TORRES. Mínimo Existencial

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0 mínimo existencial, os direitos sociais e


os desafios de natureza orçamentária
RICARDO LOBO TORRES1

Sumário: I - Introdução; II - A problemática surgida com o advento da Constituição de 1988,


1. A doutrina; 1.1. As posições iniciais; 1.2. A tese da indivisibilidade dos direitos humanos;
2. A jurisprudência; III - As mudanças constitucionais a partir do Governo Fernando Henrique
(1995-2002); 1. As emendas constitucionais; 2. A legislação ordinária; 3. A doutrina; 3.1.
As teses defendidas na UERJ; 3.2. A doutrina de Ingo Sarlet; 4. A jurisprudência; IV - Os
desafios atuais de natureza orçamentária; 1. Reserva do possível; 2. Reserva orçamentária;
3. Sequestro de recursos públicos; 4. Vmculação do orçamento, V - Conclusão.

I - Introdução
Problema que vem sendo muito discutido no Brasil nos últimos 15 anos é o
da efetivação dos direitos sociais. Há duas fases distintas no plano da legislação,
da doutrina e da jurisprudência: a) a que se seguiu à promulgação da Constituição
de 1988; b) a que se corporificou a partir das mudanças constitucionais levadas a
efeito no Governo Fernando Henrique e continuadas no Governo Lula. Com base
nessa evolução o País procura, sob nova perspectiva, solucionar as principais
questões relacionadas com a tensão entre mínimo existencial e direitos sociais,
sem romper com os princípios orçamentários, máxime a reserva do possível.

II - A problemática surgida com o


advento da constituição de 1988
A Constituição Federa! de 1988 trouxe extensa enumeração dos direitos
sociais nos arts. 6oe 7o, incluindo-os na seção intitulada “Direitos Fundamentais”.
Não recebeu a complementação da lei ordinária, pois foram poucas as regras
surgidas para a efetividade dos direitos sociais. Mas a nova topografia constitu­
cional, em País com longa tradição positivista, levou à preponderância da tese da
assimilação dos direitos sociais pelos fundamentais, na doutrina, na jurisprudên­
cia e nas definições administrativas de políticas publicas.
1Professor Titular de Direito Financeiro na Universidade do Estado do Rio de Janeiro

O mínimo existencial, os direitos sociais e os desafios


de natureza orçamentária 69
, 1. Doutrina
1.1. As posições iniciais
No plano da doutrina passou a prevalecer a idéia de que os direitos sociais l
eram direitos a prestações originárias, por influência do constitucionalismo ale- ;
mão de corte social-democrata das décadas de 50 a 70 e da obra do jurista portu­
guês J. J. Gomes Canotilho.
Com efeito, a corrente da social-democracia, principalmente na Alemanha, i
radicalizara o seu discurso, para defender o primado dos direitos sociais. O no- !
tável grupo de constitucionalistas germânicos que pontificou nas “décadas de 1
ouro” do século XX (1950 a 1970), quando o Ocidente assistiu ao extraordinário ;
incremento da riqueza das nações, defendia a prevalência dos direitos sociais (
mediante algumas teses básicas:
a) todos os direitos sociais são direitos fundamentais sociais;2
b) os direitos fundamentais sociais são plenamente justiciáveis, indepen- :
dentemente da intermediação do legislador;3 i
c) os direitos fundamentais sociais são interpretados de acordo com princí- j
pios de interpretação constitucional, tais como os da máxima efetividade, con- j
cordância prática e unidade da ordem jurídica.4
A Constituição portuguesa de 1976 estabelecia, em texto ulteriormente mo- i
dificado (1982, 1989 e 1997), que incumbe ao Estado a obrigação de “promover j
o bem-estar e a qualidade de vida do povo, a igualdade real entre os portugueses j
e a efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais, mediante a transfor- í
mação das estruturas econômicas e sociais, designadamente a socialização dos |
principais meios de produção, e abolir a exploração e a opressão do homem pelo
homem”. Coube ao jurista J. J. Gomes Canotilho captar a mensagem dos cons- i
titucionalistas da Alemanha social-democrata e introduzi-la em Portugal, para a !
interpretação do texto da Constituição de 1976; defendia o insigne jurista a idéia |
de uma Constituição Dirigente, que definiria direitos a prestações originárias, l
que valeriam independentemente da interpositio legislatoris.5 Posteriormente o i
constitucionalista lusitano modificou as suas opiniões básicas, como veremos j
adiante. ;
2 Cf. HÄBERLE, Peter Die Verfassung des Pluralismus Königstein: Athenäum. 1980, p 18 1• "Todas as j
diferenças são de grau: por exemplo, todos os direitos fundamentais são direitos fundamemais sociais (.soziale |
Grundrechte) em sentido amplo”. [
3 ld„ ibid., p 185 deslocava o princípio da reserva de lei forma), quanto aos direitos sociais, para uma difusa J
reserva de processo. y j
4 Importantíssimas foram as contribuições de SCHNEIDER, Peter. “Prinzipien der Verfassungsinteipretation” j
Veröffentlichungen der Vereinigung der Deutschen Staatsrechtslehrer 20: 1-52, 1963 c de EHMKE, Horst J
“ Prinzipien der Verfassungsinterpretation’', ibidem, p. 53-102, 1963. j
5 Constituição Dirigente e Vincularão do Legislador. Coimbra: Coimbra Ed , 1982, p 371 “direitos subjetivos '
públicos, sociais, econômicos e culturais, mesmo na parte em que pressupõem prestações do Estado”. Direito 1
Constitucional. Coimbra. Almedina. 1981. p. 193: "o Status social do cidadão pressupõe, de foi ma inequívoca. ;
o direito a prestações originárias (saúde, habitação, ensino, etc Originäre Leistungsansprucheii)". t

