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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUÇÃO EM EDUCAÇÃO
E CONTEMPORANEIDADE

EDNA BITTELBRUNN

FAMÍLIA RECOMPOSTA NA ESCOLA: DEVORAR O


MODELO, AMAR A DIFERENÇA.

Claude dessinant (1954)

SALVADOR
2016
. PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO: TIMBRES E RUÍDOS ESCUTADOS

Diante das amplas e complexas questões que devem ser enfrentadas


para se entender como acontece o diálogo entre ambas as instituições de
formação do sujeito (a família e a escola), serão utilizados alguns construtos da
psicanálise, em interlocuções com aspectos da educação para fins de debate e
interpretação. Alguns aportes psicanalíticos remetidos a um texto acadêmico,
provavelmente nos permite recordar a própria intenção de Freud, junto ao
ensino superior. Nas instituições de nível superior, há um espaço a ser
preenchido ou ainda continuamente discutido, pois o diálogo com a academia
era bastante incentivado por Freud, e ele mesmo falava desse lugar. Nesse
sentido, Friedman e Schustack (2004, p. 66) relatam que: ele era um cientista,
empenhando-se com todas as suas capacidades para compreender as
estruturas e leis biológicas subjacentes às respostas psicológicas.

Na construção da teoria, Freud preocupava-se em deixar seus achados


para que outros estudiosos dessem continuidade, sendo a academia um
desses lugares de continuidade. Entretanto, segundo Carneiro (2013, p. 77)
percebe-se, porém, a falta de afinidade entre a psicanálise e o modelo de
ensino da universidade, apesar da rica interlocução mantida entre elas. A
autora acrescenta que o criador da psicanálise, Sigmund Freud, argumentava
que a teoria psicanalítica até poderia ser ensinada na universidade, através de
aulas teóricas, de forma crítica, como disciplina e com o rigor que uma teoria
sugere, pois o conjunto de sua obra já teria a dimensão necessária a um
debate, para acréscimos, críticas, enfim, tal como ocorre com a teoria, na
atualidade.

O pai da teoria psicanalítica, conferindo a importância da descoberta do


inconsciente para o comportamento e para a sociedade, temia que as ciências
positivistas e cartesianas, da época, fossem a única maneira interpretativa do
comportamento humano e, desta maneira, abandonassem o estudo fértil da
psicanálise, que apenas se iniciava. (SCHULTZ; SCHULTZ, 2006)

Mesmo com a amplitude de possibilidades presentes no entorno dessa


teoria, localizando-a em diferentes setores e campos científicos, a ideia da
Psicanálise é ainda bastante estereotipada, em nosso meio, muitas vezes
associa-se a psicanálise ao trabalho psicoterápico, de longa duração, acessível
apenas a pessoas de alto poder aquisitivo. Nesse sentido, Ornellas (2005, p.
47) relata:

Associamos a psicanálise com divã; com a figura do analista e


do paciente, com o trabalho de consultório geralmente longo.
Esta ideia correspondeu durante muito tempo, a prática na área
que se limitava exclusivamente ao consultório. As combinações
possíveis entre psicanálise e antropologia, psicanálise e arte,
psicanálise e epistemologia, psicanálise e educação e até
psicanálise e religião têm alcançado uma notável efervescência
e pertinência intelectual.

No entrelaçamento de saberes com outros campos do conhecimento, a


psicanálise apresenta-se como protagonista nos debates sobre subjetividade, e
outros tantos campos do conhecimento; trabalhando saberes também em
aspectos que incluem o coletivo e suas manifestações. Nessa perspectiva,
Mrech (2013, p. 63) postula:

A psicanálise aparece como um procedimento, um método e


um conjunto de concepções a respeito da vida psíquica. Como
procedimento, a psicanálise se direciona para a clínica
psicanalítica, fazendo a investigação das formações do
inconsciente, tais como os chistes, os atos falhos, as obras de
arte, os lapsos, os sintomas, os sonhos, etc. [...] e trabalha
também com diversas teorizações a respeito da prática clínica
e de reflexões a respeito da sociedade e da cultura.

Frente a essa premissa, torna-se necessário frisar que a psicanálise


surgiu com Sigmund Freud, no final do século XIX. Sabendo que o inconsciente
contém material inacessível e poderia ser estudado nas manifestações
simbólicas, ele se lançava na busca de afetos latentes, daquilo que é
manifesto, por meio de conteúdos inconscientes, como em atos falhos, sonhos,
lapsos e outros.

