TORRES. Mínimo Existencial
TORRES. Mínimo Existencial
TORRES. Mínimo Existencial
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I - Introdução
Problema que vem sendo muito discutido no Brasil nos últimos 15 anos é o
da efetivação dos direitos sociais. Há duas fases distintas no plano da legislação,
da doutrina e da jurisprudência: a) a que se seguiu à promulgação da Constituição
de 1988; b) a que se corporificou a partir das mudanças constitucionais levadas a
efeito no Governo Fernando Henrique e continuadas no Governo Lula. Com base
nessa evolução o País procura, sob nova perspectiva, solucionar as principais
questões relacionadas com a tensão entre mínimo existencial e direitos sociais,
sem romper com os princípios orçamentários, máxime a reserva do possível.
2. A jurisprudência
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal inviabilizou a utilização do
mandado de injunção (art. 5o, inciso LXXI, da CF), para a garantia assim dos
direitos fundamentais que dos direitos sociais, até mesmo para coarctar os abusos
que seriam acometidos em decorrência da extensão daquele remédio constitu
cional de origem norte-americana para garantir qualquer direito constitucional,
como sugeriram processualistas de prestígio.26
2. A legislação ordinária
A legislação ordinária, ampliando a tendência que se iniciara um pouco
antes e que se complementou por providências que ainda estavam sob apreciação
do Congresso Nacional e foram aprovadas pelo Governo Lula, trouxe inúmeras
novidades:
a) regulamentação do sistema único de Saúde (SUS) e da Agência Nacional
da Saúde (Lei 8.080, de 19.9.90, e Lei 9961.de 28.01.2000);
-------------------- v
15 Cf V1LLEY, Michel. Le Droit ei les Droits de l'Homme. Pans: Presses Universitaries de France. 1983, p.
13: "uma certa literatura cristã progressista cultiva o sonho de reconciliar os direitos do homem de 1789 c os
“direitos sociais e econômicos”. Mas isso é a quadratura do círculo". (mais c'est la quadrature du i ercle).
26 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. “O Mandado de Injunção e a Legalidade Financeira". Revista de Direito Admi
nistrativo 187: 94-110, 1992.
3. A doutrina
A doutrina modificou-se radicalmente, abandonando o positivismo socioló
gico e adotando a visão principiológica em que se realçam:
a) a redução da jusfundamentalidade dos direitos sociais ao mínimo existen
cial e ao núcleo essencial dos direitos da justiça, o que exige a distinção entre di
reitos da liberdade e direitos econômicos e sociais de natureza contraprestacional,
pois estes últimos só se metamorfoseiam em direitos de liberdade quando tocados
pelos interesses fundamentais;27
b) a defesa da necessidade de implementação de políticas públicas pelo
Legislativo e pela Administração, como caminho democrático para a afirmação
de direitos sociais a ser trilhado com base na ponderação dos diversos interes
ses insuscetíveis de controle jurisdicional, que não se manifesta nas questões
políticas;
c) o equilíbrio entre os aspectos da liberdade e da justiça, que passa pela
maximização do mínimo existencial e pela minimização dos direitos sociais em
sua extensão, mas não em sua profundidade;
d) a possibilidade de superação do princípio da reserva orçamentária no
caso de contradição incontornável com o princípio da dignidade humana, con
substanciado no direito a prestação estatal jusfundamental.
Chegaram ao Brasil, no final da década de 90, as teorias que justificam e
fundamentam o mínimo existencial, elaboradas principalmente no ambiente do
neokantismo que vem predominando no campo da filosofia política e do direito.
Dignas de registro, pela influência exercida, as obras de Ravvls,28 Habermas29 e
Alexy.30
27 Cf. TORRES. Ricardo Lobo. “A Jusfundamentalidade dos Direitos Sociais". Revista de Direito da Associa
ção dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro 12: 3S5, 2003
28 A Theory o f Justit e.Oxfoid: Oxford Umversity Press, 1980.
M Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurslheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaat. Frank
furt: Suhrkamp. 1992
30 Theory der Gundrechte. Frankfurt' Suhrkamp, 1986
4. A jurisprudência
O Supremo Tribunal Federal não tem dispensado atenção ao problema do
mínimo existencial, a não ser incidentalmente.
No que concerne à imunidade tributária, como proteção negativa aos direi
tos fundamentais sociais, o STF tem se recusado a analisá-la a partir da ótica dos
direitos humanos. Ainda sensibilizado pela tese positivista de que imunidade
tributária é qualquer não-incidência constitucionalmente qualificada, tem recusa
do que a proteção às entidades filantrópicas e às instituições de assistência (art.
