Viagem À Amazônia

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Viagem à Amazônia

(Ou por que


destruímos a
Amazônia em
uma geração?)
Literatura para jovens

João Meirelles
Viagem à Amazônia

(Ou por que


destruímos a
Amazônia em
uma geração?)

João Meirelles
Belém, fevereiro de 2021

Este livro é apoiado pela Secretaria de Estado de Cultura do Estado do Pará, com recursos
provenientes da Lei Federal n.º 14.017, de 29 de junho de 2020.

Autoria: João Meirelles


Design: Forminform Comunicação Visual Ltda
Revisão: Maria da Graça Ferreira Leal
Ficha catalográfica: Ana Mary Campos de Miranda 789 CRB-2
Fotografias: Fernanda Martins, João Meirelles e Oswaldo Maricato
Capa: Waldemir Caravelas Furtado, Barcarena, 2021

M514v Meirelles, João, 1960

Viagem à Amazônia: ou porque destruímos a Amazônia em


uma geração?/ João Meirelles, Belém: Editora do autor, 2021
248 p. : il.;
ISBN 978-65-00-20731-6
1. Literatura infantojuvenil brasileira - Amazônia. I. Título.
CDD - 23. ed. 869.909811

Autorizada a reprodução do texto, somente em partes, desde que citada a fonte. Para citar
a fonte: Meirelles, João. Viagem à Amazônia: ou por que destruímos a Amazônia em uma
geração? Belém: Editora do Autor, 2021.
Para contato com o autor, download gratuito deste e de outros textos do autor: https://
www.joaomeirelles.com
João Meirelles

Aos jovens leitores,


que aceitem o compromisso de respeitar a Amazônia e seus povos.

Aos jovens de povos e comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas,


que nos guiem pela Amazônia nas próximas sete gerações.

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João Meirelles

“Em cada deliberação, devemos considerar o impacto


de nossas decisões nas próximas sete gerações”.

Grande Lei dos Haudenosaunee,


Confederação das Seis Nações Iroquesas,
América do Norte

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João Meirelles

Sumário
Caro leitor 7
Capítulo 1 - Os preparativos para a viagem 10
Capítulo 2 - A chegada à baía de São Marcos 13
Capítulo 3 - São Luís e a Amazônia maranhense 46
Capítulo 4 - O Nordeste Paraense 52
Capítulo 5 - Belém do Grão Pará 64
Capítulo 6 - O arquipélago do Marajó 80
Capítulo 7 - Em Macapá e de Macapá a Abaetetuba 115
Capítulo 8 - De Abaetetuba a Tucuruí 120
Capítulo 9 - De Tucuruí a Carajás 134
Capítulo 10 - De Parauapebas a Altamira pela Transamazônica 141
Capítulo 11 - Visita ao Parque Indígena do Xingu 149
Capítulo 12 - De Itaituba a Santarém, descendo o rio Tapajós 154
Capítulo 13 - De Monte Alegre a Manaus pelo Amazonas 163
Capítulo 14 - Manaus e o baixo rio Negro 170
Capítulo 15 - De Manaus a Boa Vista e à fronteira com a Venezuela 178
Capítulo 16 - O alto rio Negro e a Cabeça do Cachorro 182
Capítulo 17 - De Manaus a Tabatinga pelo rio Solimões 187
Capítulo 18 - De Lábrea a Rio Branco, passando por Boca do Acre 194
Capítulo 19 - De Rio Branco ao Seringal Cachoeira e retornando 208
Capítulo 20 - De Rio Branco a Porto Velho 215
Capítulo 21 - De Porto Velho a Cuiabá 219
Capítulo 22 - De Cuiabá à serra do Cachimbo, pela BR-163 231
Capítulo 23 - Da BR-163 a Palmas e nossa comemoração final 236
O autor 243
Referências 244

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João Meirelles

Caro leitor

Eu te convido a percorrer a Amazônia de um modo diferente e divertido.


Este livro foi pensado tanto para quem não é da região como para
os moradores da Amazônia. Peço-te que não guardes para ti esta
leitura. Este é um livro que pode ser lido em voz alta. Chama os teus
colegas, amigos e familiares para ouvirem ou mesmo representarem os
personagens! Aproveita para discutir as diferentes temáticas: a situação
dos povos indígenas e das populações tradicionais, o desmatamento e as
florestas, a biodiversidade, as mudanças climáticas e os muitos temas
que compõem “a questão amazônica”.

Desde os meus catorze anos, raros foram os anos em que não visitei
a Amazônia. Depois de trabalhar em São Paulo por mais de três
décadas como militante em organizações da sociedade civil, ONGs
socioambientais, mudei-me para Belém, com a minha esposa,
Fernanda, onde vivo há dezesseis anos.

Espero que esta leitura contribua para que tu formes uma visão cada
vez mais crítica sobre a região e seus povos. Desejo que sejas capaz de
assumir compromissos perante as presentes e as futuras gerações de
amazônidas, brasileiros e habitantes deste planeta.

A obra está organizada como uma viagem pelas diferentes regiões da


Amazônia brasileira, apresentada na forma de um diálogo fictício
entre quatro personagens, um tio e seus três sobrinhos. Uma das
personagens fictícias, Juju, mantém um diário, e pequenos trechos dele
são reproduzidos.

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João Meirelles

Nesta Amazônia de múltiplas vozes, este livro não consegue abranger


todas as vozes, mas espero que sigas buscando ouvir os diferentes pontos
de vista que seus habitantes, pesquisadores e todos aqueles preocupados
com a região apresentam. Gostaria de homenagear muitas pessoas e
falar sobre muitas comunidades, povos, vilas e cidades, árvores, florestas
e rios, mas o espaço não permite... Alguns personagens são reais, a quem
agradeço antecipadamente, em especial a Joaquim Tashka, da nação
indígena Yawanawá, do Acre.

Ao final, há uma breve lista de livros, websites e filmes. No entanto,


prepara as tuas malas, pois nada substitui a viagem à Amazônia!

Graças à Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc (Lei n.º 14.017),


o livro, escrito em língua portuguesa, destina-se a ser distribuído
gratuitamente no planeta Terra em formato e-book.

Este projeto é apoiado pela Secretaria de Estado de Cultura do Estado


do Pará, com recursos provenientes da Lei Federal n.º 14.017,
de 29 de junho de 2020.

Amazonicamente,

João Meirelles,

fevereiro de 2021.

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João Meirelles

Capítulo 1

Os preparativos para a viagem

– Tu não disseste que só se ama o que se conhece? – reclama Juju,


contestadora e falante.
– Disse mesmo! Se não sentirmos o cheiro da terra, do ar, se não apertarmos
as mãos das pessoas, se não ouvirmos o que elas têm para nos contar, suas
histórias, suas angústias e seus sonhos, se não caminharmos descalços,
sentindo os calos da Terra e as suas veias pulsantes, se não mergulharmos
em suas águas quentes, se não trocarmos sorrisos e palavras carinhosas,
se não provarmos da comida de cada lugar, se não arriscarmos alguns
passos da dança, se não apalparmos as plantas, a textura das árvores e das
construções, este lugar terá pouca importância para nós, será sempre algo
distante, exótico, passageiro. Não será parte de nossas vidas. Isso é o que
chamamos de sentido de pertencimento, de pertença! Tem gente que nasce,
vive e morre na região, e não deixa a Amazônia entrar em suas vidas, evita-a,
mesmo sem o saber.
– Verdade, tio? – Gabriel, o curioso Gabriel.
– No início do século XX, o escritor paulista Mário de Andrade comentava: “o
brasileiro vive o Brasil e não o descobre”. Por isso, caros sobrinhos, para
serem brasileiros, vocês devem viver o Brasil intensamente, saírem por aí,
sem preconceitos, conhecendo a sua terra e a sua gente, cidadãos brasileiros
como vocês! Só assim cada um formará o seu próprio juízo de valor, a sua
opinião. E é por isso, queridos sobrinhos, que os convido a embarcar para a
Amazônia na semana que vem!

(Olhares confusos. Silêncio. Sorrisos trocados... Será verdade?)

– Alguém disse. E logo a euforia, os pulos, os abraços...

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– Então, agora é pra valer, tio? Finalmente, vamos fazer aquela tão prometida
viagem pela Amazônia? – pergunta Antônio, o desconfiado leitor voraz,
descrente da conversa do tio.
– Claro! Aliás, as passagens aéreas estão compradas e as autorizações dos
pais, em minhas mãos. Preparem as suas mochilas. Cada um deverá levar
uma mochila pequena e uma maior, com as roupas e outros apetrechos. Na
de mão, garrafa de água, chapéu, sombrinha, capa de chuva, protetor solar,
repelente, desodorante, papel higiênico, escova de dente, caderno, caneta e
plásticos para proteger os materiais da chuva e...
– Minha nossa, tudo isso, será que cabe? E na grande? – pergunta Gabriel, o
cientista da turma. Quer ser biólogo o menino.
– Rede de dormir, mosquiteiro, cordas e manta para cobrir-se do frio. As roupas,
leves, por favor. E um par de sandálias, de tênis, um diário de viagem, pelo
menos um livro para as horas de descanso e a bolsinha com sabão, pasta de
dente etc. Eu ainda levo alguns mapas, um computador, os binóculos, a bolsa
de primeiros socorros... Ah, não se esqueçam de um casaco...
– Casaco? Pra quê? Na Amazônia faz frio? – Gabriel estranha.
– E como! À noite, se tu não levares uma mantinha para forrar a rede e uma
malha, passarás frio. É a umidade alta.
– E qual será a primeira parada? – curiosa, Juju tenta imaginar o roteiro.
– Iniciaremos pelo Maranhão. Tomaremos um avião para São Luís! A cidade é
linda, as pessoas, simpaticíssimas, vocês vão adorar. Vão conhecer aquele
casario colonial dos séculos XVIII e XIX no promontório, observando a maré
e o movimento dos barcos. Das antigas casas, dos andares altos, é que se via
a chegada das embarcações no cais quando o único acesso era por água.
– São Luís? Mas, tio, não é na região Nordeste? – Juju continua.
– Sim e não. São Luís é a capital de um estado, o Maranhão, que está tanto no
Nordeste, quanto na Amazônia Legal. Em termos ecológicos, o Maranhão é
muito biodiverso. É o estado brasileiro com maior diversidade de biomas,
são cinco biomas: Cerrado, Caatinga, Amazônia, Região Costeira e Oceano
Atlântico. A leste da baía de São Marcos, onde deságuam rios como o Mearim
e o Itapecuru, inicia-se o bioma Amazônia, também conhecido como Floresta
Tropical Amazônica, que chamamos de Amazônia. A oeste e a sul, está a
região de Cerrado e, a seguir, a Caatinga.
– O que é um bioma? – pergunta o candidato a biólogo, Gabriel. Sempre
prefere perguntar o que não sabe.

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– Bioma é o conjunto de paisagens ou ecossistemas que reúnem caraterísticas


próprias. Possui flora e fauna específicas, que interagem com o meio físico
terrestre e aquático. No Brasil, há oito biomas: a Amazônia, o maior de todos,
e que pertence a muitos países; o Cerrado, que ocupa o Planalto Central e
é praticamente brasileiro; a Mata Atlântica, que vai do Ceará ao Rio Grande
do Sul, pela costa, e também se estende para a Argentina e o Paraguai;
a Caatinga, o único exclusivamente brasileiro; o Pantanal, que também
se encontra no Paraguai e na Bolívia; os Pampas, no Sul, que invadem o
Uruguai, além dos biomas relacionados à água salgada: a Região Costeira e o
bioma marinho do Oceano Atlântico.
– Como assim? A Amazônia pertence a muitos países? – Juju quer entender.
– Pouco mais da metade da Amazônia está no Brasil, a outra parte está
distribuída entre oito países: Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela,
Guiana, Suriname e França, aqui representada pelo seu departamento, a
Guiana Francesa.
– Então somos vizinhos da França? – espanta-se Antônio.
– Exatamente. E, se vocês quiserem se mostrar mais conhecedores de
geografia que os seus colegas, perguntem-lhes com que país a França tem a
mais extensa fronteira. Alguns dirão Espanha, outros Itália ou Alemanha...
– Ah, já sei, é o Brasil, certo? Gostei! – Antônio espertamente concluiu.
– E, em cada um desses países, a Amazônia representa mais de quarenta por
cento de seus territórios, ou seja, a Amazônia é muito importante, tanto para
o Brasil como para esses países.
– Então, se é assim, não somos donos da Amazônia? – Juju deixa seu silêncio.
– Ah, aqui temos que conversar. Nós, brasileiros, não somos “donos”, somos
guardiães para a humanidade desta região única. As fronteiras nacionais
definem os territórios de cada país, e cada um deve zelar pela conservação
desta região para o bem do Planeta. Desta vez, no entanto, meus sobrinhos,
iremos conhecer “apenas” a Amazônia brasileira. Eu digo “apenas”, porque
esta é uma região maior que o restante do Brasil. E até maior que a Europa.
Quem sabe numa próxima viagem não desceremos os Andes até a foz do rio
Amazonas, como fizeram diversos viajantes! Então, vamos ver o mapa do
nosso roteiro?

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Capítulo 2

A chegada à baía de São Marcos

Diário da Juju: O encontro dos “sobrinhos” foi em São


Paulo. Do aeroporto de Congonhas fomos a Brasília. Dali,
uma espera, e agora sobrevoamos São Luís. Se juntar tudo,
foram quase quatro horas de voo. Como este país é grande!

– Meus sobrinhos, tenho uma surpresa! Não iremos a São Luís agora.
– Iche, não estou gostando... – Antônio emburrou.
– Vamos direto para uma área de floresta. Aliás, é das poucas nesta região. É
uma área pequena, mas muito bonita, que uma família preserva há gerações.
Fica aqui na região das Reentrâncias Maranhenses.

(Chegada à fazenda da reserva.)

– Tio, quanta árvore grande, posso abraçar cada uma? Posso agradecer pela
viagem? – Juju, emocionada, corre para a primeira árvore frondosa.
– Escolheste bem. Este é um bacurizeiro, uma árvore bem típica aqui
da Amazônia Oriental. Tem um fruto grande e cheiroso, cada vez mais
valorizado. Dele se faz sorvete, suco, bombons, doces. O nome científico é
lindo: Platonia insignis Martius...
– Nome científico, o que é isso? – Gabriel, o candidato a biólogo...
– Vejam vocês, para que sejam reconhecidos pelos cientistas, os seres vivos
têm um nome científico, e muitos deles possuem mais nomes populares.
Os nomes científicos são escritos em latim. O primeiro refere-se ao gênero,

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Platonia, e o segundo, à espécie, insignis. Ah, e o nome que vai ao final é


de quem classificou o ser vivo. Aqui foi Martius, um viajante alemão que
esteve na Amazônia há mais de dois séculos. Bem, nesse caso, Platonia é
uma homenagem ao filósofo grego Platão, e insignis quer dizer “notável”.
Em português mesmo, há esta palavra, “insigne”, derivada do latim, como a
maioria das palavras de nossa língua.
– Então, isto é que é floresta virgem? Que árvores maravilhosas! – comenta Juju.
– Olha, difícil dizer o que é uma floresta virgem, intocada. Bem, na verdade,
esse termo não tem muito sentido. Os cientistas preferem usar “floresta
primária” para o ambiente em bom estado de conservação, em que os ciclos
naturais, também conhecidos como serviços ambientais – o ciclo dos ventos,
das águas, a polinização, a troca de nutrientes etc. –, ocorrem sem grandes
rupturas. Quando o ambiente foi alterado significativamente pelo homem, o
que se pode notar facilmente, o certo é chamá-la de “floresta secundária”.
– Tio, que coisa interessante! Vou anotar tudinho em meu diário – Juju,
empolgada, ouvia atentamente o tio.
– Faz mesmo, a gente aprende muito quando escreve. Eu sou assim, anoto e
vou me lembrar bem mais. Aliás, se esquecer, volto lá no meu caderninho,
no meu diário. Bom, muitas florestas secundárias conseguem recuperar-
se naturalmente, algumas levam dezenas ou mesmo centenas de anos.
Onde passou muito fogo e onde o gado pastou por muitos anos, o solo
provavelmente foi mais destruído; assim, a sua recuperação torna-se bem
mais difícil. Muitas vezes, a floresta recuperada dificilmente terá grande
diversidade de espécies como na mata original. Nesse caso, diremos que
se trata de uma floresta degradada, ou seja, empobrecida. Toda vez que
penetramos uma área como esta, eu sempre me arrepio todo.
– Verdade, tio. Senti algo diferente aqui – Gabriel comenta.
– Sinto-me tão emocionado como ao entrar em um grande templo – em uma
imensa catedral ou uma biblioteca! Eu dou um nome para cada árvore e
procuro ver o que cada uma tem de único, o que me chama a atenção. O
importante é pensarmos na grande dimensão do tempo. O homem está
na Amazônia há provavelmente mais de cem séculos, ou seja, mais de dez
mil anos. Ao utilizar o ambiente, ao derrubar uma árvore para fazer uma
canoa, ao preparar uma roça para plantar aquilo de que precisa – o milho, a
mandioca, as frutas, as ervas medicinais –, ele contribui para o desenho da
paisagem, ele enriquece a floresta.
– Que coisa linda, tio: desenho da paisagem! – Juju continua, emocionada,

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agora grudada, igual um carrapato, a um umirizeiro. Antônio prefere o


muricizeiro, mais arbusto que árvore. Na verdade, foi o único entre os três
que gostou da frutinha amarela.
– Vejam bem, meus sobrinhos, que esta história de desenho da paisagem
é muito interessante, permite-nos observar a natureza de uma maneira
diversa, como um espaço cultural e não apenas um ambiente natural
imposto ao homem. Na Amazônia, há gente por todo canto, os povos
originais, aqueles que chamamos de índios, são de diversas nações. Cada um
tem a sua cultura, a sua língua, seu modo de compreender o mundo. Além
deles, há os quilombolas e os povos e comunidades tradicionais que estão
há séculos na região.
– Tio, me explica direito essa história de quilombola?– Antônio solicita com jeitinho.
– Muito importante perguntares, Antônio. Olha, os escravos trazidos da África
para a Amazônia, de diferentes nações e regiões daquele continente e,
portanto, com distintas culturas, línguas e modos de viver, sofreram tantos
maus-tratos – separação de famílias, filhos tirados à força de suas mães,
estupro, fome, trabalho infantil, agressões físicas e morais – que, mesmo
correndo risco de vida, preferiam fugir para o mato. Mesmo perseguidos,
algumas comunidades conseguiram se formar tanto no entorno de Belém,
como de Macapá, no Baixo Amazonas e principalmente aqui no Maranhão,
onde há mais de quatrocentos territórios quilombolas.
– Nossa, tio, tudo isso! Então aqui deve ter tido muito escravo!– assusta-se Juju.
– Exatamente, a exploração portuguesa no Maranhão e no Pará utilizava
muito a mão de obra escrava! Eles foram muito cruéis, o que hoje seria
impossível de aceitar. E essas populações que fugiram se autodenominavam
“mocambos” ou “quilombos”, e seus habitantes, “quilombolas”. A notícia
boa é que, recentemente, o governo brasileiro passou a reconhecer as suas
áreas como territórios quilombolas ou quilombos.
– Ah, entendi, tinha vergonha de perguntar. Isso é muito importante! – Juju faz
coro com Antônio.
– Bom, sigamos com a questão de florestas plantadas, das paisagens culturais.
Vamos voltar muitas vezes aos quilombolas, indígenas e povos tradicionais.
Muitas áreas da Amazônia sofrem notável impacto humano há milênios;
e a paisagem é, sim, em parte, criada ou recriada pelo homem. Lá no rio
Xingu, por exemplo, os antropólogos – os estudiosos da vida dos povos
tradicionais – observaram que, à medida que os índios utilizavam uma trilha,
aproveitavam para semear diferentes frutas – umas para atrair animais para

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a caça, outras para o seu próprio consumo, as espécies que forneceriam


fibras, palhas ou plantas medicinais. Assim, enriqueciam a mata com o que
chamamos de espécies úteis.
– Que interessante, tio! – os três em coro, felizes pela viagem.
– Muitas vezes vocês vão ouvir a palavra “capoeira”. Ela se refere a uma
área que foi aberta, ou seja, desmatada. Foi utilizada para a agricultura
ou para a pecuária por alguns anos e depois, abandonada. Em muitas
delas, principalmente em áreas indígenas e quilombolas, a capoeira foi
enriquecida com árvores úteis. Vejam vocês que, no meio da capoeira, fica
difícil distinguir a “mata útil” do restante da floresta em restauração. Mas,
para quem é do lugar, há uma organização das plantas úteis facilmente
perceptível, como a ordem dos livros em uma biblioteca!
– Nossa, tio, tudo isso faz sentido! – Juju sentia-se muito sabida.
– No estuário do Amazonas-Tocantins e, aqui, nas Reentrâncias
Maranhenses, reparem bem nesta palmeira tão falada, o açaí, bem
pertinho das casas. O açaí é uma planta conversadeira, gosta de gente,
de fofoca, de barulho caseiro... Mas tem que estar com os pés sempre
molhados, gosta de brejo, de várzea, de maré por perto, roncando. E
produz esta frutinha maravilhosa.
– Então, tio, açaí é igual àquele pássaro amarelo, como é mesmo o nome dele,
sempre quer gente por perto? – Antônio pontua.
– Japim! Ou japiim, ou xexéu. Cacicus cela – comenta Gabriel, feliz de saber
o nome. Gabriel é exímio conhecedor de bichos de pena, de bichos de
casco, enfim, da bicharada toda. Dessa vez, sabia até o nome científico.
Viva nosso futuro cientista!

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Diário da Juju: Que festa esta chegada à Amazônia!


Um calorão gostoso, e a passarada cantando – japiins,
sabiás, papagaios. À noite, a mata, que parecia
silenciosa, era uma barulheira só. Viva a Mãe Terra!
Ah, povo simpático é este, maranhense. Linda gente!

– A gente percebe quando uma floresta está conservada. A sensação de


algo agradável, um ambiente acolhedor, harmônico é evidente. São os
bons fluidos, as energias positivas... Agora, mãos à obra, vamos montar o
nosso acampamento.
– Tio, vamos armar a nossa rede aqui? E se chover? E a onça? – Juju olhou nos
arredores para ver se encontrava alguma coisa parecida com um telhado
para se abrigar.
Seu Pedro Cascata, caseiro da fazenda, que acompanhava a conversa, morreu
de rir e atalhou:
– Ô dona, mais fácil é aparecer curupira assoviando que onça. Onça, mataram
tudinho. Homem tem medo de onça. Ela come criação – galinha, porco,
bezerro, inté boi –, se tiver com fome. Não se avexe não, aqui é demais de
seguro. Meus meninos vivem zombando do curupira naquele jirauzinho lá
em cima do taperebá... – e arreganhou o beiço, mostrando o jirau, um par
de tábuas a uns dois metros de altura, escondido entre as folhagens, e que
servia para espreitar caça.

E continuou a filosofar:

– E é mesmo, de onça homem tem medo, mas de curupira não. Se tivesse


medo de curupira, tinha mata pra tudo que é lado. E aqui puseram tudo que
é mata abaixo, virou este capoeirão seco, brabo, que não serve pra nada. É
fogo todo ano, é de dar dó.

(E eu continuei com a minha aula de geografia, agora sentado embaixo de um


belo e frondoso ingazeiro.)

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– Onde mais vocês acham que podemos observar a movimentação dos bichos
se não for na própria mata? Se chover, a chuva faz parte da natureza. É só
a gente se proteger bem com a lona e pronto... É importante que vocês
entendam que estamos na maior floresta tropical do planeta. As florestas
tropicais ocupam uma faixa bem estreita entre os dois trópicos, o de
Capricórnio, no hemisfério Sul, e o de Câncer, no hemisfério Norte. Há
diversos tipos de florestas, das superúmidas às secas, mas todas têm algo
em comum: estão de zero a mil e quinhentos metros de altitude, vivem
em áreas de baixa variação de temperaturas médias – que dificilmente
ultrapassam os dois graus centígrados entre o verão e o inverno...
– Como assim, inverno? Aqui tem inverno? – preocupa-se Gabriel.
– É, tu não te lembras que a gente daqui chama a época de chuva de inverno?
Há até um dito popular: no verão, chove todo dia, no inverno, chove o dia
todo. Bom, voltando ao nosso assunto, a média no verão está próxima de
vinte e sete graus centígrados, enquanto, no inverno, está perto de vinte e
cinco graus centígrados. A diferença entre as horas de sol entre o dia mais
curto e o mais longo do ano é pequena. Chove pelo menos mil e quinhentos
milímetros ao ano, e pelo menos em um terço dos dias do ano.
– E isso é muito, tio? – Antônio interfere, preocupado.
– Bem, mil e quinhentos milímetros ao ano significa um metro e meio de água
por ano. É bastante, mas o importante é a distribuição da chuva durante o ano.
Isso conta muito. Ah, importante, a umidade relativa do ar na floresta tropical
é sempre alta, na maior parte do ano, acima de oitenta por cento. É a umidade
alta que evita mudanças bruscas de temperatura, que dificilmente supera os
dez graus centígrados, além de não permitir que a temperatura supere os trinta
e três graus centígrados. Em regiões secas, como os desertos, a variação pode
alcançar trinta graus num mesmo dia, oscilando de zero a trinta graus. Isso
porque a umidade absorve os raios infravermelhos emitidos pela superfície.
– Viva, isso é bem explicado. Gostei! – vibrou o futuro biólogo.
– Grosso modo, pode-se comentar que, do bilhão de hectares do que sobrou de
florestas tropicais no planeta, a Amazônia continental representa dois terços.
Do total mundial, o Brasil tem cerca de um terço, entre a Amazônia e a Mata
Atlântica, superior a trezentos e sessenta e cinco milhões de hectares. Para
ficar fácil de memorizar, pensem no número de dias do ano. A área do bioma
Amazônia representa cerca de quarenta e dois por cento do Brasil, que tem
oitocentos e cinquenta milhões de hectares. Cada hectare é cem por cem
metros, ou seja, dez mil metros quadrados, o tamanho de um campo de futebol.

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– Como assim, tio, o que sobrou? – Antônio levanta-se, como se não quisesse
ouvir a terrível resposta.
– Lá pelo tempo em que os europeus invadiram as Américas, há mais de
quinhentos anos, as florestas tropicais ocupavam cerca de doze por cento da
superfície da Terra; hoje a área é praticamente metade da original.
– Nossa, tio, foi rápida a destruição! – preocupa-se Juju.
– Bem, rápida é a devastação dos últimos cinquenta anos. Nunca a
humanidade foi tão destruidora. Esse é o grande problema do momento
civilizatório em que vivemos. Dispomos de uma capacidade de destruição
capaz de consumir todas as florestas do mundo em poucos anos. A nossa
pegada ecológica, ou seja, o que consumimos do planeta, é muito superior à
capacidade que a Mãe Terra tem de se recuperar. Perdemos cerca de um por
cento das florestas tropicais por ano. Se nada for feito, em poucas décadas,
ou seja, vocês ainda estarão por aqui no planeta, teremos florestas tropicais
em poucos lugares e somente nos museus e cartões postais.
– Cartão postal? Tio, que coisa antiga! – manifesta-se Juju.
– Bem, minha linda, o teu tio aqui é bem antigo. No meu tempo, não havia
celular, computador, e a televisão estava engatinhando. A tecnologia mudou
muito rápido e, com ela, a nossa capacidade de destruição.
– Tá bom, tio, já sei tudo isso! – atalhou Juju.
– Vejam a nossa responsabilidade, de brasileiros: entre os duzentos países
que existem na Terra, quase metade possui florestas tropicais, e o Brasil,
sozinho, possui um terço das florestas que sobraram.
– É mui-ta ir-res-pon-sa-bi-li-da-de! – Juju enfatiza – E por que não ensinam
isso para a gente na escola? – Juju revolta-se, lembrando-se do que aprende
na aula de geografia. Sabia todos os rios da Europa de cor. Para quê, mesmo?
– Somos mesmo estouvados...
– Peraí, tio, o que é estouvado? – novamente, Juju, não perdendo uma palavra
daquela conversa... 
– Inconsequentes, descuidados, perante o que temos de mais precioso:
nossos recursos naturais vivos, especialmente a Amazônia. E igualmente
irresponsáveis por não reconhecermos a sabedoria de nossos mestres,
indígenas, quilombolas, ribeirinhos, que, somada à ciência, resulta no
conjunto de conhecimentos sobre o acesso a esses recursos. Não é riqueza
para se colocar em cofre, é patrimônio vivo. Pior, pouco aproveitamos do
que destruímos. Diversos estudos mostram que a maior parte das florestas

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derrubadas nos últimos trinta anos não é utilizada, está abandonada.


– Então por que são devastadas? – Gabriel pergunta, injuriado.
– A maior parte dos desmatamentos é para tomar posse, para dizer que aquele
invasor é o dono daquele pedaço. É bem público, patrimônio de todo o Brasil
servindo a ganância de alguns poucos. É crime! E o criminoso vem, retira
algumas toras de madeira, derruba tudo com motosserra e trator, e fogo
e fogo e fogo. E depois planta com capim. Pronto, o gado chega. No ano
seguinte, fogo e fogo e fogo...
– Tio, que coisa absurda! – Juju, devastada.
– Mas é assim a história do Brasil, da Amazônia! Somos uma sociedade movida
pela escravidão, pela exploração do outro, pelo fogo, na qual se toma posse
do que é bem público com a pata do boi. Claro que há exceções, em especial,
a importante figura do agricultor familiar, verdadeiro responsável pela comida
que comemos. A maior parte dos agricultores familiares compreende a terra
como seu bem mais precioso. Muitos deles são o que chamamos de povos e
comunidades tradicionais, que tanto manejam os recursos naturais – o peixe,
o camarão, a castanha-do-pará, o açaí – e plantam em pequenas áreas.

***

Vi que aquela conversa estava deixando-os tristes e cansados e resolvi abrir


outras frentes de análise sobre a questão amazônica.
– E sobre os rios, vocês já pensaram um pouco como os biomas estão
relacionados às bacias hidrográficas?
Antônio virou-se para mim e perguntou então: – Quer dizer que a bacia do rio
Amazonas e o bioma Amazônia são a mesma coisa?
– Antônio, em verdade, o certo é dizer bioma Amazônia. Assim como há o
bioma Cerrado. O bioma Amazônia é maior que a área drenada pela bacia
hidrográfica do rio Amazonas. Também são parte da Amazônia as bacias dos
rios Orinoco, na Venezuela, Essequibo, na Guiana, e, no Brasil, a bacia do
Tocantins, que vem do Planalto Central brasileiro. Há ainda centenas de rios
menores, que demandam diretamente a costa atlântica, como o Mearim, o
Itapecuru, o Gurupi, no Maranhão, o Guamá, o Acará, o Moju, no Pará, e o
Araguari, no Amapá. É importante lembrar que o rio Tocantins, por exemplo,
nasce no bioma Cerrado, mas adentra a Amazônia em seu curso médio e não
faz parte da bacia do Amazonas.

Viagem à Amazônia | 20
João Meirelles

– E o que é a Amazônia Legal? – questiona Juju, confusa.


– É o resultado de uma decisão da Constituição Federal de 1953 para estimular
o desenvolvimento da região Norte. Inclui parte da região Centro-Oeste
e até uma pequena parte da Nordeste, a banda ocidental do Maranhão. O
governo federal criou também a Superintendência de Valorização Econômica
da Amazônia (Spevea), substituída em 1966 pela Superintendência de
Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), extinta em 2001, substituída pela
Agência de Desenvolvimento da Amazônia e, depois, recriada em 2003.
Vejam que os governos são criativos em extinguir e criar órgãos para a
região. Só não se lembram de consultar as populações interessadas, indagar
quais as suas necessidades e, efetivamente, avaliar essas instituições
públicas, muitas vezes ocupadas para fins particulares, como cabides
para correligionários políticos. E pior, essas entidades serviram mais para
financiar a destruição da Amazônia e projetos concentradores de renda, pois
investiram mesmo foi em pecuária bovina e em grandes empreendimentos.
Agricultor familiar raramente tem vez nesses órgãos públicos.
– Nossa, tio, sério isso! A gente que paga essa conta? – Gabriel, ainda triste.
– Sim, todos os cidadãos brasileiros pagam a conta dos espertalhões, e isso
porque não vigiamos suficientemente os nossos políticos. De qualquer
maneira, Gabriel e Juju, e voltando ao tema da Amazônia Legal, ela ocupa
sessenta e um por cento do Brasil e engloba os estados do Amapá, Pará, a
parte ocidental do Maranhão (a oeste do meridiano 44o), Tocantins, Mato
Grosso, Rondônia, Amazonas e Roraima. Vejam que a Amazônia Legal tem
cinco biomas além do Amazônico: Cerrado, Pantanal e Caatinga, Região
Costeira e Oceano Atlântico.
– Tio, eu gostaria de voltar àquele assunto da pobreza e da floresta. Outro dia
tu disseste que muitos países com floresta tropical são bem pobres – Juju
comenta, agora empregando a segunda pessoa do singular, para imitar o tio...
– É verdade, a imensa maioria dos países com florestas tropicais é de países
pobres ou miseráveis. Mesmo na França, na Guiana Francesa, a população
é muito pobre, um contraste imenso com quem mora na Europa. No Brasil
não é diferente.
– Uma perguntinha básica, tio. O Brasil é pobre ou miserável? – Gabriel queria saber.
– O Brasil é pobre, a Amazônia é miserável, Gabriel! O problema é que,
em muitos casos, a pobreza obriga as pessoas a desmatar, vender a
madeira, pescar e caçar até a exaustão, seguir para o garimpo por falta de
oportunidade. Muito do que vemos são sintomas claros de miséria. Qual é

Viagem à Amazônia | 21
João Meirelles

a mensagem desta relação – pobreza e floresta tropical? É bem simples: se


queremos conservar as últimas florestas tropicais do planeta, teremos que
enfrentar a pobreza para valer. Chega de fingir que estamos cuidando disso
para valer. Não é possível separar as questões ambientais das sociais!
– Como assim, tio? – Juju balança a cabeça.
– Pobreza é não ter acesso a serviços básicos, direitos conquistados por todos.
Vejam o caso recente de uma família isolada de ribeirinhos que me contaram
outro dia. Uma mulher teve seu corpo todo queimado porque vendia gasolina
para sobreviver. Guardava o combustível em local e recipientes inadequados.
Seu marido levou-a de canoa, remando, de sua comunidade até Muaná. Lá o
hospital não quis atendê-la. O marido teve que retornar à sua comunidade, e
ela, sozinha, sem acompanhante, somente com o apoio de quem ali estava,
teve que esperar o barco de linha até Belém. E lá se vão mais seis a sete
horas de sofrimento até Belém. Ao chegar a um ancoradouro, trapiche,
inadequado, a maré estava tão baixa que não era possível desembarcá-
la. Não havia ambulância para esperá-la, e quantas horas mais de
sofrimento... Mais tarde soubemos que ela não resistiu e faleceu. É assim
que vive a população da maioria das zonas rurais da Amazônia, esquecida,
desassistida, invisível.
– Tio, isso é muito sério. É a vida humana! – Juju protesta.
– Num acidente como esse, a família é obrigada a vender o que tem; muitas
vezes endivida-se, ou sacrifica aquela árvore que estava sendo guardada
para fazer a nova casa, as poucas cabeças de gado, reunidas ao longo de
muitos anos. Assim, a pobreza, por falta de opção, e não por vontade própria,
leva à exploração de recursos naturais até a exaustão. E, certamente, é quem
domina o dinheiro, o transporte, o conhecimento do mercado que compra a
madeira, o gado, o peixe, o açaí etc., é quem fica com a maior parte. Há mais
de um milhão de famílias de agricultores tradicionais na região que não têm
opção na hora de comercializar seu produto, tanto por seu isolamento, como
pela impossibilidade de esperar ou guardar produtos que são perecíveis.
Portanto, cuidado, meus sobrinhos, para não caírem na conversa de que
são os pobres que causam o desmatamento, que poluem as cidades, que
destroem o meio ambiente.
– Então, temos que ouvir as pessoas que estão na pobreza para compreender a
sua situação? – Antônio procura saber.
– Com certeza. Essa pobreza não é apenas material – a falta de dinheiro. É
falta de acesso a educação de qualidade, alimentação digna, transporte

Viagem à Amazônia | 22
João Meirelles

escolar, postos de saúde, hospitais, assistência técnica, bancos. Enfim,


são os direitos conquistados pela sociedade, e que não chegam à maioria.
Vivem à margem, daí chamarmos essas populações de marginalizadas.
E não estamos falando apenas de comunidades ribeirinhas. A maioria da
população das grandes cidades da Amazônia – Belém, Manaus, Porto Velho
– não tem acesso a direitos básicos.
– E quem vive pior, quem está na cidade ou na floresta? – Gabriel quer compreender.
– Quando as populações vivem em zonas rurais, mesmo que isoladas e
sem serviços públicos, até conseguem um nível razoável de vida, pois
pescam, caçam, mantêm uma pequena roça com alimentos básicos.
Desenvolveram por gerações conhecimentos para aproveitar os recursos
naturais nas diferentes épocas do ano e de maneira sustentável, ou seja,
o ambiente mantém-se a longo prazo. Mas, mesmo assim, a maior parte
do conhecimento científico e tecnológico, que deveria estar disponível,
raramente melhora a vida de quem está no meio rural na Amazônia. O que
conhecemos de manejo florestal, pesca, piscicultura e agricultura jamais
poderia ficar guardado nas gavetas dos órgãos públicos. Deveria chegar à
casa de cada uma das famílias do meio rural da Amazônia.
– Mas por quê? Não entendo como isso acontece – Juju balança a cabeça.
– Porque assistir os pobres e miseráveis não dá voto. Porque montar um
eficiente sistema de assistência à saúde, educação e assistência técnica e
extensão rural não interessa a quem está no poder. A pobreza maior é não
ter acesso àquilo a que se tem direito.
– Nossa, tio, isso é muito forte. Vou anotar aqui na minha caderneta, vou me
lembrar sempre desta frase: a pobreza maior é não ter acesso àquilo a que
se tem direito! – Gabriel sente-se mais responsável com essa sua colocação.
– Estou gostando de ver. É assim mesmo que temos que encarar esta nossa
viagem. É uma imersão no Brasil profundo, no Brasil que não está na
telinha do celular, nas mídias sociais, na televisão. Enfim, não é parte da
preocupação da maioria dos brasileiros porque é invisível, é desconhecido,
o Brasil dos grotões! Esta conversa não interessa a quem se diz parte da
elite econômica e política, ela incomoda. Esta Amazônia é maior do que
imaginamos, é a nossa sala de aula, cada ribeirinho é um professor da
adaptação humana ao meio ambiente, uma lição de vida. E aqui, debaixo do
pé de árvore – como diz o grande educador popular mineiro Tião Rocha –,
aprende-se tanto ou mais que numa sala de aula.
– Puxa, é mesmo, quanta coisa a gente aprendeu desde que a gente chegou

Viagem à Amazônia | 23
João Meirelles

aqui! – Antônio sai de sua quietude.


– Caríssimos, como sempre diz a minha amiga Paula Sampaio, grande
fotógrafa, vamos continuar com o tema das florestas tropicais. O Brasil é o
país que mais possui florestas tropicais e o que mais as destrói. Eu tenho
é vergonha de dizer isto: em cinquenta anos, destruímos uma área de
floresta amazônica superior a setenta milhões de hectares (setecentos mil
quilômetros quadrados). É o equivalente à soma dos territórios da França
e da Itália. Em termos de Brasil, é como se todos os estados do Rio Grande
do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo
tivessem sido desmatados juntos e em apenas cinquenta anos!
– Mas, tio, para que tanta destruição? – Antônio comenta.
– Olhando assim, de longe, parece não fazer sentido. Mas diversos fatores
estão em jogo. É a ganância, o egoísmo que prevalece sobre o interesse
público, é a apropriação do que pertence à Nação para fins privados.
A expansão da criação de gado (a pecuária bovina) é a principal causa,
respondendo por mais de oitenta por cento do desmatamento. O plantio de
soja é uma causa importante, especialmente no encontro da Amazônia com
outros biomas, com o Cerrado, em Mato Grosso e Rondônia, e com o Cerrado
e a Caatinga, no Maranhão. Também contribuem para isso a abertura de
novas estradas, a retirada da madeira ilegal, o garimpo, a expansão urbana e
as grandes obras, como hidrelétricas e os linhões, que levam energia para o
restante do Brasil. Em outros continentes, o desmatamento também é grave.
Na Ásia, deve-se à expansão de áreas para alimentar a população (como
o arroz) e à agroindústria da palma (dendê), da borracha (seringueira) e à
exploração madeireira. Na África, a busca por lenha, madeira e a expansão
da agricultura e da pecuária estão entre as principais causas. Nos outros
países da América tropical, a principal razão também é a pecuária bovina.
– Tio, explica direito essa história de desmatamento? – Gabriel quer entender melhor.
– Até a década de 60 do século XX, quando a Amazônia não estava ligada por
estrada ao restante do Brasil, o desmatamento era insignificante. Ocorria
em pequenas áreas, plantava-se ali, manualmente, por dois a três anos
e, quando a produtividade caía, abandonava-se a área. Assim, a floresta
descansava por muitos anos até o mesmo local ser utilizado novamente. O
gado utilizava as pastagens naturais, do Marajó, de Roraima ou de várzeas.
A pressão do restante do Brasil e também mundial por mais produtos
baratos – carne, madeira, grãos, minérios etc. – muda o cenário. A população
da Amazônia passa de cinco milhões em 1960 e aproxima-se de trinta
milhões em 2020, cresceu seis vezes em cinquenta anos! Se cinco homens

Viagem à Amazônia | 24
João Meirelles

desmatavam um hectare em um mês, tratores de esteira e motosserras


o fazem em questão de horas. Se o mato era controlado com dezenas de
homens roçando o pasto, agora produtos químicos são lançados de avião.
Atingimos o ápice da civilização, nossas máquinas levam-nos ao espaço e,
ao mesmo tempo, temos a mesma postura perante os ambientes naturais.
Pasto tem valor. Mato não tem. Aliás, chamamos a mais rica floresta do
planeta de “mato”, ou seja, algo desprezível!
– Tio, isso é deprimente! – Juju protesta.
– Temos que reconhecer o direito da própria Natureza. Da Mãe Terra, o
direito de viver. Até hoje só se considera como progresso, desenvolvimento
quando a Natureza está domada, controlada, cercada, dividida, servindo o
homem. Só que essa maneira de pensar está levando a mudanças profundas
no planeta, como as mudanças climáticas, de que falaremos depois. Na
Amazônia, houve uma perda de vinte por cento da região em cinquenta anos
em troca de quê? Quem se beneficiou com tudo isso?
– Tio, tu estás triste? Por que teus olhos brilham tanto? – Juju percebeu.
– Estou emocionado, tudo isso me deixa muito sensível. Estou triste, pois a
minha geração fracassou de maneira absoluta. Precisamos encarar de frente
o que está acontecendo – o que é preciso para nos salvarmos enquanto
espécie humana e, ao mesmo tempo, conservarmos um planeta vivo e feliz,
saudável para nós e para as futuras gerações. Afinal, só temos este planeta,
só temos esta Amazônia.
– Tio, lindo este “planeta feliz”, acho que isso diz tudo. Vai direto pro meu
diário. Muito obrigada por tuas lágrimas. Estou muito emocionada também –
Juju respira fundo.

Diário da Juju: Querido diário, é disto que precisamos:


de um “planeta feliz”. Se a humanidade for boazinha,
irá permitir que a Terra, a Mãe Terra também seja feliz.
Todos merecem, homens, animais, rios, oceanos, florestas,
todos são seres vivos, a Terra é viva. Viva a Terra feliz!

***

Viagem à Amazônia | 25
João Meirelles

– Quero desafiar vocês. Quem é então o responsável pelo caos social e


ambiental que está acontecendo na Amazônia?
– Tio, que pergunta difícil! Não dá pra fazer outra? – Antônio contesta.
– A pergunta é para todos, sem exceções! Não é apenas para os grileiros,
garimpeiros e outros contraventores. É também para os fazendeiros e
para os políticos de plantão e os seus familiares. Quero dizer que somos
todos responsáveis. A diferença entre o que se passa na Amazônia e o que
ocorreu nas outras regiões do Brasil é que hoje há uma clara noção de nosso
impacto, de nossa enorme capacidade de destruição. As mídias sociais, os
meios de comunicação, as pesquisas científicas mostram tudo, e de forma
escancarada. Sabemos na hora o que aconteceu no interior do Acre! Tudo ao
vivo! Quando Chico Mendes, o grande líder seringueiro, foi assassinado, bem
próximo do Natal em 1988, mesmo sem termos as mídias sociais como hoje,
o mundo inteiro ficou sabendo! Não dá para esconder a sujeira debaixo do
tapete, não dá mais para fingir que o problema inexiste...
– O que eu estou entendendo é que o Brasil tá fugindo de sua
responsabilidade. Não quer assumir o seu compromisso com a humanidade.
Não entendo como um país que se diz tão legal, tão bonzinho tem esse
comportamento. O Brasil não quer a Amazônia, por isso está jogando fora a
Amazônia! – protesta Gabriel, indignado.
– Gabriel, essa é a melhor colocação tua! Parabéns. Tu compreendeste
tudo, de forma simples e direta. Temos que modificar completamente a
nossa noção do que é ser civilizado, do que é selvagem, do que significa
desenvolvimento! O que parecia ser bom agora é errado. As pessoas
precisam ter informações corretas, com base científica, para tomar decisões.
Precisam discutir as questões, senão ficarão eternamente perdidas, sem
saber o que fazer.
– Tio, eu acho que tou meio perdido! – confessa Gabriel.
– Excelente, Gabriel! É esta a minha intenção: que vocês “se percam” na
Amazônia. Tomem um “banho de realidade” e busquem, cada um a sua
maneira, meios para compreender o que se passa, os caminhos para sairmos
desta imensa enrascada em que, nós, brasileiros, nos metemos. Aliás,
por pura incompetência, pois delegamos as nossas decisões a uma elite
empresarial e política que, em sua maioria, só sabe nos explorar e destruir
este grande patrimônio que recebemos das gerações anteriores.
– Ufa, tio, que difícil! Pensei que seria uma viagem de passeio, muita sombra e
água fresca... – Juju protesta.

Viagem à Amazônia | 26
João Meirelles

– Ah, teremos sim, momentos de contemplação, de música, de dança e de


descanso. Mas agora é hora de decifrarmos o que estamos vendo. Caso
contrário, iremos passar pelos lugares e vocês não estarão suficientemente
alertas e sensíveis para as diversas problemáticas que se mostrarão na
nossa frente.
– Puxa, tio, só esta conversa já valeu a viagem! É isto que temos que fazer:
olhar, discutir, pensar – Antônio sente-se realizado.
– Exatamente, e a melhor maneira de aprender o que é a Amazônia é ouvindo
as diferentes vozes – dos indígenas, quilombolas, povos e comunidades
tradicionais, dos migrantes recentes, de quem pesquisa a região, dos
técnicos das organizações da sociedade civil, do governo, dos empresários,
dos movimentos sociais, enfim, ouvir, ouvir, ouvir.
– E dos jovens, não é, tio? Dos meninos e meninas! – Juju enfatiza.
– Tá certo, mas, se for para ouvir todo mundo, a viagem vai demorar a vida
inteira! – Antônio brinca.
– Exatamente. De agora em diante, vocês estão contaminados com o vírus
da “amazonite”, ou seja, vão preocupar-se sempre com a Amazônia. E essa
“doença contagiosa” é permanente, cabe a vocês manterem-se atentos ao
que pode prejudicar a região e seus moradores!

***

– Bem, agora quero contar sobre algo que li outro dia num jornal de Belém,
onde eu vivo. É sobre um pecuarista de Ourilândia do Norte, município do Sul
do Pará. Ele foi multado porque havia desmatado quase nove mil hectares
num único ano.
– Nove mil hectares são noventa quilômetros quadrados! Nossa! – Antônio faz
as contas.
– Inacreditável, não é? É como se andássemos em uma estrada por quarenta
e cinco quilômetros vendo tudo desmatado em um quilômetro de cada
lado! Só que, da outra vez que ele foi multado, ele já havia destruído mais
de dois mil hectares. Quando perguntaram ao filho do fazendeiro por que
estava praticando esse ato, ele disse que sabia que tirar o mato era crime.
E comentou: – Nós fazemos isso porque todo mundo também faz. Isso me
chocou tanto! Eu fiquei pensando no porquê dessa atitude. E concluí que a
maioria dos fazendeiros na Amazônia agiria da mesma maneira. E estamos

Viagem à Amazônia | 27
João Meirelles

falando de produtores de todos os tamanhos: os invasores, os produtores


familiares, os médios e grandes fazendeiros.
– Nossa, tio, nunca tinha pensado nisso! – Gabriel arregala os olhos.
– Há uma distância enorme entre a noção urbana da Amazônia e a visão
daqueles que vivem de atividades no meio rural. Para quem está no campo,
o jeito mais barato de limpar o pasto é com o fogo. A maneira de ganhar
dinheiro rápido é desmatando para plantar pastos e criar boi e, assim que
der, vender a terra e invadir um outro local. Quem invade terras é chamado
de grileiro, ele realiza uma grilagem. A maior parte dos fazendeiros na
Amazônia são grileiros, invadiram terra pública, ou seja, terra de todos os
brasileiros. Em verdade, poucos se preocupam em seguir a lei, pois, como
disse esse criminoso, “todo mundo também faz!”. Assim, o que era para ser
caso de polícia vira a história do lugar! A maior parte das iniciativas para
seguir a lei, ser cuidadoso, respeitoso é deixada de lado.
– E, para quem está na cidade, o fogo é destruição... – completa Juju.
– Exatamente, e o nosso desafio é ter uma visão clara do nosso impacto no
planeta, conhecer os limites naturais. O que pouca gente lembra é que
as regiões agrícolas e florestais são os grandes provedores de água, de
alimentos e de outras matérias-primas para as cidades, cada vez maiores e
demandando mais e mais.
– E mais gulosas! – Juju completa.
– Muito bem, Juju, essa é a questão! Consumo, a palavra-chave. É a
pressão do consumo que leva à destruição dos ambientais naturais, à sua
transformação, na maior parte das vezes, de forma irreversível! O nosso
desafio é examinar a questão do ponto de vista cultural. Quero dizer que
precisamos compreender a lógica da destruição, a cultura que reconhece o
destruidor como um herói. Há poucas décadas, a cultura dominante achava
normal haver escravidão, matar índios... Hoje pouquíssimos se comovem
com a destruição de rios e de terras em troca de algumas gramas de ouro,
de madeira, de carne de boi... Somos movidos pela cultura da destruição e
do desrespeito!
– Então o desmatamento na Amazônia é uma questão cultural? – Gabriel olha-
me de frente, muito sério.
– Em primeiro lugar, é preciso entender que desmatamento é consequência
e não causa. A causa é o aumento do consumo de carne, de soja (que
na verdade serve para alimentar animais que serão comidos depois), de
madeira, de minérios, de energia hidrelétrica, de açaí etc. E a Amazônia é a

Viagem à Amazônia | 28
João Meirelles

região que pode prover a população desses produtos e serviços de maneira


barata e imediata. Barata, pois não queremos saber o preço da destruição,
do sofrimento dos indígenas e dos povos tradicionais. Raramente paramos
para raciocinar sobre os impactos dessa decisão. O desmatamento tem
implicações globais, além de todos os problemas para a região. Eu posso
destacar a perda de biodiversidade, com a extinção de espécies, a piora no
aquecimento global, com a emissão de mais dióxido de carbono (CO2), de
metano (CH4) e de outros gases nocivos. O futuro da Amazônia tem mais a
ver com o consumo dos habitantes de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e
das grandes capitais do mundo do que outro fator.
– Nossa, tio, então somos nós que estamos comendo a Amazônia? – Juju
protesta, ao mesmo tempo que sente um peso enorme por essa constatação.
– Exatamente, é o consumo crescente que pressiona a ocupação do que antes
os espertalhões de plantão chamavam de “espaços vazios”! O interior do
Brasil, da Amazônia de “vazio” não tem é nada! Sempre foi ocupado por
milhares de anos por povos originários. Imaginem que na Amazônia havia
mais de dois milhões de pessoas antes da invasão europeia! Além disso, na
região se instalaram os quilombolas, fugindo das torturas e do sofrimento da
escravidão, além de centenas de milhares de pessoas que são consideradas
como “povos e comunidades tradicionais”, ou seja, os seringueiros,
castanheiros, pescadores artesanais etc.
– Incrível, tio, nunca pensei assim, estou até envergonhada! – Juju lamenta-se.
– O importante, minha sobrinha, é que compreendas essa situação toda,
que formes a tua opinião, baseada em dados científicos, em fatos reais,
que não te deixes levar pelos grupos que criam as fake news, amoldam a
história a seus próprios interesses. Pensem bem o seguinte: até a década de
60, o Brasil tinha uma fronteira pioneira de, digamos, uns dois milhões de
hectares, uma área do tamanho, por exemplo, de Alagoas, digamos.
– Tio, peraí, não entendi, fronteira pioneira? – Gabriel quer uma explicação clara.
– Desculpem-me, não falei muito sobre isso. O Brasil foi sendo ocupado pelos
migrantes de origem europeia desde o século XVI. Os ciclos econômicos
levaram à invasão de diferentes regiões, conforme necessitavam de terras
para cultivar e criar gado, madeira, minérios, energia etc. Assim, até a década
de 70, a tecnologia era bastante rudimentar. A derrubada de florestas, por
exemplo, dependia da força humana para o manejo do machado, das serras
manuais, etc. Tudo mudou com a mecanização. Se um grupo indígena,
antes da invasão europeia, demorava muitas semanas para derrubar um

Viagem à Amazônia | 29
João Meirelles

hectare de floresta para plantar, porque nem possuía machados e facões


de ferro, a chegada do ferro diminuiu esse tempo para menos de um terço.
Porém, a motosserra e o trator de esteira mudaram a história do planeta e
da Amazônia. Aquilo que exigia muitas semanas poderia agora ser feito em
poucos dias. Temos na Amazônia duas eras: a.M. (antes da motosserra) e
d.M. (depois da motosserra).
– Coisa seríssima isto, tio: antes da motosserra e depois da motosserra! –
Gabriel protesta.
– Por conta disso, a fronteira em expansão do Brasil sobre a Amazônia, o que
hoje chamamos de Arco de Desmatamento, passou a ocupar áreas enormes.
Na verdade, é a maior fronteira de ocupação da humanidade, uma área de
mais de cem milhões de hectares, invadindo, ao mesmo tempo, centenas de
territórios tradicionais. Para vocês terem uma ideia, essa fronteira equivale a
uma superfície maior que toda a região Sudeste do Brasil.
– Então a situação está muito grave! – Juju comenta.
– Com certeza. Pelo menos dois terços dos desmatamentos ocorrem nessa
área do Arco do Desmatamento. Só que esse arco se move em direção ao
coração da floresta, ao sul do estado do Amazonas, à região da “Terra do
Meio”, que está entre os rios Xingu e Tapajós, e mesmo à margem esquerda
do rio Amazonas, que muitos chamam de Calha Norte, no Amapá... Onde
houver acesso por estrada, o desmatamento ocorre com maior intensidade.
Apesar da diminuição da taxa de desmatamento em alguns anos, seja pelas
sucessivas crises econômicas, seja pela maior eficiência da fiscalização, não
há ilusão: a pressão por madeira, carne, soja etc. só aumenta. No governo do
presidente Bolsonaro, porém, o desmatamento explodiu...
– Como assim, aumentou? – Juju, indignada.
– Exatamente, o governo federal, sinalizando que pouco punirá quem desmata,
invade área pública, realiza atividades ilegais, como a garimpagem, deu
o sinal verde para a bandidagem mostrar a sua força. Assim, é o Brasil
oficial que incentiva a destruição do próprio país! O próprio poder público
promove a ocupação das áreas pouco alteradas. Primeiramente, há uma
leva de invasores, apoiados ou não por dirigentes públicos ou por interesses
privados. A seguir, vem o governo, regularizando as invasões por meio de
assentamentos ou de simples reconhecimento de posse, provendo energia,
estradas e benfeitorias. Como muitos apostam na ineficiência do governo,
na falta de punição, e visam os imensos lucros que terão se apropriando
de bens públicos, preferem a ilegalidade. Nesse caldeirão, confundem-se

Viagem à Amazônia | 30
João Meirelles

aqueles que realmente não têm acesso à terra e são efetivamente pobres
e miseráveis, os sem-terra, e aqueles grileiros e infratores, que utilizam a
invasão para esquentar dinheiro, roubar madeira, vender terras ilegalmente,
e que veem nisso um bom negócio! Para piorar, muitas indústrias,
especialmente os frigoríficos, não se importam de comprar a carne dos bois
que destroem a Amazônia. Pior, o consumidor não sabe disso. Mas não se
iludam, a maioria dos consumidores que sabem que o boi destrói a Amazônia
não troca o seu bifinho por outro produto, nem exige maior responsabilidade
dos produtores, dos frigoríficos e dos supermercados perante o planeta.
– Que vergonha, tio, vou querer saber de onde vem cada pedaço de carne que
eu como! – disse Antônio.
– E essa é uma das razões por que a maior parte dos ocupantes de terra na
Amazônia, tanto pequenos quanto grandes, tem uma situação fundiária
precária. Assim, são ocupantes, têm a posse, mas não têm a documentação
da terra, o título registrado em cartório, a efetiva propriedade.
– Que coisa louca, tio! Então a Amazônia é uma grande invasão? – Juju pergunta.
– Praticamente sim. Uma pequenina parte refere-se a áreas legalizadas e
reconhecidas por títulos públicos. Nesse cenário, os negócios que mais
convivem com a precariedade da lei são a criação de gado bovino, o
garimpo, o plantio de soja e a venda de madeira ilegal. Quem muitas vezes
financia o desmatamento é a própria venda da madeira que há na área a
ocupar. Em seguida ao desmatamento, a criação de gado é a atividade que
é possível nos primeiros anos, afinal, o boi é rústico e convive com uma
pastagem ainda em formação.
– Que coisa feia... – Juju, sempre indignada.
– Vejam bem, esses produtos serão vendidos a preços baixos. A madeira não
estraga facilmente, e o boi, se preciso, pode até caminhar, ele não apodrece
no caminho. No fim das contas, a região produz carne e madeira baratas, pois
não se pagam diversos custos que, numa região consolidada como o Sudeste
ou o Sul do Brasil, são sempre considerados.
– Como assim, não se pagam diversos custos? – pergunta Antônio.
– Os custos que não estão computados no preço, o que os economistas
chamam de “externalidades”. Há tanto os custos que deveriam ser pagos
em qualquer região, porque há leis em vigor, como é o caso da legislação
trabalhista, ambiental e fiscal, como os custos não considerados,
relacionados à dilapidação dos recursos naturais, entre os quais, por
exemplo, o preço da biodiversidade. Quando substituímos uma floresta

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João Meirelles

tropical com mais de seiscentas espécies de vegetais superiores diferentes


por hectare por um pasto para o gado, com uma única espécie de capim
exótico, qual é o custo disso para a diversidade de vida do planeta?
– Iche, difícil calcular! – Gabriel pontuou.
– Mas o que é exótico, tio? – Juju pergunta.
– Antes de seguir na questão da externalidade, o conceito de exótico
é muito importante. Na biologia, é toda planta ou animal que veio de
outro ecossistema ou, mesmo, de outro bioma. No Brasil, os animais
exóticos predominam nas paisagens modificadas pelo homem – o boi, o
cavalo, a galinha e mesmo a abelha, do gênero Apis. Exótico no sentido
“exterior ao sistema”. Bem, voltando à externalidade, um outro custo,
que, recentemente, passou a ser calculado por novas metodologias, diz
respeito aos serviços ambientais. Quanto custa ter a água limpa de um
rio? Quanto custa a chuva que cai todos os anos, tanto a da região, como a
que a Amazônia envia para o resto do Centro-Sul do Brasil? Quanto custa
reter milhões de toneladas de carbono na floresta amazônica, evitando que
esse carbono contribua, ainda mais, para o aquecimento global, se essa
floresta for destruída? Quanto custa a perda dos solos pela má exploração
da agropecuária e do garimpo, com o consequente entupimento dos rios? E
quanta custa a polinização oferecida pelas abelhas, pelos besouros, pelas
borboletas, pelos morcegos e pelas aves? Pois é, nenhum fazendeiro ou
empresa quer calcular esses custos e embuti-los no custo da carne bovina,
da soja, do pescado, do móvel de madeira!
– Realmente, tio, é coisa séria! – argumenta Juju.
– Essa perda do solo me preocupa, só não sei o que fazer – palavras de Gabriel.
– Olha, Gabriel, um amigo meu, o Carlos Miller, um dos grandes entendedores
da Amazônia, comenta o seguinte: como é que uma pessoa que rouba um
pãozinho de trinta centavos na padaria, porque está desesperado de fome,
vai preso e um fazendeiro que deixa a erosão levar embora os solos do Brasil,
milhares de toneladas de solo todos os anos, nada sofre? Pelo contrário, é
elogiado, ganha prêmios de empresário do ano e tem prestígio e carro novo
na porta! E isso não acontece só na Amazônia. Por que vocês acham que
todos os anos há grandes enchentes, invadindo as cidades brasileiras de
norte a sul? Porque entupimos os rios de terra por causa de dezenas de anos
de exploração irresponsável da pecuária e das atividades agrícolas. Porque
desmatamos as margens e não mantemos as matas ciliares, que funcionam
como os cílios que protegem os olhos. Mas voltemos às externalidades...

Viagem à Amazônia | 32
João Meirelles

– Entendi, temos que vigiar os fazendeiros, os construtores de estradas, o


governo, para ver como cuidam do solo! – Gabriel, mais tranquilo agora.
– Perfeito. É a sociedade civil assumindo o seu papel. Quem deve vigiar o
governo é a sociedade. Muitas vezes temos que aturar governantes mal
intencionados e irresponsáveis, que têm agendas próprias, muito diferentes
dos compromissos com a sociedade como um todo. Vejam que é uma
tarefa permanente e não uma atividade. E as externalidades não terminam
aí! Há, ainda, os custos para a economia local de quem vive mais na base
da troca, de quem planta ou colhe para se manter, e que tratamos como
“subsistência”. Assim, se hoje as comunidades tradicionais têm acesso a
frutas, pesca e caça, qual seria o custo se tivessem que comprar esses bens
no mercado?
– Tou ficando com a cabeça quente! Pensei que as férias fossem pra
descansar... – Antônio desespera-se.
– E tem mais: e o custo cultural? O custo social? Quanto vale o esforço de
uma nação indígena que preserva toda uma região por gerações? E a
inundação de uma cachoeira, considerada um lugar sagrado, qual o prejuízo
quando é afogada por uma usina hidrelétrica? Quanto vale a tradição de
um mito, como o Jurupari, contado por milhares de anos de maneira oral,
geração a geração?
– É mesmo, tio, é tanta coisa pra pensar! – Juju comenta.
– Justamente. Esses assuntos precisam ser discutidos seriamente se
queremos ver a Amazônia respeitada. Não dá para seguir na leviandade
e dizer que boi é progresso, que soja representa divisas para o país, que
o ouro do garimpo movimenta a economia, isso é conversa de mentiroso,
de quem quer enganar e empobrecer as futuras gerações, tirando todo
o proveito para si. Lembrem-se, qual a frase que combinamos nos
preparativos desta viagem?
– Só se dá valor ao que se conhece! – diz Juju.
– Muito bem. E estamos aqui falando de conhecimento sobre o ambiente, a
sociedade, a cultura, não do método de desinformação e de propagação
das injustiças que domina este país. E, quando falamos em “valorização”,
não estamos definindo um preço para a Amazônia e, sim, um valor, que
ultrapassa o sentido meramente econômico, é o valor cultural e social,
valor permanente, inegociável, público e não privado. São valores, atributos
intrínsecos, ou seja, específicos desse conjunto de bens. São intangíveis pois
não temos como pegá-los e levá-los embora.

