Huberto Rohden - Por Mundos Ignotos

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HUBERTO ROHDEN

POR MUNDOS
IGNOTOS
Uma Viagem Fantasticamente Real
Pelos Mistérios da Natureza
UNIVERSALISMO
Sumário

Advertência

Colóquios com a Alma da Natureza

Meu Encontro com Alu

Porque Brigavam Uzu e Ifi

A Sociedade dos Cálices Vivos

Entre Esqueletos Alvos e Negros

Colóquio Noturno com Ignis e Lúcia

Uma Alma em Quatro Corpos

Vida de Trevas – Núpcias de Luz

Aventuras Românticas de Dona Flora

Reencontro com Calcal

Amores Heróicos

Lorantácea Fraudulenta e Samambaia sem Amor

À Conquista da Luz

Dispersar!

A Feiticeira do Castelo Encantado

Núpcias Mortíferas

A Azáfama dos Barqueiros Vermelhos

Polícia de Farda Branca

O que Vi no Laboratório Ideal

Ondas do Além

Bandeirante do Infinito
Advertência

A substituição da tradicional palavra latina crear pelo neologismo moderno criar


é aceitável em nível de cultura primária, porque favorece a alfabetização e
dispensa esforço mental – mas não é aceitável em nível de cultura superior,
porque deturpa o pensamento.

Crear é a manifestação da Essência em forma de existência – criar é a transição


de uma existência para outra existência.

O Poder Infinito é o creador do Universo – um fazendeiro é um criador de gado.

Há entre os homens gênios creadores, embora não sejam talvez criadores.

A conhecida lei de Lavoisier diz que “na natureza nada se crea nada se aniquila,
tudo se transforma”; se grafarmos “nada se crea”, esta lei está certa, mas se
escrevemos “nada se cria”, ela resulta totalmente falsa.

Por isto, preferimos a verdade e a clareza do pensamento a quaisquer


convenções acadêmicas.
Colóquios com a Alma
da Natureza

Antes de abrires as páginas deste livro, toma a seguinte perspectiva.

A Natureza é o imenso repositório dos altos pensamentos de um Ser de infinita


potência, sabedoria e beleza.

Existem, no seio da Natureza, realidades que eclipsam as mais fantásticas


divagações dos poetas e as mais arrojadas concepções dos filósofos. O que
certos livros dão como produto da imaginação, é pura realidade. E a realidade
ultrapassa todos os limites traçados pelo engenho humano. Existem, de fato,
esses mundos ignotos, palácios encantados, lâmpadas maravilhosas, fórmulas
mágicas, chaves que abrem portas para regiões de infinitas surpresas...

O que digo nas páginas deste livro, em forma de romance e personificação


humana, é realidade histórica, como a ciência tem demonstrado e vai provando
cada vez mais. Quem nunca se deu ao estudo dos mistérios íntimos da Natureza
pensará que se trate de invenção arbitrária do autor, de simples devaneio
poético; mas o cientista e conhecedor dos fatos sabe que o fundo de tudo isto é
real, embora a forma que lhe dou seja roupagem fornecida por mim.

Este livro, para ser compreendido, supõe, portanto, que o leitor tenha certa dose
de noções de história natural; que saiba algo da vida das células, do jogo dos
átomos, dos mistérios da luz, dos prodígios da energia solar, dos processos vitais
do nosso organismo, das silenciosas maravilhas da flora e fauna, dos eventos
pré-históricos do nosso planeta e da raça humana e, sobretudo, da íntima
realidade do seu próprio Eu...

O contato com a alma da Natureza, a compreensão do seu espírito, torna o


homem melhor, mais calmo, mais sereno, mais amigo de seus semelhantes e
mais admirador da grandeza da Inteligência Cósmica.

Todos os grandes vultos da história foram sinceros amigos da Natureza. Alguns


deles, como Francisco de Assis, viviam numa permanente embriaguez das
inefáveis maravilhas do cosmos.
Nesta viagem por mundos ignotos, para a qual convido o leitor, entraremos em
ligeiro contato com a alma da Natureza, até onde esse contato com a grande
Inteligência do Universo é possível à pequena inteligência do nosso cérebro.

Acompanha-me, leitor, com a inteligência e com o coração, nesta viagem


visionária – e perfeitamente real.
Meu Encontro com Alu

– Bom dia, sr. gigante...

Partia esta vozinha sutil do fundo duma pequena poça d’água, num dos ângulos
do meu jardim. Corri os olhos em derredor, e não consegui descobrir o autor da
inesperada saudação.

– Bom dia, sr. gigante de ontem – repetiu a mesma vozinha misteriosa.

– Quem é que fala? – perguntei, cada vez mais curioso.

– Sou eu.

– Quem é esse eu?

– Eu, Alu.

– Alu? Alu?... quem é Alu?...

– Sou um protozoário, um ser unicelular, uma ameba como dizem vossos livros.

– Uma ameba?... Mas, por favor, onde está você?

– Aqui, no limo deste mar, entre dois rochedos verdes.

Tirei um pouco do limo esverdeado da poça e coloquei-o sobre uma pedra.

– Por favor, sr. gigante, não me deixe secar ao sol! senão morro! – gritou o
serzinho invisível.

– Diga-me, por obséquio, Alu, onde está você – insisti.

– Que faz você com esse par de olhos enormes? – perguntou, algo irritada, a
ameba. – Eu não tenho olhos e vejo você, e você com esses olhos colossais,
não me enxerga?

Depois de muito esquadrinhar, descobri, no meio do limo, uma gotinha


gelatinosa, menor que a cabecinha dum alfinete de cor esbranquiçada, cinzenta.

– Bom dia, Alu! – exclamei, desembaraçando o minúsculo unicelular do meio


dumas folhas podres e examinando-o mais atentamente com o auxílio duma
lente que fui buscar. – Desde quando vive você aqui no meu jardim?
– Há uns 700.000.000 de anos – respondeu com fleuma a gotinha de
protoplasma.

– Como? há uns 700.000.000 de anos?

– Mais ou menos. Naquele tempo era mais difícil calcular os anos, porque o sol
não aparecia ainda tão visível como hoje. A atmosfera era toda ela um mar de
nuvens que mal deixava coar uns raios solares.

– Mas afinal de contas, que é que você chama “ano”?

– O mesmo que vocês, homens, o tempo de uma a outra primavera.

– E você quer fazer-me crer que já vive um 700.000.000 de anos?

– Talvez mais. Possivelmente 1.000.000.000 de anos, como vocês dizem.

– E você não falou agora mesmo em morrer? tem medo de um pouco de sol, e
afirma que já existe há milhões de anos?

– Compreenda-me, sr. gigante de ontem. Nós, os protozoários, só morremos


quando nos matam, mas não morremos por nós mesmos. Somos imortais por
natureza.

– Você está doido, Alu! um ser primitivo como você seria imortal, quando até o
homem, rei da Natureza, está sujeito à morte?...

– Nós somos imortais, sr. gigante. Você, rei da Natureza, devia saber isto.
Ameba não morre de morte natural. Eu, quando quero um filho, parto-me ao meio
e somos dois – e cada um completa o seu corpo comendo e continua a viver e a
criar filhos. Nada se perde. Nada morre. Assim é que nós somos imortais, meu
gigante de ontem.

Por que me chama “gigante de ontem”, Alu?

– Porque o homem surgiu à face da terra apenas ontem, quando nós já


estávamos aqui havia centenas de milhões de anos. Tínhamos preparado tudo,
quando a terra começou a ser habitada por gigantes diversos, e, como último de
todos, apareceu a raça dos homens. Você, naturalmente, ignora tudo isto...

De repente, o corpo de Alu, que a princípio era esférico, mudou de forma.


Alongou-se, projetando numa direção de como filamento gelatinoso, e todo o
resto do corpo unicelular foi seguindo.

– Que há? que está fazendo? – perguntei.

– Psiu! um infusório! – respondeu Alu – um infusório gorduchinho! que rico


petisco!
Eu não via nada do tal infusório. Via apenas que a ameba se recurvava em torno
de alguma presa, assumindo forma de ferradura. E logo depois voltou ao estado
primitivo.

– Apanhou? – indaguei.

– Apanhei, sim. Eu sempre apanho tudo que quero. Engoli-o todinho.

– Engoliu? mas você tem boca?

– Boca? para quê? Nós costumamos comer e engolir tudo sem boca.

– Mas, como?

– Envolvemos a presa com todo o corpo, incorporando-a ao nosso ser. E está


comida e digerida.

– Digerida? e você tem estômago?

– Qual, estômago! não precisamos desse luxo. Digerimos com todo o corpo.

– E como foi que você viu o infusório? se não tem olhos?...

– Vi-o com todo o corpo. Vocês, homens, são uns seres tão atrasados que
precisam de milhões de células para tudo que fazem – quantas células tem você
em seu corpo gigantesco?

– A ciência fala em uns 15.000.000.000.

– Pois eu faço com uma única célula o que você faz com 15.000.000.000. Vocês,
milionários celulares, não são mais felizes do que nós, pobres unicelulares.
Resolvemos perfeitamente os problemas da vida com esta única célula – e não
sucumbimos à morte como vocês, gigantes de ontem.

– Os problemas da vida, Alu? É que vocês não têm problemas a resolver, nessa
sua estupenda simplicidade...

– Que é que vocês têm a mais?

– Inteligência, vontade, ciência, amor, arte, religião, cultura – para resolver esse
mundo de problemas precisamos dum organismo mais complicado, e até duma
coisa que não é célula...

O protozoário fez um gesto de pouco caso, mas, em vez de responder, como eu


esperava, quedou-se, imóvel, por uns momentos. Inchou, alongou-se
ligeiramente, contraiu-se de novo e, com espanto meu – partiu-se ao meio...

– Que é isto, Alu? – exclamei – Está doente? vai morrer?

– Não – respondeu calmamente a ameba – Criei um filho. Ei-lo aqui.


Diante dos meus olhos nadavam duas amebas perfeitas, de tamanho normal,
cada uma com seu competente núcleo central rodeado de albume e envolto em
delicadíssima película.

– É assim que vocês se reproduzem?

– Assim mesmo.

– Mas... desculpe a indiscrição... você é macho ou fêmea? pai ou mãe desse


filhinho?

Sorrindo com sobranceira e desdém a gotinha viva disse:

– Nós, os protozoários unicelulares, senhores do universo há centenas de


milhões de anos, não precisamos dessas complicações sexuais que vocês
inventaram para sua desgraça, como ouvi dizer. Quando queremos um filho,
comemos um bom petisco para criar forças, e dividimos em duas a nossa única
célula, metade para cada um – e somos dois. Cada um torna a dividir-se – e
somos quatro, e assim por diante.

– Quantos filhos tem você, Alu?

– Não sei. Ninguém o sabe. Muitos milhões. De um a outro sol, eu faço dezenas
de filhos. Depende do ambiente e também dos infusórios ou outros bocados que
apanho para criar forças.

Pus-me a contemplar com crescente interesse aquele gruminho de protoplasma,


no meio do qual nadava um pontinho cinzento, o núcleo, como dizem os livros.
Esse centro é para a célula o que uma próspera capital é para um país. Procurei
recordar o que ouvira nas aulas de história natural e lera nos livros: protoplasma
é proteína. Mas proteína, que é, afinal de contas? Um mistério. Um complexo de
enigmas... E, coisa estranha, não há vida orgânica onde não existe proteína.
Será que a vida reside na proteína? Decorei esta fórmula química: proteína é
composta de MgN4 C32 H30O CO2 CH3 CO2 C20 H39 – quer dizer que esta
misteriosa substância é sumamente complexa, composta de tantas partes de
magnésio (Mg), de azoto (N), de carbono (C), de oxigênio (O) e de hidrogênio
(H). Outra fórmula diz: C72 H112 N18 SO22; entra nesta fórmula, como se vê, um
novo elemento, o enxofre (S), e é eliminado o magnésio. O que parece essencial
e indispensável é a presença de carbono, azoto, hidrogênio e oxigênio. Sem
estes elementos básicos não há vida orgânica. São eles, parece, que constituem
o palácio em que reside essa princesa encantada, sempre misteriosa, sempre
invisível, mas sempre realmente presente. Não faltou quem identificasse a
princesa Vida com esse seu palácio albuminoso. A ciência humana, tão
orgulhosa das suas conquistas, tem de arriar bandeira ante essa gotinha de clara
de ovo, que desafia toda a nossa sapiência. Não sabemos o que seja a Vida –
sabê-lo-emos um dia?
– Os homens – disse Alu, interrompendo as minhas divagações científicas – são
muito inteligentes...

– É verdade – confirmei, ufano.

– Mas, de nós não sabem quase nada. E o pouco que sabem está mal expresso.
Dizem que o nosso corpo unicelular consta de proteína, mas nunca ninguém
disse o que é proteína. Usam umas palavras bonitas, mas não sabem o que elas
significam. Dos nossos sentimentos então não sabem mesmo nada, nada...

Neste teor continuou Alu a falar largo tempo. Senti-me quase humilhado com o
que a ameba dizia, porque via que ela tinha razão. Por fim, perguntei à minúscula
bolinha vítrea por que é que eles, os unicelulares, não haviam acompanhado a
evolução do mundo orgânico, nesses milhões de anos; pois ostentavam ainda
hoje a mesma simplicidade primitiva que tinham no princípio. Perguntei por que
não tinham solucionado, como os outros seres vivos, o problema da vida pela
divisão do trabalho, criando órgãos próprios para cada função: olhos para ver,
ouvidos para ouvir, boca para comer, mãos para apreender, pernas, asas,
barbatanas para se locomover, estômago para digerir, órgãos para a
reprodução, etc. A ameba escutou pacientemente a minha erudita dissertação e,
quando terminei, respondeu-me com ares de mistério:

– Nós não evolvemos, porque obedecemos à vontade da grande Inteligência...

– Que Inteligência?

– A grande Inteligência que dirige os destinos da nossa vida. Milhares de irmãos


nossos, a princípio unicelulares, evolvem e são hoje multicelulares, cidades de
células – organismos, como dizem os homens – insetos, peixes, répteis, aves,
mamíferos. As nossas células, quando se dividem, separam-se e formam seres
independentes e autônomos. As células deles, porém, dividem-se e ficam juntas,
formando uma sociedade celular, um Estado, uma República de células, onde a
cada cidadão é designada determinada função em benefício do todo. Assim,
pode cada célula, ou complexo de células, especializar-se na sua função
peculiar, e nisto está o segredo da evolução e do aperfeiçoamento dos
organismos superiores.

– E por que vocês, unicelulares, não acompanharam esse processo de


especialização dos órgãos e das funções?

– Para que nossos irmãos pudessem viver e progredir. Trabalhamos para o todo.
É ordem da grande Inteligência...

– Não compreendo, Alu,


– Pois não sabe você, homem sapiente, que não haveria evolução se não
houvesse unicelulares como nós? Nós somos a base, o pedestal de todo o
progresso no mundo orgânico.

– Explique-se, Alu.

– Nenhum organismo vegetal ou animal pode viver nem evolver sem o nosso
concurso. Os unicelulares ajudam a preparar os alimentos para seus irmãos mais
perfeitos. Mais tarde lhe explicarei isto, meu gigante de ontem, o papel que os
seres mínimos desempenham no plano do universo. Você verá que nós, os
protozoários unicelulares, somos os seres mais necessários ao mundo. Ai da
flora, ai da fauna, se nós não existíssemos, com esta nossa feliz simplicidade! o
mundo seria um deserto...

Vi que Alu estava cansado e por isso o deixei a sós por esse dia, prometendo
voltar em outra ocasião, para ouvir a sua interessante filosofia.
Porque Brigavam Uzu e Ifi

Quando, no dia seguinte, voltei para junto da pequena poça d’água onde deixara
Alu, ouvi perto de mim duas vozinhas agudas em acalorada discussão:

– É mentira. Uzu, você não constrói nada. Você só sabe destruir o que eu
construí...

– Que ignorância, Ifi! Então, você não sabe que nós, as bactérias, somos tão
necessárias como vocês?

– Mas o papel da clorofila é obra positiva e construtora, e o de vocês é


eminentemente destruidor.

– Ora essa, Ifi! quisera ver com que material ia você arquitetar os tecidos
celulares da sua planta se nós, as bactérias e os fungos, não lhe fornecêssemos
material de construção! Só com os seus lindos olhos verdes? Se nós não
reduzíssemos à matéria inorgânica, as substâncias que vocês, verdes
grãozinhos das folhas, converteram em matéria orgânica, dentro em breve,
vocês não encontrariam mais alimento para suas plantas.

Olhei em derredor, e não vi nenhum dos autores dessa discussão.

– Uzu é invisível – exclamou, de repente, uma vozinha sutil cujo timbre me era
familiar. Depois de algum esforço, descobri, à beira da poça d’água, minha
amiguinha gelatinosa, Alu, a ameba imortal. Cumprimentei-a, satisfeitíssimo.

– Uzu é invisível? – perguntei, sem nada entender. – Quem é Uzu?

– É uma bactéria cor de cinza, mas é tão miudinha que você não poderá vê-la,
nem com mais um olho de vidro.

– Que olho?

– Aquele que você trouxe ontem para me enxergar.

– Que tamanho tem você, Uzu?

– Não tenho tamanho algum. Só tenho pequenez...

– Ele é assim mesmo, esquisito – explicou a ameba.

– Que pequenez tem você, Uzu?


– Meu corpo é de uma única célula.

– Que pequenez tem essa célula única?

– Você, com olhos desse tamanho, não pode ver a minha pequenez. Eu não
tenho nem a milésima parte dum milímetro, como vocês chamam o espaço entre
dois riscos pretos das vossas fitas.

– A milésima parte dum milímetro chama-se entre nós “micron”.

– Pois eu não tenho um “micron”.

– Você é o menor de todos os seres vivos, Uzu?

– Oh não! tenho muitos primos e parentes bem menores que eu. Minha
amiguinha Afta atravessa brincando os poros de um filtro de porcelana, que
vocês inventaram para barrar a passagem a certos micróbios de que têm medo.
Ao lado de Afta eu sou um gigante. Não consigo passar pelas malhas duma
dessas redes.

– Você já foi visto por algum homem?

– Posso ser visto através dum sistema de vidros, que dão tamanho à minha
pequenez. Amiguinha Afta nunca foi vista, mas parece que já foi fotografada por
um homem de cabelo branco.

– Que é que você faz neste mundo?

– Ajudo a manter o equilíbrio do universo.

– Que jactância, Uzu! que presunção é esta da parte duma bactéria? manter o
equilíbrio do universo?

– Mas é pura verdade, meu gigante de ontem. Se não fôssemos nós, os


micróbios, o mundo todo seria um deserto, sem um vestígio de vida e beleza.
Você sabe que os animais se nutrem de plantas ou de outros animais. Se não
houvesse plantas não haveria comida para os animais. E, se não houvesse
bactérias, não haveria comida para as plantas. Logo, pela nossa matemática, em
última análise, somos nós os cozinheiros do universo e os responsáveis pela
vida do mundo.

– Não haveria alimento para as plantas sem o vosso concurso? mas as plantas
sugam da terra substâncias minerais, ferro, nitrato de cálcio, de potássio, de
fosfato, sulfato de magnésio, etc. e destas substâncias está saturado o solo
terrestre. Que é que vocês têm com isto?

– Ó sapiência humana! – exclamou Uzu e deu três cambalhotas, como fazia


todas as vezes quando se sentia fortemente emocionado. Nada vi dessas
cambalhotas, mas Alu, que me servia de locutor e intermediário entre o mundo
visível e invisível, me deu notícia desse fato. Depois de algum tempo, prosseguiu
o micróbio, procurando engrossar a voz, o que, naturalmente, não conseguiu:

– É bem verdade que as plantas tiram do solo esses minerais, que, com o auxílio
da luz solar, transformam em substâncias orgânicas.

– Nos meus laboratórios – interveio Ifi.

– Honra lhe seja – disse Uzu, com ironia. – Mas, se ninguém reconvertesse em
matéria inorgânica essas substâncias orgânicas que sinhá Ifi fabrica nos seus
laboratórios de clorofila, daqui a algum tempo não haveria mais substâncias
minerais que as plantas pudessem assimilar, e elas morreriam de fome. O
mundo todo viraria floresta de fungos e cogumelos, que se alimentam de matéria
orgânica, porque não têm clorofila. Mas aqui estamos nós, a imensa família das
bactérias para impedir a extinção da vida no universo. Apenas morre uma planta
ou um animal, e logo nos apoderamos do seu organismo e decompomos o que
a planta compôs, reconvertendo o orgânico em inorgânico, para que possa
continuar sem estorvo o grande ciclo cósmico. Ao ar entregamos os gases que
a clorofila lhe roubou, e à terra devolvemos os sais que as raízes da planta lhe
arrebataram. E assim está tudo em ordem. Somos ou não somos os
mantenedores do equilíbrio do universo, ó gigante de ontem?

– Realmente, realmente – concordei. – O seu papel, sr. Uzu, é dos mais


importantes. Pena que alguns dos seus primos sejam tão assassinos...

– Assassinos? nós não temos intenção de matar ninguém, mas precisamos viver,
e por isto penetramos no organismo de alguns gigantes, e eles sucumbem. Mas
não é por mal... De resto, eu não mato ninguém. Crio um filho de meia em meia
hora, e deixo viver a quem vive...

– E, quando a bactéria não encontra ambiente para viver, que é que faz? morre?

– Nem sempre. Nós só costumamos morrer quando devoradas pelos nossos


inimigos. Por falta de ambiente, não. Neste caso, vamos dormir e só
despertamos quando as coisas melhorarem em derredor de nós.

– Dormir? e vocês dormem muito tempo?

– Uns dois ou três anos de sono, é coisa normal para muitas bactérias da nossa
família. Mas, em geral, só dormimos quando nos falta o que comer.

– E, enquanto dormem, não comem?

– Nada, nada. Encerramos dentro de nós mesmos a nossa vida querida,


envolvemos tudo numa cápsula resistente, impenetrável – e esperamos... Neste
estado de clausura ninguém nos mata. Um amigo meu caiu nas mãos dum
homem, enquanto dormia no interior da sua cápsula. O homem o mergulhou em
água fervendo e até o enterrou num bloco de gelo – e meu amigo não morreu.
Se não estivesse encerrado na sua couraça morreria logo. Assim somos nós.

– Diga-me, Uzu, com quem estava você discutindo, há pouco.

– Com Ifi, um grãozinho de clorofila, muito maior que eu. Pensa que é grande
coisa, porque tem casa própria e trabalha num laboratório solar.

– Tem casa própria?

– Sim, uma casinha de celulose, com paredes lisas e maciças. Célula, dizem os
homens. No centro dessa casinha está o núcleo celular. Ao redor dele, uma
substância viscosa. Ao longo das paredes internas estão umas pequenas
esferas.

– Sei, sei, os plastídios.

– E dentro de cada uma dessas esferas está um grãozinho de clorofila. Ifi é muito
inteligente. Apodera-se duns sais que as raízes e as fibras da planta veiculam
para o seu verde laboratório; mistura esses sais com luz solar – e sai coisa
diferente, que não é nem sal nem sol, é açúcar, é amido, que sei eu!

– Substância orgânica.

– Ifi é uma feiticeira, como você vê, ó gigante de ontem. O que ela faz é magia.
É só ela que possui o segredo dessa magia. Eu seria amigo de Ifi, se ela não
fosse tão pretensiosa e insolente. É uma criatura graciosa cheia de inteligência
e mistério. Ela não gosta de mim, porque sou cinzento e, quando trabalho, encho
o ar de gases malcheirosos, como ela diz. Que quer? É a profissão das bactérias
decompor o que é composto, e isto não vai sem gases.

Houve uma pausa. De repente, gritou Uzu com voz estridente:

– Arreda, arreda! lá vou eu!

– Lá vai o sujalhão – disse uma vozinha simpática. – Boa viagem, Uzu, e bom
proveito!

– Que foi? que aconteceu?

– Ora, ora! – disse Ifi. – Que havia de ser? não vê você essa frutinha lá no meio
do capim?

– Estou vendo, sim.

– Pois, o Uzu se atirou a ela, esse sujalhão. Só gosta de coisas podres. Milhares
de camaradas dele fizeram a mesma manobra. Daqui a dias, você verá que não
resta nada da frutinha. Eles devoram tudo. Reduzem tudo a terra imunda.
– Terra boa para adubar o pé do seu ingazeiro – observei, carregando de
propósito na palavra “seu”.

– É verdade – concordou Ifi. – É preciso... Mas eu, que sou poetisa por natureza,
pouco simpatizo com a profissão prosaica de Uzu e seus colegas. Sou uma
grande apaixonada do sol, da luz, do calor, de todas as coisas puras e belas...

Enquanto eu me ia retirando, chegavam-me aos ouvidos palavras melodiosas


que diziam em cadência rítmica:

– Adoro o sol...
Vivo da luz...
Amo o dia...
Detesto a noite...
Meu corpo é verde...
Meus olhos são claros...
Ressuscito à vida
O que a morte matou...
Cubro de verdores
A face da terra...
Semeio sorrisos
Pelas flores do prado...
Difundo alegria
Por toda a parte...
Cumprindo a ordem
Da Inteligência Suprema...
Aleluia!...
A Sociedade dos Cálices Vivos

– Quando, daí a uma hora, passei pelo jardim, ainda estava Ifi falando ou
cantando. Quando não tinha com quem discutir, falava consigo mesma.

De súbito, percebi um longo e doloroso suspiro, que terminou nestas palavras:

– É... Você é feliz...

– Que foi? quem falou? – perguntei a Alu, que ainda estava no mesmo lugar.

– É a esquisitona da Vorticela – riu-se a ameba, o que fêz com que se dividisse


em duas partes mais rapidamente do que de costume, criando mais um filho.

– Vorticela? onde está essa criatura?

– Colada naquela pedra.

– Colada, por quê?

– É costume dessa família de seres. A Vorticela não sabe bem se é planta ou


animal, e assim faz política para os dois lados: Move-se como animal, e fica
presa pelo pé como planta. Para mim, é animal, por sinal que até é parenta
minha, coitada...

Agucei a vista e logrei descobrir um pequenino cálice, da forma desses em que


se tomam licores finos, e com um pezinho tão comprido e delgado que antes
parecia um fio de cabelo. Guarnecia a boca do cálice um círculo de pêlos ou
cílios, em perpétuo movimento.

Estendi o dedo para tocar no pequenino cálice preso no comprido pedúnculo –


e zás! enrolou-se ele em forma de espiral, encolhendo-se todo e levando consigo
a minúscula taça ciliada. Daí a pouco, tornou a distender-se lentamente e
começou a executar movimentos giratórios sobre si mesmo, na água em que
vivia.

– Que está fazendo, madame Vorticela? – perguntei. – Está tonta?

– Tonta? não conheço essa doença. Estou procurando o que comer.

– Esse sino é sua boca?

– É minha boca e sou eu mesma.


– Você é planta ou animal?

– Que filosofia atrasada! não creio nessas distinções dos homens. Eu sou uma
célula viva, e basta!

– Por que tem você esses cílios ao redor da boca?

– Para atrair a presa; pois a gente tem de viver. Agito os cílios, produzo um
redemoinho na água, e o incauto freguês que se achar ao meu alcance
desaparece no meu estômago.

– Você tem estômago?

– Sim, sou eu mesma.

– Você passa toda a vida a sós?

– Não, nós, as Vorticelas, somos seres extremamente sociais. Vivemos em


colônias. Eu ainda não tenho sócio, porque sou nova. Olha para a esquerda.

Olhei e vi duas Vorticelas presas na ponta de dois pezinhos que partiam de um


único tronco comum. Mais além, havia quatro, e até oito cálices vivos
sustentados pela ramificação de um único tronco básico.

– Vida em família, não é?

– Vivemos em família, sim. Mas cada um de nós é uma célula completa.

– Uma célula só?

– Sim, cada Vorticela é uma célula apenas. Gostamos da simplicidade e da vida


independente. Mas é vantajoso ficarmos juntas no mesmo pé.

– Por quê?