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No Brasil a influência do pensamento germânico se fez sentir sobretudo
através das traduções e referências feitas por Canotilho. A doutrina brasileira dos
anos 80 passou a defender o primado dos direitos sociais e a sua plena efetividade.
Paulo Lopo Saraiva falou em mandado de segurança dos direitos sociais.6 Celso
Antônio Bandeira de Mello defendeu a materialidade da idéia de igualdade.7 Eros
Grau8e Paulo Bonavides9fundaram as suas idéias sobre os direitos sociais na tese da
efetividade das normas programáticas. Sugestiva obra sobre o tema desenvolveu-a,
a partir do final dos anos 80, Luís Roberto Barroso, apoiando-se em quatro vetores
principais: a) a plena exequibilidade das normas definidoras de direitos sociais;101b)
a função emancipadora da interpretação jurídica;" c) a viabilidade do mandado de
injunção para a garantia dos direitos sociais;12d) a defesa da posição progressista.13
Idéias semelhantes foram adotadas por A. Krell" e Clemerson Cleve.13
6 Garantia Constitucional dos Direitos Sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Forense. 1983, p. 28 "O üneilo social
constitucional é um direito fundamental, ínsito à pessoa humana, que. sem o exercício deste, jamais poderá
realizar seus mínimos objetivos”
7 “Eficácia das Normas Constitucionais sobre Justiça Social”. Revista de Direito Público 57/58 255. 1981.
“todas as normas constitucionais concernentes à justiça social” geram direitos que "são verdadeiros direitos
subjetivos na acepção mais comum da palavra".
* Direitos. Conceitos e Normas Jurídicas. São Paulo Ed. Revista dos Tribunais, 1988, p 126: “Sustento, nes­
tas condições, que as normas constitucionais programáticas, sobretudo - repita-se - as atributivas de direitos
sociais e econômicos, devem ser entendidas como diretamente aplicáveis e imediaiameme vinculantes do Le­
gislativo, do Executivo c do Judiciário”
9 Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1980: “O Estado de Direito do constitucionalismo social
precisa de absorver a programaticidade das normas constitucionais” (p. 197): “Não se deve por outro lado es­
quecer que a programaticidade das normas constitucionais nasce abraçada à tese dos direitos fundamentais Os
direitos sociais, revolucionando o sentido dos direitos fundamentais, conferiu-lhes nova dimensão, tendo sido
inicialmente postulados em bases programáticas" (p. 208) O Professor cearense mantém alé hoje essas idéias
-cf. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2000, p 2 1 1 e seguintes.
10 O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Limites e Possibilidades da Constituição Brasi­
leira. Rio de Janeiro: Renovar, 1990, p. 97: “Modernamente já não cabe negar o caráler jurídico c, pois, a exi­
gibilidade e acionabilidade dos direitos fundamentais, na sua tríplice tipologia. É puramente ideológica, e não
científica, a resistência que ainda hoje se opõe à efetivação, por via coercitiva, dos chamados direitos sociais"
11 Interpretação e Aplicação da Constituição. Fundamentos de uma Dogmática Constitucional Transforma-
dora. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 260: “O legislador constitucional é invariavelmente mais progressista que o
legislador ordinário. Daí que, em sua perspectiva de avanço social, devem-se esgotai todas us potencialidades
interpretativas do Texto Constitucional, o que inclui a aplicação direta das normas constitucionais no limite
máximo do possível, sem condicioná-las ao legislador infraconstitucional".
12 “O Mandado de Injunção como Novo Remédio Constitucional". Revista de Direito da Procuradoria Geral
do Estado do Rio de Janeiro 43: 101, 1991 “Aliás, é precisamente no campo dos direitos sociais que se regis­
tram os principais precedentes de omissão legislativa, cm temas como seguro-desemprego e participação nos
lucros das empresas” . Cf. tb. “Mandado de Injunção: o que foi sem nunca ter sido Uma Proposta de Reformu­
lação" Revista da Faculdade de Direito da UERJ 5. 149-155, 1997
13 Interpretação e Aplicação da Constituição, cit., p. 269: “Cuida-sc de produzir um conhecimento e uma piá-
tica asseguradoras das grandes conquistas históricas, mas igualmente comprometidos com a transfoimação das
estruturas vigentes. O esboço de uma dogmática autocrítica e progressista, que ajude a ordenar uni pais capaz
de gerar riquezas e distribuí-las adequadamente”
w “Controle Judicial dos Serviços Públicos Básicos na Base dos Direitos Fundamentais Sociais" In SARLET,
lago Wolfgang (O rg). A Constituição Concretizada Construindo Pontes com o Público e o Privado Porto Ale­
gre: Livraria do Advogado, 2000. O Autor baseia a fundamentalidade dos direitos sociais no argumento topográfi­
co (p. 40) e vislumbra "a responsabilidade dos integrantes do Poder Judiciário na conci etização c nocumpiimenlo
das normas constitucionais, inclusive as que possuem uma alta carga valorativa e ideológica” (p. 47).
13 Temas de Direito Constitucional. São Paulo. Ed. Acadêmica, 1993, p 126.
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7.2. A tese da indivisibilidade dos direitos humanos

A partir do início da década de 90, aproximadamente, houve a inflexão na


compreensão dos direitos sociais.
A tese da indivisibilidade dos direitos humanos, que leva a que se consi­
derem os direitos sociais como extensão dos direitos da liberdade ou como uma
especial geração de direitos com as mesmas características e fundamentos dos
direitos de Ia geração (direitos individuais ou da libefdade), passou a ser mui­
to seguida após o colapso do socialismo real e a crise do Estado de Bem-estar „
Social, simbolizados na queda do muro de Berlim (1989). ;
No Brasil os internacionalistas defendem a teoria da indivisibilidade,16 fun­
dada em declarações e pactos sobre direitos humanos e sociais, mas chegam à
conclusão de que os direitos sociais não são plenamente justiciáveis.17
Influência marcante, nesse período, foi a de Norberto Bobbio, que em tra­
balho largamente difundido no Brasil, equipara os direitos sociais (de 2a geração)
aos fundamentais e lhes estende a retórica dos direitos humanos, em busca de
uma eficácia que ele próprio reconhece não ser plena, tendo em vista que “o
problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de
justificá-los, mas o de protegê-los";18 em outra passagem de sua obra anota que
o reconhecimento de direitos sociais ao lado dos direitos da liberdade é uma das
características da “esquerda”.19
Na Alemanha a mudança também foi considerável. Alguns autores sociais-
democratas emudeceram após a queda do muro de Berlim, como foi o caso de
Horst Ehmke, ou mudaram o rumo da temática, como P. Háberle, que passou a se
interessar pelos problemas da Constituição Européia. Outros, embora continuem
a falar em direitos fundamentais sociais (soziale Grundrechte), não lhes dão o
sentido de veros direitos fundamentais, senão que os subordinam à justiça social
e entendem que constituem meras diretivas para o Estado, pelo que não se con­
fundem com os direitos da liberdade.20
16 Cf. MELLO. Celso de Albuquerque. "O § 2o do art. 5° da Constituição Federal” . In TORRES, Ricardo i
Lobo (Org.). Teoria dos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro Renovar, 2001, p. 7 "A posição da ONU de '
que eles são indivisíveis é adotada apenas pelos internacionalistas e abandonada ou esquecida pelos constiiu-
cionalistas”.
17 CANÇADO TRINDADE, A. A. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Porto Alegre'
Sérgio Antonio Fabris, 1997, v. 1, p. 369, reconhece o déficit de justiciabilidade que cerca tais direitos, para a :
proteção dos quais "ainda resta um longo caminho a percorrer". Cf. tb. MELLO, Celso de Albuquerque “Algu- :
mas Notas sobre os Direitos Humanos, Econômicos e Sociais”. In; Anais do VI Seminário Nacional de Pesquisa I
e Pós-Graduação em Direito. Rio de Janeiro: UERJ, 1997, p 60; PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o !
Direito Constitucional Internacional São Paulo. Max Limonad, 2000, p 175: "Se os direitos civis e políticos ;
devem ser assegurados de plano pelo Estado, sem escusa ou demora - têm a chamada auto-aplicabilidade - os f
direitos sociais, econômicos e culturais, por sua vez, nos termos em que estão concebidos pelo Pacto, apicsen- t
tam realização progressiva". j
18 A Era dos Direitos. São Paulo: Campus, 1992, p 24. ’
19 Direita e Esquerda. Razões e Significados de uma Distinção Política. São Paulo; UNESP, 1995. p. 109.
20 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrerhts der Bundesrepublik Deutschland. Karlsiuhe: C F. Mül- '
ler, 1999, p. 131: “Ao contrário, a Lei Fundamental não conhece direitos fundamentais (Grundrechte) (ongi- |

