LV Ao Deixar As Redes

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Ao

Deixar
as
redes
Gerência geral: Rafael Cobianchi
Preparação e revisão: Rochelle Lassarot
Capa e Diagramação: Diego Rodrigues
 
 
 
 
Este livro segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.
 
 
 
 
 
 
Editora Canção Nova
Rua João Paulo II, s/n
Alto da Bela Vista
12.630-000
Cachoeira Paulista – SP
Tel.: [55] (12) 3186-2600
E-mail: [email protected]
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Todos os direitos reservados.
 
ISBN: 978-65-8845-142-7
 
© EDITORA CANÇÃO NOVA, Cachoeira Paulista, SP, Brasil, 2021
Daniel Amaral bth

Ao
Deixar
as
redes
VOCAÇÃO, CHAMADO E MISSÃO
Sumário

Dedicatória............................................................................. 7
Introdução.............................................................................. 9
A lebre e o cachorro........................................................... 15
O que me falta?...................................................................... 25
Escolhidos para o louvor de Sua glória.................... 33
Busquei a felicidade, encontrei a vocação................ 41
Das minhas misérias à experiência da graça............... 53
Estou aqui ardendo de zelo pelo Senhor.................. 63
Imole seu coração................................................................. 79
O manto de sua vocação.................................................... 93
Curados para amar e servir............................................... 109
Referências.............................................................................. 131
Dedicatória

D edico este livro a todos os que me transmitiram a fé e


me ensinaram a discernir a minha vocação, especialmente
as minhas catequistas — a irmã Soeli (in memoriam), consa-
grada da Fraternidade de São Pedro Canísio, que foi exemplo
de amor ao Coração de Jesus, e a Jurema, que é minha grande
intercessora e mãe espiritual.
Jamais teria conseguido completar este trabalho se eu não
tivesse ao meu lado a minha família, a começar por minha es-
posa, Carla, que não me deixou desistir, e meus filhos, Marcos
Aurélio, Daelton, Daelen, Bianca e Flora, bem como os filhos
e filhas de Bethânia, concedidos pela minha vocação de pai na
Comunidade e que me ensinaram e me ensinam a cada dia
a me tornar um esposo e um pai melhor, como também um
servo melhor de Deus.
Agradeço a confiança da Comunidade Bethânia, a todos
os meus irmãos de consagração de vida e aliança, que sempre
foram inspiração de entrega e doação para viver minha vocação.
E como não me lembrar de louvar a Deus pela graça de
ter vivido em comunidade por sete anos com meu fundador

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Ao deixar as redes

e servo de Deus, padre Léo, que hoje se encontra na glória do


Pai e que intercede por mim, por nós? Padre Léo foi pai, amigo,
mestre e irmão. Foi dele que ouvi em Bethânia, enquanto fazia
meu discernimento vocacional: “Acolha tudo, viva tudo e depois
escreva um livro para partilhar suas experiências.” E foi justa-
mente o que eu fiz nesses 20 anos vocacionando em Bethânia:
acolhi, vivi, toquei, anotei e agora desejo partilhar com você.
Espero que minhas experiências possam ajudá-lo a descobrir
seu chamado e sua vocação para ser inteiramente de Deus.
Rogo e consagro ao Coração de Nossa Senhora de Bethânia
este livro e a sua vida.
 
Boa leitura! Boa experiência!

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Introdução
Ao deixar as redes…
 
Depois que João foi preso, Jesus dirigiu-se para a Galileia.
Pregava o Evangelho de Deus, e dizia: ‘Completou-se o tempo
e o Reino de Deus está próximo; fazei penitência e crede no
Evangelho.’
Passando ao longo do mar da Galileia, viu Simão e André, seu
irmão, que lançavam as redes ao mar, pois eram pescadores.
Jesus disse-lhes: ‘Vinde após mim; eu vos farei pescadores de ho-
mens.’ Eles, no mesmo instante, deixaram as redes e seguiram-no.
Uns poucos passos mais adiante, viu Tiago, filho de Zebedeu, e
João, seu irmão, que estavam numa barca, consertando as redes.
E chamou-os logo. Eles deixaram na barca seu pai Zebedeu com
os empregados e o seguiram.
(Mc 1,14–20)
 
A escolha do título — Ao deixar as redes — aponta a dire-
ção para a qual este livro foi escrito: a descoberta da vocação!

