e compreensão
parapsíquicos Poderes míticos Fértil imaginação
embusteiras dos embustes e
ou mágicos humana
e fenômenos dos fenômenos
legítimos legítimos
Jogo do “perde- Jogo do “perde- Jogo do “ganha-
Jogo político Jogo da otimização
perde” ganha” ganha”

Livre arbítrio Autogestão


Rebeldia Robotização Reciclagem ou
lúcida613 e
marginal existencial inversão existencial
contextualizada
LOC interno e
LOC614 LOC ausente LOC externo LOC interno
externo

606 Kosmos (com “k”): vide resgate conceitual pitagórico exposto no capítulo 2.
607 As atitudes virtuosas e exemplos personalíssimos, ainda que mal compreendidos racio-
nalmente, transcenderão as palavras ou a lógica por seus próprios resultados funcionais e as-
sistenciais contextualizados.
608 O “coletivo” ou o “social” deverá ditar a conduta. Exemplos: a moda, o “politicamente corre-
to”, a “moral em voga”, as ideologias supostamente “boazinhas” etc.
609 Narcisismo infantil.
610 A conduta determinada pelo clã, família ou sociedade e visão de mundo baseada nestes
valores. Exemplo: expressão popular “aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei”; desinteligência
ética do dito popular “se não pode com eles, junte-se a eles”.
611 Visão de mundo focada no planeta em que o indivíduo vive, no caso, o planeta Terra.
612 “Kosmocentrismo” (Filosofia Integral) e Universalismo (Conscienciologia). Cosmovisões
transcendentes e inclusivas das múltiplas dimensões e complexidades.
613 O indivíduo transcende a técnica aplicada.
614 LOC: Locus of control (local de controle).

292
Capítulo 18 • Estágios do desenvolvimento moral

Ideais coletivistas, Ideais Associação de


Contextualização
comunistas ou individualistas, valores cooperativos,
e integração dos
ditas socialistas, do capitalismo liberais e
valores meritórios,
Moral política em que o de Estado, onde empreendedores às
fraternos e suas
altruísmo é “quem pode demandas grupais.
respectivas
próprio e o ônus mais, chora Capitalismo de
conexões
alheio menos” mercado
Ideal do ocidente, No contexto O aumento dos Da grande família
da década de social do autor, casais sem filhos ao casal sem filhos,
Natalidade 1960: 4 filhos. No convencionou- ou com filho admito miríades de
início do século se o número de único sinaliza uma possibilidades
XX: “quantos dois filhos como tendência pós-
Deus mandar” ideal convencional

Serenidade Agitação interior Boa serenidade


Agitação interior
e certo controle externa e pacificação Serenidade plena618
e exterior615
exterior616 interior617
Instintos Integração do Integração e prática
Instintos
Sexualidade reprodutivos e conceito de família do conceito de
reprodutivos
busca de um clã assistencial família assistencial
Impositiva: “tem Emocional: Lógica: convicção Transcendência
Transcendência
que acreditar”619 crença fanática racional vivenciada620

Influências
Thomas Kuhn621 afirmou que existem “períodos pré e pós-paradigmáticos”
no âmbito da estrutura das revoluções científicas e apontou para um pe-
ríodo de “ciência ordinária” e a possibilidade de uma fase “extraordinária”,
jurisdição fértil para emersão de novos exemplares para solução de ano-
malias onde o sistema anterior encontrou seu limite. Em apertada síntese,
alguns dados podem ser “filtrados ou limitados” por exemplares científicos
que Kuhn assemelhou ao conceito de “paradigmas” que, posteriormente,
seus intérpretes estenderam para contextos culturais e convencionalismos.

615 Componente atitudinal conhecido em termos populares como “rebelde sem causa” ou
pela expressão hay gobierno soy contra.
616 Possui atitudes externas controladas e bem adaptadas, mas com interior carregado de
emoções imaturas e conflitos de toda ordem.
617 O indivíduo compreende e inicia o processo em busca da serenidade madura, sem abafa-
mento evolutivo ou boicotes estagnadores.
618 Pondero como hipótese a condição de permanência em estado sereno sem solução da
continuidade. Os constantes avanços gerariam movimentos fluidos e proativos ao invés de
crises de crescimento.
619 Sob ameaças físicas (tortura e morte na fogueira) ou psíquicas (eternidade no inferno etc.).
620 Possibilidade de várias interpretações sobre uma mesma vivência (vide capítulo 9, qua-
dro 9.3).
621 KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. Perspectiva: 2010, p. 14.