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Alteração radical em seu posicionamento teórico ocorreu com o professor
português J. J. Gomes Canotilho, que passa a reconhecer que “os direitos sociais
não são mais que pretensões legalmente reguladas” e que “o legislador determina
o que é um direito social, mas não está vinculado aos direitos sociais”.*21 rela-
tívizando as suas anteriores afirmações para reconhecer como inequívoco que
a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais se caracteriza: 1) pela
graduação de sua realização; 2) pela dependência financeira do orçamento do
Estado; 3) pela liberdade de conformação do legislador quanto às políticas de
realização de tais direitos; 4) por serem insuscetíveis de controle jurisdicional os
programas políticos-legislativos, a não ser quando se manifestem em clara con­
tradição com as normas constitucionais ou quando apresentam dimensões pouco
ravoáveis.22 Canotilho hoje se aproxima das posições do seu conterrâneo Jorge
Miranda,23 que também exerce muita influência sobre os autores brasileiros, mas
que teve trajetória intelectual mais estável desde os tempos da Revolução dos
Cravos.
No Brasil, além dos internacionalistas referidos no início deste item, inúme­
ros constitucionalistas passaram a reconhecer a convivência dos direitos sociais
com os fundamentais. Luís Roberto Barroso mitigou as suas afirmações iniciais
para se aproximar de posições pós-positivisias e valorativas, abrindo espaço para
a temática do mínimo existencial e transmigrando do paradigma das normas para
o dos princípios.24
A tese da indivisibilidade dos direitos fundamentais chega a alguns impas­
ses: não consegue resolver o problema da eficácia dos tais direitos fundamentais
sociais sem a intermediação do legislador; banaliza a temática dos direitos da
nários - originäre - , portanto existentes independentemente de sistemas de prestações disponíveis Icgalmcnte
regulados), que se deixem qualificar como direitos de ter parte (Teilhaberechte) no sentido de direitos indivi­
duais (individuelle Rechte) à participação nas prestações estatais. Ela se rcstiinge essencialmenle à garantia
dos tradicionais direitos humanos e civis (Menschen- und Bürgerrechte), renuncia aos direitos fundamentais
sociais (soziale Grundrechte) e em vez disso abre o caminho para a noimatização da fónnula do Estado Social
de Direito (sozialen Rechtsstaat), que não fundamenta diretamente pretensões individuais De acordo com esta
situação constitucional, não é possível buscar uma conversão de direitos fundamentais (Grundrechte) em direi­
tos de participação em prestações estatais (Teilhaberechte), BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang “ Die sozialen
Grundrechte im VerfassungsgefUge". In: --. Staat, Verfassung, Demokratie. Frankfurt Suhrkamp. 1002. p 158
"... a consideração dos direitos fundamentais sociais (sozialer Grundrechte) como mandados constitucionais
(Verfassungsaufträge) na Lei Fundamental deve conduzir a diferenciá-los c separá-los dos direitos fundamen­
tais (Grundrechten). Se não podem exibir as garantias dos direitos fundamentais, não deveriam formular-se c
apresentar-se como direitos fundamentais".
21 “Metodologia “Fuzzy" y “Camaleones Normativos” en la Problemática Actual de los Derechos Economicos,
Sociales y Culturales’. Derechos y Libertades 6: 42, 1998.
22 Ibid., p. 44.
11A Constituição de 1976. Formação, Estrutura, Princípios Fundamentais Lisboa Livraiia Petrony, 1978,
p. 3 3 9 ,--------- Manual de Direito Constitucional. Direitos Fundamentais (tomo IV). Coimbra: Coimbra
Ed., 2000, p. 100.
24 “Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro (Pós-modermdade. Teoria
Crítica c Pós-Positivismo). Revista de Direito Administrativo 225: 5-37, 2001 o núcleo material elementar da
dignidade da pessoa humana é “composto do mínimo existencial, locução que identifica o conjunto dc bens e
utilidades básicas para a subsistência física e indispensável ao desfiute da própria liberdade” (p 31 )

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■n I L

liberdade sem fortalecer a dos direitos da justiça; apóia-se na idéia de “justiça


social”, que postula a distribuição da riqueza social entre classes, mas não leva
à adjudicação de parcelas dessa riqueza a indivíduos concretos; tenta substituir
as políticas públicas pela subsunção no processo judicial, atitude típica do ba- j
charelismo; amortece a dimensão reinvindicatória da cidadania; busca, enfim, a
própria quadratura do círculo.15

2. A jurisprudência
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal inviabilizou a utilização do
mandado de injunção (art. 5o, inciso LXXI, da CF), para a garantia assim dos
direitos fundamentais que dos direitos sociais, até mesmo para coarctar os abusos
que seriam acometidos em decorrência da extensão daquele remédio constitu­
cional de origem norte-americana para garantir qualquer direito constitucional,
como sugeriram processualistas de prestígio.26

III - As mudanças constitucionais a partir do


governo Fernando Henrique (1995-2002)
1. Aí Emendas Constitucionais
No período do Governo Fernando Henrique e no inicio do Governo Lula
a Constituição Brasileira foi profundamente reformada. Interessam-nos aqui as
Emendas Constitucionais n°s 14/96 (educação pública e vinculação de receitas).
n° 29/2000 (vinculação de receitas da União, Estados e Municípios a ações e ser­
viços públicos de saúde), n° 30/2000 (flexibilização do cumprimento de precató­
rios judiciários) e n° 31 (criação do Fundo de Combate e Erradicação de Pobreza)
e 42 (Reforma Tributária, com autorização para vinculação de receita a programa
de apoio à inclusão e promoção social - art. 204).

2. A legislação ordinária
A legislação ordinária, ampliando a tendência que se iniciara um pouco
antes e que se complementou por providências que ainda estavam sob apreciação
do Congresso Nacional e foram aprovadas pelo Governo Lula, trouxe inúmeras
novidades:
a) regulamentação do sistema único de Saúde (SUS) e da Agência Nacional
da Saúde (Lei 8.080, de 19.9.90, e Lei 9961.de 28.01.2000);
-------------------- v
15 Cf V1LLEY, Michel. Le Droit ei les Droits de l'Homme. Pans: Presses Universitaries de France. 1983, p.
13: "uma certa literatura cristã progressista cultiva o sonho de reconciliar os direitos do homem de 1789 c os
“direitos sociais e econômicos”. Mas isso é a quadratura do círculo". (mais c'est la quadrature du i ercle).
26 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. “O Mandado de Injunção e a Legalidade Financeira". Revista de Direito Admi­
nistrativo 187: 94-110, 1992.

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b) fornecimento de remédios para aidéticos (Lei Sarney: n° 9313/96);
c) regulamentação da assistência social (Lei 8742, de 7.12.93);
d) programa bolsa escola (Lei 10.219, 11.04.01);
e) estatuto do idoso (Lei n° 10.741, 1/10/03);
f) renda básica de cidadania (Lei 10.835, 8.01.04);
g) programa bolsa família (Lei 10.836, 9.01.04).
A Administração Federal (Governo Lula) implantou também o programa
símbolo “Fome Zero”.

3. A doutrina
A doutrina modificou-se radicalmente, abandonando o positivismo socioló­
gico e adotando a visão principiológica em que se realçam:
a) a redução da jusfundamentalidade dos direitos sociais ao mínimo existen­
cial e ao núcleo essencial dos direitos da justiça, o que exige a distinção entre di­
reitos da liberdade e direitos econômicos e sociais de natureza contraprestacional,
pois estes últimos só se metamorfoseiam em direitos de liberdade quando tocados
pelos interesses fundamentais;27
b) a defesa da necessidade de implementação de políticas públicas pelo
Legislativo e pela Administração, como caminho democrático para a afirmação
de direitos sociais a ser trilhado com base na ponderação dos diversos interes­
ses insuscetíveis de controle jurisdicional, que não se manifesta nas questões
políticas;
c) o equilíbrio entre os aspectos da liberdade e da justiça, que passa pela
maximização do mínimo existencial e pela minimização dos direitos sociais em
sua extensão, mas não em sua profundidade;
d) a possibilidade de superação do princípio da reserva orçamentária no
caso de contradição incontornável com o princípio da dignidade humana, con­
substanciado no direito a prestação estatal jusfundamental.
Chegaram ao Brasil, no final da década de 90, as teorias que justificam e
fundamentam o mínimo existencial, elaboradas principalmente no ambiente do
neokantismo que vem predominando no campo da filosofia política e do direito.
Dignas de registro, pela influência exercida, as obras de Ravvls,28 Habermas29 e
Alexy.30
27 Cf. TORRES. Ricardo Lobo. “A Jusfundamentalidade dos Direitos Sociais". Revista de Direito da Associa­
ção dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro 12: 3S5, 2003
28 A Theory o f Justit e.Oxfoid: Oxford Umversity Press, 1980.
M Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurslheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaat. Frank­
furt: Suhrkamp. 1992
30 Theory der Gundrechte. Frankfurt' Suhrkamp, 1986