Tem-se, no inconsciente, um construto fundante da psicanálise, Freud


(1915) postula que o inconsciente é um lugar desconhecido pela consciência,
uma outra cena. (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 375) O próprio Freud
(1923/1996a, p. 25) explana as investigações sobre o aparelho psíquico e incita
o julgo cientifico:
A divisão do psíquico em o que é consciente e o que é
inconsciente- constitui a premissa fundamental da psicanálise,
e somente ela torna possível a esta compreender os processos
patológicos da vida mental, que são tão comuns quanto
importantes, e encontrar lugar na estrutura da ciência. Para
dizê- lo mais uma vez, de modo diferente: a psicanálise não
pode situar a essência do psíquico na consciência. [...]

Desta maneira, Freud coloca a instância consciente sob suspeita;


declara que o homem não é o senhor da própria casa, coabita com forças
conflituosas existentes no sistema inconsciente. (FREUD, 1915/2006c) O pai
da psicanálise desde o início da sua carreira foi levado a investigar e a
desenvolver, o inconsciente enquanto conceito e suas manifestações, e, assim,
como explorá-lo por meio da associação livre (pelo paciente) e da escuta (pelo
psicanalista). Ainda sobre o inconsciente, Guareschi (2004, p. 36) acrescenta:

Para a psicanálise, o que move os comportamentos, ou o que


os motiva, é o que está no inconsciente. O inconsciente possui
elos com o consciente e com o pré-consciente (Ego - Super
Ego). Entretanto, é ele que dá origem aos processos mentais.
Neles estão os elementos instintivos que nunca foram
conscientes, que não são acessíveis à nossa consciência;
além, é claro, do material que foi excluído da consciência, pela
censura e repressão.

Diante da discussão sobre o conceito de inconsciente; atualiza-se o


questionamento de Ornellas (2005, p. 51): como educar o ser humano, visto
que o inconsciente não pode ser ensinado, educado e assujeitado? Mas a
autora reitera que a psicanálise não se propõe a educar, mesmo porque educar
está no campo da impossibilidade, pela abrangência do ato educativo; mas,
sim, pensar uma educação que possa se configurar como psicanaliticamente
orientada. Desse modo, outras possibilidades se presentificam: o fato de não
ser possível diluir a psicanálise na educação não significa que não se possa
instruir uma prática educativa inspirada na psicanálise. (ORNELLAS, 2005, p.
52)

Ao fazer referência, nessa pesquisa, a psicanálise e educação não se


trata de submeter os participantes ao tratamento psicanalítico (ASSIS, 2007),
mas aplicar conceitos na análise de fenômenos que têm dimensão subjetiva e
também social. Neste empenho, foram movimentados conceitos,
conhecimentos e contradições a respeito de arranjos familiares e escola,
principalmente na relação professor x aluno. A teoria psicanalítica fornece
fundamentos para uma série de demandas da educação e da família, pois a
psicanálise se apresenta como uma opção de encontro com o outro, disponível
para se pensar frente às intercorrências da vida e das vivencias pessoais, que
são infinitamente variáveis, em diferentes contextos.

Assim, para tal entendimento das mudanças referentes às novas


configurações familiares, adotadas ou não na escola, o aporte da teoria
psicanalítica será utilizado. Freud (1905 apud ORNELLAS, 2011a) acalentava
um sonho de que a psicanálise pudesse um dia vir a contribuir como um todo
para a sociedade e especialmente com a educação. O que acontece hoje já era
almejado pelo próprio Sigmund Freud, em 1917, quando reintegrou essa
conjunção de conhecimentos. Freud relatava, dentre as aplicações da
psicanálise, a dos estudos sobre educação, que excitou o interesse e
despertou muitas esperanças.

A vertente psicanalítica e seu precursor Sigmund Freud são amplamente


divulgados, sendo a teoria constantemente revisitada e atualizada. Desta
maneira, atende-se ao desejo primevo de Freud, pois a psicanálise sustenta,
na contemporaneidade, certo grau de notoriedade.