Viagem à Amazônia | 33
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– Ei, tio, então tem que andar com calculadora no bolso? – pergunta Gabriel,
num tom de brincadeira, mas logo percebendo que a sua proposta poderia
ser uma boa ideia.
– De certa maneira, sim, Gabriel. Se compreendermos o valor de cada
serviço e produto que a Natureza oferece, que a cultura e a sociedade nos
proporcionam, com certeza vamos valorizar o que efetivamente tem que
ser protegido, acalentado, abraçado! Mas, para concluir a nossa conversa,
o que proponho é que encaremos de frente os problemas. Assim, para
os comedores de carne bovina, em cada bifinho que tu comes, é preciso
considerar esses valores!
– Então o tio está querendo dizer que a carne da Amazônia é barata porque não
pagamos as tais das externalidades? – Antônio conclui.
– E-xa-to! Nós, brasileiros, não damos valor algum à Amazônia. Preferimos vê-
la na forma de bife em nossos pratos a vê-la como um ambiente respeitado
e conservado, em que seus povos podem viver em paz e harmonia. Essa
lógica explica por que o rebanho bovino da Amazônia passou de um milhão
de cabeças em 1960 e caminha para cem milhões nos próximos anos.
Vejam só: transferimos metade dos bois do Brasil para a Amazônia! A maior
transferência de animais da história da humanidade, um desastre ecológico
sem precedentes na história do planeta.
– Tio, mas eu não entendi, o que tem de errado em ganhar mais dinheiro? Em
ficar rico criando boi? – Juju entra na conversa.
– Errado é não incluir todos os custos sociais, ambientais e econômicos no
produto. Nós, consumidores, aceitamos que nos entreguem um produto
dessa forma. Desconhecemos o impacto de nosso consumo, deixamos
que uns poucos nos digam que a carne da Amazônia é legal. Na verdade,
é imoral a carne da Amazônia, em alguns anos isso será tão absurdo como
foi a escravização que regeu a história deste país por séculos. Estamos
deixando para as próximas gerações uma fatura muito maior, tanto global,
com o CO2 liberado, quanto local, pela concentração de renda, pelo atraso
na educação, na saúde etc. E pior, perpetuamos a cultura da impunidade, do
“tudo pode”, aceitamos a destruição ambiental e social como a única forma
de “desenvolvimento”. Só que essa cultura da impunidade é o que nos torna
menores, desprezíveis. O mundo nos vê como moleques, irresponsáveis...
– O tio fica vermelho mesmo, hein, indignado! – Antônio percebe.
– E não é para ficar? O que se faz à Amazônia atinge a todos. Não se trata de
nacionalismo, ao afirmar que só o brasileiro pode dizer o que se deve fazer

Viagem à Amazônia | 34
João Meirelles

da floresta. Afeta o futuro da humanidade, as chances de sobrevivência


nossa na região e, até, como espécie humana neste planeta.
– Explica melhor essa história de sobrevivência da humanidade, é a segunda
vez que tu falas disso! – Juju interpela-me.
– A espécie humana depende de uma série de condições para sobreviver.
Apenas para enumerar três delas, diretamente relacionadas à Amazônia:
a primeira, a água doce limpa, a segunda, relacionada à quantidade de
gases na atmosfera, e a terceira, mais difícil de perceber, a conservação
da biodiversidade. A água no planeta é finita, não vai aumentar, e a
disponibilidade de água doce limpa é pequena. No caso da Amazônia,
não monitoramos devidamente a água doce da região, tanto a que está na
atmosfera, nos solos e rios, quanto, quem diria, a que está nos aquíferos no
subsolo. Só o megadelta dos rios Amazonas-Tocantins representa um quinto
da água de todos os rios do planeta somados. Ficamos falando que é o lugar
que tem mais água do planeta, mas não tomamos a sério essa questão!
– Iche, tou vendo que eu nunca prestei atenção na água – Juju desembuchou...
– Pois é, a segunda condição refere-se à atmosfera. As queimadas e o
desmatamento para a implementação de uma agricultura e de uma pecuária
de alto impacto estão sendo realizadas em uma escala jamais vista na
história humana. A ciência classifica esse impacto nas mudanças climáticas
como resultantes da “mudança no uso da terra”. Entre os principais efeitos,
há uma liberação sem precedentes de gases na atmosfera que causam
o “efeito estufa” e aceleram as mudanças climáticas, com o aumento de
temperaturas, mudanças no regime de chuvas, ventos etc. Os principais
gases são o dióxido de carbono (CO2) e o metano (CH4). Em 2019, o Brasil
tornou-se o sexto país que mais emitiu gases de efeito estufa. E as emissões
brasileiras de gases têm um forte componente relativo ao desmatamento,
às queimadas e à destruição de ambientes naturais. Na maioria dos países,
as emissões são devidas, principalmente, à queima de combustíveis fósseis,
carvão mineral, gás natural e petróleo.
– Que coisa difícil! E nós vamos ficar de braços cruzados? – Gabriel reclama.
– Para agir, é preciso compreender o problema. E vamos conversar muito
sobre isso. O Brasil assinou diversos tratados internacionais para combater
as mudanças climáticas e cuidar do meio ambiente, mas somos um dos
países que mais violam os acordos que se comprometeram a cumprir. Vamos
falar então da terceira condição para viver: a biodiversidade. Essa questão
é ainda mais complexa. Não sabemos como os ambientes se comportarão

Viagem à Amazônia | 35
João Meirelles

com a destruição da maior parte das florestas e a consequente extinção em


massa de espécies vegetais e animais. Nos ambientes naturais da Amazônia,
podem estar espécies para a cura de doenças, o controle da poluição do ar, a
melhora da alimentação e outros fins úteis para a vida do homem na Terra.
– Tio, temos que virar esse jogo! – entusiasma-se Antônio.
– Exatamente, e a melhor maneira de avaliar como deveríamos cuidar da
Amazônia é ouvindo sua gente, as organizações da sociedade civil e os
cientistas. E, também, claro, aprendendo com os erros e experiências
bem-sucedidas em diversas partes do mundo. Uma coisa é certa: nenhum
brasileiro quer ver a Amazônia reduzida a menos de vinte por cento de
sua área original, como se passa com a Mata Atlântica. Quem diria que
destruímos mais de um milhão de quilômetros quadrados de florestas que
ocupavam boa parte da região Sul e Sudeste e se estendiam por boa parte
da costa do Nordeste? Cuidar da biodiversidade é urgente, porque, uma vez
perdida uma espécie, não há como voltar atrás e recuperá-la.
– Você já falou em biodiversidade tantas vezes. Afinal, o que é isso? –
questiona Gabriel, interessado.
– Biodiversidade é a diversidade de formas de vida, de vegetais e animais.
Estamos falando desde os menores seres, dos microrganismos, algas e
musgos aos grandes mamíferos e imensas árvores. Todos os estudos sobre
as florestas tropicais apresentam a Amazônia como a mais biodiversa do
planeta. O que chamamos de “floresta” na Alemanha nada tem a ver com
a “floresta” tropical. Aqui há pelo menos dez vezes mais formas de vida e,
provavelmente, alguns milhares de vezes mais espécies distintas, como
microrganismos, insetos, ou vegetais e animais. Biodiversidade não se
resume a contar espécies, como em uma coleção. Mais importante são as
inter-relações entre as espécies. Quanto mais espécies, mais inter-relações,
isso cresce em projeção geométrica, formando ecossistemas distintos e
bastante complexos. Centenas de espécies, milhares de inter-relações.
Milhares de espécies, milhões de inter-relações, centenas de milhares de
espécies, bilhões de inter-relações.
– Que coisa linda, tio, parece matemática! – Antônio, o calculista do grupo.
– É isto, Antônio, a Amazônia é uma explosão de vida e está mais próxima da teoria
do caos. Só se compreende uma região caótica a partir de novas perspectivas,
adotando-se uma abordagem mais flexível, em que há espaço para o mito, a
catástrofe, a difusão, a qualidade em detrimento da quantidade, o não linear,
a mudança, a instabilidade, como propõe a teoria da complexidade. A floresta

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tropical é um ambiente em permanente mutação, inacabado, incompleto, um


conjunto de inter-relações em andamento, qualquer tentativa de simplificá-lo
empobrece-o e não nos ajuda a compreendê-lo. Entre os grandes estudiosos,
está o filósofo Edgar Morin, que teoriza a complexidade, e Fritjof Capra, que
segue a noção de ecologia profunda, de Arne Næss. Para Capra, o homem é parte
da teia da vida, é um fio que participa dessa teia e que vive em rede.
– Que lindo – teia da vida! – Juju faz um gesto largo com os braços, como a
traçar uma grande teia cobrindo-a como um manto sagrado.
– Do ponto de vista do conhecimento sobre a natureza, a gente deveria olhar a
Amazônia como se admira o universo – com reverência, cuidado e medo –,
da mesma maneira que vemos milhões de galáxias explodindo de felicidade.
– Que poético, tio! – Juju aplaude.
– Olhem, acho que só iremos salvar a Amazônia da ganância e da cobiça com
muita poesia, literatura de qualidade, respeito a sua cultura, seus povos,
árvores e águas. É uma visão franciscana, mas é preciso!
– Tio, que história é essa de visão franciscana? É o santinho pobre da Igreja
católica? São Francisco de Assis? – pergunta Gabriel, o ambientalista.
– Esse mesmo. Temos que ser generosos, amorosos, refletir sobre cada ato. A
megabiodiversidade precisa ser compreendida e protegida. O que complica é
o homem querer disciplinar a natureza. A oração de São Francisco é o melhor
guia para ser cuidadoso com os seres vivos.
– Como assim, o homem pode alterar tudo? – Gabriel pergunta.
– Até certo ponto. Duvidava-se que o homem modificaria o clima. “Os céticos
do clima”, também chamados de “negacionistas”, não querem aceitar o
que a ciência tem provado em milhares de estudos: que o homem está
modificando significativamente o clima e a tal ponto que muitos cientistas
falam sobre a era geológica influenciada pela intervenção humana – o
Antropoceno – “antropos”, relacionado ao homem, e “ceno”, para marcar o
período geológico.
– Taí, gostei, Antropoceno, para marcar as besteiras que o homem faz na Terra.
Tá na hora de entrarmos na era do Feminiceno! As mulheres é que sabem
cuidar bem das coisas – rebate Juju, sob protesto de Antônio e Gabriel.
– Certíssima, Juju, a maior parte das religiões e mitos de diversos povos indica
que quem cuida é a mulher...
– Tio, tio, sabe o que eu reparei: tu falas muito da Amazônia como “Ela”! – Juju,
emocionada, intervém.

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João Meirelles

– É verdade, a Amazônia é feminina. Aliás, a palavra “amazona” é sinônimo


de mulher. A Terra também é uma palavra feminina. Vejam vocês que
maravilhosa esta compreensão sobre a Mãe Terra desenvolvida pelas
culturas andinas no Peru, Bolívia e Equador – Pachamama. Segundo esse
conceito, que agora é parte até das constituições da Bolívia e do Equador, a
natureza da Terra tem direitos e deve-se incorporar a visão de que é preciso
o “bem viver e conviver”, este termo tão maravilhoso, que vem da cultura
Aymara, que habita os Andes – Suma Quamaña.
– Para os gregos, seria a deusa Gaia, que empresta seu nome à “Teoria de
Gaia”, proposta pelo cientista James Lovelock, que considera a Terra como
um ser vivo, um grande organismo, capaz de se manter e de se autorregular.
Gaia estaria em perigo a partir das intervenções humanas no equilíbrio
biogeoquímico. Segundo a teoria de Lovelock, o que fazemos a uma região
afeta as demais. Daí que as mudanças nas chuvas da Amazônia teriam um
impacto em diversas regiões do planeta. Pior, seria difícil calcular e prever
a dimensão de tal impacto! Hoje as evidências científicas mostram que
regiões antes cobertas por florestas úmidas, como o Nordeste Paraense,
já sofrem mudanças visíveis na disponibilidade de água no nível do solo,
menos chuvas, temperaturas cada vez mais altas e assim por diante... Com o
desmatamento e a substituição das matas por pastagens e pela agricultura
anual, e com o uso intensivo de fogo todos os anos, a situação só tende a
piorar. Por exemplo, quem tinha água de poço a quatro metros, hoje só vai
encontrá-la seis metros ou mais. Outro indicador é que diversos córregos,
antes permanentes, agora são intermitentes, ou seja, só há água no período
da chuva. Sem a cobertura vegetal da floresta, a umidade não permanece,
e o calor e os ventos secam ainda mais o ambiente, o que torna a vegetação
ainda mais seca e mais vulnerável ao fogo.

***

– Uma chuva enorme caiu e despertou a curiosidade de Antônia, que perguntou:


– Tio, estou curioso para entender por que na Amazônia tem tanta chuva?
– O ciclo da água é muito peculiar na Amazônia. Pode-se compreender a forte
relação entre a floresta e o clima. De maneira bem simplificada, cerca de
metade das chuvas que caem na região vem do oceano Atlântico, no sentido
leste para oeste. A outra metade é reciclada na própria região. Quando
as nuvens vindas do oceano encontram a terra, a chuva cai. As folhas, os

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troncos, enfim, o ambiente está muito quente no momento da chuva. E,


com esse calor, cerca de um quarto da umidade retorna para as nuvens na
forma de vapor de água. É a chamada evapotranspiração. Uma parte da
chuva é retida pelas próprias plantas, mantendo o sistema sempre úmido
e controlando a temperatura. As árvores são verdadeiras bombas de água,
puxando a água do solo e devolvendo-a para a atmosfera quando transpiram.
O outro um quarto segue o caminho do oceano, drenado pelo complexo
sistema fluvial.
– Puxa, então a água que sai pelos rios parece bem pouco! Mais uma coisa, tio,
eu ouvi falar que a Amazônia seria o pulmão do mundo? – Gabriel, um pouco
perdido, pergunta.
– Não, esse é um erro bem comum, é uma fake news. Melhor seria dizer que
a Amazônia é um grande circulador de água, que lança umidade às regiões
vizinhas e doa muita água para o Centro-Sul do Brasil, o norte da Argentina
e o Paraguai, por exemplo. James Lovelock compara a Amazônia ao rim,
um órgão essencial, ou seja, sem o rim, o homem não sobreviveria, e, sem
a Amazônia e as florestas tropicais, o planeta seria outro, pois não teria
esse grande distribuidor de umidade, e a civilização humana provavelmente
entraria em colapso, num planeta mais pobre, mais quente e menos úmido.
– Então o homem está alterando mesmo o clima do planeta? – pergunta Gabriel.
– Sim, a soma dos efeitos no clima local, no nível micro, com as alterações de
ventos, umidade, temperatura, quantidade de gás carbônico e outros gases
em suspensão, desencadeia processos no nível macro, ou seja, no nível
continental e global. É a teia da vida de Capra, como comentamos. Tudo
está interligado, em rede.
– Então a Amazônia é bem frágil! – Gabriel pontua.
– Muito frágil. A gente pensa que a imensa floresta tropical sobreviverá a todos
os caprichos do homem... Mas, não! Ela se ressente muito... Está ferida. Até
um certo ponto, ela, a Amazônia, suportará. Dali para frente ninguém sabe.
Segundo muitos cientistas, o ponto de colapso estaria bem próximo. Diversos
cientistas apontam que, se mais vinte por cento da região for desmatada,
entraremos num “ponto sem retorno”, ou seja, de mudanças permanentes.
– Nossa, gravíssimo! – Juju desespera-se.
– É mesmo muito grave, e se pensarmos que o desmatamento está concentrado
no Arco do Desmatamento, ou seja, na parte leste e sul da Amazônia, as
mudanças já vêm ocorrendo e impactarão mais o norte de Tocantins, Mato
Grosso e Rondônia e, a leste, a Amazônia Maranhense e o Nordeste Paraense.

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João Meirelles

***

– Agora iremos mudar um pouco de assunto, pois precisamos nos preparar


para o próximo destino: São Luís. Antes, quero distribuir alguns livros a
vocês. Obras de viajantes como vocês, que procuraram registrar o que viram
na Amazônia.
– Puxa, tio, que livro velho! – Gabriel comenta.
– Velho, não, antigo! É um livro com mais de cem anos. É com esse jeitão que o
público brasileiro e português conheceu a obra de Euclides da Cunha sobre a
Amazônia. E para ti, Juju, esta tradução da obra de Elizabeth e Louis Agassiz,
Uma viagem ao Brasil.
– Uma mulher? Então as mulheres também viajavam nessa época, tio? – Juju
interessou-se muito.
– Elizabeth, uma norte-americana, acompanhou o marido, Louis, suíço, na
época um cientista famoso, que discordava de Charles Darwin. Darwin, com
o seu livro, A origem das espécies, provocou uma revolução na maneira de
compreender a natureza, desbancando no Ocidente dois mil anos de visão
católica, segundo a qual tudo foi criado como descrito no livro do Gênesis.
– Pelo menos três dos viajantes que estiveram na Amazônia foram
fundamentais no apoio a Darwin: Henry Bates, Alfred Russel Wallace
e James Orton. Há outras mulheres. Aí está Octavie Coudreau, que
acompanhou o marido por décadas e, depois que ele morreu, prosseguiu
a sua obra de demarcar e medir rios, sempre vivendo no meio do mato. E,
vejam bem, estamos falando sobre o final do século XIX, quando não havia
conforto e os barcos eram movidos a remo e a vela.
– Mas..., tio, se já faz tanto tempo que esses caras estiveram na Amazônia,
para que estudar os viajantes?
– O jornalista Dal Marcondes, que publica diariamente informações sobre meio
ambiente e sustentabilidade no site da Envolverde, sempre me lembra o
seguinte: O Brasil sem a Amazônia é igual a muitos países do mundo. Tem
grandes cidades e precisa encontrar diferenciais a partir de modelos baseados
em uma mesmice global. O que o Brasil tem a oferecer para o mundo nas
próximas décadas e séculos é justamente aquilo que hoje é visto por alguns
como “despesa” e “obstáculo” para o desenvolvimento. A Amazônia é o grande
diferencial do Brasil dentro do cenário de futuro comum do planeta Terra.

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– Realmente! – Gabriel confirma.


– E Dal Marcondes mais adiante completa: Os olhares do mundo estão sobre
a Amazônia e a sociedade brasileira deve conseguir mostrar sabedoria e
capacidade de governança sobre a região. O Brasil sem a Amazônia não
representa nenhuma vantagem para o mundo ou para os brasileiros. No
entanto, o Brasil Amazônico pode ser o fator decisivo para fazer brotar o
germe de uma economia baseada no conhecimento, no uso eficiente de
recursos naturais e energia e na capacidade de gestão da biodiversidade.
Talvez o próximo estágio do conhecimento, uma biocivilização.
– Gostei, tio, vou acompanhar esse tal de Envolverde pela internet! – Gabriel
manifesta-se.
– Para fechar a nossa conversa sobre os viajantes, ainda queria dizer algo.
Um viajante é capaz de trocar, sem qualquer escrúpulo, um precioso colar
cerimonial, que jamais deveria deixar o espaço sagrado da aldeia, por
uma quinquilharia qualquer – um anzol enferrujado e de baixa qualidade,
um machado malfeito, ou um punhado de contas de vidro. Foi assim que
os portugueses e espanhóis se aproximaram dos povos originários das
Américas e depois os escravizaram e os mataram.
– Tio, e isso continua até hoje? – Juju está preocupada.
– Sim. É o que se denomina “genocídio”. Muitos governantes têm sido genocidas
ao promoverem a morte dos povos indígenas pela falta de assistência médica,
de alimentação adequada e daí por diante. Infelizmente, estamos num
momento em que muitos ocupantes de cargos públicos querem a extinção
dos indígenas, quilombolas e povos tradicionais, pois eles “atrapalham”.
“Atrapalham” mesmo é a sua roubalheira, apropriar-se de terras públicas, de
madeira ilegal, de ouro por meio de garimpo, e daí por diante.
– Mas, tio, por quê? – pergunta Antônio, intrigado – Eu não entendi!
– É o resultado de um processo histórico, novamente uma questão cultural.
São quinhentos anos de pensamento europeu, machista e intervencionista,
que quer destruir a cultura local e impor a sua cultura, o seu modo de
explorar. No último século, a Amazônia passou a sofrer o colonialismo
interno, em que os mandachuvas do Sudeste, de Brasília, procuram
desmoralizar, desqualificar o que é da Amazônia, o que é indígena, de
comunidade tradicional. E fazem isso da pior forma, dizendo que quem
é daqui ou o produto que é daqui é inferior. Que quem mora no mato é
atrasado! E muitos anos martelando isso na nossa cabeça, imaginem! Isso
arrasa com qualquer um! E, para piorar, muita gente na região acredita nisso

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e valoriza só o que é de fora. É a síndrome do colonizado! São essas pessoas


que ficam babando por uma quinquilharia comprada em Miami, com uma
viagem a um parque temático na Flórida, como se fosse a melhor coisa do
mundo! Se nós mesmos não nos valorizamos – o que somos, como seres
humanos, a nossa cultura, a nossa paisagem, os nossos rios, o que temos e
produzimos –, quem irá fazer isso por nós? Eu diria que nós, da Amazônia,
estamos com a autoestima em baixa.
– E a televisão ainda reforça, não é, tio? As novelas, os jornais... – Juju, a mais
politizada, comenta.
– Perfeito! E essa mudança tem que ser de dentro para fora. Somos nós que
temos que nos valorizar! Eu tenho que acreditar em mim mesmo. A minha
comunidade tem que acreditar nela mesma, a minha cidade tem que
acreditar nela, meu estado, minha região, e assim por diante. De dentro para
fora, de baixo para cima, e não ao contrário! Quando vemos o colar de um
cacique, não estamos admirando aqueles poderosos dentes de um animal
de difícil caça. Contemplamos milhares de anos de encontro cultural entre
homem e natureza, a difícil convivência e o equilíbrio, o respeito, o mito, a
simbologia, a poesia do lugar. Um colar é mais precioso que as joias de uma
rainha babaquara qualquer da Europa, que nada significam na cultura local,
a não ser o sofrimento que as pedras preciosas das Américas infligiram aos
povos indígenas para a sua exploração.
– Ufa, estou gostando, tio, estou me sentindo gente! – Juju, emocionada,
vidrada nas palavras do tio...
– Nós, conjuguem o verbo na primeira pessoa do plural, nós, nós participamos
de um momento mágico perante a cultura das centenas de nações indígenas.
Ou acreditamos que isso é o símbolo da esperança, da resistência a
quinhentos anos de extorsão e de malvadezas, e que essa cultura nos
salvará, ou seremos engolidos pelas minisséries que passam na televisão
com assuntos que não nos dizem respeito! O maravilhoso colar de penas,
escolhidas uma a uma e cuidadosamente atreladas à trama de algodão,
igualmente tecida na aldeia, esse, sim, é o objeto mais importante do mundo,
o espelho de nossa afirmação, de algo muito maior. É a possibilidade de um
mundo sonhado, simboliza a compreensão mito-poética, projetando outro
mundo possível, um universo transmitido por centenas de gerações, de avós
para os filhos, dos filhos para os netos.
– Tio, que coisa bonita, até arrepiei! – comenta Juju, animadíssima.
– Há quinhentos anos, Portugal – e, a seguir, o Brasil – quer ocupar, colonizar,

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modificar a Amazônia... Se persistimos neste caminho, da espoliação, da


destruição, o que somos, senão os verdadeiros ladrões, roubando-lhe a
sua gente, levando os seus melhores frutos? Desmatamos, mudamos a sua
geografia, derrotamos e escravizamos os seus povos, e o que deixamos em
troca? Decidimos pela continuidade do genocídio e estamos mostrando
ao mundo como somos aplicados na destruição de tudo – da floresta, dos
rios, da biodiversidade –, somos os “ecocidas”, os que destroem o meio
ambiente. E para quê? Destruímos tudo para criar um punhado de bois, para
termos um bifinho mais barato em nosso prato, no churrasco; e cultivamos
a soja como se fosse algo maravilhoso, mas serve mesmo para alimentar
os frangos e os porcos da China e da Europa! Somos é irresponsavelmente
ridículos e incompetentes, só sabemos destruir. Está mais do que na hora
de reverter essa história. Precisamos decidir a nossa própria história e
não a continuidade da barbárie imposta desde a invasão das Américas por
europeus escravagistas e insaciáveis.
– Ai, e como, tio? Como é que nós faremos isto? – pergunta Juju.
– Gostei do verbo – “nós faremos” –, muito bem. Tu agora te sentes parte da
solução. Muito bem, Juju! Reconhecendo os vencidos como os verdadeiros
vencedores, os sobreviventes como os “donos da história”, os heróis, o colar
de penas vale mais que as joias da Coroa! Reconhecendo os excluídos, os
pajés, os griôs, os contadores de história, os cantadores como os grandes
sábios, invertendo a escala de valores que nos orienta até agora.
– Isso é bem difícil, tio! – diz Antônio, preocupado, encompridando a palavra
“bem” o máximo que pode.
– Antônio, as mudanças culturais são difíceis. Dependem da vontade de cada
um, de um grupo, de um povo. Juntos, podemos mudar. Aprender uma
técnica, como andar de bicicleta, pescar, remar ou bater açaí, é fácil, e
depois se torna algo automático, que fazemos sem pensar. Por outro lado,
mudar a nossa visão é algo que depende de aprender a ouvir, a respeitar
o outro, a colocar-se no lugar do outro. Vejam vocês que estamos aqui
discutindo coisas importantes e nos esquecemos de admirar o que está ao
nosso redor.
– É verdade, tio. Eu li no site do Instituto Peabiru, que tu me passaste, que
estamos num dos litorais mais ricos em espécies de peixes do Brasil, é isso?
– Gabriel, o ambientalista, pergunta.
– Sim, são as Reentrâncias Maranhenses, que continuam Pará adentro e se
chamam por lá de Nordeste Paraense, onde estão Viseu, a Zona Bragantina

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e o Salgado Paraense. Entre São Luís e Belém, está o maior conjunto de


manguezais contínuos do planeta. Os mangues são florestas, tanto é que,
antigamente, chamava-se esse tipo de paisagem de “floresta de mangue”.
Pronto, agora chegamos a São Luís. Vamos descansar que amanhã tem mais.

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Capítulo 3

São Luís e a Amazônia maranhense

– Vejam vocês, a parte antiga de São Luís está num promontório, uma posição
estratégica. A paisagem vista daqui é uma das mais lindas do litoral. São Luís
apresenta uma das alterações de maré das mais altas do Brasil, podendo
chegar a seis metros e meio. Ao mesmo tempo, é uma zona de crescente
importância industrial. Na baía de São Marcos, na Ponta da Madeira, está
um dos portos mais profundos do país, por onde sai o minério de ferro de
Carajás, que vem do Pará, a mais de oitocentos quilômetros daqui.
– Mas e aquela história de São Luís ser uma cidade francesa? – questiona Juju.
– A partir de 1594, protestantes franceses passaram a ocupar o litoral
maranhense. Eram apoiados por protestantes holandeses. É importante
lembrar que os ibéricos, portugueses e espanhóis, eram católicos. São Luís
mesmo é de 1612, mas a ocupação francesa durou pouco. Os portugueses
tomaram a região quatro anos depois, partindo, inclusive, para a expulsão
das demais potências europeias do estuário do Amazonas nas décadas
seguintes. As poucas fortificações portuguesas eram distantes umas
das outras. Dominar uma costa tão vasta e evitar que outros europeus
comercializassem com os povos nativos foi difícil. Havia ingleses no rio Xingu
e alemães, irlandeses e holandeses no arquipélago do Marajó; e franceses
comercializavam em diversas partes do megaestuário do Amazonas-Tapajós.
Eram principalmente entrepostos, para trocar quinquilharias por “drogas do
sertão” – temperos considerados exóticos na Europa, peles de animais, além
de cascas de árvore e sementes para tingir tecidos etc.
– Não deve ter sido fácil para os povos nativos tantos invasores! – comenta Juju.
– Exatamente, mas, na disputa entre os países europeus, quem venceu
foram os portugueses, obstinados, pacientes e bem armados. A última
posição não portuguesa da Amazônia foi destruída no final do século XVII,
setenta anos depois da expulsão dos franceses de São Luís. Diferentemente

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de holandeses, franceses e ingleses, que levavam consigo cartógrafos,


historiadores, astrônomos, naturalistas e outros cientistas, os portugueses
contavam apenas com militares e cartógrafos. Os religiosos que faziam
parte das expedições portuguesas ali estavam principalmente para o
registro dos fatos para a Corte em Lisboa. Naquele momento, promover o
desenvolvimento científico e divulgá-lo era secundário para os portugueses.
Nessa época, a cartografia, a preparação de mapas era segredo de Estado,
afinal, era o caminho para a invasão de seus territórios e o confisco de suas
riquezas. Em São Luís, os franceses trouxeram padres capuchinhos, como
Claude D’Abbeville. Ele foi o autor do primeiro relato sobre a natureza e o
primeiro estudo etnográfico da região.
– Tio, o que é etnográfico? – Gabriel pergunta.
– É o estudo sobre outros povos. Graças a esses religiosos, temos alguma
informação sobre os costumes dos povos originários dali, o que dificilmente
veremos nos relatos coloniais portugueses.
– Puxa, se for comparar, entre a chegada a Porto Seguro, em 1500, e a invasão
da Amazônia, são mais de cem anos! – disse Antônio, fazendo as contas.
– Muito bem, Antônio, colocaste bem, não foi uma “descoberta” e, sim, uma
invasão! Gosto da proposta do escritor amazonense Márcio Souza, para
quem a Amazônia foi “inventada”. Afinal, o nome “Amazônia” foi dado por
espanhóis em 1538, como alusão às mulheres guerreiras que os militares,
famintos, com medo e desesperados, acreditam ver. E mais, de 1612 até
hoje, são pouco mais de quatro séculos. As diferentes civilizações originais da
Amazônia estão por aqui há, provavelmente, cem séculos, vinte vezes mais!
– Tio, por que com medo e desesperados? – Juju pergunta.
– Porque a situação para eles não deveria ser nada confortável. Um pequeno
grupo militar, descendo aquele enorme rio desconhecido – que hoje
chamamos de Amazonas –, em uma balsa improvisada, deparando-se, a
todo momento, com diferentes povos, arredios e agressivos, de línguas e
costumes incompreensíveis. Foi um milagre conseguirem retornar à Europa.
Mas voltemos às razões pelas quais os diferentes reinos europeus, ou
empresas de países protestantes, buscavam a Amazônia. Na época, o que
movia os interesses era a possibilidade de plantio de cana-de-açúcar, até
então restrita à ilha da Madeira e outras zonas subtropicais. O açúcar estava
entre os diversos itens que rendiam grandes lucros aos mercadores da
época, assim como o tabaco.
– E isso deu certo? – pergunta Juju.

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– Mais ou menos. Foi esse afã de plantar cana-de-açúcar que levou os portugueses
a plantarem canaviais em Belém e em São Luís, como já vinham realizando
ao longo da costa brasileira. A empresa holandesa Companhia das Índias
Ocidentais faz o mesmo nas Antilhas, no que hoje é o Suriname e no Nordeste
brasileiro, e os ingleses, onde hoje é a Guiana e algumas ilhas do Caribe.
– Então a história da Amazônia tem mais a ver com a cana-de-açúcar que outra
coisa? – continuou Juju.
– Inicialmente, sem dúvida. Entretanto, outras regiões mostraram-se mais
produtivas por questões de solos, chuvas, temperatura etc., principalmente
porque se organizaram de melhor maneira. É importante lembrar que a cana-
de-açúcar era sinônimo de escravidão, tanto de escravos vindos da África,
como de povos originais do Brasil, explorados disfarçadamente. O grande
desenvolvimento de São Luís ocorrerá no século XIX, quando produzia
algodão de boa qualidade, cultura agrícola também baseada na escravidão.
Agora temos que deixar esta linda cidade e tomar um ônibus até Pedreira.
Passaremos por Viana, região com belos lagos. Vamos de carona com um
amigo que colabora em uma associação comunitária de quebradeiras de coco!
– Que coco é esse? É bom de comer? – Gabriel, sempre com fome.
– É o coco de babaçu. Ele tem diversas serventias, muita gente vive dele,
especialmente as mulheres quebradeiras de coco. Elas estão organizadas em
movimentos sociais em diversos estados brasileiros e enfrentam uma vida
dura para ganhar algum trocado por cada coco tirado.

(Depois da visita a duas comunidades de quebradeiras de coco...)

– Juju, leia então seu diário.

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Diário da Juju: Estas mulheres me deixaram orgulhosa


de ser mulher. Elas são fortes, guerreiras, enfrentam
a vida com coragem. O coco vendido quase sempre é a
principal renda da família. A renda é pouca. Juntam
dez, vinte, trinta reais em um dia. Só isso, pra tanta
trabalheira! Quando viram as palmeiras de babaçu
sendo derrubadas por fazendeiros, elas se uniram e
conseguiram até uma lei. Elas estão no Maranhão,
no Piauí, no Pará, no Mato Grosso e no Tocantins.
Acordam muito cedo. Levam os filhos pequenos juntos,
organizam-se numa roda e, sentadas no chão, atualizam
os assuntos enquanto quebram o coco com o facão.

– Muito bom, Juju, as quebradeiras conquistaram uma lei, a “Lei do Babaçu


Livre”. Os fazendeiros estavam derrubando os cocais para plantar pasto
para a boiada. Agora podem entrar nas fazendas, colher os cocos. Mesmo
assim, há fazendeiros que, escondidos, eliminam os babaçuais, um crime!
A Associação em Áreas de Assentamento do Estado do Maranhão (Assema)
é uma das entidades que trabalham em prol desse grupo. Atua na região do
Mearim, aqui em Pedreira. Deem uma olhada no site deles. Um dos desafios
é aumentar o valor do que ganham. Além do mesocarpo, a ideia é usar a
amêndoa e o endocarpo como carvão.
– O que é isso, tio, mesocarpo, endocarpo…? – Gabriel franze a testa.
– Ah, tu que queres ser biólogo, trata de aprender um pouco de latim. Meso
quer dizer meio, endo, o de dentro, exo, o de fora, carpo, a capa, casca.
O endocarpo é a parte de dentro, e assim por diante. Cada um tem uma
serventia. O mesocarpo de babaçu é um complemento alimentar importante
e é preparado como uma farinha, ela é bem fina...
– Mas isso não engorda? – Juju olha a barriga.
– O que engorda é pão branco, doces, bolachas industrializadas, sorvete!

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Alimentos ultraprocessados, com muito açúcar, sal, óleo, sem falar em


conservantes, acidulantes, umectantes... Se todos comerem as coisas certas,
terão uma saúde melhor e garantirão uma qualidade de vida decente para os
agricultores familiares e extrativistas, como é o caso aqui das quebradeiras.
Basta uma colher de sobremesa de pó de mesocarpo de babaçu misturado
no leite ou no cereal, pela manhã, além de duas castanhas-do-brasil
(ou castanha-do-pará, como queiram chamar), para reforçar a saúde.
Por que não um milk-shake de babaçu? Lá em Manaus não tem o tal do
“x-caboclinho”, um sanduíche de fatias de tucumã com queijo? Se nós não
valorizarmos o que é nosso, como essas trezentas mil quebradeiras de coco
vão ganhar a vida?
– Nossa, tio, trezentas mil mulheres! É muita gente! – Juju assusta-se.
– Trezentas mil mulheres, quer dizer o sustento de mais de um milhão de
pessoas! Realmente, Juju, mas só o babaçu não paga essa conta. É preciso
combinar com outros produtos. Para isso, estão aí as iniciativas de manejo
dos cocais, inclusive com o plantio de árvores que também podem gerar
renda, como o cajueiro, o bacurizeiro, além da roça de mandioca e tantas
outras coisas que se podem cultivar. Essas mulheres tornaram-se um
exemplo como movimento social, um modelo de cidadania planetária –
“pensar globalmente e agir localmente”.
– Que bonito, tio. Cidadania planetária! Pensar globalmente e agir localmente!
– Juju anota em seu diário.
– Esse assunto de cidadania é muito importante. Vejam o caso da região
do Marajó, no Pará. As pessoas sentem-se marajoaras primeiro, depois
paraenses, mas não amazônidas, ou seja, a região como um todo ainda
não faz sentido para seus habitantes. Quando se trata de perguntar se um
amazônida morador do Peru reconhece a Amazônia da Guiana, por exemplo,
isso não acontece. As pessoas continuam a ser nacionalistas, dentro das
fronteiras de seus países ou, então, de algo bem local, como as fronteiras de
sua região, seu estado ou cidade.
– E quantas pessoas vivem na Amazônia? – Antônio pergunta.
– A população dos oito países já passa de trinta e cinco milhões e cresce
rapidamente, tanto em função da migração como do alto índice de
nascimentos. No Brasil, está a maior parte da Amazônia, e a população deve
estar em torno de trinta milhões de habitantes.
– Tio, até que não é muita gente, uns quinze por cento da população do Brasil!
– Antônio faz as contas.

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– Verdade, o problema é a distribuição dessa população. As grandes cidades –


Belém, Manaus, Rio Branco etc. – concentram mais da metade da população.
Cerca de um quarto vive nas cidades pequenas, e cada vez menos gente
quer morar no campo. Em boa parte porque, em muitos lugares no campo,
são limitadas as opções de renda e, principalmente, precários a educação,
a saúde e o transporte. Antes de voltarmos, vamos visitar um local onde
descobriram dinossauros, Itapecuru-Mirim.
– E aqui havia muitos tipos de dinossauro? – Gabriel está curioso.
– Há fortes indícios de grande diversidade de animais pré-históricos, entre os
quais o tatu gigante, o dinossauro Amazonsaurus maranhensis e a preguiça
gigante. Lá no Acre, na bacia do rio Purus, descobriram um jacaré gigante, o
purussauro, o seu nome científico é Purussaurus brasiliensis!
– Esta cidade é mesmo muito preciosa, seu povo é gentil, a fala é mansa.
Vejam como o português é correto, como se emprega a segunda pessoa
do singular...

(De regresso a São Luís.)

– Puxa, é mesmo, como as pessoas são atenciosas! – Juju sorri.


– Mas é hora de viajar, lá vamos nós para o Pará...

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Capítulo 4

O Nordeste Paraense

– Puxa, a gente olha no mapa e parece tudo pertinho. Mas esta viagem de
catorze horas de ônibus de São Luís pra Castanhal foi mesmo cansativa! –
atalha Antônio.
– E, se fosse para Belém, seriam oitocentos quilômetros! Economizamos
sessenta quilômetros parando aqui. Preparem-se, teremos longas viagens
pela frente. “Te acalma”, como dizem os paraenses. Ah, antes de mais nada,
eu tenho uma pergunta: o que vocês notaram como mais característico ao
longo da estrada aqui no Nordeste Paraense?
– Olha, tio, eu fiquei triste. Pensei que ia entrar no Pará e que veria muita mata,
mas só vi destruição, pasto, pasto, pasto e áreas abandonadas, muita área
abandonada, muita pobreza! – Gabriel comenta, cabisbaixo.
– Realmente, tanto o Nordeste do Pará como o Oeste do Maranhão são regiões
duramente castigadas pelo homem. O desmatamento em larga escala aqui
é mais antigo, vem do século XIX. Hoje são regiões densamente povoadas
e com grande pobreza. Na região litorânea, a pobreza só não é mais grave
porque há alguma pesca. No Maranhão como aqui, há poucas oportunidades
de renda, especialmente para os jovens. Assim, muitos são forçados a
migrar. Os que ficam vivem de bico, pequenos serviços, mas tudo é muito
precário. Emprego formal praticamente só nas prefeituras, e, mesmo assim,
a maioria é de trabalhos pouco qualificados, que raramente permitem o
desenvolvimento pessoal.
– É verdade! Eu vi muita gente mais velha e muita, muita criança nas cidades –
Juju argumenta.
– A renda monetária aqui no Nordeste do Pará é, em média, três vezes e meia
menor que a do Brasil. Mas, no meio rural e para as populações rurais em
geral, ela dificilmente alcança duzentos reais ao mês. E, em alguns lugares
da Amazônia, como no Marajó e na maior parte do Maranhão, a renda mensal

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por pessoa é ainda menor, menos de cem reais ao mês.


– Tio, só isso? Como se vive? – Juju protesta.
– Pois é. Por isso que eu disse “renda monetária” e não apenas “renda”.
Um operário em Belém pode até ganhar um salário mínimo. Se der sorte,
terá registro em carteira de trabalho, e isso é muito mais do que se ganha
aqui. No entanto, o custo para ele morar e viver em Belém é bem maior.
As periferias de Belém, de Manaus e as cidades de médio porte, como
Macapá, Imperatriz, Bragança e Marabá ou, aqui, Castanhal, atraem grandes
contingentes de migrantes. Eles vêm para cá em busca de empregos,
escolas, acesso a saúde etc. No entanto, a qualidade do serviço público, em
geral, é sofrível, e as oportunidades de arrumar trabalho são limitadas. Nas
cidades, poucos conseguem superar a pobreza, pelo contrário, passam a
enfrentar novos problemas – o transporte precário, a violência, o alto custo
de vida, moradias inadequadas. São raros os que avaliam os benefícios não
monetários, ou seja, a tranquilidade do interior, o ambiente mais saudável, a
possibilidade de ter uma roça e um plantio para a subsistência, a coleta de
frutos e a pesca, a troca de serviços por produtos agrícolas... Provavelmente,
se pusessem, na ponta do lápis, o custo real de vida e outros benefícios que
não se medem tão facilmente, muitos desistiriam de migrar.
– Mas esta região tem alguma saída econômica? Alguma riqueza que poderia
tirá-la desse sufoco? – Gabriel pergunta.
– Uma não, há muitas saídas. A nossa tendência é sempre escolher
soluções milagrosas, grandes projetos redentores – a instalação de uma
megaindústria, um superporto, grandes plantios do agronegócio. Mas nem
sempre essa é a melhor saída. Pode até gerar muitos impostos para a
localidade e até alguns milhares de empregos, mas dificilmente atenderá a
maioria das pessoas. A história do Brasil, e da Amazônia, em particular, tem
muitas passagens assim. Nos últimos quatrocentos anos, a Amazônia passou
por sucessivos ciclos econômicos, da cana-de-açúcar, das drogas do sertão,
do algodão, da borracha, da pimenta-do-reino, da juta etc. Agora é a vez
das grandes commodities, da soja, da carne bovina, do papel e celulose, da
palma (dendê) e dos diversos minérios, do ferro, alumínio, ouro... Até o açaí
agora se comporta como uma commodity!
– Tio, explica direito o que é uma commodity – pede Antônio.
– Commodity é toda mercadoria regulada por um preço mundial. O preço é
resultado de expectativas de venda; os produtores têm pouca capacidade
de influir no preço e nas condições de venda. No caso dos pequenos

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agricultores e extrativistas, essa capacidade de influenciar é ainda menor.


Assim, aquele agricultor familiar que está isolado e com pequeno poder
de barganha tem que se sujeitar aos atravessadores, seu ponto de contato
com o mundo, e às múltiplas oscilações, que são difíceis de compreender,
para a farinha de mandioca, o açaí, a carne bovina... Por essa razão, entre
outras, a agricultura familiar quase sempre está próxima ou abaixo da
linha de pobreza. Assim, não depender apenas de um produto – ou seja,
diversificar – é uma excelente estratégia, especialmente se o produto for
uma commodity. Tradicionalmente, a agricultura familiar baseia-se em um
conjunto de atividades: a roça de subsistência de milho, mandioca, arroz,
feijão. Os excedentes eventualmente gerados são levados ao mercado. A
dificuldade é garantir que a roça produza mais, com menos esforço e num
cenário bastante desfavorável: falta de assistência técnica e de extensão
rural, falta de bancos e de acesso a crédito, precariedade de transporte
e de armazenamento, dificuldade de acesso a boas sementes ou mudas,
além do baixo nível de organização em associações, cooperativas, a
informalidade do setor etc.
– Puxa, é mesmo complicado, hein! – Juju comenta.
– E os agricultores ainda têm que lidar com o excesso ou a falta de chuvas, o
calor, o ataque de pragas, o fogo etc. Ser agricultor familiar no Brasil e, em
especial, na Amazônia não é fácil. A melhor solução, e mais duradoura, é
melhorar o próprio nível técnico dos agricultores.
– Mas, tio, pra isso precisa de escolas. Boas escolas! – Gabriel palpita.
– Exatamente. A qualidade do ensino em boa parte da Amazônia é deplorável,
especialmente nas zonas rurais, onde os professores são mal pagos, não
têm o apoio necessário e muitas vezes vivem de favor na casa de pessoas da
comunidade onde está a escola. A região apresenta alguns dos piores índices
de desempenho do país. No Marajó, por exemplo, estão alguns dos piores
índices de analfabetismo do Brasil. A evasão escolar é ainda mais alarmante.
Entre os jovens, de cada cinco alunos, um abandona a escola. Creche e pré-
escola são raras, especialmente em pequenas cidades e comunidades rurais...
– Difícil ser um jovem na Amazônia, hein, tio? – Gabriel comenta.
– Agora imaginem o dia a dia dos jovens no campo. Trabalham de sol a sol,
limpando as áreas, plantam, colhem, e isso para ganhar apenas alguns
trocados. Quem quer continuar nessa vida, se tem a chance de tentar
algo melhor migrando ou trabalhando nas cidades? O mais importante
não é o poder público – federal, estadual ou municipal – propor projetos

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mirabolantes e espetaculares; o mais importante é melhorar as condições


locais, para quem já está no campo, na pesca, nas atividades produtivas,
para que tenham melhores preços, acesso a melhores tecnologias,
transporte, boa orientação técnica...
– Parece simples, hein, tio... – Gabriel concorda.
– Pois não é? A população precisa se unir, por meio das associações, dos
sindicatos, das diferentes entidades da sociedade civil, e pressionar o poder
público para fazer o básico, o feijão com arroz! São pequenas atitudes que
melhoram a vida das pessoas. Mesmo o pomar, o quintal, a mata nativa do
entorno da casa, com diversas fruteiras, podem gerar uma pequena renda,
melhorar a segurança alimentar das famílias. E, se houver orientação sobre
mudas e sementes, sobre manejo, essas áreas ainda podem ser enriquecidas
com espécies de valor comercial, alimentar, medicinal, para lenha etc.
– Como assim, manejo, tio, o que quer dizer isso? – Gabriel pergunta.
– Nesta região, onde sempre é quente e úmido, as plantas crescem muito
rápido. Imaginem que uma árvore de eucalipto, que demora trinta anos em
países frios como a Finlândia, aqui está pronta para o corte em seis a oito
anos. Mesmo se compararmos o crescimento de árvores da região do Sul do
Brasil com as da Amazônia, encontraremos locais em que a produtividade é
mais do que o dobro.
– Então o jeito é mudar toda a produção pra Amazônia? – pergunta Juju, insegura.
– Opa, calma lá! E os povos indígenas, quilombolas, as populações
tradicionais? Já foram consultados? E a maior floresta tropical do planeta,
qual sua capacidade para resistir ao avanço sobre as áreas naturais?
Ninguém nega que é preciso terra para plantar para comer, produzir
vestuários, madeira, papel etc. Mas precisa haver um equilíbrio entre as
áreas naturais e as áreas antropizadas, modificadas pelo homem.
– Antro? Tio, quer dizer que é “do homem”? – Gabriel arrisca.
– Isso mesmo. Áreas antropizadas, ou seja, alteradas pelo homem. Temos que
respeitar os limites da natureza, é impossível ocupar áreas frágeis, como é o
caso das áreas superúmidas, aquelas que têm muita água, como os pântanos,
os manguezais, e as matas ciliares que protegem essas áreas. Há, também,
os limites do mercado. De que adianta produzir muito cupuaçu se o mundo
nem sabe o que é cupuaçu? Quem vai comprar? Se o brasileiro não valorizar o
cupuaçu e preferir as maçãs argentinas, as peras portuguesas, o kiwi produzido
na Itália, as uvas dos Estados Unidos, para quem se vai vender? A produção tem
que crescer de acordo com a demanda. Essa é uma regra básica da economia.

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– Tá, entendi. Mas, o que é bom negócio pra Amazônia? – Gabriel não está
convencido.

***

(Em Curuçá.)

– Há cinquenta anos, aqui só se chegava em pequenas embarcações a vela,


que costeavam o litoral. Dependendo da maré, das correntes e dos ventos,
a viagem poderia demorar mais de um dia. O que se comercializava fora da
região, em Belém, era peixe e camarão, quase sempre secos e salgados –
afinal, não havia como resfriar o pescado –, e, eventualmente, alguma fruta,
como o bacuri.
– Ah, agora entendi por que se fala na Região do Salgado! – Gabriel comenta.
– Como aqui o peixe e o camarão, em função dos grandes manguezais, sempre
foram fartos, desde os primeiros séculos de colonização portuguesa, havia
a prática de salgar o pescado. Havia, inclusive, os pesqueiros reais, que
forneciam o pescado aos funcionários da administração colonial portuguesa.
– Ah, agora entendi por que em todo lugar tem peixe seco! E tem esta sopa,
como é mesmo o nome? Que se come com camarão seco... – Juju morde o
beiço como a dizer que está com fome.
– A sopa é o tacacá no tucupi. Tucupi é o sumo extraído da mandioca. E o
tacacá se toma bem quente, no fim de tarde. E nele vai a goma, que é a
fécula da mandioca misturada com água. Também vai o camarão seco e o
jambu, a verdura que dá uma leve anestesiada e é meio picante. Ah, ainda
têm os temperos: o alho, a chicória, o sal e a pimenta-de-cheiro.
– No fim de tarde, sopa, neste calorão, “té doido, é?”, só doido mesmo! Mas já
tou com vontade de experimentar! – atalha Gabriel.
– Quanta palavra nova, acho que vou anotar todas. Só agorinha são três:
tucupi, tacacá, jambu! – Antônio brinca.
– Nas pesquisas que o Museu Paraense Emílio Goeldi e o Instituto Peabiru
fizeram aqui em Curuçá, ficou evidente que o camarão, o caranguejo e
o peixe estão diminuindo. O pescador está indo buscar o produto cada
vez mais longe, a atividade toma-lhe mais tempo, e ele volta com menos
quantidade para casa. Também se observou que as matas praticamente se
acabaram. Por isso, a madeira para construção tem que ser trazida de bem
longe, de outros municípios.

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– Ah, já li sobre este litoral, tem pássaro que vem lá do Canadá, não é? –
Gabriel quer mostrar seu conhecimento.
– Justamente, o Brasil recebe diversas espécies migratórias de aves de regiões
frias, tanto do hemisfério Norte, como da América do Sul. Há também
borboletas, baleias, peixes migratórios... No caso de Curuçá, temos o
pequeno maçarico, esta ave com o bico fino, que corre pela praia e voa mais
de onze mil quilômetros para evitar o inverno na América do Norte. Aqui ele
encontra fartura de moluscos, a base de sua alimentação. Tem até um ritmo
de música, e a dança imita a corridinha do maçarico. É bem fácil dançar.
Vamos lá, aprender com os jovens daqui?
– Grupo de dança, é? – Juju interessa-se.
– Também. O principal é o ecoturismo de base comunitária, a valorização da
cultura, a defesa ambiental, a valorização da pesca e da cultura da maré.
Entre os jovens que desenvolveram a atividade, aqui está o Nelsinho, com o
seu pequeno negócio, um verdadeiro empreendedor local.
– Mas que dança gostosa! Carimbó, facinho de dançar. E que história é essa de
cultura da maré? – Juju continua.
– É o jeito como as pessoas vivem na região, indo com seu casquinho, uma
canoa bem levezinha, todos os dias, buscar o peixe para o almoço, o jeito
de falar, de pensar, de fazer festa, enfim, o conjunto de saberes e fazeres
locais. É isso que se chama “patrimônio imaterial”. O carimbó, por exemplo,
é tombado como patrimônio imaterial e um dos seus berços é Curuçá, assim
como Marapanim, Santarém Novo e outros municípios desta região.
– E o ecoturismo, como funciona? – Gabriel quer saber.
– A proposta do ecoturismo de base comunitária é visitar as diferentes
comunidades e conhecer o seu dia a dia, tal qual ele é, sem enfeitar, sem
preparar cenários. O que interessa é o modo de vida, as histórias do lugar,
as lendas, a música e a culinária. Enfim, o que torna esta cultura peculiar e
distinta das demais. Cada lugar que a gente visita tem mesmo o seu jeito
de ser, ainda mais se a natureza é tão forte, tão determinante do ritmo de
vida das pessoas! Aqui, por exemplo, é preciso respeitar o tempo da maré,
das cheias e secas, das grandes tempestades. A natureza manda, o homem
respeita. A cultura de cada lugar é o aprendizado da convivência harmônica
com as condições naturais, mantendo-as por gerações, para que as próximas
possam usufruir de todos os atributos naturais e culturais que a região possui.
– Tio, olha lá o guará! Opa, tem também um pássaro muito grande,
preto, ah... claro, ihh... foi mal, é um urubu! – Gabriel brinca, entre

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envergonhado e decepcionado.
– Eta, meu, para de ser sabe-tudo, mostrando sua bichologia! – Juju rindo
que só.
– Bi-o-lo-gia! – insiste Gabriel.
– Claro que eu sei, eu tô te zoando. Égua-te! – Juju capricha em mais uma
variação da expressão paraense.
– Gabriel, o urubu tem um papel muito importante no ambiente. Cada
um tem uma função ou mesmo muitas funções, desde os milhões de
microrganismos, os insetos, até os grandes carnívoros, que estão no topo
da cadeia alimentar. É uma disputa incessante para aproveitar qualquer
oportunidade para se nutrir, absorver os poucos elementos minerais
disponíveis e, no caso dos mamíferos, obter as proteínas, gorduras e
carboidratos necessários. As espécies adaptam-se para tirar o máximo de
proveito das chances que têm para se alimentar. E aqui, no mangue, é assim
também. As árvores do mangue estão o tempo todo, por meio de seu sistema
de raízes aéreas, absorvendo os nutrientes das ricas águas carregadas de
matéria orgânica. Observem a altura destes manguezais!
– Matéria orgânica, tio, dá pra explicar? – Juju pede, com jeitinho.
– A matéria orgânica é o conjunto de seres vegetais e animais que estão
na água e no solo, seres vivos ou em decomposição. Observemos o solo
dos mangues. Do ponto de vista físico, abaixo desta lama, em geral, há
areia, pobre em qualquer matéria orgânica. Os seres em decomposição
transformam-se numa sopa de nutrientes que será reabsorvida pelos seres
vivos, a começar pelas próprias árvores, altamente interessadas nestes
minerais trazidos, literalmente, a seus pés. Agora pensemos na floresta e na
diversidade de solos que se encontra na região. Como os solos da Amazônia,
em sua maioria, são pobres em nutrientes, é preciso retirar os nutrientes de
outros lugares, ou seja, reciclando o que está disponível na própria floresta
ou é trazido pela água, como é o caso de manguezais e da vegetação das
várzeas e dos igapós. Daí que as espécies da floresta tropical adaptaram-
se para capturar o máximo e em pouquíssimo tempo todos os nutrientes
disponíveis. Nas florestas de terra firme, a camada de folhas, galhos e
animais em putrefação, que se chama “liteira”, desempenha um papel
essencial na reciclagem dos minerais.
– Nossa, nunca tinha reparado nisto! – Gabriel, o biólogo.
– Eu gostaria de chamar a atenção para as alterações dos manguezais. É gente
aterrando o mangue para fazer casas, abrir ruas e estradas, derrubando

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árvores para lenha, jogando lixo, esgotos... Será que essas pessoas acham
que o mangue aguenta tanto desaforo? O mangue, como os demais sistemas
naturais, tem limitada capacidade de resistir aos ataques do homem. O
mangue tem baixa resiliência, ou seja, sua habilidade de voltar ao que era
exige bastante tempo. Assim, se a velocidade da destruição for maior que a
capacidade natural de recuperação, teremos um ambiente degradado.
– E é o que estamos vendo aqui, perto da cidade, tio? – Antônio argumenta.
– Exato, aqui o mangue está protegido por uma unidade de conservação
federal, no caso, a Reserva Extrativista Marinha Mãe Grande de Curuçá,
também conhecida como Resex Curuçá.
– Que nome bonito: Mãe Grande! – Juju sorri.
– O mangue é aquela mãe que tudo provê: garante alimento, protege a cidade
da erosão. Vocês estão vendo este porto aqui, ao lado da igreja?
– Porto? – Gabriel procura algo parecido a um lugar onde barcos encostam.
– Pois bem. Aqui, há uns cinquenta anos, paravam os barcos. Mas, com
o desmatamento, tanto das florestas do entorno do mangue, como do
próprio mangue, a areia entupiu as áreas onde era água e mangue, e o porto
assoreou, ou seja, encheu-se de terra. Agora é isto: um prédio abandonado
no meio do campo. Não é mais um porto! Triste, não é? Pois eu acho que
isso deve servir como um monumento para lembrar a todos que a natureza
tem limite. Imaginem isto em grande escala: o homem intervindo em
milhares de lugares ao mesmo tempo! É por isso que os mangues estão
entre os ambientes mais ameaçados do planeta. Temos exemplos de
desaparecimento de mangues em todo o litoral brasileiro, é casa de praia
em cima de mangue, são as cidades crescendo, bois e búfalos destruindo
mangues, como no Marajó, a agricultura, as fazendas de camarão totalmente
ilegais no Nordeste.... E, com as mudanças climáticas, isso tende a piorar, pois
o mar, mesmo que suba alguns centímetros, muda a paisagem rapidamente.
– Então, quando eu for maior, terei que enfrentar o aumento do nível do mar? –
Antônio preocupa-se.
– Isso já está ocorrendo, não se trata de um fenômeno a ocorrer, é um
fato medido cientificamente. Em média, o mar já subiu mais de vinte
centímetros e, em alguns locais, em função de correntes marítimas e de
outras condições, subiu até cinquenta centímetros! E, entre as regiões
mais impactadas, estão os manguezais do Norte do Brasil. É importante
considerar que a maior parte das espécies de peixes marinhos depende,
de alguma forma, dos manguezais para a sua procriação ou alimentação.

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João Meirelles

Eles prestam-se para local de vida, reprodução e refúgio para centenas de


espécies de moluscos, crustáceos e aves, entre outros animais. Isso sem
contar que os mangues são um anteparo para as fortes marés, protegendo as
zonas de terra firme da erosão. Aqui em Curuçá, por exemplo, estão alguns
dos manguezais mais ricos do mundo em termos de diversidade de espécies
de animais marinhos e costeiros.
– Tio, toda esta região é de manguezais? – pergunta Gabriel.
– Veja bem. O mangue ocupa uma faixa específica de terra. É necessário
que haja água salobra pelo menos nas marés altas e que as suas raízes
estejam encharcadas. Em geral, assenta-se na areia e, aos poucos, forma-se
uma camada de lama. Associados ao mangue, estão as praias, os campos
gramados, que se chamam “campos apicum”, e outras paisagens de
transição. O Museu Goeldi, como parte do projeto “Casa da Virada”, com uma
equipe de pesquisadores coordenada por Samuel Almeida, classificou um
novo tipo de paisagem, de ecossistema: a “Mata Amazônica Atlântica”.
– Mata Atlântica, aqui? Tá longe de São Paulo, do Rio de Janeiro! – Juju questiona.
– Não é isso. É uma “mata amazônica” que fica na beira do oceano
Atlântico, daí seu nome. O que caracteriza essa paisagem é a presença
de determinadas espécies de árvores, como o bacurizeiro e o umirizeiro.
Tanto essas como outras paisagens estão desprotegidas, ameaçadas. Esta
aqui, então, está altamente ameaçada! É preciso cumprir a legislação, o
que já é bem razoável, e, ao mesmo tempo, criar parques e reservas para a
conservação da biodiversidade destes ambientes, especialmente as espécies
endêmicas, aquelas que são encontradas somente naquele lugar.
– Endemismo! Anotado – Juju aparta a conversa.
– O endemismo está relacionado à região em que se encontra a espécie, tanto
vegetal como animal. Assim, quando ocorre um microendemismo, isso quer
dizer que determinada espécie deve existir apenas em uma microrregião, por
exemplo, em certa ilha, montanha ou localidade bem restrita. Ser endêmico
a um ecossistema deixa claro que, se o ecossistema está ameaçado, a
espécie também está. As florestas tropicais são conhecidas pelo alto
grau de endemismo de suas espécies. Em muitos casos, é preciso evitar
o uso humano intensivo da área e, assim, proteger as espécies vegetais e
animais, ou as paisagens únicas, criando-se as unidades de conservação
de proteção integral. É o caso dos parques nacionais e estaduais, os
refúgios de vida silvestre e as reservas biológicas. Noutros casos, como o
da reserva extrativista (Resex), das florestas nacionais e das reservas de

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desenvolvimento sustentável (RDS), a presença humana é aceitável, sob


condições predefinidas. Quem pode morar ali são os povos e comunidades
tradicionais, ou seja, os pescadores artesanais, as marisqueiras, os
catadores de caranguejo, os seringueiros, os castanheiros e assim por diante.
As florestas nacionais, assim como as estaduais, visam o manejo florestal e
admitem a presença de empresas ou de cooperativas em contratos de longo
prazo. Infelizmente, muitas unidades de conservação ainda existem somente
no papel, pois não foram demarcadas, ou não possuem plano de manejo, ou
não são suficientemente fiscalizadas e são invadidas de forma recorrente.
– Então, tio, muitos parques são mais de mentirinha? – Gabriel interrompe.
– É o que se chama “parques de papel”. A maioria das unidades de
conservação do Brasil tem problemas, principalmente porque há
garimpeiros, exploração ilegal de madeira, pescado, e até bois, como no
Araguaia. Vejam, são bens públicos, terras públicas, pertencem a todos os
brasileiros, e somente os povos tradicionais podem utilizá-las para a sua
sobrevivência e, mesmo assim, segundo regras claras de manejo!
– Terras públicas? – Gabriel continua.
– Sim, as unidades de conservação são terras da federação, de estados ou
municípios. Assim, não podem ser vendidas ou alugadas. Áreas particulares
também podem ser consideradas unidades de conservação e, se cumprirem
uma série de requisitos, recebem o título de Reservas Particulares
de Patrimônio Natural (RPPN). Na Amazônia, há pouquíssimas RPPN,
especialmente aqui nas regiões mais devastadas.
– Tio, faz diferença chamar uma área de devastada ou desmatada? – Juju pergunta.
– Na prática, não. Desflorestada, desmatada, devastada, destruída... É
tudo igual! Quer dizer que o homem interveio de tal maneira que alterou
significativamente a paisagem natural, que dificilmente se recuperará a curto
prazo. Em muitos casos, só intervindo para conter processos de erosão e de
reintrodução de espécies, é o que se chama “restauração ambiental”.
– E como saberemos qual a hora de parar? – Gabriel preocupa-se.
– Em ambientes como este do Nordeste Paraense, já deveríamos ter parado de
destruir há um bom tempo. Aqui mais de noventa por cento das florestas de
terra firme foram desmatadas! Como vimos, os indícios são claros: quando seca,
as secas são mais fortes e mais profundas. Quando chove, as águas causam
mais estragos, os rios estão mais assoreados e transbordam. As temperaturas e
a umidade mudam. Isso significa mais fenômenos climáticos extremos.
– Tou vendo que vai sobrar pra nós cuidarmos disto tudo! – Gabriel dá bronca no tio.

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– Exato, nossa geração fracassou! Ainda dá tempo de recuperar muita


coisa, mas os sinais são bem evidentes. Vejam a fauna: muitos bichos
desapareceram daqui, como as araras, os peixes-boi, as onças. Outras
espécies vulneráveis são cada vez mais raras. Mesmo animais antes comuns,
como papagaios, tucanos, capivaras e tatus, tornam-se difíceis de encontrar.
São indicadores da saúde do ecossistema, bioindicadores. Bom, temos muito
chão pela frente. Vamos embora para Belém? Estamos na época do Círio de
Nazaré e não podemos perder as procissões.

(O carro para, e um som estridente sai de dentro.)

– Tio, que música mais louca. Olha como a mulher canta com voz esganiçada.
Ela grita. Isso não combina com procissão! – Juju comenta.
– É o brega. É um ritmo bem paraense. Desenvolvido a partir das influências
do Caribe e de ritmos daqui mesmo. Há diversas variantes, bregapop,
tecnobrega, tecnopop, melody, tecnomelody e até o chamegado, como o
da dona Onete! Vocês precisam ir a uma festa de aparelhagem, o som no
volume máximo, para ver o chão tremer, é o treme-treme.

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Capítulo 5

Belém do Grão Pará

(Na Estação das Docas, em Belém.)

– Círio, tio, explica tudo! Quanta multidão na rua. Acho que nos últimos dias
vimos pouca gente e tou até assustado! – diz Antônio.
– O Círio de Nazaré é esta festa da Igreja católica, com mais de duzentos
anos de tradição. Belém enfeita-se toda. É o momento de pintar as casas,
da faxina geral. Durante a procissão, as famílias vão para as ruas, enfeitam
as sacadas e janelas com toalhas brancas, réplicas da Nossa Senhora
por todos os lados, na portaria dos prédios, nas casas... Os parentes vêm
do interior, é uma festança. Para os católicos, é o grande momento do
ano, até mais importante que o Natal. As pessoas usam roupas brancas,
especialmente as camisetas com a imagem da Santa. Para os católicos,
Nossa Senhora, a mãe de Jesus Cristo, aqui carinhosamente recebe
diversos apelidos: Santinha, Santa, Naza, Nazinha, Nazica... A festa
dura mais de quinze dias. São diversas homenagens e um conjunto de
procissões – de motociclistas, a trasladação, a fluvial... Gosto da fluvial,
quando dezenas de barcos vêm de Icoaraci, distrito de Belém, aqui para a
Escadinha, ao lado da Estação das Docas.
– Mas não é perigoso, tanta gente na rua? – Juju está preocupada.
– É uma festa bem familiar. Famílias inteiras, grupos de amigos, seja para
participar da procissão, seja para ver as manifestações de fé, organizam-se
e fazem a sua festa dentro da grande festa. Se comparada a outras festas
populares – o carnaval, as festas juninas –, pode-se dizer que é bastante
tranquila, mas, claro, onde há multidão...
– E o que quer dizer “Círio”? – Antônio questiona.
– É sinônimo de vela. A Igreja católica utiliza a vela como símbolo de fé. Em
muitas procissões, há religiosos portando velas, antecedendo a imagem

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de quem é homenageado. Daí o nome “Círio de Nossa Senhora de Nazaré”.