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3.1. As teses defendidas na UERJ
Tirante a colaboração dos velhos liberais brasileiros, como Rui Barbosa,’1
o tema do mínimo existencial não vinha despertando o interesse de filósofos do
direito e de juristas no Brasil. Alguns pensadores de índole liberal criticavam a
tese da eficácia plena dos direitos sociais, mas não ofertavam construções teóri­
cas sobre o mínimo existencial.32
De algum tempo esta parte vem crescendo o interesse pela matéria, princi­
palmente a partir dos trabalhos produzidos no âmbito dos Cursos de Mestrado e
Doutorado da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Já havíamos escrito sobre o tema em diversas oportunidades.33 Dissertações e
teses defendidas naquela Faculdade de Direito foram ou estão para ser publica­
das, entre outros, por Gustavo Amaral,34 Waleska Marcy Rosa,33 Ana Paula de
Barcellos,36 Marcos Maselli de Gouvêa37 e Flávio Galdino.38
Assim é que Gustavo Amaral, influenciado por Holmes e Sunsiein, des­
considera a distinção entre direitos fundamentais e direitos sociais, por partir da
premissa de que todos os direitos custam dinheiro; combina o grau de essencia-
lidade da prestação pública, que “está ligado ao mínimo existencial, à dignidade
da pessoa humana”, com o de excepcionalidade da ação estatal, de modo que
“quanto mais essencial for a prestação, mais excepcional deverá ser a razão para
que ela não seja atendida”, cifrando-se a justificativa da denegação apenas na
existência de circunstâncias concretas que impedem o atendimento de todas que
demandam prestações essenciais”.39 A proposta de Gustavo Amaral apresenta a
desvantagem de exigir a determinação de conceitos abertos constantes de duas
variáveis (essencialidade e excepcionalidade) de difícil interseção; tem o mérito
de criar mecanismo para a interpretação da exigibilidade das prestações de saúde,
31 Relatório do Ministro da Fazenda. Obras Completas, 1891, v. 18, t 3 Rio de Janeiro MEC, 1949, p. 62.
32 REALE, Miguel “ConstituiçãoTerceiro-Mundista". Conviviitnt 31 (6): 497, 1988 recomenda que se descon­
fie ‘‘dos dispositivos ingênuos que prometem o paraíso a todos os brasileiros graças aos recursos do Estado”;
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo; Saraiva, 1996. p 51: “A
garantia que o Estado dá a esses direitos (sociais) é a instituição de serviços públicos a eles correspondentes.
Trata-se de uma garantia institucional, portanto"; HORTA, Raul Machado “Constituição e Direitos Sociais”
Revista de Direito Comparado 2: 66, 1998; MERQUIOR, José Guilherme. A Natureza do Protesso Rio de
Janeiro. Nova Fronteira, 1982, p. 102.
33 “O Mínimo Existencial e os Direitos Fundamentais”. Revista de Direito Administrativo 177 29-49. 1989,
“A Cidadania Multidimensional”. In: TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos Direitos Fundamentais Rio
de Janeiro: Renovar, 2001, p. 243-342;--------- . Tratado de Direito Constitucional Finam eiro e Tributário. O
Orçamento na Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, v. 5, p. 172 e seguintes.
34 Direito, Escassez <4 Escolha. Em busca de Critérios Jurídicos para Lidar com a Escassez de Recursos e as
Decisões Trágicas Rio de Janeiro: Renovar, 2001
35 Direito à Moradia. Rio de Janeiro: UERJ, 2000, mim. ''
36 A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana Rio de
Janeiro: Renovar, 2002.
37 O Controle Judicial das Omissões Administrativas. Novas Perspectivas de Implantação dos Direitos Presta-
cionais. Rio dc Janeiro: Forense, 2002.
38 Direitos não Nascem em Árvores. Rio de Janeiro' UERJ, 2001, mim.
39 Op. cil., p. 216

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que desde a Lei 8.080/90 ficam na zona cinzenta entre os direitos fundamentais
e os sociais.
Ana Paula de Barcellos afirma que “o chamado mínimo existencial, forma­
do pelas condições materiais básicas para a existência, corresponde a uma fração
nuclear da dignidade da pessoa humana à qual se deve reconhecer a eficácia jurí­
dica positiva ou simétrica”.40 Continua a jovem autora: *0 mínimo existencial que
ora se concebe é composto de quatro elementos, três materiais e um instrumental,
a saber: a educação fundamental, a saúde básica, a assistência aos desamparados
e 0 acesso à justiça. Repita-se, ainda uma vez, que esses quatro pontos corres­
pondem ao núcleo da dignidade da pessoa humana a que se reconhece eficácia
jurídica positiva e, afortiori, 0 status de direito subjetivo exigível diante do Poder
Judiciário”.41
Marcos Maselli de Gouvêa desenvolve 0 tema da sindicabilidade dos direi­
tos prestacionais, concluindo: ‘‘A teoria dos direitos fundamentais desponta nos
dias de hoje como conceito-chave de nodal importância para a sindicação das
prestações materiais do Estado. Além de eventualmente suprir omissões no rol
traçado legal e constitucionalmente e de densificar posições jurídicas positivadas
de modo incompleto ou vago, ela determina a prioridade das prestações abran­
gidas no âmbito do mínimo existencial sobre outros encargos do poder público.
Este critério jurídico de prioridade é o que permite ao magistrado superar os obs­
táculos doutrinários da reserva do possível e da separação de poderes”.42
Flávio Galdino, no trabalho com o sugestivo título ‘‘Direitos não Nascem
em Arvores”, esforça-se para “demonstrar que 0 senso comum formado no pen­
samento jurídico brasileiro em torno dos direitos fulcra-se em premissa equivoca­
da, qual seja, de que existem direitos fundamentais cuja tutela por parte do Estado
independe de qualquer ação positiva, e, portanto, de qualquer custo”.43

3.2. A doutrina de Ingo Sarlet


O Prof. Ingo Wolfgang Sarlet, da Universidade Católica do Rio Grande do
Sul, vem produzindo obra singular no campo da teoria do mínimo existencial. A
sua familiaridade com o direito alemão e a alentada bibliografia germânica que
utiliza abrem-lhe novas perspectivas para 0 exame da matéria, embora nem sem­
pre utilize a expressão “mínimo existencial”, preferindo a terminologia “direitos
fundamentais sociais’.
No livro A Eficácia dos Direitos Fundamentais 0 jurista gaúcho procede a
longa análise da questão dos direitos fundamentais, que divide em “direitos fun­
damentais na qualidade de direitos de defesa” è “direitos fundamentais como di-
40 Op rit.. p. 248.
41 Ibid., p. 258
42 Op. t il., p. 382 (na versão mímeografada).
43 Ibid. p. 391