293
Capítulo 18 • Estágios do desenvolvimento moral

Edgar Morin,622 ao estruturar o conceito de “pensamento complexo”,


apontou para a necessidade de sucessivos “macroconceitos” ou “meta-
-sistemas” para explicar o sistema precedente e suas interações, já que o
inesperado, as novidades e as emergências das conexões estão em cons-
tante interação face ao sistema aberto existencial. Nesta mistura de in-
gredientes quantitativos e qualitativos, o termo hierarquia surge em inú-
meros contextos, inclusive o existencial, e traz suas consequências morais
e fenômenos sociais, bem como seus nervosos combatentes. Em suma, o
assistencialismo linear não se sustenta em termos absolutos, mormente
quando se opõe à meritocracia. Novamente, podemos abandonar o “isso
versus aquilo” e adotar a integração: todo e parte,623 maximecanismo e mini-
peça624 ou isso e aquilo.625

Na hipótese do leitor considerar indigestas as palavras hierarquia e me-


ritocracia, basta a integração com outras virtudes que tudo parece fazer
sentido. Teremos, então, a associação do mérito com a generosidade;
da justiça com a compaixão; do individual com o coletivo; da liberdade
com a responsabilidade e assim por diante. A obtenção deste equilíbrio
é fundamental como profilaxia do individualismo exagerado e tenden-
te ao culto narcísico, bem como das tiranias coletivistas, onde o indiví-
duo torna-se um meio sacrificável pelo “todo” opressor, raciocínio causador
de tristes passagens históricas repletas de sofrimento. Inúmeros filmes
hollywoodianos retrataram o lado patológico de cidadãos acríticos “bem
ajustados”626 ao modelo coletivo-convencional. Vejamos no Quadro 18.2
a seguir.

622 MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Editora Sulina: 2005, p. 47, 72.
623 Linguagem wilberiana.
624 Linguagem conscienciológica.
625 Linguagem escolhida por este autor.
626 Afinal, o que significa estar “bem ajustado” ao nacional socialismo (nazismo) ou postu-
ras baseadas na exclusão pelo nível de melanina do cidadão (cotas ou qualquer segregação
racial)?

294
Capítulo 18 • Estágios do desenvolvimento moral

Quadro 18.2 - Conexões entre a arte hollywoodiana e contextos


etnocêntricos patológicos

Filme Contexto
No contexto da segunda guerra mundial e
A Lista de Schindler (Schindler’s List)627 perseguição racial, a partir de 1943, Oscar
Schindler toma atitudes contrárias ao modelo
Vencedor de sete Oscar, incluindo melhor filme coletivista de seu partido Nacional Socialista e
auxilia no salvamento de mais de mil vidas judias
Nos anos entre 1927 a 1932, o personagem
George Valentin enfrenta dificuldades na
O Artista628 readaptação para o estágio do cinema falado,
após a queda do até então convencional cinema
Dez indicações ao Oscar mudo
Oscar de melhor ator para Jean Dujardin Analiso este filme pelo contexto e isolamento dos
intérpretes considerados “mudos-decadentes”
frente ao glamour dos “falantes-ascendentes”
Retrato dramático de uma amizade entre grades
O Menino do Pijama Listrado629 de duas crianças, no interior da Alemanha dos
anos 40, durante o contexto da Segunda Guerra
Mundial
O Poderoso Chefão630 Trilogia que narra a ascensão e queda da família
Corleone, marcada pela visão etnocêntrica ligada
Vinte e oito indicações ao Oscar
as regras e tradições familiares, aos negócios
Vencedor de nove Oscar, incluindo melhor filme escusos e ao poder

Na visão wilberiana, o binômio “transcendência-inclusão” é de vital im-


portância para a superação da visão etnocêntrica predominante em, pra-
ticamente, todas as áreas, da política à religião, pois o todo não se sustenta
sem as partes. Além disso, para aumentar a complexidade do assunto e
diante do pressuposto de que somos Consciências poliédricas, com múl-
tiplas características,631 em diferenciados estágios ou níveis632 evolutivos,
listo outra série de posturas que considero desnecessárias e ainda existen-
tes no planeta Terra, a fim de provocar reflexões e questionamentos de
hábitos convencionais em diferentes sociedades.