Há, inclusive, um pequeno museu: o Museu do Círio. Vamos começar nosso
passeio por Belém? Olhem para o alto, estão vendo aquela estátua? É Pedro
Teixeira. Esse militar português teve grande importância na conquista
portuguesa de território na Amazônia brasileira.
– Por que, tio? Por que a gente nunca ouviu falar dele? – Gabriel questiona.
– Sim, eu vou contar quando chegarmos ao Forte do Presépio. A Estação das
Docas era o porto, construído no período da borracha por um empresário
norte-americano, Percival Farquhar, que investia em grandes obras no Brasil.
Aqui era a empresa Port of Pará, e este porto foi inaugurado em 1909. Parte
do Porto de Belém ainda funciona, aqui ao lado. À nossa frente, há este
casario português e o convento das Mercês, com a igreja das Mercês ao lado.
E agora, com vocês, o maior mercado aberto das Américas, o mercado do
Ver-o-Peso. São mais de trezentos e quarenta feirantes, em diversos setores
– frutas, ervas, peixes, farinhas...
– Ai que legal, quantos tipos de farinha! – Gabriel comenta.
– É tudo farinha de mandioca! Tem da grossa amarela, da branca, boa para
ensopado; da média, branca, amarela; da fina, que faz farofa; farinha-
d’água de Bragança, lavada... Há esta mais úmida, a goma, em outros
lugares conhecida como polvilho ou fécula da mandioca. É dela que se
faz a tapioquinha. Em outros lugares do Brasil, como no Nordeste, ela é
encontrada mais seca.
– Nossa, demais, nunca imaginei! Dá até fome de uma tapioquinha cheia de
manteiga... – entusiasma-se Juju.
– E ainda há, da mesma goma, a versão em farinha, conhecida simplesmente
como tapioca, ou farinha de tapioca, servida com coco, sem coco, fina,
grossa, média... Além da mandioca, há a macaxeira, que em outros estados é
a mandioca-mansa ou aipim. Além de poder ser cozida ou frita, dela também
se fazem as mesmas farinhas e também se tira a fécula. Bom, venham aqui.
Olhem bem estas folhas verdes!
– O que são, tio? – pergunta Gabriel.
– São as folhas moídas da planta da mandioca – a maniva –, a base de um dos
pratos exclusivos da culinária paraense, e que não pode faltar no Círio, a
maniçoba. Estas folhas são cozidas por dias até perderem seu “veneno”, o
ácido cianídrico, tóxico para homens e animais.
– E estas garrafas, com líquido amarelo? É pimenta dentro? – Gabriel pergunta.

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– Também é produto da mandioca. Este é o tucupi, como vimos lá na vendedora


de tacacá, vocês se lembram? O tucupi também precisa ser fervido por dias
para perder o ácido cianídrico. Aqui ele está pronto para o consumo. E fica
muito bom com a pimenta-de-cheiro e outros temperos. A mandioca é um
dos pilares da culinária paraense e está presente de mil e uma maneiras.
Enquanto um paraense ou amazonense, em média, consome cerca de
quarenta e cinco quilos de farinha de mandioca ao ano, no Nordeste,
consome-se um terço disso e, no resto do Brasil, cerca de cinco por cento
do consumo de um paraense. A farinha de mandioca é a principal fonte de
energia, de carboidratos da população da Amazônia tradicional. Imaginem
vocês que uma pessoa de setenta anos de vida adulta terá comido mais de
três toneladas de mandioca. São cinquenta e dois sacos de sessenta quilos!
– Nossa, tio, é mandioca pra dar com pau! – Gabriel assusta-se.
– Curioso, Gabriel, quando os portugueses chegaram aqui ao Brasil chamavam
a farinha de mandioca de farinha de pau, porque viam que a raiz da
mandioca parecia-se com um pau! Comparativamente, nos dias de hoje,
no Sul e no Sudeste do Brasil, a fonte principal de carboidrato é o trigo, na
forma de pães, bolos, esfirras, pizzas etc. No passado, antes do ingresso
do trigo para valer na culinária brasileira, o milho e a mandioca, além de
outros tubérculos, ou seja, outras raízes, como a batata-doce e o inhame,
respondiam pelas necessidades diárias de ingestão de carboidratos. Meu
amigo Carlos Dória tem diversos livros sobre o assunto, como o clássico
Formação da culinária brasileira. Um dia precisamos falar mais disso! Isso é
cultura, cultura alimentar. E o paraense dá grande valor à sua culinária, tem
grande orgulho disso, maravilhoso...
– E saboroso! – Juju completa.
– Aqui neste setor de artesanato, podemos ver o uso das fibras vegetais: do
miriti, do arumã, do jupati, do cipó-titica... Enfim, são dezenas de artefatos
que fazem parte do dia a dia ou de momentos de celebração. Para os
turistas, são belos objetos de decoração e servem como lembranças de suas
visitas: cuias, cestos, paneiros, matapis, peneiras, tipitis...
– Quanto nome diferente! Será que eu sei o que é isso tudo? – Antônio, curioso.
– Cuia é para tomar banho, para o tacacá, para tomar o açaí... O paneiro é um
cesto e serve para carregar muita coisa: açaí, frutas, camarão etc. Matapi é
a armadilha para o camarão, típica nesta região. E o tipiti, como vimos, é o
engenhoso cesto comprido, que se utiliza para retirar o tucupi da mandioca!
– Olha, tio, elas estão me chamando! – Juju alegra-se.

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– E lá das erveiras, sempre enfeitadas, cheirosas, simpáticas e alegres: Vem


cá, meu amor! Diga lá, freguês! Meu coração, o que é tu tá precisando: atrair o
amor, afastar mau-olhado, agarrar tua paixão?

Diário da Juju: São tantas as ervas. Estou en-can-ta-da. As


erveiras me ensinaram o banho de cheiro. Hum, que delícia!
Tem banho de cheiro pra tudo: descarrego, atrair dinheiro,
conquistar o amor. Eu anotei as ervas que iam falando: vem-
de-cá, chega-te-a-mim, pataquera, esturaque, corre-atrás,
oriza, japana, abre-caminho, catinga-de-mulata, busca-
longe, trevo-cumaru, cipó-cuíra, vinde-cá-pajé, priprioca...
Iche, esqueci o resto! Agora eu não sei a combinação. Mas
isso é a sabedoria delas, a misturança das ervas! Patrimônio
cultural, me explicaram, passado de avó pra mãe e pra filha!

– Vejam que prédios bonitos, tanto este de ferro, também do período da


borracha, quanto aquele do outro lado da rua.
– Nossa, tio, nunca vi peixe tão grande! – Gabriel comenta ao se deparar, logo
na entrada, com um imenso peixe de escamas vermelhas, de mais de dois
metros, ocupando todo o balcão do peixeiro.
– É o pirarucu, endêmico da Amazônia, peixe típico de lagos, tanto aqui do
Marajó, como lá no Solimões. Reparem também a variedade de peixes
neste mercado. Isto é fruto da diversidade de ambientes aquáticos. Há
tanto os de água doce, como a dourada e o filhote, que são bagres, também
chamados “peixes de couro”, como o pescado de escama – a pescada
amarela, a gó, a tainha, a pratiqueira... Há, ainda, os peixes dos lagos, os
peixes-do-mato como dizem alguns: o tamuatá, o acari-bodó, o tucunaré
e tantos outros. Aqui é o ponto nevrálgico do mercado, o porto de quem
chega do interior carregado de mercadoria. A maioria ainda é de barcos de
madeira, os de pesca ou os de carga. Reparem nas letras dos barcos, que
capricho! A designer Fernanda Martins estudou estas letras e constatou que
há uma tradição de pintar barcos na região, tradição ameaçada por diversos
fatores, entre os quais a chegada da pintura a pistola, a substituição das

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João Meirelles

embarcações de madeira por aquelas de metal, além do uso do computador


com letras, que substitui o trabalho manual.
– É mesmo muito colorido – Juju pontua.
– É mais uma profissão que vai embora, a dos abridores de letras, estes pintores
artesanais e autodidatas... E, agora, com vocês, o mercado do açaí. Ah, que
pena... Chegamos tarde! Está no finalzinho da comercialização do fruto. Isto
aqui fica apinhado de gente, com montes de cestos, que aqui chamam de
“paneiros”. É preciso chegar entre quatro e seis horas da manhã. Vamos saber
muito mais sobre o açaí, pois visitaremos famílias de coletores no Marajó. Por
ora, observem a frutinha, como chega e a maneira como é vendida.
– E pra onde vai tanto açaí? – Juju pergunta.
– O hábito do paraense e do amapaense é consumir o açaí fresco, junto com
a comida. Ele acompanha a farinha e o peixe, na parte salgada da refeição.
Outros já o preferem como sobremesa, com açúcar e farinha de tapioca
ou farinha de mandioca. O que não pode é faltar na mesa! Quem prepara o
açaí fresco é o batedor de açaí, profissão que só existe aqui. Ele transforma
a fruta em polpa e a vende em saquinhos de plástico, por litro. O batedor
tem um pequeno espaço na cidade, uma portinha; quando tem açaí pronto,
coloca uma placa ou um pano na cor roxa ou vermelha para anunciar o seu
produto. Há quatro tipos de açaí, conforme a quantidade de água adicionada:
papa, grosso, médio e fino, também chamado “popular”. Vamos saber mais
sobre isso numa visita a um batedor. Na Grande Belém e no Baixo Tocantins,
há pelo menos seis mil pontos de venda de açaí. É fácil identificá-los. O
vendedor abre a sua portinha e põe a bandeira roxa para fora, geralmente
uma plaquinha de metal em que está escrito “açaí.” Pronto, todo mundo
sabe que o açaí chegou! E a batedeira funciona até a hora do almoço.
– Tio, compra açaí pra tomarmos no hotel? – Juju faz um biquinho pedindo.
– Não se preocupem, onde vamos almoçar tem açaí para valer. É o Point do
Açaí, do Nazareno Alves. Vocês vão gostar. Mas, antes, vamos visitar o lugar
do nascimento de Belém. No início, era um forte bem pequeno, com paredes
de toras, uma paliçada. O conjunto recebeu o nome de Feliz Luzitânia. O
primeiro foi batizado de Forte do Presépio, em função da data em que os
primeiros portugueses chegaram a Belém em 1616. Aqui vocês podem ver
o encontro de dois rios. À esquerda, o rio Guamá e, à direita, o rio Pará. Na
verdade, o Pará é a continuação do Tocantins, que se junta ao Acará e ao
Moju, e também recebe as águas do rio Amazonas, que vêm pelo canal do
Tajapuru, além de outros rios menores que vêm do Marajó e do continente.

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– É muita água, minha nossa! – Antônio comenta.


– Verdade, estes rios somados, o Amazonas, o Tocantins e outros menores,
como o Guamá e o Araguari, que não são tão pequenos assim, representam
juntos mais de um quinto da água doce que todos os rios do planeta lançam
nos oceanos. Esta ilha em frente de Belém é a ilha das Onças, a uns dois a
três quilômetros daqui. Se não houvesse esta ilha, vocês vislumbrariam o
rio Pará com mais de dezessete quilômetros de largura, deste ponto onde
estamos até a outra margem, na ilha do Marajó. Voltemos ao nosso Pedro
Teixeira. E eu pergunto: quem é ele mesmo?
– Ah, tio, tu disseste algo diante daquela estátua, quando começamos o
passeio, mas eu já esqueci... – Juju murmurou.
– Bem, agora é que vou contar mesmo. Só mencionei que era alguém
importante. Depois de quase um século da primeira descida de europeus
pelo rio Amazonas, em 1541, desde Quito, no atual Equador, pela pequena
tropa espanhola, chefiada por Francisco de Orellana, os portugueses
residentes no Pará organizaram uma expedição para subir o rio Amazonas
até onde fosse possível. O comando dessa frota, que deixou Belém e foi
reforçada em Cametá em 1637, foi dado a Pedro Teixeira. Há notáveis
diferenças entre as duas viagens. Agora se trata de uma bandeira militar bem
planejada, com a maioria dos portugueses em armas. Mas quem fez a força
mesmo foram os mais de dois mil índios que trabalhavam na verdade como
escravos, remando contra a corrente dos rios, carregando mercadorias,
cozinhando, caçando e pescando para abastecer a imensa tropa.
– Os índios sempre explorados! – Antônio lamenta, inconformado.
– Sempre, disfarçadamente, como hoje, ou descaradamente, como no período
colonial. Para entender por que estamos falando tanto dessa viagem, é
preciso recordar que, desde 1580, Portugal e Castela (Espanha) formavam
um único reino. E isso durou oitenta anos, até 1640. A justificativa da viagem
era devolver à cidade de Quito, no Vice-Reinado do Peru, um pequeno
grupo espanhol de frades e soldados que, sem planejar, descera o grande
rio até Belém. Mas, para os portugueses, era a chance de avançar as suas
fronteiras em direção a oeste, além de Tordesilhas (a linha de norte a sul,
que praticamente passava em Belém e que garantia à Espanha todo território
a oeste de Tordesilhas). Portugal, que não teve a mesma sorte da Espanha,
que encontrara metais preciosos tanto no Peru e na Bolívia, como no Caribe
e no México, desejava, pelo menos, controlar uma rota alternativa para o
Peru e acreditava que a melhor maneira seria através de tributários do rio
Amazonas, como o rio Madeira.

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– Sabidinhos esses portugueses, hein, tio! – Gabriel, interessado na história.


– Bem, o teimoso Pedro Teixeira, com mais de sessenta anos, comandou a
expedição que precisou de mais de seis meses para alcançar Quito. Afinal,
era o braço indígena no remo, com alguma ajuda das velas, que movia as
pesadas embarcações contra a correnteza. Além disso, navegavam por rios
praticamente desconhecidos. No retorno, nas proximidades da foz do rio
Aguarico, afluente do Napo, que os portugueses diziam ser o “rio do Ouro”,
Teixeira cravou um marco e fundou a vila de Franciscana, no rio Solimões
(nome do rio Amazonas nessa região), perto de onde está a cidade brasileira
de Tabatinga, na atual fronteira brasileira com Letícia, na Colômbia. O ato, à
revelia da Espanha, mudará, para sempre, a geografia política da Amazônia.
Essa expedição militar duplicará o território português na América, até
então a leste do Tratado de Tordesilhas. A Amazônia que Pedro Teixeira e
seus pares conquistaram equivale a trinta vezes o tamanho de Portugal.
Se comparado à Europa, o território seria maior que todo o continente, de
Lisboa a Moscou!
– Mas, tio, nem em Portugal esse gajo é conhecido? – Gabriel questiona.
– Esquecido lá como cá. Imaginem que o Brasil anterior a Pedro Teixeira teria
apenas um terço do Brasil de hoje, seria apenas o atual Nordeste, parte
de Tocantins, parte de Goiás, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro
e metade de São Paulo. Mas não podemos esquecer que os militares e os
pioneiros eram extremamente violentos, destruíam povoações indígenas
inteiras e foram os grandes transmissores de doenças que dizimaram
esses povos. Precisamos compreender melhor o impacto dessas incursões
militares na história da Amazônia. Outro fator que alimentava a cobiça
dos europeus era o mito do El Dorado (a terra do ouro), alimentado
pelos espanhóis para atrair mão de obra para a mineração nos Andes,
pois acreditava-se na possibilidade de existirem outras fontes de metais
preciosos tão surpreendentes como as encontradas em Potosí, atual
Bolívia, e no México no século XVI. Bom, vamos descansar, porque, à noite,
participaremos de mais uma procissão do Círio. Antes, por favor, Juju, leia
um trecho de um viajante que andou por aqui há mais de cento e cinquenta
anos, em 1841, o pastor protestante Daniel Kidder.
– E Juju assim começa: – Em torno da Ponta das Pedras1, o desembarcadouro
principal da cidade, há, geralmente, grande número de canoas atracadas.
Essa cena, movimentada pela turba indígena que fala os mais variados
dialetos amazônicos, é peculiar à cidade. Percebem-se aí carregamentos de
1 Referindo-se à laje de pedras do porto.

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João Meirelles

castanhas do Pará, cacau, baunilha, urucu, salsaparrilha, canela, tapioca,


bálsamo de copaíba em boiões, peixe seco em pacotes, cestas de frutas de
infinitas variedades, tanto secas como verdes. Encontram-se, também, aí,
papagaios, araras e outros pássaros de rica plumagem, bem como, mais
raramente, macacos e cobras de mistura com quantidades imensas de
sapatos de borracha que são geralmente conduzidos ao mercado suspensos
em varas a fim de evitar que se colem uns aos outros. A produção indígena da
província do Pará é enorme e valiosa. Se apenas o povo se desse ao trabalho
de colher aquilo que a natureza tão prodigamente lhe põe nas mãos, não
poderia deixar de enriquecer.
– Nossa, tio, agora eu vejo como é legal ler os viajantes. Esse aí não tem papas
nas línguas! – manifesta-se Gabriel.

Diário da Juju: Eu não sou muito religiosa. Mas é


emocionante ver este povo todo, caminhando, rezando,
cantando. Olha aquele de joelhos, será que vai assim da
igreja de Nazaré até a Catedral? Nossa, veja a corda, todos
se amassando, e só pra tocar na corda! Eu fico até arrepiada
com tanta fé. E agora a “Santinha”: todos choram, batem
palmas na passagem da berlinda, este carro onde ela
vai, todo enfeitado de flores. É mesmo emocionante. E
pensar que é uma imagem bem pequenininha, achada
na beira de um igarapé aqui em Nazaré mesmo.

– Que cidade linda, que árvores são estas? – Gabriel admira-se.


– Ué, você não sabia? Eu li que Belém é chamada “cidade das mangueiras”! –
Antônio comenta, orgulhoso de suas pesquisas.
– É verdade. É a cidade das mangueiras, mas as mangueiras vieram da
Índia, assim como o jambo, o tamarindo e outras frutas. Mesmo o jambu, o
tempero considerado tão paraense, é de fora, da América Central. O mesmo
se passa com o patchuli, a raiz de cheirinho gostoso, e mais da metade
das ervas que encontramos no mercado do Ver-o-Peso. Mas isso não faz

Viagem à Amazônia | 71
João Meirelles

diferença, está assimilado e interpretado pela cultura local, neste caldeirão


cultural amazônico, como tantos saberes e fazeres... O que importa não é de
onde veio esta ou aquela planta ou animal e, sim, o uso que damos a eles.
Apropriar-se de uma planta como o jambu para a culinária é um ato cultural
de grande significado! Um manifesto, uma afirmação que se quer aqui
diferente dos outros lugares. Isso é cultura!
– Concordo, tio! Bem dito! – Gabriel acena com a cabeça.
– Voltando a nossas belas mangueiras, na época da borracha, que coincide
com a Belle Époque europeia e que literalmente significa “Bela Época”, os
bairros mais novos, como Nazaré e Batista Campos, imitavam as modernas
ruas de cidades europeias avançadas, como Paris, arborizadas e largas. No
auge do período da borracha, tanto a cidade de Belém, como o estado do
Pará praticamente só investiram seus recursos para o benefício da elite local.
Belém e Manaus são pioneiras em água encanada, esgoto, energia elétrica,
bonde como transporte urbano e modernos portos, mas apenas em suas
áreas mais abastadas. Além das mangueiras, há que se notar as preciosas
praças, a da República, a Batista Campos e o Bosque Rodrigues Alves. Belém
ficou bem mais fresca e confortável. Bem diferente dos bairros da época
da colônia, como a Cidade Velha e a Campina, onde os portugueses viviam
bem apertados, em pequenas casas, com ruas estreitas, sem esgotos, sem
árvores e sem diversos confortos. Além do mais, é muito divertido colher
as mangas que caem na rua... Quando é época de manga e vou caminhar
cedinho, volto sempre com uma a duas mangas na sacola. Só não é divertido
quando caem na nossa cabeça...
– Sério, tio, caem na cabeça? – Antônio preocupa-se agora com cada árvore
por baixo da qual passa.
– Pena que se plantem poucas árvores nas regiões novas da cidade. Hoje os
bairros nascem rapidamente, e não há espaço para árvores e praças. Para
piorar, a prefeitura municipal pouco se dedica a manter as calçadas e a
organizar as atividades informais dos camelôs. Quem vence a batalha são os
carros. O que chamam de progresso é cimentar qualquer pedaço de chão e
construir o máximo que se puder. Observem que a maioria das construções é
irregular, e as leis municipais são letra morta.
– Cê tem razão, tio, o resto da cidade poderia ser bem melhorzinha! –
Antônio concorda.
– Lá no bairro onde mora meu primo, o Reduto, que já foi uma área de
pequenas fábricas e vilas operárias, agora há um shopping center que ocupa

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João Meirelles

cada centímetro do terreno. Não entendo como isso é aprovado, não se


respeitam os recuos, os limites de altura para a construção... Mas parece que
nos dias de hoje leis municipais não têm muito valor. Há tanta irregularidade
nas construções civis que seria preciso derrubar tudo e começar de novo.
– É a “força da grana que ergue e destrói coisas belas”! – cantarola Juju.
– É verdade, o Caetano Veloso tem razão. Ele cantava São Paulo, mas serve
para todas as cidades do Brasil. Aqui falta de tudo – o transporte é precário,
vejam estes ônibus, que vergonha! A água não chega a todos, esgoto, então,
menos de dez por cento têm este privilégio em Belém, quando deveria ser
um direito do cidadão. Até as edificações da avenida mais chique da cidade,
a Brás de Aguiar, jogam esgoto na rua!
– E pra onde, então, vai toda essa porcaria? – Antônio preocupa-se.
– Para os córregos, que aqui se chamam igarapés, para as baixadas, que são
as áreas alagadas, e depois segue tudo para os rios, para o rio Guamá e o rio
Pará, contaminando os solos e as águas superficiais e subterrâneas. É um
grande risco tomar água tanto dos rios como dos poços. Aqui as doenças
transmitidas pela água são a principal causa de internação, especialmente
de crianças. Para resumir, aqui está a maior quantidade de água doce do
planeta e não temos sequer água para beber!
– Tio, eu queria entender um pouco melhor como foi Belém no começo, na
época do seu Pedro Teixeira. Como uma única expedição garantiu uma área
tão grande pra Portugal? – Juju desabafa.
– Sim, é verdade. O que garantiu ocupar o interior, o sertão, para valer mesmo,
tanto do lado da Espanha como de Portugal, foram as missões dos religiosos
católicos. Em vez de enviarem tropas militares e instalarem fortificações, os
reinos ibéricos aliciavam os religiosos, estimulando-os a “salvar” as almas
dos índios. Essa era a maneira eficiente, de baixo custo para as Coroas, de
amansar os povos da terra e de promover a conquista, especialmente de
uma região tão grande. Essa estratégia funcionou até 1750, logo, por cerca
de duzentos e cinquenta anos, se contarmos desde a chegada dos primeiros
europeus à América do Sul. A partir desse momento, o Secretário de Estado
do Reino, o Marquês de Pombal, cansado dos desmandos dos religiosos e,
principalmente, do comércio de produtos que eles controlavam, e sobre
os quais não pagavam impostos, como o açúcar, a pinga e as drogas do
sertão, expulsou os religiosos da Amazônia. Nesse momento, a Amazônia
Portuguesa contava com sessenta e três missões – jesuítas, mercedários,
carmelitas, franciscanos de Santo Antônio, frades da Piedade e frades da

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Conceição. Havia, porém, questões positivas em relação às missões, se


comparadas à truculência da administração e dos colonos portugueses.
Se, ao mesmo tempo, as missões atraíam diferentes nações indígenas,
protegendo-as da escravização pelos militares e pelos colonos, cobravam
um preço muito alto dos indígenas. Os missionários salvavam o corpo, mas
escravizavam a alma, proibindo os índios de praticarem os seus rituais,
dizendo que os seus costumes eram “selvagens”, que andar nu era pecado.
Consideravam os seus pajés como bruxos que faziam rituais “satânicos”,
proibindo inclusive os seus cantos, danças e cerimônias religiosas...
– Que coisa feia, tio! – Juju está indignada.
– Estou te estranhando, Juju! Será que os missionários de hoje são tão
diferentes daqueles dos séculos XVII e XVIII? E estou falando de todos os
religiosos, inclusive das novas igrejas pentecostais! Mas nem tudo foram
perdas. Os jesuítas, por exemplo, dedicavam-se a entender outras línguas,
a escrever gramáticas, a traduzir livros, ainda que saibamos que isso tinha
um objetivo bem claro: traduzir a Bíblia e textos religiosos para as línguas
locais. Um dos maiores feitos dos jesuítas no Brasil foi a criação de uma
língua que pudesse ser utilizada em todo o sertão, especialmente na
Amazônia. E, assim, criaram o “nheengatu”. Essa língua foi construída com
uma maioria de palavras do tronco linguístico tupi, acrescida de palavras
de outras línguas. O nheengatu, também chamada de “língua geral”, foi
desenvolvida a partir da chegada dos primeiros jesuítas ao Brasil, nos anos
1500. Os jesuítas chegaram à Amazônia cento e cinquenta anos depois
da invasão do Brasil e conseguiram que essa língua geral fosse o principal
meio de comunicação até o período da borracha, ou seja, por mais de dois
séculos. Os bandeirantes paulistas, que corriam a região buscando ouro e
indígenas para escravizar, utilizavam o nheengatu amplamente, assim como
os comerciantes portugueses, até que o Marquês de Pombal, a partir de
1750, proibiu o seu uso, o que não vingou totalmente, especialmente nas
regiões mais remotas. Paulatinamente, essa língua foi sendo substituída
pela língua portuguesa e, mesmo assim, ainda foi encontrada por linguistas
entre os grupos indígenas no alto rio Negro!
– Estou gostando, continua, tio! – Juju insiste.
– Nesse período, a Amazônia torna-se efetivamente portuguesa, a partir
da assinatura do Tratado de Madri, em 1750. Esse tratado foi altamente
vantajoso a Portugal, graças à sabedoria do negociador, Alexandre de
Gusmão. Esse paulista, da cidade de Santos, provavelmente o maior
diplomata do período colonial português, fez valer o princípio de uti

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possidetis, ou seja, “a terra é de quem tem a posse”.


– Mas, tio, a terra, a posse da terra não era dos índios? – Juju, colérica!
– Claro, mas os europeus sempre se viram com direito a tomar tudo o que vissem
– as terras, os índios, as suas almas... E a história colonial é a história da rapina,
por parte dos insaciáveis portugueses e de outros europeus, dos direitos dos
povos originários. Daí que os marcos fincados naquela expedição de Pedro
Teixeira e outras iniciativas semelhantes garantiram as fronteiras ao reino de
Portugal, hoje território do Brasil. À exceção de breves trocas de tiros entre
portugueses e espanhóis no fim do século XVIII e entre brasileiros e bolivianos
e peruanos, por conta do Acre, mas já no finzinho do século XIX, as questões
de fronteira foram resolvidas por meios diplomáticos. Bom, vamos voltar a falar
de Belém. Por favor, Antônio, leia para nós o que o jesuíta João Daniel escreveu
acerca da cidade, em meados do século XVIII, quando era rota de contrabando
do ouro vindo do Peru, o que, juntamente com o apoio às demarcações de
fronteiras, ajuda-nos a compreender a atenção de portugueses para Belém.
– Já corre entre eles uma como profecia, de que a sua cidade se há de vir a
chamar o Porto do Ouro – Antônio lê.
– Antes de deixarmos esta parte da cidade, deixem-me mostrar a Catedral e,
defronte, a igreja de Santo Alexandre, originalmente jesuíta; mais adiante,
o maior edifício público do Brasil do século XVIII, residência e palácio do
governo colonial, o Palácio Lauro Sodré, hoje Museu do Estado do Pará. Há
algo bem interessante, aqui mesmo, na praça Dom Pedro II, em frente do
Solar do Barão de Guajará, um dos coronéis da borracha, e hoje é a sede do
Instituto Histórico e Geográfico do Pará. Eu até arriscaria dizer que se trata
de uma das pedras mais valiosas aqui de Belém:
– Tio! Mas é isto aqui? A tal da pedra importante? Isto aqui cheira a mijo! –
Gabriel está decepcionado e torce o nariz.
– Claro, ninguém toma conta! Assim é a nossa história: vira mictório público.
Este marco em mármore português, também conhecido por “pedra de lioz”,
é um dos que no século XVIII foram levados pela Coroa portuguesa para a
demarcação das fronteiras entre os reinos de Espanha e Portugal. Este aqui
estava no alto rio Negro. Há outro, ao lado do Palácio do Itamarati, junto aos
buritizais, em Brasília; e, um terceiro, aqui em Belém, na Primeira Comissão
Brasileira Demarcadora de Limites, do Ministério das Relações Exteriores, na
avenida Governador José Malcher.
– Que legal, como é importante olhar os detalhes! Nossa, tio, Belém é
mesmo especial! – Juju constata.

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– É verdade, há muita história nestas paredes, nestas calçadas, na memória


coletiva, no conhecimento popular. A história oficial é só parte do que
aconteceu. A grande história está nas casas, nas famílias, nas narrativas
que atravessam os séculos, enfim, no povo. De qualquer maneira, Belém,
como port de entrada da Amazônia foi sempre a conexão entre a Europa e o
interior e, mais tarde, entre o resto do país e a Amazônia profunda.

Diário da Juju: Ainda visitamos a igreja do Carmo e a


antiga prisão, transformada em Polo Joalheiro, onde
há um pequeno e precioso museu de pedras (de gemas)
e um centro de artesanato, o Espaço São José Liberto.
Dali fomos ao Parque Zoobotânico do Museu Paraense
Emílio Goeldi e ao Bosque Rodrigues Alves. Ufa, que dia!

– Vejam vocês que, nesta região, na “distante” Nazaré, na metade do século


XIX, os ingleses Henry Walter Bates e Alfred Russel Wallace coletaram
grande quantidade de borboletas e mariposas. Esses dois também
contribuíram para confirmar a teoria da “origem das espécies”, do também
inglês Charles Darwin, com quem se correspondiam. Vou ler um trecho do
livro de Bates. Notem que, quando ele fala de “Pará”, quer dizer “Belém”:
As vizinhanças do Pará são ricas em insetos. Não falo em termos de número
de indivíduos, o que é provavelmente inferior ao que se encontra em dias
de verão em zonas temperadas, à exceção de formigas e cupins; mas a
variedade ou, em outras palavras, o número de espécies é muito maior. A
diversidade de borboletas, por exemplo, quando eu menciono que cerca de
setecentas espécies são encontradas em uma hora de caminhada ao redor
desta cidade; enquanto o número total encontrado nas Ilhas Britânicas não
excede a sessenta e seis, ou em toda a Europa não se encontram mais de
trezentas e vinte e uma espécies.
– Uau, tio. Isto é que é diversidade biológica! – o futuro biólogo comentou
entusiasmado.
– Bem, há cento e setenta anos, Bates concluiu que determinadas espécies,
palatáveis para predadores como aves, seriam mais bem-sucedidas se
imitassem outras, ou seja, quando utilizavam disfarces, semelhantes àquelas

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menos palatáveis; dessa forma, estariam mais protegidas dos predadores.


Um dos exemplos que Bates utilizou para provar a sua teoria foi o de uma
mariposa, que parece muito com um pequeno beija-flor. Foi daí que nasceu a
noção de mimetismo.
– Égua, que coisa interessante! É por isso que quero ser biólogo! – Gabriel comenta.
– E, então, estão preparados? Vamos continuar a nossa viagem? Agora
tomaremos um barco para Soure, no Marajó.
– Tio, antes de ir embora, não íamos visitar uma das ilhas de Belém? –
solicita Gabriel.
– Sim, claro, vamos dar um pulinho em Cotijuba, uma ilha à qual só se chega
de barco.

***

(No porto de Cotijuba, depois de uma hora em um barco regional, a turma


chega animada.)

– Aqui do trapiche, vamos tomar um bonde ou uma motorrete, o que


chegar primeiro.
– Motorrete? Bonde? O que é isso? – Juju pergunta.
– A motorrete substituiu a charrete puxada por cavalo. E o bonde é como
chamam a carreta puxada por um trator, que leva os passageiros para
os lugares mais distantes da ilha, como a praia de Vai-Quem-Quer. Nós
vamos parar bem antes, na sede do Movimento das Mulheres das Ilhas de
Belém (MMIB). O Movimento trabalha a autoestima e a geração de renda
de mulheres e jovens. Há mais de uma década, eles vendem ervas, como a
priprioca, uma raiz conhecida na perfumaria local, para a Natura Cosméticos.
E ainda tem biblioteca, artesanato, centro de inclusão digital, viveiro de
mudas, turismo de base comunitária e muito mais.
– Nossa, tio, sabe o que dá pra perceber? Quando a parceria entre empresa,
organizações não governamentais (ONGs) e movimentos sociais funciona, dá
pra fazer muita coisa! – Juju manifesta-se.
– Exatamente, tu entendeste o sentido do trabalho das ONGs: ser um
facilitador do diálogo, pesquisar com as comunidades para que elas
reconheçam os seus direitos e deveres. Enfim, construir caminhos juntos.

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E inspirar o poder público para ações de baixo custo e de grande impacto.


Não é possível que um movimento como esse resolva todo o drama social
de quem mora aqui em Cotijuba, mas é possível mostrar meios de avançar.
A população cresce rápido, e já são mais de cinco mil moradores. Projetos
como esses são sementinhas, para serem copiados, ganharem escala. Se
considerarmos todas as ilhas de Belém, Ananindeua, Barcarena e Acará,
só para falar das ilhas no entorno da Grande Belém, são mais de trinta mil
ribeirinhos. Estão bem espalhados, são centenas de comunidades, a maioria
não tem sequer água limpa para beber. Energia elétrica é para poucos e,
quando tem, falha muito. Esgoto, transporte decente, segurança, iche!
– Difícil esta vida, tio! – Gabriel faz cara de solidário.
– Pois é, até para estudar é complicado. O transporte escolar exige que o
estudante saia muito cedo de casa e volte tarde. Os postos de saúde são
poucos, precários e distantes... E isso morando na maior metrópole da
Amazônia, com mais de dois milhões de habitantes! E então? Todos prontos
para amanhã cedinho tomar a balsa para Soure? Iremos de carro visitar os
quilombolas em Salvaterra e as pequenas fazendas de criação de búfalos em
Soure ou Cachoeira do Arari, conforme der.

(Retorno a Belém.)

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Capítulo 6

O arquipélago do Marajó

(Na balsa, saindo de Icoaraci, em Belém, ao nascer do sol.)

– Nossa, tio, é muita água! E isto é muito bonito! – Juju proclama.


– E vocês nem viram o tamanhão deste rio! Daqui a pouco, depois de Cotijuba,
aquela ilha que visitamos ontem, vocês verão a largura do rio Pará. Tem
momento que a gente só vê água de lado a lado. Quando o rio está cheio, no
fim do inverno amazônico, a água doce é lançada a dezenas de quilômetros
mar adentro. Dá para ver pela sua cor e, mesmo, provar a baixa salinidade.
Vamos aproveitar este trecho de balsa para estudar sobre a história e o meio
ambiente da Amazônia.
– Tá certo, tio, deixa então eu começar. Eu sempre quis saber quem descobriu
a Amazônia? – Antônio inicia.
– Antônio, lembre-se do que falamos. A Amazônia não foi “descoberta”, foi
“achada”. Milhões de pessoas moravam aqui, provavelmente mais gente
que na Península Ibérica. No caso do rio Amazonas, no século XVI, quem
primeiro deu notícia de sua existência foram dois navegadores espanhóis,
Vicente Pinzón e Diego de Lepe. E isso antes de Pedro Álvares Cabral avistar
o monte Pascoal, na atual Porto Seguro, Bahia. Esses dois aventureiros
participaram da primeira viagem de Colombo à América, em 1492, e estavam
interessados, como todos naquela época, em riquezas fáceis no novo
continente. Os navegadores chamaram o grande rio de Santa María de la
Mar Dulce (Santa Maria do Mar Doce). Seus relatos são breves. De qualquer
maneira, dedicaram algumas linhas à descrição do primeiro animal que
avistaram na Amazônia. Na verdade, o primeiro animal descrito da América
do Sul. Trata-se de uma mucura.
– Que bicho é esse, tio? – pergunta Juju, a curiosa.
– Vocês conhecem, é o gambá, um marsupial. Os marsupiais são uma

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infraclasse de mamíferos, que não têm placenta; eles têm uma bolsa na
barriga, onde ficam os filhotes ainda imaturos. São diversas as espécies e
são bem comuns em todo o Brasil, mesmo em áreas urbanas, próximas às
matas. Os espanhóis chamaram o gambá de “animal monstruoso”!
– Mas por que os espanhóis não seguraram a Amazônia pra eles? – insiste Juju.
– Boa pergunta. A partir da viagem de Colombo e do Tratado de Tordesilhas,
dois anos depois, os espanhóis decidiram explorar a região que lhes
caberia pelo tratado, mas não encontraram nada de interesse imediato.
Nas primeiras décadas do século XVI, tanto a Espanha como Portugal
estiveram mais focados nas rentáveis rotas para o Oriente e mesmo para
a África. Essa situação mudou radicalmente com a descoberta das minas
e dos tesouros em ouro, prata, esmeraldas e outras pedras do Caribe,
México e Peru. Trinta e dois anos depois dessa viagem de Lepe e Pinzón,
o primeiro europeu a descer o rio Amazonas, saindo de Quito, no atual
Equador, até o Atlântico, também foi um espanhol, Francisco de Orellana.
Orelllana e seus colegas participavam de uma expedição espanhola que
deixara Quito para explorar a cordilheira dos Andes. Não conseguindo
regressar, optaram por seguir a corrente do rio em uma dura viagem de
oito meses que os levou ao megadelta do Amazonas-Tocantins e, na
sequência, para a costa da Venezuela. Ao retornar à Espanha, Orellana
organizou uma expedição para tomar posse da Amazônia para a Coroa
espanhola. Mas naufragou no megadelta do Amazonas-Tocantins, que os
espanhóis chamavam de Marañon.
– Nossa, que aventura, tio! Conta mais, e aí? – Gabriel comenta.
– Essa expedição de Quito até o megadelta foi conhecida graças ao relato
de seu cronista, Frei Gaspar de Carvajal. É nessa viagem que os espanhóis
descreveram as corajosas guerreiras, as amazonas. “Amazona” origina-se
do grego e quer dizer guerreira. O que devemos considerar é o tremendo
medo por que passou esse pequeno grupo de homens, diante de centenas
de aldeias indígenas ao longo da calha do Amazonas. Os soldados
espanhóis estavam doentes, famintos e viam inimigos em toda parte. A
presença de mulheres nuas que guerreavam de maneira tão aguerrida,
entre aqueles que os hostilizavam, certamente os impressionou muito.
Esse delírio garantirá ao rio este nome fantasioso – Rio de las Amazonas –
e, depois, “Amazonas” para a região, nome que carrega até hoje. Assim, o
nome da região é uma interpretação europeia fantasiosa, e não um nome
escolhido por suas populações. Mais de duzentos anos depois de Orellana,
um cientista francês, Charles Marie de La Condamine, ainda procurará

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pelas amazonas! O mito persistiu pelo menos até o final do século XVIII.
E sempre tem algum doido querendo encontrar as cidades perdidas do
Eldorado ou a tribo das amazonas.
– Quem foi esse Condamine? – Gabriel pergunta.
– Em 1743, ele foi o primeiro cientista a visitar o rio Amazonas. Até então
só religiosos, colonos, mercenários, militares e administradores europeus
perambularam por lá. Ele participa de uma expedição franco-espanhola
para a medição da linha do Equador. Depois do trabalho, com o seu colega, o
equatoriano Pedro Vicente Maldonado, desce o Napo e, a seguir, o Solimões
e o Amazonas para realizar diferentes medições e observações científicas.
Condamine contribuirá para a escolha das variedades de quinina que seriam
mais efetivas contra a malária, a base do remédio tão comentado hoje, a
cloroquina, atualmente um produto químico sintetizado a partir da planta
amazônica. Embora a quinina tenha sido levada para a Europa pelos jesuítas,
pouco se conhecia, do ponto de vista científico, sobre as suas propriedades.
É importante lembrar que, na época, a malária não escolhia reis ou plebeus,
numa Europa ainda assolada por grandes pestes, e quase nada se sabia
sobre a sua transmissão. Condamine ainda descreverá as propriedades da
seringueira para a produção de borracha e dedicará atenção ao curare, uma
pasta de diferentes plantas maceradas e aplicadas nas flechas ou jogadas
na água para imobilizar peixes e animais de caça. Naquela época, Portugal
tratava como espiões e inimigos todos aqueles que tentassem pesquisar
sobre a região. É surpreendente que essa viagem tenha ocorrido sem
problemas. Meio século depois, em 1800, um jovem alemão, Alexander von
Humboldt, visitará a América do Sul e será tratado como inimigo do reino
português, não recebendo autorização para visitar o Brasil. Essa miopia
portuguesa levará Portugal a perder, uma vez mais, o bonde da história.
Humboldt se tornará um dos maiores cientistas de todos os tempos, e as
suas observações de viagens são úteis até hoje. Para o cientista Cândido de
Mello Leitão, esta foi a maior expedição científica que jamais veio ao Brasil.
– Nossa, que coisa! Esses portugueses eram mesmo estranhos! – Gabriel comenta.
– Pois é. Apesar de se vangloriarem tanto de suas descobertas no campo da
navegação, eram bem atrasados quando se tratava da filosofia, do exercício
das liberdades individuais. Aqui no Brasil não se imprimiu um livro até
a fuga da família real portuguesa para o Brasil em 1808, tal o medo que
tinham das ideias novas! Eu diria que viviam no obscurantismo! Mas essa
situação começou a mudar com a chegada da Corte portuguesa ao Brasil e
o casamento de Dom Pedro I com Maria Leopoldina da Áustria. Cientistas

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como Johann Baptist von Spix, Carl Friedrich Philipp von Martius e Johann
Natterer foram então convidados a percorrer o Brasil.
– Égua do rio grande! – Gabriel anima-se ao deparar-se com a baía do Marajó, o
grande canal do rio Pará.
– A imensa balsa agora pulava sobre as imensas ondas que vinham do mar.
– Ah, agora tou gostando do meu paraense! Mas, lembrem-se, tão importante
quanto as águas superficiais são as águas subterrâneas e os rios voadores.
– O tio está brincando, que história é essa de “rios voadores”? – prossegue
Gabriel, curioso.
– É um nome bonito, não é? Toda ciência precisa de muita poesia. Os rios
voadores são os ventos carregados de umidade que vão do Atlântico em
direção aos Andes e depois distribuem umidade para todo o Centro-Sul do
Brasil, inclusive o Paraguai e o Norte da Argentina. O cientista Antonio Nobre
tem diversos estudos sobre o assunto. Vocês podem visitar o site do projeto
Rios Voadores, de Gérard e Margi Moss, para conhecer mais sobre isso.
– E essas águas subterrâneas? São muito profundas? São sempre de água
doce? – Gabriel continua.
– Sim. E, em sua maior parte, são potáveis. Não há nada mais seguro para
o consumo humano que essas águas subterrâneas. É bem estranho que
sempre pensemos na água dos rios e dos lagos e de outros corpos de
água superficiais, sujeitos à poluição e mesmo à contaminação natural por
bactérias e vírus, e nos esqueçamos das águas entranhadas no interior
da Terra. Esses depósitos são os aquíferos, formações com milhares de
quilômetros quadrados, que chegam a mais de quatrocentos metros de
profundidade. Na Amazônia, há pelo menos dois grandes aquíferos: o de
Alter do Chão e o Amazonas-Solimões. Há mais água embaixo da terra
que no próprio rio Amazonas. Os reservatórios ultrapassam as fronteiras
do Brasil e estão sob cinco países amazônicos – Equador, Venezuela,
Bolívia, Colômbia e Peru. Calcula-se que seriam mais de quatro milhões de
quilômetros quadrados, do Equador ao Marajó. Em termos práticos, três
vezes o aquífero Guarani, até há pouco tido como o maior, que se estende
pelo Sudeste e pelo Sul do Brasil, alcançando a Argentina e o Paraguai. É
importante lembrar que os rios dependem dessas águas subterrâneas e
interagem com elas. Estudos apontam que cerca de metade das águas dos
rios viriam das águas subterrâneas.
– E elas também correm perigo? – Gabriel preocupa-se.
– Claro, como se comunicam com as águas superficiais, estão sujeitas à

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poluição urbana, à poluição do garimpo, aos agrotóxicos jogados no solo


e na água pela agricultura e pela pecuária. Não se esqueçam de que o
Brasil é o campeão mundial no mau uso de agrotóxicos e de garimpagem.
Todo garimpo é ilegal, não confundam isso com mineração. E tem mais:
há também riscos com o aumento da atividade industrial de mineração, da
exploração de petróleo e da poluição industrial.
– E a pesca, tio? Aqui é uma região boa pra pescar? – Gabriel pergunta.
– A costa da Amazônia é uma das regiões mais piscosas do Brasil. Vêm
barcos de longe para pescar aqui. As embarcações saem tanto de Belém
e de Macapá, como de Bragança, Vigia e Curuçá e mesmo de outras
cidades costeiras do Nordeste. Mas a sobrepesca é uma ameaça séria,
especialmente quando se pratica a pesca de arrasto, que acontece da
seguinte forma: duas embarcações puxam uma rede enorme e arrastam
tudo o que encontram, levam até tartarugas, tubarões e golfinhos. Carregam,
além de pescado de tamanho comercial, os peixes muito pequenos e
muitas formas de vida que jamais deveriam estar na rede. O desperdício é
enorme: estima-se que, para cada tonelada de camarão ou peixe, sete outras
toneladas de peixes, moluscos e crustáceos são mortas e desperdiçadas.
– Que coisa absurda. Se eu comer um espetinho de camarão, ele custou pro
planeta outros sete espetinhos? E que ninguém comeu esses espetinhos! E
gente passando fome? – Juju, absolutamente indignada.
– Uma das razões de desperdício está na nossa forma de consumir. Somos
muito seletivos. Sempre queremos o mesmo tipo de pescado, não importa
se é a estação de pesca ou não. Em Belém, a pressão maior é sobre peixes
como a pescada amarela, a dourada e o filhote. Mas isso varia de lugar a
lugar. Assim, se não tem mercado para as outras espécies que vêm na rede,
os pescadores as desprezam ali mesmo, ainda no barco pesqueiro.
– O que falta então? – Gabriel pergunta.
– Bem, fiscalização e, principalmente, educação para os profissionais da pesca.
Para que eles compreendam que estão matando a galinha dos ovos de ouro,
ou seja, aquela abundância que hoje encontram desaparecerá daqui a pouco
e terão que abandonar a pesca. Também é preciso que o consumidor busque
alternativas para os peixes mais procurados, que valorize o que é tido como
popular, mas, na verdade, nada tem de inferior. É o caso, por exemplo, na
região de Belém, para a pescada-gó e a pratiqueira, entre tantas outras. O
que é preciso, urgentemente, é mostrar a versatilidade das muitas espécies
e, claro, impor limites para a pesca, como já ocorre em algumas espécies,

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quando se estabelece o período de defeso. E, além dos peixes, é preciso


muita atenção aos mamíferos aquáticos no megadelta. Eles precisam ser
pesquisados, monitorados e protegidos. Entre eles, estão os peixes-boi.
– Peixe-boi? Ei, tio, eu li que há pouquíssimos peixes-boi marinhos, é desses? –
Gabriel quer saber.
– Exatamente. Acredita-se que, da espécie marinha, haja menos de quinhentos
exemplares, mesmo assim, distribuídos de forma irregular ao longo da
costa brasileira. Essa espécie corre sério risco de extinção. O arquipélago
do Marajó é o único lugar do mundo onde se encontram as duas espécies
de peixe-boi presentes no Brasil: a fluvial e a marinha. A fluvial, que foi
extinta em algumas regiões, também é considerada ameaçada. Ambas estão
registradas no Livro vermelho da fauna brasileira ameaçada de extinção,
elaborado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio), órgão ligado ao Ministério do Meio Ambiente (MMA). Essa lista faz
parte dos esforços mundiais da União Internacional para a Conservação da
Natureza (IUCN).
– Que lista é essa? Nunca ouvi falar! – Gabriel, o projeto de biólogo pergunta.
– A lista, atualizada frequentemente com a colaboração de centenas de
cientistas, acompanha a situação de ameaça de diversos tipos de animais,
de insetos a mamíferos, e também de plantas. As espécies são classificadas
conforme o grau de ameaça, do vulnerável ao extinto, passando pelo
ameaçado. São mais de seiscentas espécies brasileiras de animais, e esse
número cresce a cada revisão da lista. No caso de peixes de água doce, a
maior ameaça são as usinas hidrelétricas, que criam barreiras permanentes
e intransponíveis para a migração de peixes. É o caso de Tucuruí, no
Tocantins, construída há quarenta anos, que ameaça, entre outras espécies,
um tipo de pacu e um peixe de couro, o jacundá.
– Que absurdo! E ninguém faz nada! É por isso que o país não vai pra frente,
joga no lixo a diversidade! – protesta Gabriel, o ambientalista.
– A gente conta mesmo nos dedos as iniciativas de conservação que dão
resultado, pois, além de serem raras, exigem muita pesquisa e bastante
tempo para alcançar avanços de grande impacto.
– E peixes, vamos voltar aos peixes, tou interessado em pescar! – Gabriel reclama.
– Nossa, nunca vi tanto peixe diferente! – Juju emociona-se.
– É verdade. Na Amazônia há mais espécies que no oceano Atlântico. São
mais de mil e quinhentas espécies. E há grandes possibilidades de chegar
a mais de duas mil e quinhentas. Imaginem, mais de seis por cento do

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total mundial. Uma das explicações para tanta variedade é a diversidade


de ambientes aquáticos: diferentes tipos de águas, brancas, pretas e
azul-esverdeadas, com características próprias de oxigenação, acidez
(pH), composição química, quantidade e diversidade de matéria orgânica
em suspensão, visibilidade etc. Há, ainda, os obstáculos físicos, como
corredeiras e cachoeiras. Além disso, determinadas áreas ficam isoladas
parte do ano, como nos lagos, outras recebem água só nas cheias. É o
caso dos campos do Marajó, das várzeas e dos igapós. Há peixes de longas
migrações, que buscam o estuário do Amazonas e retornam, como a
piramutaba e a dourada, peixes de couro. Há os que realizam pequenas
migrações, como o tambaqui, o pacu e o jaraqui, em geral entre as várzeas
e a calha dos rios e seus afluentes. Há os peixes típicos de várzeas e igapós,
que não migram, como o pirarucu e seu primo, o aruanã, além dos peixes
de lago, como o tucunaré. Há os que vêm do mar: as arraias de água doce,
as pescadas, as tainhas e as sardinhas; e os peixes visitantes, como o
tubarão e o peixe-serra da região do estuário. Há espécies que formam
cardumes, como a branquinha, a sardinha, e realizam migrações nos rios,
as “piracemas”. É o caso do tambaqui, da pirapitinga, do matrinxã etc. Há o
poraquê, o peixe-elétrico, que emite sinais elétricos para se orientar e para
atacar as suas presas. Com choques de até oitocentos e sessenta volts, a
maior voltagem registrada em um animal, consegue paralisar seus alvos.
– E as piranhas, tio? São mesmo tudo isso que contam? – pergunta Juju.
– Há muito mito mesmo. Para começar, estamos falando de mais de vinte
e cinco espécies de piranhas. Em geral, são tímidas. Mas, claro, quando
presas em um pequeno lago, com falta de comida, são agressivas como
todo animal faminto.
– E qual o maior peixe da região? – interessa-se Gabriel, o pescador.
– São os bagres, também conhecidos como peixes de couro, entre os quais
a pirarara, que come frutos, ajuda na dispersão de sementes e chega a
quatrocentos quilos. O mais comprido é a piraíba, que atinge mais de dois
metros e meio de comprimento e um peso próximo ao da pirarara.
– E o pirarucu? – Gabriel pede, com seu jeitinho particular.
– Também alcança o mesmo peso dos grandes bagres. Ele respira pelo pulmão,
uma bexiga natatória modificada, o que o obriga a vir à superfície a cada dez
minutos, em busca de oxigênio. Nesse momento, ele é arpoado. É o maior
peixe de escamas do continente americano.
– A criação de pirarucu, como de outros peixes, a chamada piscicultura,

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pode ser uma grande alternativa de renda para os ribeirinhos. No mercado


brasileiro e mundial, o pirarucu, por exemplo, pode substituir peixes de alto
valor comercial, como o bacalhau, que é um peixe marinho, de águas frias.
Afinal, as diversas espécies de bacalhau estão severamente ameaçadas
pela sobrepesca, e os seus estoques estão entrando em colapso.
Provavelmente, as próximas gerações não conhecerão o bacalhau ou ele
será um luxo muito grande.
– Então o pirarucu é o bacalhau da Amazônia? – interessa-se Gabriel.
– Se considerarmos que pode ser um bom substituto, em termos de sabor,
de pratos que se podem fazer com ele, é, sim. Temos que entender que os
peixes representam uma fração das formas de vida, certamente estão entre
as mais surpreendentes e visíveis criaturas, mas há muito mais. A maior
parte da biodiversidade é pouco visível. O maior número de espécies é de
insetos e de microrganismos. A vida microbiana – as bactérias, os micróbios,
os vírus escondidos nos solos e nos seres vivos – é de uma diversidade
surpreendente, inimaginável. Para vocês terem uma ideia de nossa
ignorância, descrevemos até hoje alguns milhares de bactérias e cerca de
um milhão de espécies de insetos. Somente na nossa boca, haveria cerca de
quinhentas espécies de bactérias, em nosso intestino, outras quatrocentas,
em sua maior parte diferentes daquelas da boca. Um copo com água do mar
pode conter mais de dez mil espécies de bactérias!
– Nossa, como somos mesmo parvos! Adoro esta palavra: “par-vo”! – Juju revolta-se.
– Vejam os plânctons, por exemplo...
– Plâncton? Acho que estudei sobre isso. São dois tipos, não é? – Gabriel continua.
– Justamente, há os fitoplânctons (fito, radical que está relacionado à
vegetação) e há os zooplânctons (zoo, radical que indica se tratar de
animais). Os fitoplânctons são microrganismos que produzem cerca de
metade da produção de alimentos básicos no planeta, sem eles não haveria
comida para as outras espécies. São a base da cadeia alimentar nas águas,
tanto salgadas quanto doces. Há milhares de espécies, provavelmente
dezenas de milhares, pouco conhecidas, porque quase não há estudos sobre
o tema. Agora vamos andar um pouco na floresta. Quero mostrar a vocês
outra coisa que raramente observamos: a vida nas folhas das plantas, a
filosfera, filo significa folha.
– Essa é boa! Então agora, além da atmosfera e da biosfera, tem a filosfera! –
Gabriel ri, feliz em aprender algo mais.
– Sim, é assunto muito sério. Numa pesquisa na Mata Atlântica, também

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uma floresta tropical, numa única árvore, cientistas descobriram que a


superfície de uma folha abrigaria cerca de setecentas espécies de bactérias.
Se multiplicarmos esse número de bactérias pelo de espécies vegetais
superiores da Amazônia, ou seja, pelo menos quarenta mil espécies, como
uma estimativa livre, apenas para falar do potencial de biodiversidade,
chegaríamos ao número astronômico de vinte e oito milhões de espécies de
microrganismos. A absoluta maioria dessas espécies seria totalmente nova
para a ciência. A doutora Mariangela Hungria, pesquisadora de microbiologia
dos solos da Empresa Brasileira de Agropecuária (Embrapa), sempre me
lembra que mudanças significativas nos ambientes naturais – ou, como se
diz em “cientifiquês”, nos “habitats naturais” – resultam em perdas sem
precedentes da microbiologia dos solos. É um impacto que pouca gente se
preocupa em medir, mas está diretamente relacionado ao sucesso ou ao
fracasso da agricultura e da pecuária bovina. Agora vamos mudar o nosso
horizonte. Vamos olhar para cima, na vertical, para a copa das árvores,
também chamada canópia ou dossel da floresta.
– Rapel, tio, rapel, arborismo, sei lá! – Juju entusiasma-se...
– Sim, claro, este rapeleiro aí... O especialista em insetos, o entomologista
Terry Erwin, que trabalhou na América Central, calculou que haveria mais
de mil e setecentas espécies de invertebrados, principalmente insetos,
associados a cada espécie de árvore das florestas tropicais. Se essa previsão
estiver correta, a quantidade de insetos que vive nas florestas tropicais do
planeta alcançaria a fantástica cifra de mais de trinta milhões de espécies,
ou mais. Trinta vezes mais insetos do que conhecemos hoje. Há cientistas
que consideram que metade das espécies do planeta viveria na canópia das
florestas tropicais.
– Tio, estás deixando a gente louco com esse banho de informação. Pior, com
tanta preocupação! – Juju reclama.
– Para outro cientista, Douglas Perry, mais de dois terços da comida
produzida na floresta é fabricada nos andares superiores. Esse cientista
propõe que o andar principal da floresta seja a canópia e não a área
que vemos no nível do solo. Na canópia, as árvores estão recobertas de
orquídeas, bromélias, samambaias, cactos e outras folhagens. Forma-se
um tapete de plantas, que captam energia solar, capturam microrganismos
e elementos químicos a partir da água da chuva e de plantas e animais,
que, uma vez absorvidos pelas plantas e animais, lançam um lixo orgânico,
de extrema utilidade para as espécies vegetais e animais nos níveis mais
baixos da floresta. Na canópia, também vivem diversas espécies de animais

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superiores: cobras, aves, macacos, ratos, muitos dos quais raramente, ou


nunca, descem ao solo. O dossel também é importante na retenção de
raios solares. Numa floresta densa, chegam ao chão por volta de dez por
cento dos raios que atingem as copas. Enquanto o interior da mata é úmido
e escuro, o dossel é claro, com diferenças nos índices de umidade que
podem chegar a cinquenta por cento.
– Nossa, derrubamos uma árvore com milhões de seres vivos, e apenas pra
queimar e fazer pasto! – revolta-se Gabriel.
– É isso mesmo. Ainda nem conhecemos ao certo sobre a vida na Amazônia e
passamos a motosserra, colocamos fogo em tudo. Será que não podemos
esperar um pouco? Será que a gente não deveria pedir um tempo? É o que os
técnicos chamam de uma moratória. Precisamos de trinta, cinquenta, cem
anos para fazer pesquisas científicas, planejar, em conjunto, o futuro para a
Amazônia, e com a participação de todas as partes interessadas.
– É verdade, tio, essa história de moratória é uma boa. E tempo pra conversar
é o que a gente deseja! Mas, antes, eu queria entender: por que tanta
biodiversidade? – Gabriel comenta.
– Nos últimos milhões de anos, a ecologia do bioma Amazônia formou-se em
função de diversas interações: abundância de luz, calor e água, ausência
de períodos consideráveis de falta de alimentos, diversidade de solo,
diferentes índices pluviométricos e altitudes, além de variações ambientais
e ecológicas e da grande competição por nutrientes. Essa competição em
que seres vivos buscam sobreviver e devorar-se uns aos outros torna a
Amazônia um lugar único. As mudanças climáticas também têm parte da
responsabilidade para explicar essa grande diversidade. E isso os cientistas
descobriram analisando em microscópios e outros aparelhos de precisão
os grãos fósseis de pólen, a palinologia.
– Puxa, que coisa linda, descobrir que o clima mudou, olhando um grão pré-
histórico! – Gabriel maravilha-se.
– É isso mesmo. A ciência busca explicações a partir de evidências
encontradas no solo e no subsolo, estudando as eras geológicas. São as
chamadas paleociências. Ali há pistas sobre o clima da terra, a vida há
milhões de anos, caminhos para compreender a extinção de dinossauros,
a elevação do nível dos mares e outras questões que nos ajudam a explicar
a biodiversidade. O isolamento de determinadas áreas por milhares, ou
mesmo, milhões de anos, como aconteceu quando a América do Sul era
isolada, o que levou diversas espécies a evoluírem. Quando se formou o

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istmo do Panamá, houve um grande intercâmbio de espécies. O tatu


foi da América do Sul para a do Norte, e a onça parda, conhecida como
suçuarana em tupi, fez o caminho inverso. Aqui no Marajó, é importante
observar a sua história geológica. O momento em que o Marajó deixou
de ser parte do continente e se tornou uma ilha é bem recente, há menos
de dez mil anos. Essas são algumas das conclusões de estudos como os
da professora Dilce de Fátima Rosseti, no Projeto Marajó, do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
– Mas, tio, tem cientista pra pesquisar tudo isso? Você não reclama que tem
pouca gente especializada em Amazônia? – Antônio mostra-se atento.
– Verdade, há menos doutores na Amazônia que na Universidade de São
Paulo. Para compreender a complexidade da floresta tropical, um cientista
deverá estudar por pelo menos vinte anos e deverá atualizar-se ao longo
de seu tempo de trabalho, durante provavelmente outros trinta anos, ou
seja, cinquenta anos. Mesmo assim, será capaz de compreender uma
ínfima fração da complexidade da Amazônia.
– Olhem a terra lá. É o Marajó? – Gabriel pergunta, doido para passear.
– Isso mesmo. Vejam o rio Camará, o trapiche onde a balsa aporta. Daqui
iremos para Joanes. Essa vila, hoje balneário, foi uma das primeiras
ocupações jesuíticas na região. Vamos aproveitar para conversar sobre
a ocupação do Marajó, no período conhecido como “contato”. Depois de
uma frustrada tentativa de catequizar no Marajó em 1622, os jesuítas,
comandados pelo padre Antônio Vieira, conseguiram, trinta anos depois,
estabelecer “a paz dos Nheengaíbas”. A chegada dos portugueses ao
Marajó mudou o equilíbrio de forças entre dois grupos indígenas distintos
e inimigos – os Tupinambá, do tronco tupi, que avançavam do sul para
o norte, em direção ao Amapá, e os Nheengaíba, do tronco aruak, que
habitavam a região norte do estuário do Amazonas e o atual Amapá.
– Esse é o famoso padre Vieira, o dos sermões? – pergunta Juju, a fissurada
em literatura.
– Muito bem, Juju, esse mesmo. O “nosso” Vieira é considerado o maior
orador e escritor de sermões da língua portuguesa. Ele terá no Marajó
o seu batismo de fogo, o que garantiu amplo espaço para os jesuítas
missionarem no arquipélago pelos cem anos seguintes. Foi graças a Vieira
e a sua proximidade com o rei D. Pedro II de Portugal que foi editado
o Regimento das Missões de 1668, o que equivale a uma lei, o qual

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protegeu os índios, pelo menos por um tempo, e garantiu algum espaço para
o trabalho missionário. Antônio, leia, por favor, o trecho de uma carta de seu
xará, o Antônio Vieira:
– Bem, aqui vai: [...] o Estado do Maranhão, porque com os nheengaíbas por
inimigos seria o Pará de qualquer nação estrangeira que se confederasse com
eles; e com os nheengaíbas por vassalos e por amigos, fica o Pará seguro, e
impenetrável a todo o poder estranho. As missões jesuítas definirão, a favor
dos portugueses, a posse da terra. [...] todos os anos carregam de peixe-
boi mais de vinte navios de Holanda. E entendendo as pessoas do governo
do Pará, que, unindo-se aos holandeses com os nheengaíbas, seriam uns e
outros senhores dessas capitanias, sem haver forças no Estado (ainda que se
ajuntassem todas) para lhes resistir.
– Tio, explica pra gente. Os padres eram contra ou a favor dos índios? Nunca
entendi direito – comenta Gabriel.
– Temos que olhar a situação dos religiosos na perspectiva do século XVIII.
Corajosos, seguiam sozinhos, sem falar as línguas locais, para missionar em
regiões desconhecidas e sem apoio. Vieira professava que não se deveriam
escravizar os índios, mas aceitava a escravização de africanos... Bem
contraditório, não é? E, assim como as demais ordens religiosas católicas,
valiam-se de diversos serviçais, praticamente escravos, como seus remeiros,
agricultores, carregadores, cozinheiros, caçadores etc.
– Complicada essa posição, hein! Eu diria: in-sus-ten-tá-vel! – Juju reclama.
– Se serve de consolação, de qualquer maneira, os jesuítas foram importantes
para dificultar que colonos, militares e burocratas portugueses e espanhóis
ampliassem a escravização dos nativos. Mas evitar a escravidão e a
aniquilação dos índios, de fato, não conseguiram.

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Diário da Juju: Navegamos em um pequeno barco,


subindo o rio Camará, um passeio de última hora que o
tio conseguiu pra gente! Quem nos leva são estes jovens
deste povo maravilhoso, os quilombolas que moram por
aqui em Salvaterra. Muitas garças nos manguezais,
caranguejos, e este peixe muito louco, o tralhoto! Muita
história bonita desta gente lutadora. Adorei. Obrigada, tio!