O mínimo existencial, os direitos sociais e os desafios


de natureza orçamentária 77
reitos a prestações”.44 Os direitos sociais prestacionais, como direitos subjetivos
a prestações, que são direitos fundamentais sociais, têm certos limites de eficácia,
principalmente a “reserva do possível” e a competência do Legislativo.45 Diante
dessas dificuldades Ingo Sarlet passa a analisar o direito à garantia de uma exis­
tência digna, consubstanciado na problemática do salário mínimo, da assistência
social, do direito à previdência social, bem como o direito social à educação,46
aos quais reduz a jusfundamentalidade dos direitos sociais. Conclui com as se­
guintes palavras, que resumem excelentemente o seu pensamento: “Assim, em
todas as situações em que o argumento da reserva de competência do Legislativo
(assim como o da separação dos poderes e demais objeções aos direitos sociais
na condição de direitos subjetivos a prestações) esbarrar no valor maior da vida
e da dignidade da pessoa humana, ou nas hipóteses em que, da análise dos bens
constitucionais colidentes (fundamentais, ou não) resultar a prevalência do direi­
to social prestacional, poder-se-á sustentar, na esteira de Alexy e Canotilho, que,
na esfera de um padrão mínimo existencial, haverá como reconhecer um direito
subjetivo definitivo a prestações, admitindo-se, onde tal mínimo é ultrapassado,
tão somente um direito subjetivo prima facie, já que - nesta seara - não há como
resolver a problemática em termos de um tudo ou nada”.47
No livro intitulado Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais
na Constituição Federal de 1988, Ingo Sarlet deixa claro que o mínimo existen­
cial está imbricado na dignidade humana,48 chamando a atenção para dois pontos
relevantes: a) a dignidade humana é princípio fundante assim dos direitos de
defesa que dos direitos sociais a prestações;49 b) a dignidade humana se abre para
o jogo de ponderação com outros princípios constitucionais diante de interesses
emergentes.50
Trabalho importante para fixar o contorno da eficácia dos direitos sociais
escreveu-o o jurista gaúcho sob a forma de artigo, para discutir o problema da
proibição de retrocesso, no qual há também a interação entre os direitos pres­
tacionais e os direitos fundamentais, tendo em vista que a vedação de eficácia
retrooperante de modificação jurídica de direitos sociais se vincula ao respeito ao
44 A Eficácia dos Direitos Fundamentais Porio Alegre: Livraria cio Advogado, 2001, p 170 e seguintes
45 Ibid , p. 265.
46 Ibid., p. 287 e seguintes.
47 Ibid., p. 324 Cf ib., no mesmo sentido: SARLET, Ingo. "Os Direitos Fundamentais Sociais na Constituição
de 1988" In: —. (Org.) O Direito Público em Tempos de Crise. Estudos em Homenagem a Ruy Ruben R um hal
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p 164: “A solução preconizada poi Alexy afina com a natureza
pnncipiológiea da norma contida no art 5o, tj Io, da CF, j í que esta, impondo a otimização (maximização) da
eficácia de todos os direitos fundamentais, não poderia admitir nem uma realização plena dos (e de todos)
direitos sociais prestacionais, pena de sacrifício de outros princípios ou direitos fundamentais colidentes,
nem a negação absoluta de direitos subjetivos a prestações, pena de sacrifício de outros bens igualmente
fundamentais'.
48 Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituirão Federal de 1988 Poito Alegre:
Livraria do Advogado, 2001, p. 60.
49 Ibid., p. 102.
50 Ibid., p 85 c seguintes.

78 Ricardo Lobo Torres


direito de propriedade, que estaria conspurcado se violadas as situações jurídicas
consoliâadas.51
Em artigos mais recentes Ingo Sarlet vem buscando mapear os direitos fun­
damentais sociais, a ver a sua exata efetividade; assim aconteceu com o direito à
moradia52 e o direito à saúde.53

4. A jurisprudência
O Supremo Tribunal Federal não tem dispensado atenção ao problema do
mínimo existencial, a não ser incidentalmente.
No que concerne à imunidade tributária, como proteção negativa aos direi­
tos fundamentais sociais, o STF tem se recusado a analisá-la a partir da ótica dos
direitos humanos. Ainda sensibilizado pela tese positivista de que imunidade
tributária é qualquer não-incidência constitucionalmente qualificada, tem recusa­
do que a proteção às entidades filantrópicas e às instituições de assistência (art.
150, VI, c, CF) se restrinja àquelas que gratuitamente atendam à camada mais
pobre da população.54 Levou anos para decidir que a imunidade não se aplica às
instituições de previdência fechada, que sabidamente têm por objetivo garantir
suplemento de aposentadoria a funcionários das empresas estatais e outras que
não se preocupam com os pobres.55
Recentemente instaurou-se o debate sobre o fornecimento de remédios e a
entrega de prestações de saúde. O STF tem caminhado no sentido maximalista,
dilargando o conceito de direitos fundamentais.56
51 " 0 Estado Social de Direito, a Proibição de Retrocesso e a Garantia Fundamental da Propriedade". Kcvi.ua de
Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro 5 131-150, 2001
52"O Direito Fundamental à Moradia na Constituição, Algumas Anotações a Respeito de seu Contexto, Conteú­
do e Possível Eficácia”. Arquivos de Direitos Humanos n ° 4 - no prelo: "Considerando apenas as possibilidades
apontadas ao longo do presente texto (e já bastaria aqui a praticamente incontroversa eficácia da dimensão
negativa do direito à moradia e dos direitos sociais em geral), constata-se que também o direito à moradia não
precisa (nem deve) ser interpretado como uma promessa de que todos passarão a ter, desde logo e por decreto
normativo, plena condição de fruir deste direito, sem que com esta afirmação se esteja (muito antes pelo contrá­
rio) a repudiar a sua possível eficácia e efetividade".
53“Algumas Considerações em tomo do Conteúdo, Eficácia e Efetividade do Direito à Saúde na Constituição de
1988". Revista Diálogo Jurídico n° 10, p. 13 (www direitopúblit o.com.br). "Embora tenhamos que reconhecer a
existência destes limites fáticos (reserva do possível) e jurídicos (reserva parlamentar em matéria oiçamemária)
implicam certa relativização no âmbito da eficácia e efetividade dos direitos sociais prestacionais, que, de resto,
acabam conflitando entre si, quando se considera que os recursos públicos deverão ser distribuídos para atendi­
mento de todos os direitos fundamentais sociais básicos, sustentamos o entendimento, que aqui vai apresentado
de modo resumido, no sentido de que sempre onde nos encontramos diante de prestações de cunho emergenetal,
cujo indeferimento acarretaria o comprometimento irreversível ou mesmo o sacrifício de outros bens essenciais,
notadamente - em se cuidando da saúde - da própria vida, integridade física c dignidade da pessoa humana,
haveremos de reconhecer um direito subjetivo do particular â prestação reclamada cm Juízo"
54 Cf. RE 74.792, Ac. da 1* T , de 15.5 73. Rei. Min. Djaci Falcão, RTJ 66: 257, RE 93.463-RJ, Ac. da 2" T„ de
16 4.82, Rei Min Cordeiro Guerra, RTJ 101: 769
55 Cf. RE 202 700, Ac. do Pleno, de 8.11.01, Rei Min. Maurício Corrêa, Informativo STF n“ 249, 5-9/11/01.
54 Cf. TORRES, Ricardo Lobo "O Supremo Tribunal Federal e as Decisões Minimalistas" Arquivos de Direi­
tos Humanos 3: 388-391, 2001.
O mínimo existencial, os direitos sociais e os desafios
de natureza orçamentária 79
A jurisprudência dos tribunais brasileiros, máxime a dos de instância infe­
rior, diante da lacuna deixada pelo mandado de injunção, dilargou a aplicação da
ação civil pública, espécie brasileira de class action, com o que obteve notáveis
progressos na afirmação do mínimo existencial. Papel importante foi exercido
pelo Ministério Público, nomeadamente através da assinatura de “termos de ajus­
te de conduta” com os agentes da Administração, mediante os quais se institucio­
nalizaram as soluções judiciais.