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Ao deixar as redes

Para isso, encontramos nessa passagem do Evangelho de


São Marcos uma riqueza de detalhes pelos quais o Senhor quer
revelar e compartilhar de seu amor para conosco.
Além de o texto nos mostrar de forma concreta o chamado
dos primeiros seguidores de Jesus, revela na interioridade de
seu contexto um dos momentos mais belos da história de Deus
com a humanidade, do encontro do Filho de Deus feito homem
com o próprio homem. É Deus que, em seu amor infinito, vem
revelar e chamar o homem a fazer parte da história salvífica e
redentora da criação ao fazer novas todas as coisas (Ap 21,5).
Assim, escolhe e vocaciona homens e mulheres de bom coração
dispostos a caminhar com Ele e de acolher seu Evangelho.
É exatamente o que nos indica essa passagem de Marcos
1,14–20. Era um dia qualquer de trabalho para quatro pesca-
dores — Simão e André, João e Tiago —, um dia que mudaria
a trajetória de suas vidas para sempre.
O que poderia ser mais inusitado do que alguém passar em
seu trabalho e fazer a proposta para você deixar tudo — trabalho,
casa, familiares e campos — com o objetivo de segui-lo tendo
em vista um projeto inimitável? Seria, no mínimo, estranho,
porém foi exatamente o que aconteceu na vida daqueles homens,
na praia da Galileia, numa manhã de um dia qualquer.
Era uma proposta ousada e ao mesmo tempo radical do tal
Jesus de Nazaré, que prometia, como única segurança futura,
torná-los pescadores de pessoas para o Reino de Deus. Mas,
para tanto, deveriam deixar as redes de pesca de tantos anos
para aprenderem a nova profissão.

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Daniel Amaral bth

O que aquele chamado significava e implicava na vida


daqueles homens ao ter de deixar as redes?
Quais promessas e esperanças estavam contidas nas en-
trelinhas daquelas palavras do jovem galileu que ressoaram tão
profundamente ao ponto de convencê-los a tamanha loucura?
Que impactos acarretariam o contexto de suas vidas, visto que
a pesca não era só um passatempo, mas significava, antes de
mais nada, o sustento deles e de suas famílias?
Além de provocar todas as formas de desconfiança de seus
familiares, estavam também em jogo o conjunto de outras
realidades: a perda da estabilidade profissional que haviam
conquistado pelas incansáveis travessias, realizadas durante
anos, naquele mar da Galileia de aproximadamente 20 km de
comprimento e de 11 km de largura e a reputação precedida de
reconhecimento social, que lhes rendeu um grande patrimônio:
barcas, redes e a própria companhia de pesca?
Naquele mar, naquela praia, naquela profissão, nas barcas e
nas redes estava a vida daqueles homens: seu passado, presente e
futuro. São Marcos (1,19) diz que estavam consertando as redes;
isso quer dizer que as redes não serviam apenas como material
de trabalho, mas, especialmente, tinham um valor simbólico
para os donos, já que era uma das ferramentas mais importantes
no ofício de suas profissões. Ademais, simbolizavam a vida de
cada um daqueles quatro pescadores: a síntese do passado e o
melhor investimento para o futuro.
Para além do valor monetário nos recursos investidos na
compra dos materiais para a confecção das redes de pescas, que

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Ao deixar as redes

na época incluíam fibras vegetais ou animais, lã, seda, algodão,


barbantes e cascas de ostras, exigiam um processo peculiar em
sua fabricação, pois o mínimo de descuido no entrelaçamento
no conjunto dos fios que se cruzam na trama deixaria uma
brecha por onde o peixe poderia escapar.
Então há uma relação do pescador com a sua rede apon-
tando a própria trajetória daquele que a confeccionava, pois, ao
passar os fios nas falanges dos dedos que se entrelaçam, revela
ao final uma única coisa: a própria vida do pescador. Esses ho-
mens eram especialistas na fabricação de redes de pesca, tanto
que eles moravam em Betsaida, às margens do lago. A palavra
Betsaida significa lugar de redes ou lugar de pescas.
O texto vai nos dizer que eles deixaram as redes para seguir
Jesus. Vocacionar é ter a coragem de deixar tudo!
Que gesto maravilhoso e profundo tiveram aqueles qua-
tro pescadores ao deixarem suas redes de pesca. Se as redes
simbolizavam seu passado (tudo que eles economizaram para
confeccioná-las) e seu futuro (os peixes que eles conseguiriam
com aquelas redes), deixar as redes simbolizou também o seu
presente: naquele momento eles tomaram uma decisão radical.
Ao deixar as redes, quebraram também toda a possibilidade de
voltar a pescar; naquele momento nasciam homens novos. Ao
deixarem tudo para seguirem Jesus, acabaram transformando-se
em grandes discípulos, que, tempos depois, cheios do Espírito
Santo, estavam proclamando Jesus Cristo Ressuscitado (At 2,4s).
Aquele gesto do deixar as redes significava que daquele
momento em diante eles começaram uma vida nova. Eles se
deixaram ser iscados e enredados por Jesus. Para pescar grandes