627 Schindler’s List. Universal Pictures, 1993.


628 The Artist. Warner Bros, 2011.
629 The Boy in the Striped Pyjamas. Miramax Films, 20008.
630 The Godfather. Paramount Pictures, 1972.
631 Linhas ou segundo elemento da Filosofia Integral (capítulo 8).
632 Níveis ou primeiro elemento da Filosofia Integral (capítulo 7).

295
Capítulo 18 • Estágios do desenvolvimento moral

Posturas com mutilações físicas:


ƒ Adornos invasivos633
ƒ Alargamento de orelhas634
ƒ Alargamento dos lábios635
ƒ Alongamento do pescoço636
ƒ Atrofia “estética” de pés
ƒ Circuncisão
ƒ Infibulação
ƒ Tatuagens637

Posturas com mutilações argumentativas ou falaciosas:


ƒ Apelo à autoridade ou magister dixit638
ƒ Apelo à causa diminuta 639
ƒ Apelo à consequência 640
ƒ Apelo a Deus641
ƒ Apelo à distorção dos fatos642
ƒ Apelo à emoção643
ƒ Apelo à ênfase indevida 644
ƒ Apelo à exceção645
ƒ Apelo à falsa vitória ou bravata intimidadora 646
ƒ Apelo à força 647
ƒ Apelo à ignorância 648

633 Piercings, brincos, espetos tribais, furos na língua etc.


634 Hábito social recente (ano base 2013).
635 Comuns entre os índios botocudos.
636 Costume adotado por tribos exóticas.
637 Destaque para a prática em adolescentes e até mesmo em crianças.
638 Recorrer à autoridade moral de alguém para validar o argumento. Exemplo: 1. Fulano
disse.
639 Supervalorizar uma causa de um problema complexo.
640 Validar uma premissa por sua consequência. Ex.: “Deus quis assim”.
641 Associar fatos à vontade de Deus, suprimindo lacunas ou falta de explicações.
642 Adequar os fatos à conclusão desejada.
643 Utilizar argumentos emocionais manipuladores. Chantagem emocional.
644 Enfatizar uma face do problema, gerando insinuações ou focando demasiadamente na
questão.
645 Tentar desqualificar a regra geral, apontando suas exceções.
646 Afirmar falsamente uma vitória argumentativa intimidadora.
647 Utilizar privilégios ou poder para a manipulação argumentativa. Ex.: “eu sou o chefe aqui”.
648 Combater o argumento pela inexistência (até o momento) de sua prova. Exemplo: se nin-
guém provou, não existe.

296
Capítulo 18 • Estágios do desenvolvimento moral

ƒ Apelo à inversão do ônus da prova 649


ƒ Apelo à maioria 650
ƒ Apelo à misericórdia 651
ƒ Apelo à novidade652
ƒ Apelo à pobreza 653
ƒ Apelo à prolixidade ou Argumentum verbosium654
ƒ Apelo à repetição655
ƒ Apelo à riqueza 656
ƒ Apelo à técnica do “espantalho”657
ƒ Apelo à temperança 658
ƒ Apelo à tradição659
ƒ Apelo à vaidade660
ƒ Apelo ao argumentador661
ƒ Apelo ao egocentrismo ideológico662
ƒ Apelo ao lucro663
ƒ Apelo ao preconceito664
ƒ Apelo ao ridículo665