IV - Os desafios atuais de natureza orçamentária


Mas ainda existe uma zona de penumbra a despertar intensas discussões
no Brasil. Parece-nos que a solução terá que vir pela maior clareza na distinção
entre mínimo existencial (ou direitos fundamentais sociais) e direitos sociais, a
ver o exato limite dentro do qual é obrigatório prever e implementar a entrega de
prestações públicas.

I. Reserva do possível
Uma diferença importante entre o mínimo existencial e os direitos eco­
nômicos e sociais: enquanto aquele pode prescindir da lei ordinária, os direitos
econômicos e sociais dependem integralmente da concessão do legislador,57 que
pode ser a orçamentária. As normas constitucionais sobre os direitos econômi­
cos e sociais são meramente programáticas: restringem-se a fornecer as diretivas
ou a orientação para o legislador e não têm eficácia vinculante.58 As prestações
positivas para a proteção desses direitos implicam sempre despesa para o ente
público, insuscetível de ser imputada à arrecadação dos impostos ou, sem lei
específica, aos ingressos não-contraprestacionais. Por isso mesmo carecem de
status constitucional, eis que a Constituição não se envolve com autorizações de
gastos públicos nem se imiscui com problemas econômicos conjunturais,59 as­
suntos reservados com exclusividade à lei ordinária de cada qual das três esferas
57 A doutrina alemã serve-se de trocadilho para dizer que os direitos sociais são concedidos {gewährt), e não
garantidos {gewährleistet) — cf. HUBER. Hans. “Soziale Verfassungsrechte?". In Die Freiheit des Bürgers tm
schweizerischen Recht- Zürich: Polygraphischer Verlag, 1948, p. 157, BETHGE, Herbert. "Aktuelle Problem
der Grundrechtsdogmatik”. Der Staat 24(3) 376, 1985.
58 K. HESSE, Grundziige des Verfassungsrecht..., ciL, p. 89; BADURA, Peter. "Das Prinzip der sozialen Grun­
drecht und seine Verwirklichung im Recht der Bundesrepublik Deutschland" Der Staat 14- 45, 1975. CORSO,
Guido. "I Dintto Sociali nella Costituzione Italiana" Rivista Trunestrale di Diritto Pttbblico 1981 762; VIEI­
RA DE ANDRADE, José Carlos Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbta:
Almedma, 1983, p. 209: "Só uma vez emitida a legislação destinada a executar os preceitos constitucionais em
causa é que os direitos sociais se consolidarão como direitos subjetivos, mas, então, não valem como direitos
fundamentais, mas enquanto direitos concedidos por lei”.
59 PERRY, M. The Constitution, the Courts and Human Rights. New Hävern Yale University Piess, 1982, p.
164; HETTLAGE, K. M. "Die Finanzverfassung im Rahmen der Staatsverfassung” VVDStRL 14: 9, 19S6,
ISENSEE, Joseph “Verfassung ohne soziale Grundrechte”. Der Staat 19(3): 381, 1980, observa que a proteção
dos direitos sociais depende da conjuntura econômica ( Wirtschafiskonjunktur) e que as "normas constitucionais
não afastam as crises econômicas” {Verfassungsnormen bannen nullt Wirtschaftskrisen)

80 Ricardo Lobo Torres


de gdverno.60 Sucede que, a partir do Governo de Fernando Henrique, algumas
emendas constitucionais criaram vinculações das receitas da União, Estados e
Municípios às despesas com a educação, a saúde e a pobreza e estabeleceram
discriminações de despesa entre os três níveis de governo, sem, todavia, distin­
guirem entre direitos fundamentais e sociais. A contar das vinculações criadas
pelas EC 14/1996 (educação), 29/2000 (saúde), 31/2000 (erradicação da pobre­
za), portanto, aumentou a confusão entre mínimo existencial e direitos sociais, o
que levou diretamente à judicialização da política orçamentária, especialmenle
pelas instâncias inferiores do Judiciário, que passaram a sacar da literal idade do
texto constitucional a fonte de legitimação para a outorga individual das presta­
ções estatais.
Os direitos econômicos e sociais existem, portanto, sob a “reserva do pos­
sível”61 ou da “soberania orçamentária do legislador”,62 ou seja, da reserva da lei
instituidora das políticas públicas, da reserva da lei orçamentária e do empenho
da despesa por parte da Administração. A pretensão do cidadão é à política pú­
blica e não à adjudicação individual de bens públicos.

2. Reserva orçamentária
A proteção positiva do mínimo existencial não se encontra sob a reserva do
possível, pois a sua fruição não depende do orçamento nem de políticas públicas,
ao contrário do que acontece com os direitos sociais.
Em outras palavras, o Judiciário pode determinar a entrega das prestações
positivas, eis que tais direitos fundamentais não se encontram sob a discriciona-
60 A Suprema Corte americana, no importante caso National League o f Cine.', v. Uscry (426 US 833. 1976).
invalidou a lei federal que criava obrigações sociais para os estados-membros TRIBE, L "Unraveling National
League of Cities: The New Federalism and Affirmative Rights to Essential Government Services". Harvard
Law Review 90 (6): 1.067, 1977 criticou a decisão, considerando-a injusta.
61 A "reserva do possível” é tradução da expressão Vorbehalt des Môglichen cunhada pelo Tribuna) Constitu­
cional da Alemanha (BVerfGE 33: 303-333): "Os direitos a prestações (Teilhaberecht)... nào são determinados
previamente, mas sujeitos à reserva do possível (Vorberhalt des Mbgtichen), no sentido de que a sociedade deve
fixar a razoabilidade da pretensão. Em primeira linha compete ao legislador julgar, pela sua própria responsabi­
lidade, sobre a importância das diversas pretensões da comunidade, para incluí-las no orçamento, resgtiaidando
o equilíbrio financeiro g e ral.. Por outro lado, um tal mandamento constitucional não obriga, contudo, a provei
a cada candidato, em qualquer momento, a vaga do ensino superior por ele desejada, tornando, desse modo,
os dispendiosos investimentos na írea do ensino superior dependentes exclusivamemc da demanda individual
freqüentemente flutuante e influenciável por variados fatores Isso levaria a um entendimento errôneo da liber­
dade, junto ao qual teria sido ignorado que a liberdade pessoal, em longo prazo, não pode ser lealizada alijada
da capacidade funcional e do balanceamento do todo, e que o pensamento das pretensões subjetivas ilimitadas
ãs custas da coletividade é incompatível com a idéia do Estado Social Fazei com que os lecursos públicos só
limitadamente disponíveis beneficiem apenas uma parte privilegiada da população, preterindo-se outros impoi-
tantes interesses da coletividade, afrontaria justamente o mandamento de justiça social, que é concretizado no
princípio da igualdade”. In: SCHWABE, Jürgen (Org ). Cmqiienta Anos de Jurisprudent ia do Tribunal Consti­
tucional Federal Alemão. Tradução de Leonardo Martins et al. Montevideo Fundação Konrad Adenauer. 2005,
p. 663/664. Foi adotada pela doutrina germânica: ISENSEE, op. ril.. p. 372; BADURA, op. t i l , p. 36 Vem
sendo utilizado em Portugal-C f. VIEIRA DE ANDRADE, op t it., p. 2 0 1
62 ISENSEE, op. cit., p. 372 diz que as prestações sociais dependem da “soberania orçamentária do legislador”
(,Haushaltssouveranitüt des Cesetzgebers).