– Porque assim, quando um apanha um petisco e engorda pode ceder parte da


sua gordura ao colega que teve menos sorte na caça e emagreceu. Nós,
Vorticelas, somos comunistas; mas não nos matamos uns aos outros, como
vocês, homens. O nosso comunismo não é para explorar nossos semelhantes,
é para nos ajudarmos fraternalmente uns aos outros.

– E quando um de vocês morre, para onde vai?

– Morre? morre? que é isto?

– Quando um de vocês deixa de existir?

– Nós só deixamos de existir quando somos devorados por nossos inimigos.

– E não morrem de velhos?


– De velhos? nós não ficamos velhos. Somos sempre novos. Quando adultos,
nos dividimos em dois, jovens um e outro. Vocês, homens, não fazem o mesmo?

– Não – respondi, um tanto vexado. – Nós, depois de adultos, envelhecemos e


morremos, com ou sem filhos.

– Que seres atrasados! – exclamou uma das Vorticelas desenrolando-se toda.

– Diga, madame Vorticela – observei, para desviar a conversa do assunto ingrato


– que é que você sabe do mundo?

– Do mundo? Oh! a história do mundo está toda dentro de mim, dentro deste
cálice.

Neste momento, passou a pouca distância um bando de micróbios, dos mais


gostosos, e a Vorticela, redemoinhando valentemente com toda a falange dos
seus cílios bucais, apanhou logo meia dúzia dos incautos estróinas e deu-lhes
condigna sepultura dentro de si mesma.

– Apanhou?

– Apanhei e engoli. Olhe como engordei.

– Você é cruel, madame. Viver da morte dos outros...

Em vez da resposta, ouviu-se uma risadinha geral de todas as Vorticelas em


derredor. Compreendi o melindroso da minha situação... Casa de vidro...

– A história do mundo? só a conhecemos nós, os unicelulares, porque somos da


primeira origem das coisas. Assistimos a tudo que aconteceu, e até hoje não
mudamos de forma e caráter. Todo o respeito à evolução! mas... a tradição não
deixa de ter as suas vantagens. Nós somos o que éramos e, seremos o que
somos. Mas, quem melhor sabe contar isto é Alu. Ó Alu, conta a este homem
ignorante algo da história do mundo. Você é mais antiga do que eu e tem mais
experiência dentro da sua gotinha do que eu no meu cálice...

Sentei-me comodamente sobre uma pedra coberta de musgo aveludado,


procurei esquecer tudo o que sabia pelos livros papiráceos, para ouvir o que me
diria esse livro vivo feito de albumina e mistério. Identifiquei o meu espírito com
a alma da Natureza e escutei o que me dizia o microscópico arquiteto do
universo. Fechei os olhos para melhor me concentrar.

E ante meu espírito, enquanto Alu falava, rolaram milhares, milhões, bilhões de
anos, de séculos, de milênios. Vi o vácuo primitivo... Vi nascer nesse vácuo algo
de real, algo de tão tênue e sutil que apenas por um triz parecia estar separado
do irreal... Vi esse tenuíssimo algo agitar-se caoticamente – assim me parecia –
à procura dum termo, duma forma, duma razão de ser. Disse-me Alu que aquilo
era a alma do Universo que impelia o corpo sutil desse algo. Essa alma era
inteligente. Penetrava todas as coisas do mundo, e fazia de toda desordem uma
grande ordem, de todo caos um esplêndido cosmos...

Quando, por fim, depois de muitos milhões de invernos e de primaveras – disse


Alu – esse tênue algo disperso se conglobou em núcleos maiores, em
gigantescas esferas cheias de luz e calor, então começou nos espaços cósmicos
a grande festa nupcial... Luminárias fantásticas rasgaram as trevas eternas...
Sóis flamejantes, em silenciosa carreira, acalentavam a noite gelada das
imensidades sidéreas. Novos astros emergiam a cada instante da taciturna
amplidão do universo. E, pela força tangencial do seu movimento, projetavam de
si parcelas da própria esfera, enchendo duma deslumbrante epopéia de globos
a infinita solidão do cosmos...

Alu falava com arder e entusiasmo e com tão arrebatadora eloquência e poesia
que me esqueci de mim mesmo e me quedei, estupefato ante aquele gruminho
de plasma gelatinoso, em que palpitava uma parcela da alma do Universo, da
grande Inteligência da Natureza...

– E onde estava você, nesse tempo? – perguntei, numa ligeira pausa.

– Eu estava presente a tudo. Não era ainda esta gota de albumina que agora
sou, mas a minha alma já existia.

– Sua alma, Alu?

– Sim, aquilo que dentro de mim existe de invisível, de vivo, isso já existia nesses
tempos remotos. Minha alma é uma centelha da alma do Universo, uma fagulha
do grande incêndio cósmico, um sopro dessa imensa tempestade que se lança,
perene, indefectível, através de todas as artérias da Natureza, por todas as
latitudes e longitudes, por todas as altitudes e profundidades do Universo. Não
existia este ser unicelular que contemplas ó gigante de ontem, mas existia Alu,
o íntimo quê de meu ser vivo. Quando o Eterno creou o Todo, creou também
esta partícula mínima do Todo. Meu corpo é uma onda minúscula do grande
oceano, onda que hoje emerge das águas, e amanhã submergirá no vasto
elemento – porém minha alma vive sempre por entre os fluxos e refluxos dos
fenômenos transitórios, por entre mil vicissitudes de formas diversas. Morre o ser
vivo – mas não morre a vida. A vida é imortal. Submerge aqui – emerge acolá,
em perene ressurreição. Como as águas que do seio do mar se erguem,
levíssimos vapores, tangidos pelas auras, se difundem pela vastidão da terra,
sobre ela dessem e, céleres, retomam o ponto de partida, para recomeçar a
grande viagem aérea e terrestre – assim são todos os seres do Universo.
Percorrem o seu ciclo, assumindo formas várias, sempre animados pelo sopro
cósmico que os tange e impele para onde quer a grande Inteligência...

– Minha alma – prosseguiu Alu, baixando a voz e tremendo ligeiramente, como


que a recordar algo de doloroso – minha alma acompanhou a parcela ígnea dum
grande astro que do seu primitivo centro se desprendeu, e com ele voei pelos
espaços sem limite. Milhões de vezes circunscreveu essa parcela sideral o seu
antigo centro, como se dele não se pudesse separar, apesar de separada,
sempre atraída e sempre repelida – inexplicável mistério... Por fim, perdeu o
calor primitivo... Arrefeceu-lhe a superfície... Solidificou-se aos poucos... Ainda
estavam suspensas na tépida atmosfera gigantescos mares de águas em forma
de brancos vapores, e mal conseguia a luz coar através dessa espessa cortina
– quando minha alma recebeu este corpo que vês...

– Nasceste, Alu, não foi?

– Como quiser. Eu já existia antes de nascer, existia como vida cósmica, vida
amorfa, água geral do grande oceano da vida; mas não era ainda esta onda
concreta que agora sou, não era ainda indivíduo definido e separado do vasto
substrato das outras vidas indefinidas. Eu era vida, mas não era ser vivo,
indivíduo vivente. Quando a grande Inteligência – honra lhe seja! – me deu este
corpinho de plasma, esta célula, como dizem os homens, desde então sou o que
sou – o protozoário, a ameba Alu... E assim viverei, até que minha alma
abandone este corpo e volte ao seio do imenso oceano vital, até que a grande
Inteligência revista minha alma dum novo invólucro individual...

...............................................................................................................................

Depois disto, houve em torno de nós uma quietude imensa, solene... O jardim
em derredor parecia dormir o sono da eternidade... E meu espírito, muito a custo,
conseguiu voltar de regiões longínquas e sagradas para a profana realidade da
vida cotidiana...
Entre Esqueletos Alvos e Negros

Corriam as férias escolares.

Minha irmã veio passar uns dias em minha casa, à beira-mar. Cada manhã, dava
eu uma lição de primeiras letras a meu sobrinho Hélio, que na reabertura do ano
letivo começaria a frequentar escola primária. Traçava-lhe na ardósia, com um
pedacinho de giz, os caracteres do alfabeto, para que essas 25 chaves mágicas
de todo o humano saber lhe fossem menos estranhas quando as visse no
quadro-negro da aula. O garotinho empunhava o giz como quem pega numa faca
ou num espeto e procurava imitar os brancos mistérios que eu desenhara, bem
grandes, sobre o negror da lousa.

Lá no fundo, a pouca distância do nosso verde caramanchão, murmuravam


baixinho as águas azuis do Atlântico.

Numa dessas tépidas manhãs de dezembro, quando Hélio trocara a ardósia e o


giz pela bola de couro e borracha e se divertia no relvado próximo – ouvi
subitamente, vinda do fundo do salso elemento, uma vozinha sutil, antes
adivinhada que percebida. Escutei, não com os ouvidos corpóreos, mas com o
sentido íntimo da alma. E percebi o que entredizia a vozinha estranha:

– Escrevem com esqueletos sobre esqueletos...

– Com nossas ossadas brancas sobre as ossadas pretas das nossas boas
amigas, as algas – acrescentou outra vozinha com discreta risada.

– Quem é que escreve com esqueletos brancos sobre esqueletos negros? –


perguntei com a alma do meu subconsciente, porque sabia que só assim é que
a alma dormente da Natureza reagiria à minha interpelação.

– Quem? ora, que pergunta! – respondeu a primeira vozinha. – Vocês, mistérios


ambulantes...

– Quem é que fala? – perguntei.

– Calcal – respondeu o ser invisível.

– Quem é Calcal?

– Sou um foraminífero, como vocês dizem.


– Ah! um protozoário, um serzinho microscópico que vive dentro duma couraça
cheia de orifícios pelos quais projeta os pés, não é?

– Pés? assim afirmam vocês, mistérios ambulantes; mas nós não temos pés...

– Os braços, então.

– Nem temos braços. Só temos corpo, que derramamos ora por estes ora por
aqueles buraquinhos do nosso invólucro.

– Sei, sei, Calcal. Você é uma gotinha gelatinosa que vive suspensa nas águas
do mar. Quando morre...

– Perdão! Entre nós não se morre. Não existe esse mau costume entre os
foraminíferos. Só morremos quando somos mortos por alguém. A nossa vida
emigra dum corpo velho e imigra para dentro dum corpo novo – é a isto que você
chama morrer?

– Pois bem, amigo Calcal, digamos: quando você sai da pele.

– Perdão! não tenho pele. Para que esse luxo? Só tenho um arcabouço feito de
cal e sílica, e por sinal que bem bonito. Já viu? Ah, é verdade! Vocês, homens,
com esses olhos tão grandes, não enxergam as coisas pequenas, e nós somos
muito pequeninos...

– Mas, eu já vi e estudei debaixo do microscópio o vosso esqueleto, que é, de


fato, obra-prima de arquitetura e estética. Parece um finíssimo trabalho de renda
e filigrana. Mas, permita que voltemos ao nosso assunto de a princípio. Por que
falou você em esqueletos alvos e negros?

– Não atinou? não sabe que a ardósia em que você escreve é formada de
ossadas, de resíduos de algas e sargaços?

– Ah! é verdade. Esquecia-me. Esses organismos primitivos que vivem nas


águas decompõem-se aos poucos e deixam cair os detritos escuros dos seus
corpos desfeitos para o fundo do mar, onde vão formando sedimentos, que aos
poucos se solidificam e dão em resultado camadas consistentes – esta pedra
escura que chamamos ardósia.

– E sabe você, mistério ambulante, quanto tempo leva a Natureza para formar
no fundo do mar uma dessas camadas, da espessura dum dedo de homem?

– Tempos enormes.

– Muitos milhões de anos.

– Pois, eu vi em Algonkin, nos Estados Unidos, camadas de ardósia de milhares


de metros de espessura. Quantos bilhões de anos, de séculos, não devem ter
corrido sobre essas pedras sedimentares!
– E nesse tempo já vivíamos nós, os foraminíferos; somos contemporâneos das
algas. O giz com que você escreve é presente nosso. Quando a nossa vida
emigra dum corpo velho e imigra para dentro dum corpo novo, deixamos cair a
nossa ossada vazia, que desce ao fundo das águas, onde forma vastas camadas
estratificadas.

– Vi litorais calcáreos de Dover.

– Pois, tudo aquilo é feito de esqueletos nossos.

– Li que grande extensão do Himalaia, uns 4.800 quilômetros, é constituída de


pedra calcárea.

– Formada de resíduos nossos.

– Quase todo o Mar Mediterrâneo está cercado de gigantescas barreiras de


rochas brancas e cinzentas.

– Relíquias dos meus colegas e antepassados. Até os seus ossos e dentes, ó


homem, são obra nossa.

– Como assim?

– Constam de partículas calcáreas, substância que nós e outros seres extraímos


das águas.

– Que está dizendo, Calcal?

– Pois é como digo... Os resíduos dos nossos corpos alvos formam camadas
calcáreas no fundo das águas. Convulsões terrestres fizeram subir muitas
dessas rochas por nós fabricadas. Soterradas debaixo de outros elementos,
foram estas substâncias levadas pelas nascentes e pelas águas pluviais para
outras partes, mescladas com a terra, dissolvidas na água, absorvidas pelas
plantas – e assim vieram a circular, pelas vias do sangue, dentro do organismo
humano – elementos do nosso corpo calcáreo...

– Quer dizer que até os meus ossos e dentes já foram partículas do seu corpo,
amigo Calcal?

– Meu ou de outros seres congêneres.

– De maneira que dentro de mim circulam elementos que assistiram à alvorada


do cosmos?

– Perfeitamente. Nem há em seu corpo um só átomo que seja exclusivamente


seu. Já foi de muitos outros seres, antes de ser de você.

– Esses elementos são, pois, como que pedras de alvenaria ou tijolos que entram
hoje nesta, amanhã naquela construção?
– Justamente. Depois da sua “morte” – como vocês chamam essa metamorfose
do ser vivo – esses mesmos elementos, decompostos na terra ou em outra parte,
vão ser novamente absorvidos por outros seres, que deles construirão o seu
edifício orgânico.

– A sua filosofia, amigo foraminífero, me enche de tristeza...

– Por que, mistério ambulante?

– Porque... neste caso... eu não sou propriamente eu... Sou apenas um outro
“tu”, um “tu” número dois, número três, número quatro, número cem, número mil,
número milhão e assim por diante...

– Não se entristeça por isto, ó homem! O seu Eu é integral e exclusivamente seu,


e de mais ninguém. Muita e vária é a matéria – uma só é a sua alma de cada
ser. A alma é que vivifica. A alma é que individualiza e personaliza o ser. Sua
alma nunca foi nem nunca será de outrem. É sua. Toda sua. Sua e de mais
ninguém.

Calei-me, entregue a estranhas cogitações...

Quando Hélio regressou do prado e me caiu como um pé de vento no


caramanchão, voltei de chofre à realidade. Qual miragem desvaneceu-me da
alma aquele mundo invisível – e tão real...

Guiando a mãozinha inábil do garotinho, continuei a traçar com o alvo esqueleto


dos foraminíferos grandes caracteres sobre o negro esqueleto das algas pré-
históricas...
Colóquio Noturno
com Ignis e Lúcia

Era intenso o inverno daquele ano.

Naquela altitude de quase 2.000 metros amanhecera a campina toda branca de


geada. A noite próxima prometia ainda ser mais fria, porque o céu brilhava numa
transparência nunca vista, as estrelas eram limpidíssimas e a via-láctea
fosforescia com grande nitidez. Eu conhecia esses prenúncios...

Sentei-me ao pé da tépida lareira feita de cerâmica e deitei uma pazada de


carvão sobre a brasa. Reclinado na cadeira de braços, tinha sobre os joelhos um
caderno escolar em que alinhava os capítulos deste livro.

Nessa noite, porém, quase nada escrevi. Estava tão cansado que logo adormeci,
enquanto o fogo crepitava alegremente na lareira.

No meio do carvão miúdo que eu lançara ao fogo havia um pedaço maior e mais
duro. Quando o ardor se apoderou dele e lhe penetrou no interior, despertou a
alma dormente do carvão de pedra. Ergueu-se em forma de linguinha rubra e
pôs-se a lamber sofregamente em redor de si, como se estivesse com muita
fome.

E com muita fome estava ela, a alma ígnea do escuro carvão...

– Onde estou? – perguntou a meia-voz a alma flamejante, olhando em derredor.

– Não sei – segredou outra linguinha de fogo que ao lado da primeira se erguera.
– Está tudo tão mudado...

– Quando adormecemos – prosseguiu a primeira – estávamos rodeadas de


imensas florestas, árvores que atingiam quase as nuvens do céu – e agora não
vejo árvore alguma...

– E aquele animal sentado aí, de corpo vertical, que será?...

– Não é como os do nosso tempo, que tinham corpo horizontal e cabeça para o
lado. Este tem a cabeça para cima...
– Parece que foi ele que nos despertou do longo sono. Voltamos a ser luz como
éramos antes que os raios solares nos encarcerassem nos tecidos celulares da
madeira.

– Se foi esse ser vertical que nos despertou do sono deve ser mais inteligente
que todos os seres vivos horizontais do nosso tempo. Será que ele sabe falar?

– Parece que não. Quando, acordei, estava ele se entretendo em lançar uns
rabiscos pretos sobre umas lâminas brancas, sem dizer nada. Depois parou,
fechou os olhos e ficou assim como está agora, meio morto.

– Vou espiar o que esse estranho animal rabiscou nas lâminas brancas que tem
sobre os joelhos.

A linguinha ígnea nascida do grande pedaço de carvão ergueu o corpo oscilante


e flexível a mais de meio metro de altura, de maneira que a cabecinha em forma
de flecha ficava acima dos joelhos do dormente e iluminou com a sua alma lúcida
as poucas linhas negras que eu lançara sobre o papel antes de adormecer. E
disse à companheira:

– Se esse animal tem inteligência, não deve ser grande coisa. Os desenhos que
ele fez na lâmina branca não têm beleza alguma. Você se lembra, Lúcia, dos
desenhos artísticos dos nossos corpos, quando éramos madeira?

– Ah! que maravilha, esses desenhos, Ignis! Tenho saudade daqueles tempos...
Os meus, em parte, ainda persistem no meu corpo de hoje, petrificado em escuro
carvão. Naquele tempo, o meu corpo era cor de ouro e neve com uns traços
longitudinais de sépia. Através das minhas artérias circulavam as seivas da
árvore. Veio então aquele cataclisma que nos soterrou centenas de metros. Morri
sufocada debaixo duma montanha enorme. Morreu-me a alma vegetal que viera
da terra, mas continuou a viver em mim esta alma ígnea que recebi do sol.

– E esta não morre nunca, parece.

– Será que agora a nossa alma ígnea não está morrendo? vejo o meu corpo
negro reduzir-se a cinzas...

– Não, Lúcia, a nossa alma de fogo não pode morrer. Agora, depois de dormir
muito tempo no seio da madeira e do carvão, ela despertou, e alma desperta e
vígil não pode ficar presa dentro desse cárcere material. Tem de ser assim
mesmo como é.

– Mas, depois de sair daqui, Ignis, para onde vai ela?

– Volta para os espaços celestes donde veio. E, algum dia, quando o sol quiser,
tornará a entrar dentro da matéria, para dormir mais um grande sono. A nossa
vida é assim, Lúcia, uma eterna circulação, dentro e fora da matéria. Dentro da
matéria dormimos esse sono inconsciente das energias potenciais, e fora da
matéria vivemos essa vida consciente das energias vivas e atualizadas.

– A nossa vida é bela, não achas Ignis?

– Bela, belíssima. O fogo é o que há de mais belo em todo o Universo. Possui


todas as propriedades que um ser perfeito deve possuir. É luminoso. É ardente.
É puro. É forte. É leve. É ágil. É imortal. É eterno. Por isto, o sol é de fogo, porque
é a fonte de todas as perfeições da Natureza. Sabes que beleza o sol dá às
plantas e aos animais? Todas as cores. Muita alegria. A plenitude da vida...

Enquanto Ignis se exaltava cantando com entusiasmo a apoteose do misterioso


elemento, contemplava Lúcia, pensativa, o semblante do animal dormente
sentado na cadeira, com umas delgadas lâminas brancas sobre os joelhos. De
vez em quando, as feições do dormente se contraíam de leve, como que num
sorriso quase imperceptível.

– Esse animal não dorme – disse a chama.

– Dorme, sim – respondeu a outra. – Mas, parece que a alma dele está viva
dentro desse corpo. É como nós: dorme, mas vive.

– Vou ver de que são feitas aquelas lâminas brancas que ele tem sobre os
joelhos. Não me parece estranha a substância.

Antes que Ignis pudesse desaconselhar a companheira de executar o seu


intento, esta já se inclinara sobre as tênues lâminas e começou a acaricia-las de
leve com a pontinha da língua.

– São de madeira lisa, lisa, lisa! da nossa madeira! – exclamou.

Não terminara a frase, quando as folhas de papel estavam em chamas.

Acordei, estremunhado. Lancei de mim o caderno e apaguei o fogo que


começava a devorar o que eu escrevera.

As duas chamas da lareira recuaram por momentos, agachando-se ao pé da


parede de cerâmica.

Tornei a sentar-me na cadeira, mais longe do fogo. Relembrei o que sonhara, e


continuei a sonhar de olhos abertos. Minha alma, porém, continuava sintonizada
pela onda rubra daqueles seres ígneos: pois só assim podia eu compreender-
lhes a misteriosa linguagem. Quando Lúcia percebeu o estrago que causara,
ergueu a cabecinha, tímida, e murmurou:

– Desculpe, ilustre animal, o susto que lhe dei e o prejuízo que lhe causei... Não
foi por mal... Eu... eu...

– Está desculpada, flâmula amiga.


– Obrigada. Meu nome é Lúcia...

– O meu é Ignis – acrescentou a outra.

– Eu sou homem, e não animal.

– Homem? que é isto? – perguntou a maior das duas chamas.

– Homem? que é isto? – repetiu a menor.

– No nosso tempo não havia sobre a terra esse animal – desculpe! – esse... esse
ser vertical chamado homem...

– E de cabeça para cima, como nós – disse Lúcia, com certo orgulho.

– É verdade, vocês, isto é, vossos corpos, nasceram uns 300.000.000 de anos


antes do aparecimento do homem à face deste planeta.

– 300.000.000 de anos? – disse Ignis cheia de pasmo.

– 300.000.000 de anos? – repetiu Lúcia, arregalando os olhos de fogo.

– E dormimos todo esse tempo?

– Sim, minhas amigas ígneas, há uns... 300.000.000 de anos que quase toda a
terra estava coberta de florestas imensas. A atmosfera era tépida e úmida, e
disto gostam as plantas,

– É mesmo – concordou Ignis.

– É mesmo – repetiu Lúcia.

– Até nos atuais pólos terrestres não reinava esse frio intenso de hoje. Chovia
muito, porque o ar andava todo saturado de vapores d’água. Desenvolveram-se
então fantasticamente as árvores, formando gigantescas selvas, de pólo a pólo.
Mais tarde, em virtude de violentos abalos da crosta terrestre ainda não
suficientemente solidificada, foram soterradas enormes florestas e, cobertas de
montanhas, petrificaram-se aos poucos, no fundo da terra, dando em resultado
o chamado carvão de pedra. Nessas camadas carboníferas ainda hoje se
encontram troncos e galhos de árvores com a sua forma primitiva, mas reduzidos
a pedra inerte, pedra feita de madeira.

– Espantoso! – exclamou Ignis. – Como é que você, homem sublime, sabe de


tudo isto, se a sua raça, como diz, nasceu 300.000.000 de anos depois desses
acontecimentos?

– Nós, os homens, possuímos inteligência, espírito, razão, que tem a faculdade


de descobrir tudo isto.
– E nós, minha companheira e eu, olhando os rabiscos que você lançara nessas
lâminas brancas, achávamos que era um ser de pouca inteligência, porque os
rabiscos eram feios...

– Os rabiscos, isto é, as letras, servem apenas para fixar o nosso pensamento,


mas eles não são o pensamento. Se fôssemos ainda mais inteligentes do que
somos, não haveríamos mister servir-nos desses rabiscos; poderíamos ter na
cabeça grande cópia de pensamentos ao mesmo tempo, sem necessidade de
os fixar no papel. Há seres muito mais perfeitos e inteligentes do que nós, e
esses seres não se servem de papel nem de adjutório material algum para fixar
os seus pensamentos. O mais inteligente de todos os seres inteligentes é Deus,
Autor de todas as coisas...

Ao ouvirem a palavra “Deus”, as duas chamas de fogo se abateram


repentinamente, rojando sobre o fundo da estufa, em sinal de reverência. Depois,
reerguendo-se, conservaram-se por alguns minutos em atitude erecta, hirta,
imóvel, como duas espadas rubras, prestando destarte culto de tácita adoração
ao Soberano do Universo.

– Deus! – murmurou Ignis, num ímpeto de amor.

– Deus! – disse Lúcia, com solenidade.

– Deus! – repeti eu, erguendo os olhos ao céu.

Houve minutos de grande silêncio, interrompido apenas pelo discreto crepitar


das brasas no fundo da lareira.

Depois, aproximando-se de mim, perguntou Lúcia em tom confidencial:

– Então, nós dormimos todo esse tempo – 300.000.000 de anos?

– Mais ou menos. Dormiram muito. Sua alma solar ficou como que presa no
castelo encantado da madeira e do carvão. Contam nossos poetas a história
duma princesa que vivia num palácio cercado de muralhas altíssimas e
defendido por feroz dragão. Pelas artes mágicas duma feiticeira foi a jovem
submersa num sono profundo e misterioso, do qual só a poderia despertar um
príncipe que escalasse as muralhas, matasse o dragão e depositasse um beijo
de amor na fronte da princesa encantada. Passou-se um século, século de
inúmeras tentativas infrutíferas para penetrar no misterioso castelo. Potências
sinistras vedavam o ingresso. Até que, finalmente, um corajoso príncipe vindo
de longe, munido de forças secretas, escalou as muralhas, matou o feroz dragão,
depositou um beijo na fronte da princesa dormente – e ela acordou para a grande
alvorada da vida, para a jubilosa primavera do amor.

Assim contam nossos poetas.


Essa história não é apenas ficção e fantasia; é pura realidade, minhas amigas
ígneas. A princesa dormente é a energia solar, luz e calor, encarcerada no seio
escuro da lenha, do carvão, em outras substâncias combustíveis. Nesse castelo
encantado tem ela de dormir o seu misterioso sono secular, milenar, multimilenar
– até que algum agente de fora a venha despertar dessa estranha letargia para
a grande vigília, até que a energia latente e potencial se transforme novamente
em energia ativa e atual, como era a princípio quando irradiou do sol – luz e
calor...

– E quem foi que nos despertou do sono para a vida real? – perguntou Lúcia.

– No caso presente fui eu. Risquei um fósforo, toquei com a pequena chama a
energia potencial do carvão, e essa energia dormente despertou para a vida da
energia vígil.

– Então és tu o nosso príncipe libertador! – exclamou Lúcia com tão rasgado


gesto de simpatia que quase atingiu as folhas do meu caderno. Quis até abraçar-
me, mas tive tempo para impedir esse amplexo de amor que teria sido por
demais doloroso para mim.

– Viva nosso príncipe libertador! – bradou Ignis, lançando a cabeça e metade do


corpo flexível para fora da estufa.

Lúcia fez coro à irmã.

Agradeci a entusiástica manifestação de amizade e prometi às duas chamas


escrever este capítulo em sua honra. Estou cumprindo a promessa.

Por volta da meia-noite, quando já havia na lareira mais cinzas que carvão,
quando o sono se apoderava de mim e os corpos carbônicos de Ignis e Lúcia
estavam quase consumidos por sua alma flamejante, despedi-me das luminosas
e ardentes amigas, dizendo:

– Adeus e boa-noite, amiguinhas de fogo! Quando as vossas almas solares


estiverem outra vez sem corpo, difusas pelo espaço infindo, dai lembranças
minhas a nosso grande amigo e pai, o Sol, e saudai Aquele de quem o sol é
esplêndido símbolo – Deus...