No campo da educação, a leitura não se configura pela similaridade da


clínica, assim, ao se conjugar educação e psicanálise, não se pretende fazer
uma pedagogia analítica. (KUPFER, 2000) Considera-se, entretanto, que o
conhecimento psicanalítico pode fornecer construtos para uma série de áreas,
tais como a Educação, pois ele não fornece aportes prontos nem tem receitas
sobre o que deve ser feito na escola (ORNELLAS, 2005), ainda que reflita
sobre o que tem sido feito, vez que pode contribuir na escuta dos discursos que
ali sucedem.

Mrech (2013) remonta através da análise de obras que discorrem sobre


o tema, o encontro da psicanálise e de suas implicações para a educação,
elucidando que, a princípio, tais obras se referiam à pedagogia. Numa rede
conceitual, a autora divide essa trajetória em quatro grandes períodos, e elenca
algumas produções que caminharam para a demarcação desse campo de
estudo. O primeiro período nos remete às obras e contribuições anteriores a
1925; que se respaldavam em questionamentos sobre o exercício da docência:
educadores constatavam que era preciso modificar sua prática, partindo dos
ensinamentos psicanalíticos. (MRECH, 2013, p. 64) Nessa perspectiva inicial,
já colaboravam Sandor Ferenczy, em 1908, realizando investigações a respeito
da relação do educar no processo de formação dos alunos, e Oskar Pfister,
com as publicações: Ideias delirantes e suicídio nos escolares e Método
psicanalítico, onde Freud fez o prefácio e compartilhava a esperança de Pfister
de que a psicanálise poderia servir à pedagogia. (MRECH, 2013, p. 65)

Em 1914, Freud publica: Sobre a psicologia do escolar discutindo, dentre


outros aspectos, a figura paterna e o processo transferencial posterior, com os
professores (circuito transferencial). Também como indicativo de obra
significativa para esse primeiro momento da psicanálise e sua relação com a
educação (pedagogia), em 1921, Hanns Zulliger discorre sobre a escola como
foco de estudo psicanalítico, em seu livro: La psychanalyse á l’école.

O segundo período de relevância estende-se de 1925 a 1945, sendo


destacado, por Filloux (2001), como um período fértil em discutir aspectos
específicos, com detalhes para as questões escolares. Obras como a de Serge
Bernfeld, Sisyphe ou les limites de L’education, ou do próprio Freud: Novas
conferências de introdução à psicanálise, onde são discutidos aspectos do
analista e do pedagogo. Questões da educação e da pedagogia são
fomentadas e discutidas na primeira revista para uma pedagogia psicanalítica.
Entre 1926 e 1937, houve a publicação de mais de 300 artigos, escritos por
renomados representantes da psicanálise: Willhem Reich, Sandor Ferenczi,
Willy Kendig, Erich Fromm e outros, nos quais estes autores retratavam
questões como a relação professor x aluno, o inconsciente do pedagogo, o
mal-estar na sala de aula, curiosidade sexual, dentre outras.

Dando continuidade aos marcos históricos, temos o terceiro período,


entre 1945 e 1970, no qual, de forma mais crítica, se continua a pensar as
possíveis relações entre psicanálise e educação. Na publicação de Charles
Baudoin, 1954, L’âme enfantine et la psychanalyse, prevalecem os estudos e a
análise de relatos de crianças e alunos com dificuldades psicológicas. Em
1956, temos a contribuição de Anna Freud: Psicanálise para pedagogos. Nesse
livro, a autora discute como as crianças suprem suas necessidades e seus
anseios, no ambiente escolar, de forma diferenciada, e que os professores
podem dar vazão aos desejos das crianças em contraposição a debates sobre
aspectos da repressão infantil via docência.

O marco significativo de publicações também destaca Georges Mauco,


com Psicanálise e educação. Nele, o inconsciente e suas manifestações nos
pais, professores e alunos, são discutidos. As contribuições de Maud Mannoni
assinalam o quarto período, pós-1970, merecendo destaque pelas obras A
criança atrasada e a mãe, em 1973, e Educação impossível (1977). Nesses
livros, Mannoni discute seu ponto de vista através de aspectos que não se
restringem à pedagogia da sala de aula e sim à amplitude do campo da
educação e psicanálise. Outros autores, com orientação lacaniana, também
deixaram suas marcas: Catherine Millot (1979), Ferdinand Oury e Vasquez
(1967) e Marie-Claude Baietto.