649 Atribuir ao oponente o ônus da prova. Exemplo: 1. Prova da inocência.


650 Condicionar a veracidade do argumento à maioria. Exemplos: 1. Dito popular “a voz do
povo é a voz de Deus”. 2. Sangrentos regimes tirânicos com apoio popular majoritário.
651 Confundir compaixão e solidariedade com concordância.
652 Utilizar a falsa generalização que o novo é sempre melhor.
653 Vincular o acerto ou erro do argumento à condição de pobreza.
654 Dominar por verbosidade ou vencer pelo cansaço. Exemplos: 1. Verborragia. 2. Verbor-
reia.
655 Convencimento pela saturação mental. Ex.: propaganda, técnicas de marketing.
656 Vincular o acerto ou erro do argumento à condição de prosperidade.
657 Atribuir ideias reprováveis ou fracas à proposição do oponente.
658 Recorrer ao “meio-termo”. Exemplos: 1. Dividir igualmente um bem não é o mesmo que
dar a cada um o que é seu. 2. Na hipótese de uma pessoa afirmar que são duas horas e outra
quatro, não significa que são três horas.
659 Utilizar a falsa generalização que o tradicional é sempre melhor.
660 Provocar a vaidade do oponente para vencê-lo. Exemplo: “com a sua cultura, você deve-
ria...”.
661 Atacar o argumentador para derrubar seu argumento. Argumentum ad hominem.
662 Utilizar argumentos de forma tendenciosamente ideológica. Exemplo: 1. Comunismo é
bom porque Trotsky disse.
663 Condicionar o sucesso material como justificativa para qualquer ato.
664 Associar valores morais a uma pessoa para derrubar seu argumento.
665 Ridicularizar o argumento sem confrontação lógica.

297
Capítulo 18 • Estágios do desenvolvimento moral

Posturas com mutilações político-ideológicas:


ƒ Falácias atentatórias à liberdade de expressão666
ƒ Falácias atentatórias à liberdade individual667
ƒ Falácia da melhor profissão668
ƒ Falácia do respeito religioso669
ƒ Falácias ideológicas “em nome da classe social”670
ƒ Falácias ideológicas etnocêntricas “em nome do clã” 671
ƒ Falácias ideológicas “em nome do bem-estar social”672
ƒ Falácias políticas “em nome do povo”673
ƒ Falácias fundamentalistas “em nome de Deus”674
ƒ Monopólios estatais (“cabides de empregos”)675
ƒ Monopólios privados676
ƒ Monopólios de economia mista 677
ƒ Padronização do indivíduo678
ƒ Preconceitos etnocêntricos
ƒ Condenação ao uso de preservativos679

666 Argumentar em prol da segurança nacional ou agressão a eventual direito para justificar
a exclusão de outros legítimos direitos de seus indivíduos. Exemplos: sistema de concessões
estatais de rádio e televisão; tentativa de restrições à internet pelos projetos de leis norte-a-
mericanos PIPA, SOPA e ACTA – “Protect IP Act, Stop Online Piracy Act e Anti-Counterfeiting Trade
Agreement”. No Brasil tivemos a tentativa que julgo ditatorial do “marco civil da internet”, pelo
governo petista (projeto de Lei do Poder Executivo n. 2.2126/2011).
667 Argumentar em prol da proteção econômica nacional para justificar a exclusão do direito
de escolha de seus indivíduos ou sua espoliação. Exemplos: 1. Limite de U$ 500,00 (ano base
2013) para compras no exterior. 2. Nível da carga tributária acima do razoável patamar de
10% (dez por cento).
668 Determinismo profissional pelos pais. Modalidade atentatória à liberdade individual,
causada pela arrogância do pseudo saber e tratada isoladamente por sua importância.
669 Afirmação da veracidade de um argumento por “respeito” religioso.
670 Exemplos: 1) Marxismo; 2) Socialismo; 3) Comunismo.
671 Exemplos: preconceito racial (cotas raciais), classista (contra pobres ou ricos), familiar
(nepotismo), nacionalista (patriotismos), desportivo (briga entre torcidas), ideológicos (orto-
doxia), regionais (cidade, estado ou região).
672 Exemplos: 1) Estado de “bem-estar social”; 2) ideologias conhecidas como “coletivistas”.
673 Exemplos: ideologias conhecidas como “esquerda”.
674 Exemplos: presentes em algumas religiões, obviamente com honrosas exceções.
675 Exemplo: Petrobras, em águas fundas.
676 Exemplo: Extração de petróleo em águas rasas.
677 Exemplo: RFFSA – Rede Ferroviária Federal S.A. (estatizada pelo governo petista em 2007).
678 Exemplos: modismos, grifes ideológicas ou “politicamente correto”.
679 Postura preocupante mormente após o aumento epidêmico da “Aids”, em especial nas
décadas de 80 e 90.