– Deus – segredou Ignis.

– Deus – murmurou Lúcia.

– Deus – repetiu minha alma.

E fez-se grande silêncio, na lareira, na sala, dentro de mim – por toda a parte...
Uma Alma em Quatro Corpos

Passei aquele inverno todo num ambiente de estranha nostalgia...

O colóquio noturno com Ignis e Lúcia me deixara na alma uma aura de suave e
dolente saudade... Percebi com surpresa quanto me afeiçoara a essas amigas
etéreas dos espaços cósmicos, que eu libertara da prisão material de longos
milênios. Dia a dia, andava eu à sua procura. Onde estariam elas? Percorriam
os espaços celestes em forma de raios solares, mas não havia meio de identificá-
las. De mais a mais, as nuvens e os nevoeiros lhes impediam a passagem.

Toda noite, quando era intenso o frio daquele mês de julho, sentava-me eu ao
pé da laranjeira, deitava lenha e carvão ao fogo, contemplava as linguinhas
rubras, e escutava o discreto crepitar da sua alegria – mas não encontrava entre
as numerosas flamas, pequenas e grandes, quem tivesse a alma de Ignis e
Lúcia.

Por que me parecia tão belo e poético o meu primeiro amor? Somente por ser o
primeiro? Adivinhei que esse amor seria também o último, o único...

Ignis era o perfeito ideal duma chama adolescente, duma graciosíssima filha
solar: esbelta, esguia, flexível, ardente, cheia de mistério. Lúcia, com aquele seu
arzinho de menina ingênua, com os seus entusiasmos francos e sinceros,
difundia-me na alma um como que perfume sutil de intata pureza e sagrada
reverência...

Onde estariam elas?

Sempre para além dessas nuvens cinzentas que toldavam o espaço e apagavam
todos os sorrisos do sol...

***

Em princípios de agosto, após dois meses de repouso hibernal, começaram a


brotar as roseiras, porque o sol começava a restabelecer o seu domínio sobre a
terra, derrotando a última retaguarda do inverno.

Numa dessas manhãs em plena convalescença, estava eu sentado no tosco


banco de bambu, no jardim de minha casa, sonhando de olhos abertos. Ignis e
Lúcia, que é feito de vocês? perguntava em silêncio minha alma – quando
percebi com viva surpresa as seguintes palavras:
– Ignis e Lúcia? São minhas amigas...

– Quem é que fala? – exclamei.

– Lalá.

Olhei na direção donde partira o som, e vi uma borboleta com asas cor de tijolo
debruadas de preto. Pousava tranquilamente sobre uma flor de aristolóquia, que,
de contrabando, brotava junto à cerca do meu jardim.

– Como? – estranhei. – Você conhece Ignis e Lúcia? essas lindas filhas do sol?

– Ora, ora! – casquinou Lalá, com ares de leviandade, e, antes de prosseguir,


enterrou a finíssima tromba espiralada no pequenino cálice da flor em que
pousava.

– Por favor, Lalá, diga-me, você conhece mesmo Ignis e Lúcia?

– Se conheço! Pensa que eu estaria aqui se não fossem elas? Sem luz e calor,
borboleta não voa. Foram também elas que conduziram minha alma, através de
três noites, para este grande dia...

E enterrava a delgada espiral nas flores da Zínia.

– Três noites? que está dizendo, Lalá? não compreendendo a sua linguagem...

– Sim três noites, meu sonhador, três noites imensas. A noite do ovo, a noite da
larva e a noite da crisálida. Ou melhor, duas pleni-noites, e uma semi-noite...

– Que linguagem misteriosa, Lalá! estou sem nada compreender.

– Disse uma grande verdade, meu sonhador. Os homens nunca entenderam


nada de nossa vida. Escreveram milhares de livros sobre nós, mas não sabem
nada da nossa vida íntima.

– Pelos modos, você é da escola dos irônicos, não é?

– Dos místicos, se me faz favor.

– Ah! logo vi... Estou sendo mistificado...

– Não é isto, meu sonhador! Mística não é mistificação. Mística é uma vida na
mais alta potência. Mística é mistério.

– Mas... diga-me, que vêm a ser essas três noites, essas duas pleni-noites, e
essa semi-noite?

O leviano lepidóptero cor de tijolo e carvão compôs lentamente as quatro asas,


duas pontudas e duas arredondadas, recolheu para dentro dum estojo invisível
a graciosa espiral da tromba, e disse, olhando para mim com seus milhares de
olhos facetados reunidos em dois hemisférios furta-cores:

– Já lhe disse, meu sonhador em pleno dia, o que foram essas três noites da
minha vida. Três noites são necessárias, na vida de toda borboleta, para que
nasça o grande dia. Apareci neste mundo luminoso em forma dum minúsculo
ovinho, que minha mãe, num tépido dia de sol, colou debaixo duma folha.
Ovinhos em série, um ao lado do outro, em distância simétrica, lembrando
pequeno favo de abelhas. Eram, todos eles, da cor da luz solar. O sol, que coava
através da folha, envolvia em clarões esverdeados o meu primeiro berço. Mas,
apesar da luz, era noite, porque eu dormia. E não podia acordar. Forças
estranhas impediam que eu despertasse. Passado, porém, o tempo prescrito
pela Natureza, rompi de repente a estreita clausura do ovo – e vi-me num
deslumbrante prado esmeraldino. Era a face inferior desta folha de aristolóquia.

– Por que precisamente esta planta?

– Porque mamãe borboleta conhece as plantas e sabe que seus filhos não
comem senão folha de aristolóquia. Os homens dizem que é planta venenosa,
porque o sangue dela é um leite pegajoso que os animais desprezam. Se eu
tivesse de procurar este prato saboroso, morreria antes de o encontrar. Mamãe
borboleta, porém, tem asas e encontra tudo que quer. Pôs o meu berço na face
inferior duma folha de aristolóquia, ao abrigo dos ventos e das chuvas, e ao
alcance dos beijos do sol. Mamãe devia ser inteligente e boa; mas eu nunca a
vi. Ao terminar a primeira noite da minha vida, ela, parece, já não existia...

– E que fez você, Lalá, depois de sair da casquinha do seu ovo?

– Fiz o que faz toda lagarta, da manhã até à noite: comer e digerir, digerir e
comer.

– Arre! que materialista que você é!

– Materialista? eu sou a rainha da espiritualidade! Vivo nas alturas da pureza


solar. Vivo de luzes, perfumes e néctar.

– Desculpe, Lalá. Eu me referia a seu passado, e não ao presente.

– Pois o passado de “é”, segundo sua língua, é “foi”. Fui materialista. Cumpri a
minha missão. A única tarefa da lagarta é comer e digerir, não por amor a essa
ocupação primitiva, mas para armazenar material de construção.

– Material para quê?

– Para a construção do edifício artístico que eu ia levantar.

– Que edifício?
– Este corpo de borboleta. Não vê você que é uma maravilha de arte e estética?
O que eu, quando lagarta, fazia com as verdes folhas que comia não era senão
desbastar ligeiramente a matéria-prima para a futura construção – assim como
vocês, homens, arrancam das montanhas ou do fundo da terra blocos de pedra
e os transportam para a oficina de alvenaria. Esses blocos, brutos e informes,
não servem para paredes e colunas dum edifício de estilo e bom gosto; têm de
ser primeiramente trabalhados por instrumentos vários, até que apresentem a
forma desejada. Pois saiba você, meu sonhador, que vida de lagarta é apenas
serviço de pedra bruta, extração de matéria-prima. Para nós, essa matéria-prima
está nos tecidos celulares das folhas que trituramos. São as minas que nos
fornecem material de construção.

– E quem dá forma a esses blocos que você arranja?

– Devagar! devagar! A pressa é inimiga da perfeição. Depois de algumas


semanas de incessante comer e digerir, quando o meu corpo atingira quase o
tamanho de seu dedo mínimo, comecei a sentir dentro de mim algo de estranho
e indefinível, um misto de medo e tristeza, umas como saudades dum mundo
que nunca vira... Deixei de comer, um dia, dois dias, e não sentia fome com todo
esse jejum... Abandonei a companhia das outras larvas, minhas irmãs, algumas
das quais estavam também imóveis e melancólicas. Sentia imperiosa
necessidade de estar só. Retirei-me do cenário habitual da minha faina
gastronômica, e fui caminhando, caminhando, sem saber para onde... Minha
alma, porém, me guiava com segurança... As folhas da aristolóquia eram
movediças e sempre agitadas pelos ventos... Eu tinha o desejo de encontrar algo
de mais firme e sólido, algum cantinho sossegado onde pudesse morrer em
paz...

– Morrer?

– Sim, a sensação que eu tinha era a de quem se dispõe a morrer. E, ao mesmo


tempo, sabia eu – sabia? – não, entressabia, pressentia, adivinhava
obscuramente que aquela morte era porta aberta para alguma vida
desconhecida. Nos horizontes vespertinos do meu iminente ocaso pareciam
correr tênues sorrisos de alvorada. O meu medo era uma longínqua esperança
envolta em ansiosa expectativa... Dada a confiança que eu tinha na grande
Inteligência da Natureza, entreguei-me sem reserva a seus cuidados...

Depois de encontrar um cantinho sossegado, debaixo do galho duma laranjeira,


suspendi-me, de cabeça para baixo, presa numa gotinha de goma que tirei da
boca, e nessa goma me prendi com a outra extremidade do corpo...

– Você fez isto, Lalá? enforcou-se?...

– Se assim quiser chamá-lo, diga que me enforquei, mas de modo diferente e


por motivos diversos do que vocês, homens, quando fartos da vida, se enforcam,
de cabeça para cima. Eu não estava farta da vida, estava ansiosa e impaciente
por uma vida mais plena e mais intensamente vivida do que a que eu vivera até
então... Queria morrer para essa semivida a fim de viver uma pleni-vida... A isto
me impelia a grande Inteligência da Natureza...

– Que horror, estar suspenso assim debaixo dum galho, de cabeça para baixo,
sem saber o que vai acontecer!...

– Nada acontece o que acontecer não deve... Tudo faz parte dum plano eterno...
Depois de assim suspensa sob o galho da laranjeira, perdi os sentidos. Lembro-
me apenas vagamente que fui encolhendo o corpo até ficar curto e grosso. A
minha pele perdeu a cor amarelo-preta e cedeu a uma tonalidade escura,
uniforme.

Passaram assim uns dez dias, período de inexplicáveis mistérios. Eu de nada


saberia se dentro de mim não vigiara a grande Inteligência da Natureza, que tudo
dirige assim como deve ser, com grande sabedoria, arte e amor.

– Conte, Lalá, o que aconteceu durante esse período.

– Aconteceu o que sua pequena inteligência consciente não poderá


compreender jamais, jamais... Sei que anda no meio dos homens um livro
intitulado “Mil e Uma Noites”. Pois, o que esse livro diz ter acontecido em mais
de mil noites, isto, e mil vezes mais, aconteceu comigo naquela única noite que
decorreu entre a minha vida de larva e de borboleta... Abriram-se portas
secretas... Acenderam-se lâmpadas maravilhosas... Fórmulas mágicas tornaram
realidade o impossível... Houve resposta a grandes enigmas... Príncipes ignotos
escalaram muralhas e penetraram em palácios encantados... E uma princesa
dormente despertou para a vida, às carícias dum beijo de amor...

– Mas como foi, Lalá, como foi? Ardo de impaciência por saber o que aconteceu,
durante essa misteriosa noite...

A borboleta desdobrou as quatro asas cor de tijolo e carvão e ergueu-se aos


ares, com o silêncio e a leveza dum sopro de Deus. Pensei que se fosse embora,
mas foi pousar sobre uma flor próxima, desenrolou a boca em espiral e sugou
uma gotinha de néctar. Depois tornou a pousar onde estivera, e disse:

– Almocei. E agora tenho forças para contar o que aconteceu naqueles dez dias
da minha última escuridão. No segundo dia após a minha suspensão sob o galho
da laranjeira, saí da pele.

– Saiu da pele?

– Sim, encolhi-me tanto, tanto, fiquei tão curta e grossa que – zás! arrebentou-
me a pele pelas costas. Agitei-me quanto pude naquele estado inconsciente, e
consegui que a delgada película escura se desprendesse e caísse por terra, ao
meio do capim que rodeava a laranjeira.

– E você, onde ficou?

– Eu? fiquei onde estava, suspensa debaixo do galho, presa por uma hastezinha
preta, que era aquela mesma goma com que me prendera. O que lá ficou
suspenso não era eu, a lagarta. Era um ser infinitamente lindo, gracioso e
artístico...

– A crisálida, não é?

– É assim que está nos livros papiráceos dos homens. Crisálida, pupa, ninfa,
casulo – que sei eu?... O que lá estava, de cabeça para baixo, era uma
bonequinha verde-clara, tendo na parte superior um anel de ouro, e, na parte
inferior, dois pontinhos dourados. A forma era indescritível, meio cilíndrica,
parecida com uma bolota, terminando em cima num gracioso cone cuja ponta
superior se prendia ao galho.

– E que havia dentro dessa bonequinha verde?

– Lá dentro estava eu, imagine!

– Você estava lá dentro? com essas asas enormes? com essas pernas
compridas? com essas lindas cores?

– Tudo isto estava dentro da crisálida, mas em outro estado. A matéria e força
de tudo isto. Durante aqueles dez dias, minha alma não teve um momento de
descanso. Foi um trabalho intenso, intenso... Assim que se viu bem isolada e
com todas as portas fechadas, apoderou-se logo da matéria-prima, daquele
verde mingau que eu, quando lagarta, preparara das folhas da aristolóquia, e,
discriminando os diversos elementos de construção, pôs-se a arquitetar o corpo
da borboleta. Dentro do mingau havia de tudo para a construção do meu corpo
definitivo: cabeça, tronco médio e traseiro; seis pernas articuladas; quatro asas
com artísticos desenhos; um par de olhos facetados com milhares de retinas
visuais; uma tromba espiralada atravessada por um canal e com um pequeno
estojo para acondicionamento quando em repouso.

– Tudo isto se achava dentro da crisálida?

– Devia estar lá dentro, de algum modo. Do contrário, não podia sair.

Durante aqueles dez dias, minha alma encerrada na auriverde bonequinha não
fez senão preparar o meu futuro. Selecionou os elementos contidos naquela
massa esverdeada, apurou, aperfeiçoou e distribuiu o material de construção
para o meu corpo – ah, sr. homem! alma de borboleta é coisa inteligente, muito
inteligente!...
– Sei, sei. É a alma da Natureza, a grande Inteligência do Universo. Continue,
Lalá.

– Quando minha alma acabava de formar todas as partes, membros e órgãos do


meu corpo, rompeu o invólucro da crisálida – e do interior saí eu...

– Com essas asas enormes, Lalá?

– Sim, com estas mesmas asas de seda e veludo; mas elas estavam
cuidadosamente dobradas sobre si mesmas, moles e flexíveis como folhas de
celofane. Assim que me vi fora da clausura, agarrei-me com quantas pernas
tinha ao invólucro vazio e comecei a desdobrar lentamente as quatro asas,
agitando-as ligeiramente para secarem; pois estavam ainda úmidas. Ah! que
momento solene, aquele!... pelos milhares de olhos a dentro me entrou o mundo,
um mundo de luzes e cores, coisas fantásticas que quase me deram vertigens...
Eu não sabia nada disto... Mesmo a minha vida de lagarta não passara dum
cárcere crepuscular... Duas noites e uma semi-noite... E agora esse dia imenso
repleto de infinita claridade... Senti-me feliz, muito feliz... Sabia que estava na
altura da vida, que mais alto não podia subir... Tive uma vontade imensa de
comunicar a alguém a minha grande felicidade, porque ela já não cabia dentro
de mim... Eu era pequenina demais para algo tão grande, como era aquela
felicidade... Era muito maior que eu mesma... Não sei como essa felicidade não
me fez estalar o corpo em mil fragmentos...

Quando senti as minhas asas enxutas e firmes, agitei-as de leve – funcionavam


sem o menor ruído – e vi-me suspensa no ar, nuns fiozinhos de luz... Que coisa
linda é voar! pairar no espaço vazio inundado de luzes... Veio uma aragem e
levou-me consigo – e eu me deixei levar, ébria de alegria, de gozo, de inefável
delícia... A terra era verde, o céu azul, a atmosfera tépida – tudo lindo e
encantador... Divisei ao longe um como clarão avermelhado e fui em direção a
esse ponto. Dei com um canteiro cheio de flores. Tomei a primeira gota de néctar
da minha vida, e vi que inúmeros seres iguais a mim adejavam pelos espaços
transparentes e gozavam a vida como eu.

Mais tarde, travei conhecimento com um companheiro, e tanto gostamos um do


outro que resolvemos transmitir a outros seres a nossa grande felicidade. A
felicidade é como a luz solar: não quer ficar dentro do sol, mas correr mundos e
iluminar tudo que é escuro. Quando a nossa felicidade atinge a sua plenitude
transborda para outros seres, e, quando esses não existem, dá-lhes existência
para que possam ter parte em nossa excessiva felicidade...

Calou-se por instantes Lalá, como que a recordar algo de imensamente querido
e suave. Urna abelha com rebrilhos de ouro passou perto de nós, pousou por
momentos sobre a mesma folha em que estava a borboleta, mas, levada pelo
gênio irrequieto que caracteriza esses fabricantes de mel, logo tornou a
desaparecer com forte zumbido.
Lalá, parecendo antes falar a si mesma do que para ser ouvida por alguém, disse
à meia-voz:

Ovo, lagarta, crisálida, borboleta –


Tudo isto sou eu...
Uma alma em quatro corpos –
E essa alma não cabe em si mesma...
Vive fora de si –
De tão feliz...
Vida de Trevas – Núpcias de Luz

Cri, crii, criii, criiiiiiiiiii...

Assim vibravam os ares estivos em derredor...

O pomar inteiro parecia repleto dessa estranha chieira, vibrante, estrídula, como
o rufar de mil pequeninos tambores...

Procurei localizar os invisíveis autores dessa música isocrônica, mas foi trabalho
difícil, porque eles estavam colocados de tal maneira nos galhos das árvores que
pareciam pedacinhos da casca cinzenta. E, para melhor despistar os seus
numerosos inimigos, sabem modular estranhamente a força dos seus sons,
parecendo estar ora perto, ora longe de quem os escuta e procura.

Mesmo assim, consegui identificar um desses músicos alados – uma cigarra de


estio... Quando se viu descoberta, calou-se e quis fugir. Hipnotizei-a, porém,
rapidamente, com um olhar, e consegui que me contasse algo da sua vida.

O seu nome era Tchi.

Enquanto o estranho inseto falava, com vozinha melancólica, senti-me tomado


de tão profunda emoção e tristeza que os olhos se me encheram de lágrimas...

O que me disse o corpulento cicadídeo, de olhos enormes e asas transparentes


como vidro, é tão estranho, tão dramático e trágico, que seria incrível se não
fosse contado pelo próprio protagonista e vítima do fenômeno.

– Por que é que você canta tão desesperadamente? – perguntei. – Não tem
medo de rachar mais uma vez? não é que deixou a sua primeira pele, rachada
pelas costas, colada nesse tronco?...

– Canto, canto muito, canto sem parar – respondeu a cigarra – porque viver é
cantar. Passei em silêncio 17 anos, no fundo da terra...

– Que está dizendo, Tchi? você passou 17 anos1 no fundo da terra? foi enterrado
vivo e não morreu?...

1. É a ninfa da Cicada septemdecim, que leva 17 anos de vida subterrânea. Outras levam 13,
10 anos ou menos. A vida que lhes conhecemos, à luz solar, é apenas o período final da
evolução, em formas sexuadas, para fim de reprodução. No seu estágio subterrâneo a cigarra é
assexual.
– É como digo...

– Mas... afinal de contas... você não nasceu há pouco mesmo, numa noite de
luar? Que vem a ser esta casquinha? não é o seu berço?...

Isto dizendo, apanhei a levíssima máscara de quitina que estava presa ao tronco
da árvore e tinha exatamente a forma do corpo da cigarra, abstração feita das
asas, que faltavam na máscara. Estava rachada nas costas, por onde saíra Tchi.

– Saí dessa casquinha, é verdade – respondeu o inseto. – Mas, antes de sair


daí, vivi muitos anos no fundo escuro da terra. Nasci agora para a luz e o amor...

– Você é cigarra há muito tempo, Tchi?

– Cigarra como hoje, não. Eu era uma larva ou ninfa. Com as duas pernas
dianteiras, terminadas em pás, abria longos túneis através do solo.

– Que é que você comia?

– Sugava a seiva das raízes que encontrava na minha passagem. Esta árvore é
muito suculenta. Minha mãe fez bem em pôr nela os ovinhos...

– Os ovinhos? não compreendo, Tchi...

– Há 17 estios, minha mãe pôs algumas centenas de ovinhos sob a casca dum
dos galhos desta árvore. Para este fim é que há fêmeas entre nós...

– E você, o que é?

– Eu sou macho. Você já ouviu uma cigarra fêmea cantar? Sou macho pela
primeira e única vez na vida.

– E até agora, que coisa era você?

– Não era macho nem fêmea, era neutro, no fundo da terra. Quando caí das
alturas do galho, em que minha mãe desovara, já tinha forma de larvinha branca.
Caí, enterrei-me logo e comecei a cavar a vida como pude. Somos seres
subterrâneos e não aéreos, como pensam os homens...

– Ora, ora! Eu também vivia nessa ilusão. Pensava que as cigarras fossem os
mais aéreos e diurnos de todos os insetos – e vocês são noturnos e
subterrâneos...

– Nós, de solitários e subterrâneos que somos habitualmente, nos fazemos


aéreos em caráter transitório, somente para nos casarmos...

– Que está dizendo, Tchi?...

– É como digo. No fundo da terra não podemos casar, porque somos assexuais.
– E fora da terra, quanto tempo vocês vivem?

– Uns 40 a 50 sóis.

– Apenas uns 40 a 50 dias de sol, depois de milhares de dias de trevas – que


horror! que sorte trágica a vossa!... E você, que idade tem?

– De vida luminosa tenho apenas dezesseis sóis; de vida tenebrosa, mais de


seis mil sóis... Sóis que não vi...

– Quer dizer que você, quando nasceu, já era velho?

– É exato. Nós, quando nascemos para a festa do amor, somos os mais velhos
de todos os insetos da terra. Ao menos, não me consta que outro inseto viva 17
anos como nós.

– E sua companheira?

– Minhas companheiras? são muitas.

– Por que não cantam?

– Porque não têm tambores.

– Tambores?

– Sim, nós, os machos, temos um par de tambores na parte lateral do corpo.

– E por que você faz tanta música, o dia todo?

– Para divertir as amigas. E também para me vingar de tantos anos de silêncio.


Acha você que não deve cantar de sol a sol quando viveu mudo em sombria
solidão milhares de sóis que sobre a terra passaram sem que você os visse?

– Oh! certamente, certamente, amigo Tchi!...

– Quase todos os insetos gozaram desses milhares de sóis, menos nós. Não
temos licença de sair dos nossos túneis antes de completar o ciclo que a grande
Inteligência nos marcou...

– E agora?...

– Já lhe disse, agora quero viver algumas semanas de amor, de luz, de música...

– Algumas semanas apenas...

– Apenas, apenas... Mas... é bem possível que morra antes, hoje mesmo... Cri,
crii, criii, criiiiiiiiiii...

***
Pouco depois deste diálogo com Tchi, percebi que, num galho vizinho, estava
pousada outra cigarra, ocupada em alojar umas centenas de ovinhos
microscópicos debaixo da casca, servindo-se para isto de um ovipositor em
forma de lança.

– É uma das minhas companheiras – explicou Tchi, numa ligeira pausa da sua
estridente música, acrescentando: – Daqui a pouco vai morrer...

– Morrer, por quê?

– Porque, depois de pôr o último ovo, estará exausta. E, também, para que viver
ainda, se cumpriu a sua missão?

– E você, amigo Tchi?

– Vou viver mais um pouco, mas sinto que não chegarei ao sol de amanhã.

– Morrer? Mas não disse que as cigarras viviam algumas semanas?

– Podemos viver algumas semanas, no máximo. Mas, se ela morrer, também


morrerei.

– Ela?

– Sim, ela, a mais querida das minhas amigas.

Não acabara Tchi de falar, quando a companheira se desprendeu do galho e


tombou, inerte, ao chão. De súbito, perpassou-lhe pelo lindo corpo mais um
rápido estremecimento – e depois ficou imóvel para sempre...

Tchi, quando viu morta a mais querida das suas amigas, deu meia volta sobre o
galho em que pousava, e, reunindo todas as forças, rufou com veemência os
pequeninos tambores, enchendo os ares duma melodia monótona e triste, e
parecia derreter sua alma nas notas plangentes dessa soluçante elegia...

Um pardal pousou duas vezes no galho, à procura da cobiçada presa, mas o


inseto, pressentindo o perigo, soube com tanto jeito modular a sua música,
variando os pianíssimos e os fortíssimos, que despistou completamente o
emplumado rapineiro. É que não queria morrer assassinado, e, sim, expirar
espontaneamente, consumido de amor e de tristeza...

De repente, amigo Tchi desprendeu-se do galho e foi cair ao pé da árvore, a dois


palmos da companheira, onde, num arranco supremo, rufou mais uma vez os
pequeninos tambores – e silenciou para sempre...

...............................................................................................................................

E, daí a pouco, recomeçariam seus filhos a estranha odisséia subterrânea de 17


anos de solidão e de trevas – seguida de algumas semanas de luz e de amor...
Aventuras Românticas D. Flora

Era tão inebriante e afrodisíaco o perfume das florzinhas em derredor de mim


que caí numa espécie de sono ou torpor – e me vi transportado a mundos
fantásticos. Fantásticos, porém reais.

Ninguém supunha tanta malícia naqueles estames cor de ouro rodeados dum
círculo de alvíssimas pétalas – e, no entanto, foram elas, essas pequeninas
feiticeiras, que me embriagaram e arrebataram ao reino das grandes maravilhas.
Será que a laranjeira sabia dessas artes das suas encantadoras filhinhas cor de
ouro e neve?... Tão ingênuas pareciam elas...

Assim que fechei os olhos corpóreos, abriram-se-me de par a par os olhos da


alma... É sempre assim... As coisas mais belas só as enxergo de olhos
fechados... Para que me despontem na alma as estrelas noturnas desse
Universo é necessário que se apague primeiro o sol das primitivas irrealidades
do dia.

Nesse estado, percebi sobre minha cabeça uma conversa estranha entre um
grupo daquelas florzinhas sedutoras que as noivas põem no cabelo no dia em
que vão à reconquista do paraíso perdido...

– É verdade – disse uma delas, que mal acabava de desabrochar – nós


atingimos o supremo ideal de perfeição. Conseguimos, enfim, reunir na mesma
flor todos os órgãos necessários à perpetuação da nossa espécie. Assim, está
resolvido o problema vital da fecundação, do qual depende o nosso ser ou não
ser.

– E sabe você, nenezinha – interveio outra flor que, de tão velha, já estava com
as pétalas amarelas, meio murchas e prestes a cair – sabe quanto tempo levou
esta conquista da nossa perfumosa raça?

– Deve ter levado muitos sóis...

– Muitos sóis? logo vi que você é de hoje. Levou milhares, milhões de


primaveras, minha caçula. Você faz idéia do que são milhões de primaveras?

– Mais ou menos...

– Milhões de vezes rondaram a primavera, o verão, o outono e o inverno em


torno das nossas frondes, até que chegássemos a esta perfeição que hoje
possuímos, nós e muitas outras plantas tão inteligentes e modernas como as
laranjeiras. Você vê aquele pé de milho ali à beira da estrada?

A recém-nascida seguiu com os olhos auriverdes do estigma a indicação da


velha – e desatou em tão escandalosa risada que das suas anteras, apesar de
semipegajosas, caiu uma chuvinha de ouro sobre ela e sobre as brancas pétalas
que, quais damas de honor, lhe faziam guarda.