– Em termos culturais, o Marajó é uma região diferenciada. Pode-se dizer


que aqui há o sentimento de pertença, de pertencimento, o orgulho de ser
marajoara. Pergunte a alguém daqui: – De onde tu és? Dirá, primeiro, que é
marajoara, antes de se afirmar como paraense ou brasileiro. Isso significa
que existe uma cultura própria, que explica a sua própria visão de mundo,
as suas noções sobre a natureza, a vida do lugar, os mitos, as rezas, as
festas, enfim, este patrimônio, que faz desta cultura uma cultura única.
Muitos dos saberes locais estão associados ao uso de recursos naturais, à
biodiversidade, ou seja, aos elementos da natureza, seja no dia a dia, seja
em ocasiões especiais. Assim, a maneira como se coleta o fruto da andiroba,
como se prepara seu óleo, ou o jeito de colher e de tomar o açaí. As práticas
culturais e econômicas representam, muitas vezes, milhares de anos de
adaptação ao meio. É o caso dos currais de pesca que a gente pode observar
nas praias e nos pedrais.
– Obrigado, tio, bem explicado! – Gabriel agradece.
– O problema é que todo este imenso tesouro cultural é completamente
subvalorizado, até mesmo por muitos jovens marajoaras. Diante do
bombardeio que as pessoas recebem a todo momento, pela televisão, pelo
rádio, pelas mídias sociais, dizendo-nos que o legal, o bom é o que vem de
São Paulo, do Rio de Janeiro, de Miami, nos Estados Unidos...
– Isso é verdade, tio! Com isso, as pessoas ficam com vergonha de mostrar a
música daqui? – Juju arrisca.
– Certíssimo, cria-se uma ideia bastante errada de que o de fora é sempre
melhor e de que o daqui, com os valores do lugar, não presta! Esse espírito
de colonizado, de que o melhor é o outro, tem um impacto enorme na vida
das pessoas, especialmente dos jovens. Já falamos disso, mas precisamos

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João Meirelles

estar alertas a essa questão o tempo todo. Desse jeito, ninguém quer mais
ser pescador, trabalhar na roça, manter as tradições econômicas, culturais...
Não estou dizendo que é para achar bom manter as pessoas na extrema
pobreza, ou na roça, seguindo os métodos antiquados de agricultura, que
exigem esforços desnecessários... Uma vez que a ciência e a tecnologia
nos oferecem mais informações, é possível casar a cultura local à nova
tecnologia. O que estou comentando representa uma grande preocupação
dos mais velhos: a transmissão dos conhecimentos de geração a geração.
Para muitos grupos sociais tradicionais, o conhecimento é transmitido,
principalmente, de forma oral, de pai para filho, e, também, na prática. É o
velho e bom “aprender fazendo”. Se os filhos são levados a acreditar que os
conhecimentos dos pais, dos avós etc. não têm utilidade alguma e se eles
não se apropriam desses conhecimentos, há uma quebra cultural, um fosso
enorme que se abre e se perde o conhecimento, muitas vezes para sempre.
– Ah, entendi, então, se os filhos não aprendem, os netos jamais saberão como
era a vida de seus avós! – Gabriel raciocina.
– Exatamente, não é para ficar parado no tempo. É para saber como
seus antepassados enfrentavam os seus desafios de sobrevivência, de
manifestação cultural. Isso permite uma enorme reflexão sobre a relação
do homem com a natureza. Deve-se perguntar por que se procede de tal
maneira diante de uma dada situação. Manter essa cultura ancestral é
garantir o patrimônio, a identidade cultural. Uma vez que se domina essa
cultura, um grupo social pode decidir o que é melhor para si, sem perder a
sua identidade, o que une seus membros, o que dá sentido a sua vida.
– Então o que se deve fazer? – Juju preocupa-se.
– Em primeiro lugar, vamos lá para Cachoeira do Arari. No caminho,
conversaremos sobre este importante tema da identidade cultural.

***

(Em Cachoeira do Arari.)

– Considerem, meus sobrinhos, que o processo de valorização inicia-se


com o conhecimento e, principalmente, com o reconhecimento do que é a
identidade cultural. Temos que nos perguntar: o que me faz, como morador
deste lugar reconhecer o lugar como meu, como o território a que pertenço?
E isso precisa fazer sentido tanto do ponto de vista da cultura como da
economia. A cultura é o que nos faz sentir bem, nos faz dizer: eu pertenço a

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João Meirelles

esta cultura, eu me reconheço. Por exemplo, o que torna a jangada, presente


em algumas localidades do litoral do Nordeste, uma marca, uma identidade
da região? E na música? Não é difícil reconhecer e associar uma música a
certa cultura... Agora, indo para o lado do produto econômico, algum outro
lugar do mundo tem açaí?
– Não sei, tio, mas será que, se plantar em outro lugar, nasce? – Gabriel
titubeia, movendo a cabeça de lado a lado.
– Bem, mas o açaí é mais que o plantio, ele está carregado de cultura, no jeito
que o povo daqui espalhou esta cultura pela região durante milhares de anos,
no jeito que se colhe, na maneira que se prepara. Aqui se diz “bater o açaí”
porque é tomado fresquinho, junto da refeição ou não. Mas, respondendo a
tua pergunta: sim, ele já é plantado em outras partes do Brasil e da América
do Sul, mas nunca terá a sua cultura associada. O jeito como se consome
açaí fora do Pará é bem diferente, e isso também é um processo cultural! É o
jeito como aquela cultura, por exemplo, a dos batedores de frutas do Rio de
Janeiro, enxerga o mundo. Tem seu valor, à sua maneira. E faz sentido para
os cariocas, pois então há que se respeitar!
– Que coisa interessante, tio. Agora mesminho estou pensando no café, o jeito
como o brasileiro toma café e gosta de café deve ser bem diferente daquele
de onde a planta veio.... De onde mesmo?
– Ah, isso eu sei: Etiópia, fica na África! – Antônio mostra-se satisfeito.
– Palmas para o Antônio. Vejam o que se passou com o café em Minas Gerais
ou no interior de São Paulo. As condições naturais de solo e de clima
adequadas e muitas décadas de atividade econômica criaram toda uma
cultura associada ao café. Tanto no modo de produzir, como no de consumir.
Em muitos lugares, é a cara da região, simboliza seu modo de vida, e é
motivo de enorme orgulho e de união cultural para todas as gerações. No
começo, era aquela vergonha da escravidão. Mas depois veio a migração dos
europeus para as fazendas de café, bem, é uma longa história...
– Agora estou gostando desta história de pertencimento, de “pertença”.
Parecia estranha essa palavra, mas eu tou entendendo que o povo do lugar
tem que dizer que ele “pertence” ao lugar! – expõe Juju.
– Muito bem. No Brasil, há casos de pertencimento que resultam em melhorias
significativas para a economia local. Estamos falando, por exemplo, dos
doces da cidade gaúcha de Pelotas, do queijo da cidade de Serro, em Minas
Gerais. Esses produtos não vieram da biodiversidade local, ou seja, não são
oriundos de plantas ou de animais nativos, mas resultam de plantas e de

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João Meirelles

animais exóticos desenvolvidos de uma maneira diferente, criou-se a partir


daí uma nova cultura, tornando-se esses produtos até mesmo os símbolos
dessas regiões e muito importantes para a economia local. Muitas vezes,
não é um produto e, sim, um serviço, como é o caso do turismo. Ambos os
processos encontram-se reconhecidos pelo governo brasileiro no Livro de
registro dos saberes, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan), como parte do patrimônio imaterial brasileiro. No Livro de registro das
celebrações, do mesmo Iphan, está a Festa do Glorioso São Sebastião, aqui de
Cachoeira do Arari e presente em muitas partes do Marajó. No Livro de registro
dos saberes, estão também o “modo de fazer viola de cocho”, uma viola feita
a partir de um único tronco, da região de Cuiabá, no Mato Grosso. Até uma
cachoeira foi reconhecida como patrimônio imaterial no Livro de registro dos
lugares. É a Cachoeira de Iauaretê, um lugar sagrado para diversos grupos
indígenas no rio Uaupés, formador do rio Negro, no Amazonas, onde também
foi reconhecido o sistema agrícola tradicional do rio Negro.
– E aqui, no Marajó, que produtos poderiam ser trabalhados pra melhorar a
vida daqui? – Gabriel quer saber.
– Boa, Gabriel. Quem deve decidir são as comunidades daqui – quilombolas,
ribeirinhos, pescadores, povos tradicionais, proprietários rurais. Há diversos
produtos e serviços únicos. Só para dar um exemplo, o queijo do Marajó seria
um deles. O queijo do Marajó pode ser comercializado legalmente, mas é
preciso avançar no quesito higiene e no reconhecimento da cultura associada
a cada tipo de laticínio da região. A maneira de coletar e de processar o
açaí seria outro, a flora medicinal do Marajó poderia inspirar-se no registro
que foi feito para a “farmacopeia popular do Cerrado”, em que uma rede
socioambiental de Goiás, a Articulação Pacari, envolvendo erveiras e erveiros,
raizeiros e outros mestres, já reconhecida pelo Ministério do Meio Ambiente.
– E qual é a vantagem, tio? – Antônio pergunta.
– Em primeiro lugar, é fortalecer a autoestima, valorizar a própria cultura local,
a partir do reconhecimento do próprio marajoara. E, claro, em segundo lugar,
isso tem que reverter para o bolso dos moradores locais, especialmente
para os mais pobres. O caso do açaí é interessante. A maior parte do açaí
consumido no mundo vem daqui, tanto do Marajó, como das regiões vizinhas,
do Baixo Tocantins e da costa do Amapá, enfim, do megadelta do Amazonas-
Tocantins. Em Belém, o açaí bom é o “açaí das ilhas”. Será que a identidade,
a marca do “açaí do Marajó” não poderia agregar valor?

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Diário da Juju: Museu do Marajó – este é um museu bem


diferente. Muito, muito legal. Porque a gente pode mexer
nas coisas, fazer perguntas para os quadros que estão
montados e buscar a resposta. Há vasos e outras peças
muito antigas, que mostram como este lugar é especial e
precisa ser conservado. Está de parabéns o padre Gallo,
que há muitos anos iniciou a montagem do Museu. E
também seus colaboradores, que mantiveram o museu até
hoje. Bom, espero que a população local se una ainda mais
pra valorizar este espaço tão interessante e cuide dele!

– Mas... Como é que se pode manter um museu num lugar tão pobre? –
Antônio pergunta.
– São estas regiões, as mais carentes, com limitado acesso a equipamentos
culturais – bibliotecas, centros culturais, cinema etc. –, as que mais precisam
de museus! Esses espaços geram discussões, provocam, e podem ser
os centros de encontro que juntam as pessoas para a formação cultural,
principalmente onde os jovens não têm opções de lazer, de educação de
qualidade. Mais que um museu, apenas com peças antigas, é preciso que
organizações dessa natureza se dediquem a eventos para discutir o passado,
o presente e o futuro. Esses espaços são fundamentais para o fortalecimento
da identidade cultural. Aqui, em Cachoeira, como em Santa Cruz do Arari,
em Afuá, enfim, no Marajó, a realidade é que a região é uma das que mais
padecem de exclusão no Brasil. Mais de noventa por cento da população
é pobre. A maioria vive da economia informal e a renda, mesmo com a
chegada do açaí, ainda é insignificante. Some-se a isso o grande isolamento, a
dificuldade de mobilização social e o baixo grau de acesso a serviços públicos
essenciais – educação, saúde etc. Sempre foi uma economia dominada
por poucos, altamente injusta, na pecuária, na madeira e, agora, no açaí.
O resultado é a forte migração de jovens, o aumento da violência contra a
mulher e a criança. Uma calamidade quando se trata de prostituição infantil.
– Nossa, que horror! Deve haver saída! – angustia-se Juju.

Viagem à Amazônia | 96
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– Com certeza. Só iremos superar essa situação quando o marajoara exigir


os seus direitos básicos, organizar-se, unir-se, vigiar o uso dos recursos
públicos, não deixar que os ocupantes de cargos públicos governem para
seus próprios interesses, enfim, quando a voz do cidadão, o voto, e a
vigilância da atuação política tiverem valor. Escola de qualidade e saúde
básica parecem coisas simples, mas são negadas à maior parte da população
daqui e da Amazônia em geral, mesmo em grandes centros. Mas agora
vamos para outra cidade, Afuá. Desta vez será de avião, de carona com um
pesquisador da universidade.

***

(Chegada a Afuá.)

Diário da Juju: Foi bonito ver o campo e depois a floresta.


Andar de teco-teco, como o nome diz, é uma emoção
enorme. Eu adorei, mas o Antônio, coitado, estava branco
que só. Nem curtiu aquelas paisagens todas. E aqui tem
tanta água que eu me perderia nestes canais. É nesta
região que o rio Amazonas conversa com o Tocantins
– o canal de Breves, mais conhecido como Tajapuru.
E esta cidadezinha de Afuá, que coisinha linda, um
chuchu, é toda em palafitas! Criaram até um veículo
para andar nas ruas de tábuas de madeira e passarelas
de cimento – o bicitáxi, coisa do Sarito, o inventor.

– Vejam que pôr do sol maravilhoso! Daqui a pouco, o barco nos leva a
produtores de açaí das ilhas do Pará. Venham aqui, montem a sua rede
também, façam como eu...
– Tomo açaí quase todo dia, com granola é muito bom... – Gabriel lambe os beiços.
– Eu também, prefiro batido, com mamão e kiwi. Melhor naquele copão, um
shake, engrossado com banana e xarope de guaraná – Juju completa.

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João Meirelles

– Eu gosto é com mesocarpo de babaçu, aveia, quinoa, linhaça, enfim, com um


monte de cereais! – Antônio rebate.
– Eh, Antônio, muito natureba demais! – Juju provoca-o.
– E o tio? – Antônio, procurando me envolver.
Ao meu lado, o comandante do barco e os marinheiros, curiosos:
– Que diabo de fruta é esta? Kiwi? E essa tal de quinoa?
– Para mim, tem que ser puro, nadinha nele. Se for para adoçar, que seja
com mel, mel de abelhas sem ferrão. Pois bem, durante a safra, o açaí está
presente em todas as refeições. É uma cuia, uma tigela do açaí fresquinho,
tirado na hora, ao lado do prato com peixe e farinha de mandioca. É alimento
popular, comida de ribeirinho. Até há poucos anos, era considerado comida
de pobre. Agora é que virou chique. Nós, que passamos a vida pesquisando a
Amazônia, perguntamos: como gerar renda com um produto da floresta que
atrai crescente consumo externo, garantindo, ao mesmo tempo, o açaí a preço
acessível aos mais pobres, sem piorar a sua já precária segurança alimentar?
– Mas, tio, tu que já sabes tanto sobre a Amazônia, o que tem ainda para
aprender? – Gabriel pergunta.
– Tudo! A cada viagem, a cada conversa, a cada relato, percebo que sei
pouco. Para se aprender, é preciso ser humilde. Ter a curiosidade de
perguntar, da forma mais honesta e aberta. Mais que tudo, é preciso pedir
licença para aprender.
– Lindo, tio, estou encantada com essa tua colocação, é mesmo a melhor forma
de aprender. Pedir licença pra aprender! – diz Juju.
– Hora de ir para a cama, ou melhor, pra rede. Todos com as suas redes de
dormir a postos?

Viagem à Amazônia | 98
João Meirelles

Diário da Juju: A noite foi mesmo punk. O barco bateu duro.


Nossas redes corriam, pra lá, pra cá. Tinha hora que eu
tinha que segurar na borda do barco pra não bater na rede
ao lado. Depois passou. Parece que ele entrou num canal
mais calmo. Disseram que era o banzeiro, o movimento
do vento que agita a água do rio, forma cada onda! Na
primeira luz do dia, as cores imensas, do rosa ao amarelo,
um colorido só. Barquinhos pequeninos encostados nas
casinhas à beira d’água. Aprendi, barquinho é casquinho!
É isso mesmo, uma casquinha em cima da água.

– O tio deve estar brincando que eu vou passar por cima deste tronco, liso que
só! Vou é subir neste barquinho, que mais parece uma tábua velha boiando,
ai! – reclama Gabriel.
– E tem outro jeito? Tem outra maneira de chegar ao açaizal? Só nadando.
Como são três casquinhos, vamos dois em cada um, certo? Quem não remar,
não almoça!

Diário da Juju: Aos poucos, o grupo se acostumou


com o balanço do casquinho, animou-se, remando
contra a correnteza. O primeiro morador era
seu Zé Dico e dona Nazaré. Viviam da pesca e do
açaí. Todos juntos, trabalhando, os meninos com
a peconha, subindo ligeirinho nas palmeiras, as
meninas, embaixo, debulhando o cacho. Derriçando,
aprendi. Na hora de carregar, todos faziam força.

Viagem à Amazônia | 99
João Meirelles

– Tio, é muita palmeira. Cadê o Zezinho, que tava aqui conosco indagorinha? –
Juju procura o menino entre as copas das árvores.
Quando o encontra, grita:
– Égua! Tu não cai daí não?
– Tá acostumado, dona. Desde jitinho, é igual um macaquinho pra subir – Zé da
Ilha, o pai dele, comenta, soltando uma risada gostosa, mostrando como o
marajoara chama tudo que é pequenino de jitinho.
– É assim todos os dias na safra do açaí. A safra é no verão amazônico, de julho
a dezembro. O peconheiro, como se chama quem colhe o açaí, prepara uma
alça, a peconha, também chamada de “embira”. Ela é como uma cinta, feita
tanto da própria folha do açaí como de outras fibras vegetais, daí o nome de
embira. Tem gente que usa sacos de plástico trançados. O peconheiro sobe
rápido, saltando com os pés juntos e ajudando a se equilibrar com as mãos. O
facão, que aqui chamam de “terçado”, está na boca ou amarrado na cintura.
E ele sobe em árvores a mais de vinte metros de altura. Às vezes, é preciso
pular para outra árvore, mesmo com um cacho de açaí na mão. O peconheiro
tem que ser leve, ligeiro e experiente. Na volta, o peconheiro desce
deslizando, trazendo, além do terçado, um, dois, três cachos de açaí. O cacho
cheio de frutinhos é bem pesado. E ainda tem que desviar de outras árvores,
e não pode bater o cacho, senão os frutos se desprendem da “vassoura”.
– Mas, sem proteção alguma, seu Zezinho? Sem luva, sem capacete, joelheira?
Sem corda de segurança? – Gabriel preocupa-se – Quando fiz rapel, estava
mais que protegido. Isso não é perigoso? – pergunta ao pai do menino.
– Nada, nadinha. Todo mundo faz assim, cair é difícil... – Zé da Ilha acalma o povo.
– Desculpe falar, seu Zé, mas claro que é perigoso! O risco de ser atacado por
abelha, vespa, tomar ferroada de escorpião, aranha ou de despencar lá de
cima, existe, sim. E ainda pode acontecer de escorregar num pedaço de
tronco com limo, de se machucar com uma farpa do tronco, e a palmeira
pode quebrar, pois é um ser vivo e, à medida que se sobe, ela fica mais fina.
Na pesquisa de que eu participei, lá para as bandas de Curralinho, difícil foi
encontrar peconheiro que não teve acidente.
– Proteja-me, minha Santinha... – o pai do Zezinho falou, fazendo o sinal da
cruz, como a afastar algum mau pensamento.
– Nossa, agora tou entendendo por que o açaí é tão caro – Antônio comenta.
– Caro, dona? Não é não, é baratinho! – o pai do Zezinho ri de novo.
– Olha, o açaí é caro para gente, lá na cidade, mas, aqui para o peconheiro, o

Viagem à Amazônia | 100


João Meirelles

que ele coletar, tem que vender, senão estraga, perde tudo. O problema é
na hora de fechar o preço. O que fica mesmo para o coletor do açaí ainda é
pouco, especialmente diante dos muitos riscos que corre.
– Como assim, problema? – Antônio pergunta.
– O ribeirinho é quem assume todos os riscos, tanto de algum acidente,
quanto de perder o produto se não comprarem. O atravessador vem aqui,
compra e logo adiante vende para outro atravessador. Esse segundo
atravessador leva para o mercado ou já envia direto para alguma batedeira
ou uma indústria. E tudo isso tem que acontecer bem rápido, porque em
dois dias o produto estraga.
– Difícil, hein! – Gabriel comenta.
– O lado bom é que o açaí gera uma renda razoável para a família, algo que
não se conseguia garantir com as outras atividades agrícolas e extrativistas.
Temos que ficar atentos para o trabalho infantil. Geralmente são os jovens,
como o Zezinho, que sobem nas palmeiras, que assumem risco de vida ou de
ficar paralítico. Além disso, na safra do açaí, é difícil ver menino frequentando
a escola como deve ser. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) proíbe
que menores de dezesseis anos trabalhem. Abaixo dessa idade, só se forem
aprendizes e, mesmo assim, em condições especiais.
– Nossa, tio, eu só vi jovens trabalhando por aqui! – Juju assusta-se.
– Pois é, esta é a realidade. O jovem, desde os seus sete, oito anos, aprende
as tradições locais, transmitidas de pai para filho, para garantir a sua
sobrevivência e a de sua família. Aprende a pescar, a caçar, a subir na
palmeira, a preparar a roça. Temos que compreender que isso faz parte do
aprendizado para a vida, é a reprodução do modo de vida tradicional. Agora,
quando o mercado pede mais e mais açaí, e aquele jovem, que subia uma a
duas vezes na palmeira para buscar os frutos que seriam consumidos no dia
pela família, é levado a subir vinte, trinta vezes, isso não é algo tradicional, é
trabalho infantil. E imaginem como os riscos aumentam.
– Nossa, aumenta muito o perigo, mesmo! – Gabriel suspira.
– Certíssimo. É a pressão do consumo que cria isso. Nós, consumidores,
não temos a informação sobre a fábrica que envia o açaí para diversas
partes do país e mesmo do exterior, não divulgam essa situação. E mais:
os riscos não estão apenas no subir nas finas palmeiras. Estão no chão, na
água. Podem ser mordidos por uma cobra, um escorpião, enfiar o pé em
um espinho, num buraco... Na hora de empurrar o barco, se entrarem no
território de um poraquê enfezado, o peixe-elétrico, podem receber uma

Viagem à Amazônia | 101


João Meirelles

tremenda descarga elétrica. Se estiverem sozinhos, podem até se afogar se


perderem os sentidos. Por isso, todas as atividades de pesca e na floresta
sempre devem ser feitas por duas ou mais pessoas. E, depois, para buscar
atendimento médico... O lugar do acidente quase sempre está a muitas
horas de algum atendimento médico. Em geral, essas comunidades contam
apenas com um posto de saúde precário, onde raramente há médicos
e sempre há muita deficiência de materiais, equipamentos, pessoal...
Hospital por aqui é coisa raríssima.
– Muito arriscado colher açaí! Vou dar valor toda vez que comer uma tigela de
açaí, vou ficar pensando no Zezinho – Juju espanta-se.
– Precisamos é exigir das empresas que façam treinamentos para haver
mais segurança, distribuam os equipamentos de proteção individual,
botas, bonés, luvas, bainhas para o facão! Temos que dizer claramente aos
fabricantes que a saúde dos trabalhadores do açaí é tão importante quanto
a nossa saúde! A Fundacentro e o Instituto Peabiru, em um estudo recente,
classificaram o trabalho com açaí como um dos trabalhos mais perigosos
do Brasil! A Fundacentro é o órgão público que regulamenta a segurança do
trabalho. O estudo foi feito graças ao apoio do Programa Trabalho Seguro, do
Tribunal Regional do Trabalho do Pará e Amapá, TRT-8. E mais: com o tempo,
quem colhe açaí vai sofrer diversos problemas de saúde. Reparem bem como
as pernas e os pés de muitos peconheiros ficam tortos de tanto forçarem a
posição para se agarrar na árvore, tanto na subida como na descida. E, em
terra, suportam o peso dos paneiros, dos cestos onde transportam o fruto,
que forçam muito a coluna vertebral. Muito desgastante, especialmente para
jovens, que ainda não têm sua estrutura óssea completamente formada.
– Nossa, deve doer, pé torto, perna torta – Antônio mexe seus pés...
– Com certeza, à medida que a idade avança, a qualidade de vida pode
piorar muito.
– Muita gente vive do açaí, tio? – Gabriel quer saber.
– Estima-se que na Amazônia mais de cento e cinquenta mil famílias tirem a
sua renda dos açaizeiros. Estamos falando principalmente de quem colhe
açaí na floresta, sem falar de quem tem plantio. Aqui, no Marajó, devem ser
para lá de quarenta mil famílias, ou seja, só aqui, duzentas mil pessoas tiram
o sustento do açaí. Essa realidade é bem recente. Há duas décadas, o açaí
pouco valia, era só no mercadinho local, hoje vai para o mundo todo.
– Mudanças grandes. Então a cultura também está sendo afetada! – Juju
recorda-se da questão da identidade cultural.

Viagem à Amazônia | 102


João Meirelles

– Bem lembrado. A cultura é sempre dinâmica. E, quando há grandes


alterações como esta, certamente a cultura deverá mudar. A própria chegada
do telefone celular, dos pequenos barcos a motor, do resfriamento e do
congelamento do produto tem uma influência enorme na vida das pessoas,
na economia e na cultura. Mas, voltando ao aspecto econômico, o coletor
de açaí está na base da pirâmide de uma cadeia de valor que inclui os
atravessadores, os milhares de batedores de açaí nas cidades amazônicas e
as fábricas que processam e enviam o produto congelado para fora da região,
além de distribuidores e de outros pontos de venda de açaí ao consumidor.
O coletor – o peconheiro – e sua família são o elo fraco dessa cadeia, ou
seja, a sua capacidade de definir o preço e as condições do negócio é
pequena. Na maioria das vezes, são os atravessadores que impõem as
condições aos peconheiros. Eles se aproveitam da falta de transporte, de
informações sobre preços e do isolamento das famílias e lucram às custas
da pobreza e da desorganização dos coletores. Diante dos preços que o açaí
tem alcançado, deveriam ser notadas grandes melhorias nas condições de
vida das comunidades isoladas, mas ainda é pouco o que se conquistou,
principalmente nos serviços públicos para a região.
– Então esta gente precisa lutar por uma condição melhor! – Gabriel intervém.
– Justamente. Quem está mais marginalizado tem direito a maior atenção
do poder público. E, quando estão organizados em cooperativas,
associações, certamente conseguem defender seus direitos e interesses
de forma mais vantajosa.
– E como se resolve a questão dos acidentes? – preocupa-se Juju.
– Então há muito trabalho pra que o açaí tenha uma produção que seja justa! –
manifesta-se Antônio.
– Exatamente, muitos dizem que é um produto que respeita a floresta, que
é sustentável. Até certo ponto é verdade, mas, quando uma atividade
econômica não respeita os direitos sociais básicos e não promove a justiça
econômica, ou seja, a melhor distribuição de renda por meio da própria
cadeia de valor, o produto está longe de ser sustentável.
– Finalmente alguém me explicou de maneira bem simples o que é
sustentabilidade! – Gabriel respira fundo.
– Vocês acreditam que ainda tem açaí comercializado como no tempo da
borracha, segundo o sistema do aviamento? Açaí e outros produtos, madeira,
castanha, frutas enfim... Até há bem pouco tempo, o “aviador”, muitas vezes
conhecido como dono do barracão ou regatão (barco que fazia o papel de

Viagem à Amazônia | 103


João Meirelles

atravessador), adiantava em mercadorias o que o ribeirinho ou o coletor


precisava para sobreviver durante o período de coleta. No entanto, essas
mercadorias eram vendidas a preços estratosféricos ao ribeirinho, enquanto
era pago um valor bastante baixo aos produtos de sua coleta. Só o aviador
saía lucrando, e o coletor se endividava de tal maneira que se configurava
como um sistema de escravidão.
– Que coisa! – Juju mostra-se triste.
– Bem, isso está mudando, mas ainda falta muito para que o coletor de açaí e
de outros produtos tenham os seus direitos respeitados e os seus produtos
devidamente valorizados.

Diário da Juju: Na comunidade, a gente viu um barco


grande, que chamaram de “geleira”, sendo carregado de
açaí. O porão cheio de caixas de plástico, as basquetas,
onde o conteúdo dos paneiros era depositado. Havia gelo
pra manter resfriada a mercadoria. Neste calorão, ali
perto era bem gostoso de ficar. No dia seguinte, visitamos
outros produtores e a cooperativa. A conversa foi muito
animada. Nossa, minha visão sobre o açaí mudou muito,
respeito muito, muito o trabalho do peconheiro, vou
pensar neles toda vez que tomar o açaí na tigela.

– Quer dizer então que, daqui, da geleira, o açaí vai direto pra fábrica, pra
ser batido e pra separar a polpa do caroço? – Gabriel pergunta ao dono da
geleira, que observava o fim do carregamento de açaí.
– Justo, se a gente sair agora, lá para o fim da tarde, a gente chega a Macapá.
– Tio, e pra onde vai este açaí? – Antônio quer saber mais.
– Uma pequena parte, menos de dez por cento, é consumida pelos próprios
coletores, suas famílias e vizinhos, ali na comunidade. Em verdade, Belém,
Macapá e os municípios próximos ao megadelta do Amazonas-Tocantins
ainda respondem por cerca de metade do consumo. Para o exterior, vai uma
pequena parte. O grande consumo é mesmo para o Sudeste e as outras

Viagem à Amazônia | 104


João Meirelles

regiões do Brasil. São Paulo e Rio são as cidades que consomem mais
açaí no mundo, depois de Belém, é claro! E tem mais: se o açaí realmente
se tornar um genuíno produto da floresta, ele pode abrir caminho para
apresentar as outras frutas daqui. Temos outras palmeiras com polpas
deliciosas, como é o caso da bacaba, do buriti. Sem falar em outras árvores
que têm frutas muito boas, como o taperebá, conhecido como cajá no
Nordeste, o bacuri, o cupuaçu e o próprio cacau, que tem uma polpa que dá
um suco maravilhoso, é o meu preferido. Só na Amazônia, são mais de cento
e cinquenta espécies de palmeiras, das quais pelo menos dez ofereceriam
um produto de interesse, tanto regional como nacional. Algumas delas, como
a pupunha, têm frutos carnosos que, cozidos, são muito apreciados, sem
falar no tucumã, muito consumido em Manaus, como comentamos antes.
– Mas lá no Sul tem também açaí, não é, tio? – pergunta Juju.
– Sim, é uma outra espécie, conhecida como juçara, Euterpe edulis. É uma
palmeira de um tronco só, muito procurada pela qualidade de seu palmito,
por isso, já esteve à beira de desaparecer em muitos lugares. Na Amazônia,
há duas espécies de açaí, o Euterpe precatoria, também de um tronco só
(monoestirpe), presente nas regiões mais secas, de terra firme, bem comum
no Maranhão, Acre, Mato Grosso; e o açaí-de-touceira, com uma touceira de
muitos troncos (multiestirpe), o Euterpe oleracea, típico das várzeas, como
aqui, que são as regiões mais úmidas e alagadas.
– E estes açaís daqui também dão palmito? – continua Juju.
– Boa parte do palmito produzido no Brasil vem desta região do Marajó e do
Amapá, tanto do açaí-de-touceira, como do açaí manejado, como se diz.
Porém, o plantio de outras palmeiras exóticas, como a palmeira-real, avança.
A pupunha, originária da Amazônia peruana, que foi domesticada há milhares
de anos por indígenas, é plantada no Sudeste do Brasil e em outras regiões
tropicais. Aliás, é considerada a única palmeira domesticada das Américas.
O açaizeiro está neste caminho, de domesticação. Nesse caso, os seus frutos
são mais abundantes nos troncos mais jovens; para retirar o palmito, o que
exige derrubar o tronco, buscam-se sempre os mais velhos e grossos, que
produzem menos frutos ou se tornaram muito altos.
– Que legal, tio, então não precisa desmatar pra produzir açaí! – Gabriel comenta.
– Gabriel, este é um tema importante: o desmatamento e a sua relação com
a sustentabilidade. A Amazônia sustentável será aquela que soubermos
respeitar e cuidar. A regra é simples, precisamos deixar a Amazônia em
melhor estado do que a recebemos, e isso vale em todos os sentidos,

Viagem à Amazônia | 105


João Meirelles

ambiental, social, econômico, cultural...


– Isso é difícil! – Gabriel comenta.
– Por isso estamos aqui, nesta viagem, estudando a região, procurando
compreendê-la, ouvir as suas vozes. Vocês poderão ser, de agora em diante,
verdadeiros embaixadores da Amazônia, defendendo a região que agora
conhecem. Vocês têm autoridade para dizer: – Eu fui lá, vi, conversei com
fulano, falei com sicrano... Que tal essa missão, hein?
– Ah, tio, com certeza, me sinto responsável por contar tudo isso. Um privilégio
enorme estar aqui, aprendendo com estas pessoas maravilhosas; e depois, com
a companhia deste tio tão especial... – Juju pisca os olhos em agradecimento.
– Que bom que vocês compreendem esta importante tarefa de contar e discutir
sobre a Amazônia, afinal, só se respeita, só se valoriza o que se conhece!
– Estou com a Juju, tio. Eu amo a Amazônia. Ih, até rimou. Meu pai sempre
fala, só se ama o que se conhece... Tá certo, a viagem tá muito legal, tio. Se
a gente fosse lá pra praia, prum acampamento de férias, e até pra Disney,
ia ser tudo assim, previsível... Claro que ia ser divertido, mas a gente ia
aprender pouca coisa – completa Antônio, enquanto os outros dois fazem
movimentos de concordância e de agradecimento.

Diário da Juju: A situação do Zezinho, que coletava açaí,


me fez pensar muito. Eu, Antônio ou Gabriel poderíamos
estar na pele dele. Nosso grupo ficou discutindo até
bem tarde. Algo que parecia muito legal e trazia renda
se mostrou preocupante. Perverso? Sim, essa palavra
explica bem, perverso! O Brasil que queremos é o Brasil
dos jovens, pelos jovens. Mas que seja trabalho seguro,
bem remunerado e com criança na escola! E com muito
açaí, como o daqui, que aprendi a gostar. É muito puro,
muito fresco, muito bom! Com tapioca, então, é de-li-
ci-o-so. Também conheci a bacaba. Parece com o açaí,
mas é mais gordo, não sei explicar direito. Gostei!

Viagem à Amazônia | 106


João Meirelles

***

– E o barbeiro? Dá mesmo no açaí? Eu li no jornal que a gente corre risco... –


Antônio continua.
– Corre risco, sim! Porque a doença de Chagas não tem cura. Tomar suco de
fruta mal lavada, ou mesmo um caldo de cana, a famosa garapa de cana de
beira da estrada, é igualmente arriscado! Basta que um barbeiro infectado
com o protozoário, que transmite a doença, seja triturado com as frutas,
folhas ou vegetais, para espalhar a doença. O certo é lavar bem qualquer fruta
ou vegetal. E, claro, com água segura para beber. Melhor ainda se for água
clorada. No caso do mal de Chagas, isso só não basta. O ideal seria pasteurizar!
– Tio, o que é pasteurizar? – Gabriel pergunta.
– Legal perguntares! Nunca deixem de procurar saber! Bem, a palavra vem
de Pasteur, o cientista francês que inventou esse eficiente processo de
destruição de microrganismos patogênicos, ou seja, que podem ser nocivos
ao homem ao transmitir doenças. É simples: aquece-se o alimento a uma
certa altura e tempo e, a seguir, resfria-se de forma bem rápida. Feito de
forma industrial, é muito eficiente e seguro.
– Então, o certo é só comer açaí pasteurizado? – Juju quer saber.
– Não precisa, basta seguir as orientações de higienização da Vigilância
Sanitária no Pará. E são três passos fáceis: inicia-se com o peneiramento,
para tirar a sujeira grossa; são três lavagens, a primeira só com água, a
segunda com solução de hipoclorito e a terceira para retirar o cloro da
água; a seguir, faz-se o branqueamento, que elimina o perigo da doença de
Chagas: aquece-se a água a oitenta graus Celsius, mergulha-se a fruta por
dez segundos, depois se mergulha a fruta em outra cuba, com água fria. O
branqueamento funciona para pequenas quantidades, como é o caso das
batedeiras, as lojas de esquina que vendem açaí. E também pode ser feito em
casa. Para quem processa açaí em maior quantidade, o correto é pasteurizar.
– Ufa, ainda bem que a mãe do Zezinho fez direitinho o branqueamento, ela até me
mostrou como era e eu nem dei bola, vou lá pedir desculpa pra ela! – Juju suspira.
– O problema é que, em Belém, oitenta por cento dos batedores de açaí não
seguem essa regra básica. No restante do Pará e do Amapá, a falta de
higiene é ainda mais crítica. Como é que queremos ter uma culinária de
qualidade se nem uma regra tão simples e básica como essa é seguida?
– É total falta de respeito pelo consumidor, eu diria, um crime! – Gabriel reclama.

Viagem à Amazônia | 107


João Meirelles

– Exatamente, se a sociedade e os órgãos públicos não forem vigilantes para


valer, continuaremos a ter tristes notícias de famílias inteiras morrendo
porque tomaram açaí contaminado. E a sociedade tem que exigir uma
atuação enérgica da Vigilância Sanitária e de outros órgãos.
– Tio, me explica. Por que, mesmo, o açaí é tão procurado?
– Primeiro, porque é gostoso. Depois, o consumo explodiu com esta onda
atual de produtos que são bons para a saúde. A fama do açaí é por conta
das antocianinas.
– Anto... o quê? – questiona Antônio.
– As antocianinas são pigmentos naturais. As frutas com quantidades elevadas
de antocianinas, como as frutas vermelhas – entre as brasileiras, o açaí e a
casca da jabuticaba e, das exóticas, ameixa, uva, framboesa, amora –, são
tidas como boas para retardar o envelhecimento das células de nosso corpo.
– Então quem toma bastante açaí não envelhece? – interessa-se Juju.
– Não é bem assim! O alto consumo de fontes ricas em antocianinas
provavelmente diminui o risco de desenvolvimento de doenças crônicas
que não são transmitidas geneticamente. As pesquisas científicas indicam
que o açaí é um dos alimentos mais completos, tanto pelas antocianinas
como por outras propriedades – é considerado um superalimento. Em geral,
tem proteínas que suprem cerca de um quarto das necessidades diárias de
um adulto. O açaí tem tantos aminoácidos como um ovo de galinha. Tem,
ainda, boa quantidade de fibras, o que é bom para a digestão, e oferece boa
quantidade de cálcio e de outros minerais. Erroneamente se diz que o açaí é
rico em ferro. Em geral, a água da região é rica em ferro. O consumo regular do
açaí em quantidades altas resulta em diversos efeitos positivos. No entanto,
afirmar que não se envelhece é um exagero. Ele não é um energético, como
se comenta. O que adicionam ao açaí, como o açúcar, a granola e outros
alimentos, esses, sim, são energéticos. Além disso, adicionam-se ao açaí outros
produtos, como o guaraná, com alto teor de cafeína. Em geral, o guaraná vem
na forma de xarope, ou seja, muito açúcar com um algum gostinho de guaraná.
– E engorda, tio? – Gabriel quer saber.
– Um litro de açaí popular possui praticamente a mesma quantidade de
calorias que o leite integral, cerca de seiscentas quilocalorias por litro, o
mesmo que cento e cinquenta gramas de açúcar. Geralmente, o que engorda
é o excesso; certamente, o excesso de açúcar no açaí é o que mais engorda.
– Nossa, tio, é mesmo uma superfruta! – Juju feliz, porque gosta de açaí.

Viagem à Amazônia | 108


João Meirelles

– O termo “superfruta” vem de um índice criado pelo Departamento de


Agricultura dos Estados Unidos (USDA), a Capacidade de absorção dos
radicais oxigenados. Em inglês, índice ORAC (Oxygen Radical Absorbance
Capacity) Aqui, nas regiões produtoras, um adulto, durante a safra, consome
mais de um litro por dia, o que supre vinte por cento de suas necessidades
calóricas diárias. O restante do que precisa para ter uma alimentação
saudável poderá ser obtido na farinha de mandioca (carboidrato), no peixe
ou no camarão (proteínas). Como vimos, o açaí oxida em até dois dias, ou
seja, estraga logo. Se não for consumido rapidamente, estará perdido.
– Puxa, que pena, o que a gente faz então com o açaí? – Antônio quer saber.
– Congela. Por isso, fora da Amazônia, ele é consumido sempre gelado. A grande
riqueza do açaí está no alto teor de gordura. Mais da metade é gordura, gordura
boa, como se diz, que não traz riscos para aumentar o colesterol; nisso ele é
parecido ao abacate, conhecido como uma fruta bastante rica em gordura. É essa
quantidade de gordura que dá aquela moleza, a leseira, como se diz aqui, depois
que se toma o açaí. Sua digestão exige que o sangue vá para o estômago quebrar
as moléculas de gordura, transformando o produto em nutrientes para o corpo.
– Nossa, muita coisa eu aprendi agora! – Gabriel está feliz.
– Assim, se bem aproveitado e negociado, o açaí apresenta imenso potencial
transformador, tanto para melhorar a qualidade de vida das comunidades
produtoras, quanto para valorizar a floresta em pé. Na Amazônia, há diversos
produtos que não exigem o desmatamento; são conhecidos como produtos da
sociobiodiversidade ou como produtos florestais não madeireiros. São castanhas,
frutas, fibras, raízes, cascas, folhas, óleos, óleos essenciais, resinas, borrachas,
além dos produtos animais, o mel e a pesca. Até a criação de tartarugas e
jacarés, desde que autorizada, é considerada como produto não madeireiro. A
maioria é pouco conhecida; portanto, sua procura é ainda bem limitada.
– Como assim, limitada? – Gabriel pergunta.
– Como são produtos tradicionais, nem sempre foram desenvolvidas tecnologias
para seu aproveitamento, sua conservação e, mesmo, para contar ao
mercado que eles existem. Vejam o açaí. Há vinte anos, era completamente
desconhecido fora da Amazônia. Aqui o açaí era consumido fresco, sua
transformação em polpa é recente. Bem, a conversa está ótima, mas temos
que ir! Antes veremos um documentário feito sobre o Marajó, o Expedição Viva
Marajó, produzido pelo Instituto Peabiru, como parte do Programa Viva Marajó,
e dirigido pela cineasta Regina Jeha, da Lauper Films, financiado pelo Fundo
Vale, boa oportunidade de ouvir o Marajó contado pelo próprio marajoara.

Viagem à Amazônia | 109


João Meirelles

Diário da Juju: No trapiche de Breves, no beiradão, estão


muitos barcos. Ali está o nosso, pronto para zarpar. Aquelas
letras lindas, decorando a lancha Flor do Amazonas,
adorei o nome. Nisto passa um casquinho com duas
crianças, um menino de nove anos e uma menina menor
ainda, magrinha... Eles encostam no nosso barco. O
menino pergunta pro tio: – Quer levar a menina? Pode
levar! Leva agora! Nossa reação foi de espanto total.
Ninguém falou nada. Os dois foram embora, tristes, a
cabeça baixa. Não consegui dormir depois disso.

– Vocês estão vendo o que se passa aqui? – Juju, inconsolada.


– Doutor, é sempre assim. Tem muita história deste tipo – o marinheiro do
barco comenta, sem dar muita importância.
– Isso é muito grave! – protestei. – E se a gente aceitasse levar a menina? O
que é isto? Total desrespeito aos direitos da criança. Pela lei isso tem nome:
rapto de menores, sequestro, o escambau! E qual o risco de essa criança ser
exposta à prostituição, à pedofilia? E essas famílias que não conseguem criar
seus filhos? Isso tem um nome: ausência completa do poder público? Para
mim, o mais grave é a sociedade aceitar como “normal” essa abordagem.
Viram a posição do marinheiro, a indiferença das pessoas no porto?
– Gravíssimo! – Juju rebate, inquieta.
– Cada vez ouço mais histórias assim. Não é difícil encontrar, em Belém,
Macapá, Manaus e no interior, meninas adolescentes, com doze, catorze,
quinze anos, morando com famílias que têm crianças e servindo como babás.
Não existe outro nome para isso senão o de “escravidão”!
– Tio, eu não acredito que nos dias de hoje isso exista! Eu poderia estar ali,
essa menina poderia ser eu! – Juju chora.
– Isso é insuportável, poderia ser a minha irmã! – Gabriel também não
aguenta e protesta.
– Tio, é muito sofrimento! – continua Juju.

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João Meirelles

***

– Está na hora de partir. Antes, eu gostaria de mostrar uma imagem de satélite


desta região, do megadelta do Amazonas-Tocantins. Vejam, aqui podemos
identificar, claramente, a quantidade de sedimentos que o rio Amazonas
e o Tocantins lançam oceano adentro. Vejam a mancha marrom subindo
em direção ao norte, ao Caribe, aqui, ao lado das Guianas. Esta imagem é
do período do inverno amazônico, ou seja, quando há muita água. O rio em
sua força máxima invadindo o Atlântico muitos quilômetros adentro, alguns
falam em cinquenta quilômetros!
– Se traçarmos uma reta da Ponta da Tijoca, em Curuçá, no litoral do Pará,
onde estivemos, até a foz do rio Araguari, nesta região aqui, ó, vejam o
arquipélago do Bailique, no Amapá, chegaremos à impressionante largura de
trezentos e trinta quilômetros desta boca de rio, o megadelta.
– Tio, antes de ir embora, queria comentar uma coisa. No mapa do Marajó, eu
percebi que não tem reserva indígena! – observa Gabriel.
– É verdade, bem observado Gabriel, na maior parte da região de várzeas, o
que chamamos também de calha do Amazonas, pelo menos no percurso
de Manaus a Belém, raramente há territórios indígenas. A exceção seria a
Terra Indígena Sateré-Mawé, no Amazonas. A explicação é simples: como
foram as primeiras regiões em que se deu o contato entre europeus e povos
originários, os grupos indígenas foram dizimados, seja pelas doenças, para
as quais não tinham defesa – como um simples resfriado, gripe ou sarampo
–, seja pela escravização e pela redução. Nos primeiros séculos da Colônia,
a palavra “redução” referia-se à permanência dos indígenas em missões ou
aldeamentos fundados por religiosos católicos. No Nordeste Paraense, a
situação é a mesma, há poucas terras indígenas, somente aquelas mais para
o interior, no alto rio Gurupi, na região da divisa com o Maranhão!
– Tio, aqui no Marajó, como é que era antes do contato? – Gabriel está curioso.
– Houve diversos processos civilizatórios aqui. Durante milênios, uma das razões
para a concentração de pessoas nesta região de terras baixas, inundáveis,
as várzeas, era a grande fertilidade dos solos e a abundância de comida,
especialmente de frutas, como o açaí e proteínas animais – moluscos,
camarões, peixes, tartarugas e peixes-boi. Os primeiros habitantes, conhecidos
como povos dos sambaquis, viviam da coleta de moluscos, de caranguejos,
da pesca e da caça. O nome “sambaqui” designa o depósito de conchas

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João Meirelles

de diversos moluscos e mesmo de restos de animais; assim se formavam


pequenos montes, provavelmente com significado sagrado, como indicam
as pesquisas em diferentes partes do Brasil. Mais tarde, como nos dizem
as muitas cerâmicas e outros vestígios, instalou-se o que hoje se denomina
“cultura marajoara”. Há muito que conhecer, mas sabe-se que a cultura
marajoara passou por diversas fases e durou pelo menos oitocentos anos. A
presença mais marcante deve ter sido entre os anos 400 e 1200 da nossa era.
– Eram os povos mais antigos da Amazônia? – Gabriel pergunta.
– Não se sabe ao certo. Os vestígios mais antigos até hoje encontrados foram
numa região mais seca, que tem até pequenas cavernas, em Monte Alegre,
no Baixo Amazonas, aqui no Pará. Iremos visitar as paredes de pedra com
inscrições rupestres, as litogravuras, com idade estimada de mais de onze
mil anos. “Lito”, radical que significa pedra, gravuras em pedra.
– Nossa, que chuva forte! – observa Gabriel.
– Pessoal, vamos encostar, dar um tempo pro banzeiro passar! – o
barqueiro comunica.
– Nossa, tio, isto é perigoso? – Juju pergunta.
– Banzeiros são as ondas que o vento forma. O certo é mesmo esperar até que
as marolas grandes cessem. Perigoso é desrespeitar os limites da natureza.
Observem como o barqueiro foi prudente. Vamos conversar um pouco mais
sobre a importância da umidade e das chuvas.
– Tio, sim, me lembro. Então, sem floresta não tem mais chuva, certo? –
Gabriel pergunta.
– O que deve acontecer – e, na verdade, isso se passa nas regiões que foram
duramente desmatadas – são as mudanças no clima local. A tendência é
que, cada vez mais, os solos fiquem mais secos durante o verão, as fontes de
água estejam mais distantes da superfície e alguns igarapés desapareçam ou
se tornem temporários, intermitentes como se diz. Com isso, as atividades
humanas sofrem: as pastagens crescem menos, secam mais, o gado
emagrece. Diminui a produtividade, perdem-se plantações. Os animais
sofrem, as plantas sofrem, e muito mais...
– Nossa, é mesmo sério. E esta história da Amazônia, pulmão do mundo? –
pergunta Juju.
– Na verdade, a Amazônia não é o pulmão do mundo, não produz mais oxigênio
do que consome. A Amazônia e o conjunto das florestas tropicais poderiam
ser considerados como o sistema de refrigeração do planeta, que distribui

Viagem à Amazônia | 112


João Meirelles

umidade e baixa a temperatura. Lembram-se de que já falamos disso?


– Sim, sim – Gabriel feliz em recordar as tantas conversas sobre um dos
assuntos de que mais gosta.
– Lembrem-se de que os ventos trazem a umidade do Atlântico para a
Amazônia. Aqui a floresta tem um papel fundamental em manter a umidade
dentro do sistema. Imaginem vocês que um metro quadrado de floresta
lança de seis a sete vezes mais água na atmosfera que um metro quadrado
no oceano. Com isso, uma quantidade enorme de água permanece na região,
tornando-a superúmida. E a Amazônia é bem generosa, pois manda parte
significativa dessa umidade para outras regiões do Brasil.
– Nossa, que incrível! – Gabriel comenta.
– Não haveria um clima tão favorável à agricultura e à pecuária no Centro-
Oeste e no Sudeste do Brasil se não fosse pela Amazônia.
– Entendido, tio! Mas poucos dão valor para esse “serviço” que a Amazônia dá
pro Brasil, certo? – Antônio completa.
– Isto é essencial: compreender os serviços invisíveis que a região dá para
o Brasil, para os países vizinhos e para o planeta! A umidade é apenas um
desses serviços. – Nossa, tio, então tá tudo interligado mesmo! Que barato! –
Antônio gosta.
– Sim, num ciclo permanente, que se renova. Não é lindo? Agora vamos a
Macapá, porque há uma visita agendada aos quilombolas.

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Capítulo 7

Em Macapá e de Macapá a Abaetetuba

(Chegada a Macapá.)

– Que prédio e-nor-me é este? – pergunta Antônio.


– É uma fortaleza, construída pelos portugueses no século XVIII para afirmar
a posse da Amazônia, mostrar aos espanhóis, ingleses, holandeses,
franceses que quem mandava aqui era a Coroa portuguesa. Mas aqui quem
deu duro mesmo foram os índios e os escravos trazidos da África. O certo
é dizer: a fortaleza foi construída por escravos, aliás, como tudo no período
colonial e imperial.
– Que maldade! – reclama Juju.
– A vida dos escravos era horrível. Mal alimentados, dormiam em locais
úmidos, explorados de todas as formas, muitos eram marcados com ferro
em brasa, alguns usavam argolas de ferro para não fugir, no pescoço, nos
pés... E, assim, trabalhavam duro por cinco, dez anos, e morriam cedo,
muito cedo, a maioria não suportava tamanha malvadeza. Quem escapava
e conseguia se reunir em grupos criava um quilombo. Essa injustiça está
sendo parcialmente corrigida com a declaração das terras quilombolas,
para que seus descendentes possam viver, ter a sua cultura, desenvolver a
sua economia, em paz. Muitos dos quilombos se formaram aqui mesmo, no
entorno de Macapá. Hoje formam pequenas vilas e grupos de famílias, que
vivem da roça de subsistência e de outras atividades. Desde os anos 2000, a
maioria das comunidades criou associações para representá-las, só aqui no
Amapá são mais de trinta comunidades quilombolas.

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Diário da Juju: Eita conversa boa! Ainda deu pra ver o


pôr do sol na beira-rio, em Macapá. A maré enchia. A
água do Amazonas batia forte no muro. Ventava muito.
Conversamos sobre esta maravilha que descobri agora: a
sociobiodiversidade. É assim: de um lado, a diversidade de
povos e comunidades e, de outro, a diversidade de animais
e plantas. Anotei tudo o que o tio disse: ao norte, o rio
Oiapoque, as terras de muitas nações indígenas, Galibi
Marworno, Karipuna, Palikur, as grandes florestas. A oeste,
os Wajãpi (escrevi certo?), a serra do Tumucumaque. E,
depois, que fantástico: um conjunto enorme de reservas,
terras indígenas, florestas estaduais e parques, no Amapá
e no Pará. O tio me disse que é o maior conjunto de
áreas protegidas de florestas tropicais do planeta. De
quebra, no dia seguinte, conhecemos a simpaticíssima
Teca, a Terezinha de Jesus do Santos, farmacêutica da
Farmácia da Terra, pesquisadora do Instituto de Pesquisas
Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (Iepa).
Ela explicou que é muito importante não perdermos o
conhecimento tradicional dos remédios à base de plantas.

***

(Chegada a Laranjal do Jari, visita à fábrica de celulose.)

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João Meirelles

– Que coisa doida! Esta fábrica veio mesmo do Japão? – Gabriel pergunta.
– Foi durante a ditadura brasileira, época em que as decisões eram tomadas de
cima para baixo e a portas fechadas. Cada decisão maluca para a Amazônia:
construir estradas sem sentido, como a Transamazônica, levar centenas
de milhares de famílias para assentamentos no meio da floresta e apoiar
empresários inescrupulosos como este, que pensava que aqui era o reino dele!
– Bem, as coisas não mudaram tanto assim, não é, tio? – Gabriel pontua, com
segurança de quem aprendeu bem.
– Exato, é o caso recente da Usina de Belo Monte e de tantos outros projetos
faraônicos. Em 67, aqui, no Jari, Daniel Ludwig, um excêntrico milionário
norte-americano, conseguiu comprar por uma ninharia uma área enorme,
de mais de um milhão de hectares, do tamanho de um país pequeno. O
problema é que o governo militar nem se deu ao trabalho de verificar se
na área viviam comunidades tradicionais, como de fato havia, o que gera
conflito até hoje. A intenção era implantar diversos projetos: mineração de
caulim, reflorestamento, criação de búfalo e plantio de arroz. Não se discute
a importância dessas atividades econômicas, a questão é: destruir a floresta
mais complexa e rica do planeta para isso! Não faz sentido.
– Caulim, o que é, tio? – Antônio.
– É um mineral branco, abundante nesta região da Amazônia. Uma argila
muito usada na fabricação de porcelana, no branqueamento de papel, na
construção civil e até em cosméticos e produtos farmacêuticos. Dizem que
esse empresário queria também explorar alumínio, mas não conseguiu. De
cara, foram desmatados mais de cem mil hectares e plantadas espécies
exóticas de árvores, como o pinheiro, o eucalipto e uma outra árvore, a
gmelina, para fornecer madeira para a fábrica de celulose. Boa parte da
madeira do desmatamento perdeu-se, apodreceu no mato, foi queimada,
porque não havia comprador. Aos poucos, Ludwig percebeu que não teria
o retorno tão grande e tão rápido e, quinze anos depois de iniciado o
empreendimento, abandonou-o. Mas o sonho maluco do empresário tornou-
se uma grande dor de cabeça para o governo brasileiro.
– Tio, por quê? – Juju perguntou.
– Porque Ludwig deu calote no banco que financiava seu empreendimento, e o
governo brasileiro, o Banco do Brasil, na verdade, era o avalista, o garantidor
do empréstimo. Assim teve que honrar o compromisso. Na verdade, mais
uma vez, quem pagou a conta foi o povo brasileiro. Aqueles que tinham
feito o negócio em nome do Brasil, o presidente, os ministros e seus

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servidores, nunca foram punidos. É assim a ditadura. Essa dívida enorme


que se acumulou por décadas, tanto interna como externa, é resultado de
um conjunto de decisões erradas como essa por parte dos governantes
brasileiros. Nesse caso, como o governo não pretendia ficar à frente do
empreendimento, deu um jeito de passar para a iniciativa privada, o que foi
bem complicado, mas a fábrica de celulose e o reflorestamento seguem por
aqui, com muitos problemas.
– Bem, vamos voltar para o Pará, de barco, cruzando de novo o estreito de
Breves, em direção a Abaetetuba. Dali, de carro, vamos conhecer o Baixo
Tocantins até Marabá.

Diário da Juju: Um dia bastante movimentado. A saída


de Macapá, vejam só – do igarapé das Mulheres! E depois
aquela parada em Mazagão, mais conversa boa com
quilombolas. Que gente linda! E esta fábrica de celulose
no meio do nada, no rio Jari, que ideia de doido desse
gringo! Mais doido é quem achou que isso ia dar certo!

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Capítulo 8

De Abaetetuba a Tucuruí

Diário da Juju: Em Abaetetuba conhecemos artesãos de


miriti. Miriti é uma linda palmeira que dá nas áreas
alagadas, onde também está o açaí. O artesão aproveita
o talo da palmeira. Faz haste pra pipa. Aqui também se
chama a pipa de rabiola e cangula! Tem é muito artesão:
seu Ivan Leal, seu Célio, seu Miranda, iche, muita gente,
nem me lembro de todos... Lindos brinquedos: casinha,
barco, passarinho, cobra que mexe, casal dançando...
Explicaram que é no Círio de Nazaré, em outubro, que a
produção sai mesmo. Vou levar presente pra todo mundo!
Nem sei onde vou guardar, só se for na mala dos meninos.

– Ô, seu Menino! O senhor me dê sua licença. Mas eu tenho que entregar
uma farinha pro primo da minha namorada! – o piloto do barco,
Genivaldo, meio que encabulado, pedindo desculpas nos solicita – Vocês
se importam? É rapidim...
Um olhou para o outro, sem falar nada, querendo dizer: – Fazer o quê, não é?

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João Meirelles

Diário da Juju: Foi a coisa mais acertada aceitar o convite


do piloto. Nem era muito pertinho, não. Lá, parece que
num lugar assim, no furo do Tucumanduba. Chegando
lá, foi aquela festa. Parente beija parente, pergunta pra
lá, pra cá, como vai este, aquele. A dona Cota, mãe do
Genivaldo, mais as suas sobrinhas, nos receberam de braços
abertos. Até ajudamos a terminar a farinhada. Aquele
calorão da casa de farinha. Um café, mais um, o beiju...

– Vejam aqui, meus sobrinhos. Este belo livro do Raymundo Moraes, O meu
dicionário de coisas da Amazônia. Leia para nós, Juju, por favor, o trecho
sobre os pratos à base de mandioca.
– Beiju-assu, o beiju-puqueca, o beiju curuíba, o beiju-cica e o beiju-membeca.
O beiju-assu é fino como um disco, branco como a lua; torrado ao forno,
com manteiga, supera qualquer bolacha de água e sal das mais finas. O
beiju-puqueca, mais grosso e mais úmido, é sempre envolto em folhas de
bananeira, e o beiju-curuba recebe sempre da castanha-de-caju, um sabor
novo e esquisito. O beiju-cica é delgado, seco e quebradiço, e o membeca,
como o nome indica, é fofo e mole... – Juju lê.
– Beiju, não é mesmo? É esta massa do polvilho da mandioca. A mandioca é
o pão da Amazônia, não pode faltar em refeição alguma. Como já vimos, é a
principal fonte de energia, de carboidrato, consumida o ano todo.
– Nossa, que delícia, nunca comi isto! – Juju comenta, a boca cheia de farinha,
feliz da vida.
– Pois é, minha filha, a vida é cheia de misteriosidades, de caneta japonesa! –
explica dona Cota.
– Caneta japonesa? – pergunta Juju, sem entender.
– Novidades, minha filha! Novidades! A vida é cheia de imprevistos, de
novidades! A gente tem que deixar o barco correr, a água levar, assim a
gente é mais feliz... – argumenta dona Cota, em sua simplicidade, enquanto
mastiga mais gostosamente um pedacinho de beiju, aquela sobra crocante,
a raspa do tacho.
– Mas, tia Cota, posso chamar assim a senhora? Como é que produz uma

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João Meirelles

farinha tão gostosa? – Juju continua...


– Ah, é simples, minha filha. Pra começar, a gente vai lá no mato. Derruba
tudinho o mato, queima bem queimadinho. Na época certa, faz as covas e
planta as ramas da mandioca brava. Vez em quando é preciso voltar lá, carpir,
limpar, não deixar o mato tomar conta da roça. Essa parte é dura, filha, muito
dura. Tem vez que espera oito meses, tem vez que passa de ano, depende da
época do plantio, se é ano seco, se não é, e do tipo de rama também! E, pronto,
tá na hora de colher. A turma toda vai pra roça, é o mutirão, parente vem de
longe, e vem! É aquela zoada, todo mundo a desenterrar a tal da mandioca,
limpar, trazer no lombo da bicicleta, nas costas, de tudo que é jeito. Tem que
descascar e, se for pra farinha-d’água, a puba, a gente põe a mandioca de
molho, lá no igarapé, pra amolecer, dois... três... dias. Tando molinha, passa no
caititu, esta maquineta de moer mandioca. De primeira era na mão mesmo,
ralada na tábua. Do caititu, a massa vai pro tipiti... – responde dona Cota.
– Nossa, que trabalhão! – Juju comenta.
– Hum, hum, e é! Aí escorre o caldo da mandioca, parte pra tucupi, parte a
gente joga fora. A galinha, se tomar este caldo, morre, é tóxico... A gente
deixa escorrer. O caldo vai ferver pra virar tucupi. E ferve é muito! Muitos
dias. A massa mesmo vai pro tacho, que precisa estar bem quente, pra
farinha ficar sequinha, boa de comer. No tacho, a gente faz um pouco de
cada coisa. Depende das vontades, dos fregueses, das precisões e das
sugerências. Farinha mais grossa... Farinha mais fina. E tem ainda a tapioca.
Na tapioca, numas a gente põe coco, noutras, não. E este bolinho, o beiju-
coroa, aqui, é pra comemorar o fim da farinhada – arremata dona Cota.
– Mas, tia, com esta farinha tão gostosa, a senhora deve tar rica, fila de gente
querendo farinha! – Juju segue amarrada na conversa.
– Que nada, menina, farinha não dá futuro pra ninguém. Não vale nada. A gente
faz por precisão. Pra ter o de comer! Pra falar a verdade, tudo o que a gente
produz parece que num vale nada: é nossa cestaria, é peixe, é camarão,
farinha, é cheiro pra banho... Mal dá pra comprar um remedinho. O que a
gente ganha mesmo é alegria, é beijo, é abraço. Mas, viu, menina, volta
sempre, minha princesa, vem passar umas férias aqui com a gente, paixão.
Festa junina, cê vai gostar. Tem também o “cordão de bicho” lá nos parentes
de Cametá... – comenta dona Cota, feliz da vida, os braços abertos.

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Diário da Juju: E foi difícil se despedir da dona Cota sem


uma lágrima e um olhar de admiração! Saímos de lá
com aquele gostinho de quero-mais, a barriga inchada
de tanto beiju, suco de cupuaçu, “chop” de taperebá.
“Chop” aqui é suquinho congelado no plástico com muito
açúcar, muito bom... Pois é, quantas donas Cotas há pela
Amazônia, cuidando de seus filhos, marido, a roça, a
farinha, carregando a Amazônia nas costas. E sempre um
sorriso maior que o rio maior do mundo. Elas são as minhas
heroínas, as verdadeiras guerreiras, as AMAZONAS!

– Reparem bem. São dezenas de vilas neste trajeto da rodovia PA-150,


que corta o Pará de norte a sul. Observem os equipamentos públicos,
principalmente as escolas. A maioria está em estado precaríssimo.
– Pelo jeito, educação aqui não é prioridade! – lamenta Juju.
– Exato, não é à toa que o Pará tem alguns dos piores indicadores escolares
do Brasil. Em 2019, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb)
para os anos finais de quem está em escola pública no ensino médio era de
3,4 tanto no Pará, quanto no Amapá, enquanto a meta para esses estados
era 4,4 e 4,5, respectivamente. Só em alguns estados do Nordeste, como
Bahia e Paraíba, a questão é tão crítica. Baseado na Prova Brasil, esse
indicador mede a qualidade da aprendizagem e estabelece metas para
melhorar o ensino. Na verdade, o Pará está estagnado. Em 2019, o Brasil
até superou a meta do Ideb, que era de 5,7, mas alcançou 5,9. Tem mais:
imaginem que Belém, daquele tamanho todo, dizendo-se uma cidade rica,
tem apenas seis bibliotecas públicas municipais minúsculas. Santarém,
daquele tamanho todo, só tem uma! Em geral, as cidades têm uma
biblioteca, quase sempre pequenina e desatualizada. A educação pública
raramente foi uma prioridade dos governantes. Vou comentar alguns dados
que anotei em meu caderno para mostrar a vocês. Quando se verifica se a
criança está na série escolar compatível com sua idade, constata-se que no
Pará somente um quarto segue o padrão desejado.
– E fazer faculdade, hein, tio, nem pensar! – Gabriel completa.