298
Capítulo 18 • Estágios do desenvolvimento moral

Posturas com mutilação existencial:


ƒ Alcoolismo680
ƒ Combates entre animais incentivados por humanos681
ƒ Combates entre homens e animais682
ƒ Combates entre humanos683
ƒ Caçadas esportivas684
ƒ Consumo de drogas
ƒ Culto à adrenalina 685
ƒ Diversões imaturas686
ƒ Fervor fundamentalista 687
ƒ Festividades insalubres688
ƒ Tabagismo689

Posturas com mutilação político-universalista, em defesa do:


ƒ Clã 690
ƒ Classe social691
ƒ Ideologia tirânica 692
ƒ Nação693
ƒ Preferência desportiva 694
ƒ Raça 695
ƒ Território696
ƒ Planetário697

680 Modalidade por alcoolismo.


681 Indução à morte de animais. Exemplo: Briga de galos.
682 Exemplo: Touradas.
683 Exemplos: 1. Guerras. 2. Evento de lutas “Vale Tudo”.
684 Exemplo: Caça à raposa.
685 Colocar em risco a existência humana. Exemplos: 1. Esportes radicais. 2. Morte de Ayrton Sena.
686 Exemplo: Farra do boi.
687 Exemplos: 1. Inquisição católica. 2. Guerras santas. 3. Atentado de 11 de setembro contra
as Torres Gêmeas.
688 Exemplos: 1. Festas rave. 2. Carnaval.
689 Modalidade suicida por tabagismo.
690 Exemplo: Expressão popular: “para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei”.
691 Exemplos: 1. Comunismo. 2. Elitismo. 3. Sindicalismo. 4. Marxismo.
692 Exemplos: 1. Coletivismo tirânico. 2. Ditadura da maioria. 3. Indivíduo opressor.
693 Exemplos: 1. Patriotismo exacerbado. 2. Xenofobia.
694 Exemplos: 1. Torcidas organizadas.
695 Preconceitos raciais. Exemplos: 1. Apartheid. 2. Processo seletivo baseado em cotas raciais
(universidades). 3. Proibição ou arrocho do acesso por raça.
696 Exemplos: 1. Barreiras comerciais. 2. Barreiras tributárias. 3. Boicote econômico. 4. Merco-
sul (pelo prisma excludente). 5. União Europeia (pelo prisma excludente).
697 Exemplo: Filmes de ficção científica com estereótipos maléficos alienígenas.

299
Capítulo 18 • Estágios do desenvolvimento moral

Conclusão profilática
Incontáveis temas podem ser objeto de pesquisa por este método, mormen-
te se o leitor mantiver em mente a magnitude dos conceitos estudados nos
capítulos pretéritos. A classificação e localização do padrão social que parte
do reconhecimento do que seja convencional traz a possibilidade concreta
de comparação contextualizada do seu patamar evolutivo e oportuniza o
desenvolvimento da autenticidade existencial para verificação de sua con-
dição individual em relação à mesologia, além do norteamento evolutivo
para estágios superiores.

A ideia principal está na busca da verdade e da postura “exemplarista”, que


supera a mera crítica verbal, seguida da contextualização da situação ava-
liada e suas conexões com os demais cidadãos e estruturas. No campo da
ovação ao exemplo pessoal, cabe-me relembrar a frase creditada a Mahat-
ma Gandhi, reconhecido como um líder mundial que deixou o seguinte
legado: “seja a mudança que você deseja ver no mundo”.

Compartilho com o indivíduo que teve a coragem e resistência para chegar


até este momento da leitura, que a notável frase do líder indiano poderia
ser o grande fechamento desta obra, embora mantenha distanciamento
ideológico, no campo político, desta eminente personalidade.

Todavia, apesar de valorizar e priorizar o exemplo ao mero discurso vazio,


se quisermos realmente compreender todas as nuances de nossa época e
transcendê-las, julgo necessário a união de nossa intenção às habilidades
do discernimento, da justiça, do reconhecimento meritório e da aceitação
de nossa realidade existencial baseada em positiva diversidade e existencial
desigualdade evolutiva.

Além de qualquer desejo igualitário, a diversidade trata-se de uma ques-


tão fática, ou seja, não temos os mesmos talentos, nem somos merece-
dores do mesmo quinhão dos bens da vida, por mais dolorida que seja
tal informação para alguns. A boa notícia é que este fato não impede o
exercício das virtudes da solidariedade e amabilidade, além da consta-
tação que nossa força e resiliência às vicissitudes da vida residem justa-
mente em nossas diferenças, motivo pelo qual exclamo: viva nossa exi-
tosa pluralidade!