150, VI, c, CF) se restrinja àquelas que gratuitamente atendam à camada mais
pobre da população.54 Levou anos para decidir que a imunidade não se aplica às
instituições de previdência fechada, que sabidamente têm por objetivo garantir
suplemento de aposentadoria a funcionários das empresas estatais e outras que
não se preocupam com os pobres.55
Recentemente instaurou-se o debate sobre o fornecimento de remédios e a
entrega de prestações de saúde. O STF tem caminhado no sentido maximalista,
dilargando o conceito de direitos fundamentais.56
51 " 0 Estado Social de Direito, a Proibição de Retrocesso e a Garantia Fundamental da Propriedade". Kcvi.ua de
Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro 5 131-150, 2001
52"O Direito Fundamental à Moradia na Constituição, Algumas Anotações a Respeito de seu Contexto, Conteú
do e Possível Eficácia”. Arquivos de Direitos Humanos n ° 4 - no prelo: "Considerando apenas as possibilidades
apontadas ao longo do presente texto (e já bastaria aqui a praticamente incontroversa eficácia da dimensão
negativa do direito à moradia e dos direitos sociais em geral), constata-se que também o direito à moradia não
precisa (nem deve) ser interpretado como uma promessa de que todos passarão a ter, desde logo e por decreto
normativo, plena condição de fruir deste direito, sem que com esta afirmação se esteja (muito antes pelo contrá
rio) a repudiar a sua possível eficácia e efetividade".
53“Algumas Considerações em tomo do Conteúdo, Eficácia e Efetividade do Direito à Saúde na Constituição de
1988". Revista Diálogo Jurídico n° 10, p. 13 (www direitopúblit o.com.br). "Embora tenhamos que reconhecer a
existência destes limites fáticos (reserva do possível) e jurídicos (reserva parlamentar em matéria oiçamemária)
implicam certa relativização no âmbito da eficácia e efetividade dos direitos sociais prestacionais, que, de resto,
acabam conflitando entre si, quando se considera que os recursos públicos deverão ser distribuídos para atendi
mento de todos os direitos fundamentais sociais básicos, sustentamos o entendimento, que aqui vai apresentado
de modo resumido, no sentido de que sempre onde nos encontramos diante de prestações de cunho emergenetal,
cujo indeferimento acarretaria o comprometimento irreversível ou mesmo o sacrifício de outros bens essenciais,
notadamente - em se cuidando da saúde - da própria vida, integridade física c dignidade da pessoa humana,
haveremos de reconhecer um direito subjetivo do particular â prestação reclamada cm Juízo"
54 Cf. RE 74.792, Ac. da 1* T , de 15.5 73. Rei. Min. Djaci Falcão, RTJ 66: 257, RE 93.463-RJ, Ac. da 2" T„ de
16 4.82, Rei Min Cordeiro Guerra, RTJ 101: 769
55 Cf. RE 202 700, Ac. do Pleno, de 8.11.01, Rei Min. Maurício Corrêa, Informativo STF n“ 249, 5-9/11/01.
54 Cf. TORRES, Ricardo Lobo "O Supremo Tribunal Federal e as Decisões Minimalistas" Arquivos de Direi
tos Humanos 3: 388-391, 2001.
O mínimo existencial, os direitos sociais e os desafios
de natureza orçamentária 79
A jurisprudência dos tribunais brasileiros, máxime a dos de instância infe
rior, diante da lacuna deixada pelo mandado de injunção, dilargou a aplicação da
ação civil pública, espécie brasileira de class action, com o que obteve notáveis
progressos na afirmação do mínimo existencial. Papel importante foi exercido
pelo Ministério Público, nomeadamente através da assinatura de “termos de ajus
te de conduta” com os agentes da Administração, mediante os quais se institucio
nalizaram as soluções judiciais.
I. Reserva do possível
Uma diferença importante entre o mínimo existencial e os direitos eco
nômicos e sociais: enquanto aquele pode prescindir da lei ordinária, os direitos
econômicos e sociais dependem integralmente da concessão do legislador,57 que
pode ser a orçamentária. As normas constitucionais sobre os direitos econômi
cos e sociais são meramente programáticas: restringem-se a fornecer as diretivas
ou a orientação para o legislador e não têm eficácia vinculante.58 As prestações
positivas para a proteção desses direitos implicam sempre despesa para o ente
público, insuscetível de ser imputada à arrecadação dos impostos ou, sem lei
específica, aos ingressos não-contraprestacionais. Por isso mesmo carecem de
status constitucional, eis que a Constituição não se envolve com autorizações de
gastos públicos nem se imiscui com problemas econômicos conjunturais,59 as
suntos reservados com exclusividade à lei ordinária de cada qual das três esferas
57 A doutrina alemã serve-se de trocadilho para dizer que os direitos sociais são concedidos {gewährt), e não
garantidos {gewährleistet) — cf. HUBER. Hans. “Soziale Verfassungsrechte?". In Die Freiheit des Bürgers tm
schweizerischen Recht- Zürich: Polygraphischer Verlag, 1948, p. 157, BETHGE, Herbert. "Aktuelle Problem
der Grundrechtsdogmatik”. Der Staat 24(3) 376, 1985.