Viagem à Amazônia | 123


João Meirelles

– Justo. De cada dez estudantes, menos de dois alcançarão o ensino superior.


E, se pensarmos na população com mais de quinze anos, menos de três em
cada cem chegarão à universidade.
– Nossa, que vergonha! – desespera-se Juju.
– É isso mesmo, não tem outro nome. Mas vamos falar também do acesso à
água limpa. Nas zonas rurais e na periferia das cidades, em geral a população
toma água diretamente do rio ou de poços simples, sem qualquer tratamento
ou fervura. Nos anos 2000, a Expedição Brasil das Águas, de Gérard e
Margi Moss, mostrou que mais da metade dos rios da Amazônia estava, de
alguma maneira, poluída. Como não há sanitários, os agentes causadores de
verminoses, cistos e parasitas presentes nas fezes de animais e das pessoas
misturam-se à água, num ciclo vicioso de contaminação. A situação é crítica
no período das cheias, quando há grandes surtos de diarreia. Para o Projeto
Saúde e Alegria, uma ONG que vocês conhecerão em Santarém, as soluções
são simples, baratas e bem conhecidas. Primeiro: construir fossas sanitárias
isoladas das casas e com uma pedra sanitária. A pedra sanitária custa
menos de dez reais por ano. Isso elimina a principal fonte de contágio, que
causa diarreias e também é a principal causa de internações e de mortes de
crianças. Segundo: distribuir amplamente as gotinhas de cloro, o hipoclorito
de sódio, que custa menos de cinco reais por família ao ano.
– Ah, já sei, lá em casa, toda vez que a gente come uma fruta, uma salada, a
gente coloca as verduras de molho com as gotinhas. Inclusive, quando não
tem gotinha, a gente põe vinagre! – Juju, falante, entusiasmada.
– Terceiro: cavar poços para captar água limpa, o que se encontra com certa
facilidade em boa parte das zonas rurais. É importante que o poço esteja
longe da fossa de esgotamento sanitário, do lugar onde dormem ou ficam os
animais; a enxurrada da chuva não deve cair nele, deve ser bem tampado,
para não cair sujeira. O custo desses poços varia, mas em geral fica em torno
de uns mil reais por poço. Em muitos casos, um único poço pode atender
muitas famílias. Quarto: vacinar crianças e idosos. Simples, não?
– Nossa, tio, isso parece bem... básico! Mas não é feito, é isso mesmo? –
completa Juju.
– Positivo. A maioria dos governantes sempre tem outras prioridades. Coisas
simples, para o povo, raramente recebem atenção. As obras mirabolantes,
que podem representar muito dinheiro concentrado, atraem mais atenção.
Tem aquele velho ditado: tudo o que dá voto é prioritário. Depois, há aquelas
verbas de emergência, em enchentes, epidemias, enfim, catástrofes. Muitos

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João Meirelles

políticos adoram viver de fingir que resolvem catástrofes! É algo visceral


em nossa deformação política – aceitar esse tipo de gente que ataca a
consequência e não a causa.
– Nossa, isso é pra lá de sério – desabafa Antônio.
– Temos, ainda, que relacionar saúde com alimentação. Na região Norte,
uma de cada dez famílias vive insegurança alimentar grave, em bom
português: fome. Se considerarmos quem tem risco de ter fome, a
insegurança alimentar moderada, estamos falando de metade da população,
principalmente nas zonas rurais.
– Vixe, então, muita gente passa fome na Amazônia, e com esta fartura toda? –
Juju continua.
– Pois é, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre
os que passam fome, três quartos são pretos ou pardos, contra um quarto de
brancos e amarelos.
– Então tem discriminação na questão da fome! – Juju protesta.
– Pardo, tio, a gente usa esse termo? – Gabriel pergunta.
– No dia a dia, não, mas o IBGE usa, sim, para distinguir quando não é branco,
amarelo, indígena ou preto. Para falar a verdade, esse “pardo” me incomoda!
O que signfica? Ninguém diz “Eu sou pardo”! É um tema muito importante
e precisamos aprofundar isso outra hora. O que a gente percebe aqui é
que as questões que interessam a negros, índios e povos e comunidades
tradicionais sempre valem menos, são menos importantes. Assim, a dívida
social só aumenta...
– Que dívida é essa, tio? – Gabriel pergunta, um pouco envergonhado.
– É uma maneira de dizer que a sociedade está em dívida com estes grupos
excluídos: as mulheres, os jovens, os negros, os índios... Cotas para negros
em universidades, por exemplo, são uma maneira de reparar, de diminuir
essa exclusão. E, quando analisamos as faixas etárias, vemos que quem mais
sofre são as crianças. Na Amazônia cerca de um quinto das crianças de zero
a cinco anos passam fome, ou seja, têm insegurança alimentar grave. Se a
gente compara esse índice com o das regiões mais desenvolvidas, do Sul e
do Sudeste, essa cifra é quatro vezes maior.
– Mais uma calamidade... – Juju protesta veementemente.
– E muitas vezes confundimos estar gordo e estar nutrido. Muitas crianças
gordas estão subnutridas, ou seja, apresentam deficiências consideráveis.
Elas dispõem de quantidade e não de qualidade. A farinha de mandioca, por

Viagem à Amazônia | 125


João Meirelles

exemplo, é praticamente só carboidratos. Ela é pobre em proteínas e em


outros elementos necessários. Muitas vezes, a farinha é o único alimento
disponível. Nas áreas rurais, no período das águas, quando há menor oferta
de proteínas e de outros alimentos essenciais para complementar a dieta,
como o açaí, o peixe, o camarão, as frutas, a fome é maior. E, com menor
disponibilidade de proteínas, aumentam as chances de diarreias.
– Mas não houve melhorias, tio? – Gabriel comenta.
– Sim, programas sociais como o Bolsa-Família ajudam, mas são insuficientes.
No caso da alimentação, há tanto o descaso oficial crônico como a falta de
educação das famílias para uma alimentação saudável e para os cuidados
básicos em saúde. Basta ver a falta de preparo dos agentes comunitários de
saúde (ACS) diante do tema da alimentação saudável, ou analisar a péssima
qualidade da merenda escolar na maioria dos lugares e, principalmente,
constatar a falta de políticas públicas consistentes e de longo prazo.
– O que é isto, políticas consistentes? – Gabriel quer saber.
– São orientações e ações do poder público para o longo prazo, ou seja,
ultrapassam o tempo do mandato de um prefeito, governador ou do
presidente da República. Principalmente nessas questões que são
consideradas estruturantes para a qualidade de vida, não se deve brincar
com ideias mirabolantes, há orientações científicas claras e consolidadas
para isso. Estruturante, como o próprio nome diz, porque é o eixo, a
estrutura, o esqueleto que garante que tudo esteja em pé, funcione.
– Muita coisa pra arrumar, tio! – Antônio coça a cabeça...
– É um desafio imenso, e não se trata de dar atenção por um tempo. É
assunto permanente, que seguirá por gerações. Numa região pobre como a
Amazônia, o governo tem que fazer de tudo para garantir alimento popular
barato, para promover a educação alimentar, enfim, para alcançar a maior
qualidade na alimentação. Há bons exemplos por aí. Um deles é o trabalho
de décadas da Pastoral da Criança, da Igreja católica, em milhares de
localidades. Ações simples, a partir de alimentos disponíveis, são capazes de
suprir diversas carências.
– Tou curiosa, fala um exemplo aí, tio! – Antônio pergunta.
– Uma ação simples: a casca de ovo que seria jogada fora, uma vez bem
lavada, triturada e adicionada à comida, é boa fonte de cálcio. A folha de
mandioca, cozida, e eliminado o ácido cianídrico, é fonte de proteínas, de
vitamina A, ferro, cálcio e fósforo, e o seu uso regular ajuda, por exemplo, a
combater a anemia. E vejam que a culinária tradicional sempre tem comidas

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João Meirelles

bem nutritivas, comidas de verdade, como chamamos. Aqui no Pará a


maniçoba, por exemplo, é um prato que aproveita muito bem a folha da
mandioca, também conhecida como maniva, como já vimos.
– E a castanha, tio, é boa pra quê?
– A castanha-da-amazônia ou castanha-do-pará, como já vimos, é a melhor
fonte natural de selênio disponível. O selênio é um dos microelementos
importantes para a saúde humana e está naturalmente presente em poucos
alimentos. Para diversos estudiosos, uma única castanha é suficiente para
suprir as necessidades de selênio de um adulto.
– Oba, adoro castanha! – Gabriel comenta.
– O mais importante é evitar a monotonia da alimentação, consumindo só
farinha de mandioca e peixe, com baixíssima ingestão de frutas, verduras
e outros alimentos. Isso leva à desnutrição, ao subdesenvolvimento do
cérebro, o que prejudicará para sempre a pessoa, dificultando a capacidade
de aprendizagem escolar e a vida numa sociedade cada vez mais exigente e
complexa. Dois indicadores são claros: a estatura dos jovens que se alistam
no Exército e a dentição das crianças.
– Nossa, tio, é tanta coisa séria! Tou até cansada de me assustar! E por que a
gente não discute esses assuntos na escola? – Juju protesta.
– Absolutamente certa, todos esses temas deveriam estar presentes
na escola, na mesa familiar, nos órgãos públicos, na empresa. Se não
se conversar sobre isso na escola, não teremos um debate amplo e
democrático sobre todas essas questões. Este é o verdadeiro país em que
vivemos, onde muita gente é invisível aos olhos dos tomadores de decisão.
É o Brasil dos grotões, dos igarapés, das florestas, das comunidades
tradicionais, das pequenas cidades, das periferias, são muitos milhões de
pessoas que pouco aparecem, que raramente são ouvidas. Como é que
a gente pode falar em sustentabilidade, em cidadania, em conservação
da Amazônia se essas questões tão importantes não são tratadas com a
profundidade que merecem?

***

– Vejam aqui este assentamento rural, ocupado principalmente por migrantes


vindos de outras regiões do país, do Maranhão, do Piauí e também do Sul e
do Sudeste do Brasil.

Viagem à Amazônia | 127


João Meirelles

– Quero saber mais, tio – diz Gabriel.


– Nossa, tio, as pessoas daqui são diferentes! Olhos azuis, loiros, parecem
aqueles moradores de Santa Catarina, do Paraná! – Gabriel completa.
– É verdade, muitos originalmente vieram de lá, do Sul do Brasil, e isso não
faz muito tempo, uns vinte, trinta, quarenta anos, atraídos por projetos de
colonização, tanto do governo como de empresas privadas. A colonização foi
principalmente no Acre, em Rondônia e no norte de Mato Grosso. Durante a
ditadura militar, nas décadas de 70 e 80, vendia-se a imagem da Amazônia
como terra de muitas oportunidades, proclama-se que havia um plano para
isso dar certo. Havia até um slogan, uma frase que vendia essa ideia: Terra sem
homens para homens sem terra. Bem, não foi isso o que aconteceu. Muitas
terras oferecidas pelo governo tinham dono. Ou eram de grupos indígenas, ou
de povos e comunidades tradicionais e quilombolas, morando lá há séculos.
E, ainda que muitos migrantes fossem agricultores, o ambiente amazônico
oferecia novos desafios – derrubar a mata, conhecer bem o clima e as chuvas
amazônicas, acostumar-se com as pragas do ambiente, com outros tipos de
solos etc. O governo falhou em não prover suficiente orientação, assistência
técnica, dinheiro para a safra (chamado de crédito rural), transporte, enfim...
– Que fracasso, tio! Será que o brasileiro não aprende? Que coisa feia, invadir
terra onde tem gente. O próprio governo! – Juju protesta com vigor.
– Pois é, o que era para melhorar a vida das pessoas não deu muito certo.
Isso explica, em parte, o fato de a Amazônia ter sido transformada em um
imenso pasto. A maioria desses assentamentos, as colonizações, hoje são
pastos enormes, tanto de pequenos proprietários como de médio e grandes
produtores que foram comprando os direitos de posse dos assentados.
Em alguns casos, comprando a área mesmo e, em muitos, invadindo os
assentamentos, pois o governo nunca fiscalizou para valer.
– Como assim, invadir um assentamento?
– Esse assunto nunca foi resolvido. Nenhum governo quer enfrentar os
poderosos que estão ocupando irregularmente as terras que eram
destinadas exclusivamente para a agricultura familiar. Isso tem nome:
grilagem, roubo do patrimônio público. Em toda parte encontramos essa
situação – no Pará, no Maranhão, no Mato Grosso...
– Triste, muito triste – complementa Juju.
– A maioria dos migrantes ou continua na pobreza ou teve que se mudar para
as cidades, em busca de uma qualidade de vida melhor, de escola para seus
filhos, ônibus...

Viagem à Amazônia | 128


João Meirelles

– Olhem lá, olhem lá, o que é aquilo? Nossa, quanta fumaça! – Gabriel,
quase gritando.
– São os fornos de carvão. Essa é uma das atividades que os assentados e
pequenos agricultores fazem para sobreviver, fazer carvão do que sobra de
madeira e de galhos da área desmatada.
– E isso é normal, tio? – Gabriel continua espantado.
– Que nada, isso é atividade irregular, clandestina. Mas, com a pobreza na
porta, faz-se de tudo para sobreviver, vender carvão, caçar para vender
a carne no mercado, explorar a madeira de qualidade... A maior parte do
carvão usado para churrasco, em padarias, pizzarias aqui na região é ilegal.
Nem é difícil encontrar no comércio, nos mercadinhos, na beira das estradas,
enfim, todo mundo acha “normal” a mata virar cinza e, depois, churrasco!
– Acho que as pessoas nem pensam nisso. As conexões, não é, tio?
– Exatamente, Juju, nossos atos têm consequências diretas no meio ambiente.
A carne, o carvão, enfim, tudo o que consumimos produz um impacto social e
ambiental. A questão é a escala desse impacto, se é de alto ou baixo impacto.
Isso também é um indicador da pobreza de uma sociedade. Da pobreza no
sentido de amor à natureza, de compreensão do papel do ser humano neste
planeta, de respeito aos povos ancestrais, da valorização do patrimônio comum
de um povo, o bem comum. Enfim, é uma crise de identidade da civilização
humana, que consome mais do que o planeta suporta. É muito mais do que
uma crítica ao consumo desenfreado, é sobre o desrespeito às leis, é quebrar
o compromisso com as gerações futuras, com vocês, que ainda são crianças e
jovens. É a falta de sensibilidade para essas questões, tão urgentes e graves.
Transformar uma floresta em carvão ou pasto é dizer: eu não te respeito,
floresta. Eu não te quero! Eu prefiro que tu vires um bifinho e vou fazer um
churrasquinho com isso! Depois eu vou pensar para que tu me serves!
– Nossa, tio, não seja tão cruel – reclama Juju.
– E que jeito? Vamos ser bonzinhos com a destruição do teu futuro, Gabriel? Teu
futuro, Juju, teu futuro, Antônio. Ao ser bonzinho, não sobrará nada para vocês
e muito menos para os filhos e netos de vocês. Haverá só carvão, e depois vem
o pasto e acabou-se tudo. Bem, voltando ao carvão. Ele também é utilizado na
indústria. O carvão vegetal pode abastecer diversas indústrias que queimam
matéria vegetal, a chamada biomassa. Há os secadores de grãos, as olarias,
as fábricas de cimento e as gusarias. As gusarias transformam o minério
de ferro em ferro-gusa, reduzindo o minério, como se diz. Aqui, para cada
tonelada de minério, consomem-se quase três toneladas de carvão vegetal.

Viagem à Amazônia | 129


João Meirelles

Até recentemente, a floresta amazônica desta região de Marabá e do sul do


Maranhão era usada para fazer carvão em larga escala, porque as florestas
plantadas, principalmente de eucalipto, eram insuficientes.
– De matas nativas, nossa! – observa Gabriel.
– Justo, em 2005, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis (Ibama) calculou que mais de sessenta mil hectares de
florestas desapareciam todo ano para esse fim. Se a gente calcular o passivo
ambiental, ou seja, quanto essas gusarias consumiram de florestas nativas,
certamente chegaremos a uma área superior a meio milhão de hectares,
maior que países como Cabo Verde, na África. Mas o problema persiste com
as microcarvoarias ilegais como as que vimos agora.
– Tio, pra mim, isso é um câncer na floresta – intervém Juju.
– Excelente definição! Mas, se a sociedade não se mobilizar, se não cobrar
de onde vem o carvão, de onde vêm os diversos produtos que consome,
dificilmente haverá fiscalização suficiente para punir essas atividades.
– E estes meninos trabalhando aqui! O que é isto, meu Deus! – Gabriel
assusta-se.
– Vocês são testemunhas: vejam o estado de saúde destes jovens. Perguntem
a eles se têm carteira assinada, ou melhor, se algum dia tiveram carteira de
trabalho. Perguntem sobre os horários de trabalho, a temperatura na boca
do forno, o tanto de peso que carregam, a queimação do sol, a qualidade
das refeições, onde dormem, se têm água fresca e de qualidade, banheiros,
como são transportados... Não vejo um único equipamento de segurança...
Estes jovens vão morrer cedo! Meus sobrinhos, são as chamadas “condições
análogas à escravidão”, trabalho precário, trabalho injusto ou como queiram
chamar. São esquecidos pela sociedade, por nós! Nós somos a sociedade.
– Bem colocado, tio, nós somos a sociedade! – Antônio sente-se fortalecido,
olha para os lados e vê a imensidão dos plantios de palmeiras, ao longo da
rodovia PA-150, em Moju e Tailândia.
– Que palmeira é esta, tio? – Antônio observou.
– É o dendê, conhecido como palma. O óleo de palma é uma commodity e está
presente na maioria dos alimentos industrializados: margarinas, bolachas,
salgadinhos, bolos, sorvetes, além de cosméticos, como os sabonetes...
Recentemente, o governo brasileiro propôs incentivar o óleo de palma como
biocombustível, mas isso ainda não avançou. O biocombustível tanto pode
ser para substituir a gasolina, como o álcool de cana-de-açúcar, de que o
Brasil é o principal produtor mundial, como o biodiesel.

Viagem à Amazônia | 130


João Meirelles

– Biodiesel! O que é isso! – Antônio quer saber.


– É um combustível feito a partir do óleo das plantas ou, até mesmo, da
gordura bovina, do sebo do boi, um subproduto do frigorífico bovino. A
ideia é substituir parcialmente os combustíveis de origem fóssil – petróleo,
carvão e gás natural – por biocombustíveis. O curioso é que o inventor desse
combustível, Rudolf Diesel, no fim do século XIX, utilizou o óleo de algodão
e de milho para movimentar o motor que leva o seu nome, o motor a diesel.
A ideia é plantar árvores para produzir biocombustíveis, a partir de diversos
vegetais, a mamona, a soja, mas a palma é, de longe, o que apresenta a maior
produção. Esta região, devastada pela pecuária bovina de baixa produtividade,
poderá ser parcialmente recuperada com uma maior parte de áreas privadas
protegidas e outra parte com esta cultura permanente, a palma.
– Não tem risco de desmatar ainda mais? – Antônio pergunta.
– Como tudo, risco tem. Nas duas últimas décadas. a palma, sem desmatar,
mostrou-se um bom gerador de renda e emprego, tanto para a agricultura
familiar, como para empreendimentos maiores. Mas controlar árvore é
mais fácil que controlar boi. Se cada família plantar seis a oito hectares de
palma, terá renda suficiente para viver com qualidade, além de manter a
sua agricultura de subsistência, ou seja, plantar o que consome em casa
(mandioca para fazer farinha, milho, feijão, arroz etc.). E tem mais: espera-
se que essas árvores garantam boa renda por trinta anos! Bem, vamos então
seguir viagem. Tucuruí nos espera.

Diário da Juju: Estou mesmo horrorizada com a quantidade


de castanheiras mortas. Morreram com os braços para
cima, pedindo socorro. Aqui só tem pasto, pasto, pasto,
e pouco boi. Floresta então, nem pensar. Até que gostei
do plantio de palma, parece um jardim. E pelo que o tio
contou é uma atividade que emprega muita gente.

– Puxa, tio, é mesmo muito desmatamento, muito fogo e pouco boi. E toda esta
terra tem dono? – Gabriel pergunta.
– Vamos dizer que tem um ocupante, gente que se diz dono, ou seja, há
pessoas ocupando a terra, que é pública, de todos os brasileiros. Perante

Viagem à Amazônia | 131


João Meirelles

a justiça, se forem pequenos, para a agricultura familiar, para a sua


subsistência e uma pequena produção, são posseiros; se forem médios
e grandes, para não pagar o uso para a nação brasileira, são grileiros,
criminosos. Bem, esta é a história do Brasil: invadir terras de povos
originários, apossar-se de tudo. Há muito tempo, a lei diz que quem tem
a posse de uma área por mais de cinco anos pode solicitar o título de
propriedade, é o que se chama de “usucapião”; desde, é claro, que a área
não esteja em uma unidade de conservação, em terra indígena ou território
quilombola, ou em áreas públicas consideradas de preservação permanente,
como manguezais, várzeas, terras inundáveis ou matas ciliares, áreas de
grande declividade, como as serras abruptas...
– Então é a lei do mais forte! – Juju, com cara de brava, encara-me.
– Exato, quem manda é quem está armado, quem tem capangas, matadores,
milícias. Para dificultar, na Amazônia, menos de dez por cento das
propriedades estão com toda a papelada em ordem, com as obrigações
ambientais em dia, ou seja, a imensa maioria está irregular, fora da lei. Por
isso, a questão fundiária é tão importante, tem que ser resolvida antes de
tudo. Uma parte importante da questão do desmatamento, das queimadas
deve-se a isso, a esse caos. E esse caos interessa aos oportunistas, a
muita gente, grileiros e políticos que acobertam grileiros, bandidos, não se
esqueçam, bandidos. Gente que enriquece roubando madeira, ocupando
terras, desmatando, queimando, plantando capim e depois vendendo, e indo
para dentro da mata repetir o seu crime... Essa insegurança fundiária arrasta-
se há décadas, se não séculos, e não parece haver disposição real para
resolver isso, cada governo deixa para o próximo, e assim vamos, destruindo
tudo, invadindo tudo. É isso que provoca a violência no campo e torna a
Amazônia um dos piores lugares do planeta para os líderes comunitários, os
ambientalistas e os defensores da lei.
– Ei, tio, perigoso! – Gabriel comenta.
– Pois é, grilagem é caso de polícia. O trabalho de identificar os falsários de
documentos leva anos; enquanto isso, a invasão de terras prossegue, sem
freio. Agora temos o programa de Cadastro Ambiental Rural (CAR), talvez
isso avance, quem sabe? Na prática, há tecnologia, há recursos financeiros,
o que falta é vontade política. E, claro, pressão da sociedade para que os
políticos priorizem essa questão.

Viagem à Amazônia | 132


João Meirelles

– Tio, tá ficando claro que tudo na Amazônia é questão de vontade política... –


Juju conclui.
– Nada mais acertado! Estamos chegando a Tucuruí e amanhã voltaremos a
nossas conversas.

Viagem à Amazônia | 133


João Meirelles

Capítulo 9

De Tucuruí a Carajás

– Que lago lindo, que água azul! – maravilha-se Juju.


– Lindo... Mas e aquelas árvores secas lá? – Gabriel aponta. – Eu li que a Usina
Hidrelétrica de Tucuruí inundou muita área de floresta inutilmente, tanto é
que fez um imenso lago.
– Realmente, a construção foi mal planejada, apressada, custou quatro vezes
mais que o previsto. Foram inundados quase trezentos mil hectares, e, em boa
parte, a vegetação não foi removida. Era para tirar a madeira onde hoje é o
lago, mas houve só incompetência e corrupção. Esse fato resultou na liberação
de grande quantidade de dióxido de carbono (CO2) e de metano (CH4), o que
contribui para o aquecimento planetário. A navegação no lago ficou difícil por
um bom tempo, e, mesmo hoje, depois de quase quatro décadas, há perigo
de topar com galhos e troncos. A primeira turbina foi acionada em 84. Na
época, priorizou-se o fornecimento aos grandes consumidores de energia, as
grandes empresas de transformação da bauxita em alumínio, instaladas em
Barcarena, aqui no Pará e em São Luís, no Maranhão. Com isso, as eclusas – ou
seja, as comportas e os canais que permitem a transposição da barragem e a
navegação de quinhentos quilômetros entre Marabá e Barcarena e, a seguir,
Belém – foram feitas vinte e cinco anos depois. Mesmo assim, a hidrovia ainda
não funciona para valer. E, claro, as eclusas custaram o dobro do previsto.
– Nossa, mas por que mesmo Tucuruí foi construída? Não entendi essa questão
das grandes empresas? – Juju pergunta.
– Para transformar a bauxita em alumínio, gasta-se grande quantidade de
energia. Para cada quilo de alumínio primário, são necessários, praticamente,
quinze mil quilowatts por hora, a mesma quantidade consumida por cerca de
noventa residências em um mês.
– Tio, tá falando sério? Um quilo de alumínio, pra produzir, gasta esse tantão de
energia? – Antônio perguntou.

Viagem à Amazônia | 134


João Meirelles

– Em muitos casos, cerca de quarenta por cento dos custos do alumínio vêm
da energia. Em contraste, enquanto as fábricas e metrópoles, como Belém,
receberam essa energia, as comunidades rurais pobres, como Boa Vista
do Acará, defronte a Belém, viveram sem energia elétrica por mais de duas
décadas, mesmo com o linhão passando em cima de suas cabeças. No
caso de Tucuruí, cerca de vinte mil pessoas sofreram impactos diretos com
a instalação da usina, e três áreas indígenas foram afetadas. E diversas
demandas sociais não foram completamente resolvidas. O desafio é olhar
para os planos de grandes obras na Amazônia. Só em usinas hidrelétricas
para as próximas décadas, há propostas para centenas de usinas de
pequeno a grande porte, incluindo algumas nos países vizinhos, como a
Bolívia e o Peru, de onde vêm alguns rios amazônicos, como o rio Madeira
e seus formadores. O caso mais recente, e altamente escandaloso, é o
da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu. Novamente, é preciso
perguntar o que é mais importante: oferecer energia barata ao restante do
Brasil, custe o que custar, ou priorizar os direitos dos povos tradicionais do
lugar e as questões ambientais e sociais.
– Eita conversa difícil, tio! – Gabriel reclama.
– E tem outro jeito? A Amazônia é de vocês, jovens, a nossa geração cometeu
todos essas barbaridades, invadindo terras de povos tradicionais, rasgando
a floresta, varrendo os rios com uma pesca cada vez mais predatória. E eu
pergunto: o que aprendemos com tudo isso? Temos que discutir a fundo
cada questão, senão, cometeremos os mesmos erros. Aliás, se formos
indiferentes a tudo isso, jamais formaremos as nossas próprias opiniões,
vamos deixar que os outros decidam por nós!
– Está certo, tio, desculpa! – Gabriel completa.
– Gabriel, estamos aqui todos juntos neste barco, aliás, nesta Espaçonave
Terra (Spaceship Earth), como gostava de comentar o arquiteto norte-
americano Buckminster Fuller. Ele dizia que a Terra seria um veículo
mecânico que necessita de manutenção. Se não fizermos a manutenção, ou
seja, se não dermos atenção à vida, ele para de funcionar. Simples assim!
– Tio, qual seria o maior erro que vocês, digo, a geração de vocês acha que
cometeu? – Antônio faz essa superpergunta, que exige um tempo em silêncio.
– Nada fácil, mas, se for para escolher uma única resposta, o nosso maior erro
é delegar a dirigentes despreparados as decisões que cabem à sociedade
como um todo assumir! Ou seja, primeiro temos que respeitar os direitos das
pessoas do lugar, elas têm que ser ouvidas, e há direitos que são superiores

Viagem à Amazônia | 135


João Meirelles

aos de todos, são os direitos dos povos originários, os indígenas. Na


Amazônia, na maior parte das vezes, os moradores locais – os indígenas ou
aqueles que aqui estão há dezenas ou centenas de anos, os quilombolas e os
povos e comunidades tradicionais – raramente participam das decisões. Da
mesma forma, temos que ouvir as diferentes vozes dos grupos minoritários
– mulheres, jovens, crianças. Minoritários no sentido de acesso a poder, a ter
vez e voz. Claro que, se somarmos as mulheres, jovens e crianças, eles serão
a maioria. Devemos nos perguntar por que os homens, sozinhos ou formando
a imensa maioria, têm que tomar decisão por todos? Quem lhes delegou
esse poder?
– Então, o tio quer dizer que a história da Amazônia é um conjunto de decisões
tomadas por homens e a portas fechadas? – Antônio completa.
– Nada mais claro que a tua conclusão. A maior parte das decisões, em
geral, visa atender a interesses imediatistas e de um grupo seleto de
pessoas, da elite, como se diz. A elite detesta ouvir! Raras são as decisões
que efetivamente enfrentam o desmatamento, as queimadas, a pobreza,
que promovem a sustentabilidade... E mais: são decisões de homens de
maioria branca, que raramente consideram questões relativas a negros, aos
inúmeros grupos indígenas e outros grupos étnicos.
– Nossa, tio, quanta coisa pra pensar! A gente precisa conversar muito antes de
sair fazendo estrada, hidrelétrica, ponte... – conclui Antônio.
– Falando em ponte, este é o rio Tocantins e, logo depois, a cidade de Marabá!
– Nossa, que zum-zum de gente! – Juju observa os caminhões levando toras,
carretas transportando grandes pneus de caminhões fora da estrada,
trafegando em plena Marabá.
– Estão assustados? É que vocês estão há muitos dias visitando só áreas rurais.
A instalação da mineração na região tornou Marabá um centro regional
importante. Aquela cidade pacata até a década de 70, que só era acessível
pelo rio Tocantins e vivia da castanha-do-pará, da borracha e de outros
produtos extrativistas, agora é este reboliço todo. De um lado, é inegável
que novos empreendimentos oferecem muitas oportunidades, empregos,
especialmente em seu momento de construção; de outro, quando em
operação, o número de empregos reduz-se drasticamente, e, em geral, há
oportunidades apenas para os mais qualificados.
– Quer dizer que quem tem poucos anos de estudo tem menos chance? –
Antônio pergunta, preocupado.
– Exatamente. E, quando um grande empreendimento chega a uma cidade, já

Viagem à Amazônia | 136


João Meirelles

é tarde para treinar as pessoas do lugar, pois o passivo educacional, ou seja,


a defasagem das pessoas do lugar em relação aos forasteiros, em geral, é
grande. Isso vem desde a creche, a educação básica, o acesso à leitura, a
bens culturais... É preciso investir pesadamente em educação cinco, dez ou
mais anos para que uma comunidade como esta esteja preparada para o
impacto gerado pela forte migração. São mudanças definitivas e de grande
vulto na economia, na sociedade...
– Na cultura! O que acontece então? – preocupa-se Juju.
– Vem gente de fora, que fica com a maior parte dos bons empregos.
Geralmente, são profissionais com experiência no setor. Neste caso, é em
mineração, ali em engenharia, no agronegócio, e assim por diante. Então,
o resumo da obra – e faço aqui um trocadilho com a expressão idiomática
resumo da ópera – é que, para efetivamente se promover a inclusão social,
para sermos justos com quem tem poucas oportunidades, como é o caso
das comunidades locais, é preciso agir com antecedência e justiça social.
Assim, quando for instalada a primeira mina, fábrica ou hidrelétrica, haverá
dezenas de escolas, bibliotecas, centros culturais, arenas esportivas, postos
de saúde, enfim, ações públicas transformadoras, que garantam o espaço a
que as comunidades locais têm direito.
– Ah, então a gente poderia trazer os chefes dessas empresas aqui, pra verem
como é, bem antes de virem com ideias prontas. Pra pensarem junto com os
povos do lugar, certo? – Antônio sente-se alegre com o seu achado.
– Bravo, é isso. Simples, não é? E mais: custa pouco, evitam-se imensas
dores de cabeça, injustiças sociais irreparáveis, processos intermináveis
na justiça, que provavelmente seriam evitados. Aqueles que tomam
decisões que afetam a vida de milhares de pessoas precisam, sempre, com
humildade, conhecer a realidade local, inclusive para formar a sua própria
opinião e não se basear apenas em relatórios muito bonitos de consultores
internacionais. Afinal, estamos tratando da vida das pessoas, de mudanças
permanentes para milhares de famílias do lugar. É mais que sabido que
ondas migratórias são impossíveis de segurar. Mas, vamos em frente,
temos que chegar a Serra Pelada...

Viagem à Amazônia | 137


João Meirelles

Diário da Juju: Nossa primeira parada foi em Eldorado


dos Carajás, no meio da estrada mesmo. Um minuto de
silêncio emocionante. Aqui em 96, morreram dezenove
inocentes sem-terra devido aos excessos da polícia
militar. Um dos pontos humilhantes da história da
região. Iche, ainda andamos por mais de três horas desde
Marabá. Ufa! Chegamos a Serra Pelada. Muita poeira!

– Aqui é Serra Pelada – disse um menino que estava ali tomando banho.
Todos olharam para os lados e não viram garimpo algum.
– Ué, não é aqui que milhares de homens carregavam sacos de terra para
encontrar ouro? – Gabriel fala, decepcionado, lembrando-se da foto de
Paulo Santos.
– Verdade, Gabriel. Na década de 80, descobriu-se ouro em grande
quantidade, o que atraiu garimpeiros do Brasil todo. E havia muita gente
aqui até a área ser naturalmente inundada, pois a mina se tornou bastante
profunda. Imaginem vocês oitenta mil garimpeiros vieram para cá! É
como se um estádio inteiro de futebol, num pequeno espaço, estivesse
disputando cada centímetro para encontrar ouro! Foi a maior corrida
do ouro de que se tem notícia na história deste nosso planetinha. O
governo militar controlava a entrada e a saída do ouro. Os bancos oficiais
compravam uma boa parte. Mesmo assim, houve muito contrabando.
Atualmente, diferentes grupos e os antigos garimpeiros seguem buscando
maneiras de explorar o ouro e os outros metais que ainda há por aqui. Mas,
agora, isso terá que ser feito de forma industrial... Vamos seguir viagem, a
nossa próxima parada é a serra de Carajás.
– Ah, já sei, Carajás, onde tem muito ferro! – Antônio comenta.
– Sim, aqui na serra de Carajás, estão algumas das maiores jazidas de ferro
do globo. As minas distribuem-se por diversos municípios, com destaque
para as duas serras, a serra Norte, em Parauapebas, e a serra Sul, em
Canaã dos Carajás. O minério daqui tem alto teor de ferro, por isso é tão
valorizado. Carajás é o que os geólogos chamam de uma província mineral,
afinal, além do ferro, do ouro de Serra Pelada, há manganês, cobre e
muito mais. Na Amazônia, há outras províncias minerais, e esta é uma

Viagem à Amazônia | 138


João Meirelles

das principais razões da crescente atenção internacional para a região: há


minérios em grande volume, há energia hidrelétrica e cobiçam-se as terras
para a pecuária e a agricultura...
– E tirar minério da Amazônia é um bom negócio para o Brasil? – Antônio
está intrigado.
– Bem, se considerarmos que gera empregos e novos negócios, com certeza.
O que é exportado gera poucos impostos. No caso do ferro, a maior parte é
exportada na forma de minério bruto, ou seja, praticamente o que se extraiu
da mina. Porém, toda vez que se produz algo sem manufaturar, seja um cereal,
seja um minério, o que se agrega de valor é bem menor do que quando é
processado, na região ou em outra parte do país. E a Amazônia tornou-se em
um grande vendedor de produtos brutos, como a soja, o minério de ferro, o
pescado e alguns produtos semiprocessados, como a alumina, a partir da
bauxita, madeira em pranchas ou carne bovina. O minério de ferro pode ser
transformado em ferro-gusa como um primeiro processo, ou então, mais
industrializado, na forma de aço e nas diferentes ligas de aço, transforma-se
em produtos acabados, como chapas para automóveis, navios, tubulações,
cabos etc. Aí, sim, incorpora-se o máximo de valor na própria região. Esta mina
da Vale que vocês visitam é a maior mina a céu aberto do mundo.
– Nossa, tio, é muito grande. Olha o tamanho destes caminhões! Parece que a
gente é de brinquedo perto deles! – Antônio fica muito animado.
– Em função das diversas expansões, a região atrai muitos migrantes e, também,
os oportunistas. E quando nos deparamos com um tecido social frágil...
– Tio, explica direito essa história de tecido social. É a segunda vez que tu falas
nisso! – Juju cobra, com carinho.
– Bom, é uma maneira de dizer, uma expressão muito usada na academia,
ou seja, no meio universitário. Refere-se ao conjunto de atores sociais
organizados – entidades de base, associações locais, clubes, sindicatos,
cooperativas, empresas, ONGs, enfim, quem representa, de diferentes
maneiras, a sociedade civil. Fortes ondas migratórias, especialmente em
regiões isoladas, têm potencial de gerar graves problemas sociais, seja
pela precariedade da infraestrutura pública, seja pela fragilidade de suas
organizações sociais. De agora em diante, preparem-se, vamos enfrentar
uma longa estrada até Altamira.

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João Meirelles

Capítulo 10

De Parauapebas a Altamira pela Transamazônica

(Chegada a Altamira. Exaustos.)

Diário da Juju: Não sei de quem foi esta ideia maluca de


ir de volta pra Marabá e depois pegar este estradão até
Altamira. Dizem que esta parte da Transamazônica era
rally o tempo inteiro: na seca, a poeira, os buracos, as
pontes estreitas; na chuva, a falta de apoio, os atoleiros.
Bem, pra nós, foi no asfalto, melhor assim, ufa! De qualquer
jeito, foram dois dias de viagem porque paramos pra falar
com muita gente no caminho. Aí, sim, foi aquele poeirão!

– Nossa, tio, nesta viagem pra cá, eu só vi pasto, pasto, pasto. Cadê a floresta?
Isto aqui é o que chamam de progresso? – Juju fica preocupada.
– E pasto sujo, pouco boi, diga-se de passagem! E pobreza, muita pobreza! –
Antônio complementa.
– Muito bem, Antônio, agora compreendes que tirar a mata para colocar boi não
gera riqueza, é esta destruição total. Somos a sociedade da destruição, do fogo,
do desperdício. Imaginem que os povos tradicionais conseguem tirar mais quilos
de carne por hectare de floresta por meio da caça que esta pecuária chinfrim,
de baixa produtividade, que vemos aqui. Isto aqui é especulação de terra, estão
só preparando para vender e atacar a floresta mais para diante. Em termos
de aproveitamento econômico, pouca coisa deu certo. A Transamazônica é a
estrada da ilusão. Mais de meio século e, que vergonha, isto!

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João Meirelles

– Mas, tio, até agora não entendi: por que resolveram construir a
Transamazônica? – Gabriel coça a cabeça.
– Mais uma decisão tomada a portas fechadas durante a ditadura. Vocês
lembram o que falamos antes, do governo militar distribuir terras aqui
na Transamazônica: Terra sem homens para homens sem terra... E quem
veio para cá? Tanto famílias de nordestinos pobres – afinal, o Nordeste
passava por grave seca –, como colonos da região Sul do Brasil, de áreas
de minifúndios, ou seja, onde havia, o que se justificava, pouca terra
para muita gente. Só que, como já falamos, a instalação dos migrantes
não foi acompanhada do necessário apoio em manutenção de estradas,
infraestrutura, educação, assistência técnica, crédito, sementes e mudas...
Vieram sem saber o que significava a floresta, os povos tradicionais, a
biodiversidade, os serviços ambientais! Foram abandonados pelos militares
desde o primeiro momento!
– Que absurdo! – protesta Juju.
– E a Transamazônica não foi a única a rasgar a Amazônia sem qualquer
planejamento e respeito a quem já morava aqui há séculos. Um pouco antes,
em 65, iniciou-se a BR-364, que vai de Cuiabá a Porto Velho, sobre o traçado
da linha telegráfica construída pelo marechal Cândido Rondon. Em 69, foi a
vez de asfaltar a rodovia Belém–Brasília, construída no governo democrático
de Juscelino Kubitschek. Na década de 70, já no regime militar, abriu-se a
Cuiabá–Santarém (BR-163) e estendeu-se a Cuiabá–Porto Velho até Rio
Branco, no Acre.
– Insano, cruel – Antônio não acredita em tamanha incompetência.
– Muita estrada, hein! Presente pra invasão, não é, tio? – Juju conclui.
– Isso mesmo, desde a década de 60, o governo federal criou centenas
de assentamentos. Eles já nasceram abandonados, nem o governo sabe
direito a real situação deles. São mais de três mil assentamentos, uma área
de trinta e seis milhões de hectares, mais ou menos o tamanho de Santa
Catarina e do Rio Grande do Sul juntos. Ao mesmo tempo, estimulou grandes
fazendas de pecuária. Muitas dessas fazendas de boi promoveram imensos
desmatamentos com incentivos fiscais, ou seja, o dinheiro que deveria
ser usado para educação, saúde, saneamento foi dado de presente para
grandes empreendimentos que nem precisavam de dinheiro. Dinheiro que
foi transformado em floresta queimada e pasto para bois. Dinheiro público
beneficiando fins privados.
– E quem se beneficiou com isso, tio? – perguntou Gabriel.

Viagem à Amazônia | 142


João Meirelles

– Pois é, sempre a mesma coisa. Uns poucos, com bom acesso ao governo e
com impostos a pagar, aproveitaram. Pior ainda, esses projetos de pecuária
abriram caminho para centenas e até milhares de madeireiros, grileiros e
outros fazendeiros. Aquele pecuarista tradicional do Sudeste e do Centro-
Oeste veio para a Amazônia para “abrir fazenda”, porque encontrou estradas
abertas, terras baratas, apoio do governo em crédito barato. Vejam que esta
é a mesma história que destruiu as matas do Espírito Santo, do Sul da Bahia,
do Mato Grosso do Sul...
– Então esta é a história do Brasil? Que vergonha! – Gabriel, indignado.
– E muitos fazendeiros quase nem investiram, entraram na área, tiraram
a madeira de valor e venderam essa madeira. Assim, financiaram o
desmatamento, as queimadas e o plantio de pastos. Praticamente tudo pode
ser considerado como desmatamento ilegal. Para piorar, as condições dos
trabalhadores que faziam o desmatamento e as queimadas eram as piores
possíveis. Eram pessoas que ingenuamente caíram na conversa de “gatos”,
como se chamam esses empreiteiros. O filme Pureza, em que atua a brava
atriz paraense Dira Paes, conta bem essa história. É o que chamamos hoje de
trabalho análogo à escravidão!
– Vergonha, vergonha, vergonha! – Juju faz coro com Gabriel.
– Para piorar, muitos desses fazendeiros ocuparam terras públicas, ou seja,
invadiram a terra. É o que vemos em muitas partes – grilagem! Patrimônio
que é nosso, da nação brasileira, a terra, a madeira, os rios... Enfim,
aceitamos que roubem o nosso futuro! E, à luz do dia, na nossa cara!
– Isso mesmo tio: roubaram o nosso futuro! – Antônio concorda.
– Nos últimos cinquenta anos, os bancos oficiais, como o Banco da Amazônia,
o Banco do Brasil e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES), financiaram mais de dois bilhões de reais para a pecuária
na Amazônia. E, notem bem, não estamos mais no período da ditadura há
mais de três décadas. Se consultarmos como se usa o recurso federal para
a Amazônia, veremos que a pecuária bovina, de longe, está em primeiro
lugar. Mais de oitenta por cento do desmatamento está associado à pecuária
bovina. O boi é para dizer “aqui tem dono”, é o boi como poupança, é o boi
para render dinheiro. É o boi o motor da destruição do Brasil.
– Então o governo do Brasil financia a destruição da Amazônia! – Antônio não
precisa muito para confirmar.
– Hoje, além de financiar o pasto, financia os frigoríficos. O BNDES é sócio
de frigoríficos na Amazônia, com investimentos de algumas centenas de

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João Meirelles

milhões de reais. Dinheiro do povo brasileiro utilizado para transformar a


Amazônia em bife, para benefício de poucos.
– Tio, acho que somos os reis do desperdício! – Gabriel apimenta a conversa.
– Exatamente, e um dos principais desperdícios está no solo lavado pela chuva
nestes setenta milhões de hectares desmatados. Nesta região, onde a maior
parte do solo é pobre, é preciso cuidado. Em países de zonas temperadas,
como na parte sul da Argentina ou na Europa, mais de oitenta por cento dos
nutrientes estão no solo. Nas florestas tropicais, é o inverso, o solo contém,
em média, menos de dez por cento dos nutrientes. Se a floresta desaparece,
em boa parte desaparece o sistema de reciclagem de nutrientes. Vocês
se lembram? Já falamos disso, é algo fundamental. Como o solo é pobre,
os vegetais são obrigados a inventar sistemas altamente eficientes para a
captura rápida de nutrientes. Lançam folhas, galhos e raízes para cobrir a
maior superfície possível. Isso explica as dimensões gigantescas das árvores
amazônicas. Boa parte do potássio, do magnésio e do fósforo necessários às
plantas em crescimento é recuperada das águas que caem sobre as folhas,
das próprias folhas e da matéria orgânica em decomposição.
– Isso é genial! A natureza é muito sabida. Realmente não podemos destruir
estas árvores da sabedoria! – Gabriel encanta-se com sua própria proposta.
– Essa é a razão pela qual o solo da floresta tropical sofre mais com a retirada
da vegetação que nas zonas temperadas ou subtropicais. Outra questão
é a maior quantidade de chuvas sobre uma mesma área. Quando ocorre
o desmatamento e sucessivas queimadas, o solo fica exposto às fortes
chuvas e a altas temperaturas. O pisoteio do gado e a passagem de tratores
endurecem ainda mais o solo, diminuindo a sua capacidade de absorver
a água. A água corre sobre o solo, aumentando a erosão. A elevação da
temperatura pela exposição direta do solo ao sol destrói a camada de
matéria orgânica, o húmus, que também auxiliava na retenção da água.
A temperatura mais elevada dos solos devido às pastagens acelera a
decomposição do que ainda resta de folhas, galhos e troncos.
– Complicado, hein, tio! Tem que ficar atento a tudo! – Gabriel pensa.
– O uso do fogo por anos seguidos, prática comum no Brasil, agrava ainda
mais a situação. Pouca gente pensa nos danos que o fogo provoca. Com o
desmatamento, há mais vento no nível do chão e a luminosidade é maior. Os
raios ultravioleta eliminam o nitrogênio, fundamental para um solo saudável.
Acelera-se a liberação do carbono, na forma de dióxido de carbono (CO2)
para a atmosfera. Sem o CO2 e a camada de matéria orgânica, o ferro e o

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alumínio manifestam-se, inibindo o crescimento de plantas de interesse para


o homem, baixando a fertilidade ainda mais. Na década de 70, o cientista
Norman Myers calculou que, naturalmente, uma área de floresta tropical
perdia cerca de 0,01 t/hectare/ano de solo. A retirada da floresta poderá
significar perdas de 40 a 200 t/hectare/ano! Em poucos anos, a pastagem
que era viçosa e suportava boa quantidade de animais está cheia de plantas
que concorrem com o capim. É o que se chama de pasto sujo, os fazendeiros
chamam de mato, inço, ervas daninhas. E, menos pasto, menor a capacidade
de suporte de animais por hectare. Em alguns anos, o pasto vira capoeira e
depois capoeirão, praticamente sem pastagens, e o pecuarista abandona
a área. Muitos vendem e seguem para as áreas de fronteira agrícola, onde
há terra barata para ser desmatada, para abrir novos sítios e fazendas. É
exatamente o que está acontecendo aqui no Xingu. Depois de desmatar
mais de três quartos do Nordeste Paraense e da Amazônia Maranhense, os
fazendeiros seguem em direção ao coração da Amazônia.
– Ah, agora entendi, os fazendeiros vendem a fazenda velha e vão pro meio do
mato desmatar mais. Espertinhos, hein! – conclui Gabriel.
– Sim! E veja que o fazendeiro venderá com grande lucro a sua área. Como
agora ela se encontra sem a floresta e destocada (sem os tocos), porque o
fogo consumiu os troncos e as raízes durante anos, venderá até mesmo para
a agricultura mecanizada, especialmente para o plantio de soja... Vejam só,
estamos chegando a Altamira e precisamos ver onde vamos ficar.
– Nossa, tio, aqui está mesmo fervendo de gente, tá parecendo Marabá! Este
tal de Belo Monte mudou então esta cidade? – Antônio pergunta.
– Vocês viram como está Marabá, Parauapebas e agora Altamira. Altamira era
uma pequena vila de beira de rio, criada no fim do século XIX. Cidade mesmo,
só com a Transamazônica, na década de 70, assim como aconteceu com
aquelas que surgiram mesmo com a estrada, como Medicilândia e Rurópolis
mais adiante, em direção ao rio Tapajós. Até a chegada da estrada, o acesso
aqui era só pelo rio Xingu, o que não era fácil, ou por avião. Aqui estamos
na Grande Curva, e a Usina Hidrelétrica de Belo Monte exigiu obras que
mudaram para sempre o Xingu. Além da barragem para a instalação da usina,
o que acontece em toda hidrelétrica, aqui se cavou um canal que movimentou
mais terra e pedra que o canal do Panamá. É por esse canal que o rio corre
para alimentar as turbinas da hidrelétrica. O antigo leito do rio, com mais de
cem quilômetros, transformou-se em um pequeno riacho. Mudanças radicais
para a fauna aquática, para todos os ambientes naturais no entorno. Na época
da seca, é muito triste ver a água escorrendo no meio das pedras.

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– E quem morava aqui antes? Eu ouvi que os índios foram contra – Antônio pergunta.
– Claro, imaginem que, um dia, mudam o rio que passa em frente de sua casa,
aparecem milhares de pessoas caçando, roubando madeira, invadindo a sua
terra. É para achar bom?
– Ah, tô lembrando aquela índia, como é mesmo o nome dela, com o facão na
mão. Ela é minha heroína – completa Juju.
– É a Tuíra Kayapó, ela é muito corajosa! Um símbolo da resistência da mulher
na Amazônia. Estão defendendo seus filhos, sua terra, sua gente, sua
história, sua vida.
– A Tuíra mereceria mesmo um prêmio! – empolga-se Antônio.
– Ela e muitas lideranças indígenas, de ribeirinhos e tanta gente que quer
primeiro discutir, não aceitam que decidam sozinhos o destino de suas
vidas. Voltemos ao impacto das hidrelétricas. Elas são importantes se
considerarmos que substituem o uso de combustíveis fósseis – petróleo,
gás natural e carvão – pela produção de energia elétrica, evitando a enorme
emissão de dióxido de carbono (CO2) para a atmosfera. No entanto, as
hidrelétricas produzem quantidades astronômicas de metano (CH4), um
gás muito mais prejudicial para o aquecimento global, vinte e cinco vezes
mais danoso que o CO2. No caso de Belo Monte, temos que incluir na conta
o tanto de desmatamento que a usina estimulou. Não estou falando do
impacto da construção da obra e, sim, do acesso agora facilitado a diversas
áreas de terra antes dificilmente alcançáveis; com isso, retiram mais
madeira, desmatam mais...
– Tio, num caso assim, a gente sabe que vai dar em tragédia, não teria algum
jeito de evitar? Sei lá, controlar a migração, o desmatamento? – Gabriel
pergunta, inquieto.
– A história do Brasil tem mostrado que os governos e as empresas envolvidas
raramente estão preparados para enfrentar os impactos das grandes obras.
Em quase todos os casos, mesmo quando houve estudos e planos, eles
foram elaborados de cima para baixo, a portas fechadas, sem consultar
para valer a população local, ou seja, sem a participação da parte mais
diretamente afetada. É difícil apontar empreendimentos de grande
porte na Amazônia que não tenham gerado alto impacto socioambiental
– especulação de terra, expulsão de indígenas e ribeirinhos de seus
territórios, coleta ilegal de madeira, desmatamento, pesca e caça excessivas,
concentração de renda, violência contra a mulher, jovens e a criança...
– Eu não entendo, tio, por que tem que ser assim? – é a vez de Antônio coçar a cabeça.

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– Pois é, eu me pergunto isso mesmo o tempo todo! Não quero aceitar uma
explicação fácil. Mas, no frigir dos ovos, a mentalidade dominante é de
uma pequena elite econômica e política, que toma a maioria das decisões,
controla boa parte dos organismos públicos e privados, que entende
progresso como sinônimo de desmatamento, migração em grande escala,
boi no pasto. A floresta, o rio, os povos tradicionais são vistos como atraso,
são coisas que atrapalham. Mas, como vocês estão vendo, a Amazônia é
frágil, seus povos tradicionais estão acuados, seus rios estão poluídos, a
biodiversidade corre sério risco, as mudanças climáticas vieram para piorar
ainda mais a situação, a região dificilmente resistirá se não agirmos com
energia e rapidamente.
– Nossa, tio, acho que não aguenta mesmo. E pior, o abacaxi vai ficar pra nós,
os jovens, pra nossa geração resolver! – Juju suspira fundo, com raiva.
– Teremos que mudar um pouco os nossos planos. Inicialmente, seguiríamos
de carro até Itaituba, mas isso atrasará muito nossa viagem. Não poderemos
visitar Anapu...
– Ah, Anapu, tio, mas não foi aqui que mataram aquela missionária, a irmã
Dorothy? – recorda-se a antenada Juju.
– Certíssimo! Em 2005, essa brava religiosa católica, que dedicou a sua vida
aos mais pobres, foi mais uma vítima da intolerância, da disputa por terras.
Foi morta por pistoleiros contratados por grileiros, que buscavam ocupar
a terra pública cedida pelo governo para os pequenos agricultores. Pela
primeira vez na Amazônia, o julgamento dos criminosos ocorreu com certa
rapidez. Bem, nem tanto, apesar de começarem um ano depois do crime,
foram cinco anos, imaginem, cinco anos, para o fazendeiro ser condenado.
E, mesmo assim, o mandante do crime estava solto e só foi preso em
2017. Vejam só que absurdo: doze anos depois desse crime bárbaro, tanto
os mandantes quanto os assassinos foram condenados. Na maioria dos
crimes, no entanto, espera-se por anos e mesmo décadas, e, em diversos
casos, mesmo com tantas evidências, os criminosos se safam – as provas
se perdem, as pessoas fogem... Há processos que demoraram tanto
que as pessoas envolvidas já haviam morrido. O caso Dorothy só andou
rapidamente porque a imprensa do mundo todo noticiou o fato e porque
ela era estrangeira, norte-americana. Agora faremos uma breve viagem a
Medicilândia e depois pegaremos uma carona de avião até o Parque Indígena
do Xingu, no Mato Grosso. Esse imenso parque fica mais para o sul, nas
cabeceiras dos formadores do grande rio Xingu, no alto rio Xingu como se
costuma dizer, no Mato Grosso. É longe, mas vale a pena.

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Diário da Juju: Mais Transamazônica! Vamos ganhar


um prêmio por ver tanta estrada com boi, boi, boi. De
Altamira, ainda fomos a Medicilândia. O legal foi conhecer
a fábrica de chocolate. Aqui está um dos melhores cacaus
do mundo. Que bom, afinal, o cacau é mesmo da Amazônia,
das florestas tropicais que chegam até o México! Além
do cacau, dá pra fazer um chocolate do cupuaçu, planta
prima do cacau, o que se chama “cupulate”. O cupulate
é muito bom. Ainda bem que voltamos pra Altamira em
vez de seguir pra Rurópolis e Itaituba por terra. Ufa!

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Capítulo 11

Visita ao Parque Indígena do Xingu

Depois de muitas horas de voo, pousamos no posto Diauarum, no Parque


Indígena do Xingu. Mostrei as nossas autorizações na entrada.
– Uau, este é meu grande sonho, tio! – Gabriel emociona-se.
– Vocês lembram, antes de viajar, aquela visita que fizemos navegando pelo
website do Instituto Socioambiental (ISA)? Vocês têm que imaginar que
esta região, até os anos 50, tinha pouco contato com o restante do país. Na
ditadura Vargas, a iniciativa da Fundação Brasil Central, conhecida como a
“Marcha para o Oeste”, de que participaram os irmãos Orlando e Cláudio
Villas Boas, ligou esta região ao Sudeste e ao Centro-Oeste do Brasil.
Orlando Villas Boas possui diversas obras, e quero muito que vocês as leiam.
Ele viveu mais de quarenta anos entre os índios.
– Ah, já estudei sobre os Villas Boas, gentes boas! – Juju faz seu trocadilho.
– Eu gosto muito desta frase dele: “Nunca vimos dois índios discutirem, nem
um casal se desentender. Entre os índios, o velho é o dono da história. O
homem é o dono da aldeia. E a criança é a dona do mundo”. A importância
deste parque está tanto em proteger territórios de diferentes grupos de
povos originários, como em abrigar grupos de outros lugares. Entre esses
grupos, está o dos Panará, à beira da extinção devido ao catastrófico contato
com garimpeiros, fazendeiros e a frente de ocupação da rodovia BR-163,
a rodovia Cuiabá–Santarém, à altura do rio Peixoto de Azevedo, a cerca
de duzentos e cinquenta quilômetros do Parque do Xingu. A Constituição
Federal do Brasil de 1988 ampliou a proteção legal aos povos indígenas.
A terra indígena é de posse permanente dos índios que a ocupam. A
propriedade é do governo federal. É um bem público em regime especial de
uso. Não podem ser vendidas nem utilizadas para outros fins, a não ser para
a própria vida dos índios.
– E na Amazônia, tem muita terra indígena? – Gabriel pergunta.

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– Aparentemente, sim, mas os índios continuam desprotegidos. A Amazônia


Legal tem cerca de um quinto de sua área com terras indígenas. Mais de
noventa por cento das terras indígenas do Brasil estão na Amazônia. Se
considerarmos o território brasileiro, menos de treze por cento são ocupados
com terras indígenas.
– Nossa, então é pouco, porque os índios eram donos de tudo! – Antônio, o
menos interessado em questões indígenas, conclui.
– Por isso disse “aparentemente, sim”. Há quem pense de maneira diferente,
reclamam que é muita terra para pouco índio. No entanto, não consideram que
diversos grupos foram quase dizimados e buscam se recuperar, necessitando
de um território que faça sentido para a sua cultura, para conseguirem pescar
e caçar do modo tradicional, coletar frutos e castanhas à sua maneira e
ficar distantes o suficiente dos vizinhos não índios. A maior parte das terras
indígenas está desprotegida. Cerca de metade sofre algum tipo significativo
de ameaça – invasão de garimpeiros, de madeireiros ou de quem pretende
apossar-se destas terras. Aqui no Parque do Xingu, criado em 1971, com dois
milhões e oitocentos mil hectares, as coisas estão razoavelmente bem. Vivem
catorze etnias diferentes em trinta e nove comunidades. Ao todo, são cerca de
quatro mil habitantes. O problema é o entorno.
– Como assim, tio? – Juju quer saber.
– Quando demarcaram o Parque, ficou desprotegida a maioria das nascentes
dos rios. Com o avanço da pecuária e da soja, essas nascentes estão sendo
destruídas pelo pisoteio do gado, pela erosão do solo, e poluídas pelos
produtos químicos usados na lavoura da soja e nas demais plantações.
Isso sem falar nas fezes humanas e do gado. Muitos rios diminuíram
de volume, especialmente no período das secas, sua piscosidade caiu
e seu entupimento por conta da erosão do solo é evidente. O Instituto
Socioambiental lançou uma campanha – Y Ikatu Xingu. Dá para ver no mapa
que está no site do ISA a gravidade da situação.
– Nossa, é mesmo, e dá pra fazer alguma coisa? – Gabriel quer saber.
– Com certeza. Diferentes organizações, como o Instituto Centro de Vida (ICV),
o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e o ISA, em parceria
com alguns poucos fazendeiros e organizações públicas, atuam em diversas
frentes, desde o apoio à demarcação das reservas legais e das áreas de
proteção permanente nas fazendas e à recuperação de áreas degradadas,
especialmente de matas ciliares, até a orientação aos proprietários rurais, seja
no uso do fogo, seja em boas práticas de agricultura, manejo dos solos etc.

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– Com certeza, parece um bom caminho – concorda Gabriel.


– Outro desafio é fortalecer as organizações indígenas. Em 1994, as diferentes
etnias juntaram-se e criaram a Associação Terra Indígena Xingu (Atix). Entre
os seus objetivos, estão a proteção das fronteiras do Parque, a melhoria da
educação indígena e a geração de renda para as aldeias.
– E como os índios conseguem ganhar dinheiro? – Antônio está curioso.
– Não é fácil, porque muitos grupos indígenas têm noções diferentes do
trabalho, dos meios de remunerar o trabalho e de comercializar produtos
e serviços. Além disso, a intenção não é estimular mudanças em seu dia a
dia simplesmente para satisfazer as demandas de mercado. Assim, entre
seus produtos, estão o mel de abelhas europeias (Apis) e o artesanato.
O mel também é um complemento alimentar, e as abelhas aumentam a
polinização das fruteiras. “O mel do Xingu”, como é conhecido, é certificado
pelo Instituto Biodinâmico (IBD) e conquistou mercado em redes de
supermercados em São Paulo.
– Os indígenas, quilombolas e ribeirinhos também tomaram a iniciativa de
criar as abelhas genuínas do Brasil, também chamadas abelhas sem ferrão.
As abelhas estão entre os mais importantes polinizadores do planeta. Na
Amazônia, a maior parte dos produtos regionais, como o cacau, a castanha-
do-pará, o açaí e tantos outros, dependem de diferentes espécies de abelhas
sem ferrão para a sua polinização. Ao contrário do que se pensava, um grande
número de espécies de abelhas sem ferrão, o que os cientistas chamam de
“melíponas”, visitam os açaizeiros, as palmeiras que produzem o açaí.
– Incrível, elas não picam! – Juju fica feliz em estar no meio do enxame de abelhas.
– Tá... e, exatamente, o que isso significa? – Gabriel pergunta.
– Vejam bem, nas áreas onde a produção de açaí é intensa, como nas áreas
que visitamos perto de Belém, é importante criar condições favoráveis, tanto
para as abelhas, polinizadores do açaizeiro, como para outros polinizadores
– outros insetos, como besouros e borboletas, além de aves, morcegos etc.
Vocês observaram como os indígenas preservam as abelhas e os ambientes
naturais onde elas vivem! E o jeito de reforçar essa estratégia é criando
abelhas sem ferrão, em pequenas caixas de madeira. A iniciativa é altamente
positiva, pois contribui para a conservação da biodiversidade e, ao mesmo
tempo, gera renda, além de oferecer um alimento, o mel, de ótima qualidade
em casa. Isso é o que se chama de segurança alimentar, com impacto
positivo na qualidade de vida das populações locais.
– Tio, então, por que não se vê abelha sem ferrão em todo lugar? – Juju

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interessa-se pelo assunto.


– Excelente pergunta! Criar abelhas sem ferrão deveria ser igual criar galinha ou
porco ao redor de casa. Diferentes organizações têm-se dedicado a orientar
a expansão dessa atividade, como o Instituto Peabiru e o Projeto Saúde e
Alegria, além da Embrapa e de universidades. Já está provado que é simples
a criação dessas abelhas e que se pode vender legalmente o produto.
– Estou fascinada! – Juju pula de alegria.
– É um assunto lindo, uma explosão de vida, mesmo! Somente na Amazônia, há
mais de oitenta espécies de abelhas sem ferrão, além de algumas dezenas
em processo de classificação, ou seja, ainda são novas para a ciência. Vejam
que interessante – as abelhas manejadas aqui são de espécies diferentes
daquelas do litoral do Pará, de Curuçá ou de Almeirim, no Baixo Amazonas!
– Agora gostei! Eu ia dizer que esta palavra, “manejadas”, é muito legal, agora,
então! – Juju comenta.
– É um pastoreio, a gente oferece uma boa casinha para elas e, de quando em
quando, é possível retirar um pouco de mel para a gente. E isso é feito sem
pressa, sem prejudicar a colmeia, no tempo dela. Ah, Juju, e tem mais, as
abelhas polinizam diversas árvores do entorno. Assim, as fruteiras produzem
bem mais: o taperebazeiro, o urucuzeiro, as laranjeiras e o açaizeiro, uma
festa de frutas... Está aqui outro serviço ambiental! Lembram-se do que
falamos antes sobre a Amazônia doando umidade, de graça para outras
partes do Brasil? Bem, polinização também é um serviço e, deste jeito aqui,
gratuito! Vejam que beleza este pomar, carregado de frutas. Esta família aqui,
com tanta abelha, vai ter bem mais fruta do que se não tivesse abelha. O que
então vocês acham que isso significa?
– Então, a gente pode dizer que criar abelhas sem ferrão ajuda a combater a
fome? – Antônio entra na conversa.
– Como certeza, mais abelhas, mais flores polinizadas, mais frutos,
abundância de comida significa segurança alimentar. E, considerando-
se que a abelha sem ferrão está adaptada aos ecossistemas naturais há
milhões de anos, a sua maior presença oferece condições para maior
sucesso do serviço de polinização...
– Que lindo! – Juju prossegue em seu maravilhamento...
– Estamos falando de polinizar a floresta, os diversos ambientes naturais,
o pomar, a horta e diversas produções comerciais. Tem mais: as abelhas
também ajudam a combater as mudanças climáticas...