O mínimo existencial, os direitos sociais e os desafios


dc natureza orçamentária 81
riedade da Administração ou do Legislativo, mas se compreendem nas garantias
institucionais da liberdade, na estrutura dos serviços públicos essenciais e na
organização de estabelecimentos públicos (hospitais, clínicas, escolas primá­
rias, etc.).
Alexy já havia percebido que “uma posição jurídica prestacional está ga­
rantida definitiva e jusfundamentalmente quando: 1) a exige urgentemente o
princípio da liberdade fática (das Prinzip der faktischen Freiheit), 2) o princípio
da separação de poderes e o princípio da democracia (incluída a competência
orçamentária do Parlamento (Haushaltskompetenz des Parlaments), assim como
(3) os princípios materiais opostos (especialmente aqueles que entendem com a
liberdade jurídica de outros) são afetados de modo relativamente reduzido através
da garantia jusfundamental da posição jurídica prestacional”. Continua Alexy:
“a força do princípio da competência orçamentária do legislador (die Kraft des
Prinzips des Haushaltskompetenz des Gesetzgebers) não é ilimitada”, “nem é
um princípio absoluto (es ist kein abolutes Prinzip)'- “direitos individuais po­
dem ter mais peso do que fundamentos de política financeira (finanzpolitische
Gründe)".®
O Supremo Tribunal Federal também chegou à mesma conclusão.
a) no caso dos remédios para aidéticos (Ag. no RE 273.834),64 encampou a
afirmação do acórdão recorrido no sentido de que “a falta de previsão orçamentá­
ria não deve preocupar ao juiz que lhe incumbe a administração da justiça, mas,
apenas ao administrador que deve atender equilibradamente as necessidades dos
súditos, principalmente os mais necessitados e os doentes”;
b) no caso das creches (RE 436.996) disse o Min. Celso de Mello que
a educação infantil não se expõe “a avaliações meramente discricionárias da
Administração Pública”.65
O problema se toma mais intrincado quando o mínimo existencial aparece
mesclado com os direitos sociais, como acontece no campo das prestações de
saúde após as emendas constitucionais vinculantes (ex. EC 29/2000). Nesses ca­
sos a política pública se toma indispensável e a decisão judicial deve obrigar à
implementação da policy pelos poderes políticos (Legislativo e Executivo). A in­
sistência do Judiciário brasileiro no adjudicar bens públicos individualizados (ex.
remédios), ao revés de determinar a implementação da política pública adequada,
63 Theorie der Grundrechte, e i l , p. 465. E W. BÖCKENFÖRDE (“Die sozialen Gundrecht als Verfassungs­
gefüge”, cit., p. 156), que define os direitos fundamentais sociais como mandados constitucionais aos órgãos
políticos, reconheceu que adquirem eles as características de pretensões “à defesa contra as ofensas aos limites
c vinculações dos órgãos estatais no seu espaço de conformação política direcionado pelos mandados consti­
tucionais”
M Ac. de 31/10/00 da 2* T.. Rei. Min Celso de Mello, DJ 02.02.2001.
65 Ac. de 22/11/05 da 2’ T., Rei. Min. Celso de Mello, DJ 03.02.2006: A educação infantil, por quahju-ur-
xe como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concictização, a avaliações
meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo gover­
namental

82 Ricardo Lobo Torres


tem levado à predação da renda pública pelas elites, a exemplo do que acontece
em outros países.66
Se não prevalece o princípio da reserva do possível sobre o direito funda­
mental ao mínimo existencial, nem por isso se pode fazer a ilação de que não
deve ser observado o princípio da reserva do orçamento. A superação da omissão
do legislador ou da lacuna orçamentária deve ser realizada por instrumentos or­
çamentários, e jamais à margem das regras constitucionais que regulam a lei de
meios. Se, por absurdo, não houver dotação orçamentária, a abertura dos créditos
adicionais cabe aos poderes políticos (Administração e Legislativo), e não ao
Judiciário, que apenas reconhece a intangibilidade do mínimo existencial e deter­
mina aos demais poderes a prática dos atos orçamentários cabíveis.
Difíceis também as questões referentes a prestações não autorizadas no
orçamento e não compreendidas nas despesas gerais dos órgãos públicos sus­
tentadas pela arrecadação de impostos. O Superior Tribunal de Justiça garantiu
o pagamento de despesas de tratamento médico no exterior mediante a fixação
de indenização “a posteriori”.67 Ainda falta, no direito positivo brasileiro (e os
Tribunais não o construíram), instrumento semelhante ao do mandado de injun-
ção americano, que permita ao Judiciário vincular o Legislativo na feitura do
orçamento do ano seguinte, em homenagem a direitos fundamentais sociais (=mí-
nimo existencial), que necessitam do controle jurisdicional contramajoritário tí­
pico dos direitos essencialmente constitucionais.
Aguarda-se melhor solução orçamentária para a adjudicação de presta­
ções positivas pelo Judiciário, na hipótese em que, esgotadas as dotações, haja
possibilidade fática de utilizar créditos adicionais (suplementares ou especiais).
Os tribunais brasileiros vêm evitando o exame das questões orçamentárias. Nos
Estados Unidos foi relevante para a afirmação dos direitos fundamentais a alo­
cação de recursos e a manipulação de verbas pelo próprio judiciário, na via do
mandado de injunção, principalmente nos casos relativos à implementação dos
direitos dos presos e dos negros.68
Espera-se ainda o enfrentamento de outros problemas de direito orçamen­
tário, como o de definir se a inexistência de dinheiro afeta a entrega de prestação
prevista em dotação orçamentária. O Supremo Tribunal Federal já disse que o
Executivo não está obrigado a pagar precatório judicial se não houver recursos
* Cf. HIRSCHL-, Ran. Towards Juristorracy The Origirn and Consequentes o) lhe New Conslitutiona/ism.
Cambrtdge; Harvard University Press, 2004, p 16' “Eu argúo que a tendência global no sentido da autorização
judicia! (jiidirial empuwermant) através da constitucionalização pode ser entendida como pane e parcela de
um processo cm larga escala pelo qual a autoridade para realizar a política pública (pohcy-iuahng autharily) í
cresceiitementc transferida pelas dites hegemônicas da a retia política majoritária (m ajantaiian pohty-making
arenas) para os corpos semt-autônomos e profissionais da política pública {semtautonomons, profissional po-
lity-making bodies), com o objetivo primário de isolar as suas preferências pelas políticas públicas (polit-y
preferent es) das vicissitudes da política democrática {democraiir politic)”.
67 RESP 338.373, Ac. de 10.09.02, Rei. Min. Laurita Vaz, 2* T., DJ 24/03/03, RESP 353 147, Ac. da 2’ T„
15.10.02, Rei. Min. Franciullt Netto, DJ 18.08.03
M Cf R. L. TORRES. "O Mandado de Injunção e a Legalidade Financeira'' c it , p <14-110

O mínimo existencial, os direitos sociais e os desafios


dc natureza orçamentária 83
disponíveis.09 Mas tal conclusão a nosso ver não poderia ser estendida para a
problemática do mínimo existencial (=direilos fundamentais sociais), que tem
prevalência sobre eventuais saldos de caixa.70 Decisão como a do Min. Celso de
Mello71 só complica a discussão, por não esclarecer se o binômio “razoabilidade
da pretensão e disponibilidade financeira do Estado” está referido à disponibili­
dade de verba ou de dinheiro.