58 K. HESSE, Grundziige des Verfassungsrecht..., ciL, p. 89; BADURA, Peter. "Das Prinzip der sozialen Grun
drecht und seine Verwirklichung im Recht der Bundesrepublik Deutschland" Der Staat 14- 45, 1975. CORSO,
Guido. "I Dintto Sociali nella Costituzione Italiana" Rivista Trunestrale di Diritto Pttbblico 1981 762; VIEI
RA DE ANDRADE, José Carlos Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbta:
Almedma, 1983, p. 209: "Só uma vez emitida a legislação destinada a executar os preceitos constitucionais em
causa é que os direitos sociais se consolidarão como direitos subjetivos, mas, então, não valem como direitos
fundamentais, mas enquanto direitos concedidos por lei”.
59 PERRY, M. The Constitution, the Courts and Human Rights. New Hävern Yale University Piess, 1982, p.
164; HETTLAGE, K. M. "Die Finanzverfassung im Rahmen der Staatsverfassung” VVDStRL 14: 9, 19S6,
ISENSEE, Joseph “Verfassung ohne soziale Grundrechte”. Der Staat 19(3): 381, 1980, observa que a proteção
dos direitos sociais depende da conjuntura econômica ( Wirtschafiskonjunktur) e que as "normas constitucionais
não afastam as crises econômicas” {Verfassungsnormen bannen nullt Wirtschaftskrisen)
2. Reserva orçamentária
A proteção positiva do mínimo existencial não se encontra sob a reserva do
possível, pois a sua fruição não depende do orçamento nem de políticas públicas,
ao contrário do que acontece com os direitos sociais.
Em outras palavras, o Judiciário pode determinar a entrega das prestações
positivas, eis que tais direitos fundamentais não se encontram sob a discriciona-
60 A Suprema Corte americana, no importante caso National League o f Cine.', v. Uscry (426 US 833. 1976).
invalidou a lei federal que criava obrigações sociais para os estados-membros TRIBE, L "Unraveling National
League of Cities: The New Federalism and Affirmative Rights to Essential Government Services". Harvard
Law Review 90 (6): 1.067, 1977 criticou a decisão, considerando-a injusta.
61 A "reserva do possível” é tradução da expressão Vorbehalt des Môglichen cunhada pelo Tribuna) Constitu
cional da Alemanha (BVerfGE 33: 303-333): "Os direitos a prestações (Teilhaberecht)... nào são determinados
previamente, mas sujeitos à reserva do possível (Vorberhalt des Mbgtichen), no sentido de que a sociedade deve
fixar a razoabilidade da pretensão. Em primeira linha compete ao legislador julgar, pela sua própria responsabi
lidade, sobre a importância das diversas pretensões da comunidade, para incluí-las no orçamento, resgtiaidando
o equilíbrio financeiro g e ral.. Por outro lado, um tal mandamento constitucional não obriga, contudo, a provei
a cada candidato, em qualquer momento, a vaga do ensino superior por ele desejada, tornando, desse modo,
os dispendiosos investimentos na írea do ensino superior dependentes exclusivamemc da demanda individual
freqüentemente flutuante e influenciável por variados fatores Isso levaria a um entendimento errôneo da liber
dade, junto ao qual teria sido ignorado que a liberdade pessoal, em longo prazo, não pode ser lealizada alijada
da capacidade funcional e do balanceamento do todo, e que o pensamento das pretensões subjetivas ilimitadas
ãs custas da coletividade é incompatível com a idéia do Estado Social Fazei com que os lecursos públicos só
limitadamente disponíveis beneficiem apenas uma parte privilegiada da população, preterindo-se outros impoi-
tantes interesses da coletividade, afrontaria justamente o mandamento de justiça social, que é concretizado no
princípio da igualdade”. In: SCHWABE, Jürgen (Org ). Cmqiienta Anos de Jurisprudent ia do Tribunal Consti
tucional Federal Alemão. Tradução de Leonardo Martins et al. Montevideo Fundação Konrad Adenauer. 2005,
p. 663/664. Foi adotada pela doutrina germânica: ISENSEE, op. ril.. p. 372; BADURA, op. t i l , p. 36 Vem
sendo utilizado em Portugal-C f. VIEIRA DE ANDRADE, op t it., p. 2 0 1
62 ISENSEE, op. cit., p. 372 diz que as prestações sociais dependem da “soberania orçamentária do legislador”
(,Haushaltssouveranitüt des Cesetzgebers).
V - Conclusão
Nota-se, em síntese, grande avanço na problemática da efetividade dos di- ‘
reitos no Brasil. Supera-se a fase da solução mágica a partir das regras constitu- !
cionais programáticas e se procura o caminho: para a implementação de políticas t
públicas relacionadas com os direitos sociais, para a posição crítica da doutrina j
e para a maior participação do Judiciário na adjudicação de prestações referentes j
ao mínimo existencial. Mas remanescem alguns problemas intrincados à espe- j
ra do aprofundamento do debate, designadamente no que concerne à clareza na j
distinção entre mínimo existencial (= direitos fundamentais sociais) e direitos |
sociais, da qual dependem a extensão do controle jurisdicional e a integridade do i
orçamento democrático.