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– Ah, isso é demais, tio! Deste tamanhinho! Parece aquela história do beija-flor
salvando a floresta do incêndio – Gabriel intervém.
– E como uma abelhinha vai fazer isso? – Antônio reforça a pergunta.
– Muito simples, na medida em que a fumaça das queimadas atrapalha a
criação de abelhas e que o desmatamento elimina os lugares onde as
abelhas colhem pólen, os agricultores percebem que vale a pena evitar o
fogo e o desmatamento.
– Gabriel, que história é esta do beija-flor? Conta pra gente, vai! – solicita Juju.
– O beija-flor vê o incêndio e começa a voar, desesperado, levando água do
rio mais próximo pra floresta em chamas. O macaco pergunta, morrendo de
preguiça: Ei, maninho, pra que tu tás fazendo isto, beija-flor? Deixa disto! E o
beija-flor, sorridente, responde: Estou fazendo a minha parte! O macaco ficou
quieto, os olhos esbugalhados e resolveu colaborar. E, num mutirão muito
louco, foi juntando bicho e mais bicho, até que o fogo foi apagado! – falou
Gabriel, todo pimposo.
– Legal, Gabriel, as abelhas estão fazendo a parte delas! E nós, hein? –
conclui Juju.
– Pena que nossa visita foi bem curta, mas temos que aproveitar esta equipe
de reportagem, que veio de Altamira para cá e que também segue para
Itaituba. Estão a produzir uma série sobre as novas usinas hidrelétricas da
Amazônia. E em Itaituba as corredeiras de São Luís do Tapajós correm o risco
de desaparecer e de dar lugar a outra grande usina hidrelétrica.

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Capítulo 12

De Itaituba a Santarém, descendo o rio Tapajós


(Em Itaituba, Pará.)

– Que cidade tranquila... – Antônio maravilha-se com a beleza do rio Tapajós.


– É. Não é bem assim. Hoje é domingo. Amanhã vocês verão. Itaituba é
uma das capitais do ouro na região. Na década de 80, foram abertos mais
de quatrocentos garimpos, que chegaram a produzir mais de quarenta
toneladas de ouro por ano, atraindo mais de cem mil pessoas. O aeroporto
era tão movimentado que perdia apenas para o de São Paulo em número de
pousos e decolagens. O garimpeiro nada respeita, revolve a terra, interrompe
os rios com represas, destrói a cabeceira dos rios, lança grandes quantidades
de óleo diesel, mercúrio e detergente na água, caça e pesca até a exaustão.
Se houver comunidades tradicionais e indígenas, ele os explora. Atrai as
índias para a prostituição, inclusive aliciando menores, e é vetor de doenças
para as populações indígenas. Os garimpeiros não têm limites.
– Onde há garimpo, há violência, corre muito dinheiro, e isso também atrai
o tráfico de drogas. Muitos andam armados, e a bebida alcoólica levanta
os ânimos quando estão no bar ou vão à cidade. Criam uma economia
paralela ao usar o metal como moeda e assim não geram impostos para o
poder público. O garimpo é uma ameaça à estabilidade socioeconômica de
qualquer região no planeta. Não há um único caso na história da Amazônia
em que o garimpo tenha contribuído para o desenvolvimento sustentável.
Pelo contrário! Vamos agora tomar um barco para Santarém. São quinze
horas na rede, balançando e ouvindo brega, melody e carimbó. Vocês
estão prontos?

Viagem à Amazônia | 154


João Meirelles

Diário da Juju: O barco desliza no rio. O primeiro bicho


que vimos foi um boto cor-de-rosa. Ele nos acompanhou
por um tempo. Como eu dormi..., eu o perdi de vista.
Como é lindo. Eu queria nadar com ele. Já me acostumei
a dormir em rede, difícil vai ser deixar esta vida de
escola da natureza. Tio, obrigada, obrigada, por esta
viagem inesquecível. PS. Depois vou ler este pedaço do
meu diário e outros trechos pro Antônio, o Gabriel e
o tio, mas não todos. Umas partes... eu vou pular.

– Tio, e as florestas daqui? São diferentes daquelas da Transamazônica? –


Gabriel interessa-se pela vegetação que vê do barco.
– Gabriel, cada região tem a sua peculiaridade em função de um conjunto de
fatores – diferentes formações geológicas, solos, temperaturas, umidade,
altitude, água no subsolo etc. Em alguns tipos de vegetação, e a gente pode
chamar também de paisagens, predominam as matas mais abertas, em que
a luz penetra bastante; outras já são conhecidas como matas densas, ou
fechados, onde as copas das árvores estão mais juntas. Há aquelas com maior
presença de cipós; em outras são as palmeiras que dominam, como é o caso
do açaí e do miriti na beira da água, ou do babaçu em terra firme. Há paisagens
em que os bambus são muito presentes, como em algumas áreas de terra
firme no Acre. Há ainda as áreas de transição para outros biomas, os ecólogos,
aqueles que estudam a paisagem, chamam essas áreas de ecótonos. Há dois
grandes sistemas: as áreas de terra firme e as áreas inundáveis. Na Amazônia,
mais de noventa e cinco por cento da paisagem é de florestas de terra firme.
Muita gente pensa que na Amazônia as florestas estão inundadas, mas é
uma pequenina parte e, mesmo assim, boa parte das florestas inundadas
são inundáveis, ou seja, só ficam parcialmente debaixo da água por alguns
meses no ano. Em função dessas diferentes paisagens, os inúmeros grupos
indígenas encontraram meios de aproveitar as florestas. Tanto os índios como
os caboclos fizeram agricultura em áreas de florestas, que são mais férteis,
adotando o sistema de corte e queima, conhecido também como coivara.
– Explica direito, tio. Coi-va-ra? – Gabriel, perguntador.

Viagem à Amazônia | 155


João Meirelles

– O que se faz é derrubar as árvores de uma determinada área no fim das
chuvas. Durante a estiagem, a vegetação seca, juntam-se os paus para
queimar melhor e, no fim do verão amazônico, ateia-se fogo, para se plantar
em seguida, enquanto o mato não cresce de novo. Só assim o que se plantou
tem chance de vencer, seja o capim, seja a roça, de milho, mandioca, arroz
ou, como muitas vezes se faz, plantam-se juntos diversos tipos de grãos,
tubérculos como a mandioca e a batata-doce... Depois de dois a quatro
anos, depende do lugar, do tipo de solo, essa área é abandonada, para se
buscar uma nova área ainda não explorada. Está certo que esse sistema é
rudimentar, ou seja, utiliza técnicas visando apenas o sustento da família. É
uma agricultura itinerante. Nos dias de hoje, com a definição de quem é dono
do quê, está cada vez mais difícil adotar esse sistema. O perigo é o fogo...
– Fogo? Mas o fogo é sempre perigoso, não é, tio? – Gabriel quer saber.
– Nesse sistema de coivara, ele é parte do processo. E há pouco risco de
escapar para outras áreas, como as pastagens, outras áreas agrícolas etc.
Mas, se a floresta é bastante alterada, quando se retira muita madeira ou se
deixa que o fogo penetre nela muitos anos, ela vai se fragilizando, tornando-
se cada vez mais pobre. O que acontece hoje na Amazônia é que todos os
fazendeiros que têm pastagens não querem investir num manejo sem fogo,
ou seja, controlando o mato por diferentes métodos. Claro que o fogo é mais
barato que qualquer outra opção. Por isso, no Brasil, o costume é colocar
fogo na pastagem ou em alguma área “abandonada” para mantê-la limpa.
Mas tudo tem o seu preço! Como vimos, o fogo queima a matéria orgânica,
seca muito o solo. Tem até uma parte boa, porque a queimada libera uma
quantidade razoável de determinados minerais, como o potássio e o cálcio.
– Puxa, estou confuso, queimar é bom ou ruim? – Antônio está um pouco perdido.
– Como estou dizendo, tem os seus prós e contras. Pode até ser positivo e mais
barato a curto prazo, mas, ao longo do tempo, o solo se empobrece, a erosão
carrega a parte boa do solo, é o que se chama de lixiviação. E hoje é possível
manejar os solos e realizar agricultura sem fogo. Exige mais cuidados, mais
planejamento e mais conhecimento, mas é possível.
– Tio, tio, que barco diferente é aquele? – Juju pergunta.
– É o Abaré, um navio-escola-hospital, resultado de uma iniciativa de uma
organização da sociedade civil, o Projeto Saúde e Alegria. Agora virou política
pública e está aos cuidados da Universidade Federal do Oeste do Pará
(Ufopa). A iniciativa deu tão certo que diversas prefeituras e instituições
públicas têm barcos desse tipo na região, contando com o apoio do

Viagem à Amazônia | 156


João Meirelles

Ministério da Saúde. Foi tratando, há mais de trinta anos, da saúde dos povos
ribeirinhos que o Saúde e Alegria desenvolveu, sempre em parceria com
as comunidades locais, medidas bem simples e eficazes de acesso à água,
saneamento, melhores práticas de agricultura, alimentação e muito mais.
– Que coisa bacana, este é o Brasil que dá certo! – entusiasma-se Antônio.
– Os médicos daqui me informaram que a taxa de mortalidade infantil caiu
quase três vezes. Agora temos o mesmo índice de mortalidade infantil das
regiões mais desenvolvidas do Brasil, como o interior do estado de São Paulo.
– Nossa, tio, se uma ONG, com pouco dinheiro, pode ter resultados assim, por
que as prefeituras e os governos estaduais não fazem algo? – Juju comenta.
– Ótima pergunta. Porque a saúde das pessoas, especialmente dos excluídos,
não é prioridade. E, também, há a questão da qualidade da água e do
saneamento. Nem as grandes cidades têm saneamento, Belém e Manaus
não têm sequer dez por cento de seus esgotos tratados, o que se dirá dos
outros locais. Há outros indicadores preocupantes, como a gravidez na
adolescência na região Norte: um terço dos nascimentos é de mães com
menos de catorze anos! A região é campeã em mortes de mães no momento
do parto. Há maior descaso que esse? Cerca de um quinto das mulheres
não realiza uma única consulta durante a gravidez. No restante do país,
principalmente no Sul e no Sudeste, isso é praticamente inconcebível. Vamos
ouvir o Doutor aqui, o que ele tem a nos dizer.
– Na Amazônia, os postos de saúde estão sempre distantes, são insuficientes
em número, além de estarem lotados quando há um médico, e neles faltam
as condições de atendimento e de medicação básica. As pessoas viajam
horas e mesmo dias para uma consulta e não recebem a atenção devida. Os
agentes comunitários de saúde, os ACS, que poderiam resolver boa parte
dos problemas, são em número insuficiente e, muitas vezes, são pouco
preparados e não dispõem de transporte. E não é por culpa deles, é pela falta
de atenção, de apoio e de capacitação. São heróis, os únicos contatos das
comunidades com o sistema de saúde pública.
– E, com o Bolsa-Família, melhorou? – Antônio quer saber.
– Para quem vive na miséria absoluta, vinte, cinquenta, até duzentos reais faz
diferença. Mas o Bolsa-Família não é um mecanismo para tirar as pessoas da
miséria, é um socorro. A média de renda de quem recebe o Bolsa Família é
próxima de setecentos reais por pessoa por ano.
– Nossa, sessenta reais por mês é o que lá em casa a gente gasta pra comprar
pãozinho pro café da manhã por uns dez dias. Como é que alguém vive com

Viagem à Amazônia | 157


João Meirelles

isso? – Antônio não se conforma.


– Antes era pior, essas famílias tinham uma renda média de pouco mais
de quarenta reais por pessoa por mês. E estamos falando de mais de
um milhão e duzentas mil famílias, com uma média de 4,3 pessoas por
domicílio. Ou seja, pelo menos 5,16 milhões de pessoas, um quinto dos
moradores da Amazônia.
– Então a pobreza na região Norte é bem mais grave! – Juju emociona-se.
– Sim, e muito pode ser feito por meio da economia, ou seja, oferecendo-se
aos agricultores e extrativistas mais pobres oportunidades para os seus
negócios. Estamos falando de preço mínimo para os seus produtos, de
capacitação técnica, acesso a crédito, assistência técnica efetiva, apoio a
organizações sociais de base, como associações e cooperativas, e outras
iniciativas complementares. E mais: muitas famílias não têm acesso ao
Bolsa Família, porque em seu isolamento nem sequer possuem documentos
básicos, como certidão de nascimento e carteira de identidade, que dirá
carteira de trabalho ou CPF.
– Nossa, não têm certidão de nascimento! – espanta-se Gabriel.
– Os sem-documentos chegam a trinta por cento das crianças de dois anos
na Amazônia em algumas regiões. As mães demoram a registrar os filhos, e
muitos serão registrados quando ingressarem na escola.

Diário da Juju: Chegada a Santarém ao meio-dia. Sol


muito quente. Fomos diretos pro hotel, cada um com
sua mochila nas costas. O almoço foi no comércio – este
camarãozinho deles, o aviú, nunca vi igual! Visita à sede
do Projeto Saúde e Alegria. Pra minha mãe, comprei um
cesto colorido de palha, feito na comunidade de Urucureá.

– Vejam, meus sobrinhos, Santarém sempre foi um ponto de encontro de


culturas neste majestoso encontro de rios. As evidências arqueológicas
demonstram a importância de centros regionais de cacicado. Há cerâmicas
e materiais vindos de diversas partes. Os arqueólogos chamam este acervo
cultural de cultura tapajônica, e sua influência alcançaria uma parte desta
vasta região, o Médio Amazonas. Há duas características interessantes: os

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João Meirelles

amuletos zoomorfos, no formato de animais, os chamados “muiraquitãs”,


originários provavelmente do rio Nhamundá, mais ao norte...
– Sim, tio, a minha amiga que mora aqui, a Fátima, me deu um de presente.
Tem que receber de alguém, não é isso? – Juju entusiasma-se.
– Isso mesmo, o poder do amuleto está na transmissão da intenção de
alguém para ti! A outra característica é a cerâmica com adornos bastante
peculiares, chamados “cariátides”, denominação inspirada na palavra grega
que representa colunas de um templo no formato de mulheres. Santarém é
o mais importante centro urbano entre Belém e Manaus. De um lado, está o
comércio dinâmico, atendendo cidades, vilas e milhares de comunidades do
médio Amazonas e baixo Tapajós; de outro, é um crescente destino turístico,
em função das belas praias do rio Tapajós, especialmente de Alter do Chão,
distrito de Santarém. Mas diz lá, Juju, o que tu queres saber?
– Tio, tu sempre falaste em Cabanagem, e eu ainda não entendi direito o que
foi essa revolta. A gente estuda a Balaiada, a Sabinada, mas a Cabanagem
pouco estudamos... Santarém participou da Cabanagem? – Juju pergunta.
– Para começo de conversa, foi uma revolução. E, como poucas no Brasil, nela
as classes sociais menos favorecidas desta região toda do vale do Amazonas,
entre o Amazonas e o Pará – índios, caboclos, pequenos agricultores e
moradores pobres das cidades –, expressaram-se livremente, depois de
mais de dois séculos de opressão portuguesa. Um movimento legítimo,
autêntico, de baixo para cima. Com a independência do Brasil, a maioria
percebeu que fora ludibriada...
– Como assim? – Gabriel pergunta.
– Vejam bem, prometeram que a vida iria melhorar quando se passasse
da Colônia para o Império, mas, na prática, para a grande maioria, nada
mudou, continuavam explorados e esquecidos. Frustração absoluta, para
muita gente, até piorou. As famílias ricas que escravizavam e exploravam os
indígenas e caboclos continuavam lá, tal e qual. Então a indignação levou
à revolta e à revolução. Só que as consequências foram dramáticas para
o povo. Foram mais de cinco anos de luta, de 1835 a 1840. A maior parte
das cidades e vilas ao longo do rio Amazonas acabaram se envolvendo. No
início era aquela euforia, as vitórias rápidas. Mas, aos poucos, os cabanos,
representando o povo, pouco organizados, com poucas armas, sem meios
de transporte e alimentos e sem apoio externo, foram paulatinamente
enfraquecidos pelo governo imperial, até que este reuniu as forças
suficientes e retomou Belém e as demais cidades. O resultado foi trágico:

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João Meirelles

morre mais de um quarto dos cento e cinquenta mil habitantes da província


do Grão-Pará (Pará) e do Rio Negro (Amazonas). A situação agravou-se ainda
mais com o surto de varíola que assolou o Norte do Brasil na mesma época.
A Amazônia mergulhou em novo período de esquecimento por boas décadas,
recuperando-se somente com o crescente interesse internacional pela
borracha a partir da década de 70 do século XIX.
– De novo o povo perdeu, bem Brasil! – Antônio desabafa.
– Esse também foi o momento de abertura do Brasil a outras religiões, depois
de três séculos de domínio absoluto do catolicismo. Em Belém, a primeira
sinagoga da região Norte foi instalada em 1810. A primeira visita oficial de
um pastor protestante, Daniel Kidder, à região ocorre na década de 40 do
século XIX. A igreja pentecostal, a Assembleia de Deus, será fundada bem
mais tarde, em 1910. As religiões afro-brasileiras, no entanto, continuavam
a ser perseguidas e criticadas pela tal elite até bem recentemente. Antônio,
por favor, leia o trecho do pastor Kidder sobre a sua passagem por São Luís,
quando tratou do encontro com um padre católico. Está na página 170.
– Ao velho prelado pareceu que todo o mundo se afogaria num mar de heresias.
Levantaram-se suspeitas contra todo o mundo e os fiéis foram imediatamente
advertidos a não se contaminarem nas Bíblias lançadas em circulação bem
como para que se não convertessem ao Protestantismo.
– Notem como Kidder é um atento observador, como trata com propriedade
da escravidão neste outro trecho, extraído agora da página 186: Agora que o
índio já não mais pode ser ostensivamente reduzido à escravidão, é recrutado
para o serviço do Exército e da Marinha. Agora eram as Forças Armadas – o
próprio governo – que seguiam no regime semelhante à escravidão. Vamos
em frente, antes de subirmos o rio Amazonas em direção a Manaus, daremos
uma paradinha em Monte Alegre, para conhecer a serra do Ererê. São
“apenas” seis horas de barco de Santarém a Monte Alegre, descendo o rio
Amazonas. Até tem uma lancha rápida, mas no barco a gente dorme melhor,
em rede, e o principal: passa a noite balançando e conversando...
– Ai que delícia – Juju sonha com a sua rede armada.
– Puxa, tio, vamos finalmente conhecer as gravuras, como é mesmo...
litogravuras, não é? – Gabriel menciona.
– Legal que tu te lembraste, Gabriel. Na serra do Ererê, no Parque Estadual
Monte Alegre, há inscrições rupestres que, provavelmente, estão entre as
mais antigas de toda a Amazônia. Monte Alegre é um lugar especial, não
apenas pelos registros arqueológicos, como também pela possibilidade

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João Meirelles

de visualizar as diferentes formações geológicas em uma pequena região.


Deveria ser mesmo um geoparque, ou seja, um local para se testemunhar
diferentes fenômenos da formação do planeta, da geologia.

Diário da Juju: Valeu a pena vir até aqui. Foi muito legal subir
a serra do Ererê, conhecer aquela vista do rio Amazonas. Aliás,
é dos únicos lugares na beira do Amazonas de onde se pode ver
o Cerrado, a várzea, a floresta e o grande rio, fantástico! À noite
ficamos passeando pela praça, esperando a hora de ir para o
barco pra Manaus. Muitas estrelas. Como o céu daqui é bonito!

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João Meirelles

Capítulo 13

De Monte Alegre a Manaus pelo Amazonas

Diário da Juju: De Monte Alegre, foi uma noite de barco


subindo o rio Amazonas até Santarém de volta. Foi aquela
espera, um calorão, mas logo depois embarcamos rio
acima, levando frango congelado, batata, farinha de trigo
e outras comidas vindas do Sul. E, claro, botijões de gás,
muito botijão. E se isso explode? Melhor dormir... Aqui
o rio é estreito, corre rápido, e o amanhecer foi lindo.

– Nossa, que barranco, como é que a gente chega à cidade? – Antônio pergunta.
– Veja bem ali, a rua entre o trapiche e o forte de Pauxis – informou-lhe o
marinheiro apontando o caminho. – Aqui é o lugar mais fundo em todo o rio
Amazonas, cem metros de profundidade.
– Bem lembrado, seu Tico. É também onde ele é mais estreito, dizem que
não passa de mil e quinhentos metros de largura. Por isso, a sua velocidade
aumenta dos usuais cinco a seis quilômetros por hora para sete quilômetros
por hora. A próxima parada será Oriximiná, no rio Trombetas. Suas águas
escuras são bem diferentes destas barrentas do Amazonas. Daqui saem
dezenas de navios carregados de minério de bauxita, matéria-prima do
alumínio. Parte vai para Barcarena, perto de Belém, no Pará, e parte para São
Luís, no Maranhão. A mina de Oriximiná é uma das maiores do mundo.

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João Meirelles

Diário da Juju: O navio de minério, eita, que tamanhão,


imensas marolas. Os ribeirinhos, em seus pequenos
barquinhos, casquinhos como se fala aqui, esperam
a passagem do grande navio. Encostam na margem e
seguram nos galhos pros casquinhos não virarem.

– Olhem, um boto! – Gabriel grita, entusiasmado.


– Não! É um tracajá, um tipo de tartaruga; aliás, há muitos por aqui. Olhem
lá nas pedras, estão tomando sol, um em cima do outro, como uma
escadinha! O Trombetas é um dos lugares no mundo com a maior variedade
de tartarugas, quelônios, como os trata a ciência. São doze espécies
identificadas, muitas delas ameaçadas.
– Por que as tartarugas são ameaçadas? – Antônio pergunta.
– Diversos povos indígenas sempre consumiram grandes quantidades de carne
e de ovos de tartaruga. Quando os europeus chegaram, encontraram aldeias
com currais onde engordavam e criavam tartarugas, peixes-boi, peixes
e outros animais. Mas, do jeito que foi, a ganância dos colonizadores por
coletar tudo, sem pensar nas consequências, deu no que deu: os bichinhos
foram diminuindo, diminuindo, e só recentemente é que se começou a
falar em cuidar deles para não desaparecerem. E isso sem falar no imenso
desperdício. Nos primeiros séculos, os colonizadores utilizavam o óleo da
tartaruga, também chamado de manteiga de tartaruga, para a iluminação,
substituindo o óleo de baleia de suas lamparinas. A manteiga também servia
para conservar as carnes, que, depois de cozidas, eram envoltas nessa
gordura e guardadas em caixas de madeira por um bom tempo. Lembrem-
se de que nessa época não havia gelo, plástico, enfim, as condições para
manter os alimentos eram bem mais difíceis.
– Pra onde vai? – Juju pergunta ao marinheiro mais próximo ao ver uma balsa
com muitas toras de madeira.
– Deve ser pra Breves; se não for, é pra Belém, mesmo. Lá, tanto em Icoaraci
como no distrito industrial, há indústrias madeireiras. E de lá, tudo
embaladinho sai pra São Paulo, pro Rio, pra Europa... O filé vai exportado – o
marinheiro fala, com indiferença.

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– E aquilo o que é, tio? – Antônio está curioso agora que estamos no trapiche de
Oriximiná. Um entra e sai de gente, e muitos sacos esperando pelo embarque.
– Castanha, castanha-do-pará ou, como se quer chamar, castanha-da-
amazônia. Provavelmente vem do alto rio Trombetas, região famosa por
seus castanhais e onde há diversos grupos quilombolas. Aqui eles se
organizaram e estão comercializando diretamente com os compradores,
evitando os atravessadores...

Diário da Juju: E o barco segue, rio acima, lenta,


lentamente. Parintins! Parintins! Sim, a ilha de
Tupinambarana, contaram-me. O tio conversa
com a gente sobre o contato dos europeus e os povos
originais. Também falou da migração japonesa pra
cá! É verdade, entendi, somos todos migrantes, só
quem é daqui são os índios. Tanta coisa legal!

– Imaginem vocês que pesquisadores descobriram que os povos originários


desta região, os Tupinambá, aqueles que os portugueses encontraram no
século XVI e XVII ao longo do litoral brasileiro, provavelmente saíram desta
região, desta ilha, ilha deTupinambarana, há mais de dez séculos ou mais!
– Nossa, que viagem! – Gabriel surfa em sua própria frase.
– É isto mesmo: diversos grupos da América do Sul, entre os quais os grupos
dos troncos linguísticos tupi e guarani, migraram por séculos em busca
da “Terra sem Males”. Mas aí apareceu a grande barreira – as armas,
a escravização, as doenças e as bíblias dos portugueses e espanhóis!
Provavelmente, foi uma das maiores migrações conhecidas na história
indígena desta região do planeta.
– Tio, por que a gente não trata disso na escola? Eu digo, da escravização,
da matança dos índios... Dizimados, nossa, isso é muito forte! – Gabriel
manifesta-se.
– Sim, pelas doenças, pelo sofrimento, pelo trabalho forçado, pela cobiça por
tudo o que pode virar dinheiro. Ah, esses portugueses, insaciáveis! Para
o português dono do barco, da agricultura, do comércio, o braço indígena

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João Meirelles

era mão de obra descartável. Os índios morriam muito cedo, raramente


alcançavam os quarenta anos. Em cinco anos, ou no máximo dez anos de
exploração, a maioria morria, mesmo aqueles “escravos de casa”. Afinal,
comiam mal, moravam em lugares insalubres sem boa ventilação, úmidos...
E, depois, os missionários católicos promoviam intensa lavagem cerebral,
obrigando-os a decorar a Bíblia, os rituais religiosos, obrigando-os a
acreditar que esse seria o único meio para a sua salvação. Ao mesmo tempo,
os nativos eram proibidos de usar a sua língua, de praticar os seus costumes,
as danças, as músicas, a sua cultura...
– Nossa! É verdade, tio. Então essa história de lavagem cerebral continua. O
que mais vejo aqui é igreja, e de todo tipo de religião – conclui Gabriel.
– Tio, reparei numa coisa: parece que quanto mais pobre é a comunidade mais
tipos de igreja tem – completa Antônio.
– Bem, há que se avaliar mesmo essa questão! Parece que agora a lavagem
cerebral é disputada por muitas igrejas e não apenas pela católica como no
início da colonização. Vamos apreciar um pouco esta paisagem, esta região
tão particular – a várzea. Gabriel, leia, por favor, um trecho escrito há dois
séculos pelo viajante alemão von Martius.
– Escuro como o inferno, emaranhado como o caos, aqui se estende uma
floresta impenetrável de troncos gigantescos, desde a foz do Amazonas
até muito além do território português, em direção a Oeste [...]. A natureza
pudibunda do reino vegetal parece, de repente, sentir prazer em produzir
formações grotescas, numa ânsia inquieta. Arbustos com espinhos irritantes
e malignos, palmeiras com terríveis aguilhões, cipós laticíferos emaranhados
perturbam os sentidos do peregrino [...]. Não admira que a alma do índio,
errando em tal ambiente, torne-se sombria e de tal maneira, que, perseguido
pelas sombras da solidão, possa ver em toda parte criações fantasmagóricas
de sua rude imaginação.
– Pudibunda, muito engraçado! – Juju faz chacota.
– Eu ainda não entendi o que é várzea! – Antônio insiste.
– A várzea é o ambiente inundado parte do ano ou mesmo permanentemente
inundado. Há as várzeas altas, com formações florestais, e as várzeas
baixas, usualmente com gramíneas ou formações arbustivas. A sua grande
fertilidade deve-se ao fato de o Amazonas e demais rios com várzeas – rios
de águas brancas que descem dos Andes, como o Madeira, o Juruá e o Purus
– quando enchem, depositarem enormes quantidades de matéria orgânica,
rica em nutrientes, no solo.

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João Meirelles

– Mas é uma área grande? – Juju questiona.


– Em termos da Amazônia, as áreas inundadas permanentemente não chegam
a dois por cento e as inundáveis parte do tempo, a outros dois a três por
cento. Ou seja, menos de cinco por cento da Amazônia é considerado
como inundável, como várzea, e aí estão também as florestas de igapó. O
restante são as terras firmes, como já vimos. E há duas centenas de tipos de
cobertura vegetal para classificar a terra firme na Amazônia.
– Daqui, parece que o mundo está inundado. Mas, olhando as imagens de
satélite que o tio mostrou, é mesmo pouco! – Juju comenta.
– Em termos absolutos, ou seja, no que se refere à área total de várzeas, esta
ocupa uma área duas vezes a de um país como Portugal, ou pouco menor
que o estado do Paraná. São cento e oitenta mil quilômetros quadrados.
No Solimões, a várzea espalha-se por cerca de vinte e cinco quilômetros de
cada lado do leito do rio. No baixo rio Amazonas, chega, em alguns pontos,
a cinquenta quilômetros de cada lado. No megadelta, na região do Marajó,
praticamente tudo é alagado, ou seja, à medida que o rio se aproxima da
foz, a várzea aumenta, ainda que dividida em muitas ilhas, e muitas delas,
onde a água é parcialmente salgada, já apresentam os manguezais. Mas,
lembrem-se, junto ao megadelta, a maré é dominante, e, a cada seis horas,
ela inverte de sentido.
– E estes barcos, pra onde vão? – Juju pergunta, ao observar um comboio de
barcaças subindo o rio, carregadas com grandes carretas e containers.
– Pra Manaus. A maioria carregou lá no bairro de Icoaraci, em Belém. Levam
peças para as indústrias da Zona Franca... – responde o marinheiro.
– A Zona Franca de Manaus criou este mirabolante passeio de carretas pelo
interior do Brasil. Os incentivos fiscais do governo federal atraem indústrias
que jamais estariam aqui sem esse subsídio. Em sua maioria, são fábricas
de eletroeletrônicos – aparelhos de celular, ares-condicionados, televisores,
bicicletas, motocicletas... Muitos equipamentos chegam desmontados
do Sudeste e seguem sacolejando de caminhão até Belém, por três mil
quilômetros. Dali embarcam para Manaus, por quase dois mil quilômetros
de rio, onde são montados, recebem um certificado de fabricado na
Zona Franca, e voltam, pelo mesmo caminho, pelos mesmos cinco mil
quilômetros, para serem vendidos na região Sudeste. Afinal, os principais
centros consumidores do Brasil estão mesmo num raio de quinhentos
quilômetros da capital paulista.
– Piração total, hein, tio? Só não entendo quem paga essa conta – Gabriel pergunta.

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João Meirelles

– Nós mesmos, todos os brasileiros, é subsídio federal, quer dizer, é uma


renúncia fiscal, o governo deixa de arrecadar impostos para incentivar
as indústrias. É claro que é algo artificial, inviável, mas, mesmo assim,
seguimos pagando essa conta bilionária. E tem mais: o planeta também
paga essa conta, pois há uma movimentação desnecessária de caminhões,
barcos e aviões, queimando petróleo, moendo os veículos nas estradas
esburacadas e malconservadas. Estas imensas barcaças também afetam a
vida dos ribeirinhos e, em alguns lugares, podem mesmo mudar as margens,
provocando desbarrancamento.
– E como se resolve isso? – Gabriel continua, enfurecido.
– Substituindo essa indústria artificial, que poderia estar em qualquer lugar
do mundo, pelas indústrias de base real, que agreguem valor à floresta em
pé – a bioeconomia. Em Manaus, não há uma única fábrica de móveis, de
compensados a partir de fibras da região, como a pupunha, o açaí. Onde
estão as fábricas que têm como diferencial os ativos da floresta – raízes,
sementes, frutos, cascas? Os alimentos, os remédios, os cosméticos, a partir
do conhecimento de milhares de anos sobre a floresta? É a biocivilização de
que tanto nos fala o meu amigo Dal Marcondes, da Envolverde. Pesquisem
esse site, tem muita coisa lá. Enquanto a Zona Franca empacotar televisores
que em alguns anos serão lixo eletrônico, o Brasil não terá futuro. Mas a
resposta está bem ali, na esquina da área industrial, no Instituto Nacional
de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e nas suas milhares de pesquisas sobre
o potencial da flora e da fauna da região para provocar o crescimento
econômico sustentável por meio da bioeconomia.
– Certíssimo, tio, não dá pra entender tamanha falta de compromisso com o
Brasil! – Juju, sempre, indignada.
– Enquanto prevalecerem os interesses de uma minoria política e empresarial,
a Zona Franca só vai fabricar essas coisas, a bem dizer, quinquilharias.
A bioeconomia é a grande chance para valorizar o que é da Amazônia, o
que só faz sentido na região. A bioeconomia pode valorizar e remunerar
os conhecimentos tradicionais, a conservação da diversidade biológica,
cuidando, naturalmente, da saúde dos ecossistemas. Caso contrário, cidades
como Manaus crescerão de maneira desordenada, atraindo mais e mais
gente, distanciando-se cada vez mais de sua verdadeira vocação. Hoje mais
da metade da população do maior estado brasileiro, o Amazonas, vive aqui. E
a maioria, na miséria e com poucas perspectivas de ter uma vida digna.

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João Meirelles

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João Meirelles

Capítulo 14

Manaus e o baixo rio Negro

Diário da Juju: Depois de uma semana de viagem, com


muitas paradas, chegamos a Manaus. Estava tão boa
a calma do barco. Manaus parece qualquer cidade
do Brasil, muito trânsito, buzinas, casas empilhadas,
sem esgoto, muita gente. E pobreza! Esta pobreza
urbana, feia, triste, igual em todo o Brasil. No meio
da pobreza, alguns ricos, tamanha diferença dói!

– Viva, aqui é a Ponta Negra, vejam a nova ponte sobre o rio Negro. Com a
construção da ponte, o desmatamento explodiu na outra margem do rio. Não
se espantem se, em alguns anos, surgirem bairros ou mesmo outra cidade do
outro lado, tão caótica, como ocorreu em outras partes do Brasil. Até onde
crescerá Manaus? Com raras exceções, quem quer ensino, saúde e outros
serviços públicos ou privados de qualidade aqui no Amazonas vê-se obrigado
a vir para Manaus. O interior recebe pouca atenção!
– Ah, entendi, as capitais concentram tudo! Mas tem alguma saída, alguma
chance de fazer algo diferente, tio? – Juju está curiosa.
– Bem, tudo tem jeito. A questão é haver um pacto em prol do aproveitamento
dos recursos para construir uma sociedade mais justa. Por exemplo, um
dos caminhos para avançar em direção à bioindustrialização, à bioeconomia
seria a substituição do petróleo pelo gás natural. Ainda que seja uma fonte
energética fóssil, o gás natural é menos poluente que o petróleo. Pela
primeira vez no Brasil, construiu-se um gasoduto com todos os cuidados
ambientais, evitando-se a invasão de terras de uma extensa área e a

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ampliação do desmatamento e da pobreza. A Petrobras está de parabéns,


porque mostrou que esse caminho é possível, mesmo em grandes obras, e
não foram construídas estradas que permitissem a invasão da região, como
ocorreu em outras partes.
– E a ponte, tio, é uma coisa boa? – Juju procura formar o seu próprio
ponto de vista.
– A ponte também significa uma possível retomada da conexão terrestre entre
Manaus e o Centro-Sul do país. Há uma enorme pressão pela recuperação da
ligação rodoviária entre Manaus e Porto Velho, em Rondônia, que foi aberta na
época do regime militar, que queria, a todo custo, rasgar estradas por toda a
Amazônia. Toda vez que se discute uma rodovia, há um paradoxo. De um lado,
com a abertura da estrada ou o seu asfaltamento, permite-se que as pessoas,
antes isoladas, tenham acesso a outros lugares, tenham assim produtos mais
baratos, possam escoar a sua produção etc.; porém, de outro lado, aumenta
muito a pressão pela invasão, pela grilagem de terras, pelo roubo de madeira,
pelo desmatamento, pelas queimadas, especialmente aqui na Amazônia,
onde o governo não fiscaliza a destruição do patrimônio nacional...
– Difícil decidir, tio! – Antônio coça a cabeça.
– Percebam que essa estrada, se for mesmo retomada, seria uma obra de
engenharia bastante complexa, pois passa por zonas bastante úmidas,
alagadas. Nesses casos, há um grande debate para se decidir se a estrada deve
ou não ser construída. Nesse caso particular, existe a alternativa de aprimorar a
hidrovia do rio Madeira ou até mesmo estudar a viabilidade econômica de uma
ferrovia. De todas as opções, certamente, a rodovia é a pior.
– Como assim, tio, por quê? – Antônio quer saber.
– Diversos estudos de ONGs, como os do Ipam e do Instituto do Homem
e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), mostram que dois terços do
desmatamento da Amazônia ocorrem nas vizinhanças das rodovias. Quando
a estrada está em terra, o impacto é menor, chegando a poucas dezenas de
quilômetros do entorno. Quando, porém, a estrada é asfaltada, o alcance do
desmatamento é bem maior. Explode!

***

– Como estamos em Manaus, eu quero propor aqui uma homenagem especial


a Ajuricaba.

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– Quem foi esse cara de nome difícil? – Gabriel pergunta.


– Um dos maiores comandantes da resistência aos europeus na história da
Amazônia. Por volta do ano 1720, esse chefe da nação Manau – e daí vem
o nome “Manaus” –, que habitava aqui, o baixo rio Negro, consegue, como
poucos até então, bravamente resistir aos portugueses. Mas a conta será
alta. No contra-ataque, os portugueses massacram milhares de índios para
demonstrar que eram eles que mandavam. Convencidos da incapacidade
de vencê-los, Ajuricaba e alguns de seus companheiros terminam presos
e são levados a Belém. No caminho, Ajuricaba salta na água e jamais será
encontrado. A história de Ajuricaba inspirará a resistência de diversas
lideranças na região.
– É mesmo, tio! Esse homem é de uma coragem incrível. Fiquei até arrepiado! –
Gabriel comenta.
– Mais um pouco de história. Vocês se recordam quando falei das mudanças
ocorridas na Amazônia, no período pombalino, com aquele poderoso
primeiro-ministro português, o Marques de Pombal, depois de 1750? Pois
bem, nesse momento, a Coroa portuguesa, capitalizada com o ouro vindo
de Cuiabá, de Goiás e das Minas Gerais, apressou o processo de ocupação
dos pontos estratégicos da região amazônica. Ao mesmo tempo, cresceu
a intolerância com as nações indígenas. A expulsão das ordens religiosas
aumentou a escravização de indígenas, pois eles não tinham mais quem
os protegesse. As antigas missões foram transformadas em vilas, a língua
portuguesa foi imposta, proibindo-se o nheengatu.
– Que coisa doida! E saber que eu poderia estar falando aqui em nheengatu
com vocês! – Juju exclama!
– Foi mais uma imposição portuguesa. Muitos nomes indígenas foram
substituídos, principalmente os nomes das vilas. Monte Alegre, em lugar de
Gurupatuba, Óbidos, onde era Pauxis, e daí por diante. Nomes de cidades
portuguesas! O poder dos comerciantes, militares e administradores
portugueses cresceu bastante com a saída dos religiosos. Formou-se uma
classe dominante rural, moradora em vilas e cidades, como Belém. E Belém
ligava-se diretamente a Lisboa. A elite enviava seus filhos para estudar em
Portugal. É sempre bom lembrar que, nessa época da navegação a vela, uma
viagem entre Belém e Lisboa durava metade do tempo do que a viagem entre
Lisboa e o Rio de Janeiro. Além disso, havia pouco interesse comercial entre
Belém e qualquer outra sede de capitania, mesmo Recife, Salvador ou o Rio
de Janeiro, ou seja, havia poucas mercadorias a trocar entre esses locais.

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– Nossa, então a Amazônia era isolada? – Gabriel surpreende-se.


– Depende do que se entende por isolamento. A Amazônia sempre se
relacionou diretamente com a Europa e, no período da borracha, com a
América do Norte. A relação do Brasil com a Amazônia foi tênue, superficial,
praticamente até o período republicano. E, mesmo assim, não foi um contato
intenso até a chegada dos eixos rodoviários, como Belém–Brasília, na
década de 60 do século XX.
– E Manaus, quando surge, tio? – Juju quer saber.
– Do esforço português de dominar a região Norte, de tirá-la das mãos dos
espanhóis. Primeiro, em 1669, estabeleceu-se São José do Rio Negro, um
local para abastecer os navegantes portugueses. Era mais conhecido como
o Lugar da Barra; um século depois, seria chamado de Fortaleza da Barra.
Como Vila de Manaus, mesmo, somente em 1832 e simplesmente Manaus,
cerca de trinta anos depois, em 1856!
– Nossa, demorou mesmo! – Gabriel comenta.
– Pois sim, o movimento de interiorização do poder militar e administrativo
português fez-se sentir para valer a partir do Tratado de Madri, em 1750.
Foram as comissões de demarcação de fronteiras com o poderoso reino
de Espanha que levaram ao estabelecimento de diferentes fortalezas e
povoados. Assim, a primeira capital da Capitania Real de São José do Rio
Negro foi Barcelos, no alto rio Negro, cinco anos depois do Tratado de Madri.
Até então, o lugar era uma missão carmelita chamada Mariuá.
– Então, tio, a capital do Amazonas deveria ser Barcelos e não Manaus? –
Gabriel pergunta.
– Bem, naquela época, o importante era garantir a posse deste vasto
território. Com poucos portugueses, o mais importante era estar em um
ponto estratégico próximo à fronteira, e a fronteira mais disputada era
neste noroeste do atual estado do Amazonas. Foi o militar português
Lobo D’Almada que, à frente das demarcações, já no final do século XVIII,
mesmo à revelia do governador do Grão Pará, primeiro mudou a capital
para Manaus. Uma rixa entre ambos levou a capital de volta a Barcelos, mas
isso foi por pouco tempo, pois, em 1808, instalou-se finalmente, na vila da
Barra do Rio Negro, atual Manaus, a capital da nova província, a província do
Amazonas. No Império do Brasil, foi chamada de Comarca do Alto Amazonas,
dependente do Pará até 1850. A seguir, a Vila da Barra tornou-se Manaus.
– Nossa, tio! Tou encantada com tudo isso. Agora tou entendendo mais de
história, de geografia. Mudou de nome tantas vezes! Só estando aqui pra

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compreender mesmo, pra valer! – Juju agradece, lançando olhares a todos


os lados, especialmente para a copa das árvores.
– Vamos agora para o encontro das águas dos rios Solimões e Negro, formando
o rio Amazonas. Aqui o rio Negro tem doze quilômetros de largura, chega
a quase cem metros de profundidade, e as suas águas trafegam a uma
velocidade de dois quilômetros por hora. O Solimões, por sua vez, com
grande quantidade de sedimentos, é menos largo, cerca de três quilômetros
de largura, mas a sua correnteza chega ao dobro daquela do Negro. Mas hoje
a nossa conversa é sobre o desperdício de recursos naturais, sobre o prejuízo
relacionado ao desmatamento.
– De novo, tio! Não tem outro assunto! – Antônio reclama.
– Se não fosse tão importante, não retornava ao tema! O que precisamos
estudar é a cultura da predação. Em 2006, ou seja, há mais de quinze anos,
Peter Mann de Toledo, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (Inpe), e seus colegas calcularam que o desmatamento de dois
milhões e meio de hectares anuais (vinte e cinco mil quilômetros quadrados)
significava cerca de um bilhão de árvores, uma média de quatrocentos
árvores/hectare. Caso se aproveitassem comercialmente apenas cinco por
cento dessas árvores, seriam cinquenta milhões de árvores. E, se fosse
considerado apenas 1,4 metros cúbicos por árvore, o que é bem pouco, seriam
70 milhões de metros cúbicos de madeira. Comparativamente, em 2009,
segundo o Imazon e o Serviço Florestal Brasileiro (SFB), a produção da
Amazônia foi de 14,2 milhões de metros cúbicos. A análise é trágica, ou seja,
praticamente cinco vezes menos que o calculado por Toledo e seus colegas.
Pode-se perceber aí a dimensão do desperdício de madeira nos últimos
cinquenta anos. E esse dado é de dez anos atrás!
– Nossa, mas por que tanto desperdício? – revolta-se Juju.
– Porque o que está ali, teoricamente de graça na natureza, não tem valor. A
gente só dá valor ao que está desmatado, queimado, destruído. Só a madeira
em cima do caminhão tem valor! É um contrassenso, mas é assim que a
economia funciona.
– O homem é um ser irracional! – desafaba Antônio.
– É o oposto do que prega a ciência econômica, dizendo que o homem toma
decisões com bases racionais. É assim com o peixe, com a madeira, enfim,
com todos os recursos naturais. A economia de mercado na qual vivemos
parte da premissa de que só se gera valor quando se destrói. A Amazônia
destruída tem valor de mercado, de outra maneira, é só mato.

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– Mas a gente precisa mudar isso! – revoltam-se, ao mesmo tempo, Juju e Gabriel.
– Claro, eis o grande desafio! O que entendemos por civilização? O que faz sentido
para nós, brasileiros, ou para os demais povos amazônidas? O que significa a
Amazônia para nós? Afinal, o que estamos fazendo aqui nesta viagem?
– Já sei, tio. Estamos tentando entender que país é este. Que Brasil somos nós?
– Muito bem! Muito bem! Nós somos o Brasil, nós somos a Amazônia. É nossa a
decisão. Não podemos delegar a decisão a outros, a governantes incapazes,
a tecnocratas incompetentes, a quem quer que seja, que se vale da
corrupção e da esperteza para destruir o que é patrimônio público. Ninguém
tem esse direito. Não dá para aceitar este sistema perverso de criação de
valor. Os derrotados, os que destroem o planeta simplesmente dizem: “foi
sempre assim” ou “todo mundo faz assim, e eu também vou fazer, senão fico
para trás”. São eles que vão nos levar ao colapso ambiental, à pobreza, ao
aumento da injustiça social. O nosso drama atual é que esse pensamento é
dominante no meio empresarial, no meio político, e boa parte da população
acredita que só se cria valor destruindo!
– Que absurdo! Não dá pra aceitar! – Juju reclama energicamente.
– O escritor Werner Zotz tem uma ótima explicação para esse tipo de gente.
Entre os passarinhos, há os chupins e os tico-ticos. Os chupins são os
aproveitadores, os que invadem o ninho do tico-tico e jogam seus ovos para
fora e ali depositam os seus ovos. Os tico-ticos não percebem e, quando
os ovos são chocados, saem imensos chupins atrás daqueles frágeis tico-
ticos. O mundo tem muitos chupins, é importante que saibamos distinguir os
chupins dos tico-ticos.
– Mas, tio, tem também os tico-ticos. Tem muita gente boa... – Juju comenta.
– Ainda bem, né, Juju, senão estaríamos perdidos! – exalta-se Gabriel.
– Vamos entender um pouco melhor a indústria da madeira, afinal, a madeira
é o principal produto florestal da Amazônia. Mesmo em crise, e serrando-se
muito menos do que se produzia nas décadas passadas, a madeira gerou
centenas de milhões de dólares nos últimos anos e emprega muita gente.
– Importante é avaliar como somos seletivos em termos de madeira: somente
uma de cada dez, das três mil e cem espécies de madeira, é utilizada
comercialmente. Das cerca de trezentas espécies de madeiras exploradas,
somente dez por cento, ou seja, cerca de trinta espécies, são responsáveis
por dois terços do mercado.
– Como assim? – Juju está indignada, quase chorando.

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– Como consumidores, somos mesmo irresponsáveis. Adquirimos madeira


não pela descrição de suas características e, sim, por seus nomes populares
consolidados no mercado. Madeiras com características semelhantes, por
exemplo, ao mogno ou ao ipê têm valor bem menor que essas madeiras
famosas, só porque têm outro nome, já consagrado. Além disso, no mato,
mesmo com grandes avanços, a maior parte da exploração segue sendo
predatória. Mesmo com o aumento da fiscalização, falta muito para legalizar
a situação. Uma única árvore mal cortada pode danificar mais de vinte outras
ao seu redor. Para cada metro cúbico efetivamente aproveitado, haveria pelo
menos outros dois metros cúbicos desperdiçados. Pior, quando a extração é
ilegal, aquela estrada clandestina usada para roubar a madeira vai se tornar
o caminho da invasão, da grilagem, do desmatamento, da produção de
carvão ilegal, o caminho para a pecuária bovina ilegal, provavelmente uma
operação casada com a retirada da madeira.
– Então não tem jeito mesmo? – Gabriel pergunta.
– É difícil, numa região tão grande como a Amazônia, esperar que os órgãos
públicos deem conta de fiscalizar tudo. Se os empresários e a própria
sociedade não forem capazes de compreender que há limites para a
exploração, que é preciso buscar a legalidade e a sustentabilidade a todo
momento, dificilmente construiremos uma nação digna e justa!
– Muito bom, tio, gostei. Nação digna e justa. É o que eu quero! – Juju
declara, satisfeita.
– Bem, quanto à madeira, também devemos levar em conta que, para o
consumidor, é difícil ter conhecimento suficiente para saber quando está
adquirindo madeira legal ou ilegal. O consumidor depende das casas de
materiais de construção, as estâncias, as marcenarias, as fábricas de
móveis, de assoalhos, de portas etc. Eles é que devem se responsabilizar
pela procedência da madeira. Caso contrário, eles são solidários com a
ilegalidade do madeireiro. No final das contas, mais de um terço da madeira
nobre da Amazônia, que poderia ter preço algumas vezes maior, termina
como caibro de telhado no Sudeste do Brasil ou como madeira descartável
para a construção civil, outro setor em que há grande desperdício de
madeira. Para resumir, não podemos colocar a culpa em outros países que
compram a madeira. É o próprio Brasil que consome, de maneira errada,
a maior parte da madeira da região. É o Brasil que não se valoriza, nem
com o nome de uma madeira, o pau-brasil, enfrentamos essa questão com
maturidade! Bom, agora é hora de viajarmos para Roraima.

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Capítulo 15

De Manaus a Boa Vista e à fronteira


com a Venezuela

Diário da Juju: Saímos de Manaus de carro, logo cedo.


A primeira parada foi em Presidente Figueiredo, pra
tomar banho de cachoeira. A segunda foi na estação do
Inpa, que pesquisa peixe-boi, na represa de Balbina, no
rio Uatumã. Viajamos bastante, entramos em Roraima
e seguimos pra Boa Vista. No caminho, conversamos
com os Waimiri-Atroari, que nos pediram atenção
para não atropelar os animais na Terra Indígena. Em
Boa Vista, pudemos compreender a difícil vida dos
migrantes venezuelanos, fugindo da forte crise.

– O contato com os Waimiri-Atroari foi desastroso. Por pouco eles não
foram complemente dizimados. Na década de 70, sofreram duros golpes.
Primeiro, foi a construção da rodovia de Manaus a Boa Vista, a BR-174,
quando a ditadura utiliza o Exército para expulsar o povo Kinja (como se
autodenominam os Waimiri-Atroari) de suas próprias terras. Na década de
80, uma mineradora conseguiu do governo militar a extinção da Reserva
Indígena Waimiri-Atroari, criada em 1971, para implementar a mineração
de cassiterita (estanho) de Pitinga. A seguir, a Eletronorte construiu a Usina
Hidrelétrica de Balbina, inundando trinta mil hectares do território indígena.
Somente em 86, quando os Waimiri-Atroari contavam com pouco mais de mil

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indivíduos, é que o governo federal finalmente demarcou a Terra Indígena


Waimiri-Atroari.
– Nossa, que paisagem diferente. Aqui é tudo campo? – Gabriel comenta.
– Verdade, olhem, tem ema! Uai, cadê a floresta? – Juju pergunta.
– Exatamente, vejam que muita coisa muda. Boa Vista está no meio desta
região. Aqui há diversos tipos de campos, como os lavrados, típicos daqui.
São campos naturais, que fazem parte do bioma Amazônia. Afinal, na
Amazônia, não há apenas formações florestais. Deixamos a região de
florestas e alcançamos a região dos campos do Rio Branco. Amanhã vamos
até perto da fronteira do Brasil com a Guiana, na região do rio Maú.

***

– Aqui está um barril de pólvora. Há mais de trinta mil garimpeiros brasileiros


ilegais nos países vizinhos – a Guiana, o Suriname e a Guiana Francesa.
E o fluxo cresce ano a ano. Isso porque os garimpeiros não respeitam as
mulheres, a cultura local, a propriedade; causam destruição ambiental,
caçam e pescam até a exaustão, contrabandeiam armas, drogas e
mercadorias e alteram o modo de vida da região, afetando a todos. Trazem
doenças para a população indígena e local, especialmente as doenças
sexualmente transmissíveis.
– A coisa é séria, tio! – diz Juju.
– Pois é, e o garimpo está em muitas partes. No rio Tapajós e em diversas
regiões da Amazônia, o problema é crônico, presente há dezenas de anos.
Atualmente, com as potentes máquinas escavadeiras e as bombas de água
gigantes, em pouco tempo o solo estará destruído. Onde havia belos riachos
ficam só crateras enormes, parece que uma guerra passou ali. E o uso
excessivo de óleo diesel e de metais, como o mercúrio, que serve para separar
o ouro do restante dos minerais, resulta em poluição de grande impacto. Os
peixes absorvem o mercúrio, e o homem consome o peixe contaminado!
– Tio, então este peixe que estamos comendo está contaminado? –
Gabriel, apreensivo.
– Difícil saber. A maldade dos garimpeiros é que eles atingem todos, crianças,
velhos, adultos, sem distinção. São irresponsáveis. Não entendo por que
esse crime não é punido severamente. Basta fazer o exame de sangue das
pessoas para saber se estão contaminadas com esse metal perigoso.

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– Cem por cento certo. Não se pode perdoar quando a saúde humana está em
jogo! – Juju bufa, decidida.
– Agora olhem para o outro lado, em direção ao Parque Nacional do Monte
Roraima, divisa entre o Brasil, a Venezuela e a Guiana. Se fossemos no
sentido noroeste, chegaríamos à Terra Indígena Ianomami, um grande e
importante parque que inclui áreas de Roraima e do Amazonas, no Brasil, e
segue adiante na Venezuela. Para os Ianomami, seu espaço vital é mais que
um território. Em sua cultura, em sua visão mito-poética, o seu território é
um ente vivo – “Urihi”, o que poderia ser traduzido aproximadamente por
Terra-Floresta. A história de invasão dessa terra indígena por garimpeiros,
usando estradas como a Perimetral Norte, é uma rotina. Mesmo com a
Polícia Federal regularmente destruindo as pistas de pouso clandestinas, os
garimpos retornam.
– Iche, este povo não toma jeito! – Juju imita a sua mãe, irmã do tio.
– E, do lado noroeste, está a região consagrada como a Terra Indígena Raposa
Serra do Sol. Recentemente, um grupo de plantadores de arroz quis usurpar
os territórios indígenas, mas o Supremo Tribunal Federal confirmou que os
não índios precisavam sair da Terra Indígena, como manda a lei. E, mais
adiante, bem lá na pontinha nordeste, na serra de Pacaraima, está o monte
Roraima, “Roroima”, “mãe das águas”. Esse belíssimo monte, ou tepui, é um
monumento natural visível de bem longe. Aqui estão as nascentes de rios
que contribuem tanto para as bacias do rio Orinoco, que cruza a Venezuela,
como para a do rio Branco, afluente do rio Negro. O monte Caburaí, no
mesmo Parque Nacional, é o ponto mais setentrional do Brasil. Novamente,
garimpos ilegais, inclusive em terras indígenas. Como é final de tarde, vamos
retornar para a pousada.
– Tio, o que é aquilo voando a esta hora da noite? – espanta-se Gabriel,
fechando os olhos.
– Um morcego. Vejam que lindo! Observem o tamanho das asas dele, quase um
metro de uma ponta à outra, de envergadura, como se diz. O biólogo Enrico
Bernard encontrou setenta e duas espécies de morcego numa única área no
baixo rio Tapajós. Nos Estados Unidos, há apenas quarenta e cinco espécies.
– E este grandão o que come? Sangue? – Gabriel interessa-se.
– Não, no Brasil, entre mais de cento e sessenta espécies, há apenas duas que
são hematófagas, que se alimentam de sangue. Usualmente, comem frutas,
insetos, sementes. São importantes polinizadores, além de dispersores de
sementes. Assim, quando comem a fruta, a semente é lançada em áreas

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João Meirelles

distantes das árvores, juntamente com seus excrementos. Isso aumenta


a chance de as árvores colonizarem novas áreas e, portanto, aumenta a
possibilidade de sobrevivência da espécie vegetal. Diversos bichos são
dispersores de sementes. A cotia é o mais importante dispersor da castanha-
do-pará, o tucano é um dispersor eficiente do açaí, assim como diversos
papagaios e periquitos e outras aves.

Diário da Juju: Aqui vamos nós novamente de aviãozinho.


Desta vez, é uma carona de uma ONG que trabalha
na região da Cabeça do Cachorro, em São Gabriel da
Cachoeira, no rio Negro. A viagem foi das coisas mais
lindas de minha vida, só florestas e rios e serras...

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João Meirelles

Capítulo 16

O alto rio Negro e a Cabeça do Cachorro

Diário da Juju: Chovia a cântaros quando chegamos.


O rio Negro corria sereno, a água escura mesmo.
Em São Gabriel, a maioria da população é de
indígenas. Até no Exército há muitos índios.

– Chove, chove, chove! – Antônio está desanimado.


– Calma, vocês não vão ficar mofados! Aqui é assim mesmo, é a região em que
mais chove no Brasil. Vejam que o inverno é na estação oposta à de Belém
e à de Santarém. Afinal, estamos no hemisfério Norte. São cerca de três
mil e seiscentos milímetros de chuva por ano, uma coluna de três metros e
sessenta centímetros de chuva!
– Puxa, duas vezes a minha altura! É chuva pra burro! – Antônio fala.
– Lá no sopé dos Andes, no Equador, na Bolívia, na Colômbia e no Peru, chega
a chover o dobro. Ali há a estação de chuva e a de dilúvio. Observem como a
chuva cai. A cada cinco chuvas, uma é na forma de tempestades. Uma única
chuva forte pode significar duzentos milímetros, o equivalente à metade
da chuva de um ano todo no deserto do Saara. Por isso, o risco de erosão
é muito grande. Quando se desmata e se coloca a pastagem, o solo fica
exposto a esta chuva forte e em grande quantidade. Uma chuva tropical
tem um impacto até quarenta vezes maior que uma chuva de proporções
semelhantes numa área temperada.
– Que bonito ver tantos índios! – alegra-se Juju.
Há um bom tempo, Juju observava o entra e sai de pessoas dos barcos. Notou
a presença de diferentes costumes indígenas e assim se manifestou.

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João Meirelles

– É verdade, mas a vida deles não é tão fácil. Somente nos últimos anos é
que os índios passaram a receber um pouquinho de atenção. Até há pouco,
eram tratados como escravos pelos seringalistas e pelos fazendeiros.
Sempre foram explorados, mesmo que de forma disfarçada. Os missionários
tratavam-nos como almas a serem salvas; os garimpeiros e traficantes, como
carregadores; os barqueiros, como cargas e os fazendeiros como mão de
obra barata. Imaginem que, neste município de São Gabriel da Cachoeira,
noventa por cento da população é formada por indígenas. São trinta e sete
etnias diferentes para menos de cinquenta mil habitantes, cada qual com a
sua cultura, as suas tradições, as suas línguas... Não é impressionante?
– Verdade, muita cultura tio, muita cultura! – Antônio está feliz com esta
oportunidade de vida.
– No Brasil, considera-se índio aquele que se declara como tal. Um dos
maiores antropólogos, Eduardo Viveiros de Castro, assim diz: “No Brasil,
todo mundo é índio, exceto quem não é”.
– Não entendi! – Antônio reclama.
– Ser índio depende de uma autodeclaração. O IBGE observa que a população
indígena do Brasil cresceu muito a partir do censo de 1990. No censo de
2010, havia mais de oitocentos mil índios! Mas muitos índios, especialmente
aqueles que vivem nas cidades, não gostam de se declarar índios. O fato é
que temos muito ainda a avançar, para reconhecer os direitos destes povos,
os povos originários.
– Isto é bonito: ter ainda tanto índio no Brasil, não é, tio? – Juju comenta.
– Claro! É um indicador de que ser índio é menos vergonhoso. Na Amazônia,
estão seis de cada dez indígenas do Brasil, mais de meio milhão de pessoas.
Mas, se comparada à população da Amazônia brasileira, a população
indígena representa meros dois por cento. E, em relação ao Brasil, os índios
estão próximos de meio porcento da população. Incluam-se aí os índios
vivendo em áreas urbanas, que devem corresponder a mais de um terço da
população indígena.
– Nossa, é muito índio morando na cidade! – Antônio comenta.
– E isso não quer dizer que estejam vivendo bem. A maioria mora nas
periferias, desassistidos, com baixo acesso a serviços públicos e num
processo acelerado de perda de identidade. O seu atendimento de saúde é
precário, a educação em suas línguas nem sempre está disponível e, mesmo
assim, é bastante limitada. Na Amazônia, há mais de cento e cinquenta
povos distintos, de um total de cento e oitenta povos para o Brasil. A maior

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parte é de sociedades com poucos indivíduos, com menos de mil pessoas.


Somente três povos possuem mais de dez mil pessoas: os Guajajara, do
Maranhão; os Makuxi, de Roraima; e os Ticuna, do Amazonas, daqui desta
região. Além disso, a Amazônia é das últimas regiões do planeta onde há
cerca de cinquenta grupos não contatados.
– Tio, por que a gente ignora estas coisas? – Juju fica chateada de saber pouco
sobre os povos originais do Brasil.
– Porque, durante a Colônia, os portugueses consideravam os índios seres
inferiores e só os viam como mão de obra gratuita. No Império e na
República, em raríssimos momentos, a elite brasileira interessou-se em
defendê-los e reconhecê-los. Na escola, então, a questão indígena foi
sempre tratada como algo secundário, folclórico, sem dar voz à diversidade,
a sua riqueza cultural, a suas preocupações. Índio sempre foi tratado como
um ser distante da sociedade brasileira. É preciso mudar, afinal, são tão
cidadãos como nós. Ademais, temos muito a aprender com as diferentes
nações indígenas – ouvir a sua visão de mundo, como cuidam dos filhos,
como se dá a educação, como tratam da saúde e respeitam a natureza...
São milhares de anos buscando, com cuidado, carinho, respeito, a melhor
maneira de aproveitar os recursos naturais, com o mínimo impacto ambiental
e o menor esforço. Somente para mencionar algumas contribuições, os
povos da Amazônia e das Américas ensinaram o mundo a usar a rede de
dormir, a utilizar técnicas de pesca e caça e de cultivo agroflorestal – nesse
caso, envolvendo centenas de plantas, como o milho, a mandioca, a batata-
doce e o cacau. Ensinaram-nos a transformar fibras vegetais em dezenas
de cestos até o sofisticado tipiti; apresentaram-nos gomas como a borracha
e domesticaram o pato-moscovo, aquele de cor preta, que tem uma crista
vermelha. E isso sem falar nas dezenas de plantas medicinais...

Diário da Juju: Próxima parada, ou melhor, subida: pico


da Neblina, ponto mais elevado do Brasil. Agora, com o
GPS, a sua altura foi revista, eu anotei, ele tem 2.993,78
m. Ainda bem que eu estava em forma. No caminho,
encontramos um grupo de turistas, pareciam preparados
para a guerra, de tão bem equipados. Só que as mochilas
deles deviam estar bem pesadas. Mas quem suava mesmo

Viagem à Amazônia | 184


João Meirelles

eram os pobres mateiros, muitos deles indígenas, para


quem, a cada lance de subida, a carga era transferida.