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peixes é preciso escolher a isca certa. Qual foi a isca com a qual
Jesus de Nazaré havia fisgado o coração daqueles pescadores?
Qual foi o momento em que Ele os capturou na rede de seu
Sagrado Coração para que não hesitassem em segui-Lo?
A palavra e o olhar do jovem galileu foram a consubstân-
cia perfeita que iscou os sonhos daqueles homens ao passar ao
largo da praia.
Se de um lado a palavra de Jesus causou-lhes incômodo
ao ponto de arrancá-los da vida costumeira, concomitantemen-
te, de outro lado se encontra o olhar amoroso de Jesus sobre
aqueles homens capaz de acalentar e cativar seus corações: viu
Simão e André (Mc 1,16); viu Tiago e João (Mc 1,19). Ao
dizer que “os viu”, São Marcos quer nos mostrar que há mais
do que um simples olhar de quem vê por acaso. Esse olhar com
o qual Jesus os viu é único e singular. A forma com que Jesus
ou viu penetrou a alma e os sentimentos mais profundos do
coração daqueles homens com uma força capaz de fazer emergir
o melhor que havia neles, e então descobriram que poderiam
ser mais que simples pescadores.
Assim também é com cada um de nós. Quando descobri-
mos o melhor que há em nós, somos capazes de deixar tudo para
correr atrás dos nossos sonhos. Eis o porquê aqueles homens,
no mesmo instante, deixaram suas redes e o seguiram.
Encontra-se aqui um detalhe fabuloso que tanto São Mar-
cos quanto São Mateus fazem questão de registrar com uma
marca intransferível do chamado: no mesmo instante (Mc 1,18);
na mesma hora (Mt 4,20). Ambas as locuções adverbiais têm

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Ao deixar as redes

origem na palavra imediatamente; sendo assim, ao escolherem


as locuções adverbiais que podem ser tanto de modo quanto
de tempo, quiseram os evangelistas enfatizar algo de extrema
importância: diante do chamado de Jesus não se perde tempo!
“Eles, no mesmo instante, deixaram as redes e seguiram-no”
(Mc 1,18).
O que está no centro dessa radical decisão, que fez com
que aqueles quatro pescadores da Galileia tivessem a coragem de
deixar suas redes e seguir Jesus, é o que chamamos de vocação.
Jesus continua a sair ao encontro de homens e mulheres,
chamando-os a fazer parte de Sua companhia de pescadores.
Quando temos a coragem de acolher, da parte de Deus, a sua
Palavra e o seu olhar amoroso, atualizamos em nós a mesma
experiência que fizeram os primeiros discípulos.
Assim como Jesus passou na praia da Galileia e chamou
aqueles homens, também passou na praia da minha vida e me
chamou para deixar minhas redes e segui-Lo.
Hoje esse chamado chega até você por meio das páginas
deste livro. Jesus está passando na praia da sua vida e da sua
história. Ele lhe vê, lhe escolhe e lhe chama a deixar suas redes
e segui-Lo.
 
Não temam responder generosamente ao chamado do Senhor.
Deixem que sua fé brilhe no mundo, que suas ações mostrem seu
compromisso com a mensagem salvadora do Evangelho!
São João Paulo II

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A lebre e o cachorro

P ara dar início a essa jornada vocacional, lhe convido a


acompanhar comigo uma pequena história que aprendi ao
longo do meu processo de discernimento vocacional e que se
tornou meu grande marco na descoberta da minha vocação.
A narrativa é da lebre e do cachorro. Vamos à história.
Na Comunidade Bethânia, recanto de São João Batista/
SC, sempre tivemos muitos cachorros, primeiramente porque
o fundador, padre Léo, sempre teve um grande carinho por
eles e, segundo, porque os cachorros nos ensinam valores como
lealdade e companheirismo, além de serem superprotetores de
seus donos.
Além dos cachorros da raça labrador, sempre tivemos um
grande apreço por uma raça em especial, os dachshund, do
alemão, danckel, que significa cão texugo, treinada para caçar
texugos, lebres e coelhos. No Brasil, eles são conhecidos como
salsichinha; é uma raça com uma característica própria, de pe-
queno porte, sendo que suas patinhas dianteiras são tortas para
dentro, por isso são excelentes escavadores de buraco. Por sua
vez, sua personalidade revela-se por serem corajosos e também