– Por que está rindo assim? – perguntou a flor murcha, nervosa e rabugenta.

– Porque... porque... ha, ha, ha!... porque não posso ver aquele espantalho de
flor sem morrer de rir. Então, aquilo é flor?... Como é o nome desse cidadão?

– Milho.

– Milho, está certo. Nome de bruxa só podia ser assim...

– Tenha modos, Lili! – ralhou a velha, carrancuda. – O milho é planta muito


decente, e, além disto, muito útil.

– Muito decente? – casquinou a pequena com ar brejeiro. – Então, nós somos


gente indecente?

– Somos tidas por um tanto levianas, de pouco recato... Há quem nos julgue
profanas, afrodisíacas, e não sei que mais...

– Isto, que você está dizendo, é coisa ruim, Cassandra?... nunca ouvi esta
palavra: afro... afro... afrodíaco?...

– Dizem que é ruim...

– E o milho é assim? afrodíaco?...

– O milho é planta muito séria, decente, pudica...

– Por quê?

– Logo vi que você nem olhou para o pé de milho que lhe mostrei. Olhe, aquele
pendão espalhafatoso lá em cima é o macho; e lá embaixo aquele penacho de
cabelos ruivos que sai da cabeça da bonequinha de palha verde, tudo aquilo é a
fêmea. Veja como ficam distante um do outro. Moram na mesma casa, mas só
se namoram de longe, e o esquipático pendão lá em cima manda a sua chuva
de pólen fecundante pelos ares à bonequinha lá no fundo. Não se tocam nunca.
Nem há beija-flor que venha visitar os dois para levar recados de cá para lá,
como entre nós. Tudo é feito a discreta distância.

– Por que é que os beija-flores não visitam a flor do milho?

– Porque essa flor não tem cor, nem cheiro, nem néctar, três coisas
indispensáveis para aliciar os seres volantes.
– E por que ela não se enfeita nem se perfuma?

– Porque a Natureza não lhe deu nada disto Lili. O sistema dessas plantas é
outro. O macho entrega ao vento nuvens brancas de pó para espalhar sobre a
cabeleira ruiva da companheira. Milhares e milhões de germezinhos
microscópicos lá se vão pelos ares, em todas as direções, a grande distância. A
maior parte se perde, mas alguns sempre encontram a cabeça da amiga. Melhor
ainda, se esse pó for de outro pé de milho, porque também para as plantas não
é bom casamento entre irmãos.

– E, se falhar o vento, se chover muito e o pó não voar?....

– Então morre o pé de milho sem descendentes, só com um sabugo estéril, sem


grãos de milho. A cada cabelinho ruivo corresponde um grão, e se o fiozinho de
cabelo não receber ao menos um germezinho de pólen não pode gerar.

– Não é negócio ser milho, Cassandra, não é negócio... Viverem marido e mulher
tão longe um do outro... Dependerem do bom ou mau tempo... Essa planta não
soube arranjar a vida... Parece mesmo inteligência de sabugo... Nem sei como
ainda existe milho no mundo, com esse sistema atrasado...

– Mais respeito, Lili, pelos seres menos felizes que nós! Lembra-te de que
também a nossa espécie teve o seu período de atraso e vida primitiva. Se
soubesses como éramos a uns milhões de primaveras. Mamãe Natura, porém,
nos deu um instinto privilegiado, e assim, em muitos milhões de sóis e de
primaveras; conseguimos, a perfeição de hoje, com esta facilidade de
propagação da nossa espécie.

***

Enquanto as duas flores de laranjeira assim confabulavam sobre o momentoso


problema da vida e da morte, ouvia-se ao longe, no alto dum morro, uns gemidos
tão pesados que pareciam sair do peito de um gigante moribundo.

– Que é isto? – perguntou Lili, espiando, a medo, por entre a paliçada das
brancas pétalas, já agora completamente abertas.

– É um pinheiro – respondeu Cassandra com um suspiro e profunda tristeza na


voz.

– Por que é que ele geme assim?

– Porque esse gigante vai hoje completar 100 anos de vida e não tem filhos. Vai
morrer sem deixar herdeiro da sua força secular, e isso o entristece.

– Por que não tem filhos?

– Porque o destino lhe foi adverso. Esse pinheiro está sozinho no alto do morro,
sem companheira de sua espécie, e assim não se pôde reproduzir.
– Pois, aquele pé de milho não está sozinho também, e não se reproduz?

– Logo vi, nenezinha, que sua ciência é de hoje. A minha vem de longe, de
tempos remotos... Meia dúzia de sóis já passaram sobre mim e encheram-me de
sabedoria...

– Deixe de sóis e de sabedoria, Cassandra, e diga-me porque é que o pinheiro


não tem filhos.

– Os pinheiros, Lili, pertencem a uma das mais antigas raças de árvores que há
no mundo. Naquele tempo não se sabia ainda das engenhosas invenções da
maior parte das flores de hoje, que reuniram dentro de cada uma todos os órgãos
necessários para a propagação da espécie. Esta invenção data apenas de
alguns milhões de primaveras. O pinheiro, a despeito de toda a sua força, não
conseguiu libertar-se dos usos e costumes dos seus antepassados. É muito bom
ser tradicionalista e conservar o que os maiores tinham de bom; mas é
necessário também ser evolucionista e adotar o que os modernos descobriram
de valioso. Nós, laranjeiras, e mil outras espécies de plantas, sem sacrificar o
cunho característico da nossa raça, evolvemos, adotando processos melhores e
mais eficientes do que nossos ascendentes. O pinheiro, porém, é o rei dos
caturras emperrados. Seus ancestrais...

– Que é ancestrais? parece nome de fantasma...

– Ancestrais, minha nenezinha abelhuda, são os antepassados, os maiores, os


ascendentes.

– Hããã...

– Pois, como dizia, os ancestrais do pinheiro acharam que deviam criar flores
masculinas e femininas em pés separados. E nisto ficaram seus filhos até hoje.
Para haver fecundação e descendentes, são necessários dois pinheiros de sexo
diverso. Se são todos machos, ou todas fêmeas, não dá nada.

– Quer dizer que não vivem nem sequer na mesma casa, como a raça do milho?

– Justamente, Lili. Vive cada um em sua casa.

– Puxa! que grande castidade a desses pinheiros! Meus respeitos!... aos olhos
deles, nós as laranjeiras, devemos parecer mesmo uma gente ultraleviana e
perdida, com esta nossa promiscuidade sexual dentro da mesma flor... E esses
pinheiros têm flor?...

– Se um rabinho cor de chocolate e uma bolinha esverdeada são flores, eles


têm...

– E quem leva o pólen de um a outro?

– O vento, como no caso do milho.


No momento em que Cassandra proferia estas palavras, caíram-lhe
repentinamente as pétalas murchas, bem como os estames e as anteras. Ficou-
lhe ainda por algum tempo a coluneta ebúrnea do pistilo encimado pelo estigma
verde-claro. Depois caiu também esta derradeira lembrança da mocidade e
restou apenas uma pequenina e graciosa esfera verde, a laranjinha, primeiro
passo para a idade madura.

Fêz-se silêncio na laranjeira. Tudo parecia dormir. A Natureza respirava


imperceptivelmente com seus milhares de pulmõesinhos esmeraldinos, em
forma de folhas. Percebia-se, de longe em longe, o discreto zumbido de umas
abelhas e, uma vez, o sussurro das asas dum beija-flor que, em troca dumas
gotas de néctar, distribuía beijos às mimosas florzinhas e lhes prestava o maior
dos favores vitais. Lili quis dar-lhe um importante recado para o pinheiro
agonizante, mas o miúdo colibri já lhe desaparecera da vista.

Nisto, percebi, vindas não sei donde, umas vozes estranhas e pude distinguir
estas palavras:

– Ora, ora! essas plantas complicadas! Precisam sempre de dois pés, de duas
flores, de dois órgãos diversos para garantir a descendência... Eu não tenho flor
nem coisa alguma, vivo sozinho no meu barranco – e sempre carregado de
filhos. Isto, sim, que é progresso e vida vivida! Não sou macho nem fêmea. Não
preciso de ninguém para me reproduzir e perpetuar até ao fim do mundo. Sou
suficiente a mim mesmo. Viva a independência!...

Abri os olhos e procurei descobrir o autor dessa jactância, e divisei, no declive


dum monte, uma figueira carregada de figos roxos.

Houve momentos de silêncio. Eu, de olhos abertos, ainda dormia e sonhava, em


contato com a alma da natureza dormente.

Ouvi uma risadinha sutil ao pé de mim, e alguém dizia:

– Mentirosa, essa figueira. Ela também tem flores, mas estão por dentro.
Ninguém as vê, e essa hipócrita pretende iludir o mundo com a sua neutralidade
sexual!...

– Em castigo de sua hipocrisia – acrescentou outra vozinha – ela não dá semente


viva. Só se multiplica por meio de raízes e estaquinhas...

Voltei a mim, da misteriosa zona do inconsciente – e desvaneceram todas as


maravilhas, à sombra da laranjeira em flor...
Reencontro com Calcal

Desde aquele meu encontro com o foraminífero Calcal, à beira-mar, andava eu


com a cabeça cheia dum mundo de idéias, semi-pensadas e semi-sonhadas.

Num desses dias, relembrei os últimos acontecimentos passados com a alma da


Natureza: os meus colóquios com Alu, a ameba imortal; a entrevista com Uzu e
Ifi; com as Vorticelas; a conversa noturna com Ignis e Lúcia, as duas chamas
que libertara do palácio encantado; a história sensacional das metamorfoses de
Lalá, que vivia uma vida em quatro corpos diversos; as aventuras pitorescas das
filhas gentis de D. Flora – tudo isto me revoluteava no cérebro e fazia de mim
um alienígena em terra própria.

O colóquio com o protozoário Calcal, além desse oceano de vibração com que
os outros seres me haviam enchido a alma, deixara-me no espírito um não sei
quê de tristeza e melancolia... O foraminífero, que vivia nas profundezas do mar,
parecia envolto num vasto halo de mistério – e o mistério sempre empolgou mais
o meu espírito do que a realidade conhecida... Não me interessa o que sei –
seduz-me o desconhecido que ignoro... Creio mais no muito que ignoro do que
no pouco que sei... Mais belos são os mundos que, incertos, entrevejo no
invisível do que as coisas que meridianamente enxergo na zona do visível... Mais
se aliciam horizontes ignotos do que realidades palpáveis... Bandeirante do
Além, parece-me insípido o Aquém...

Bem sei que todo o pensar profundo me torna triste – mas prefiro essa tristeza
profunda aos baixios da alegria barata e profana.

Atormentava-me o desejo de um reencontro com Calcal – o ao mesmo tempo


que um secreto terror me afastava dele...

Triunfou a sede do saber sobre o medo da verdade...

Dirigi-me à beira-mar e, concentrando o espírito no meio dum grande silêncio,


evoquei das úmidas profundezas meu invisível amigo de outrora.

E ele apareceu. Antes que eu proferisse palavra, disse Calcal:

– Estás triste, ó homem. Por isto, hoje, só te falarei em coisas luminosas.

– Como sabes que estou triste, amigo Calcal? – perguntei com viva estranheza.
– É que meu corpo semifluido apanha todas as auras que andam no espaço. Se
isto é saber, então eu sei.

– E queres falar-me em coisas luminosas, tu, que vives em perpétua escuridão,


nas profundezas do mar?

– A escuridão em que eu vivo, ó mistério ambulante, é mais luminosa que os


céus estrelados das tuas noites.

– Que há de luminoso nesses abismos oceânicos?

– Peixes, muitos peixes.

– Peixes luminosos, que dizes? Li que a 100 metros de profundidade expiram


todos os raios vermelhos da luz solar, e a 500 metros morrem também os raios
violeta, que são os que vão mais longe. Depois – completa escuridão...

– E pensas tu, mistério ambulante, que, onde terminam os raios violeta, acabam
todos os raios luminosos?

– É verdade... fala-se em raios ultravioleta, mas...

– Sei que para a tua retina os raios ultravioletas são completa escuridão, como
também te são imperceptíveis os raios infravermelhos – aqueles por
excessivamente curtos, estes por demasiadamente grandes.

– Vejo, amigo Calcal, que és mesmo formado em ciências naturais.

– Todos nós nascemos “formados” na Academia da Natureza. Pois, como ia


dizendo, há naquelas profundezas peixes luminosos. Os que não têm holofotes
para aclarar a escuridão têm olhos tão poderosos que encontram luz onde não
parece haver, e vivem felizes. A Natureza é boa e dá a cada um dos seus filhos
o que ele precisa para viver e ser feliz. Pois, se esses peixes nada vissem
naquela escuridão, como é que podiam achar alimento? A Natureza é inteligente
e boa...

– Viste esses peixes luminosos, Calcal?

– Muitos, muitíssimos, de todas as cores e feitios. Alguns deles, os mais


modestos, têm apenas um par de holofotes por detrás dos olhos. Outros, nas
pontas das barbatanas; este sistema tem suas vantagens, porque as luzes são
móveis e podem ser dirigidas para onde o peixe quer. Outros ainda, por sinal
que mais aristocráticos, têm estrias e faixas luminosas ao longo de todo o corpo.
Alguns tiveram a estranha lembrança de criar luzes até dentro da boca. Estes
são perversos; abrem as fauces luminosas para atrair seres incautos encantados
com essas lâmpadas fosforescentes em plena escuridão – e sepultá-los no
estômago. Conheci um peixe grã-fino que tem no corpo todas as cores
imagináveis.
– Por que tantas cores?

– Ora, para embelezar a vida. Para cada festa de sentimento acende ele uma
lâmpada especial: uma cor para a alegria, outra para a tristeza, esta para o amor,
aquela para o despeito, e assim por diante.

– De que são feitas essas luzes?

– Não sei. O que sei é que é luz fria. O mais esquisito é que muitos peixes,
quando se aproximam da gente, não têm luz alguma, nem têm propriamente
olhos luminosos. De repente projetam do interior do corpo, por uns órgãos
especiais, uma substância viscosa, incolor, que só se torna luminosa no
momento em que entra em contato com as águas do mar. É deslumbrante, esse
fenômeno. O peixe envolve-se todo nesses filamentos luminosos, que flutuam
em derredor dele como espirais, serpentinas, bolhas fantásticas, até quando ele
quer.

– Por que essas luminárias no fundo do mar, meu amigo?

– É a defesa do peixe. Enquanto o inimigo investe contra a feérica nuvem de


luzes suspensa na água, onde ele supõe a cobiçada presa, essa já fugiu,
despercebida, pelo outro lado da nuvem – e lança em outra parte os seus fogos
de artifício.

– É só com este fim que o peixe produz tamanho estardalhaço de luzes?

– Não, é também para seus amores e para as festas núpcias. Com esse jogo de
luzes em série convida as companheiras para se aproximarem dele. A convidada
responde logo com outra pirotécnica, quando pode, e assim celebram eles os
seus himeneus, a milhares de metros de profundidade.

– É justo que tão lindo fenômeno sirva ao amor – mas que seja também
instrumento de vingança... de ódio...

– Que está dizendo, ó homem? Entre nós não há vingança nem ódio. Isto é do
mundo dos homens. Para que uns possam viver outros têm de morrer – é lei da
Natureza. Para que sobreviva o mais forte, tem de ser eliminado o fraco; se assim
não fosse, que seria da evolução e do aperfeiçoamento da espécie? Se dois
machos brigam pela posse da fêmea não é por motivos de ódio ou vingança, é
unicamente por amor a uma prole forte, robusta e sadia, que, para ser o que
deve ser, tem de ter pais vigorosos. Tudo obedece à grande e única lei do amor
e ao desejo da perfeição. As luzes dos peixes também estão ao serviço desta
lei.

Ainda estava o foraminífero discorrendo sobre a sua filosofia vital, quando, pela
primeira vez, percebi – não sei como – que o seu corpo era uma maravilha de
arte e bom gosto. Conhecia eu moluscos aquáticos, como as ostras, que
carregavam consigo as suas casinhas feitas de um par de biombos nacarados,
devidamente articuladas no fundo e suscetíveis de se abrirem e fecharem
silenciosamente. Sabia também que certos moluscos terrestres, como os
caracóis, levavam nas costas, nos seus vagarosos passeios, a sua vivenda
graciosamente espiralada, para dentro da qual se refugiavam ao pressentirem
qualquer perigo. Mas o que eu nunca vira era uma casinha feita quase só de
janelas e pouquíssima parede, como a do meu amiguinho Calcal. Quando ele
quer dar um passeio, mudar de ambiente, derrama por todas as janelinhas do
seu fantástico chalé calcáreo o corpinho gelatinoso, estendendo uma trama de
fiozinhos vítreos, que lhe servem de outros tantos remos para se locomover na
água salgada.

No meio destas minhas cogitações, silenciou repentinamente o foraminífero,


porque pela vizinhança passava microscópico pedacinho verde duma alga.
Calcal projetou de si, através da infinidade das janelinhas redondas da sua casa,
dezenas de pernas ou braços, agarrou a incauta transeunte, envolveu-a toda
numa delgadíssima película transparente, formada do desdobramento dos
estranhos tentáculos, e procurou arrastar a alguinha para dentro de casa. Assim
pensava eu.

– Impossível, amigo Calcal – disse-lhe. – Impossível! Não vê que sua presa é


muito maior que a abertura das suas janelinhas?

O protozoário não fez caso da minha advertência de homo sapiens, mas


continuou a “embrulhar” cuidadosamente a sua vítima no finíssimo celofane dos
seus pseudópodos, segurando-a do lado de fora de sua casinha.

– Tentativa inútil! – repetia eu, sempre na errônea persuasão de que o


foraminífero quisesse passar a suculenta alga pelos microscópicos orifícios das
suas paredes calcáreas.

– Sossegue, ó homem – replicou ele, enfim. – Estou digerindo o petisco.


Delicioso!...

– Que está dizendo, Calcal? Você está digerindo a alga? Mas, se ela ainda está
na rua, fora de sua casa e do seu corpo?... será que você suspendeu o estômago
por cima da rua, através da janela?...

– Eu digiro em qualquer lugar, para cá ou para lá das paredes...

– Como? Pôs o estômago na rua?... Ou... está digerindo com os braços e as


pernas?...

– Digiro onde quero e como quero. Já lhe disse que sou uma única célula...
Depois de algum tempo, vi que o foraminífero “desembrulhava” a pobre alga – e
da alga nada ficara senão uns restinhos indigestos, que o protozoário jogou fora,
e recolheu-se para o interior da sua casinha de mil janelas e pouca parede...

Voltei a mim como quem regressa duma excursão a mundos de inauditas


maravilhas...
Amores Heróicos

Num desses últimos dias, passando à margem dum pequeno lago de água doce,
assisti a uma tragédia passional, que acabou em suicídio premeditado da parte
de uma pequena.

Quer dizer, de uma pequena Valisnéria cor de neve.

Tragédia? Assim pensava eu, nesse dia, cá na minha ignorância de homo


sapiens. Soube mais tarde, pela parte sobrevivente do empolgante drama, que
se tratava dum acontecimento normal na vida amorosa dessas plantas.

Viviam os dois protagonistas dessa cena pacificamente debaixo d’água, cerca


de meio metro da superfície. Eram dois botões adolescentes duma Valisneria
superba, modesta família de hidrocaritáceas, como dizem os tratados de
botânica. É uma planta de folhas compridas, delgadas como lâminas verdes.
Gostam do fundo das águas estagnadas. Conservam ainda o costume patriarcal,
hoje considerado imoderno pelas plantas grã-finas, de criar duas flores de sexo
diverso, localizadas em duas hastes devidamente distanciadas uma da outra. E,
no entanto, essa planta, de moral tão austera, não recua diante da própria morte
quando se trata de obedecer ao imperativo categórico das leis biológicas.

Vinha, pois, aquele cândido par de botões de hidrocaritáceas crescendo no seu


castelo de líquido cristal, tranquilamente, na mais perfeita paz e serenidade.

Mas, com o advento da puberdade, começaram a soprar dentro dos seus tecidos
celulares tempestades violentas. Chegando o dia solene das núpcias, desperta
o botão feminino para mundos desconhecidos. Quer amar e ser amada a linda
Valisnéria. Quer transfundir em seres inexistentes o excesso de energia e
felicidade que já não cabe no próprio coração. Quer imortalizar-se na eterna
juventude de um novo ser, duma infinita cadeia de seres.

Mas, como realizar o amplexo de amor do qual depende a perpetuação da


espécie, se o único elemento não permite o desejado himeneu? Seriam
necessários, para a competente polinização, os insetos ou o vento – mas não há
nada disto no fundo d’água, e os peixes não entendem de assuntos tão
delicados...

Verificou então a Valisnéria, com imensa satisfação e surpresa, que a haste do


seu botão tinha forma de espiral suscetível de se desenrolar. E lago lhe passou
por todos os tecidos celulares, qual relâmpago, a idéia genial de desenrolar a
sua haste espiralada e subir à tona d’água.

Dito e feito.

Daí a minutos, flutuava o alvo botão da pequena hidrocaritácea à flor do lago,


levemente balouçada pelas tépidas ondas e bafejada pelas suaves auras
primaveris.

Ó momentos de encanto inefável!...

Ó vida, como és bela!...

– Ó mãe Natura, como és boa e sábia nas tuas leis!...

Aos beijos da luz solar, entreabriram-se as delicadas pétalas e entregaram à


atmosfera as primícias dos seus aromas, aromas tão sutis que não são
percebidos pelo olfato do homem, mas só pela apurada sensibilidade de alguns
serezinhos alados.

Depois de voltar a si da primeira surpresa, sentiu a nívea donzela subaquática


que algo lhe faltava, um companheiro que participasse da sua grande felicidade.
Olhou em derredor – um imenso deserto de água... Nenhum ser que com ela se
parecesse. Nisto viu, através do límpido cristal, um botão de Valisnéria preso no
mesmo pé que a ela servira de sustentáculo. Desdobrou completamente as
delicadas pétalas e lançou ao espaço um grande brado de intensa alvura e
fragrância, convidando assim o companheiro lá no fundo a subir e associar-se
ao júbilo da sua radiante adolescência. O outro, porém, não reagiu aos
silenciosos brados da virgem a balouçar-se sobre as águas azuis.

– Por que não sobes, querido? – perguntou ela, sacudindo as pétalas ao


perpassar da viração matinal. – Desenrola a haste e vem aqui para fora, onde
canta um paraíso de beleza.

O outro, porém, não respondeu. De súbito, a jovem Valisnéria lá no alto verificou


com indizível horror que faltava ao companheiro a espiral da haste; estava preso
à planta pelo pedúnculo curto e comum das outras flores.

Tamanho foi o horror que se apoderou da alma da flor lá em cima que, por um
triz, desmaiara de dor e tristeza. Quis fechar as pétalas e afogar-se nas águas
profundas, mas não conseguiu realizar o seu intento. As pétalas não obedeciam,
não se fechavam, à espera da grande alvorada da vida.

– Ó crueldade! – gemia a Valisnéria, quase agonizante. – Por que me enganas


assim, ó mãe Natura? por que me fazes atingir a puberdade, por que me enches
a alma dum amor imenso – e depois impossibilitas a realização do meu grande
desejo?...
Nisto aconteceu algo de estranho com o botão lá no fundo. Formou-se dentro
dele uma grande bolha de gás que o impelia para cima. Depois de alguns
minutos de tentames infrutíferos – eis que, de repente, auxiliado pelo movimento
das águas, o botão se desprende da haste, voa em linha reta para a superfície
do lago e abre ao sol a branca roseta de pétalas...

Um grito de pasmo irrompeu do seio da companheira, que, de olhos arregalados,


contemplava o recém-chegado companheiro emerso das úmidas profundezas.

– Que fizeste, amigo? – perguntou, num misto de alegria e terror. Desprendeste-


te do pé? vais morrer...

– Não te preocupes, querida, o meu destino é este – respondeu o outro, sereno


e calmo. – A ti te deu mãe Natura essa haste em espiral porque, depois do nosso
amplexo nupcial, terás ainda uma grande missão a cumprir. Eu, porém, depois
disto, nada mais terei que fazer aqui no mundo. A minha única razão de ser e de
florescer és tu, é o amor, é a perpetuação da vida que vi vemos há milhões de
anos. Depois, voltarei ao seio do Universo, feliz por ter cumprido o meu grande
destino...

Nisto soprou do oriente uma aura mais forte e desprendeu uma chuvinha de
pólen das douradas anteras do arrojado suicida e jogou os invisíveis germes
vitais sobre o estigma da gentil companheira, que recebeu em silêncio o
suspirado ósculo de amor. Ainda um grupo de insetos pequeninos e de formas
esquisitas fez uma visita às duas flores para ver se havia provisão de néctar, e
foram-se embora, decepcionados. Nem são flores, disse um dos visitantes,
contrariado. São espectros do fundo do lago, observou outro tido por espirituoso.

A Valisnéria, como que estática, fechou lentamente as alvas pétalas, juntando-


as como pequeninas mãosinhas infantis em atitude de prece. Depois tornou a
enrolar cuidadosamente a longa espiral e submergiu nas águas do lago. Tão
bem fechadas estavam as brancas mãosinhas da flor que nenhuma gota d’água
conseguiu invadir-lhe o santuário do silencioso tálamo nupcial, onde iam
amadurecer os pequeninos germes da heróica união.

– Adeus, amigo querido! – segredou ela ao submergir. – Tu morrerás, lá em cima,


mas viverás imortal cá embaixo. Dentro do meu seio continua a vida da tua vida,
a essência do teu ser, esposo querido...

– Adeus, meu amor! – respondeu o outro lá no alto, enquanto deixava cair sobre
as águas as pétalas agonizantes. – Minha morte é alvorada de vida, porque filha
dum grande amor... Ressuscitaremos, tu e eu, em nossos filhos...

– Adeus...

– Adeus...
Lorantácea Fraudulenta e
Samambaia sem Amor

Quando cheguei, já havia começado a grande assembléia das plantas, presidida


pelo gênio clarividente de Sua Majestade, a rainha Flora.

– O problema central da nossa existência e perfeição – dizia ela – é a conquista


do sol e do solo...

– Do solo, não, basta a conquista do sol – retificou, com insolência, uma planta
sem raízes, chumbada diretamente ao galho duma laranjeira meio decrépita, de
cuja altura pendiam os ramos da “insolente” como flexíveis cipós.

– Silêncio e respeito! – ordenou a rainha – Erva-de-passarinho não tem voz ativa


na assembléia-geral das plantas decentes e laboriosas. És uma filha
degenerada. O teu modus vivendi é incompatível com o espírito da grande
família vegetal. Em vez de criar raízes e mandá-las, como nós, através do solo
em busca de umidade e de sais para os laboratórios da clorofila – que é que tu
fazes? parasitando perfidamente num galho de outra planta. Ligas-te a ela como
se fosses um ramo da mesma, enterras-lhe impiedosamente nos tecidos
celulares as garras rapineiras e nutres-te dos alimentos que ela, penosamente,
recolheu no fundo da terra e manipulou nos verdes laboratórios das folhas. Isto
é desonesto e revoltante. A tua vida, D. Lorantácea, é, toda ela, uma permanente
fraude e ilegalidade.

– Protesto, D. Flora! – exclamou a planta parasitária, lá no alto, agitando


furiosamente sua verde-escura cabeleira de cipós. – Eu elaboro os meus
alimentos em oficinas próprias, tenho laboratórios de clorofila como vós...