– Nossa, tio, ainda tem gente vestida de aventureiro, de rambo? – Gabriel


morre de rir.
– E como! A Amazônia atrai tanto esportistas como aventureiros, e turistas
que se acreditam desbravando a selva. É mesmo engraçado ver sair, em
Manaus, no aeroporto, aqueles casais mais idosos, vestidos com roupa
cáqui, prontos para a selva. Eles se comportam assim porque estão mal
informados, não sabem que poderiam ter uma experiência de ecoturismo
autêntico, que respeite as comunidades e a natureza, o turismo de base
comunitária. O turismo que a Amazônia vende ao mundo está mais para uma
terra da fantasia, como se fosse um seriado de televisão, em que o turista vai
dominar a natureza.
– Que pena, eles estão perdendo uma oportunidade e tanto de conhecer
como é a verdadeira Amazônia. Esta que estamos conhecendo, não é, tio? –
Juju arremata.
– Seria legal se eles aprendessem com os monitores que nos acompanham
nestes passeios e fossem conhecer uma comunidade tal qual ela é –
conclui Gabriel.
– Justo! Há trabalhos sérios de ecoturismo na Amazônia, é só o turista
pesquisar um pouco. Em Mamirauá, no município de Tefé, aqui no Amazonas,
está o Instituto Mamirauá, que envolve pesquisadores e comunitários. Lá
se podem conhecer lagos, observar pássaros e muitos animais, a pesca do
pirarucu e as várzeas. Em Alta Floresta, no Mato Grosso, está o Cristalino
Jungle Lodge, um bom lugar para observar aves em florestas de terra firme,
numa operação empresarial bem organizada. Partindo de Manaus, há
diferentes passeios e hotéis, desde os mais simples aos mais sofisticados,
como o Mirante do Gavião, em Novo Airão, de onde também parte o barco
Jacaré, que percorre as Anavilhanas, o belo conjunto de ilhas do rio Negro,
considerado o maior arquipélago fluvial do mundo. Há ainda muitas opções a
partir de Santarém, em parceria com o Projeto Saúde e Alegria ou de outros
operadores locais, o que permite a visita a comunidades no baixo Tapajós e
no rio Arapiuns, e assim por diante... A lista está crescendo!

Viagem à Amazônia | 185


João Meirelles

– Que legal! Daqui pra frente quero muito visitar a Amazônia, mais e mais! –
empolga-se Juju.
– Daqui vamos a Manaus, e dali partimos para subir o rio Solimões.

Viagem à Amazônia | 186


João Meirelles

Capítulo 17

De Manaus a Tabatinga pelo rio Solimões

– Tio, sabe o que eu percebi: todas as casas têm ar-condicionado! –


Gabriel observa.
– Verdade. Manaus, Belém, enfim, todas estas cidades nada aprenderam com
a arquitetura tropical, como era a casa dos habitantes originais desta terra,
que usava palha na cobertura. Nem mesmo ouviram os primeiros europeus,
que desenvolveram uma arquitetura de madeira, como a dos chalés do
período da borracha, que respeitava o sentido do vento; posicionavam
as casas para aproveitar o sol da manhã, deixavam o seu entorno bem
arborizado, não construíam uma casa tão coladinha na outra... Hoje casa de
madeira é coisa de pobre. Teto de palha é coisa de pobre, provisório. Bom
hoje é caixote de cimento e vidro, muito vidro... O que, somado a projetos
arquitetônicos inadequados, torna os ambientes mal ventilados... Na
verdade, é um retrocesso esta arquitetura moderna que falsamente busca a
sustentabilidade por este caminho...
– Verdade, a casa vira um forno, tio – Gabriel conclui.
– Pior, muitos locais tornam-se habitáveis somente quando tem um ar-
condicionado, o que significa um alto consumo de energia. Além disso,
cada vez mais as pessoas buscam morar em prédios. E esses prédios criam
verdadeiros paredões, e os bairros ficam cada vez menos ventilados. Na
rua, o asfalto e o concreto substituem as árvores; os quintais desaparecem,
e assim as cidades se tornam cada vez mais quentes. Não é um fenômeno
específico da Amazônia, mas aqui, como região quente e úmida, temos
que encarar isso como uma questão de saúde pública. Mas, infelizmente,
na maioria das cidades, a arborização, as praças, os espaços verdes, ainda
que pequenos, e os limites para a construção de prédios parecem não ser
algo relevante. O poder público deveria prezar cidades mais confortáveis.
Isso, claro, como tudo, depende de uma sociedade organizada, que exige
seus direitos. Enquanto tivermos governantes despreocupados com a saúde

Viagem à Amazônia | 187


João Meirelles

pública, as cidades serão cada vez mais caóticas.


– Tio, o que tem mesmo por aqui é muita grade. Só vejo é casa-gaiola! – Juju
complementa.
– Bem observado, Juju. Muros altos, muitas grades, cercas elétricas... É a
cultura do medo, a violência tomando conta do imaginário. A questão é:
quem ganha com isto?

***

– Todos prontos? As redes estão armadas, vamos navegar por muitas horas
subindo o rio Solimões. Por um tempo, será dia e ainda poderemos ver
um pouco das margens deste grande rio, que depois troca de nome para
Amazonas quando recebe o rio Negro. Observem que árvore espetacular
é aquela. Um colosso sobressaindo na floresta! As grandes árvores da
Amazônia em geral alcançam cinquenta metros de altura, o que equivale
a um edifício de vinte andares, e pesam algumas centenas de toneladas. A
maior de todas é um angelim-vermelho com oitenta e oito metros, entre o
Pará e o Amapá. Numa grande árvore como esta sumaumeira que estamos
admirando, pode-se encontrar mais de uma centena de espécies de
samambaias, bromélias, cactos, aráceas e outras formas de vida vegetal.
Se contarmos as bactérias, os vírus e os fungos, chegaremos a dezenas de
milhares de espécies. E isso sem falar nos animais, as milhares de espécies
de insetos, os mamíferos, as aves... Quando um gigante destes cai na mata,
uma comunidade inteira de vida, que levou centenas de anos para alcançar
aquele estágio, encerra-se abruptamente.
– Que dó, tio! – Juju lamenta.
– Bem, é o ciclo da vida. É uma luta incessante pela sobrevivência. Algumas
árvores chegam a mais de quinhentos anos. Porém, a maioria tem uma vida
mais breve do que se imagina, menos de um século, devido aos fortes ventos
e ao trabalho incessante de cupins devorando-as vivas!
– Ai, que horror, tio! – Juju completa.
– Bem, para se proteger dos ventos, muitas árvores que alcançam o dossel,
que é a parte superior da floresta, possuem sistemas de troncos que se
abrem próximos ao solo, como se fossem asas laterais. São as raízes
tabulares, as sapopemas. Além disso, as copas das árvores apoiam-se umas
nas outras, e há também cipós e lianas, que fazem o papel de amarras, como

Viagem à Amazônia | 188


João Meirelles

se fossem um grande barco a vela.


– E aí, tio, são muitos tipos de vegetação aqui na Amazônia? – Gabriel pergunta.
– O IBGE identifica no bioma Amazônia do Brasil setenta tipos de vegetação
não alteradas pelo homem. É o que chamamos de ambientes não
antropizados. Há, também, seis tipos de paisagens alteradas pelo homem,
antropizadas. E isso sem contar os subsistemas, o que multiplicaria por
quatro os tipos de ambientes. O importante é entender os oito grandes
grupos: 1. as campinaranas, formações de campo aberto, típicas do rio
Negro; 2. as florestas estacionais deciduais ou semideciduais, ou seja,
aquelas árvores que perdem parte das folhas (semideciduais) ou as árvores
que perdem todas as folhas (deciduais), mais presentes no sul e no leste
da Amazônia, pois são as áreas mais secas; 3. as florestas ombrófilas
abertas, aquelas que, por causa do grande intervalo entre uma árvore e
outra, permitem que a luz penetre até o chão; 5. as florestas ombrófilas
densas, aquelas que são de mata fechada, em que a luz entra menos; 6. as
formações pioneiras com influência fluvial ou marinha – tanto as várzeas, no
caso das áreas inundadas por rios, especialmente os rios de água branca,
como os manguezais; 7. as savanas amazônicas, ou seja, as formações de
cerrados na região, como vimos em Monte Alegre; 8. por fim, os refúgios
montanos, como no monte Roraima, também chamados de tepui, mas são
bem raros.
– Se lembrar as oito formações já é difícil, imaginem se vou me lembrar das
setenta! – completa Gabriel.

***

– Vejam como navegamos muito! Quase três dias para chegar a Coari. Vocês
devem estar cansados de tanto balançar na rede e jogar conversa fora! Aqui
é a região em que a Petrobras explora o gás natural. São dois gasodutos,
longos tubulões de metal com mais de quatrocentos quilômetros cada,
enterrados, por onde o gás natural é levado. O primeiro de oeste a leste,
acompanhando o Amazonas, de Coari a Manaus, e o segundo de Coari a
Porto Velho. Ontem passamos por Tefé, mas vocês dormiam, e aqui estamos
nós na fronteira do Brasil com a Colômbia. Tabatinga do lado brasileiro e
Letícia, na Colômbia. A quase quatrocentos quilômetros rio acima, está
Iquitos, no Peru.
– Nossa, tio, é muita informação, como é que eu vou guardar isso tudo? –

Viagem à Amazônia | 189


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Antônio reclama.
– Pois é, se tu fizesses um diário como eu, estarias bem! Mas não, fica aí,
dormindo o tempo todo! – Juju não perde a chance de provocá-lo.
– Na fronteira entre o Brasil e a Colômbia, o rio Solimões muda de nome para
Marañon. Em verdade, o Amazonas troca sete vezes de nome. No Brasil,
são dois nomes: Solimões, de Tabatinga ao Negro, e Amazonas, até a foz.
Da nascente à foz, ele desce mais de quatro mil e setecentos metros, quase
tudo em território peruano. Dentro do Brasil, de Tabatinga à foz, desce meros
sessenta metros em três mil e quinhentos quilômetros, uma média quase
imperceptível de um centímetro e sete milímetros por quilômetro!
– Tá entendido por que se chama planície amazônica! – Antônio brinca.
– Além disso, estamos falando do rio mais longo do planeta.
– Ué – Juju abriu a boca – a minha professora disse que era o Nilo, na África!
– Ela está desatualizada. Quando ela estudou, o Nilo, de fato, era o mais longo.
Hoje, com o uso de satélites e de aparelhos de medição mais precisos, como
o GPS, diversos mitos da geografia estão sendo esclarecidos. O Amazonas,
segundo o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), possui cerca
de seis mil e seiscentos quilômetros por um critério de medida e quase sete
mil quilômetros por outro. E tem mais: é o rio de maior volume de água e
com a maior foz no mundo. Na verdade, trata-se de um delta, um megadelta,
se considerarmos que no mesmo delta está o delta do rio Tocantins e de
outros menores, como o Guamá, que nem é um rio tão pequeno assim.
– Mas o rio aqui é muito barrento! Que água suja! – reclama Antônio. – Como
vou nadar?
– A água é barrenta, pois todos os rios que vêm dos Andes carregam muitos
sedimentos. São os Andes em decomposição. É a terra dos depósitos dos
períodos glaciais que caracterizam o Amazonas e seus formadores. Por isso,
nos Andes os deslizamentos de terra são frequentes. Mas vamos falar dos
desafios desta fronteira. Se antes portugueses e espanhóis se temiam, agora
os problemas são de outra natureza. O narcotráfico é um dos principais
desafios. E com o narcotráfico vem o tráfico de armas, de animais, de
plantas e de madeiras nobres, a prostituição, a exploração infantil, além do
contrabando de produtos importados, vendidos por camelôs nas ruas das
cidades do Brasil.
– Nossa, tio, então muito do que parece legal é ilegal? – preocupa-se Juju.
– Sim. Nestas regiões de fronteira, aqui nos rios Javari, Juruá e Solimões, a

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João Meirelles

biopirataria é preocupante. Na verdade, os especialistas preferem falar de


biogrilagem. São tantos os casos que se estudam leis no Brasil e em tratados
internacionais que sejam mais severos para definir o uso de biocomponentes.
– E o que são biocomponentes? – Juju pergunta.
– São os princípios ativos de plantas e de animais de interesse para a ciência,
para a fabricação de remédios, para cosméticos, para conservar alimentos
e para uso em diversos processos industriais. Algumas descobertas geram
lucros enormes. O problema é que as empresas e os cientistas patenteiam
aquilo a que não têm direito, ou seja, o que pertence aos países ou
comunidades indígenas ou povos tradicionais onde o vegetal ou o animal é
encontrado e utilizado há gerações em processos desenvolvidos localmente.
Um caso conhecido é o de uma empresa japonesa que registrou o cupuaçu
em seu nome, e o Brasil demonstrou que no Japão não dá cupuaçu e que
essa planta é conhecida há séculos, se não milênios. Há diversos casos de
registro da andiroba, de copaíba, e até do curare, um poderoso anestésico...
Há até um cientista inglês que patenteou como sendo dele uma planta, a
cunani, estimulante do sistema nervoso.
– Tio, acho que um cara como esse não devia ser chamado de cientista e, sim,
de biopirata! – enfurece-se Gabriel.
– E tem ainda o tráfico de animais silvestres, considerado o terceiro
maior comércio ilegal do mundo, depois de armas e de drogas ilícitas.
Quem movimenta esse mercado são os países ricos, onde indivíduos ou
organizações compram os bichinhos como pet, para estimação, ou para
algo ainda pior, para tirar-lhes a pele, chifres, dentes, ossos, carne ou, mais
recentemente, os biocomponentes. A Rede Nacional de Combate ao Tráfico
de Animais Silvestres (Renctas), uma ONG brasileira que trabalha com a
questão, acredita que sejam retirados de seus ambientes naturais algumas
dezenas de milhões de animais no Brasil todos os anos. O pior é que, de cada
dez animais, só um sobrevive.
– E que bichos são mais procurados? – Gabriel quer saber.
– Depende da região. Lá em Belém e Macapá, são os curiós, um passarinho
escuro, muito valorizado por seu canto. Um curió cantador chega a valer mais
de dez mil reais! O problema é que os homens acham bonito desfilarem com
as suas gaiolas penduradas no dedo ou na bicicleta. Acham que isso é um
símbolo de masculinidade.
– Pra mim, é covardia! – Juju rosna.
– Pra mim, é machismo besta, coisa de arrogante! – completa Gabriel. – Será que

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o homem não aprendeu que lugar de bicho é na natureza? Que coisa obsoleta!
– É esse o problema. No Brasil, há milhões de papagaios, periquitos, curiós,
sabiás, além de macacos, tartarugas e outros bichos silvestres que estão
presos. Pela legislação, é proibido, a não ser que o animal venha de um
criador registrado no Sistema Nacional de Gestão de Fauna Silvestre
(Sisfauna), do Ibama, mas são pouquíssimos os animais regularizados.
– Pra mim, é o homem dizendo pro bicho: eu sou forte, tu és besta! Eu te ponho
na gaiola. Eu mando e tu cantas pra mim! – Juju espuma de raiva.
– E tem ainda o tráfico de aranhas, cobras, sapos, borboletas, peixes
ornamentais, a lista é enorme... Até em websites de venda de mercadorias,
tu encontras gente vendendo animais vivos, além de artefatos com peles,
penas e partes de animais. Prestem atenção, meninos, porque no Brasil
é proibido vender qualquer objeto com penas, pele ou parte de animais
silvestres! Mesmo os índios não podem vender. Podem preparar para si
próprios, para o seu grupo, mas não para comercializar.
– Mas eu li na internet que há um criadouro legal de jacaré para tirar o couro,
de tartaruga... – Gabriel comenta.
– Verdade, novamente são os criadouros legais, registrados no Ibama. Há
de outros animais, os mais comuns são aqueles para peles, como os de
jacaré, e para a produção de carne, como os de tartarugas, porcos do
mato e capivaras. A legislação brasileira proíbe a caça, com exceções para
as populações tradicionais em determinadas condições, como reservas
extrativistas ou terras indígenas e, mesmo assim, sob determinados limites.
– Mas, tio, é um ato muito violento contra os animais – manifesta-se Juju.
– Concordo, milhões de pessoas no mundo todo entendem as coisas dessa
maneira. No entanto, para alguns, a caça é uma questão de sobrevivência;
para outros, um rito cultural relevante. As presentes e próximas gerações
terão que discutir o que é eticamente aceitável e o que garante a
conservação das espécies caçadas. Bom, nossa viagem prossegue. Daqui
vamos voar para Lábrea, no sul do Amazonas, preparem-se.

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Capítulo 18

De Lábrea a Rio Branco, passando por Boca do Acre


– Boi, boi, boi! Tio, será que este povo não tem criatividade? – Gabriel indigna-
se com a expansão da pecuária.
– Gabriel, a questão é mais complexa. Para os pequenos agricultores, aqueles
que estão em assentamentos ou que se instalaram por conta própria, e
mesmo os moradores tradicionais, como os ribeirinhos, a pecuária é, na
maioria das vezes, a principal alternativa de geração de renda local, pois as
outras atividades pagam pouco. Para os grandes proprietários, a questão
deve ser considerada de outra maneira, afinal, eles podem realizar estudos e
diferentes tipos de negócios. O que estamos observando aqui nesta região é
gravíssimo: o fracasso da civilização humana na floresta tropical.
– Como assim? – Juju pergunta.
– Resumindo: somos incompetentes a ponto de nos rendermos à pecuária
bovina extensiva como praticamente a única forma de gerar renda numa
região como esta. Desprezamos os milhares de anos de conhecimentos das
populações tradicionais e as inúmeras conquistas das modernas ciências
agrárias, orientando como produzir a partir do ambiente sustentável e em
respeito às sociedades tradicionais. Até agora, a pecuária avançava de
sul a norte, no Mato Grosso, em Rondônia e no Acre, e de leste a oeste, do
Maranhão ao Pará, e daí por diante. Vocês testemunharam aqui a enorme
destruição das florestas do sul do Amazonas. Isso ocorreu em pouco tempo.
Estamos passando pela mesma situação na região entre o Xingu e o Tapajós,
até então somente de florestas e hoje com diversas áreas desmatadas para o
boi... Um ditado antigo diz: “ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba
com o Brasil”. A gente teria que mudar esse slogan para “ou a Amazônia
acaba com o boi, ou o boi acaba com a Amazônia!”
– Tio, mas como isso é possível? – Gabriel não entende.
– Não se trata de ser possível ou não, trata-se de uma necessidade. O boi
não estava aqui. Foi trazido. É fruto de um conjunto de decisões bastante

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recentes, dos últimos cinquenta anos. Até então, a pecuária limitava-se a


alguns campos naturais e não resultava em grande impacto socioambiental,
como era no Marajó ou nas várzeas. Agora, não. O boi está destruindo o
nosso futuro. É preciso compreender o que significa o impacto dessa decisão
para o futuro do Brasil e da Amazônia e mesmo o seu impacto para o planeta.
Para essa imensa mudança cultural, teremos que ser radicais. Além de
proibir e de vigiar o avanço da pecuária, será preciso oferecer alternativas de
renda mais atraentes do que aquelas existentes no momento. Se fizéssemos
as contas, para o Brasil seria mais barato oferecer “bolsa-família pecuária”,
para que se abandonasse a pecuária, o que teria grande impacto na taxa de
desmatamento e nas queimadas!
– Parece fácil, tio, mas não vejo como! – preocupa-se Gabriel.
– Nada fácil, mas é preciso agir imediatamente. O melhor caminho é
envolver toda a sociedade neste debate, democraticamente, compartilhar
o conhecimento científico tão profundo que se adquiriu nestas últimas
décadas sobre o impacto da pecuária bovina extensiva na Amazônia e no
planeta... E testar diversos modelos de agrofloresta, de integração entre
atividades econômicas, para ver o que dá certo.
– Tio, tio, um detalhe muito importante, tu falas sempre em “pecuária bovina
extensiva”, por quê? – Juju interrompe.
– Pecuária, pois toda a criação de animais chama-se pecuária, ainda que
a prática levou a tratar apenas da criação de bois ou de búfalos. Bovina,
porque se trata de bois e não de outros tipos animais. Extensiva, e aqui
a parte mais importante, porque é o gado criado solto, no pasto, que se
alimenta, portanto, de capim, e não de cereais, de ração, como em outros
lugares onde o capim não é tão abundante como aqui.
– Ah, certo, obrigadinha, tio – Juju segue atenta.
– Muito obrigado por perguntar, Juju, porque o pior é ficar ouvindo sem saber
exatamente o que estamos discutindo. Pois bem, a pecuária bovina extensiva
é a atividade econômica que utiliza mais espaços no Brasil, ocupa cerca de
vinte e cinco por cento do território brasileiro. O problema é que ela gera
pouca riqueza e resulta em altíssimo impacto social e ambiental. Regiões de
pecuária extensiva são pobres, na maioria das vezes. E, pior, a desigualdade
é enorme, a violência explode pela falta de empregos, de oportunidades,
pelos desastres ambientais gerados. Onde tem pecuária é imenso o
feminicídio, todos os abusos contra a mulher. Por isso, a sociedade precisa
discutir alternativas para a pecuária como principal atividade econômica. O

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João Meirelles

que não podemos é demorar muito.


– Por que não podemos demorar muito? – Antônio pergunta.
– Porque a capacidade dos ambientes naturais para suportar tantas
mudanças e em pouco tempo é bem limitada. A pecuária extensiva destrói
os rios, elimina as árvores, exige queimadas todos os anos, enfim, muda
completamente a condição natural do lugar. Imaginem se vocês fossem esta
floresta aí que estão vendo. Ademais, as injustiças sociais, a desigualdade, o
tratamento dado à mulher nas zonas de pecuária precisam ser enfrentados
para valer.
– Boa ideia, tio, gostei! – Gabriel emenda.
– E imaginem se, de repente, tirarem todas as árvores, a proteção de nosso
corpo. Ficarmos nus, expostos ao sol forte, nosso solo – a nossa pele – sendo
destruído pela chuva, pelo vento, pelo pisoteio do gado para compactar o
solo! E, a cada ano, queimarem tudo, só para manter o pasto limpo! Isso é a
criação de boi, um verdadeiro desastre, que muda radicalmente o ambiente.
Pior, imaginem que nesta região vivem, há centenas de anos, diversos povos
tradicionais. Bem, este é o cenário da história atual da Amazônia.
– E como sair dessa encrenca, tio? – Juju quer saber.
– Os cientistas e mesmo os fazendeiros mais modernos, conscientes do
alto impacto da pecuária, já encontraram e testaram diversas alternativas
econômicas, até muito mais rentáveis que a pecuária extensiva, para que
o ambiente seja minimamente respeitado e as sociedades locais tenham
melhores oportunidades de renda, emprego e qualidade de vida. Vamos
começar com algo bem simples: por que a merenda escolar servida aqui,
nesta escola que vocês estão vendo ali, não é resultado do que se produz na
própria região?
– Puxa, pergunta difícil, esta me pegou, tio! – Antônio coça o queixo.
– Porque raramente há interesse da elite econômica e política local em
fortalecer a economia da agricultura familiar e do extrativismo. Como é que
uma região tão rica como esta aqui, que tem peixe à vontade, açaí, frutas,
cupuaçu, cacau, pode oferecer de merenda escolar suco artificial, bolacha
e produtos enlatados altamente salgados e com conservantes de merenda?
Pior, esses produtos vêm de muito longe, de outras regiões do Brasil, e assim
não geram emprego no local, não se compra do agricultor local.
– Nossa, que vergonha! – Juju grita.
– Para mim, isto é desumano, desonesto. É um crime com nossas crianças. E,

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claro, quando há grandes volumes de dinheiro para a compra de merenda, há


espaço para a corrupção, para o jogo de interesses políticos, para a influência
econômica. O dia em que a merenda escolar for decidida pela associação de
pais e mestres e não pelo prefeito municipal, teremos um país mais decente.
– Vocês se lembram das grandes indústrias de Manaus e do entorno de Belém.
Ali se passa a mesma coisa, os milhares de trabalhadores que comem nos
refeitórios dessas empresas praticamente não comem produtos das localidades
vizinhas. Como queremos falar de desenvolvimento justo se o agricultor local
vive na miséria e a empresa do restaurante industrial praticamente só compra
de produtores a três ou quatro mil quilômetros de distância – são carretas e
carretas do Sul e do Sudeste do Brasil, com frango congelado, leite, farinha de
trigo e tantos produtos alternativos que, certamente, encontrariam substitutos
na região se a economia local fosse estimulada.
– Laticínios? Leite, queijo, manteiga, iogurte? – Gabriel me interrompe. – Mas
isso vem da pecuária, tio! – e reclama da falta de coerência.
– Vocês devem ter percebido que sempre falo de pecuária extensiva. A
produção de leite e de derivados exige melhor manejo do rebanho e,
portanto, uma pecuária mais “intensiva”, ou seja, usando menos área,
criando mais empregos por hectare e gerando renda maior no local. Não
há como transformar todo o rebanho de dezenas de milhões de cabeças de
gado, praticamente metade do rebanho do Brasil, apenas em gado de leite,
mesmo porque não haveria comprador para esses produtos. Uma parte, sim,
inclusive isso evitaria importar esses produtos de outras regiões do Brasil
como acontece hoje. Basta ir a um supermercado na Amazônia e anotar trinta
produtos – os que vêm de outras regiões, os que vêm da própria Amazônia.
Melhor, quando estiverem com o carrinho de supermercado cheio, verifiquem
quantos produtos são da região e quantos são de fora da Amazônia.
– Gostei, vamos fazer esses joguinhos, bem simples, né? E aí, tio, isso é
possível? Eu falo da frase que inventaste aí: “ou a Amazônia acaba com o boi,
ou o boi acaba com a Amazônia!” – agora é Juju quem pergunta.
– Condições técnicas, há. É possível melhorar radicalmente a produtividade
da pecuária para que o mesmo rebanho ocupe um quinto ou menos da área
atual de pastagens. Se hoje temos cerca de setenta milhões de cabeças
de bovinos em cerca de setenta milhões de hectares, conseguiríamos, em
pouco tempo e com algum esforço, reduzir essa área para menos da metade.
– E o que a gente faria com a área que foi liberada, tio? – Gabriel pergunta.
– Uma parte jamais deveria ter sido ocupada – as beiradas de rio, as áreas

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João Meirelles

alagadas, os topos de morro, as unidades de conservação, as terras


indígenas, enfim, é só seguir a legislação e ouvir os técnicos. Em alguns
casos, basta deixar que a própria natureza se encarregue da recuperação.
Mas, em outros, é preciso cortar a erosão, plantar para restaurar o
ambiente. É o movimento que cresce dia a dia, a restauração florestal. Aqui
na Amazônia, há até um grupo de empresas, pesquisadores, ONGs etc.
pensando soluções para a restauração da região. O importante é impedir que
o gado siga como motor de destruição. O fogo também precisa ser evitado,
a todo custo. Nas áreas propícias para atividades econômicas, é preciso
ouvir os técnicos e direcionar a economia para a agrofloresta, que tem
como resultado diversos produtos e serviços. Vejam vocês que a vocação
da Amazônia é a economia florestal. Se tivermos ambientes que imitam as
florestas, como o plantio conjunto de frutíferas, árvores para castanhas,
madeiras, fibras etc. e serviços como a retenção de carbono, o ecoturismo,
a polinização etc., teremos mais sucesso a longo prazo, respeitando o
ambiente. Mesmo monoculturas, como a palma, também chamada de dendê,
e o eucalipto têm menos impacto que a pecuária.
– Como assim? – Juju questiona.
– A palmeira que produz o óleo de palma fica no mesmo lugar, como árvore,
produzindo por trinta e cinco anos; mesmo o eucalipto, que fica uns seis
a oito anos, tem menos impacto, porque se evita o fogo, a compactação
do solo pela pata do boi, a exposição do solo ao sol e a chuvas torrenciais.
Enfim, o que precisamos, a todo custo, é encontrar maneiras de produzir nas
áreas destruídas das florestas tropicais, recuperando seu solo, os serviços
ambientais, e gerando renda local sustentável, para que tenhamos um
planeta onde seja possível viver.
– Já sei, tio: o que falta é vontade política e interesse da elite! – rebate Juju.
– Isso mesmo, se apenas o agricultor familiar recebesse um pouquinho de
atenção, assistência técnica, acesso a crédito, transporte e assim por
diante, teríamos uma economia pujante na Amazônia. Afinal, há mais de
um milhão de famílias de pequenos agricultores na região. Ah, e tem mais!
O consumidor, eu, tu, Gabriel, todos nós precisamos consumir, de maneira
consciente, os produtos da Amazônia. Na hora de tomar um suco, por que
não escolher o suco de uma fruta daqui? Por que tomar suco de uva na
Amazônia? Algumas das frutas, como o camu-camu, por exemplo, tem trinta
e seis vezes mais vitamina C que a laranja! Na hora de comer um peixe, por
que não escolher um da Amazônia? Por que comer salmão, que vem do Chile
e recebe muitos antibióticos e anabolizantes e ainda exige um esforço de

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João Meirelles

importação de mais de um bilhão de dólares por ano para o Brasil?


– Já sei, já sei... Deixa-me adivinhar: mais uma mudança cultural! – e Juju ri.
– Juju, sem mudanças culturais e imediatas, em grande estilo, envolvendo
todos os meios de comunicação, não sobrará Amazônia para vocês
explicarem a seus filhos! É mudança de atitude, de comportamento, assumir
responsabilidade! O que se faz no Brasil na Amazônia é molecagem, é
pilhagem, bandidagem, difícil dar outro nome. O salmão virou uma carne
barata não faz vinte anos, por que insistir nesse caminho?
– Uau, tio, arrasou. Agora estou gostando – Juju completa.
– Bem, vocês têm alguma maneira melhor de definir o que estamos fazendo?
E não venham com o papo furado de que interesses estrangeiros estão
por trás disto! É uma destruição cem por cento brasileira, praticada por
brasileiros. Pior, estamos exportando destruidores e destruição para os
países vizinhos, como a Bolívia e o Peru, enviando os piores para destruir
por lá – garimpeiros, madeireiros, pecuaristas e até mesmo agricultores
irresponsáveis. Sem mudanças culturais, entupiremos o ar de dióxido
de carbono e de metano, pescaremos todos os peixes até a exaustão,
transformaremos a Amazônia numa imensa fazenda de gado. Isso porque o
homem é insaciável, quer mais, mais tudo – mais carne, muita carne, mais
madeira, mais grãos, mais minérios... Vivemos uma explosão de consumo
no âmbito mundial sem igual. Os dados recentes apontam para um aumento
de consumo de trinta por cento apenas em uma década. E vocês já sabem: a
capacidade que a Terra tem de resistir é limitada e cada vez menor.
– Verdade, tio, eu li que a pegada ecológica da humanidade já é maior que o
que o planeta tem para nos dar – Gabriel pontua.
– Certíssimo. Decisões tomadas agora, conscientemente, sem que as
alterações climáticas nos obriguem a mudar à força, são bem mais fáceis de
adotar, de aceitar. Temos que fazer perguntas duras, como esta: o Planeta
não conhecia boi na Amazônia há cinquenta anos, por que agora ele é
imprescindível? Se mudarmos agora, pouparemos as futuras gerações de
um colapso no acesso a recursos naturais, nas muitas vantagens de termos
esta grande biodiversidade. Evitaremos mais sofrimentos a comunidades
tradicionais, a agricultores, a todos, enfim. Mostraremos ao mundo que, sim,
somos capazes de tomar decisões em prol da vida, da humanidade, somos
honestos com o planeta e somos capazes de pegar o boi com as unhas!
– Tá certo, antes de mais nada precisamos de coragem! – Juju respira fundo.
– E então, a gente tem que sacrificar alguma coisa agora pra garantir a Amazônia!

Viagem à Amazônia | 199


João Meirelles

– Gabriel olha para o grupo todo, mas Antônio o interrompe, irritado.


– Conversa difícil, esta! Eu pensei que a gente vinha pra curtir a Amazônia, pra
curtir a natureza, pra ficar cantando com os passarinhos... Aqui tamos nós,
discutindo o futuro do planeta na beira do rio Purus! Tou é com a cabeça
quente! – Antônio está desgostoso com tanta preocupação nova.
– Não tem mesmo jeito de fugir da responsa, Antônio! – Juju está convencida.
– Com certeza. Vocês conhecem a “Grande Lei dos Haudenosaunee, da
Confederação das Seis Nações Iroquesas”, da América do Norte? Pois eu
vou ler para vocês: “Em cada deliberação, devemos considerar o impacto de
nossas decisões nas próximas sete gerações”. Por que não adotamos essa lei
como a primeira regra de nossa ação? A lei que guiará as gerações presentes
e as que estão chegando?
– Ô, tio, por que não escrevemos um livro com esta nossa conversa? Eu acho
que o nome dele deveria ser A Amazônia para as próximas gerações! – Juju
interrompe a conversa, morrendo de rir.
– Olha, Juju, não é uma má ideia. Se cada geração abranger vinte a vinte e
cinco anos, sete gerações é algo como daqui a uns cento e cinquenta anos!
Pois eu é que pergunto: como é que vocês leriam esse livro no meio do
século XXII? Como vocês explicariam a Amazônia daqui a um século e meio?
Como vocês justificariam o que estamos fazendo com a Amazônia para daqui
a sete gerações?
– Eu morreria de vergonha de contar que produzimos tanta miséria ao lado
de culturas e de uma natureza tão ricas! – Juju é a primeira a responder.
E continua: – É, eu não esperaria tanto assim pra resolver um montão de
coisas, não deixaria o problema pra próxima geração. O tio está mesmo
certo, precisamos agir! – Juju conclui.
– Pra mim, esta história de tirar a floresta e virar bife é mesmo absurda. Eu
também daria um jeito para que a floresta em pé valesse dinheiro, muito
dinheiro – completa Gabriel – Ah, e também não esperaria!
– E tu, Antônio, que estás aí querendo mudar de assunto?
– Vocês querem saber? Eu traria amanhã mesmo toda a minha classe aqui pra
viajar com a gente, viver isto tudo. Melhor, traria todo mundo do colégio. E
a gente iria fazer muita amizade, porque a gente iria discutir com os jovens
daqui, da nossa idade, de diversos lugares e, juntos, a gente deveria escrever
a nova história da Amazônia. A nossa história, juntos! – completa Antônio,
surpreendendo a todos com a brilhante proposta.

Viagem à Amazônia | 200


João Meirelles

– Interessante, Antônio, me emocionei. Tu sempre me surpreendes. É isso


mesmo. Se temos que tratar de um assunto difícil e que afeta milhões de
pessoas como neste caso, que compromete o futuro do Brasil e do planeta,
devemos agir com serenidade, objetividade, com profundo embasamento
técnico e, claro, com as partes interessadas, principalmente os jovens, com
voz plenamente ativa. Tu estás mais do que certo, pois os jovens são sempre
deixados de lado. Os mais velhos são teimosos, querem sempre dizer o que
é bom para eles... E se cada brasileiro, enquanto é jovem, digo, com espírito
jovem, vier tomar um banho sagrado no Amazonas, como fazem os hindus no
rio Ganges?
– Isso, tio, o banho da consciência, o banho iluminado... – Juju, maravilhada.
– Pois que cada brasileiro aceite vir para a região, conversar com os diferentes
povos daqui, com os amazônidas, da cidade, do meio rural. Falar da
Amazônia, conhecer o dia a dia das pessoas, compartilhar a casa, a comida,
os saberes e os fazeres. Enfim, sem viver a Amazônia, como será possível
contribuir com conhecimento de causa?
– Gostei, tio, viver a Amazônia, é isso. Por isso estamos aqui! – Gabriel, feliz.
– Mesmo aos amazônidas eu lanço esse desafio, pois muitos vivem numa
parte da região, mas não conhecem as outras Amazônias, não as percebem,
não as compreendem, não as enxergam como algo harmônico, com sentido
cultural. A Amazônia como um ser vivo, como algo único e que faz sentido
como um todo, e não como algo ferido e fragmentado, dividido, queimado e
destruído. Nada mais rejuvenescedor que combinar com todos os brasileiros
o futuro que queremos para nós mesmos: fazermos um grande pacto de que
não queremos esse futuro nefasto e medíocre para a Amazônia, para nós
mesmos, esse futuro terrível que só beneficia pouca gente.
– Tio, quando você vem com essas poesias malucas, eu gosto mais ainda de
você. Porque isso faz “muito” sentido, obriga a gente a pensar, a sair da zona
de conforto! – Juju encerra.
– Que bom, fico feliz que isso faça sentido! Quero retornar a um tema que
passou desapercebido. Gabriel está certo quando diz que é preciso uma
dose de sacrifício. Suspender a destruição, fazer uma “moratória” como se
diz tecnicamente e investir num novo plano, participativo, que acate todas
as visões, mesmo aquelas com as quais temos dificuldade em concordar. É
como se fôssemos poupar. Deixamos de gastar agora por acreditarmos que
algo melhor, que nos dará uma grande recompensa, será possível. Se todos
os habitantes do planeta adotarem o padrão de consumo de países que

Viagem à Amazônia | 201


João Meirelles

se fantasiam de mais desenvolvidos, como os Estados Unidos e os países


da Europa, com níveis altos de consumo de energia, de bens, de carne,
de alimentos, de equipamentos militares etc., não haverá Amazônia, nem
planeta que possa suprir essas muitas vontades. Se deixarmos a decisão
para as próximas gerações, vocês terão que escrever a nova versão deste
livro: Por que destruímos a Amazônia em uma geração?!
– Tá difícil, muita responsa pra nós! Ai de mim! – Antônio responde.
– Ignorar o problema é apoiar a destruição. Vocês terão que “explicar” por
que resolveram transformar a maior floresta tropical do planeta em um
cemitério indígena, em cinza e depois em pasto, ou por que as culturas dos
povos originais foram ignoradas e desapareceram ou viraram meras peças
de museu.
– Tio, tá certo, não podemos perder tempo! – convence-se Juju.
– Sim, mas tudo com calma, pensando as consequências de cada decisão, com
humildade, respeito aos modos de vida. A palavra de ordem não é apenas
“reduzir, reusar, reciclar”, os 3 “R” tão em voga. É preciso muito mais, temos
que “repensar”, “recusar” e agora “restaurar”. Antes de tudo, recusar-se a
compactuar com a destruição ao adotar um modelo de vida que o Planeta e a
Amazônia não suportam.
– Perfeito, vou adotar esse crivo! – Gabriel responde.
– Certo, usaste uma palavra bem local, “crivo” em vez de “peneira”, muito
bem. Quando se toma uma decisão corajosa, no início é difícil. Fica-
se envergonhado, porque é o primeiro e sente-se sozinho. Mas, depois,
percebe-se como a nossa intuição, o que sentimos intensamente,
transforma-se em vontade e depois em certeza; e não há força alguma
que nos faça mudar de ideia. Porque tudo agora, visto a partir desta nova
perspectiva, faz muito mais sentido. Um mundo novo abre-se para nós,
maravilhoso, com novas perspectivas, e assim a gente pode ser muito mais
feliz! Por isso estou propondo que discutamos a moratória geral – aqui não
se desmata mais, aqui não se toca fogo, aqui não entra mais gado, aqui não
se pratica mais pesca comercial em detrimento da pesca tradicional, de
subsistência, daqui não sai madeira e caranguejo contrabandeado e assim
por diante... Pedir um tempo, pedir a moratória, agir assim é sinal mais de
fortaleza que de fraqueza. É confessar-se ignorante perante esta explosão de
vida e de sociedades milenares que precisam ser protegidas e ouvidas. É um
ato de coragem.
– Mais que coragem, tio! A gente é mesmo muito arrogante! A gente precisa

Viagem à Amazônia | 202


João Meirelles

parar de ser sabichão! – Juju bate o pé.


– Justamente. A nossa arrogância está pondo tudo a perder. “Achamos”
que sabemos as melhores soluções para a Amazônia, para seus povos,
para a sua natureza. Os mais velhos “acham” o que é bom para os mais
novos. Os técnicos “acham” que têm as soluções técnicas para todos os
problemas da Amazônia. Os políticos “acham” que sabem o que seus
eleitores querem e decidem a portas fechadas. Tratar de temas tão amplos
e complexos como as questões amazônicas exige de nós um grande esforço,
ouvir os cientistas, ouvir os povos originários, ouvir diferentes vozes. Exige
disposição, vontade de seguir, sempre fazendo perguntas e mais perguntas!
Só não podemos entender o enfrentamento destas questões amazônicas
como um sacrifício. Ela é uma imensa fonte de vida, de prazer, de beleza, de
felicidade. Precisamos encontrar um tempinho em nossas vidas, nas vidas
que complicamos tanto, para pensar nas sete gerações para frente.
– Eu estou preocupado com uma coisa só: e quanto vai custar essa decisão?
Quanto o Brasil vai ter que gastar? Quanto o mundo vai precisar doar pra
gente tirar estes bois daqui? – Antônio pergunta.
– Verdade, Antônio, tocaste num ponto-chave, que sempre emperra qualquer
ação: dinheiro. Mas vamos falar um pouco de prioridades. Comparações, eu
diria. Eu ouvi dizer que os Estados Unidos gastaram somente com a guerra
do Afeganistão e do Iraque cerca de um trilhão de dólares nos últimos dez
anos, algo como quase vinte mil reais para cada norte-americano. Com
um por cento desse valor, poderíamos mudar a história da Amazônia e das
florestas tropicais do planeta, com projetos demonstrativos de agrofloresta,
com assistência técnica eficiente, sementes e mudas, educação de qualidade
e gratuita, em prol da sustentabilidade... Então, Antônio, dinheiro não falta. O
que falta é definir as prioridades certas. Antes de terminar o nosso passeio,
vamos discutir sobre o ciclo das águas. Depois a gente volta para esta
“conversa séria”! Vocês estão vendo aquela listra negra nas árvores daquela
margem? É a altura que o rio Purus chega no auge da cheia.
– Nossa, sobe tudo isso? – Gabriel quer saber.
– Rios como o Purus, o Juruá, o rio Acre, que passa em Rio Branco, e o Madeira,
enfim, os rios que vêm dos Andes bolivianos e peruanos chegam a subir
quinze metros e alguns até vinte metros desde o seu nível mais baixo,
quando estão mais secos. Mesmo o Amazonas sobe nove metros na fronteira
do Brasil com a Colômbia. Rios de águas azuis ou esverdeadas, cujas
cabeceiras estão em solos mais antigos e lavados, como o Xingu e o Tapajós,
sobem menos, cerca de quatro a sete metros.

Viagem à Amazônia | 203


João Meirelles

– Macaquinho, macaquinho! – Juju chama a atenção do grupo ao ver um bando


de macacos-de-cheiro pulando de uma árvore a outra. São dois, quatro, seis,
um bando...
– Nossa, aqui tem bastante bicho! – empolga-se Antônio.
– No sul do Amazonas, está uma das áreas de maior diversidade de macacos
do planeta. O recorde é do rio Aripuanã, afluente do Madeira, onde
pesquisadores encontraram vinte e uma espécies. Prestem atenção como a
floresta tropical exige dos mamíferos. Devem adaptar-se à falta de alimentos.
Quem é carnívoro, como os macacos, vira herbívoro, comendo frutos e até
folhas, além dos insetos. Eles também aprendem a viver na copa das árvores,
pois, se vierem ao chão, serão presa fácil para a onça e a jaguatirica.
– Pelo jeito, é uma luta pela sobrevivência que não para, é a vida toda –
conclui Gabriel.
– Isso mesmo. Bem, aqui de Lábrea iremos de carro até Boca do Acre e, dali,
para Rio Branco... Serão muitas horas sacolejando. Preparem-se.

***

– No fim do século XIX, o que hoje é o estado do Acre foi palco de disputas
entre o Brasil, o Peru e a Bolívia, por causa da coleta de borracha na mata.
Ao longo do século XIX, a borracha foi-se tornando um item de primeira
necessidade para as sociedades cada vez mais industrializadas da Europa
e dos Estados Unidos. Nações indígenas da América tropical utilizavam
diferentes espécies de borracha como impermeabilizantes. Os jesuítas
foram os primeiros a levar a informação para a Europa nos primeiros
séculos de contato, mas, somente em 1742, o francês Charles Marie
de La Condamine descreveu para a ciência as propriedades do látex, o
líquido extraído da seringueira. Falamos dele como o primeiro cientista na
Amazônia, vocês se lembram?
– Sim, sim – Gabriel faz sinal para continuar a história.
– Um século depois, descobertas, como a de Charles Goodyear,
revolucionariam o seu uso, tornando-a mais estável. Assim, a borracha
passou a ser amplamente usada em calçados, capas de chuva, artigos de uso
doméstico, equipamentos farmacêuticos e para diversos usos industriais.
Mas foram o automóvel e seus pneus que transformaram a borracha em
commodity, ou seja, em um produto de grande demanda, exigindo a sua

Viagem à Amazônia | 204


João Meirelles

produção em larga escala. Em 1888, a descoberta de um pneu com câmara


por John Boyd Dunlop levou à substituição da dura roda maciça utilizada
até então em carruagens, bicicletas e nos primeiros automóveis. A borracha
muda a Amazônia para sempre. Pela primeira vez, o Brasil passa a prestar
atenção e a interessar-se pela região.
– Nossa, então foi como uma corrida do ouro? Só que da borracha... –
Gabriel comenta.
– Com certeza, “ouro negro”, dizia-se da borracha. Mas foi um ciclo econômico
bem curto, bem diferente dos anteriores, durou menos de vinte e cinco anos.
O auge do chamado período da borracha foi de 1890 a 1911. Na primeira
década do século XX, os plantios de seringueira na Ásia já produziam em
larga escala, e a produção que vinha do extrativismo, ou seja, da coleta de
borracha na mata, perdeu muito de seu valor.
– Que coisa doida, o líquido de uma árvore nativa fez a Amazônia ser
importante pro mundo! – Antônio conclui, com sabedoria.
– A Amazônia transformou-se na maior produtora de borracha natural do
mundo. A busca por lugares onde houvesse árvores da borracha levou
os brasileiros a partir do Amazonas para o Acre, subindo os rios Purus,
Juruá e seus tributários. Para explorar a borracha, utilizava-se um sistema
perverso de contratação de mão de obra. Na prática, um tipo disfarçado
de escravidão. Esse sistema chamava-se “aviamento” ou “aviação”. A
denominação vem do verbo “aviar”, aqui com o significado de emprestar,
expedir, despachar. Primeiramente, um empresário, na época chamado de
coronel da borracha ou de seringalista, invadia uma área e formava, com
seus capangas, um seringal. Na maioria das vezes, o seringalista desalojava
indígenas e moradores tradicionais, forçando-os a trabalhar, e quem não
aceitasse era morto. Como a mão de obra local era insuficiente, o seringalista
contratava migrantes – geralmente do Nordeste, pois essa região passava
por grandes secas – para serem seringueiros, para trabalharem nas estradas
de borracha, as “colocações”.
– Nossa, o nordestino fugia da seca e caía nas garras de um coronel! – Juju protestou.
– Compreendeste bem! O seringalista fingia-se de bom patrão e adiantava
uma quantia para a viagem do seringueiro até o local; quando o seringueiro
chegava ao seringal, adiantava outro valor para as mercadorias necessárias
à sobrevivência em sua colocação, o nome dado ao conjunto de estradas de
seringueiras que deveriam ser cortadas diariamente. Com isso, o seringueiro
de cara endividava-se tanto com a viagem quanto com a compra de

Viagem à Amazônia | 205


João Meirelles

ferramentas para limpar as estradas de seringa e coletar a borracha, pólvora,


sal, açúcar, mantimentos e óleo para a iluminação à noite. A proposta era
descontar essa dívida da borracha entregue pelo seringueiro no barracão
do seringal. Claro, os preços das mercadorias que o seringalista repassava
ao seringueiro sempre eram absurdos e revoltantes, e o valor pago pela
borracha, irrisório.
– Que coisa feia! – Juju protesta.
– Pois é! Para se alimentar, o seringueiro teria que, além de tirar a seringa
(nome da borracha), pescar e caçar; quando o patrão permitia e se houvesse
terra firme, poderia plantar a sua roça de mandioca e milho e preparar a sua
própria farinha. Muitas vezes, porém, o seringueiro estava numa colocação
onde havia pouca caça ou pesca, ou onde as terras eram impróprias para
a agricultura. Rapidamente, o seringueiro percebia que era um escravo
do seringalista: por mais que trabalhasse, dificilmente saldaria os seus
compromissos. Estava amarrado para sempre a suas dívidas. Sua vida era
de isolamento, ameaças, doenças tropicais, cobras, escorpiões, onças e,
muitas vezes, conflitos com os índios, os verdadeiros donos do lugar. O
seringueiro não tinha a quem reclamar. Se fugisse, seria caçado e morto pelo
seringalista, sob a alegação de que lhe devia dinheiro. Dos que tentavam,
poucos escapavam. Pouquíssimos conseguiram quitar as suas dívidas e
deixar o seringal pela porta da frente. A maioria seguia uma dura vida. Mas
o colapso da borracha levou ao abandono dos seringais. Muitos retornaram
a seus lugares de origem ou mudaram-se dali, para tentar a sorte em
outros lugares, principalmente nos centros urbanos. A maioria morreu sem
assistência médica, depauperados por causa das péssimas condições de
alimentação e de moradia e do isolamento.
– Esse tal de coronel da borracha, perverso mesmo! – Antônio comenta.
– Mas o seringalista era só uma parte do sistema. No caso do Brasil, ele se
endividava com as grandes casas comerciais de Manaus e de Belém. No
Peru, era em Iquitos e, na Colômbia, em Letícia. Ali ele comprava os bens de
primeira necessidade para revender aos seringueiros, e para essas mesmas
casas vendia a borracha. Nessa cadeia de negócios, a casa comercial
endividava-se com o importador, em geral uma empresa europeia ou norte-
americana, que trazia as mercadorias de fora para as cidades daqui e
daqui levava a borracha por navios oceânicos. E tem gente que chama esse
momento da história de Belle Époque, Bela Época, um período de tantas
injustiças sociais!
– Nossa, tio, não acredito que isso tenha acontecido aqui, na nossa Amazônia!

Viagem à Amazônia | 206


João Meirelles

– revolta-se Juju mais uma vez.


– Como terra brasileira, o Acre tem pouco mais de um século. No final do
século XIX, mercenários financiados pelos seringalistas brasileiros e
por casas comerciais de Manaus subiram os rios Juruá e Purus e seus
formadores e entraram em solo boliviano e peruano. Ali se defrontaram com
os seringalistas bolivianos e peruanos, igualmente armados e financiados
por firmas norte-americanas e europeias. O conflito foi inevitável. No vaivém
de brigas e intrigas e tentativas de acordo, por breve período, os brasileiros
criaram um país independente, a República do Acre. No final, Brasil e Bolívia
assinaram um tratado, o Tratado de Petrópolis. Alguns anos depois, foi a
vez de Brasil e de Peru chegarem a um acordo. E, como tudo na Amazônia é
superlativo, o Acre, com cento e noventa e três mil quilômetros quadrados,
é pouco menor que o estado do Paraná, equivalendo a duas vezes Portugal.
Como parte do acordo com a Bolívia, o Brasil construiu a estrada de ferro
Madeira–Mamoré, para que a Bolívia pudesse exportar a borracha pelo rio
Amazonas e pelo Atlântico. A ferrovia evitaria a série de cachoeiras do rio
Madeira, na altura da atual cidade de Porto Velho, onde hoje há duas grandes
usinas hidrelétricas, Jirau e Santo Antônio.

Viagem à Amazônia | 207


João Meirelles

Capítulo 19

De Rio Branco ao Seringal Cachoeira e retornando

Diário da Juju: Nossa conversa estava tão boa que não


percebemos a longa viagem pelo asfalto esburacado entre
Rio Branco e o Seringal Cachoeira, em Xapuri. Meu tio
desceu do carro e foi sozinho olhar a mata do seringal.
Voltou com os olhos vermelhos. Deve ter chorado. Ele
disse que este lugar era muito importante pra ele.

– Aqui estamos, em plena friagem, com este vento frio dos Andes, quando
a temperatura baixa para quinze graus centígrados no Acre, em plena
Amazônia. Hoje vamos ouvir o chefe Joaquim Tashka Yawanawá. Mas antes
preciso contar a vocês a importância deste lugar.
– Tio, eu vi quando tu saíste da mata com os olhos vermelhos. Tu estavas
chorando? – Juju pergunta, com carinho.
– É verdade, aqui é um lugar simbólico na história da luta pela conservação da
Amazônia e de seus povos. Foi aqui que aconteceu o primeiro empate.
– O que é empate? – Antônio reclama, coçando a orelha.
– Empate é o processo de empatar, impedir que os grileiros ocupem uma terra
que não é deles para desmatar, tirar e vender a madeira e colocar pasto
e gado. Foi aqui, no final da década de 70, que, a mando de grileiros e de
fazendeiros vindos de outras partes do país, jagunços, capangas, pistoleiros,
o nome que vocês queiram dar, enfrentaram os seringueiros em diversas
áreas de Brasileia, Xapuri e Rio Branco. Imaginem um pequeno grupo
de seringueiros, desarmados, colocando o que mais amam, seus filhos e
parentes mais velhos, na frente dos tratores e motosserras, como uma

Viagem à Amazônia | 208


João Meirelles

barreira humana, e dizendo aos jagunços para que fossem embora, porque ali
ninguém iria derrubar a floresta. Enfrentaram os mandantes dos fazendeiros
só na conversa, ali, no meio do mato, sem apoio de governo, um ato pacífico.
Poderiam ter sido massacrados, mas o diálogo venceu. Isso foi de muita
coragem e bravura, como em poucos momentos na história da Amazônia.
– Tio, tô sentindo mesmo um friozinho na barriga. Toda arrepiada. É
emocionante! – Juju emociona-se.
– E as conquistas foram lentas. Vieram de muita discussão e negociação,
procurando organizar centenas, milhares de seringueiros e de outras
comunidades tradicionais, em sua maioria, comunidades isoladas e
acuadas, os castanheiros, os pescadores artesanais e tantos outros. Em
plena ditadura, os seringueiros contavam com o apoio de poucos setores
da sociedade, entre os quais parte da Igreja católica e alguns movimentos
sociais e sindicais. Em 1985, aconteceu em Brasília o Primeiro Encontro
Nacional dos Seringueiros, quando surgiu a proposta de criação de áreas
de reforma agrária para os extrativistas. Foi só no Segundo Encontro
Nacional dos Seringueiros, em 89, que se avançou com o conceito de
Reserva Extrativista como uma modalidade de assentamento extrativista.
Nesse momento, nasceu a Aliança dos Povos da Floresta, e pela primeira
vez seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco, índios e quilombolas
uniram-se para defender os seus próprios direitos.
– Viva, vitória! – empolga-se Juju.
– O decreto da criação das primeiras dez reservas extrativistas, entre as
quais a Reserva Extrativista de Cachoeira, esta aqui onde estamos, foi
assinado somente em 1990, ou seja, mais de quinze anos depois do primeiro
empate! Para isso, muitos sindicalistas e seringueiros morreram, inclusive
Chico Mendes, presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Xapuri,
assassinado por grileiros em 88, no quintal de sua casa, pelas costas, nas
vésperas do Natal, época de celebração da paz! Infelizmente, muito da ação
de Chico Mendes e de seus companheiros foi reconhecida somente após
o seu assassinato. Hoje a organização federal, subordinada ao Ministério
do Meio Ambiente, que cuida dos parques e reservas extrativistas e da
proteção da biodiversidade no Brasil chama-se Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade (ICMBio), em homenagem a esse guerreiro.
Vale observar que a categoria de Reserva Extrativista (Resex) é algo inédito
no panorama mundial de unidades de conservação, tanto por reconhecer
a presença de populações tradicionais nesse tipo de reserva, como por
definir uma nova categoria de conservação que considera as populações ali

Viagem à Amazônia | 209


João Meirelles

presentes, ou seja, a partir da luta dos povos da floresta.


– Mas, tio, veja quanta madeira tá saindo daqui, vamos chamar a polícia
ambiental! – Gabriel transtorna-se ao ver um caminhão carregado de toras
imensas. E isso depois de um longo silêncio do grupo, meditando sobre a
história das reservas extrativistas.
– Calma, não é isso que estás pensando. Este caminhão trabalha para um
projeto de manejo florestal comunitário, plenamente legalizado. Uma
experiência nova no Brasil, que poderá orientar o aproveitamento de
recursos naturais, valorizando florestas em pé. A Resex permite a exploração
sustentável de madeira e de produtos não madeireiros, como o açaí, a
castanha e muito mais. Em alguns casos, até a pecuária, sempre com limites,
é permitida. A terra pertence ao governo federal, mas as comunidades
cadastradas podem aí morar e utilizar os seus recursos naturais, inclusive
caçar e pescar para o uso próprio. Agora, vamos participar deste seminário
com ONGs daqui da região e diversos visitantes de outros estados. Trata-se
de um bom exemplo do que as pessoas devem fazer: colocar o pé na estrada
e conhecer a realidade da Amazônia.
– Vamos ouvir um índio falar? Oba! Finalmente, demorou, hein, tio! – Gabriel
espicaça o tio, muito interessado.

Diário da Juju: O evento começou, numa tenda armada


junto à pousada do Seringal. Joaquim fechou os olhos e
começou a cantar, era o canto da onça, explicou. À medida
que cantava, as pessoas que conversavam ficaram quietas
para ouvi-lo. Os sons da mata também sumiram, parecia
que todos os seres queriam apreciar o seu canto. Fiquei
muito emocionada, vendo aquela pessoa maravilhosa
compartilhando a sua vida, a sua sabedoria. O ambiente
mudou num instante, como se fosse um ambiente sagrado.

E Tashka começou a falar:


– Eu sou Joaquim Tashka Yawanawá. Eu vivo entre o mundo tradicional e o
mundo ocidental. Entre Rio Branco e a Aldeia Mutum, na Terra Indígena

Viagem à Amazônia | 210


João Meirelles

Yawanawá, no Rio Gregório, município de Tarauacá, aqui no Acre. Como


um povo indígena consegue recuperar, fortalecer, criar uma economia que
possa assegurar aos membros de sua comunidade o orgulho de ser indígena?
Vivi na comunidade até os doze anos. Depois fui estudar em Rio Branco, e
então fui ao Rio de Janeiro e dali estudei nos Estados Unidos. Morando fora,
percebi que eles, meus parentes, se sentiam pobres e miseráveis. Mas eu
não podia admitir. Assim, quando voltei a minha aldeia, a primeira coisa
que fizemos foi uma reunião para pensarmos como eram os Yawanawá
antes do contato, como eram agora e o que queríamos ser. Aí vimos que
eles não tinham perdido sua identidade e tinham um território. Portanto,
poderiam ter tudo para dar a volta por cima. E assim começamos. Primeiro,
chamamos a empresa norte-americana que comprava urucum da gente, a
Aveda, para fazer um acordo. Até então a compra era informal. Assinamos
então um contrato, um contrato de direito de imagem. O produto que a gente
comercializava, o urucum, tinha tudo a ver com a forma de expressar a nossa
arte. A empresa fabricava batom, protetor solar e diversos produtos. Eles
poderiam comprar urucum de um fazendeiro, de outro lugar, mas um produto
que tivesse um sentido, um diferencial, como forma de expressar beleza e
saúde, só encontrariam no urucum do povo Yawanawá!
– Bravo, bravo! – Juju batia palmas. As orgulhosas palavras de Tashka fizeram
Juju, Gabriel e Antônio arrepiarem-se e emocionarem-se.
E Tashka continuou:
– Este é o jeito que encontramos de resguardar os direitos do povo Yawanawá.
Garantir o valor étnico ao produto. A empresa compra um serviço social,
ambiental, cultural, ligado a um povo, e compra direto do povo Yawanawá
e não de um intermediário. E o contrato de fornecimento de urucum garante
que o povo Yawanawá não vire empregado da Aveda, que possa produzir o que
quiser. Assim, se eles precisarem de mais urucum, eles poderiam comprar de
outros. Porque o povo Yawanawá quer caçar, pescar, cantar e produzir mais
filho. Eu preciso dizer para vocês que o povo Yawanawá sofreu muito, primeiro
na mão dos patrões seringalistas. E isso por mais de cem anos, desde o
período da borracha em 1870, até 1990. Éramos verdadeiros escravos dos
seringalistas. Para piorar, ainda vieram os missionários. De 70 a 86, os
missionários protestantes batistas da Novas Tribos do Brasil (NTB) tentaram
nos convencer de que nossos cantos não eram bons, eles não deixavam a
gente cantar, fazer festas.
– Que absurdo! – Juju não se conteve, mexia-se na cadeira e falava baixinho
para Gabriel: – Que gente demente! Nefasta! – espumando de raiva.

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João Meirelles

E Tashka continuava:
– Eu fui aprender, já bem mais velho, o que eram as expressões culturais
do nosso povo. A história do povo é a história de minha vida. Agora vou
falar para vocês do primeiro festival Yawanawá. Ali eu vi o que nossos
antepassados tinham guardado por muitos anos. Nosso povo tinha vergonha
de seus cantos. Eu chorava de alegria de ouvir os cantos. A primeira
filmagem que fizemos na aldeia foi muito emocionante. Assim que filmamos,
mostramos para todos, no telão. E a tribo não acreditava que eram eles
que estavam lá. E isso foi muito bom. E as diversas tradições voltaram. Se
aparecia a pintura feia na tela, cada um ia e se esforçava por fazer melhor.
Orgulho de se pintar melhor. Pela primeira vez, as mulheres tiraram a
máscara de vergonha, puderam andar como faziam antes, sem camisa. Foi
um renascimento cultural e espiritual do povo Yawanawá.
– Viva! – Agora era Antônio, empolgado, observando os olhos de todos,
que brilhavam como estrelas, emocionados, muito atentos ao relato do
parente Tashka.
Pois sim:
– E isso nos deu força para solicitar à Funai a revisão de limites. Isso porque,
quando a terra foi demarcada, em 64, muitos cemitérios sagrados, lagos e
outras áreas importantes para nosso povo estavam de fora da Terra Indígena.
Assim, em 2005, conseguimos a revisão. Foi uma vitória grande.
– E agora, qual é o problema para seu povo? – veio uma pergunta da plateia.
E Tashka respondeu, calmamente, com grande segurança:
– Agora a ameaça são os vizinhos madeireiros. São os grandes grupos se
preparando para retirar grandes quantidades de madeira para exportação. A
terra é muito rica em mogno, ipê e diversas madeiras. Só que isso vai interferir
no rio, na floresta, na qualidade de vida da gente.
– Pelo que eu vejo, Tashka, isso interfere em muita gente, não apenas nos
Yawanawá – questiono.
Tashka:
– É verdade, tem outros povos indígenas vivendo no rio Gregório. Pra muita gente,
quando se fala em desenvolvimento, parece que os índios são um empecilho.
E dizem: não, os índios não têm desenvolvimento, eles vivem no tempo das
pedras. O povo indígena usa aquilo de que precisa, tanto é que o conceito de
permacultura, que surge como solução para os problemas da área agrícola,
da construção, é um conceito que vem do povo indígena. Mas os povos

Viagem à Amazônia | 212


João Meirelles

indígenas são os povos que mais vivem em harmonia com o meio ambiente.
Tem que ser mais humano, mais social, mais ambiental. Temos que trabalhar
juntos para atravessar este século, o século XXI. E aí a gente faz a pergunta: o
que vocês estão construindo para as futuras gerações?
– Muito obrigado, muito obrigado! – Gabriel não se conteve.
Aquela pergunta ficou no ar, calada. As palmas demoraram a arrebentar o
silêncio. Ninguém ousou comentar. As palavras simples e diretas de Tashka
mudaram aquela plateia para sempre.

Diário da Juju: E o diálogo terminou com aquele


céu estrelado. Muito frio. No dia seguinte, a gente
saiu bem cedinho, acompanhando um seringueiro,
cada um com sua poronga na cabeça. A poronga
é uma lamparina a óleo, feita de latão, para
iluminar o caminho no corte da seringa.

– Entre os esforços do governo do Acre para valorizar a floresta e a borracha,


em particular, tentou-se uma fábrica de camisinhas.
– Uau, camisinha, isso é mesmo importante, tio! – Gabriel interessa-se.
– As camisinhas são feitas de puro látex, vindo da seringueira, por causa
da elasticidade e da resistência necessárias. A fábrica seria uma maneira
de aumentar o preço pago aos seringueiros pela borracha que vem da
floresta. Em termos técnicos, verificou-se, ainda, que o látex produzido
nos seringais naturais é mais resistente que o plantado na Ásia. Assim, se
não valorizarmos a borracha, a castanha, os óleos, as frutas como o açaí, o
mato vai dar lugar ao pasto. Vamos continuar a chamar de “mato” o que não
presta, o que não tem valor. Bem, voltemos para a estrada, retornar para Rio
Branco. Agora olhem lá para aquele lado, para a esquerda, para o Ocidente,
para lá a estrada vai para o Peru, para o oceano Pacífico.
– Tio, isso é bom ou ruim? Uma estrada pro Peru, acho que já sei o roteiro de
minha próxima viagem, da “nossa” próxima viagem – entusiasma-se Gabriel.
– Há prós e contras. Para os povos tradicionais e para a conservação da
natureza, é ruim, pois há uma verdadeira invasão de madeireiros e

Viagem à Amazônia | 213


João Meirelles

pecuaristas nas frágeis florestas do Peru, e os esforços para conter essa


destruição são pequenos. Por outro lado, é uma nova oportunidade para a
geração de emprego e de renda, de escoamento de produtos desta região
do Brasil para a Ásia, pelo oceano Pacífico. O que há de novo é que o Brasil
adota, cada vez mais, uma postura imperialista perante os seus vizinhos –
especialmente aqui, diante da Bolívia, do Peru e do Paraguai. É uma pena
que o Brasil, em vez de exportar nossa alegria, nossa criatividade e nossa
busca de soluções ambientais e sociais de maneira pacífica, esteja abrindo
caminhos para a exploração de recursos naturais de maneira irresponsável,
exportando os mesmos problemas que vivenciamos em nossa viagem,
gerados tanto pela pecuária, como pela exploração madeireira e pelas
grandes obras sem os cuidados necessários.
– Nossa, tio, então o Brasil está sendo arrogante? – Juju comenta.
– É. Infelizmente. Na verdade, quase sempre o Brasil foi arrogante,
principalmente com os vizinhos. Aguarda-se para os próximos anos o
aumento de diversos problemas sociais e ambientais por causa desta
postura brasileira. Vamos ainda visitar a Biblioteca da Floresta. Dormiremos
em Rio Branco e, cedinho, tomaremos o carro para Porto Velho, são
quinhentos quilômetros, mas, com este asfalto, vai levar o dia todo!
Preparem-se!