Na investigação de como os educadores poderiam trabalhar a


psicanálise, na sua (im)possibilidade, Mireille Cifali e Jeanne Moll, em
Pedagogie et Psychanalyse, remetem a uma discussão sobre as esperanças,
decepções, confrontações e conjugações as sombras das teorias. (CIFALI;
MOLL apud MRECH, 2013, p. 69)

No emaranhado de temas discutidos, a multiplicidade de elementos que


orbitam entre educação e psicanálise se renova, favorecendo o campo, nos
registros literários: o inconsciente, o desejo de saber, o desejo de ensinar, a
transferência, o Complexo de Édipo, na vertente freudiana. É pertinente citar
que as contribuições contemporâneas e mais recentes, também comportam
temas referentes à orientação lacaniana e, nesta pauta, se apresentam
conceitos tais como: imaginário, simbólico e real, o sujeito do suposto saber,
gozo, desejo, ato analítico, escuta, entre outros; referentes à família, temos as
discussões sobre, complexos/constelações familiares, função paterna.
5.1 CONSTRUTOS DA EDUCAÇÃO E DA PSICANÁLISE PARA O CAMPO
PESQUISADO

Diante dos esforços gerados por estudos sobre educação e psicanálise,


após a realização desse resgate da historicidade dos campos da psicanálise e
da educação, redireciona-se este estudo para a discussão específica do
conceito de escuta e outros constructos que acompanharam esta pesquisa
doutoral.

A escuta, significante bastante abordado, segundo a orientação


psicanalítica, tem conotação diferente do ouvir/da audição. Esse escutar tem
um diferencial da palavra usada e entendida, no senso comum, sendo um
importante instrumento de trabalho da psicanálise, que se diferencia do ouvir,
que é biológico, servindo apenas para deixar emergir ondas sonoras. [...] pode-
se, inicialmente, dizer que o instrumento de escuta envolve não só o sentido de
ouvir, mas o de fazer uma leitura subjetiva da linguagem apresentada pelo
sujeito que está sendo escutado. (ORNELLAS, 2005, p. 76) Seria a escola,
portanto, um palco de escutas, escutas dos corredores, das salas de aula, do
silêncio, dos conflitos, das tensões. Escutar é dar sentido ao mundo que cerca
o aluno, o professor, os pais. Ao escutar os ditos e não ditos, produzimos e
ampliamos o mundo das coisas. (ORNELLAS, 2011a) Recorda-se que o
significante escuta encontra seu nascedouro em Freud, frente à discussão da
atenção flutuante, logo após se assentando como originária da clínica de
orientação lacaniana, onde a educação psicanaliticamente orientada toma de
empréstimo. Diante desse instrumento, Lacan (1979) chama a atenção para
que o analista, na sua escuta, deva estar investido de atenção e interesse pelo
outro, no caso, pelo analisando. O analista precisa dar atenção à singularidade
do sujeito, estar atento ao que escuta, como nos disse Lacan (1953/1998).
Esse movimento de atenção flutuante pode fazê-lo intervir diante de situações
imprevisíveis, não esperadas, que talvez instiguem o outro elaborar,
provocando um diferente manejo do processo terapêutico, trazendo novas
inquietações, abandonando outras, e direcionando-se para um possível
apaziguamento dos sintomas. Porém, é prudente relembrar que esse
instrumento “escuta” encontra seu conceito, primeiro em Sigmund Freud
(1912/1980), quando, em seus escritos, apresentou tal discussão, num artigo
realizado especificamente para os médicos, atrelando a ideia de atenção
flutuante.

Sigmund Freud dizia que era preciso que os médicos mantivessem a


atenção em suspenso, assim, ao mesmo tempo em que tentassem não
descartar o conteúdo amplo da fala do paciente, também não deveriam se
deter em nenhum ponto específico, para que, assim, de alguma forma,
pudessem ficar atentos ao discurso produzido, no dispositivo da análise, pelo
analisando. A advertência realizada por Freud aos médicos deveu-se à
observação dos próprios companheiros de medicina, que supunham ter o
“saber total” sobre os sintomas de seus pacientes, sem ao menos fazer uma
análise de aproximação maior, através da escuta. Esse gesto freudiano pode
assinalar uma diferenciação no diagnóstico e manejo médico. O relato clínico
dos médicos, nos registros e discursos, poderia ser diferenciado, não
focalizando apenas os sintomas e sim as condições psíquicas, atreladas às
formações do inconsciente.

Na escola, alguém na escuta?

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