– É inútil, D. Lorantácea, querer iludir-me com sofismas e sutilezas. Sabemos


todos que possuis clorofila como nós, capaz de transformar em substância
orgânica os elementos inorgânicos, nem eu contestei isto. O que afirmo e
sustento é que tu não te dás ao trabalho fatigante de buscar as matérias-primas
para as elaborar nas oficinas clorofilianas. Como pérfido salteador e bandoleiro
d’estrada, sequestras e capturas os diversos sais que tua hospedeira, ou melhor,
tua vítima, arrancou do solo e veicula pacientemente para os seus laboratórios.
Interceptas a passagem a esses sais e os apreendes ilegalmente, como astuto
contrabandista mandando-os para teus laboratórios. Mercadoria roubada,
desviada do rumo legal – é disto que fabricas os teus hidratos de carbono, as
tuas células, fibras, todo o teu organismo celular. Se, em troca disto, desses ao
menos alguma vantagem à planta explorada, fornecendo-lhe substâncias de que
necessita, a exemplo de outros seres por nós hospedados; mas não é isto que
acontece: só recebes, e não dás nada em troca. A tua hospedagem, além de
gratuita, é nociva, catastrófica, como bem podes verificar nessa laranjeira, que
vai definhando aos poucos com tua presença, porque ela tem de trabalhar toda
a vida para reunir matéria-prima para seu próprio consumo útil e para o gasto
inútil duma parasita, que nunca produziu laranja alguma. Arrepende-te das tuas
maldades, ó filha degenerada, e converte-te!

– Não posso. Nem quero...

– Ó creatura perversa!...

– Não posso fazer dois trabalhos ao mesmo tempo, duas corridas em sentido
contrário: afundar raízes na escuridão da terra e demandar as luminosas alturas
do céu. Minhas forças são limitadas. Meu corpo é frágil. Limito-me à corrida rumo
à luz.

Depois desse ingrato incidente com a incorrigível erva-de-passarinho,


exploradora dos trabalhos alheios, retomou a rainha Flora o fio dos seus altos
pensamentos e tornou a falar a suas filhas honestas e laboriosas.

– Que é que fizestes, diletas filhas – perguntou com voz carinhosa – nesses
últimos milhões de anos, em benefício da nossa raça? que meios engendrastes
para conseguir a perpetuação e ulterior aperfeiçoamento da espécie?

– Inventei esporos – disse um arrepelado pé de samambaia, bambaleando


majestosamente as suas verdes frondes, como se se tratasse da mais estupenda
das vitórias do Universo.

– Esporas? explique-se, por favor...

Enquanto a anacrônica samambaia estudava termos dignos da “grandeza” da


sua invenção, duas anêmonas, num misterioso tête-à-tête, sorriam-se
maldosamente e cochichavam piadas chistosas à extemporânea jactância do
feto.

– Esporos – disse este, gaguejante – es... espo... poros... esporos são a ge...
ge... gênese biológica...

– Deixe de parte essa terminologia acadêmica – interveio a rainha, aliviando


notavelmente a situação do desajeitado criptógamo, que prosseguiu:

– Esporos são uns grãozinhos escuros que criei na face inferior das minhas
folhas.
– Esses esporos são sua prole?

– São, e não são...

– Como é isto?

– Os esporos não são, propriamente, filhos meus, Majestade. Do esporo não sai
samambaia. O esporo é uma célula, que se desprende da face inferior da folha,
cai por terra e se transforma numa pequena placa verde, achatada, que, vai
criando raízes. Vai crescendo, crescendo, ate... até...

A samambaia olhou em derredor para descobrir um termo de comparação.


Mostrei-lhe a falange média do meu dedo índice, e a narradora acrescentou:

– Até esse tamanho, quase.

– Quer dizer que o protalo – é assim que os homens chamam essa placa verde
– atinge, por vezes, a uns dois centímetros de diâmetro. E depois?

– Depois é que vem o mistério. Esse protalo, como você diz, cria na face inferior
duas espécies de órgãos. Uns têm forma de pequenos tubos e no fundo de cada
um está colado um óvulo. Os outros são uma espécie de tecido celular
esponjoso, do qual se destacam umas bexiguinhas ocas munidas de cauda em
forma de espiral. Quando uma dessas bolinhas, que têm movimento próprio,
consegue penetrar num dos tubos e atingir o óvulo, nasce outra planta igual a
mim. Foi esta a invenção que fiz nesses últimos milhões de anos.

– Parabéns, minha filha – disse a rainha, inclinando-se complacentemente sobre


a samambaia, acariciando-a. – O teu invento é esplêndido, embora não seja
ainda a última palavra em matéria de reprodução vegetal. Falta-lhe a
simplicidade, que é sinônimo de perfeição. Quanto mais singelo o processo,
quanto mais simples os meios empregados para alcançar grandes efeitos, tanto
maior é a perfeição e capacidade dum ser.

– Entretanto, Majestade, o ser mais inteligente que sobre a terra existe gosta de
mim e dá-me lugar de honra nas varandas das suas casas, e até no interior das
mesmas. À sombra das minhas frondes se tem forjado o destino de muitos
homens e de países inteiros. Tenho assistido às mais lindas conversas de almas
que sonham com mundos encantados e trocam beijos, que parecem dar direito
de entrada nesse mundo...

– Tens razão, minha filha. Teu corpo é dos mais elegantes e estéticos. É por isto
que os homens, te dão lugar de honra em suas casas, sem indagarem dos teus
mistérios biológicos.

Calou-se a samambaia e parecia cismar em algo muito triste. Depois, falando


mais a si mesma do que para ser ouvida, murmurou:
– Meu corpo é um dos mais elegantes e estéticos... e nele não cabem amores?
Serei um ser sem alma?... Amores só os há na humilde chapinha – protalo, como
diz o homem – que nasce ao pé de mim, sob a folhagem úmida, quando cai em
terra um dos meus pequeninos esporos... Terminando esse breve período de
amores, na penumbra do modesto protalo, morrem os dois sexos, e da morte
dos dois amantes nasço eu, que não tenho sexo nem amores... Minha vida é um
mistério neutro... um perpétuo sonambulismo... Será por isto que os homens
gostam de fazer declarações de amor à sombra das minhas frondes?... Não sei
amar, mas faço com que outros amem e produzam vida nova... Também eu sou
fruto de dois grandes amores... Nós, as samambaias, só amamos e somos
amados pelos da nossa espécie na adolescência do nosso viver. Quando adultos
não sabemos amar os da nossa espécie, mas somos benquistos do mais
inteligente e amoroso dos seres que povoa a face da terra...
A Conquista da Luz

Estava eu escutando ainda o colóquio da rainha Flora com suas filhas, quando
percebi, na vizinhança, diversas vozes a altercarem furiosamente.

– Sai daqui, grandalhão! – guinchava uma vozinha trêmula de raiva.

– O sol nasce para todos – interveio outra voz, um pouco mais calma – e esse
gigante pretende monopolizar a luz, como se fosse só dele.

– Não adianta berrar – acudiu mais outra vozinha, tão serena e tranquila que,
parecia ter cursado escola de perfeito estoicismo. – O que vale é crescermos
também e procurarmos contornar jeitosamente essas folhas enormes que nos
abafam e roubam a luz. Depressa, amigas, alongai os pescoços rumo às alturas,
antes que essa maldita prímula se apodere de todo o sol e do mundo inteiro!

– Prímula? não é nenhuma prímula – contestou a primeira vozinha – é uma


ordinaríssima língua-de-vaca.

– Qual? – protestou outra. – É um idiota pé de serralha.

– Prímula, língua-de-vaca ou serralha, não vem ao caso. São todos da mesma


raça. Usam de processos violentos e desleais: muito antes de florescer,
desdobram pelo chão enorme esteira de folhas e mais folhas, formando
gigantesca roda verde e abafando tudo quanto cresça na vizinhança. São
verdadeiras tiranas, essas plantas totalitárias. Pensam que a terra e o sol foram
feitos só para elas...

Assim discutia entre si um grupo de plantinhas miúdas que cresciam na imediata


vizinhança duma prímula silvestre, que, consoante o costume multimilenar
dessas creaturas, considerava de seu direito e dever alargar o mais possível o
seu espaço vital, estendendo em derredor, rentinha ao chão, vasta roseta de
folhas largas e duras, a fim de se premunir contra possíveis e prováveis
ofensivas da vizinhança, empenhada como ela na conquista da luz.

– Por que tanto espaço, sinhá Prímula? – perguntei àquela roda verde
desdobrada no chão. Ela não me respondeu, mas continuou, surda a gritos e
protestos, a estender vagarosamente as suas folhas sobrepondo-lhes outras,
menores, que em breve atingiriam o tamanho das primeiras, forrando de telhas
verdes o solo em derredor.
– Por que faço isto – disse, enfim, sem me olhar. – Para garantir o meu espaço
vital...

– Mas desculpe, sinhá Prímula, a Sra. precisa de tanto espaço, ao que sei, as
flores que vai criar são pequeninas e se erguerão em linha vertical às alturas,
onde há espaço de sobra?...

– Logo vi que você, homem sapiente, não entende nada dos mistérios da nossa
raça. Se eu não impedir o desenvolvimento das concorrentes ao redor de mim,
amanhã me tomarão a dianteira na conquista das alturas, roubando-me a
claridade solar, e meus filhinhos acabarão morrendo ou definhando por falta de
luz e calor. Não posso expor-me a semelhante perigo. Sou pequena, e tenho de
tomar providências enérgicas de início, antes que seja tarde. É questão de ser
ou não ser, problema de vida ou de morte, ou matar ou ser morta – compreende
você, gigante de ontem?

– De ontem?

– Sim, a sua raça nasceu ontem, e nós nascemos há milhões de anos.


Compreende o porquê da minha luta? A concorrência é brutal...

– Compreendo, compreendo...

– Então? Boa mãe que sou para com meus filhos nascituros, não posso ter
considerações para com estranhos. Viver é lutar...

– É, é, é – disse alguém na vizinhança. É a desvantagem de não saber trepar.


Eu não roubo solo a ninguém e tenho sempre sol à vontade. Vivo e deixo todo o
mundo viver. Quem vai na vertical como eu não precisa dessa exploração na
horizontal. Esses demagogos horizontalistas não compreenderam ainda a alta
filosofia da nossa raça verticalista. Há luz de sobra para todo o mundo, desde
que se tenha compreensão. Viver é pensar...

– Quem é esse verticalista? – perguntei, curioso por conhecer esse filósofo da


vida inteligente e pacífica.

– Eu, Miss Morning Glory – respondeu a mesma vozinha simpática do interior


dum delicadíssimo cálice de púrpura e lilás, preso a uma trepadeira de corpo,
extremamente delgado e flexível que se enroscava no tronco seco duma árvore.
Acabava precisamente de abrir a sua graciosa boca redonda para receber um
beijo matutino do grande amigo Sol; pois é sabido que as filhas gentis de D. Flora
só recebem beijos de lábios abertos. Miss Morning Glory abria em profundo
silêncio os lábios purpúreos, e o fulgor daquelas cores parecia um grande brado
de júbilo e amor lançado através da atmosfera matinal ébria de luz.
Mal havia esse silencioso brado da jovem ipoméia ecoado pela vizinhança,
quando acudiu meia-dúzia de insetos – abelhas, besourinhos, borboletas – e
desapareceram no fundo da linda trombeta de púrpura e lilás.

– Por que esse espalhafatoso cartaz – perguntou alguém, que não consegui
identificar.

– Para chamar os fregueses – respondeu prosaicamente a poética flor da gentil


trepadeira.

– Fregueses, para quê?

– Ora, ora! para lhes servir uma gota de néctar que preparei no fundo do meu
cálice.

– Você lhes serve de graça o precioso licor?

– De graça? aqui nada se faz de graça. De graça, só a morte...

– Meu Deus! disse eu de mim para mim. Que alma mercantilista nessa
graciosíssima creatura... Miss Morning Glory adivinhou o meu pensamento, e
disse:

– Não se escandalize, gigante de ontem. Viver é pensar. Eu preciso dos outros,


e eles precisam de mim. Minha poesia e beleza estão a serviço da minha vida.
O mais belo dos poemas é a vida...

– Que é que os insetos dão por esse almoço de néctar? – perguntei.

– Dão vida a meus filhos ainda não vivos.

– Que mistério é esse?...

– É o mistério da natureza. Meus amigos, consumidores de néctar, transferem


de uma flor a outra o pólen, sem o qual os meus germes vitais não despertariam
do sono para a grande festa da vida.

– Negócio de companhia – murmurei, mais para mim do que para ser ouvido. –
Sociedade de auxílios mútuos... Planta & Insetos Cia. Limitada...

– Companhia Ilimitada, se me faz favor. Limitada, é a do vizinho, o maracujá.


Comigo, é Companhia Ilimitada, compreende?

– Não compreendo. A que vem essa distinção?

– Vem muito a propósito. O maracujá não recebe qualquer freguês. Só tem


negócio com a mamangaba, espécie de zangão, grande, forçudo, porque só este
é apto para servir de intermediário entre as anteras e o estigma.
– Mas... diga-me, trepadeira gentil, para que precisa você de insetos, quando,
como vejo, tem dentro desse lindo cálice todos os órgãos de reprodução? porque
não dá ordem a esse círculo de alvos estames para descarregarem a sua áurea
carga de pólen sobre o estigma do pistilo que se ergue no meio deles? Você,
afinal de contas, não é hermafrodita?

O cálice purpúreo desandou-me um olhar tão estranho que me senti mais


ignorante que nunca. Deixou fugir de seu interior um par de abelhinhas miúdas
e pretas, cada uma das quais levava no papo uma gotinha de mel, e uma
provisão de pólen nas conchinhas peludas das perninhas traseiras; depois disse
com voz pausada, como se lecionasse filosofia do alto duma cátedra
universitária:

– Fique sabendo, ó homem de ontem, que nós, as ipoméias, da ilustre família


das convolvuláceas, somos hermafroditas, como são, aliás, quase todas as
plantas modernas. É uma das grandes conquistas da nossa raça, que nos custou
alguns milhões de anos de trabalhos insanos e muita inteligência. Pensar é viver.
Quem não sabe pensar e viver o seu pensamento sucumbe na luta pela
existência. Cada uma das nossas flores pode fecundar-se a si mesma e procriar
filhos, sem o concurso de seres estranhos.

– Então?...

– Entretanto, só lançamos mão dessa· faculdade de autopolinização em casos


excepcionais. Por via de regra, as nossas flores não se fecundam a si mesmas.
Temos até um dispositivo especial para dificultar essa autofecundação. O órgão
feminino prefere ser fecundado pelo pólen de outra flor, quer seja do mesmo pé,
quer seja de pé diferente. E, como não nos podemos locomover, dependemos
da interferência de seres semoventes, como esses insetos.

– Ou dos ventos, não é?

– Para nós, o vento não entra em questão. O milho, que não tem néctar nem cor,
conta com as boas graças do vento. Nós temos negócio de companhia com os
insetos. O que eles querem é alimento, iguaria sadia e saborosa, e isto lhes
fornecemos sem cessar, em abundância, e da melhor qualidade. Para que
nossos amigos volantes saibam onde está armazenado esse delicioso licor é
que suspendemos no ar cartazes de cores vivas – não alguma tabuleta grosseira
e banal, como se vêem sobre as lojas dos homens, mas um reclame artístico,
obra-prima de estética e bom gosto, como você vê.

A linda ipoméia fez girar ligeiramente o seu esplêndido cálice de seda, e eu me


extasiei ante a magnificência dos seus tenuíssimos cambiantes, que variavam
de tonalidade conforme a incidência dos raios solares.

– Assim somos nós – disse ela, orgulhosa – isto é que é arte, beleza, suprema
perfeição. Ponha debaixo do microscópio o meu tecido celular e verá maravilhas
de harmonia e precisão. O que os homens fabricam é tanto mais perfeito quanto
menos visível – o que nós produzimos é tanto mais artístico quanto mais
minuciosamente examinado.

Calei-me. Doía-me que essa encantadora filha da Natureza fosse, além de


mercantilista, tão orgulhosa e indelicada. Era uma creatura de corpo lindíssimo,
mas sem alma. Nisto me lembrei que ela não tinha perfume, e pareceu-me que
o perfume era a alma da flor. Era uma aristocrata verticalista, como ela dizia,
uma planta grã-fina que sabia pensar para viver, que sábia enroscar o seu corpo
flexível em troncos secos e apoderar-se mesmo de árvores em plena vida para
atingir as alturas, mas não sabia viver para pensar e amar... Há também flores –
observei à meia-voz – que não possuem essa beleza que tu tens, senhorita
Morning Glory...

– Senhora Morning Glory, faça favor – corrigiu ela. – Estou sendo mãe de três
filhinhos gêmeos, desde a visita das abelhinhas pretas.

– Parabéns pelos trigêmeos.

– Obrigada. Nós criamos sempre três filhos paralelos, porque cada uma das
nossas cápsulas contém três sementinhas. Quanto às cores, algumas das
nossas amigas preferem aliciar os insetos por meio de perfumes que espalham
no ar. São reclamos odoríferos. A grande Inteligência distribuiu sabiamente os
dons da sua liberalidade. As flores que não herdaram cores vistosas possuem
aromas para aliciar os amigos e intermediários da vida futura. Algumas há que
só florescem de noite, e têm geralmente perfume inebriante e cores claras para
romper a escuridão e chamar falenas e mariposas. Uma ou outra, como a
oenithera, levam a indústria ao ponto de criarem flores fosforescentes, cuja luz
não escapa aos noturnos lambiscadores de néctar. Nós, da família das
convolvuláceas e gênero das ipoméias, não temos luz nem perfume. Há quem
diga que somos flores sem alma. Será que a alma está no perfume?

– Não sei Senhora Morning Glory. Mas, afinal de contas, não me disse ainda
porque é que, apesar de hermafroditas, as suas flores não se fecundam a si
mesmas com os órgãos da mesma flor. Não seria processo muito mais simples
e independente de seres estranhos?

A linda flor demorou em responder à minha pergunta, porque uma grande abelha
dourada, das que fabricam mel para os homens, vinha saber se havia néctar à
disposição em troca dum carregamento de pólen colhido de passagem numa das
flores vizinhas. Encafuou-se profundamente no cálice, e voltou decepcionada,
porque não encontrou vestígio do delicioso licor.

– Por que não lhe disse que não havia nada, Dona Morning Glory?

– Porque não adiantaria dizer. Ver para crer, é a filosofia desse povinho armado
de ferrão venenoso.
– Diga-me, pois, porque prefere a fecundação exogâmica à endogâmica...

– Parabéns por essa terminologia ultracientífica! Pois ouça, ó homem, a resposta


a sua impaciente curiosidade. Nós, as plantas, temos de adaptar-nos a todos os
ambientes imagináveis. Eu estou muito bem neste terreno em que vivo, sempre
com suficiente umidade e com abundante luz solar. Mas não sei qual o destino
de meus filhos e netos. Podem ser jogados ao deserto, cair no meio de rochedos,
ser levados ao fundo de escura floresta, ou acabar à beira duma estrada de
impenetrável dureza. É necessário prepará-los para uma vida possivelmente
mais dura que a minha. Sou mãe, e o meu dever materno é cuidar do futuro de
meus filhos. Ora, fizemos a experiência, através de muitos milhões de anos, que
nossos filhos são tanto mais resistentes e adaptáveis a todo e qualquer ambiente
quanto maior for a sua polaridade interna, para usar de terminologia científica
como os livros dos homens. Esta polaridade interna, porém, aumenta e cresce
na razão direta da distância biológica dos elementos que entram na formação da
semente que darão origem a uma nova planta, e decresce e diminui com a
proximidade ou parentesco dos elementos destinados à reprodução. No intuito
de dar a meus filhinhos a mais vasta polaridade biológica, preservá-los de azares
adversos e muni-los de armas para a grande luta da vida e evolução, é que
procuro fecundação entre órgãos de flores diversas e evito a autopolinização
dentro da mesma flor.

– Estupendo, Dona Morning Glory, realmente estupendo este processo! Você é


uma verdadeira artista da vida. Mas, diga-me, por que afirmou, há pouco, que
sua sociedade com os insetos é “ilimitada”, ao passo que a do maracujá é
“limitada”?

Em vez de responder à minha pergunta, a flor da ipoméia apontou para um pé


de maracujá que, não longe daí, trepava por uma rampa rochosa, prendendo-se
nos anfractos com as gavinhas espiraladas e abrindo ao sol a obra-prima das
suas flores com os “símbolos da paixão”: coroa de espinhos, lança encimada por
uma esponja, três cravos e cinco chagas. De repente, se ouviu forte zumbido e
um sussurro de asas que pareciam de palha seca. Enorme mamangaba preta
com anéis amarelos pousou sobre a “coroa de espinhos” que se desdobrava em
círculo horizontal branco-roxo sobre as pétalas muito abertas. Girando com
grande azáfama foi o corpulento himenóptero colhendo nos profundos depósitos
o cobiçado néctar da flor, roçando com as costas abauladas ora nas cinco
anteras cheias de pólen, ora nos três estigmas gosmentos recurvados nos
interstícios das anteras, realizando assim o desejo vital da passiflora.

– Maracujá & Zangão Cia. Limitada – disse a ipoméia olhando significativamente


para mim.

– Limitada, por quê?


– Porque o maracujá, como já lhe disse, só é visitado por esse corpulento
freguês. Nenhum outro inseto quer saber dele.

– Por que não?

– Porque é tal a disposição das anteras e dos estigmas que outros seres menos
volumosos e de feitio diferente não tocariam nesses órgãos e, portanto, não
fariam a desejada fecundação, como a planta quer. As orquídeas também
pertencem à “companhia limitada”, mas os seus fregueses são outros.

– Que modo de falar é esse? – exclamou de repente o pé de maracujá. – Como


se fôssemos plantas inferiores pelo fato de termos poucas visitas. Olhe o meu
sistema de gavinhas, que são verdadeiras espirais de aço, que até o homem
imitou: metade da espiral para a direita, metade para a esquerda, e entre as duas
partes torcidas em sentido contrário há uma pequena peça em linha reta. O
homem, na sua técnica, copiou o nosso sistema de molas espirais porque o
reconheceu ideal. Na ponta extrema de cada tentáculo temos uma farpa ou unha,
que se prende rapidamente a qualquer objeto fixo e, assim que se sente segura,
se enrosca e forma espiral a fim de dar aos baraços do maracujá amplo jogo
quando agitado pelo vento. Não há tempestade que consiga romper as nossas
molas espiraladas, ao passo que vocês, Dona Morning Glory e suas colegas,
que se enroscam com o corpo todo, porque não têm gavinhas, estão sempre em
perigo de serem arrancadas do seu sustentáculo.

– Calma, calma, amigo maracujá! – disse a ipoméia, acrescentando com ironia:


– Dizem os homens que você é calmante... Será porque leva dentro da flor os
símbolos daquele homem misterioso que foi o ideal da paciência e da calma?

Aura estranha invadiu o ambiente, depois destas palavras...

Expiraram todos os ruídos no seio dum silêncio profundo...


Dispersar!

Quando voltei da minha excursão vespertina pelos campos, verifiquei que muitos
pega-pegas, picões e alguns carrapichos se me haviam apegado à roupa. Tirei
os hóspedes indesejáveis e joguei-os ao barranco dum ribeirão próximo.

– Muito obrigado!

Olhei em derredor, e não vi ninguém que pudesse ser autor desse inesperado
agradecimento.

– Muito obrigado, obrigado! – repetiram diversas vozinhas que pareciam partir


do barranco. Aproximei-me e sintonizei minha alma pela alma da Natureza a fim
de perceber os seus mistérios. Vi então que as minúsculas sementinhas que eu
lançara fora sorriam, satisfeitas, com o que lhes acontecera.

– Que é que vocês estão agradecendo? – perguntei.

– O grande benefício que nos prestou – respondeu um dos pega-pegas.

– A carona que nos deu – acrescentou, com ar brejeiro, um negro alfinete de


picão.

– Levou-nos longe de casa – exclamou, jubiloso, um carrapicho que parecia um


pequeno ouriço.

– Pelos modos, vocês não gostam de casa? – observei – brigaram com suas
famílias?

– Não, não, não! – bradaram todos a uma. – Somos muito amigos das nossas
famílias. Mas esta dispersão – prosseguiu o mais encorpado dos pega-pegas –
é para nós uma questão de vida. Viver é dispersa-se! Não temos pernas, como
você; nem asas como os insetos e as aves; nem barbatanas como os peixes.
Imóveis, temos de contar com os seres que se movem.

– E por que não poderiam vocês viver ao pé da planta-mãe?

– Grande desastre seria!...

– Desastre, por quê?

– Por falta de sol e de solo.


– Como assim?

– Sem bastante solo, não teríamos matéria-prima a elaborar; sem sol suficiente,
nos faltaria a clorofila indispensável para prepararmos a nossa comida
orgânica...

– Nossa e de todos os animais da terra – acrescentou um dos carrapichos,


inchando todo de vaidade. – Nós somos os cozinheiros do mundo, somos os
químicos do Universo. Só as plantas é que podem de elementos inorgânicos
fazer substância orgânica, sem a qual não poderia viver animal algum, nem o
homem...

– Tombar ao pé de nossa mãe – interveio um picão – seria o mesmo que suicidar-


se lentamente, roubando uns aos outros os sais da terra e a luz do sol. Alguns
irmãozinhos meus, que não conseguiram veículo, lá estão, raquíticos,
enfezados, nem vivos nem mortos. Toda planta inventa um processo para
mandar ao longe os seus pimpolhos. Quem ama lança longe de si o ente
amado... Quem odeia, retém-no perto de si.

– Todas as plantas fazem isto?

– Todas. Cada qual conforme a sua natureza e o grau das suas possibilidades.
Nós, a grande família dos pega-pegas, dos picões e dos carrapichos, não somos
dos mais atrasados, nem dos mais adiantados, verdade se diga. Inventamos este
sistema de farpas com que nos prendemos à roupa ou ao pêlo dos transeuntes,
que nos levam ao longe.

– E, se não há transeuntes?...

– Não deixa de haver, em muitos casos ao menos. Ainda que muitos falhem,
alguns acertam e a nossa produção é grande. Como você sabe – observou um
pega-pega – crescemos de preferência à beira dos caminhos, nos gramados ou
nas pastagens de gado, onde, como nos ensinou experiência multimilenar,
costuma haver movimento de animais.

– Plim!

– Que foi isto?

– Não foi nada. É um pé de mamona que joga aos ares os seus pimpolhos.
Atenção, daqui a pouco vem outro disparo.

– Plim, plim!

Aproximei-me do velho pé de rícino e verifiquei que trazia, na intersecção dos


ramos, grandes cachos espetados em posição vertical; cada uma das suas
bagas continha três sementes envoltas em casquinhas lígneas muito duras. À
medida que o calor solar dilatava essas casquinhas, retesavam-se-lhes as fibras
como outras tantas molas. De súbito, quando a tensão atingia o máximo – plim,
estalava a casca lígnea lançando a muitos metros de distância os grãozinhos
cinzentos ornados duma cabecinha branca. Arremessados assim a respeitável
distância da planta-mãe, podiam criar, sem cuidados nem perigos de asfixia, um
novo Estado celular.

– Boa viagem, sinhá pára-quedista! – exclamou de repente um dos miúdos


picõezinhos olhando para o alto. – Onde pretende fundar seu lar?

– Onde os bons ventos quiserem – respondeu a interpelada, que se subtraía à


minha percepção visual.

– Que é? – indaguei. – Uma pára-quedista? estamos em pé de guerra?...

– Não é nada. É uma sementinha de paineira em viagem aérea. Olhe, bem lá


por cima daquela árvore; lá vai a arrojada aviadora...

– Aviadora? você não dizia pára-quedista?

– Sim, sim, a semente da paineira é aviadora e pára-quedista profissional.


Suspensa num enorme penacho de seda branca, vai a pequenina atravessando
os espaços repletos de claridade. Viaja dia e noite, sem motor nem leme,
planando ao sabor das auras. Não tem pressa em descer. Goza em cheio a
mocidade antes de se entregar aos cuidados maternos...

– Viagem pré-nupcial, não é?

– Felizarda! Algumas dessas plumas se prendem às grimpas das árvores, outras


pousam no topo de rochedos, esperando muitos dias até prosseguirem na
fantástica viagem. Por fim, cansados do grande vácuo, baixam à terra, bem de
levezinho, como ótimas pára-quedistas que são e, encontrando ambiente
propício, logo se libertam do penacho de seda branca, lançam raízes e fundam
uma verde República celular.