Viagem à Amazônia | 214


João Meirelles

Capítulo 20

De Rio Branco a Porto Velho

– O importante aqui, meus sobrinhos, é que vocês percebam como esta região
mudou com a colonização oficial, ou seja, com a vinda de colonos do Sul
do Brasil para cá a partir dos anos 70 do século XX. A intenção era que os
colonos viessem para realizar uma agricultura como era praticada no Sul,
mas que aproveitassem as condições climáticas favoráveis e plantassem
produtos de alto valor, como café, cacau, seringueira, pimenta-do-reino e
culturas capazes de garantir uma vida confortável, além de grãos para o
consumo – arroz, feijão, milho, mandioca. Deu tudo errado. Hoje Rondônia, o
Acre e o norte de Mato Grosso são imensos pastos para a pecuária extensiva.
Nas áreas em que houve muita destruição e queimadas por diversos anos,
e em que o relevo permite, introduziu-se a soja e outras culturas agrícolas
mecanizadas, que modificam muito o solo.
– Nossa, tio, esta história de fracasso tá ficando chata. Parece que a história da
Amazônia é só fracasso! Em algum lugar deu certo? – Gabriel quer saber.
– Entre os raríssimos exemplos, e, mesmo assim, depois de muitos esforços
e de um trabalho de grupo, estão as agroflorestas da Cooperativa Agrícola
Mista de Tomé-Açu (Camta), no Pará, e o Projeto Reflorestamento Econômico
Consorciado e Adensado, mais conhecido como Reca.
– Ah, eu quero conhecer! A gente fica aqui só vendo queimada, boi, pasto sujo,
miséria, abandono, roubo de madeira... Que viagem mais doida esta! Puxa
vida, tio! – Antônio desabafa.
– Pois aqui estamos nós! Desde 88, aqui em Nova Califórnia, já em Rondônia,
este grupo de pequenos agricultores luta para estabelecer um projeto de
baixo impacto de agricultura a partir da agrofloresta. O que era para ser um
assentamento do Incra com setecentas famílias fracassou, e ficaram pouco
mais de oitenta famílias. Com a ajuda da Comissão Pastoral da Terra (CPT),
da Igreja católica, iniciou-se um projeto de agricultura baseado em espécies

Viagem à Amazônia | 215


João Meirelles

de alto valor, como a castanha, o cupuaçu e a pupunha. Contando com


forte apoio técnico, o grupo expandiu-se para mais de duzentas famílias,
envolvendo outros produtores no entorno. Atualmente, o Reca beneficia
alguns produtos, para agregar mais valor. Assim, fabrica polpa de diversas
frutas, como o cupuaçu e o açaí. Da amêndoa (semente) do cupuaçu, faz-se
a manteiga, semelhante à manteiga de cacau. Da palmeira pupunha, produz-
se tanto o palmito quanto o fruto. O que precisamos é que os milhares
de assentamentos rurais da Amazônia aprendam com experiências como
estas do Reca. Aqui se provou que é possível desenvolver uma agrofloresta
rentável utilizando pouca terra e respeitando o meio ambiente.

***

– Nossa, outra cidade agitada! – Juju comenta.


– Porto Velho, finalmente! Novamente, aqui é uma capital, um centro
importante na região, mas também há duas grandes usinas hidrelétricas,
ambas no rio Madeira: Santo Antônio e Jirau. Mas, antes, vamos entender
um pouco como esta região se transformou em território brasileiro. O
Centro-Oeste tornou-se português e, depois, brasileiro, em função do ouro
encontrado. O primeiro veio de ouro foi achado em Cuiabá, em 1722. Dez
anos depois, foi encontrado ouro em Corumbiara, em Rondônia, e em Vila
Bela da Santíssima Trindade, no Mato Grosso. Este fato criará uma rota
fluvial entre Cuiabá e Belém, pelos rios Guaporé, Madeira e Amazonas.
Com a arrecadação de impostos (o quinto) sendo calculada com base no
percentual de ouro, Portugal conseguiu manter firme a vigilância da fronteira,
inclusive com a construção de bases militares, como o Real Forte Príncipe
da Beira, nas margens do Guaporé, no atual município de Costa Marques,
em Rondônia. Este forte é tão imponente como o de Macapá. Para a época,
era uma grande obra, um dos primores da engenharia colonial no Brasil.
Mas, nunca se esqueçam, foi construído por escravos vindos da África e por
indígenas escravizados.
– Mas ele tá aqui, largado, perdido no mato! – Antônio comenta.
– É verdade, é o nosso passado abandonado e ignorado. O ciclo de ouro foi
curto, e a região retornou ao isolamento. Esse ciclo foi também interrompido
com a Guerra do Paraguai, seguida do ciclo da borracha, a construção
da estrada de ferro Madeira–Mamoré e a chegada da linha telegráfica.
A linha telegráfica, obra do Exército brasileiro, comandada por Rondon,

Viagem à Amazônia | 216


João Meirelles

levou o telégrafo com fio de Cuiabá a Porto Velho, na época Santo Antônio
do Madeira. Rondon e seus colegas engenheiros não se encarregaram
apenas de levantamentos geográficos, mapeando rios, serras e fronteiras. A
Comissão Telegráfica levava geólogos, etnólogos, para conhecer a situação
dos índios, e naturalistas, para identificar a fauna e a flora. Em duas décadas,
a Comissão produziu dezenas de relatórios, mudando a maneira de o Brasil
ver a região.
– Nossa, tio, que história! – Juju comenta.
– Diferentemente das frentes militares anteriores, Rondon evitava o conflito
com os índios. Ele os via como trabalhadores e os incorporava à equipe que
cuidava dos dois mil e seiscentos quilômetros de linha telegráfica. Aos olhos
dos antropólogos e índios de hoje, muitos dos métodos de Rondon estariam
ultrapassados, mas na época sua atuação representou uma mudança de
postura que precisava ser respeitada. Em sua homenagem, o território
de Guaporé passou a se chamar Rondônia, depois elevado a estado. Em
verdade, é o único estado brasileiro com o nome de uma pessoa.

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João Meirelles

Capítulo 21

De Porto Velho a Cuiabá

Diário da Juju: Deixamos Porto Velho em direção a Cuiabá.


E logo na saída aquela fumaceira horrível. Era mais uma
queimada, e uma, e outra. Mais uma entre as milhares
que vimos. Uma sensação horrível. Quando é que isto vai
parar? A gente fica sem ar, os olhos ardem. Isto cheira a
morte! Decidi andar na queimada. Um clima de guerra,
o cheiro forte. O calor, o tênis gruda na madeira no chão,
em brasas. Eu tirei fotos, muitas fotos. Um tatu que não
conseguiu escapar estava ali, preto, virou carvão. Árvores
caídas, imensas, e outras de braço aberto, ainda quentes,
pedindo socorro. Será que isto faz sentido? Isto é progresso?

– Então, tio, pra resumir: a maior ameaça pra Amazônia é o gado, certo? –
Juju pergunta.
– Errado, Juju. A maior ameaça à Amazônia somos nós mesmos! O gado está
lá porque o colocamos! Nossa maneira de pensar é a verdadeira ameaça.
Queremos tudo para agora, e bem barato, sem medir as consequências. É
assim que tratamos a Amazônia. É assim que tratamos o Brasil. Estamos
mais preocupados com o índice anual de desmatamento e o mapa de
queimadas, se aumentou ou se diminuiu, como se fosse uma cotação
da bolsa de valores. Continuamos a discutir os efeitos e não as causas.
Brigamos para baixar o índice de desmatamento, para punir este ou aquele

Viagem à Amazônia | 219


João Meirelles

setor econômico – a pecuária, os madeireiros, os garimpeiros –, mas as


verdadeiras causas não são sequer mencionadas no discurso oficial.
– Como assim? – Juju reclama.
– A única causa para o desaparecimento da Amazônia e de seus povos
tradicionais é a pressão do consumo. Em 2019, o consumo de carne bovina
no Brasil alcançou cerca de quarenta quilos por habitante ao ano. Quando os
mais pobres conseguem melhorar de vida, o que eles mais desejam?
– Bife, bife, bife, bife... – Juju comenta, repetindo como se fosse em eco.
– De onde vocês imaginam que a produção de carne bovina virá?
– Daqui! – Juju responde.
– Exato, a maior parte do aumento da produção dos últimos anos se deu
na região amazônica. E esse consumo é em sua maior parte do próprio
Brasil. Em anos bons, menos de vinte por cento da carne bovina brasileira é
exportada. É o próprio Brasil desperdiçando os seus recursos e destruindo-
os para o seu próprio consumo. O senador Cristovam Buarque, que também
é educador, propôs algo alternativo à internacionalização da Amazônia – por
que não amazonizar o mundo?
– Explica direito, tio – Gabriel intervém.
– E se usássemos o cimento do Cristo Redentor para melhorar o acesso à
favela Santa Marta? E se o Egito fabricasse tijolos das pirâmides para fazer
casa popular porque há muito pobre no Cairo? Ou se a Grécia decorasse
o novo banheiro público de um abrigo para velhos com os mármores do
Parthenon, aquele templo magnífico de Atenas? O que o mundo faria?
– Reclamaria, gritaria bem alto! – Agora é a vez de Juju esbravejar.
– Pois é! O mundo tem todo o direito de gritar cada vez que o Brasil derruba
uma árvore, derruba um bilhão de árvores por ano, transforma a Amazônia
em carvão para churrasco e bife de segunda categoria. Porque o mundo é
composto de gente como vocês e eu. O mundo tem esperança de que isso
mude, acredita que o Brasil seja minimamente coerente consigo mesmo. E,
para não falar outra coisa, seja honesto, para conservar um patrimônio que é
muito maior que as pirâmides do Egito ou o Parthenon. Afinal, o Brasil abriga
um conjunto espetacular de culturas milenares, de povos e comunidades
tradicionais, é guardião da maior biodiversidade do planeta. E isso sem
contar que a Amazônia é uma das regiões que mais contribuem para a
manutenção dos serviços ambientais, como a umidade do Centro-Sul do
Brasil e o norte da Argentina, enfim... Quando é que o Brasil vai deixar de ser

Viagem à Amazônia | 220


João Meirelles

este moleque inconsequente e assumir o seu papel no mundo?


– Tá certo, a gente não tem mesmo é a tal de vergonha na cara, certo? –
Gabriel concorda.
– É bem isso. O país não assumiu a sua responsabilidade como nação, não
trata sequer com respeito o seu patrimônio cultural e natural e seu território.
O Brasil não cuida do Brasil. O que Mário de Andrade disse na primeira
página deste livro?
– Ah, eu anotei –Juju lembrou. Tá aqui na capa do meu diário: O brasileiro vive
o Brasil e não o descobre.

(O grupo entrou num silêncio profundo. Ficou longo tempo a pensar em tudo
aquilo... E a suportar o sacolejo em mais um trecho de estrada federal
malcuidada, passando por Ariquemes, Ji-Paraná, Cacoal. Pastos, pastos e às
vezes alguma agricultura, a mata estava distante, raramente aparecia...).

– Puxa, que bom, uma floresta na beira da estrada. Isto está ficando mesmo
raro! – Gabriel alegra-se em ver um pedaço de mato.
– Alto lá! Dificilmente se trata de uma floresta preservada. Provavelmente, a
madeira mais nobre foi retirada e ficou esta floresta, mais pobre. O Imazon,
a ONG de Belém que pesquisa a região, alerta que temos que parar de
pensar a Amazônia como um binômio: terra preservada de um lado e área
desmatada de outro. Para o Imazon, é preciso incluir outra categoria, a das
áreas sob pressão humana. Assim, a Amazônia seria dividida em três blocos:
os ambientes sem sinal de pressão (menos de metade da Amazônia), aqueles
com pressão humana consolidada (área desmatada, cerca de vinte por cento
da região) e a nova categoria, aquelas áreas com pressão humana incipiente,
mas que cresce e que representa cerca de trinta por cento da região.
– Nossa, deste jeito, se somarmos a área de pressão consolidada e a de
pressão incipiente, temos metade da Amazônia ameaçada! – Gabriel conclui.
– Brilhante, Gabriel. Esta é a realidade que temos que enfrentar. Ou cuidamos
destes trinta por cento sob pressão humana incipiente agora, ou cinquenta
por cento da Amazônia estará desmatada em algumas décadas, ou seja, em
menos de uma geração! A geração de vocês!
– Tio, que responsabilidade! – Juju comenta.
– É por isso que a gente tem discutido nesta viagem um conjunto de ações,
entre as quais a valorização da floresta em pé, a restauração florestal, o

Viagem à Amazônia | 221


João Meirelles

reflorestamento com espécies de valor comercial, a adoção de pastagens


mais produtivas e de sistemas agroflorestais eficientes, os incentivos para
quem conserva a mata, a fiscalização da exploração da madeira e o controle
das invasões de terra. Isso só para dizer o que me vem à cabeça agora. A
legislação brasileira para o meio ambiente está entre as mais avançadas do
mundo. De nada adiantam planos e mais planos se a lei não é cumprida, se
a sociedade não acredita nas leis, se os produtores rurais não acreditam nas
leis. A impunidade – ou seja, a não punição daqueles que infringem as leis
sociais e ambientais – é o maior problema da região.
– Do Brasil, não é, tio? – revolta-se Antônio.
– O Tribunal de Contas da União (TCU) realizou diferentes estudos em que
aponta que menos de cinco por cento das multas aplicadas pelo órgão
ambiental federal, o Ibama, são pagas. Os processos de julgamento
demoram muito, mais de três anos. A média de tempo de julgamento era
maior até 2012, mais de cinco anos. Em 2017, havia mais de cem mil
processos pendentes. Com essa morosidade no sistema de multas, quem
leva vantagem é quem comete o crime ambiental. E tem mais: com o
dinheiro dessas multas, seria possível consertar diversos estragos feitos
pelos infratores. Mas, vocês sabem, a coisa fica por isso mesmo, o tempo
passa, ninguém é punido, e o infrator volta a burlar a lei porque sabe que
dificilmente será pego e raramente pagará pelo que fez.
– Realmente, enquanto não se resolver isso, pra que aplicar multa? Vai
continuar esta bagunça! – Juju, indignada.
– Para entender a Amazônia, precisamos compreender como foi a história
do Brasil. É triste dizer, mas a nossa história, a história do nosso Brasil
confunde-se com a história da pecuária, da pata do boi. O Brasil foi
ocupado, ao longo de mais de cinco séculos, silenciosamente, pelo boi.
Nenhuma atividade socioeconômica explica tão bem o que somos, a nossa
personalidade, a nossa precariedade, a nossa capacidade de destruir,
derrubar a vegetação nativa, queimar e... não ser punido.
– Que horror, nunca tinha pensado nisso! – Antônio entristece ao comentar.
– Em todos os biomas, o boi representa mais de dois terços das áreas
ocupadas pelo homem. A Mata Atlântica foi reduzida a sete por cento de sua
cobertura original, o Cerrado e a Caatinga, a menos de quarenta por cento,
principalmente para ceder espaço à vontade do brasileiro de comer carne
e, mais recentemente, à soja, que também serve para alimentar animais –
porcos e galinhas – na Europa e na China. O que vocês estão presenciando

Viagem à Amazônia | 222


João Meirelles

na Amazônia é mera continuidade da saga de destruição do nosso Brasil.


Hoje avançamos para entupir a Amazônia com cem milhões de cabeças de
gado. Muito provavelmente, em algumas décadas, serão duzentos milhões
de cabeças. Vocês estão fazendo cara de espanto? Por quê?
– Tio, porque não podemos deixar que isso aconteça! – revolta-se Juju.
– Então, mexam-se, discutam abertamente este assunto, organizem protestos,
questionem todos os envolvidos na cadeia de valor da carne bovina –
pequenos e grandes pecuaristas, frigoríficos, açougues, supermercados,
discutam quais são as alternativas de proteínas à carne bovina vinda da
pecuária extensiva. O Brasil deverá transferir boa parte de seu rebanho
para cá, pois é mais barato produzir aqui! Em trinta anos, se não fecharmos
a porteira para essa boiada, a Amazônia será o curral do planeta, com a
previsão de abrigar de duzentos a duzentos e cinquenta milhões de cabeças,
mais do que hoje toda a boiada da América do Sul. Será um desastre
ambiental sem precedentes! E essa previsão baseia-se num consumo baixo
de carne. O brasileiro consome quase quarenta quilos de carne bovina por
ano, e o consumo aumenta, lentamente, mas aumenta. Na Argentina, o
consumo é de cerca de setenta quilos de carne bovina ao ano, caiu um pouco
com a longa crise, mas segue bem alto. Na China, por sua vez, o consumo
é dez vezes menor que o brasileiro, cerca de seis quilos ao ano, mas cresce
e, mesmo que aumente só um pouquinho, não haverá carne disponível no
planeta para atender o apetite chinês. O brasileiro com mais dinheiro no
bolso, o que faz? O chinês, com mais dinheiro no bolso, o que quer?
– Nossa, tio, eu não quero este destino pra Amazônia! Virar bife! – Juju protesta.
– Há alguns anos, o Brasil já é o principal exportador e pretende multiplicar
algumas vezes as suas vendas. Se o Brasil caminha para ter metade de
seu rebanho na Amazônia, tudo indica que a região se tornará uma grande
exportadora de carne bovina...
– Então o mundo também vai comer a Amazônia! – Juju horroriza-se.
– Já come, sem saber! Muitos consumidores, se soubessem o impacto de
seu consumo para os povos tradicionais, para a biodiversidade, para o
planeta, certamente reveriam o seu consumo, ou seja, talvez diminuíssem a
quantidade de carne que comem ou passassem a se preocupar com a origem
da carne. Produtos brasileiros como a soja já foram barrados na Europa. O
óleo de palma que causou tanto desmatamento no Sudeste Asiático tem sido
muito questionado e boicotado em diversos países europeus. É a vez de o
consumidor dizer o que quer!

Viagem à Amazônia | 223


João Meirelles

– Eu não quero ser responsável por isso! Não quero ser cobrado por
transformar a Amazônia em bife! Quando eu tiver filhos, não quero ouvir
deles: vocês destruíram a Amazônia pra vender uns bifinhos por aí! – Gabriel
protesta novamente.
– Bom, então, tratemos de nos organizar, de propor alternativas de renda para
a região, de valorizar a floresta. Toda ação tem três momentos: primeiro,
a gente descobre que o problema existe – se considerarmos apenas os
moradores da Amazônia, a maioria nem sequer está nesse estágio; depois a
gente discute, planeja, o segundo momento; finalmente, no terceiro, a gente
age, muda, muda a história, tira a história do Brasil deste trilho da destruição.
Não podemos demorar para agir! Não somos obrigados a destruir o Brasil
porque os nossos antepassados o fizeram! Ah, a primeira questão que temos
que discutir é: qual a nossa postura como consumidores perante a Amazônia?
– Como assim, tio, não estou entendendo – Antônio protesta.
– Olhem para seus próprios estômagos, para os seus pratos. Qual o impacto
do que vocês comem na região? Qual é o impacto do que vocês compram
no supermercado, na lanchonete, na cantina da escola? Afinal, de cada três
bifinhos, pelo menos um vem da Amazônia. Vocês já viram umas carretas
imensas que vão para o frigorífico?
– Ah, sim, cada caminhão, hein! – Gabriel concorda.
– Pois é, no Brasil, quem come carne, vamos dizer, se tu fores um brasileiro
médio, tu comerás uma carreta dessas com dezoito bois ao longo de tua
vida. Dessa carreta, pelo menos seis a oito bois virão da Amazônia.
– Nossa, tio, para de assustar a gente! Como é que um carretão desses cabe na
minha barriga? – Gabriel pula da cadeira e olha sua barriga.
– Eu tou é desanimado. Isso tudo é muito grande, muito difícil, como é que eu,
um simples jovem que mora numa cidade grande lá no Sul Maravilha, vou
mudar alguma coisa? – Antônio posiciona-se.
– Só temos este planeta em que vivemos! Não precisamos seguir as escolhas
de nossos antepassados, nem mesmo de quem hoje está definindo para
nós qual é o nosso cardápio, o que vamos consumir! Temos que tomar as
decisões nas quais acreditamos, temos que ser realistas. Há os que se
preocupam, que votam conscientemente, que respeitam as leis, que são
cidadãos, que respeitam o meio ambiente, estes são os que lutam. E há os
outros, os que fingem que não é com eles, que estão parados, que jogam o
problema para debaixo do tapete, para as próximas gerações resolverem.
Como é mesmo a história do tico-tico e do chupim de que tratamos antes?

Viagem à Amazônia | 224


João Meirelles

– Ah, sim, os chupins são os aproveitadores – Juju concorda.


– Cabe a cada um decidir qual é a sua posição. É uma decisão individual,
de foro íntimo. No momento em que vocês estão lá, no supermercado,
pilotando o seu carrinho de compras, é que se decide o futuro do planeta!
É aí que vocês serão os tico-ticos, que sabem o que querem, ou os chupins,
os aproveitadores...

***

– Agora vamos parar um pouquinho esta conversa para visitar uma fazenda de
gado. Aqui vocês verão uma pequena amostra do que se passa em dezenas
de milhares de fazendas na região. Para começar, a pecuária gera pouco
emprego. Uma área de bom porte, digamos, de mil hectares, equivalente a
dez quilômetros quadrados, ou seja, um retângulo de dois quilômetros por
cinco quilômetros, provavelmente gerará somente três a cinco empregos. Na
mesma área de soja, no máximo dez empregos serão criados. A agricultura
familiar, por sua vez, pode garantir emprego para vinte a duzentas pessoas,
conforme a tecnologia adotada. E a palma (dendê), uma cultura permanente,
gera pelo menos cem empregos, e só na parte agrícola, principalmente se for
com a participação da agricultura familiar.
– Nossa, muita diferença entre a pecuária e a agricultura familiar! – Gabriel constata.
– Diversos estudos científicos apontam a baixa rentabilidade da pecuária. Em
termos práticos, se o dinheiro fosse aplicado no mercado financeiro, e em
uma aplicação segura, renderia mais que criando boi. Criar boi rende tanto
quanto uma caderneta de poupança.
– Então é melhor deixar na poupança! – diz Antônio.
– Justo. Esta aqui é uma fazenda pequena. Como este produtor não dispõe de
muitos recursos, ele é obrigado a vender os bezerros assim que desmamam.
Isso é o que se chama de cria, e ele é um criador. O comprador é quem
recria, quem compra bezerros de diversos pequenos criadores como este.
Em geral, é um fazendeiro de porte médio, que tem algum dinheiro para esta
compra e para recriar o boi. Daí o médio produtor venderá o boi magro ao
invernista, o grande produtor, que fará a engorda final do boi para levá-lo ao
abate. O grande também comprará de diversos produtores de médio porte
para formar o seu lote. Quanto maior o criador, de mais dinheiro ele precisa.
Nessa cadeia de valor, que ainda envolve os frigoríficos, os distribuidores, os
atacadistas e os varejistas, como os açougues e supermercados, em geral, a

Viagem à Amazônia | 225


João Meirelles

maior parte dos ganhos fica com quem dispõe de capital, como é o caso dos
grandes produtores, frigoríficos e alguns varejistas
– Tá bem mais claro agora, tio – Juju respira fundo.
– Assim, o Brasil tem centenas de milhares de pecuaristas pobres na Amazônia
e mais de um milhão de famílias de pecuaristas pobres no resto do Brasil.
Atualmente, os supermercados respondem por metade da carne consumida,
e a outra metade vem de açougues, mercadinhos, feiras etc. Só que boa
parte da carne consumida na Amazônia é produzida e abatida de forma
clandestina, ou seja, representa graves riscos para a saúde humana. Essa
carne ilegal, além de não pagar impostos, põe em risco a saúde humana.
– Eu não entendo, tio, se não dá tanto dinheiro assim, como é que tem tanto
pecuarista por aí? – Juju quer saber.
– Porque o pecuarista não faz as contas, não avalia que é um negócio de baixa
rentabilidade. O pecuarista está deixando para os seus filhos um péssimo
negócio. Pior, ele não sabe que é um negócio ruim! A única razão para essa
insistência na pecuária talvez seja de fundo cultural, ou seja, muitos dizem
que só sabem cuidar de boi, nasceram fazendo isso e assim levam a vida.
Outra razão importante, e na Amazônia isso é bastante evidente, é o fracasso
de outros negócios, o que leva a pecuária a ser a única renda para a maior
parte das propriedades rurais. As estradas são ruins, a assistência técnica,
bastante rara, o acesso a crédito, limitado, e daí por diante. Além disso,
no Brasil, culturalmente, o boi sempre foi visto como uma segurança, uma
espécie de poupança, que está ali para o momento em que se precisa de
dinheiro. É negócio seguro, de baixo risco, mas de baixa rentabilidade.
– Então, como é que a gente faz para que os pecuaristas percebam que estão
numa enrascada? – Antônio quer saber.
– Só tem um jeito: mostrando que há outros negócios mais interessantes.
Para isso, é preciso muito diálogo. O melhor é oferecer aos filhos e netos
desses fazendeiros as informações para que eles se convençam de que o
seu futuro está ameaçado e de que é preciso estudar alternativas. Cada
caso será um caso diferente, não há uma receita igual para todos. Com
informações com base científica, os filhos e netos de pecuaristas podem
tomar decisões racionais e objetivas, que protegerão o seu futuro e que
certamente influenciarão seus pais e avós. Essa transição para uma
economia sustentável, uma desintoxicação do Brasil-pecuária, exige muitos
vídeos, livros, eventos, aulas, cursos...
– Ah, agora estou entendendo – anima-se Antônio.

Viagem à Amazônia | 226


João Meirelles

– Além de compreender as alternativas, os pecuaristas precisam conhecer


melhor o seu próprio impacto, tanto o impacto socioambiental como o
econômico: o emprego, a renda, a erosão, o aquecimento global etc.
– O ideal é que o próprio empresário, micro, médio ou grande, aprenda a
reconhecer os seus impactos e riscos. E, vejam bem, seus impactos também
estão em seu entorno, em seus vizinhos, na sua região, não apenas dentro
de suas cercas. Para que o fazendeiro deixe um legado, uma herança para os
seus descendentes, precisará compreender qual propriedade deixará daqui a
vinte anos, cinquenta anos...
– Então, o certo, tio, seria parar o desmatamento, e todo mundo na escola! –
Gabriel propõe.
– Uma moratória – ainda que custasse ao país uma “bolsa-estudo para
pecuarista”, para milhares de pessoas por um período – seria um caminho.
Mas tem que ser algo prático, capaz de apresentar resultados rápidos.
E não será uma única ação que resolverá, temos que realizar diversos
movimentos para as pessoas despertarem – oferecer cursos gratuitos,
orientação técnica a produtores, acesso a crédito para mudar de atividade
econômica, programas educativos na tv, no rádio, nas mídias sociais, enfim,
é possível fazer muita coisa legal! Fará um bem enorme a esses fazendeiros,
especialmente a seus filhos e netos, pois raramente eles são lembrados e
compreendidos. Como vimos, muitos estão na atividade da pecuária porque
não há outras alternativas viáveis a curto prazo.

Diário da Juju: Desde Vilhena, em Rondônia, em direção


a Cuiabá, no Mato Grosso, a soja toma conta da paisagem.
Neste mar de soja, tem pouca gente. Só quando tem algum
trator perdido no mundo de soja é que se vê uma pessoa e,
mesmo assim, lá dentro da cabine do trator. Mais de mil
quilômetros de estrada no Mato Grosso e em Rondônia,
e cada vez mais soja, soja, boi, soja, boi, soja! E a mata?
O boi comeu... Bem, foi o homem que comeu o boi.

Viagem à Amazônia | 227


João Meirelles

– Vamos estudar um pouco sobre a soja ou “o” soja, porque é feijão-soja,


mas todo mundo diz “a” soja. O principal óleo vegetal produzido no Brasil
é o óleo de soja. O Brasil é um dos grandes exportadores mundiais, e essa
exportação é principalmente da soja em grão mesmo, in natura, como se
diz, ou na forma de farelo, que é para a ração de animais – bois, porcos e
galinhas, além de cães, gatos, peixes etc. –, tanto na China, nos demais
países asiáticos, como na Europa. Então, além da Amazônia, criar bois ainda
alimenta os bois, porcos e galinhas de outras partes do planeta.
– Ah, agora entendi. Então soja é pra alimentar bicho! – Gabriel, estupefato.
– Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a
Agricultura (FAO), o espaço para a pecuária bovina e para a alimentação de
animais ocupa quase metade das terras agricultáveis do planeta. E essa área
só aumenta. No caso do boi, a questão é bem séria. Isso porque o boi é um
péssimo conversor de energia...
– Energia, como assim? – Juju fez cara de que não entendeu.
– De cada sete quilos de farelo de soja que o boi come, somente um quilo
vira carne, o restante é perdido, dissipado, como se diz quando se fala
em energia. Essa energia perdida resulta do esforço do boi para andar, se
aquecer, ou é usada para produzir os ossos, pelos e chifres. Ou seja, o boi é
altamente ineficiente como conversor de energia! Gasta muito para produzir
pouca carne e, como vimos, exige muito espaço físico. As aves, como as
galinhas e os patos, são duas a três vezes mais eficientes, e os peixes, em
geral, mais ainda. Vale comentar que, desde a década de 70, sabe-se que a
quantidade de cereais utilizada para alimentar animais seria suficiente para
resolver a fome de toda a humanidade e sobrariam alimentos!
– Estou pasma! – Juju mostra-se incrédula.
– Duras verdades! Vamos parar um pouco aqui, nesta ponte, para admirar o rio
Paraguai. Daqui para a frente, os rios correm para o sul, são parte da bacia
do Prata. Aqui é Cáceres, início da parte norte do Pantanal. Em menos de
duzentos quilômetros, estaremos em Cuiabá. Esta região é o encontro de
três biomas: Pantanal, Cerrado e Amazônia.
– Vejam o tamanho deste besouro! – grita Gabriel.
– O que tem de besouros na Amazônia é algo impressionante. Quatro de cada
dez insetos conhecidos no mundo são besouros. São cerca de quatrocentas
mil espécies de besouro no planeta. Provavelmente, esse número chega
a cinco milhões, mais de dez vezes o descrito pela ciência. E as florestas
tropicais, especialmente a Amazônia, abrigariam a maior parte dessas

Viagem à Amazônia | 228


João Meirelles

espécies. Aqui na Amazônia está o maior besouro conhecido, com vinte


centímetros, assim como outros recordes, da maior mariposa, mosca,
libélula, cigarra, vespa etc. Os cientistas vasculharam uma área de cem
metros por cem metros, ou seja, dez mil metros quadrados, um hectare, e
contaram cada inseto. Descobriram quarenta e duas mil espécies diferentes!
E muitas delas eram novas para a ciência. Num único bicho-preguiça,
biólogos encontraram um ninho de rato, diversas espécies de invertebrados
e, pasmem, mais de novecentos besouros. Acho que agora vocês
entendem que estamos diante de um mundo novo, que mal começamos a
compreender! E que decidimos substituir por boi e soja...

(Todos fazem cara feia.)

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João Meirelles

Capítulo 22

De Cuiabá à serra do Cachimbo, pela BR-163

Diário da Juju: A parada em Cuiabá foi curta. Esperavam


por nós em Lucas do Rio Verde, na rodovia Cuiabá–
Santarém, a BR-163. Soja, soja, boi, boi, boi... Queria ver
floresta, mas onde? Só na foto na recepção do hotel...

– Esta região sofreu grandes alterações a partir da década de 80. À direita,


na bacia do rio Teles Pires, surgiram novos municípios, como Nova Mutum,
Sinop, Colider, Alta Floresta e Paranaíta; à esquerda, na bacia do rio Juruena,
estão Brasnorte, Juara, Juruena, Cotriguaçu e Colniza. Diferentemente
de Rondônia e do Pará, a maior parte dos migrantes foram trazidos pela
colonização privada. Empresas colonizadoras realizavam o loteamento,
preparavam o núcleo pioneiro das cidades e vendiam os lotes de terra para
as famílias de pequenos agricultores, em sua maioria dos estados do Sul
– Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Esses “colonos”, como são
chamados aqui, e já vimos isso, alcançaram o maior sucesso, na medida em
que dependiam menos do governo para a assistência técnica e o crédito
bancário. Além disso, organizaram-se melhor por meio de cooperativas e de
associações porque já tinham tradição em cooperativismo em suas regiões
de origem. Isso não significa, no entanto, que o seu impacto socioambiental
tenha sido menor. Estas regiões são tão ou mais devastadas que as áreas
de grandes fazendas de pecuária ou de assentamentos públicos. Em muitos
locais, também surgiram garimpos, como em Alta Floresta e em Matupá.
Imaginem, meus sobrinhos, que eu estive aqui na década de 70, logo depois
de abrirem a rodovia Cuiabá–Santarém, a BR-163, e havia um posto de
gasolina a cada duzentos e cinquenta quilômetros, e mais nada. Quarenta
anos depois o que é esta região?

Viagem à Amazônia | 231


João Meirelles

– Puxa, tio, a capacidade de mudar tudo, destruir, é impressionante! – Juju


está triste.
– Pois é, as mudanças foram tão rápidas que, na maioria das regiões, foram
demarcadas poucas terras indígenas e raríssimas unidades de conservação.
Os problemas que aparecem agora são de outra natureza: rios secando,
temperaturas muito mais altas, chuvas cada vez mais tarde no início do
inverno amazônico, menos umidade no nível do solo e muito mais. Culturas
como a soja, que deixam o solo exposto por bastante tempo, mesmo com
o sistema mais racional, que é o chamado “plantio direto”, usam muita
água. Um cálculo médio indica que, para produzir cada quilo de soja, são
necessários mais de mil e quinhentos litros de água.
– Então, quando se vende soja, está se vendendo água? – pergunta Gabriel.
– Está se vendendo água, terra, os serviços ambientais todos destes lugares,
que países como a China e a Europa não têm! Com a carne bovina, é a
mesma coisa, mas a conta é bem pior. Para se produzir um quilo de carne
bovina, gastam-se, em média, quinze mil litros de água, ou seja, quinze
toneladas de água para cada quilo de carne!
– I-na-cre-di-tá-vel! – revolta-se Juju.
– I-na-cei-tá-vel! – Gabriel completa o coro.
– Um mero hambúrguer, que leva soja e carne bovina, significa dois mil e
quatrocentos litros de água!
– Duas toneladas e quatrocentos quilos de água pra produzir um
hamburguinho! – agora é a vez de Antônio revoltar-se.
– Nossa, tio, você está querendo que a gente viva de vento, pois tudo gasta
tanta água? – Gabriel reclama.
– Não, eu quero que vocês saibam o que se passa com as suas decisões de
consumo, que sejam responsáveis pelos seus próprios atos.
– Tio, eu quero ser cientista! – Juju conclui.
– Por quê, Juju? O que te fez decidir, assim, de maneira tão definitiva?
– Ah, eu fico incomodada com tanta burrice junto. A gente está queimando
estas florestas, estas bibliotecas vivas, enxotando esta gente
maravilhosa... pra quê? Pra ter carne, carne, carne! Eu acho isso muito
ridículo – comenta Juju.
– Bom, Juju, o importante é que organizes os teus próprios pensamentos,
formes a tua própria opinião! Senão tu serás mais um boi de presépio, que diz

Viagem à Amazônia | 232


João Meirelles

“amém” para a opinião dos outros, sem avaliar as consequências. Mas, vejam
bem, vida de cientista não é lá muito fácil, especialmente na Amazônia.
– Por quê, tio? – Gabriel também tem interesse.
– O governo diz que prioriza a ciência, mas ainda não vimos a tal da prioridade.
O pessoal da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) vive
dizendo que o governo federal investe na Amazônia menos de dez por cento
do orçamento para a Ciência & Tecnologia. O mais importante é refletir sobre
a velocidade da destruição dos ambientes naturais, muitas vezes superior
à capacidade da ciência para pesquisar. Pior, essas pesquisas demandam
muito tempo para serem aplicadas como tecnologias socioeconômicas
destinadas a melhorar a qualidade de vida da população da região. E
muitas pesquisas são consideradas ciência básica, ou seja, não têm uma
aplicação imediata, só possibilitam uma maior compreensão deste nosso
planeta! Talvez seja um contrassenso, pois, se a população, principalmente
a rural, dispusesse de mais acesso a informações científicas e tecnológicas,
certamente, o impacto de suas atividades seria menor. Explorar a
biodiversidade exige tecnologia, educação, conhecimento, investimentos
representativos e, principalmente, cientistas preparados.
– Difícil hein, tio! – Antônio solidariza-se com o grupo.
– Exige, principalmente, apoio político, verbas de longo prazo para pesquisas de
muitos anos ou mesmo décadas, instituições com equipamentos e salários em
dia, verbas para a capacitação contínua. Enquanto a profissão de pesquisador
for pouco valorizada, a Amazônia terá poucas chances de sobreviver.

Diário da Juju: De Lucas do Rio Verde fomos a


Matupá e dali tomamos a BR-080 em direção ao
Araguaia. Viagem de carro pra nunca terminar.
Atravessamos um pedaço do Parque Indígena do
Xingu. Pensei muito sobre a vida de cientista...

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João Meirelles

Capítulo 23

Da BR-163 a Palmas e nossa comemoração final

– Bom, aqui estamos nós em Palmas e daqui vamos a um sítio nas margens do
rio Tocantins para a gente concluir nossa viagem com chave de ouro.
– Como assim, tio? – Antônio está curioso.
– Vamos fazer uma avaliação de nossa viagem. Será que podemos concluir algo
de tudo isso?
– Tio, o que você recomenda que eu faça pela Amazônia agora? – Gabriel
apresenta-se primeiramente.
– Bom. Vocês viram como o desafio é imenso e complexo...
– Iche, agora complicou! – Antônio protesta.
– Temos que construir um novo modo de conceber a Amazônia. Não podemos
continuar a ver a região como um lugar qualquer, como a fronteira da
destruição, a continuidade de um processo de ocupação irresponsável e
maluco, como foi a história do Brasil até agora. Vocês lembram que, quando
tratamos da cultura, da biodiversidade, da restauração dos ambientes, vimos
que cada detalhe é importante? Lembram lá no Seringal Cachoeira, aquela
montanha de madeira passando no caminhão e nós todos sentados em
desconfortáveis cadeiras de plástico?
– E aquela garrafinha de plástico que veio de Belém pro Acre, tio! Eu não
acreditei quando percebi! – Gabriel complementa.
– É. Acho que muita coisa mudou pra mim. Eu até vou olhar cada bifinho dum
jeito diferente de agora em diante – confessa Antônio.
– O caminho é este! Esta viagem foi mesmo uma verdadeira “viagem
filosófica”. Vocês se lembram do Alexandre Rodrigues Ferreira, que ficou
nove anos pesquisando a Amazônia? E isso em 1790!
– Puxa, tio, gostei. Adoro filosofia. Agora percebo, estamos é filosofando,
obrigadinha, tio! – Juju alegra-se.

Viagem à Amazônia | 236


João Meirelles

– Se tu decidires tomar aquela garrafinha de água que andou quatro mil
quilômetros para saciar a tua sede e significou um gasto enorme de energia
para ser transportada e armazenada e, ainda, produziu um lixo de plástico, tu
terás um tipo de planeta para cuidar. Por outro lado, se tu preferires o suco
feito pela dona Maria das Neves, aquela que mora aqui na frente do hotel,
com o cupuaçu que ela colheu em seu próprio quintal e, claro, filtrando bem
a água e lavando bem a fruta, é outro tipo de planeta que tu estás dizendo
que preferes. É um produto com nome e sobrenome, sabemos de onde vem,
a quem beneficia e, ainda, é um produto quilômetro zero, ou seja, não exigiu
milhares de quilômetros de combustível fóssil para chegar aqui.
– Puxa, tio, então são decisões bem simples que temos que tomar! – Antônio
está mais aliviado.
– Esta é a beleza da história. São as decisões invisíveis que tomamos a todo
momento que movem o planeta – a economia e a cultura –, que fazem a
civilização prosperar ou se autodestruir... É o cotidiano que importa. Não é
a decisão de um político qualquer lá em Brasília que, sozinha, vai decidir o
futuro da Amazônia. Claro que isso influencia, dá um norte, mas é a pressão
pelo consumo, a atividade econômica para responder a esse consumo
que importa. A Amazônia está nesta encruzilhada: devoramos a Amazônia
comendo os seus bifes e produtos de alto impacto, como a soja, ou a
conservamos para todas as gerações e produzimos água, floresta, produtos
agroflorestais...
– Viva, tio, a Amazônia é vida! – Gabriel bate palmas.
– E, se há minérios nos solos da Amazônia, é preciso que se definam maneiras
de beneficiar as populações locais e de evitar que sejam altamente
impactadas como até hoje ocorreu. Não dá para pensar um mundo sem ferro,
alumínio e outros metais, então vamos fazer que a renda gerada por essas
atividades seja em favor da Amazônia! Bem, diante desta celebração da vida,
o que ela, a Amazônia, representa para vocês? Eu separei algumas frases de
pensadores, tanto da Amazônia como de quem se dedica à sustentabilidade.
Rita Mendonça e Zysman Neiman, que analisam a relação do homem e
da natureza, perguntam-se em um de seus livros, quando se referem à
importância da floresta. Leia, aqui, por favor, Antônio.
– Que seria de nós se não a tivéssemos perto ou longe, para nos dar a
esperança de um dia nos tornarmos dignos de nossa rica experiência
humana? A floresta simboliza o próprio processo de aprendizado da vida.
Ela dá sentido às atividades humanas. Ou melhor, ela nos faz questionar
o sentido do que fazemos. Quando entramos em uma área natural quase

Viagem à Amazônia | 237


João Meirelles

sempre nos sentimos bem, percebemos que alguma coisa muda. Quanto
mais nos aprofundamos nessa relação, nessa intimidade com os elementos
naturais, percebemos que ali há uma grande escola que nos proporciona uma
das raras oportunidades que temos para realmente evoluir. – Antônio lê e fica
satisfeito, todos sorriem.
– Agora vou ler algumas palavras do filósofo australiano Peter Singer, extraídas
de seu livro Ética prática. Ouçam lá: Uma nova metáfora é apropriada: o
que restou das verdadeiras florestas assemelha-se a ilhas em meio a um
oceano de atividade humana que ameaça destruí-las. Isto confere às regiões
selvagens e incultas um valor de raridade que constitui a base de um forte
argumento em favor da preservação.
– Nossa, quanta coisa bonita. Bem profundo e simples. Deixa eu copiar pro
meu diário – Juju, com lápis na boca, puxa as minhas anotações.
– Ah, então eu posso interferir no destino da Amazônia? – Gabriel entra na
conversa depois de longo silêncio.
– Claro que sim. Não só pode, como deve. Se não interferirmos, vai virar tudo
bife e soja. Todos podemos, todos devemos. Somos cidadãos brasileiros,
com direitos iguais. E, se olharmos para os nossos vizinhos, dos outros oito
países amazônicos, temos que fazer tudo juntos. Aliás, o mundo espera
de nós exatamente isto: que façamos uma intervenção em prol da vida,
do cuidado, do bem, que protejamos os mais frágeis, que ofereçamos
oportunidades aos excluídos. Não podemos ser os meninos da porteira, que
ficam pendurados nos palanques esperando um trocadinho e vendo a vida
ser destruída!

***

– A diferença entre vocês que viajaram comigo e você, leitor, que chegou até
aqui é que agora as informações estão aí, na mesa, claras para todos. Cada
um como indivíduo pode tomar decisões com maior propriedade, pode seguir
o seu caminho e informar-se ainda mais sobre a Amazônia.
– O que o tio está querendo é que a gente se posicione! Defina em que time
estamos jogando! – Antônio apresenta-se.
– Tu entendeste bem. Ou tu és pelo planeta, pelas sete próximas gerações,
pelo socioambiental, pela restauração ambiental, pela economia
sustentável, ou tu és um gastão, um chupim, tu te achas o tal, só pensas

Viagem à Amazônia | 238


João Meirelles

em ti e vais torrar o planeta em vida, e deixar nada a teus filhos e netos,


não estás nem aí para a próxima geração, pior ainda se for para pensar nas
próximas sete gerações!
– Vamos fazer uma lista do que podemos, por nossa conta, fazer?
– Vamos começar? – Juju propõe-se a pensar em algo prático.
– Juju, tu primeiro – sugere, fugaz, Antônio, sem saber o que propor.
Ela ainda fez uma cara feia, mas já tinha uma lista, meio pronta. Era para ela
mesmo, do tipo: o que eu pretendo fazer no ano que vem... E leu para todos.
– Número um: comer menos carne. De boi, principalmente. Vou comer só
duas vezes por semana, no máximo. Número dois: perguntar pro cara do
supermercado e da venda de onde vem tudo: a carne, o arroz, a banana.
Enfim, saber de onde vêm as coisas que consumimos.
– A minha lista começa assim: quero fazer uma nova visita aqui na Amazônia.
Tem muito lugar por onde a gente passou rapidinho, ou que nem visitamos.
Eu quero conhecer melhor o Marajó, o Amapá... – completa Gabriel.
– Continuando... – Juju, como a reclamar da intromissão de Gabriel. – Número
três: este ano vou dar de presente somente coisas vindas da Amazônia. E vou
escolher direitinho de que comunidades vou comprar. Se der, ainda compro
direto dos produtores e artesãos mesmo.
– Boa ideia. Melhor ainda: eu proponho que toda escola crie o seu “Cantinho da
Amazônia”. O que acham? – Gabriel volta à carga.
– Ah, eu acho que a gente deveria organizar uma feirinha da Amazônia lá na
escola! – propõe Antônio. E a lista seguiu-se por um bom tempo.
– A gente podia colocar na internet um vídeo desta viagem... – continua,
inspirado, Gabriel.
– Estou gostando, dá para fazer muita coisa. Mas pensem bem, tem que ser
algo bom para as pessoas da Amazônia, que melhore a vida delas, e não
apenas a de vocês. É legal curtirem a viagem, mas isso tem que ter um
impacto imediato e direto para as pessoas da região. Tem que ser uma troca.
Um aprendizado para todos!
– Ah, tenho mais uma coisa pra lista – diz Gabriel. – Eu gostaria de fazer um
estágio em uma ONG, uma empresa, um centro de pesquisa. Acho que isso
vai me ajudar, na minha profissão.
– Boa ideia, Gabriel. Mas, lembra-te, tu tens que fazer o que for para ser feito.
Se tiveres que carregar caixa, vais carregar caixa, não podes escolher...

Viagem à Amazônia | 239


João Meirelles

– Tem outra coisa, tio. A gente poderia desenvolver uma “pegada amazônica”.
Não tem aí o site da “pegada ecológica”? Aí a gente ia medir o impacto da
gente na Amazônia! – Gabriel, propõe, feliz da vida.
– Uau, genial, Gabriel. Vamos pensar nisso juntos? Aliás, nós poderíamos
desenvolver um aplicativo, um app, convidando diversas pessoas que vocês
visitaram nesta viagem, que tal? A gente tem que associar nossos atos
cotidianos ao que se passa na Amazônia.
– Tio, tenho mais uma proposta: a gente tem de ler notícias sobre a Amazônia
toda semana, pra não ficar longe daqui. É fácil entrar no site das Manchetes
Socioambientais do Instituto Socioambiental, o ISA. Tem aquele também da
Amazônia Real, da Envolverde, da Página 22... – Juju acrescenta.
– De agora em diante vocês, meus sobrinhos, são cidadãos amazônicos, que
beberam da água de muitos rios – brancos, azuis e pretos. Vocês tiveram
o privilégio de conversar com tanta gente, ouvir tantas opiniões que não
podem ficar indiferentes.
– É mesmo, a mosquinha da Amazônia nos picou. Tamos contaminados
pra sempre! E felizes com isso! Quando alguém falar a palavra mágica
“Amazônia”, pronto, a gente tem uma opinião! – Juju posiciona-se.
– Eu gostaria que vocês diariamente se perguntassem: o que hoje eu vou fazer
em prol da Amazônia?
– Puxa, tio, legal, muito obrigado, e a próxima viagem, pra onde vai ser?
Pantanal, Mata Atlântica, Cerrado? – pergunta Juju.

Diário da Juju: Acho que é a última vez que eu escrevo neste


diário. Amanhã voltaremos pra casa. Mais um fim de tarde
lindo de morrer. E a água quente do Tocantins é deliciosa.
Uma coisa eu sei: a Amazônia mora dentro de mim.

– Nas próximas férias, a gente deveria vir pra cá. Chamar todo mundo, os amigos,
os primos... pra tomar um banho de Amazônia! – Juju sorri com a ideia.
– Eu topo! – Antônio dá o seu veredicto de maneira prática e direta.
– Conhecer para valorizar. Só se conserva o que se conhece, não é? A gente tem
que provar pro tal do Mário de Andrade que “o brasileiro vive o Brasil e, sim, o
descobre” – Gabriel filosofa, modificando a famosa frase do escritor paulista.

Viagem à Amazônia | 240


João Meirelles

– Sim, sim, sim! – entusiasma-se Juju.


– Esta é uma proposta bem concreta. Vocês precisam planejar isso direito para
não ficar só na conversa. Se for necessário, eu convido alguns amigos para
fazerem umas palestras para mobilizarem as turmas de vocês.
– Acho bom. Temos que ser bem sérios. Organizar direito. Ah, tio, quero voltar
mesmo. E como eu faço? – Juju pergunta.
– Eu acho que vocês têm que se engajar num projeto em suas próprias escolas,
em suas faculdades, entrem em um programa de uma ONG ou de uma
universidade, montem um grupo para esta viagem. Enfim, vocês têm que
procurar meios de efetivamente colocar a mão na massa. E refletir sobre
isso, avaliar o que se passa.
– Este é o fim de nossa viagem pela Amazônia? – Juju, triste, percebe que acabou...
– Não, é o começo. Daqui para a frente, a Amazônia está dentro de vocês,
no coração de vocês, é uma bela jornada que só se inicia, cada passo é
uma viagem, uma reflexão. Lembrem-se: pequenas atitudes fazem toda a
diferença. Na hora de tomar o açaí, lembrem-se dos milhares de jovens que
sobem nas palmeiras arriscando-se por vocês; quando forem ao mercado
e olharem as prateleiras, não se esqueçam de procurar se há algo feito na
Amazônia. As atitudes conscientes são viagens de conhecimento como estes
dias que passamos juntos! É só seguir o que o coração manda. Esta viagem
está apenas começando... Para finalizar, quero citar outra frase do grande
escritor mineiro João Guimarães Rosa, aquele que escreveu Grande Sertão:
veredas. A frase é a seguinte: “Faça pirâmide, não faça biscoito!”
– Como assim? – Antônio pergunta.
– Não façam coisas medíocres, apressadas, que duram minutos. Façam
pirâmides que durem sete gerações vezes sete gerações vezes sete gerações.
– Fazer coisas que nos façam ter orgulho da gente mesmo, não é? – Juju pontua.
– Exatamente, atitudes que saiam do mais fundo de suas almas. Lembrem-
se sempre da Grande Lei dos Haudenosaunee, da Confederação das Seis
Nações Iroquesas, da América do Norte:
– Em cada deliberação, devemos considerar o impacto de nossas decisões nas
próximas sete gerações! – todos gritamos bem alto, Antônio, Juju, Gabriel e
eu, abraçados, de frente para o rio Tocantins, juntos e emocionados, neste
fim de tarde memorável.
Fim

Viagem à Amazônia | 241


Viagem à Amazônia | 242
João Meirelles

O autor

João Meirelles é paulistano de nascimento (1960), paraense de coração e


amazônida por opção. Viaja pela Amazônia desde os seus nove anos. Em
2004, mudou-se para Belém, Pará, com Fernanda Martins, sua esposa.
Como empreendedor social, dirige o Instituto Peabiru desde a sua fundação
em 1998. Como ativista ambiental, atua na defesa das florestas tropicais.
Em diferentes momentos, contribuiu para a Fundação SOS Mata Atlântica,
o Instituto de Ecoturismo do Brasil e outras entidades. Como escritor, é
autor de dezoito obras, metade das quais sobre a Amazônia. São dois livros
de contos: O abridor de letras (Prêmio Sesc de Literatura, Record) e Aboio
(editora Laranja Original). Sobre a Amazônia, destacam-se o Livro de ouro
da Amazônia (Ediouro) e Grandes expedições à Amazônia brasileira (dois
volumes, Metalivros). É administrador de empresas pela Fundação Getúlio
Vargas de São Paulo.

Viagem à Amazônia | 243


João Meirelles

Recomendações de leitura, filmes, websites e


mídias sociais e referências
Preparei algumas listas que podem ser úteis para a continuidade das
pesquisas sobre a Amazônia. Uma de livros, uma de filmes, uma de websites
e de mídias sociais e uma de autores, incluindo viajantes, e de textos
mencionados neste livro. Para elaborar as quatro listas, adotei os seguintes
critérios: 1. relevância da obra para a compreensão da Amazônia; 2.
qualidade da narrativa; 3. disponibilidade no mercado (foram consideradas
apenas obras acessíveis, por meio eletrônico e impresso); 4. obras em língua
portuguesa (no caso de filmes, se há versões legendadas ou dubladas).
Naturalmente, trata-se de uma seleção pessoal que, ao longo do tempo,
pode ser modificada. O interessante seria que os leitores criassem a sua
própria lista.

Recomendação de leitura

BECKER, Bertha K. As Amazônias de Bertha K. Becker: ensaios sobre geografia e sociedade na Região
Amazônica. Rio de Janeiro: Garamond Universitária, 2015. 3 v. ISBN 978-8576174295. A autora é
uma estudiosa da região, com vasta obra, da qual se destacam A urbe amazônida (2005) e Amazônia:
geopolítica na virada do III milênio (2004).

CALLADO, Antônio. Quarup. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. 1.ª edição em 1967. Ficção. ISBN
9798522005337. Uma crítica mordaz ao choque de civilizações na ditadura militar, ambientado no
Parque do Xingu. Ler também o romance A expedição Montaigne (2014). ISBN 978-85-0301-212-6.

CUNHA, Euclides da. Produziu diferentes textos, reunidos nos livros Contrastes e confrontos, Peru versus
Bolívia, À margem da história. Acredita-se que o autor organizaria uma nova obra, tal como Os Sertões,
sob o título de Paraíso perdido. Há diferentes edições, inclusive de acesso eletrônico.

DANIEL, Padre João. Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. 600
p. ISBN 85-85910-54-2. Escrito no cárcere entre 1757 e 1783, publicado em partes no século XIX.

HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Ficção. Ver também outras obras
de ficção do autor, como Relato de um certo Oriente (1989), Cinzas do Norte (2005) e Órfãos do Eldorado
(2008).

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HEMMING, John. Árvores de rios: a história da Amazônia. São Paulo: SENAC, 2011. Título original: Tree
of Rivers, the story of the Amazon. ISBN 9780500288207. John Hemming conhece bem a questão
indígena e é autor também de Ouro vermelho: a conquista dos índios brasileiros (2007), publicado na
versão original em 1978 e 1985, sob o título Red Gold: the Conquest of the Brazilian Indians. ISBN
978-85-314-0960-8.

JURANDIR, Dalcídio. Marajó. Belém: Edufpa. ISBN: 9788524704499. Essa obra é parte de um conjunto
de dez romances. A primeira edição é de 1947. Destacam-se ainda: Chove nos campos do Cachoeira
(1.ª ed. em 1938) e Ponte do Galo (recém-lançado em segunda edição revisada). Dalcídio Jurandir,
originário da ilha do Marajó, é um dos melhores ficcionistas paraenses.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo:
Companhia das Letras, 2015. ISBN 978-85-359-2620-0.

MEDEIROS, Sérgio (org.). Makunaíma e Jurupari: cosmogonias ameríndias. São Paulo: Perspectiva, 2002.
ISBN 85-2733-0301-9.

MELLO, Thiago de. Amazonas: pátria da água. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 1.ª ed. em 1987. ISBN
8528608689. Ver também sua poesia e outros ensaios, como Amazonas: no coração encantado da
floresta (2003).

MINDLIN, Betty. Diários da floresta. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2006. Mencionem-se igualmente:
Nós Paiter: os Suruí de Rondônia (1985), Moqueca de maridos (1997), Mitos indígenas (2000), O
primeiro homem e outros mitos dos índios brasileiros (2001). A antropóloga sempre procura escrever
com narradores indígenas como coautores.

RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno.
São Paulo: Global. 1.a ed. em 1982. ISBN 978-85-260-2366-6. Um dos mais abrangentes sobre a
temática, assim como outras obras de Darcy Ribeiro.

SOUZA, Márcio. Amazônia indígena. Rio de Janeiro: Record, 2015. ISBN 9788501103161. Cabe citar
também História da Amazônia. Rio de Janeiro: Record, 2015. ISBN 978-8501114662. As duas
obras oferecem uma visão geral e mais atualizada sobre essas questões. Márcio é também autor de
importantes livros de ficção, como Galvez, Imperador do Acre (1976) e Mad Maria (1980), e de não
ficção, entre os quais A expressão amazonense (2004).

VILLAS BÔAS, Orlando; VILLAS BÔAS, Cláudio. A Marcha para o Oeste: a epopeia da Expedição Roncador-
Xingu. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. ISBN 9788535919295. Os irmãos Villas Bôas
escreveram contos indígenas, como os reunidos em Xingu: os índios, seus mitos (1.a ed. em 1970), e
outras obras.

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Filmes

AGUIRRE, a cólera dos deuses (AGUIRRE, Der Zorn Gottes). Direção: Werner Herzog. Alemanha, México
e Peru, 1973. Procura retratar a insana viagem do facínora Aguirre, interpretado por Klaus Kinski.
Também é de Herzog o filme Fitzcarraldo (1982), ambientado no Peru: acompanha o trágico desfecho
da transposição de uma embarcação para o transporte da borracha entre os rios Ucayali e Pachitea, na
Amazônia peruana, no fim do século XIX. Também com a participação de Klaus Kinski.

AMAZÔNIA ocupada. Direção: Priscilla Brasil. 2019. Documentário sobre a região.

BYE BYE Brasil. Direção: Cacá Diegues. 1979. Uma viagem pelo interior do Brasil na ditadura militar, um
dos mais importantes filmes brasileiros.

IRACEMA, uma trama amazônica. Direção: Jorge Bodanski e Orlando Senna. 1974. Uma jovem prostituta
e um caminhoneiro pelas estradas de terra da Amazônia. Proibido pela censura até 1980. Em 2004,
Bodansky preparou um documentário sobre o tema Era uma vez Iracema, além de outros trabalhos
sobre a Amazônia.

O ABRAÇO da serpente (EL ABRAZO de la serpiente). Direção: Ciro Guerra. Colômbia, Venezuela e
Argentina, 2016.

PUREZA. Direção: Renato Barbieri. 2019. Um drama baseado na biografia de Pureza Lopes Loyola, de
Marabá, que busca seu filho, escravizado por pecuaristas no Pará. A personagem Pureza é interpretada
pela atriz paraense Dira Paes.

RIBEIRINHOS do asfalto. Direção: Jorane Castro. 2011. Curta-metragem sobre mãe e filha que moram
em uma ilha na frente de Belém. A filha sonha em morar na cidade.

Websites e mídias sociais

Agência Envolverde Jornalismo. Disponível em: https://envolverde.com.br.

Amazônia Real. Disponível em: https://amazoniareal.com.br. Website que trata de diversas questões
regionais, especialmente as relacionadas ao estado do Amazonas.

Associação em Áreas de Assentamento do Estado do Maranhão (Assema). Disponível em: https://www.


facebook.com/AssemaGentedeFibra.

Associação Terra Indígena Xingu (Atix). Disponível em: https://www.facebook.com/atixxingu/.

Expedição Rios Voadores. Disponível em: http://riosvoadores.com.br.

Instituto Biodinâmico (IBD). Disponível em: https://organis.org.br/associado/ibd/.

Instituto Centro de Vida (ICV). Disponível em: https://www.icv.org.br.

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Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Disponível em: https://ipam.org.br/sobre-o-ipam/.

Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Disponível em: https://imazon.org.br.

Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Disponível em: http://portal.inpa.gov.br. Órgão


federal dedicado às ciências naturais na Amazônia.

Instituto Peabiru. Disponível em: https://peabiru.org.br

Instituto Socioambiental (ISA). Disponível em: https://www.socioambiental.org/pt-br. Uma das principais


organizações da sociedade civil atuando na Amazônia, o ISA, em seu website, apresenta um panorama
da região em “Povos indígenas do Brasil”.

Lúcio Flávio Pinto: A Agenda Amazônica de um jornalismo de combate. Disponivel em: https://
lucioflaviopinto.wordpress.com.

Movimento das Mulheres das Ilhas de Belém (MMIB). Disponível em: https://www.facebook.com/
mmibcotijuba

Museu Paraense Emílio Goeldi. Disponível em: https://www.museu-goeldi.br. O mais antigo órgão federal
de pesquisa e ensino, além de museu. Referência internacional para a região.

Página 22. Disponível em: https://pagina22.com.br. Website dedicado à sustentabilidade, com muitas
matérias sobre a Amazônia.

Projeto Saúde e Alegria. Disponível em: https://saudeealegria.org.br/en/home/.

Rede Amazônica de Informação Socioambiental (Raisg). Disponível em: https://www.


amazoniasocioambiental.org/pt-br/.

Territorio Indígena y Gobernanza. Disponível em: http://territorioindigenaygobernanza.com/web/el-buen-


vivir/. Um website que aborda diversas questões relacionadas aos territórios dos povos originários, do
ponto de vista de diferentes povos das Américas.

Referências

AGASSIZ, Louis; AGASSIZ, Elizabeth Cabot Caree Louis. Uma viagem ao Brasil: 1865-1866. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938. Disponível em: https://bdor.sibi.ufrj.br/bitstream/
doc/177/1/95%20PDF%20-%20OCR%20-%20RED.pdf.

ASSIS, Francisco de. Oração. Disponível em: https://franciscanos.org.br/carisma/oracao-de-sao-


francisco.html#gsc.tab=0.

BATES, Henry Walter. Um naturalista no rio Amazonas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1944.
Disponível em: https://bdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/323/1/237%20T1%20PDF%20-%20OCR%20
-%20RED.pdf.

CAPRA, Fritjof. A teia da vida. São Paulo: Cultrix, 2012.

DARWIN, Charles. A origem das espécies. São Paulo: Martin Claret, 2020.

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DÓRIA, Carlos Alberto. Formação da culinária brasileira. São Paulo: Três Estrelas, 2014.

INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE. Livro vermelho da fauna brasileira


ameaçada de extinção. 2018. Disponível em: https://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/
comunicacao/publicacoes/publicacoes-diversas/livro_vermelho_2018_vol1.pdf.

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Livro de registro dos saberes.


Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/496.

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Livro de registro das celebrações.


Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/495.

KIDDER, Daniel Parish. O Brasil e os brasileiros: esboço histórico e descritivo. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1941. Disponível em: https://bdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/289/1/205%20T1%20
PDF%20-%20OCR%20-%20RED.pdf.

LOVELOCK, James. Gaia: um novo olhar sobre a vida na Terra. Lisboa: Edições Setenta, 2020. E-book.

MORAIS, Raimundo. O meu dicionário das cousas da Amazônia. Brasília, DF: Senado Federal, 2013.
Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/539473/001035140.
pdf?sequence=7&isAllowed=y.

MORIN, Edgar. Diversas obras.

NÆSS, Arne. Ecologia profunda (Deep Ecology).

NEIMAN, Zysman; MENDONÇA, Rita. Ecoturismo: discruso, desejo e realidade. Turismo em Análise, São
Paulo, v. 11, n. 2, p. 98-110, nov. 2000.

ORTON, James apud MEIRELLES, João. Grandes expedições à Amazônia Brasileira 1500-1930. São
Paulo: Metalivros, 2009.

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

SINGER, Peter. Ética prática. São Paulo: Martins Fontes, 2018.

VIEIRA, Antônio apud MEIRELLES, João. Grandes expedições à Amazônia Brasileira 1500-1930. São
Paulo: Metalivros, 2009.

VON MARTIUS, Carl Friedrich Philipp. in MEIRELLES, João. Grandes Expedições à Amazônia Brasileira
1500-1930. São Paulo: Metalivros, 2009

WALLACE, Alfred Russel. Viagens pelo Amazonas e rio Negro. Brasília, DF: Senado Federal,
2004. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1092/706863.
pdf?sequence=4&isAllowed=y.

Além disso, foram mencionados Euclides da Cunha, João Daniel e Márcio


Souza. Suas obras encontram-se na Lista I – Livros.

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