300
Capítulo 18 • Estágios do desenvolvimento moral

Assim sendo, outorgo-me licença para a ousadia de complementar a elo-


giada e reconhecida postura ética fincada no exemplo pessoal, para agre-
gar a não menos prestigiada lucidez sobre o que seja altruísmo, justiça e
liberdade.

Somente assim, teremos capacidade para considerar e compreender os


diversos níveis de consciência,698 com sua consequente necessidade de
conservação de todas as estruturas;699 as linhas e capacidades personalíssi-
mas;700 os diferentes estados incomuns;701 as tipologias específicas702 e final-
mente a devida contextualização assistencial e suas diferentes perspectivas
e jurisdições,703 donde o social não exclua o individual e vice-versa, o públi-
co não domine o privado, o grande “nós” não seja a desculpa para eliminar
o isolado “eu”.

Finalmente, veremos o triunfo da epopeia existencial sobre a ignorância,


através da prestimosa compreensão de nossa legítima área de atuação e
que cada indivíduo possua o direito de atuar em seu território persona-
líssimo, mas também o dever de respeitar os sítios compartilhados, numa
épica delimitação de jurisdições para, ao final, preservarem-se, transcen-
derem-se e interpenetrarem-se por visíveis e invisíveis conexões.

698 Compreensão do “Grande Ninho do Ser” e seus patamares hierárquicos e evolutivos.


699 Preservação de todas as estruturas do “Grande Ninho”, incluindo-as e conservando-as para
a harmonia e a própria manutenção do todo e suas partes integrantes, ao invés de revoluções e
patologias meramente destrutivas.
700 Onde o esforço, o mérito, a vocação e outras questões individuais emergem.
701 Compreensão da riqueza e infinitas possibilidades do psiquismo ao parapsiquismo cons-
ciencial, ainda carente de muita pesquisa e aprofundamento científico.
702 De onde podemos afirmar que nossas diferenças, além de qualitativas, são também
quantitativas.
703 Territórios específicos dos “três grandes” e dos “quatro quadrantes”, onde “eu, nós e isso”
possam conviver em diálogo conectivo e sem a inoportuna dominação tirânica.

301
ÍNDICE DETALHADO

Introdução O problema da ambivalência 19


Isso versus aquilo O que é Consciência? 20
A Conscienciologia 22
A Filosofia Integral 23
Os propositores 25
Linguagens e bissociações 26
A jurisdição religiosa 28
A jornada do autor 29
Beba na fonte 31

PRIMEIRO BLOCO: CONCEITOS PRELIMINARES


Cosmos e Kosmos Qual o alcance do conceito cosmos? 35
E = m.c2 36
Escola pitagórica (século IV a.C) 37
Cosmologia ou “Kosmologia”? 39

Hólon e holarquia Os conceitos-chave 42


Individualidade e coletividade 43
Autotranscendência e autoimanência 45
Emersão criativa 46
Conexões hierárquicas 47
O que está em cima está embaixo? 49
Epifania mateológica 50

O método da Ciência clássica, Método científico clássico 53


na Filosofia Integral e na • Navalha de Ockham 56
Conscienciologia • Indução e dedução 58
Método integrativo wilberiano 59
• Primeira etapa: recuo ao abstrato 60
• Segunda etapa: incorporação sistêmica 61
• Terceira etapa: teoria crítica 62
Método conscienciológico 62
Posicionamento pessoal 64

Paradigmas materialista, Limites paradigmáticos e interpretação


consciencial e integral kuhniana 65
Desgaste ou desvirtuamento do exemplar
newtoniano-cartesiano? 68
Um ponto de contato 70
Darwin: a nota dissonante? 70
Casuísticas cartesianas, newtonianas e
darwinianas 72
Paradigmas: materialista, consciencial e integral 74

302
Os três olhos do pluralismo O que é “isso”? Como conheço “isso”? 78
epistemológico integral Os três olhos do conhecimento de São Boaventura 79
Do passado ao moderno método científico 80
John Locke, Thomas Kuhn e Karl Popper 81
Epifania wilberiana 82
O olho “abelhudo” da razão 86
Os erros de categoria 87
Bissociação integral-conscienciológica 89
Conclusões 91