– Eu também vou subir, adeus, adeus! – bradou outra pluma branca que acabava
de se desprender da verde e flexível bainha dum arbusto venenoso de seiva
leitosa, que crescia num cercado próximo. E lá se foi também essa aviadora
pára-quedista, seguida logo de uma revoada de colegas soltas da vagem do
mesmo arbusto.

– São bem mais felizes que nós, essas sementes aladas – suspirou um tomateiro
que crescia ao pé duma velha amoreira toda carregadinha de amoras vermelhas
e pretas.

– É – confirmou laconicamente a amoreira e, com voz lamentosa, acrescentou:


Também nós viajamos, mas é dentro do estômago escuro das aves. Não vemos
nada, nessa viagem. Nossos filhos passam horrores antes de chegarem a criar
vida autônoma.
– Por quê? – perguntou um maracujá, intrigado com essa linguagem.

– Ora – respondeu a amoreira – então não sabes que nossos filhos dormentes,
meus, do tomateiro e de muitas outras plantas, são devorados pelas aves,
passando, de um a outro sol, nos intestinos delas, a fim de poderem continuar
alhures a sua vida?

– São devorados e não morrem?

– Não, os nossos pimpolhos não morrem no interior desses rapineiros. Possuem


casca tão resistente que os sucos gástricos das aves não lhes penetram o
interior. Quando, muito ao longe, caem em terra, já estão devidamente adubados
e podem despertar para a vida real...

– Que tormento, essa viagem...

– Mas é necessário para a dispersão das nossas sementes. Não temos farpas,
nem asas, nem molas.

Neste ponto – interveio um grande pessegueiro – nós, filhas da Pérsia, temos


sorte mais feliz; idem, a laranjeira, filha da China; idem, as maçãs, peras, uvas,
abacates, mamões e outros amigos nossos.

– Como assim?

– Criamos ao redor das nossas sementes uma polpa carnuda e gostosa. Os


animais, amigos do bom gosto, nos levam para longe e comem apenas o nosso
invólucro, desprezando os germes vitais, que é o único que nos interessa.

– Deveras, um processo inteligente!

– Nos últimos tempos, então, a nossa vida é mesmo um céu aberto...

– Por quê?

– Porque, ultimamente, apareceu sobre a face da terra uma espécie de animal


diferente dos outros; em vez de corpo horizontal tem corpo vertical e traz a
cabeça para cima em vez de ser para o lado.

– É o homem.

– Pois esse ser vertical, que apareceu há pouco tempo, usa de processos
estranhos para desenvolver as carnes saborosas do nosso corpo. Ele come essa
carne e joga fora os nossos germes, que para ele não vale nada. Assim, por
intermédio dele, conquistamos todos os continentes do globo e vivemos às mil
maravilhas. O homem gosta até das nossas flores, não para comer, mas olha
para elas, leva-as ao nariz e diz umas coisas bonitas, sobretudo em presença de
pessoas de rosto liso e cabelo mais comprido. Nós, pessegueiros, temos o
costume de fazer brotar primeiro as nossas flores, antes de qualquer folha, a fim
de nos tornarmos mais visíveis aos insetos nossos amigos; e o homem, parece,
gosta deste nosso costume.

De repente, percebi um gemido, que vinha de uma planta mirrada, que não quis
dizer seu nome. Escutando bem, percebi estas palavras:

– Eu quisera ser um cactos, que bebe pouco e nunca tem sede, porque não exala
água.

– Quem é que fala? – perguntei.

– Eu mesmo...

– Quem, eu?

– Eu, um cactos. Não conhece?

– Conheço.

– Já observou como transformaram em caixas de água as primitivas folhas? A


isto os obrigou a tragédia das secas, longe do mar, que lhes foi berço e cenário
de milênios de vida indolente e fácil...

– O joazeiro dos nossos sertões flagelados de secas periódicas – disse eu –


criou reservatórios d’água debaixo da terra em forma de volumosas batatas, e
zomba de todos os ardores solares, porque sempre tem água em casa. A
macambira instalou caixa d’água acima da terra, de que se nutre em períodos
de estiagem.

– Viver é lutar. Não há progresso sem luta e sofrimento. Quando vivíamos vida
fácil perto d’água, quase que não progredíamos. Com a invasão da terra, dos
vastos continentes, das montanhas, dos rochedos e dos desertos áridos, é que
começou a nossa evolução em linha ascensional. Criamos esplêndidas folhas
de todos os feitios. Inventamos engenhosos processos de reprodução.
Engendramos essa maravilha de cores e delícias que é a especialização de
certas células em órgãos masculinos e femininos. A princípio, localizamos em
dois pés diversos esses órgãos, como ainda fazem os pinheiros, abetos e
algumas outras plantas arcaicas. Depois, achamos mais prático e seguro fazer
crescer os dois órgãos num único pé, como acontece no milho. Só muito mais
tarde, premidas pela veemente luta da existência e pela crescente necessidade
de adaptação a ambientes vários, conseguimos reunir dentro do pequeno
espaço duma única flor todos os órgãos de reprodução e quase todas as plantas
modernas adotaram esta última conquista biológica.

Quando as plantas deixaram de falar, era grande o silêncio em derredor. A linda


ipoméia fechara o cálice de púrpura e lilás. A mamangaba fora recolher-se ao
interior duma árvore oca que lhe servia de casa provisória. Todos os seres
aguardavam, com secreta angústia, o advento das trevas noturnas, quando os
laboratórios de clorofila suspendem a sua atividade e os pequeninos estomas
das folhas começam a exalar carbono em vez de oxigênio...
A Feiticeira do Castelo Encantado

Numa daquelas tardes cheias de sol e de paz, estava o pequeno Hélio deitado
à sombra dum arbusto a que o povo chama assobieira. Ao lado do menino
achava-se sentada sua irmã e lia-lhe, dum volume ilustrado, as mirabolantes
histórias que Sherazada contou ao príncipe oriental em mil e uma noites.

Ao terminar uma das empolgantes narrativas sobre os segredos dum castelo


fantástico que só uma chave misteriosa abria, caiu dum dos galhos da assobieira
uma tampinha de forma cônica, medindo alguns milímetros de diâmetro e tão
bem trabalhada que parecia feita a torno.

Enquanto o garotinho examinava, silencioso, a minúscula tampinha lígnea que


lhe caíra na cabeça, ouviu-se uma vozinha que parecia partir do meio do arbusto:
– Até que, enfim, se abriu o meu castelo!... não fosse hoje, morreria eu asfixiada
nessa escuridão... Já nem havia comida nas paredes, estavam como lenho
seco...

A menina suspendeu a leitura. Entreolhamo-nos, estupefatos. Todos ouvíramos


a vozinha, mas ninguém via seu autor.

– Feitiçaria! – exclamou Hélio, arregalando os olhos castanhos.

– Alma do outro mundo! – disse Ilka, a pequena leitora.

– Nada de feitiçaria nem de alma do outro mundo – intervim eu. – É a alma da


Natureza que fala. Às vezes, torna-se perceptível. Estamos numa aura propícia,
devido a essa leitura. Silêncio!

Todos, de olhos arregalados, suspenderam a respiração o mais que podiam,


escutando intensamente. Quando o nosso silêncio atingira o mais profundo nadir
da quietude, ao ponto de quase percebermos a respiração das folhas em
derredor, perguntei ao invisível autor daquelas palavras:

– Em nome da grande e querida Natureza, quem é que fala?

– Ceci! – respondeu alguém do meio do arbusto.

– Uma bruxa! uma bruxa! – gritou Hélio, apontando para uma pequena vespa ou
mariposa que saía lentamente do interior duma esfera que tinha uma portinhola
ao lado. A esfera era do tamanho duma bolinha de gude, e estava presa num
dos galhos da assobieira.
– Silêncio, menino! – ordenei. – Deixe Ceci falar!

– Meu nome é Ceci – repetiu a tal bruxinha cinzenta, no limiar da porta única do
seu castelo, agitando ligeiramente as asas como que a treiná-las para um grande
vôo. A luz da tarde, embora pouco intensa, parecia ofender os olhos do estranho
inseto; que procurava uma réstea de sombra projetada por uma das folhas
próximas. Depois. voltando-se para nós, disse: – Cecidosis eremita, é o nome
que me dão os homens que escrevem livros; foi o que me disse minha alma de
existência anterior.

– Como? – perguntou Ilka – você já teve outra existência? não nasceu agora
mesmo?

– Nasci agora para o mundo da luz; mas já vivi no mundo das trevas. Ah! que
coisa boa é a luz!...

– Essa bolinha aí é sua casa, Ceci?

– É.

– Foi você que a construiu?

– Não, foi esta planta e minha mãe que a fizeram para mim.

– Onde está sua mãe?

– Não sei, nem nunca vi.

– E que planta é esta?

– Duvana dependens, lhe chamam os homens dos livros; mas o povo diz
assobieira, porque da minha casa vazia se fazem assobios.

– E foi esta planta que lhe construiu a casa? estou sem nada compreender,
Ceci...

O inseto vibrou as frágeis asinhas, ergueu-se aos ares e veio pousar bem perto
de nós.

– Alto lá! – bradou Ilka, recuando instintivamente. – Você tem ferrão, vespinha?

– Tenho, mas não é para ferir gente. É só para pôr ovinhos na casca das árvores.

– Será que estou sonhando? – disse Ilka, passando a mão repetidas vezes pelo
rosto.

– Conte-nos a sua história, Ceci! – exclamou Hélio, fechando o livro de mil e uma
noites.

– A minha história é simples e bela. Nasci num castelo encantado...


– Num castelo encantado? nesse castelo de que fala Sherazada?

– Não conheço Sherazada. O que sei é que é bem misterioso e terrível o castelo
em que eu nasci, Escutem. Numa dessas tardes de verão foi minha mãe pôr na
casca desta árvore uma série de ovinhos, menores que minha cabeça. É para
isto que serve a poedeira que temos. Um desses ovinhos fez o meu castelo.

– Mas... como? não foi você que nasceu desse ovinho?

– Nascemos nós, eu e minha casa. Imaginem, se eu nascesse sem casa, onde


havia de morar? A Natureza é boa. Fez nascer comigo o meu castelo.

– Explique-nos isto, Ceci, por favor...

– Juntamente com o ovo, injetou minha mãe na cortiça do galho um líquido, que
irritou os tecidos celulares da planta, mundificou-lhes a estrutura natural,
fazendo-os inchar cada vez mais em forma esférica e acabando por formar esta
galha, ou bugalho, como dizem os homens. O interior é oco, e lá dentro estava
eu, pequenina larva branca.

– E em derredor, tudo fechado?

– Tudo fechado. Completa escuridão...

– Que horror! – exclamou Ilka, pondo as mãos sobre o coração e arregalando os


olhos. – E você não tinha medo?

– Medo, de quê? medo, por quê? A grande Inteligência da Natureza cuida de


cada um de seus filhos. Nem adiantaria ter luz, lá dentro, porque eu não tinha
olhos. Nasci cega, para a primeira existência. Agora, sim, tenho olhos.

– Quanto tempo ficou você nesse quarto escuro?

– Muito tempo, não sei, porque lá dentro não há dia e noite, e por isto não se
sabe do tempo.

– E como é que não morreu de fome?

– Encontrei a mesa posta.

– A mesa posta? – estranhou Hélio. – Havia mesa lá dentro?

– Quero dizer que encontrei comida à vontade, no interior do meu castelo. As


paredes eram moles, suculentas e gostosas; e, à medida que eu comia, as
paredes se renovavam por si mesmas.

– Fantástico! comer as paredes da própria casa – disse Ilka, olhando


significativamente para o irmãozinho. – Não dizia eu que era castelo
encantado?...
– A princípio – prosseguiu Ceci – pensava eu que, roendo as paredes, saísse,
um dia, do lado de fora. Mas não foi o que aconteceu. Quanto mais eu comia
mais engrossavam e se dilatavam as paredes de minha casa. Por fim verifiquei,
com certa apreensão que as paredes iam aos poucos endurecendo, de fora para
dentro. Depois de muito roer e comer, perdi o apetite e comecei a sentir fastio do
meu cardápio. Recolhi-me a um canto do meu escuro cubículo e adormeci.
Dormi, não sei quanto tempo. Foi uma noite só, mas uma noite comprida,
comprida. De repente, acordei. Ao redor de mim, a mesma escuridão de sempre.
Senti que meu corpo mudara de forma, e no chão, ao meu lado, havia uma
espécie de invólucro vazio, o meu primeiro berço, abandonado...

– Sua película de larva, não foi? – perguntei.

– Justamente. Eu tinha saído da pele. Tinha asas, pernas, olhos, tudo. Por um
momento, se apoderou de mim uma sensação de angústia, porque ainda estava
presa naquela cadeia escura. As paredes, antes moles e comestíveis, haviam
endurecido durante o meu longo sono. Comecei a andar às apalpadelas ao longo
das paredes, empurrando, calcando por toda a parte, porque não podia crer que
a Natureza me tivesse pregado uma peça de mau gosto e quisesse matar-me
naquela sinistra solidão, precisamente quando eu tinha uma vontade imensa de
viver e ser feliz. De improviso, a parede cedeu em um ponto lateral do castelo.
Mais um empurrão – e uma onda de luz e de ar invadiu o meu cárcere...

– Está aqui a portinha que você empurrou para fora – exclamou Hélio, mostrando
a minúscula tampinha redonda de forma cônica.

– Caiu-lhe na cabeça, não foi? – perguntou Ceci.

– Foi.

– Pisou?

– Oh não! coisa tão leve não pisa homem.

Pode jogar-me na cabeça uma dúzia de portas dessas...

– Mas, diga-me, Ceci – observei – como foi que se abriu a portinhola secreta do
seu castelo precisamente quando você tinha de sair? ela não estava concrescida
com a parede até esse dia?

– Ah! isto é segredo da Natureza, grande segredo... O que sei é que aquela
ferroada que minha mãe deu na cortiça da planta quando nela depositou o ovo
foi acompanhada dum líquido que, como já disse, provocou uma irritação dos
tecidos celulares em derredor, modificando-Ihes a estrutura; mas não abriu
porta. O efeito dessa irritação veio muito mais tarde, quando a galha secou e
expirou o prazo do meu grande sono.
– Imagine – disse Ilka – se se tivesse aberto a portinhola logo a princípio!
entravam as formigas e comiam você...

– Entrava a chuva e molhava você – acrescentou Hélio.

– Ou, se a portinhola se abrisse do lado de baixo – observei eu – e caísse a


tampinha antes de você querer. Se a tampinha fosse em cima, você não teria a
força de a suspender. Ou, se, em vez de abrir de dentro para fora, abrisse de
fora para dentro, qualquer intruso poderia forçar a entrada, ao passo que você
não conseguiria abri-la quando quisesse.

– Graças à grande Inteligência, porém, nada disto aconteceu – disse Ceci com
ar pensativo. – A portinhola obedece às ordens da grande Inteligência, abre do
lado e só de dentro para fora, porque a beirada externa é mais larga que a
interna. E destacou-se das paredes da galha precisamente no fim da minha
metamorfose. Adeus!

O serzinho cinzento ergueu vôo e desapareceu por detrás da espessa ramagem


que envolvia o fundo da assobieira. Acenamos despedidas à pequenina feiticeira
do castelo encantado.

Ilka dispôs-se a continuar a leitura das aventuras de Sherazada, mas Hélio


protestou dizendo:

– Agora não quero mais ouvir histórias de livro. A história de Ceci é mais
interessante. E até é verdadeira. Se ela voltar um dia, nos contará mais histórias
do outro mundo, não é?
Núpcias Mortíferas

Ao regressarmos para casa, passamos por uma pequena ponte de madeira


lançada sobre um arroio que atravessava o jardim. O garotinho, trêfego e
inquieto, em vez de passar pela pinguela, arregaçou as calcinhas e meteu-se
pela água corrente, dizendo:

– Vou procurar castelos encantados...

– Mas, Hélio, não é na água que há castelos

– disse Ilka.

– Quem diz que não tem? Olhem aqui, uma bruxinha morrendo! – gritou, de
súbito o traquinas apontando para um ser dificilmente definível, colado a um pé
de junco, pouco acima da superfície d’água, tremendo em todo o corpo como se
estivesse prestes a estourar...

– Uma ninfa de efemérida – disse eu, examinando o esquipático inseto.

– Ninfa? efemérida? – exclamaram os dois a uma.

– Sim, uma ninfa.

Ia eu explicando aos dois o que era uma ninfa e uma efemérida, quando a
estranha creatura estourou pelas costas, sacudiu de si a finíssima casquinha
vazia e transparente como celofane, abriu um par de asas infinitamente delgadas
e ergueu-se aos ares, qual sopro etéreo cor de ouro e neve. Arrastava após si,
presos na extremidade do abdome, três fiozinhos compridos e finíssimos
semelhando três cabelinhos.

– Foi-se – disse Hélio, batendo palmas. – Nem nos deu tempo para falar. Não é
como Ceci, esse bichinho...

– Não adiantava mesmo travar conversa com ele – observei – porque ele não
tem boca.

– Não tem boca? e como é que come?

– Não come.

– E não morre de fome?


– Morrerá daqui a pouco, como vão ver. Nasceu mesmo para morrer.

Enquanto as duas crianças se entreolhavam, estupefatas e sem saber como


interpretar as minhas palavras, doidejava o pequenino sopro alado na luminosa
vastidão dos ares, ébrio de gozo e de amor, procurando a quem comunicar a sua
grande felicidade, que não cabia em seu ser.

Enquanto isto acontecia nas alturas, arrastava-se no fundo do lodo do ribeirão


um monstro cabeludo, feio como um pequeno dragão. Sabia eu que era a larva
duma efemérida, e convidei-a a contar-nos a história da sua vida, porque ela
tinha boca, e por sinal que bem desenvolvida. A larva hirsuta, após alguma
relutância – parece que se envergonhava da sua excessiva fealdade e do
pavoroso desalinho do seu corpo enlameado – acedeu ao meu pedido,
sobretudo para atender aos rogos das crianças, pois as crianças estão mais
próximas da alma da natureza do que os homens adultos. Esboçou um simulacro
de sorriso, esgares tão horripilantes que só não afugentaram os pequenos
naturalistas porque eram mal visíveis por detrás daquela carranca cheia de lodo.

Sentamo-nos sobre a estreita ponte de madeira, e a larva da efemérida, meio


soterrada no limo do arroio, começou a contar a história da sua vida.

– Meu nome é Xotopu – disse ela.

Ilka e Hélio trocaram uns olhares brejeiros e engoliram uns sorrisos maliciosos.

– Há quase três outonos – prosseguiu o cabeludo freguês – que vivo no fundo


desta água, comendo pequenos petiscos vivos e um pouco de lama. Tinha eu
uma companheira muito amiga, quase tão forte e linda como eu; mas hoje,
depois do seu 21.° nascimento, ela saiu da água, criou asas e não voltou mais...

– Que está dizendo, Xopotu? – exclamou Ilka.

– Xotopu, se me faz favor...

– Desculpe, Potoxu, quero dizer Xo-to-pu. Mas é verdade mesmo que sua linda
e querida amiga nasceu 21 vezes?

– Sim, minha grande amiga Borobó, depois do seu 21.° nascimento, me


abandonou... Era um pouco mais velha que eu. Creio que daqui a pouco também
eu vou renascer; já nasci 20 vezes. É quanto chega...

– Não compreendo o que está dizendo, Xotopu – disse Ilka, arregalando uns
olhos enormes.

– Não compreende? Bem dizia eu que os homens não nos compreendiam...


Somos uns eternos incompreendidos... Pois saiba que nós, larvas das
efeméridas, nascemos e vivemos no fundo das águas e costumamos mudar de
pele umas 15 a 20 vezes, durante os dois ou três anos da nossa vida aquática.
A nossa pele não cresce conosco. Por isto, para ampliar o nosso espaço vital,
temos de sair da pele e criar pele nova, mais larga. É ordem da grande
Inteligência...

– Isto dói muito? – perguntou Hélio.

– Não, dá apenas umas cócegas na gente. A pele, quando estreita, arrebenta à


toa, e debaixo dela já está outra à espera de endurecer. Depois do último
renascimento, a larva sai da água, sobe por uma pedra ou um pé de planta,
agarra-se bem firme com quantas pernas tem e expõe-se ao ar e ao sol para
secar. De repente – zás! estala a pele nas costas, e desta vez não sai uma larva
cabeluda, mas uma coisa que os homens chamam ninfa. Depois de algum tempo
também a ninfa arrebenta pelas costas e do interior sai um ser tão delicado e
frágil que nem parece ser o mesmo. Tem um corpinho transparente, terminado
em três cabelinhos compridos, munido de duas ou quatro asas que parecem
tecidos de ar e de luz. É a efemérida, como dizem os homens.

Xotopu deu duas voltas em torno de si mesmo, sem explicar a razão desta
manobra, e prosseguiu:

– Lá no fundo das águas, cada larva vive solitária, suficiente a si mesma. Não
precisa de ninguém. Mas, assim que cria asas, é louca por se unir a outro ser da
nossa espécie. Ninguém sabe explicar esse mistério. A grande Inteligência é que
sabe. Sabe tudo mesmo. E assim que duas efeméridas se unem, morrem,
porque acham que não vale mais a pena viver depois de gostarem uma da outra.
Ninguém as mata. Elas é que morrem porque querem morrer mesmo. É um pacto
de morte, parece... Olhem, olhem!...

Erguemos os olhos para as alturas e vimos os ares a fervilhar de serezinhos


alados, de corpinhos etéreos, tontos de felicidade, amor e delícia. Toda vez que
dois deles se abraçavam tombavam das alturas e iam cobrindo dum fantástico
lençol de ouro e neve as margens úmidas do arroio e a superfície das poças
d’água em derredor.

Nesse ínterim, acabava Xotopu de realizar a sua estranha metamorfose. Ilka, ao


vê-lo preparar-se para a trágica aventura nupcial, tomou-se de ternura e
comiseração pelo frágil inseto, e disse-lhe com as lágrimas nos olhos: – Adeus,
noivinha gentil! vai vestir o teu branco enxoval de festa mortífera e nele amortalha
o teu primeiro e último amor...

– Não chores, menina! – disse ainda o inseto antes de nascer sem boca. – Nada
vale a minha vida. O que vale é a nossa raça, e esta viverá sempre sobre os
nossos cadáveres...

– Por favor, Xotopu, deixa-me como lembrança da tua festa nupcial o lindo
vestidinho cor de ouro e neve que vais receber.
Este pedido de Ilka ficou sem resposta, porque a larva deixara de existir, existia
a ninfa, e em breve existiria para poucas horas de amor a efemérida.

Quando, ao pôr do sol, terminaram no ar os poéticos himeneus, estavam as


águas e as praias do arroio cobertas de milhares e milhares de pequeninos
cadáveres...

E lá no fundo das águas germinava vida nova...

E alguém cantava ao longe:

– Adeus, vida triste,


Nas águas profundas...
Adeus, anos sem amor,
Na úmida solidão...
Adeus, hora de gozo,
Nos espaços de luz...
Nascemos no ocaso da vida...
Morremos na aurora do amor...
Nascemos para amar...
Amamos para morrer...
Morremos para reviver...
Em eterno ciclo vital...
Sempre revivemos da morte
Que o amor nos deu...
E a morte,
Que nasce do amor,
Nos leva à vida eterna,
Ao amor sem fim...
A Azáfama dos
Barqueiros Vermelhos

– Sente-se aqui e observe o movimento do empório – disse-me a grande


Inteligência designando-me um ponto central num dos pulmões.

Sentei-me e olhei em derredor. Vi milhões de pequeninos barqueiros a


encostarem suas barquinhas azuis no sinuoso litoral. A princípio não pude
distinguir as atividades dos microscópicos serezinhos; era tal a presteza com
que trabalhavam que nada se percebia ao certo; apenas uma vertiginosa
sucessão de coisas vermelhas e azuis em torno dos minúsculos parcos que
vinham do interior do reino e para lá tornavam com grande velocidade e
movimentos rítmicos. Por fim, já mais habituado ao fantástico vaivém, verifiquei
que os barqueiros eram glóbulos de sangue, que vinham do interior da grande
monarquia orgânica, a que os livros dos homens chamam corpo. Vinham cerca
de 15 dessas levas por minuto, constando cada uma de dezenas de milhões de
barcos. Quando chegavam ao grande empório estavam onerados duma carga
azulada, que logo alijavam às profundezas do oceano atmosférico que banha as
praias em derredor, e no mesmo instante recebiam do ar um carregamento de
cor vermelha, com o qual disparavam incontinenti para o interior do país,
cedendo o lugar a nova onda de barqueiros.

– Que é isto? – perguntei a um dos barqueiros que trocara a sua carga azul pela
vermelha. Não tive resposta. Que é que vocês estão fazendo? – perguntei a um
grupo maior que acabava de chegar com a misteriosa carga azul. Nem eles
ligaram importância à minha interrogação.

– Eles têm proibição de falar – explicou-me então a grande Inteligência. – Têm


de trabalhar em completo silêncio. Se não, teríamos grande confusão; pois são
vários bilhões de operários e os embarcadouros do empório em que trabalham
são cerca de 200 milhões.

– Eles? quem?

– Esses glóbulos de sangue, como dizem vossos livros.

– Glóbulos? o que eu vejo são uns discos vermelhos, reforçados nas bordas e
com o centro ligeiramente amolgado.
– Exatamente. Assim são essas células a que os livros humanos chamam
glóbulos.

– Célula? cada um desses discos é uma célula?

– Sim, uma célula, isolada e solta dentro do corpo a fim de poder cumprir a sua
grande missão de mensageira.

– Mas... não vejo núcleo celular, como aliás costumam ter as células.

– É verdade, a célula do sangue vermelho do corpo humano, como também de


outros organismos superiores, não tem núcleo. Nem necessita, porque não se
reproduz e especializou-se num determinado serviço. Não faz senão isto que
logo vai ver. Por isto, não precisa de núcleo, que é indício e requisito de
adaptabilidade a ambientes e misteres vários.

– Dizes que a célula do sangue vermelho não se reproduz – será que ela vive
enquanto vive o organismo a que serve?

– Oh não! é de pouca duração a vida duma dessas células. Poucas semanas...

– E depois?...

– Depois, exausta de trabalho, morre e é substituída por outra.

– Onde nascem as células vermelhas do sangue humano?

– Nascem no interior dos castelos mais rijos que há no teu corpo...

– Castelos? castelos rijos em meu corpo?...

– Sim, em castelos ósseos. Essas células ambulantes nascem e formam-se na


medula dos ossos. O seu berço é rijo baluarte, o mais resistente que há, porque
o sangue é o veículo da vida. Se se estancasse ou turvasse a fonte do sangue
rubro – adeus, saúde e vida do corpo!...

– Estranho!... meu sangue nasce dentro dos ossos... assim como as águas
nascem no seio dos rochedos...

– Uma parte forma-se também no baço, porque o trabalho é muito. Como a célula
sanguínea não vive senão poucas semanas, é necessário que a medula e o baço
trabalhem de comum acordo para fornecer suficiente quantidade desses
veículos da vida; 5 litros de sangue contêm muitos bilhões de células, que têm
de ser fabricadas periodicamente.

– E quando a célula morre, para onde vai o cadáver?

– É absorvido pelo fígado e eliminado por meio da bílis, quando não entra em
combinação com outras substâncias para prestar serviço em outro setor do
organismo. Mas não torna a ser célula sanguínea. Não aceitamos células
reformadas. Só nos servem células novas e jovens, assim como vêm das
grandes fontes.

– Dize-me, grande Inteligência, por que é que é tão pequenina a célula do


sangue humano? já vi células sanguíneas muito maiores...

– É tão pequenina para que nela possa caber maior quantidade de oxigênio.

– Como? que está dizendo? a célula é tão pequena para ter maior capacidade?

– Perfeitamente.

– Desculpe, mas eu não compreendo essa matemática, ó grande Inteligência...