3. Seqüestro de recursos públicos


A exacerbação da judicialização das políticas públicas relacionadas com o
mínimo existencial tem levado o Judiciário a conceder o sequestro de recursos
públicos.
A CF prevê, no art. 100, § 2o, que o Presidente do Tribunal que proferir a decisão
exeqüente determine o pagamento segundo as possibilidades do depósito, e autorize,
a requerimento do credor, exclusivamente para o caso de preterimento de seu direito
de precedência, o seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito. O Supremo
Tribunal Federal estendeu o citado art. 100, § 2o, da CF, para a hipótese de não-paga­
mento de precatório alimentício a pessoa idosa, no voto do Min. Eros Grau.72
No Rio de Janeiro o Juiz da 1* Vara da Infância e da Juventude resolveu
bloquear recursos do Tesouro Municipal porque o Prefeito César Maia não havia
procedido ao empenho das quantias previstas no orçamento para a construção de
creches;73 a decisão foi provocada pelo Ministério Público, que alegou inclusive
“o justo receio de que tais verbas sejam aplicadas em programas outros que não
os destinados a crianças e adolescentes, a exemplo do museu Gugenheim-Rio
(para o qual já foi aprovado crédito suplementar de quarenta e um milhões de
reais) e outros projetos da prefeitura”. O então Presidente do Tribunal de Justiça
do Estado, Des. Miguel Pachá, deferiu o pedido de suspensão da decisão judi­
cial requerido pelo Município, alegando; “a hipótese revela o manifesto risco de
grave lesão às finanças e à ordem públicas, esta última entendida em seu aspecto
multifacetário, porque a decisão, além de adentrar nas questões atinentes a méri­
to administrativo, compromete o planejamento orçamentário que, repita-se, é de
exclusiva competência do administrador público”.74 O caso é paradigmático, pois
envolvia relevante questão de mínimo existencial, que não se sujeita à discricio-
nariedade administrativa; mas o controle judicial não poderia se exercer na forma
de bloqueio de verbas e de dinheiro público decorrente de superávit financeiro,
figura inexistente no direito orçamentário.
m IF 492/SP, Ac. do Pleno, de 26.03.03, R d Min. Gilmar Mendes, QJ 01/08/03
70 Vide nota 62.
71 Vide notas 79 a 83.
72 Ag. Reg. na Reclamação 3034-2, Voto-Vista do Min. Eros Grau, <\vww..stl gov/notícias>. Acesso em
10.10.2006.
73 Proc. 2003.710.004869-8, Ação Civil Pública, decisão de 12.08.03.
74 Decisão de 25.08 03.

84 Ricardo L>bo Tones


O STJ autorizou o bloqueio de contas públicas para garantir o custeio de
tratamento médico indispensável para concretizar o princípio da dignidade da
pessoa humana e do direito à vida e à saúde.75
No Rio Grande do Sul, segundo reportagem do Fernando Teixeira,76 o
Governo “está vivendo uma nova fase da disputa, judicial pelo fornecimento de
remédios não-disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O Estado
acumula 20 mil ações envolvendo medicamentos e as despesas com as ordens
judiciais saltou de R$ 11 milhões em 2005 para 30 milhões no ano passado”.
Quer dizer: a partir de hipótese especialíssima prevista na CF (art. 100, § 2°:
preterimento do direito de precedência no julgamento de precatório), o Judiciário
passa a fazer uso do seqüestro de recursos do Estado em casos não previstos
na Constituição, na lei ordinária nem no direito comparado, desarticulando pe-
rigosamente as finanças públicas. Ao revés de judicializar as políticas públicas
referentes ao mínimo existencial, estão preferindo os Tribunais judicializar as
políticas orçamentárias.

4. Vinculaçao cio orçamento


Há limites para a vinculação do orçamento ao atendimento das prestações
públicas de saúde e de educação. Os governos federal e estaduais deram interpre­
tação ampla, incluindo entre tais despesas as ações de saneamento, as verbas do
Fundo de Combate e Erradicação de Pobreza e a assistência social; o Ministério
Público exigiu interpretação estrita, incluindo-se nas previsões orçamentárias
apenas as prestações de saúde, preventivas ou curativas, independentemente de
sua caracterização como direitos fundamentais ou sociais. O Supremo Tribunal
Federal, chamado a decidir a questão, considerou prejudicada a Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental, pois o Presidente Lula já resolvera
voltar atrás na decisão de vetar o art. 59 da Lei de Diretrizes Orçamentárias,77 o
que fez pelo art. 1° da Lei 10.777/2003; nada obstante, o Min. Celso de Mello, a
exemplo do que já fizera no julgado sobre AIDS,78 redigiu decisão maximalista,
de cunho doutrinário (sem eficácia jurisdicional), proclamando a “intangibilidade
do núcleo consubstanciador do mínimo existencial,79 mas confundindo os direitos
75 RESP 820.674, Ac. da 2a T„ de 18.05.2006, Rcl. Min. Eliana Calmon. DJ de 14 06.06
76 Valor Econômico de 12.02.07.
77 Lei n° 10.707/2003 - art. 59, § 2°' “ Para efeito do inciso II do rapta consideram-se como ações e serviços
públicos de saúde a totalidade das dotações do Ministério da Saúde, deduzidos os encargos providenciai ios
da União, os serviços da dívida e a parcela das despesas do Ministério financiada com recursos do Fundo de
Combate e Erradicação da Pobreza" y
78 Vide nota 63.
79 ADPF 45 - MC/DF, Decisão de 29 04 04, transcrita no Informativo do STF n“ 345/2004 “ Ementa. Argui­
ção de Descumprimento de Preceito Fundamental. A questão da legitimidade constitucional do controle e da
intervenção do poder judiciário em tema dc implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese
de abusividade governamental. Dimensão política da jurisdição constilucional atribuída ao Supremo Tribunal
Federal. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Caráter re­
lativo da liberdade de conformação do legislador. Considerações em torno da cláusula da "reserva do possível".

O mínimo existencial, os direitos sociais e os desafios


de natureza orçamentária 85
fundamentais com os sociais e econômicos,80 emburilhando a reserva do possí­
vel com a disponibilidade financeira do Estado81 e dilargando a competência da
jurisdição constitucional para o controle de políticas públicas relacionadas com
direitos sociais.82

V - Conclusão
Nota-se, em síntese, grande avanço na problemática da efetividade dos di- ‘
reitos no Brasil. Supera-se a fase da solução mágica a partir das regras constitu- !
cionais programáticas e se procura o caminho: para a implementação de políticas t
públicas relacionadas com os direitos sociais, para a posição crítica da doutrina j
e para a maior participação do Judiciário na adjudicação de prestações referentes j
ao mínimo existencial. Mas remanescem alguns problemas intrincados à espe- j
ra do aprofundamento do debate, designadamente no que concerne à clareza na j
distinção entre mínimo existencial (= direitos fundamentais sociais) e direitos |
sociais, da qual dependem a extensão do controle jurisdicional e a integridade do i
orçamento democrático.

Necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da mtangibilidadc do núcleo consubs-


tanciador do "mínimo existencial". Viabilidade instrumental da argíiição de descumprimento no processo de
concretização das liberdades positivas (direitos constitucionais de segunda geração)"
80 "Essa eminente atribuição conferida ao Supremo Tribunal Federal põe em evidência, de modo paiticulai men­
te expressivo, a dimensão política da jurisdição constitucional conferida a esta Corte, que não pode demitir-
se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais - que se identificam,
enquanto direitos de segunda geração, com as liberdades positivas, reais ou concretas (RTJ 164/158-161. Rei.
Min Celso de Mello) sob pena de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da Constituição, com­
prometer, de modo inaceitável, a integridade da própria ordem constitucional”
81“Vê-se, pois, que os condicionamentos impostos, pela cláusula da “reserva do possível”, ao processo de con­
cretização dos direitos de segunda geração - de implementação sempre onerosa -, traduzem-se cm um binómio
que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida cm face do Poder
Público c, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações
positivas dele reclamadas”
82 “Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles
que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se icvcla
absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo”

Ricardo Lobo Torres '

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