SEGUNDO BLOCO: ELEMENTOS DA FILOSOFIA INTEGRAL


Primeiro elemento: níveis A Filosofia Perene 98
O Grande Ninho do Ser 99
Impacto da modernidade 103
Grande Ninho e os três olhos 104
Como percorrer o caminho? 105
Patologias “ascendentes” 106
Reação “descendente” 107
Solução integrativa 110
Falácia pré-trans 115

Segundo elemento: linhas Espirais do desenvolvimento 120


Conexões entre níveis e linhas 121
Conexões entre níveis, linhas e contextos 125
A linha de valores de Graves 126
As cores dos conflitos 140
Processo 1-2-3 143
Gerações e contextos 145

Terceiro elemento: estados Estados naturais de consciência 148


Estados incomuns (ou alterados) de consciência 149
Matriz Wilber-Combs 151
A visão conscienciológica 154

Quarto elemento: tipos Carol Gilligan: masculino e feminino 158


Patologia e saúde dos gêneros 159
Outras tipologias 161

Quinto elem: quadrantes Como conectar tudo? 166


Como vivenciar os quadrantes? 167
Os três grandes 171
A maravilha da diferenciação dos três grandes 173
O desastre da dissociação dos três grandes 175
Absolutismo político-ideológico de quadrante 178
Os elementos integrais nos quadrantes 183
As conexões entre os quadrantes 188

303
TERCEIRO BLOCO: POSTULADOS DA CONSCIENCIOLOGIA

Multidimensionalidade e Dimensões da Conscienciologia 194


multiexistencialidade Imortalidade da Consciência 196
Multiexistencialidade 198
As ferramentas vivenciais 199

Holossomaticidade e O protagonista 201


pensenidade Os quatro veículos 202
Onde entram os chacras? 205
As ferramentas vivenciais 213
As três dessomas 214
Posso pensar em quarta dessoma? 215
Pensenidade 216

Projetabilidade e Conceito 220


bionergeticidade Classificações 221
A resistência científica 221
Histórico da bioenergia 225
Bioenergeticidade 227
Energia imanente e energia consciencial 228

Assistencialidade, Assistencialidade 232


cosmoeticidade, Cosmoeticidade 236
maxifraternidade e Maxifraternidade 241
universalidade Universalidade 242

QUARTO BLOCO: EPIFANIAS

Sou, logo existo Nos ombros de gigantes 249


Cartesius versus Cartesius 251
Anatomia gramatical 252
Conexão entre pensamento e existência 253
Confronto com a Filosofia Integral 254
Confronto com a Conscienciologia 255
Confronto com a lógica 257
Confronto com a teoria dos sete corpos 257
Confronto com a ciência clássica 259
Emergência reflexiva 261

A quarta “dessoma” As três dessomas 267


Crença, convicção e ciência 268
Quarta dessoma 270
Mateologia 270
Impacto na representação do mentalsoma 272

304
O autor modela a obra ou Wilber I – romântico 276
vice-versa? Wilber II – evolucionista linear 277
Wilber III – evolucionista não-linear 278
Wilber IV – fase integral 278
Wilber V – perspectivas 279
Waldo I – espírita 279
Waldo II – conscienciólogo 279
Tom Martins I – eclético 280
Tom Martins II – hermético 281
Tom Matins III - integrativo 281
Tom Martins IV – autônomo 282

POSFÁCIO: TEORIA E PRÁTICA


Estágios do desenvolvimento Conceito e contextualização 286
moral Origem do modelo 287
Enfrentamento pragmático 289
Influências 291
Conclusão profilática 298

305
306
307
Conexões:
perspectivas transcendentes comparadas

Eis aqui um relato franco confessional e poderoso, no qual o leitor


encontrará novos horizontes para desconcertantes contemplações
capazes de auxiliá-lo na expansão – ou resignificação – de
posicionamentos personalíssimos.
Entre o “bom”, o “belo” e o “verdadeiro”, esta obra pretende
demonstrar que podemos ficar com tudo, em uma efusiva integração
de vertentes científicas, espirituais e filosóficas.
Munido de coragem e fôlego, quem ousar navegar por estas linhas
será recompensado com o descortinar de níveis sutis e inclusivos. Se o
leitor deseja reflexões impactantes pelas diferentes vias da veracidade
subjetiva, da justiça coletiva, da verdade objetiva e seu ajuste funcional
através de redes e teorias de sistemas, deve ler este livro.
Boa jornada!
Tom Martins

308

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