– Entretanto, a nossa matemática está certa. Não erramos nunca. O sangue,


como logo te explicarei, precisa duma grande superfície que possa apresentar
ao ar, no interior dos pulmões, a fim de ser rapidamente oxigenada em todas as
suas unidades. Quanto maior for o volume das células menor será a soma da
sua área total, a superfície oxigenável, e vice-versa. Compreendes?

– Não sei se compreendo...

– Se desdobrasses num plano todas as superfícies das células contidas em 5


litros de sangue, resultaria numa área de uns 3.000 metros quadrados. Mas, se
esses 5 litros se apresentassem ao ar em forma de massa compacta e única,
teriam poucos metros quadrados de área. Se as células fossem poucas e
grandes, ficaria a sua área total entre esses dois extremos, esses poucos metros
e esses 3.000 metros quadrados. Quanto maior o número de células e quanto
menor o seu volume, tanto maior é a soma total das suas áreas. Sabes que eu
tenho de oxigenar, de minuto em minuto, todo o sangue que percorre o
organismo? Só assim, com células pequeninas, é que é possível realizar esse
arejamento constante e rápido.

– Admiro a tua sabedoria, ó grande Inteligência. Mas... que é isto?... que essa
carga azul que as células entregam ao ar, no interior dos pulmões...

– É dióxido de carbono que trouxeram do interior do organismo; é material gasto


e imprestável para trabalho ulterior; por isto tem de ser eliminado.

– Lixo, não é?

– Como quiser.

– E a carga vermelha que recebem, o que é?

– É oxigênio, que vão distribuir às células e tecidos do corpo à medida que vão
passando.

– Oxigênio é alimento para as células, não é?


– Perfeitamente, material de construção e conservação. Cada um desses bilhões
de células do corpo tem de receber de minuto em minuto a sua ração de oxigênio
para o corpo poder viver e trabalhar. E, como a maior parte das células se acha
no interior, sem contato direto com o ar, é necessário que os meus barqueiros
lhes levem continuamente a sua ração de alimento. Foi para este fim que lancei
através de todo o organismo essa grande rede de canais maiores e menores.

– As artérias e as veias, não é?

– Isto mesmo, desde a vigorosa aorta até à mais delgada veiazinha capilar.

– Mas, diga-me, ó grande Inteligência, que força impele essas barquinhas


rubras? não vejo remos, nem velas, nem motores, nem nada. Esses glóbulos
vermelhos têm movimento próprio, automático?

– Não têm. Quando as barquinhas vermelhas saem daqui, oneradas de oxigênio,


vão primeiro apresentar-se ao grande dínamo central de energia, que é o
coração. Entram num dos ventrículos, o coração se contrai rapidamente e dá aos
glóbulos tão veemente impulso que eles disparam céleres, pela aorta fora,
através de todas as artérias grandes e pequenas até chegarem às extremas
fronteiras do reino, sempre distribuindo oxigênio e sempre recebendo dióxido de
carbono...

– Distribuindo alimento e recolhendo lixo, não é?

– Se assim quiser...

– É isto mesmo, na ida são carros de provisão e na volta são carros de lixo.

– Mas convém não esquecer que o carregamento de lixo começa desde o


princípio da saída, porque cada uma das células do organismo, à medida que
trabalha, forma detritos, escórias, matérias gastas, toxinas até, e tudo isto é
entregue aos barqueiros vermelhos em troca da competente ração de substância
útil. De maneira que, quanto mais o barqueiro avança na sua complicada
travessia pelo corpo, menos rubro e mais azul vai ficando, até acabar todo azul-
escuro pela sobrecarga de carbono e outras substâncias gastas.

– Vermelho é vida e saúde, azul é morte e fraqueza... E que aconteceria se os


barqueiros suspendessem a sua atividade?

– Acabaria todo o sangue saturado de carbono, o corpo ficaria todo azul e


sucumbiria em breve, sufocado ou asfixiado, como dizem vossos livros.

Quedei-me por largo tempo, embebido na contemplação da misteriosa e


taciturna faina dos ágeis canoeiros no vasto empório atmosférico dos pulmões.
No momento da exalação tudo era azul, no instante da inalação tudo ficava
vermelho. Nisto verifiquei que o interior dos pulmões não era liso como eu
supunha a princípio, mas todo coberto de umas pequenas vesículas que entre si
se uniam formando cachinhos de bagas minúsculas que lembravam
microscópicos cachinhos de uvas. Era dentro dessas baguinhas que se
processava o constante intercâmbio vermelho-azul. Era lá que o sangue entrava
em contato com o ar, protegido apenas por uma finíssima película transparente.

– Por que é isto assim? – perguntei a grande Inteligência que me olhava


silenciosa. Por que é que a superfície interna dos pulmões não é lisa? não seria
melhor para evitar doenças e conservar a limpeza?

Sorriu-se a grande Inteligência e disse-me:

– Que superfície dás ao interior dos pulmões?

– Alguns metros quadrados, quando muito.

– E sabes quantos litros de sangue tem o homem adulto normal?

– Uns cinco litros, creio.

– Pois bem. Para que esses cinco litros de glóbulos vermelhos entrassem cada
minuto em contato com a atmosfera e recebessem a competente carga de
oxigênio, quanto tempo levaria?

– Muito tempo, uma hora talvez...1


1. Para que o leitor compreenda o diálogo acima, queira notar o seguinte: O homem adulto normal
tem cerca de 5 litros de sangue. Todo este sangue passa pelo coração em estado de repouso
orgânico, dentro do espaço de um minuto, ou seja cerca de 60 vezes por hora. Cada pulsação
do coração projeta mais ou menos 100 gramas de sangue pelas artérias do corpo.

O movimento respiratório, como é sabido, é bem mais vagaroso; em estado de repouso normal,
cerca de 15 inalações por minuto, quer dizer, quatro vezes menos que as pulsações do coração.
Sendo que, de minuto em minuto, todo o sangue do organismo passa pelos pulmões, segue-se
que em cada inalação são arejadas cerca de 340 gramas de sangue. Se a superfície interna dos
pulmões fosse lisa, teria a área apenas de 2 a 3 metros quadrados, espaço insuficiente para pôr
todo o sangue em contato com o ar, de minuto em minuto. O interior dos pulmões, porém, tem
uma superfície de 200 metros quadrados, devido a essa infinidade de cachinhos e vesículas que
a cobrem e facultam um contato aéreo muitíssimo maior. Assim, de minuto em minuto, todos os
cinco litros de sangue são arejados, libertos da sua carga de elementos gastos e providos de
substâncias úteis.

– Pois bem, nesse lapso de tempo, ainda que fosse apenas de cinco ou dez
minutos, sucumbiria o organismo à sobrecarga venenosa do carbono e de outros
elementos nocivos, e à míngua de alimento, se não houvesse um largo e rápido
contato entre o sangue e o ar. O homem, em estado de repouso normal, inala
cerca de 15 a 16 vezes por minuto. Para que nesse breve espaço de tempo
quase todo o seu sangue ficasse arejado construí os pulmões desta forma. Em
vez duma superfície lisa de poucos metros quadrados de área, dei-lhe uma
superfície interna granulosa que tem mais de 200 metros quadrados. O total da
superfície dos glóbulos vermelhos é de mais de 3.000 metros quadrados. Assim
consigo arejar em poucos minutos o organismo todo, de uma a outra fronteira e
nos seus mais recônditos penetrais.

– Que está dizendo, ó grande Inteligência? Então a superfície interna dos meus
pulmões é de uns 200 metros quadrados? e a área total dos glóbulos vermelhos
passa de 3 quilômetros quadrados? É espantoso!

– É a minha matemática. É a minha filosofia. Cada uma destas vesículas que


formam os cachinhos do interior dos pulmões recebe, com cada inalação, o ar
de todos os lados, assim como uma esfera lançada à água é por ela banhada de
todos os lados.

– É deveras admirável a tua sabedoria, ó grande Inteligência.

– A fim de proteger devidamente os grandes canais por onde é veiculado o


precioso oxigênio, localizei as artérias no fundo dos músculos e entre os ossos.
As veias, canais de sangue gasto, estão mais rente à superfície. Na ida, o
sangue vai com facilidade porque tem o impulso recente do coração; mas na
volta encontra maior dificuldade em correr, tanto mais que, em boa parte, tem de
subir para atingir os pulmões; para lhe facilitar a volta atravessei o interior das
veias de umas válvulas que abrem de baixo para cima e fecham de cima para
baixo, oferecendo assim notável suporte à coluna de sangue que sobre elas
repousa.

Neste momento percebi enorme rebuliço num dos ângulos do pulmão direito.

– Que há? – perguntei à grande Inteligência.

– Nada de especial – respondeu ela com fleuma. – Entrou um bando de inimigos


por um dos embarcadouros; mas a polícia já se apoderou dos intrusos.

– Inimigos? polícia?

– Sim, entraram umas bactérias veiculadas pelo ar, tentando burlar a vigilância
da minha polícia.

– Polícia, que é isto?

– São os glóbulos brancos, os leucócitos, de que falaremos em outra ocasião.


Polícia de Farda Branca

Acabavam os leucócitos de regressar para o interior das artérias, e, como


sempre, se deixavam levar à mercê das rubras correntes de sangue, à espera
de novo brado de alarma.

Tinha eu ouvido da tremenda luta que esses intrépidos defensores da monarquia


orgânica haviam travado ultimamente, contra insolente invasor, e, na qualidade
de jornalista profissional, ardia de impaciência por saber pormenores sobre a
grande batalha.

Entretanto, foi difícil a realização do meu intento. Os brancos pelotões de


leucócitos não prestavam atenção aos meus rogos. Não compreendiam o
interesse que eu, pequena inteligência egoconsciente, pudesse ter pela
atividade profissional dos defensores do reino governado pela grande
Inteligência cosmo-consciente. Menos ainda compreendiam que alguém
pudesse considerar “heroísmo” o que eles tinham feito, quando isto não era
senão o cumprimento do seu dever cotidiano. De resto, parecia-lhes ridículo falar
em “grande batalha”, quando não se tratava senão duma refrega vulgar contra
um bando de bactérias que tentavam invadir as fronteiras do reino.

– Dever cotidiano? – perguntei, a ver se conseguia abrir brecha por este lado.

– Sim, o nosso dever cotidiano – resmungou uma das células brancas que
parecia uma simples gotinha de clara de ovo. – O dever cotidiano dos leucócitos,
compreendeu?

– Então, vocês têm de enfrentar diariamente inimigos e invasores do reino?

– Diariamente – respondeu a gotinha gelatinosa sem dar importância, e dispôs-


se a seguir viagem. À força de muita insistência consegui, finalmente, que ela se
prendesse à parede interna da artéria em que vivia e me concedesse a desejada
entrevista para um capítulo do meu livro sobre “mundos ignotos”.

– Quer dizer que, dia a dia, há tentativa de invasão hostil no corpo humano?

– Dia a dia, ora de dentro, ora de fora. Inimigos tanto mais perigosos quanto mais
pequeninos. Os grandes não são perigosos.

– E vocês conseguem derrotá-los todos?


– Por via de regra, sim, a não ser que o homo sapiens nos frustre o trabalho com
as suas imprudências. Alguns homens pensam que entendem dos mistérios do
organismo, e isto é um desastre para nós. Por vezes, é verdade, ele nos dá bons
aliados; mas isto é raro.

– Não compreendo essa linguagem apocalíptica, meu pequeno leucócito. Tenha


a bondade de falar mais claro. Sou jornalista, que entende de reportagens de
guerra entre os povos, mas não dessas lutas silenciosas entre seres invisíveis.

– Pois saiba que nós, os leucócitos, de farda branca, somos a polícia especial
do corpo. Mas deve você saber que os outros cidadãos do reino, os de farda
vermelha, cooperam fielmente conosco.

– Compreendo, compreendo, os glóbulos vermelhos do sangue.

– Isto mesmo. São muito mais numerosos do que nós, os policiais, mas não
possuem armas tão perfeitas como nós, os mantenedores oficiais da ordem
pública e segurança nacional do reino.

– Mas, diga-me, sr... sr...

– Meu nome é Leuco...

– Diga-me, sr. Leuco, que foi que provocou aquela enorme celeuma que, há
pouco, agitou os arredores do grande empório pulmonar, onde os barqueiros
descarregam carbono e carregam oxigênio?

– Enorme celeuma? você chama aquilo enorme celeuma?... Ah! é verdade, você
é jornalista, está claro, está certo, desculpe... Aquilo não foi senão uma
brincadeira de mau gosto. Uns estúpidos bacilos de Koch, como dizem vossos
livros, andavam dispersos no ar e foram inalados por aquele homem. Assim que
encontraram o maravilhoso terreno das delicadas vesículas pulmonares,
procuraram logo estabelecer-se nelas, devorá-las e destruir tudo que a grande
Inteligência havia construído em alguns decênios. Não contavam, naturalmente,
com a nossa presença. Um, dois, três – e estavam todos os bacilos desarmados
e devorados. Eu engoli dois deles e já digeri.

– Quer dizer que vocês, leucócitos, devoram seus inimigos?

– Quando são tragáveis. Alguns são intragáveis. Não acha prático este sistema?

– Eminentemente prático. Derrotar o inimigo ótimo!

– Há uns meses, houve luta mais séria nesta monarquia orgânica.

– Que foi?

– Um homo sapiens cometeu a estupidez de ferir a ponta do dedo com uma


agulha.
– E isto você chama coisa séria?

– Mas havia na ponta da agulha certos micróbios venenosos.

– Quantos?

– Dois ou três.

– Dois ou três serezinhos microscópicos podem constituir perigo para o reino?

– Um só pode acarretar-lhe ruína completa.

– Que está dizendo, amigo Leuco?

– Fossem apenas essas poucas bactérias, nada aconteceria. Mas é que esses
insolentes intrusos, assim que se sentem à vontade dentro do sangue ou dos
tecidos celulares, multiplicam-se espantosamente. Dentro de uns minutos
lançam à luta milhares de invasores e procuram logo ocupar os pontos
estratégicos da monarquia para garantir a sua permanência na mesma.

– E vós, defensores do corpo, como é que chegais a saber da invasão e do ponto


exato do perigo?

– Recebemos nervogramas do ponto ameaçado.

– Nervogramas?

– Sim, mensagens transmitidas pelos nervos e gânglios. Vocês, homens, não


tentaram inventar coisa parecida com o seu serviço telegráfico? não estenderam
fios de cobre no ar para transmitir seus pensamentos?

– Perfeitamente. Continue.

– O organismo, como você deve saber, está todo entretecido dessas linhas
brancas, que, do lado de fora, terminam em aparelhos receptores, ou papilas
sensitivas, como vocês dizem. Recebem e transmitem instantaneamente toda e
qualquer impressão recebida:

– E você, onde estava quando recebeu a notícia da perigosa invasão?

– Estava passeando no interior desta mesma artéria onde estou. Assim que
recebi o brado de alarma, fui em linha reta ao cenário da luta.

– Em linha reta? Mas esta artéria faz tantas voltas...

– Deve você saber, ó homo sapiens, que nós, os policiais do reino, temos a
faculdade de penetrar todos os tecidos celulares do corpo, sem excetuar as
paredes compactas das artérias.

– Que está fazendo, Leuco? pode atravessar a parede desta artéria? como?
O pequenino glóbulo branco, em vez de atender aos meus gritos, projetou do
seu interior um fiozinho delgado, ou melhor, ele mesmo, de redondo que era, se
transformou num fiozinho mais fino que uma teia de aranha, e com a pontinha
sutil da extremidade perfurou, num instante, o tecido da parede arterial e
apareceu do lado de fora; e logo o resto da célula gelatinosa foi seguindo o
mesmo caminho, derramando-se célere pelo invisível orifício. Mais um segundo,
e o leucócito estava do lado de fora do vaso sanguíneo e retomou prontamente
a sua forma esférica.

– Espantoso! – exclamei em face dessa inaudita ginástica da célula. – Você


parece uma ameba, que também assume todas as formas imagináveis para se
locomover.

– Assim somos nós. Que mais quer você saber?

– Quero saber como decorreu a grande batalha contra as bactérias na ponta do


dedo.

– Quando cheguei ao cenário da luta, já lá estavam milhares de colegas


cercando os invasores e devorando os que apanhavam. Certos da vitória, fomos
atrapalhados pelo homo sapiens, que começou a coçar e comprimir a ponta do
dedo, e com esta pressão o inimigo, já isolado, conseguiu romper o cerco e
transpor a trincheira da defesa monárquica – e logo se precipitou país a dentro,
rumo à capital. Lá teria chegado e causado enormes estragos, talvez completa
destruição, se nós, os leucócitos, não tivéssemos lançado à luta todo o nosso
poder defensivo e ocupado as pontes e os desfiladeiros das grandes estradas
estratégicas que conduzem para o interior. Foi um tiroteio cerrado de muitas
horas. Milhares de bactérias foram por nós desarmadas e devoradas, porque
são muito menores que nós. Ainda assim, muitas delas atingiram a primeira
grande encruzilhada, onde o braço se liga ao tronco. Mas lá esbarraram com
uma resistência, com a qual, de certo, não contavam.

– Que foi?

– O grande desfiladeiro, onde morrem quase todos os invasores.

– Que é isto?

– Nó linfático, dizem os vossos livros. É inexpugnável essa fortaleza. Situada na


região da axila, como também nas ínguas, é um tecido especial, espécie de filtro,
que apreende qualquer substância suspeita, absorve-a, neutraliza-a, engole-a.
Além disto, tem o nó linfático a faculdade de produzir grande quantidade de
leucócitos.

– Ó coisa maravilhosa! Barreira e cárcere de inimigos, e, ainda por cima,


laboratório de antídotos e fábrica de soldados!...
– Pois saiba você, homo sapiens, que estas fortalezas se encontram em todos
os principais pontos estratégicos do nosso reino.

– E o invasor foi rechaçado?

– Foi. Não passou do braço para o interior. Os nós linfáticos, naturalmente,


incharam com tão abundante repasto de corpos inimigos. O braço estava
inflamado. A mão latejava. Na ponta do dedo, principal teatro de luta, levantamos
vastas trincheiras para isolar o grosso da hoste adversa com o seu estado-maior.

– Levantaram trincheiras? com que material?

– Com os nossos corpos e os cadáveres dos tecidos celulares em derredor.

– Quer dizer que muitos leucócitos se suicidaram e destruíram também outras


células para erguer essas trincheiras?

– Justamente. Milhares de policiais tiveram morte voluntária e milhares de


amigos deles os acompanharam neste sacrifício para isolar os invasores.
Formamos um círculo de pus, como dizem os homens, sem saber talvez que
esta matéria purulenta são corpos nossos imolados pela salvação do reino. As
bactérias não conseguiram mais tomar pé nesse terreno pegajoso, ficando
circunscritos ao campo que ocupavam. Isolado o quartel-general, esmoreceu
aos poucos a feroz ofensiva. Passou a defensiva e acabou em derrota. Roendo
os tecidos rumo à fronteira externa, conseguimos descartar-nos dos invasores,
de mistura com os cadáveres dos nossos bravos defensores. E voltou a paz para
o interior da monarquia.

– Meus parabéns, Leuco! É realmente admirável a vossa organização e a vossa


intrepidez. Mas, diga-me, que pensa da nossa medicina?

– Medicina? medicina? Nenhuma medicina pode fazer o que nós fazemos. O


que vossa medicina, em alguns casos, pode fazer é remover obstáculos para
que nós possamos agir.

– Os obstáculos? quem põe esses obstáculos?

– Infelizmente, a pequena inteligência humana põe obstáculos no caminho da


grande Inteligência Cósmica, de maneira que esta não consegue agir de acordo
com suas leis eternas. Se o homem remover esses obstáculos, que ele mesmo
pôs, então nós, os embaixadores da grande Inteligência do Universo, podemos
restabelecer a ordem da saúde e segurança do corpo. Ultimamente, o homem
inventou uma tática meio engenhosa: mandam para o interior do sangue
batalhões de bactérias inofensivas que têm ordem e idoneidade para combater
suas próprias irmãs de raça e desarmá-las, assim que ousem invadir o reino.
Bactérias mansas e educadas contra bactérias bravias e selvagens – o caminho
está certo, mas é apenas meio caminho.
– Por que é apenas meio engenhoso o que faz o nosso sistema de vacina? não
é, porventura, serviço inteligente e criteriosa profilaxia encher o corpo de
policiamento idôneo e perito para que aniquile o inimigo no momento em que
este ouse transpor a fronteira, evitando assim guerras no interior do reino?

– É inteligente combater igual com igual, lançar bactéria contra bactéria, rechaçar
o inimigo por meio de seus próprios irmãos e camaradas – mas perfeito será este
processo somente no dia em que ele for feito de dentro para fora, e não de fora
para dentro, como agora. Se a Natureza produz forças destruidoras, produz
também forças construtoras e reconstrutoras.

Mas estas forças reconstrutoras devem vir de dentro – como de dentro vieram
as forças construtoras.

Só pode reconstruir quem construiu.

Quem construiu o corpo não foi matéria de fora – foi uma energia de dentro.

E quem o pode reconstruir senão uma energia intrínseca?...


O que Vi no Laboratório Ideal

Havia muito tempo que eu observava o movimento das torrentes alimentícias


formadas pela digestão e, logo depois, postas em circulação através do corpo.
E não acertava em desvendar um grande mistério...

Esses sucos absorvidos pelas paredes intestinais e canalizadas para o interior


estavam mesclados de substâncias tóxicas, venenos para o organismo – e, no
entanto, não via sintomas de envenenamento. Para onde iam essas doses de
amoníaco e de fenol que acompanha sempre os processos de digestão? As
seivas elaboradas pelo aparelho digestivo eram impuras, e, quando veiculadas
pelo sangue, saíam do coração para as artérias, puras, puríssimas, sem mescla
de venenos. Também, que seria da monarquia orgânica se a fábrica central de
substâncias nutritivas fizesse correr elementos mortíferos através das artérias
do reino? Dentro em breve sucumbiriam milhões de células – e adeus, vida!...

Vendo as seivas nutritivas sair impuras da fábrica produtora, e deixar puras a


bomba do coração, concluí que a instalação purificadora devia encontrar-se
entre os intestinos e o coração.

Concentrei as minhas pesquisas nesse trecho. Segui o curso dos líquidos


vivificantes e vi que, antes de entrar nos ventrículos do coração para aí receber
o necessário impulso e iniciar sua viagem, passavam por um filtro, ou melhor,
um complicado sistema de filtros tão apertados que parecia impossível a
passagem das torrentes sanguíneas através desses canaisinhos capilares.

“Fígado” é o nome que os homens dão, geralmente, a esse complexo de filtros.

Exultei com a minha descoberta. Julgava ter desvendado o segredo da não


intoxicação do organismo, devido a esse filtro hepático. Mas não tardei a verificar
o meu engano. Também, como poderia um filtro, por mais perfeito, purificar o
sangue, quando não se tratava de impurezas físicas, e, sim, de toxinas
químicas? Se os venenos oriundos da digestão fossem substâncias grosseiras,
poderiam ser filtrados, à semelhança do que fazem as nossas caixas d’água,
que obrigam a água a passar por espessas camadas de areias, a qual retém nos
seus pequeninos interstícios as minúsculas parcelas de impurezas veiculadas
pela torrente, deixando passar somente água cristalina.
Para a neutralização de venenos químicos, como são o amoníaco, o ácido
fênico, e outras substâncias sutis oriundas da digestão, fazia-se mister um
verdadeiro laboratório.

Depois de muito estudo, descobri que o fígado era uma verdadeira cidade de
laboratórios químicos, cada um dos quais neutralizava, por meio de engenhosas
combinações com outros elementos, os venenos que recebia sem cessar,
tornando-os assim inofensivos, e até úteis ao organismo. Em alguns casos,
quando não era possível essa transformação, devido à natureza da toxina ou à
carência de substâncias combináveis, os invisíveis químicos do laboratório
hepático despachavam os venenos, via bílis, para os intestinos com ordem
expressa de abandonar o reino, com as fezes.

Quando vi pela primeira vez que os encarregados da saúde pública da


monarquia orgânica entregavam à bílis esses venenos a fim de serem levados
para fora do país, quase comecei a duvidar da grande Inteligência do organismo.
É que eu, dono apenas da minha pequena inteligência, dizia de mim para mim:
Isto vai acabar mal!... os venenos entregues às vias intestinais vão ser
novamente absorvidos por este aparelho e devolvidos ao sangue, e o fígado terá
de recomeçar o mesmo trabalho – num eterno círculo vicioso... Dentro em breve,
advindo novos venenos, aumentará o volume primitivo, e, daqui a pouco, o
fígado não terá mais mãos a medir com a sobrecarga de elementos tóxicos...

Quando comuniquei a um grupo de inteligentes químicos hepáticos estas


apreensões de homo sapiens, sorriram-se eles da minha ingenuidade e
mostraram-me um líquido misterioso que adicionavam aos venenos antes de
lhes darem o passaporte, líquido que os tornava inassimiláveis, de maneira que
não lhes restava outra alternativa senão a de deixar o interior do reino pelo
caminho comum de todas as substâncias inassimiláveis.

– Donde vem esse amoníaco? – perguntei a um dos químicos que não fazia
senão lidar, dia e noite, com este veneno que extraía do sangue enviado pelos
intestinos.

– Vem das albuminas – respondeu ele, sem abrir mão do seu trabalho. Depois
de algum tempo, compadecido da minha ignorância, explicou: – Das albuminas
que o homem ingere com diversos alimentos e de que necessita para o seu
organismo. O albume, como você sabe, é uma substância complicadíssima.
Para poder ser assimilado tem de ser primeiramente decomposto e libertado de
outros elementos. Desse processo de decomposição resultam pequenas
quantidades de amoníaco que são arrastadas pelos sucos nutritivos, mas não
devem girar através do corpo. Nos intestinos não há químico idôneo para fazer
a análise e competente separação; eu e meus irmãos somos especialistas na
matéria.
– Mas diga-me, meu pequenino especialista, como é que você neutraliza esse
veneno?

– Difícil seria explicar-lho cabalmente... Só se você fizesse um curso de química


especial em nossos laboratórios... Entretanto, para você basta saber o seguinte:
combino o amoníaco que extraio desses líquidos com um pouco de ácido
carbônico que me é fornecido pelo sangue velho...

– Como? pelo sangue velho?...

– Sim, você sabe que o sangue velho, gasto, que vem do interior do reino, está
sobrecarregado de dióxido de carbono, ao ponto de ficar todo azul. Combino os
dois, e o amoníaco fica inofensivo.

– Fantástico!... você combina veneno novo com lixo velho – e neutraliza o


primeiro...

– Se assim quiser dizer...

– E que é que resulta da união dos dois?

– Uréia.

– E esta?

– Entrego-a aos rins para mandarem fora do reino.

– Mas há outros venenos formados pela digestão, não é?

– Há o fenol, ou ácido fênico, que se forma de preferência no intestino grosso,


onde milhões de bactérias produzem a decomposição das albuminas e outras
substâncias fornecidas pelo estômago. Temos ainda o indol, o escatol, o cresol,
etc., venenos que se formam em tanto maior abundância quanto mais longa for
a permanência das substâncias alimentícias no canal digestivo.

– E vocês conseguem sempre neutralizar tudo?

– Em condições normais, sim. Temos também outros processos, como, por


exemplo, a oxidação de alguns elementos; combinamo-los com ácido sulfúrico,
formando substâncias complexas e inofensivas. Em alguns casos excepcionais,
tratando-se de matérias pesadas e insolúveis, como óxido de chumbo ou outros
metais venenosos, temos de funcionar como policiais do reino, porque não
adianta, com semelhantes intrusos, toda a nossa ciência química.

– E que é que vocês fazem com esses invasores?

– Prendemo-los e condenamo-los à prisão perpétua.

– Como assim?
– Formamos em torno deles uma membrana forte e impermeável, isolando assim
esses desordeiros do resto da sociedade do reino orgânico.

– Ah! já sei, já sei, vocês enquistam esses indesejáveis e os guardam em algum


cárcere seguro para que não façam das suas.

– Isto mesmo.

– Estou a ver que a vossa responsabilidade é imensa. Filtros, químicos, policiais,


repressores de contrabando... E dão conta de tudo isto?

– Por via de regra, sim. Infelizmente, nestes últimos tempos, o homem ocidental
nos tem criado dificuldades enormes. Olhe aqui esta devastação...

Olhei – e enchi-me de espanto... Enorme quantidade de células hepáticas jaziam


mortas ou semi-mortas em diversos pontos do fígado.

– São os desatinos do homem ocidental – disse o pequeno químico, olhando


para mim com ares ao mesmo tempo tristes e benévolos.

– O homem ocidental, que quer dizer com isto?... explique-se, por favor...

– Você sabe que o homem ocidental é, mais ou menos civilizado, como ele diz,
aprendeu a viver de um modo inteiramente contrário às leis da natureza. As
nossas leis são eternas, imutáveis. Podemos, sim, adaptar-nos a diversos
ambientes e circunstâncias várias, mas não podemos modificar o íntimo quê da
nossa natureza. O homem ocidental, porém, exige de nós que, dentro de poucos
séculos, usemos de processos completamente diversos e, não raro,
diametralmente contrários aos que usamos há milhares de anos. Ingere
substâncias que nunca vimos. Vive em cavernas e espeluncas sem oxigênio nem
luz natural, muito piores que as dos trogloditas de tempos pré-históricos. Nós, os
químicos do grande laboratório hepático, sucumbimos em parte ao excesso do
trabalho ou somos prematuramente inutilizados com a sobrecarga de venenos
de que vem saturado o sangue do homem civilizado, sangue que não
conseguimos neutralizar devidamente. O organismo adoece, intoxicado. E então
tem o homem a lembrança infeliz de nos mandar verdadeiros batalhões de
“aliados”, como ele pensa, a que chama “remédios”, em quantidades tão
fantásticas e tão desnaturais que os nossos especialistas, em vez de serem
auxiliados por esses “aliados”, sucumbem atordoados ao ímpeto da carga com
que eles invadem o corpo. O homem não compreendeu ainda que nós não
trabalhamos, propriamente, com matéria, e, sim, com forças sutis, energias
dinâmicas que fornecemos à mais dinâmica das energias, a que vocês chamam
“princípio vital”. É assim que nós trabalhamos, sob a direção da grande
Inteligência. A pequena inteligência do homem não poderá nunca rivalizar com
a grande Inteligência da Natureza...

– É o homem ocidental quem inventou essa vida desnatural?...


– Sim, o homem civilizado. Há, naturalmente, exceções. Há muitos homens
civilizados que nos compreende e voltaram à Natureza. O homem oriental nunca
aberrou tão funestamente dos nossos caminhos.

– Verdades dolorosas... Quando o homem se mata à vista, é chamado suicida;


mas, quando se mata em prestações, é considerado homem civilizado. O que o
homem civilizado respira nas grandes cidades, não é ar, é fuligem, gás
carbônico, toxinas. E o que comemos são venenos. Tudo está poluído.
Aprendemos muitas coisas – mas não aprendemos a viver corretamente. A
nossa pequena inteligência humana sabotou a grande Inteligência Cósmica. A
humanidade se está suicidando pela inteligência desorientada...

***

Quando voltei a mim, dessa fantástica visão do laboratório hepático e suas


misteriosas atividades, lembrei-me instintivamente do que lera, tempos antes, no
livro “Horizonte Perdido” e vira no filme do mesmo título... Relembrei aquele
estranho idílio nas montanhas do Tibet, onde um grupo de homens sensatos
entendia que a vida era para ser vivida, e não para ser morrida paulatinamente,
como em nossos grandes centros culturais...

Tive saudades dum Shangri-La...

Seria ele possível só nas montanhas da Ásia?...

Não, o Shangri-La é possível em plena civilização ocidental – contanto que seja


construído dentro das sábias e eternas leis da Natureza...

À luz do Eu central, eterno, divino...


Ondas do Além

Desde que, pela vez primeira, me encontrei com a grande Inteligência, tive a
impressão de ficar mais divino que antes. E esta impressão se repetia e
reforçava todas as vezes que com ela defrontava. Não eram, propriamente, as
suas palavras, as suas sábias lições, que tanto bem me faziam – estas só
iluminavam a minha inteligência – era ela mesma, essa misteriosa entidade
cósmica, esse Algo indefinível, que com sua simples presença e realidade me
enchia de suave plenitude e luminosa tranquilidade. Atuava, tão apenas sobre
uma ou outra das minhas faculdades, mas sobre o meu próprio ser humano,
sobre o meu Eu tomado em toda a sua panorâmica totalidade.

Num daqueles dias, animei-me a perguntar à grande Inteligência pela razão


dessa benéfica influência sobre o meu ser.

Creio que foi este um dos grandes dias da minha vida, talvez a maior solenidade
espiritual do meu Eu. Ondas do Infinito me embalaram...

Tive a impressão de presenciar uma estupenda alvorada cósmica...

Ouvi tanger sinos nos litorais de mundos ignotos...

Percebi hinos e cânticos eternos...

Adivinhei aquilo que nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais
penetrou em coração humano, mas que é real, mais real que todas as realidades
do mundo visível...

Como que extático e com os olhos cheios de lágrimas, abandonei-me a essa


dulcíssima embriaguês do Infinito...

Se, nestas palidíssimas linhas, tento reproduzir a grande festa d’alma a que
assisti, não pense o leitor que seja apenas isto que vi, ouvi e vivi. Multiplique pelo
fator “Infinito” o que vai ler – e saiba que não é exagero...

– Grande Inteligência – disse eu, naquele dia eterno – toda vez que me falas ou
estás presente, sinto-me convalescer duma longa enfermidade... Invisíveis
torrentes de vigorosa saúde me percorrem as artérias do espírito... Sinto-me
intensamente divino, e, por isto mesmo, plenamente humano, por mais
paradoxal que isto talvez pareça. Digo o que sinto e vivo, e não o que penso.
Não quero saber se é razoável e lógico o que estou dizendo, quero ser apenas
sincero e dizer o que sinto e vivo...

– O que dizes é verdade – respondeu a grande Inteligência, serena e calma


como sempre. – Sei que minha presença te dá saúde e diviniza a tua
humanidade...

– Até agora, grande Inteligência, me falaste, de preferência, das forças da


Natureza, dos mistérios do Universo em derredor. Mas eu tenho momentos em
que sinto em mim algo infinitamente superior a tudo que é intelectualmente
analisável, a tudo o que conscientemente sei e sou. Há momentos em que eu,
em vez de pensar, sou pensado. Alguém pensa em mim e por mim. Creio mesmo
que as minhas melhores idéias não são minhas. E o que mais empolga e consola
os que me ouvem e lêem é precisamente aquilo que dentro de mim foi pensado
por alguém que habita para além dos horizontes do meu ego consciente... Não
sou eu que penso esses pensamentos – eles são pensados em mim e para
mim...

– Tens razão, ó homem. Melhor que pensar é ser pensado. Nos melhores
momentos da tua vida tu és nascente, mas arroio... Não és canal, és fonte...

– Dizes o que eu quisera dizer e dizer não sabia...

– Torna-te receptivo, e receberás grandes idéias. A mais profunda decadência


do homem está em pensar que as suas ruidosas atividades o possam libertar ou
preservar das grandes e pequenas misérias da vida. Enche-se das suas
grandiosas ninharias, e destrói assim o vácuo benéfico que lhe poderia atrair as
grandes plenitudes. Como se pode encher o que está cheio?... Homem, faze de
ti uma grande vacuidade, e eu farei de ti uma grande plenitude!...

– Donde me vem essa plenitude? e como a receberei?

– Que fazes com teu rádio quando queres atrair os pensamentos e a música que
andam no espaço?

– Ligo-o, sintonizo-o – e as ondas mudas do espaço se transformam em ondas


sonoras que põem em vibração o meu espírito.

– Repleto de idéias está o Universo de Deus. A Divindade é uma idéia infinita,


perene, eterna. E os grandes espíritos por ela sintonizados vibram na mesma
onda sonora. Homem, arma as tuas antenas! sintoniza o teu espírito! harmoniza
a tua alma com o Infinito – e serás divinizado pela Divindade... Ruídos profanos
impedem que percebas o silêncio fecundo dessas vozes do Infinito... A tua
excessiva e ininterrupta atividade mata toda a música de mundos eternos...
Escuta em grande silêncio – e saberás o que é Deus...
Tudo que de belo e grande existe sobre a face da terra foi concebido no silêncio
dessa auscultação cósmica. Todas as grandes idéias brotaram das profundezas
do Infinito e são veiculadas por almas humanas ao meio dos homens. Só o que
é sobre-humano pode humanizar o homem, divinizando-o. E só o homem
divinizado é que é integralmente humano. O homem que só transmite aos
homens o que excogitou conscientemente será sempre um homem medíocre, e
suas palavras serão levadas pelo vento. O homem que veicula o que do Infinito
recebeu é um homem eterno, e os seus pensamentos são os guias da
humanidade. Podem outros ser talentos – mas tu deves ser um gênio. De
talentos está repleta a sociedade, – de gênios necessita a humanidade, em sua
jornada dinâmica para as grandes alturas e os vastos horizontes. Serão os
gênios crucificados, mortos e sepultados pelos “talentos” – mas o gênio é uma
fênix que ressurge das próprias cinzas, e nunca faltará à humanidade uma
alvorada de Páscoa e um aleluia de ressurreição...

Homem, mantém as tuas portas e janelas abertas para os horizontes do


Infinito!... estende no ar todas as antenas do teu espírito!... Abre o vácuo do Ego
para receber a plenitude de Deus!... Não sabes donde nem quando ela vem – “o
sopro sopra onde quer” – mas é melhor esperar um século por uma grande onda
do além do que receber todos os dias as pequeninas ondas do aquém...

– As tuas palavras, ó grande Inteligência, me dão mais vontade de calar que de


falar... Dizes o que eu quisera dizer, mas dizer não sabia. És o intérprete e locutor
do meu Eu. Creio mesmo que só se pode aprender o que já se sabe. O que não
dorme no subconsciente não pode despertar para o consciente. Não pode nascer
o que não está concebido e anda em gestação; nem há possibilidade de
concepção onde não preexistam entranhas suscetíveis de fecundação. Por isto,
ó grande Inteligência, digo que só é possível aprender o que se sabe, ser o que
se é. Ninguém pode ser explicitamente o que não é implicitamente.

– Sabes, ó homem; que todos os grandes vultos da humanidade eram amigos


do silêncio e da solidão, da concentração e da prece? Quanto mais o homem
exclui as influências perturbadoras do ambiente, e a importuna atividade dos
próprios pensamentos, tanto mais apto se torna para receber as grandes
mensagens de um centro emissor que existe para além do seu mundo
consciente. O homem profano pensa que, para prestar muito, se deva atirar à
esfaltante lufa-lufa duma indefessa atividade. Para ele, as horas de inatividade
externa são horas perdidas. Ignora o abc do próprio Eu e das grandes realidades
da história da humanidade. O iniciado, porém, o acadêmico do espírito, sabe, ou
melhor, tem a intuição certa e nítida de que o valor dos seus trabalhos não está
na razão direta da sua atividade consciente, mas depende do maior ou menor
grau de receptividade que ele oferece às influências invisíveis e ultrapessoais.
Todas as grandes realidades preexistem à nossa realização pessoal – assim
como todas as harmonias que teu rádio concretiza no receptor já existiam,
imponderáveis, porém reais, nos espaços cósmicos, antes que transpusessem
o limiar do teu aparelho.

Estas idéias vindas de além do mundo pessoal é que são a base e o segredo
último de todas as grandes realizações sobre a face da terra.

– Quando ouço tudo isto, ó grande Inteligência, lembro-me do que disse e fez o
divino profeta de Nazaré...

– Se tão grande é o que, por dizível, foi dito pelos videntes, quão sublime deve
ser o que, por indizível, não foi dito! Lê e vive o que está nas linhas dos sacros
fragmentos – e lê e vive ainda mais o que está nas entrelinhas. Mais eloquentes
que as palavras são as reticências do Evangelho. Estupendo é o Sermão da
Montanha – assombroso o sermão do silêncio...

– Calemo-nos, grande Inteligência, para que o silêncio nos diga o que palavra
alguma pode dizer...

...............................................................................................................................

E as ondas do Infinito percorriam o espaço sem fim...

***

Após o meu encontro com a grande Inteligência, comecei a compreender algo


de incompreensível que vira na minha longa excursão por mundos ignotos.

Inerente e imanente ao Universo vive algo que é como que a alma do cosmos.
Esse algo não é a face visível e tangível do cosmos – que não passa duma
sombra vaga – mas é uma realidade dentro do cosmos, ou, talvez melhor, é esse
mesmo cosmos, invisível e intangível, em sua mais pura acepção espiritual.

É o Infinito presente no finito...

É o Eterno oculto no efêmero...

É o Imaterial por detrás do material...

Desde então, todas as realidades tangíveis, desde os astros até os átomos, me


parecem sagradas, porque veículos, arautos, habitáculos da suprema e
intangível Realidade...

É estranho que essas realidades tangíveis tenham afastado alguns homens da


grande Realidade intangível, quando não são senão pontes, canais e traços de
união...

Comecei a compreender a razão por que átomos, elétrons, células e organismos


agem com tamanha perfeição, uma vez que são dirigidos pelo vastíssimo oceano
espiritual, do qual o meu Eu é apenas pequenina gota...
Uma gotinha apenas – nesses mundos ignotos...

Gotinha de orvalho iluminada pelos fulgores do sol...


Bandeirante do Infinito

Foi na noite de 24 a 25 de dezembro.

Tornou a falar-me a grande Inteligência da Natureza e disse-me:

– A paz seja contigo...

– Amém – respondi com reverência.

– Só terás paz de espírito se creres mais na tua ignorância que na tua sapiência.

– Creio na minha ignorância – respondi com firmeza, e com a mesma convicção


acrescentei: – E descreio do meu saber.

– É este o caminho da paz interior. Existe um único Ser que pode crer
integralmente no seu saber, porque nele não há ignorância alguma.

– E é nesta noite sagrada que os homens comemoram o aparecimento desse


Ser sobre a face da terra.

– Todos os que querem ter a paz da alma devem crer nele e descrer de si
mesmos, porque assim se afastam da vacuidade e se aproximam da plenitude.

– Creio nele e descreio de mim.

– Depois de tudo que te disse e mostrei, ó homem, depois de tudo que viste e
ouviste, estás no ocidente do teu não-saber e no oriente do teu saber. Podes dar
o primeiro passo para a sapiência, já que deste o último da tua insipiência. No
princípio está o alfa, e no fim o ômega – mas os extremos se tocam. Fechaste
todas as portas da ciência – podes abrir o portal da sabedoria. A ciência é a
miragem das coisas periféricas – a sabedoria é a realidade da grande coisa
central. E ainda que por milhares de anos e de séculos absorvesses com os teus
sentidos e a tua inteligência essas miragens que vêm de fora – que saberias tu
da eterna e profunda realidade que vem de dentro?

O teu interior, porém, é o reflexo do alto, o eco da voz do Eterno.

Tua pupila é uma pequenina janela para o Universo, do qual apanha diminuta
parcela, porque tua retina visual reage apenas a uns poucos raios luminosos,
deixando passar despercebido muito mais do que apanha – e assim é também
a tua inteligência: um postigo apenas para o mundo da realidade integral.
– É bem verdade, grande Inteligência. É bem pouco o que vemos e sabemos.
Mas... a nossa ciência e técnica não tardarão a desvendar-nos grandes
mistérios. O microscópio e o telescópio já alargaram notavelmente os nossos
horizontes...

Sorriu-se a alma da Natureza e de leve moveu a cabeça em sinal de


desaprovação. Fitou em mim os seus grandes olhos cheios de luz e disse
vagarosamente, em tom suave e caricioso como quem fala a um doente:

– Nunca desvendareis os meus mistérios, milhares de anos e de séculos que


estudeis e pesquiseis. Ainda que mil vezes mais soubésseis do que sabeis,
sempre será a vossa ignorância infinitamente maior que a vossa ciência. Não
podem microscópios nem telescópios atingir o que inatingível é por natureza. E
todas as grandes realidades são intangíveis. Faltam-vos, no plano do ego
consciente, as competentes faculdades e os órgãos idôneos para ultrapassar
certas balizas. A grande realidade principia precisamente lá onde termina a
vossa ciência. Que é que percebes, ó homem, do mundo visível que te está ao
alcance dos sentidos? que percebes das chamadas vibrações luminosas?

– Percebo o que está compreendido entre o vermelho e o violeta, sete cores e


seus cambiantes.

– E pensas tu que, para além do extremo limite do vermelho e da última fronteira


do violeta não haja mais cores? que terminem todas as vibrações luminosas?

– Há o infravermelho e o ultravioleta, que a nossa retina não acusa, mas cuja


existência é provada por instrumentos de precisão.

– Pois sabe, ó homem, que para além do infravermelho e do ultravioleta se


alargam mundos de incomensurável grandeza que nem olhos viram, nem
ouvidos ouviram, nem instrumento atingiu, nem jamais passaram pela
inteligência do homem. Se os teus olhos reagissem a essas ondas ultravisíveis,
seria completamente diverso esse mundo em derredor de ti. O conhecimento
que do mundo tens é imperfeito, unilateral e, em grande parte, ilusório. O que
sabes e percebes é uma estreita faixa de luz que de tua pessoa se projeta ao
horizonte; mas, para a direita e para a esquerda dessa faixa de realidades
perceptíveis e intelegíveis se espraia, interminável, imenso, infinito, o ignoto
universo do inatingido, do intangível, do incompreensível.

O que percebes é um insignificante segmento daquilo que foge a tua percepção


e à de todos os homens.

Homem, vai às praias do mar e colhe na ponta do dedo uma gotinha d’água –
essa gota é o conjunto da sapiência humana de todos os tempos e países, e o
oceano é o que os homens ignoram e sempre ignorarão.
– As tuas palavras, ó grande Inteligência, me enchem de tristeza, porque sei que
são verdadeiras. Nasci para o saber – mas nunca saberei o que valha a pena.
Sempre clamarei no deserto árido da minha insatisfeita sede de saber... O meu
não-saber será sempre um oceano imenso – e o meu saber não passará nunca
de uma desprezível gotinha...

– Não te entristeças, ó homem! Quem vive eternamente pode eternamente


conhecer...

– Deus...

– E teu espírito...

– Meu espírito?

– Sim, ou melhor, tu mesmo, o teu Eu central, eterno...

– Sei que viverei eternamente. Isto me diz meu íntimo ser. Tentei, um dia, provar
com silogismos a minha imortalidade, mas a minha torre de Babel não atingiu as
nuvens do céu. Hoje, sem nada provar, sei mais do que naquele tempo, e mais
firmemente estou convencido da vida imortal.

– Todo ser que chegou à consciência do Eu é imortal.

– Disseste o que eu ia dizer e dizer não sabia. A consciência do Eu é, por assim


dizer, o ponto de cristalização, e esse cristal consciente é, por isto mesmo,
imortal. Só pode deixar de ser o que não chegou a “ser” integralmente – e o “ser-
integral” principia com o “ser-consciente”.

– No limiar da consciência amanhece a vida eterna. Nenhuma consciência pode


voltar à inconsciência. Pode o semi-ser tornar ao não-ser, mas o pleni-ser será
necessariamente um sempre-ser. Tu, que existes como ser consciente,
eternamente existirás – e eternamente conhecerás, porque todo ser consciente
é um ser cognoscente, e sempre em via de novos conhecimentos. Tua vida
eterna será um eterno conhecer e compreender, uma eterna evolução de
perfeição em perfeição, rumo ao Ser supremo, auto-existente e onisciente.
Nenhum espírito finito pode estacionar, deve progredir e evolver eternamente.
Só o Ser Infinito não progride nem evolve, porque está de posse de toda
plenitude da Realidade.

Tu, ó homem, serás eterno caminheiro de Deus – e este caminhar é beatitude,


inefável felicidade.

Bandeirante do Infinito – que glorioso destino o teu! Ainda que milhares e milhões
de anos, de séculos, de milênios se sumam na voragem do pretérito; ainda que
terminem todos os mundos do Universo, ainda-que se apaguem e reacendam
em novas alvoradas cósmicas todos os planetas, astros, vias-lácteas e galáxias
do espaço; ainda que infinitas eternidades rolem sobre mundos extintos e
universos em formação – o teu espírito estará sempre a caminho. Mas esse
eterno evolver é um eterno fruir, é uma visão beatífica em Deus, porque Ele, o
Eterno, está em ti e tu estás nele... A tua vida eterna é a tua eterna compreensão
e o teu amor eterno. Num ser consciente e finito, a vida eterna não pode consistir
numa eterna estagnação, mas, sim, numa evolução eterna. É este o teu grande
destino, ó homem. É esta a paz eterna, o descanso perpetuo...

– Sou e serei um eterno bandeirante de novos mundos – dos mundos do Eu e


dos mundos de Deus... Ó vida gloriosa e feliz!...

– Por mundos ignotos andarás a vida inteira, por todo o sempre. No dia em que
diante de teus passos deixasse de haver mundos ignotos, no dia em que
atingisses a extrema fronteira de todos os mundos materiais e espirituais,
deixarias de ser homem – serias Deus. Mas, como nunca serás Deus, por mais
divino que sejas, andarás sempre por mundos ignotos...

– Por mundos ignotos sem fim...

– Por mundos ignotos cheios de luz...

– Por mundos ignotos cheios de beatitude...

– Por mundos ignotos cheios de Deus...

– Aleluia! Aleluia! Aleluia!...


DADOS BIOGRÁFICOS

Huberto Rohden

Nasceu na antiga região de Tubarão, hoje São Ludgero, Santa Catarina, Brasil
em 1893. Fez estudos no Rio Grande do Sul. Formou-se em Ciências, Filosofia
e Teologia em universidades da Europa – Innsbruck (Áustria), Valkenburg
(Holanda) e Nápoles (Itália).

De regresso ao Brasil, trabalhou como professor, conferencista e escritor.


Publicou mais de 65 obras sobre ciência, filosofia e religião, entre as quais várias
foram traduzidas para outras línguas, inclusive para o esperanto; algumas
existem em braile, para institutos de cegos.

Rohden não está filiado a nenhuma igreja, seita ou partido político. Fundou e
dirigiu o movimento filosófico e espiritual Alvorada.

De 1945 a 1946 teve uma bolsa de estudos para pesquisas científicas, na


Universidade de Princeton, New Jersey (Estados Unidos), onde conviveu com
Albert Einstein e lançou os alicerces para o movimento de âmbito mundial da
Filosofia Univérsica, tomando por base do pensamento e da vida humana a
constituição do próprio Universo, evidenciando a afinidade entre Matemática,
Metafísica e Mística.

Em 1946, Huberto Rohden foi convidado pela American University, de


Washington, D.C., para reger as cátedras de Filosofia Universal e de Religiões
Comparadas, cargo este que exerceu durante cinco anos.

Durante a última Guerra Mundial foi convidado pelo Bureau of lnter-American


Affairs, de Washington, para fazer parte do corpo de tradutores das notícias de
guerra, do inglês para o português. Ainda na American University, de
Washington, fundou o Brazilian Center, centro cultural brasileiro, com o fim de
manter intercâmbio cultural entre o Brasil e os Estados Unidos.

Na capital dos Estados Unidos, Rohden frequentou, durante três anos, o Golden
Lotus Temple, onde foi iniciado em Kriya-yoga por Swami Premananda, diretor
hindu desse ashram.

Ao fim de sua permanência nos Estados Unidos, Huberto Rohden foi convidado
para fazer parte do corpo docente da nova International Christian University
(ICU), de Metaka, Japão, a fim de reger as cátedras de Filosofia Universal e
Religiões Comparadas; mas, por causa da guerra na Coréia, a universidade
japonesa não foi inaugurada, e Rohden regressou ao Brasil. Em São Paulo foi
nomeado professor de Filosofia na Universidade Mackenzie, cargo do qual não
tomou posse.

Em 1952, fundou em São Paulo a Instituição Cultural e Beneficente Alvorada,


onde mantinha cursos permanentes em São Paulo, Rio de Janeiro e Goiânia,
sobre Filosofia Univérsica e Filosofia do Evangelho, e dirigia Casas de Retiro
Espiritual (ashrams) em diversos estados do Brasil.

Em 1969, Huberto Rohden empreendeu viagens de estudo e experiência


espiritual pela Palestina, Egito, Índia e Nepal, realizando diversas conferências
com grupos de iogues na Índia.

Em 1976, Rohden foi chamado a Portugal para fazer conferências sobre


autoconhecimento e autorrealização. Em Lisboa fundou um setor do Centro de
Autorrealização Alvorada.

Nos últimos anos, Rohden residia na capital de São Paulo, onde permanecia
alguns dias da semana escrevendo e reescrevendo seus livros, nos textos
definitivos. Costumava passar três dias da semana no ashram, em contato com
a natureza, plantando árvores, flores ou trabalhando no seu apiário-modelo.

Quando estava na capital, Rohden frequentava periodicamente a editora


responsável pela publicação de seus livros, dando-lhe orientação cultural e
inspiração.
À zero hora do dia 8 de outubro de 1981, após longa internação em uma clínica
naturista de São Paulo, aos 87 anos, o professor Huberto Rohden partiu deste
mundo e do convívio de seus amigos e discípulos. Suas últimas palavras em
estado consciente foram: “Eu vim para servir à Humanidade”.

Rohden deixa, para as gerações futuras, um legado cultural e um exemplo de fé


e trabalho, somente comparados aos dos grandes homens do século XX.

Huberto Rohden é o principal editando da Editora Martin Claret.


Relação de obras do
Prof. Huberto Rohden

Coleção Filosofia Universal

O pensamento filosófico da Antiguidade


A filosofia contemporânea
O espírito da filosofia oriental

Coleção Filosofia do Evangelho

Filosofia cósmica do Evangelho


O Sermão da Montanha
Assim dizia o Mestre
O triunfo da vida sobre a morte
O nosso Mestre

Coleção Filosofia da Vida

De alma para alma


Ídolos ou ideal?
Escalando o Himalaia
O caminho da felicidade
Deus
Em espírito e verdade
Em comunhão com deus
Cosmorama
Por que sofremos
Lúcifer e Lógos
A grande libertação
Bhagavad Gita (tradução)
Setas para o infinito
Entre dois mundos
Minhas vivências na Palestina, Egito e Índia
Filosofia da arte
A arte de curar pelo espírito. Autor: Joel Goldsmith (tradução)
Orientando
“Que vos parece do Cristo?”
Educação do homem integral
Dias de grande paz (tradução)
O drama milenar do Cristo e do Anticristo
Luzes e sombras da alvorada
Roteiro cósmico
A metafísica do cristianismo
A voz do silêncio
Tao Te Ching de Lao-tse (tradução)
Sabedoria das parábolas
O Quinto Evangelho segundo Tomé (tradução)
A nova humanidade
A mensagem viva do Cristo (Os quatro Evangelhos – tradução)
Rumo à consciência cósmica
O homem
Estratégias de Lúcifer
O homem e o Universo
Imperativos da vida
Profanos e iniciados
Novo Testamento
Lampejos evangélicos
O Cristo cósmico e os essênios
A experiência cósmica
Panorama do cristianismo
Problemas do espírito
Novos rumos para a educação
Cosmoterapia

Coleção Mistérios da Natureza

Maravilhas do Universo
Alegorias
Ísis
Por mundos ignotos

Coleção Biografias

Paulo de Tarso
Agostinho
Por um ideal – 2 vols. autobiografia
Mahatma Gandhi
Jesus Nazareno
Einstein – o enigma do Universo
Pascal
Myriam
Coleção Opúsculos

Catecismo da filosofia
Saúde e felicidade pela cosmo-meditação
Assim dizia Mahatma Gandhi (100 pensamentos)
Aconteceu entre 2000 e 3000
Ciência, milagre e oração são compatíveis?
Autoiniciação e cosmo-meditação
Filosofia univérsica – sua origem sua natureza e sua finalidade

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