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Ao deixar as redes

muito ciumentos. São dóceis, mas de um instinto caçador. Nessa


época, tínhamos em torno de 20 deles em Bethânia.
Geralmente quem cuida do canil em nossa comunidade
são nossos filhos acolhidos que estão em processo de restauração
perante a experiência nas drogas. Assim, os responsáveis devem
chegar logo pela manhã e seguir certas regras de organização,
mantendo com os cachorros uma rotina que se repete diaria-
mente. Logo após alimentar toda a matilha, eles são soltos para
um passeio turístico por Bethânia, enquanto os encarregados
dessa função lavam os boxes do canil.
Na manhã de uma quarta-feira, como era de costume, os
cachorros foram soltos, e o que sempre puxava à frente era o
Chuvisco, o alfa da matilha, sendo que atrás dele vinham: o
Bentinho, o Banzé, o Dudu do Zé Mendonça, a Rejane, a Juli,
a Beré, e, para completar a turma, os mais velhos: o Sansão, a
Dalila, o Baltazar, a Bakita e o Quinzinho.
Todos os dias realizavam o mesmo caminho: desciam
correndo ao lado do galinheiro, passavam pelo quioscão, atra-
vessavam a varanda do refeitório e amontoavam-se perto da
porta da cozinha esperando que a dona Fátima lhes desse os
ossinhos que sobravam da sopa de frango da noite passada.
Depois seguiam pela casa de retiro, subiam até a casa dos padres,
passando por detrás do CEJU, a escola que temos em Bethânia
(que atualmente atende a mais de 200 crianças), e saindo pelos
fundos do recanto onde ficava o curral, pois adoravam latir para
o boi Toninho, que pastava próximo à horta. Por fim, faziam
uma parada para beber água e descansar na varanda biguá.

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Naquela manhã, o diácono Ideraldo voltava furioso da


horta em direção à casa de retiro, passou perto dos cachorrinhos
que estavam descansando, e logo o Chuvisco sentiu que alguma
coisa não estava certa (cachorros sempre sentem quando a gente
está triste ou está feliz, alegre ou irritado; eles são sensíveis aos
sentimentos humanos). Chuvisco pensou com ele: o que foi
que aconteceu para o diácono estar tão irritado assim? Mas
continuou sentado, atento, junto dos outros cachorrinhos.
A braveza do diácono Ideraldo tinha um motivo, pois, na
noite passada, um bicho ainda desconhecido havia entrado na
horta e acabado com os rabanetes, com os pés de alfaces, com
os pepinos e, especialmente, com o canteiro inteiro de cenouras
que o seu Shimith havia plantado com o seu Zé.
Enquanto os cachorrinhos descansavam e tiravam aquele
cochilo, o Chuvisco era sempre o único que não dormia, até
porque ele fora ensinado pelo padre Léo que, em Bethânia, não
se dorme fora do horário de descanso.
Sem que o diácono imaginasse, aquele bicho que havia
entrado na horta na noite passada continuava de espreita, exa-
tamente como vai nos lembrar a primeira carta de São Pedro
(5,18b), que nos diz que “o diabo, vosso inimigo, anda ao der-
redor, rugindo e procurando a quem devorar”. Ali, próximo à
horta, escondido no meio dos pés de eucaliptos, estava o gatuno
e furtador de hortas esperando uma nova oportunidade para
atacar, destruir e roubar as lindas hortaliças.
Era um animal de cor cinzenta, pernas longas, orelhas
enormes e dentes grandes, conhecido por lebre, ou lebrão, um

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Ao deixar as redes

dos mamíferos herbívoros mais rápidos da sua espécie, podendo


alcançar uma velocidade de até 55 km/h.
Chuvisco, sempre atento, não demorou para sentir o cheiro
no ar daquele animal desconhecido (cães conseguem sentir e
distinguir cheiros a quilômetros de distância). Enquanto seus
companheiros cachorrinhos tiravam aquele cochilo, Chuvisco
levantou o pescoço, apontou na direção que seu faro lhe indi-
cou e viu com seus olhos aquele animal estranho; de imediato,
como um grande caçador e guardião da matilha, começou a
rosnar e a latir na direção da lebre, que logo se viu descoberta.
Chuvisco latia e mostrava para os outros cachorrinhos,
que acordaram desesperados pelo bravejo das latidas e, mesmo
sem saberem muito bem o que estava acontecendo, também
começaram a rosnar e a latir. A lebre, ao se ver descoberta, saiu
em disparada e, claro, sem hesitar, Chuvisco saiu ao seu encalço,
porque ele a sentiu e a viu. Não demorou para que os demais
cachorrinhos saíssem correndo e latindo atrás do Chuvisco.
A lebre fugiu subindo a colina que leva até o monte Tabor
(local construído pelos filhos de Bethânia e onde realizamos
momentos de espiritualidade nos retiros) e desceu na direção da
trilha da via-sacra. Na frente, a lebre corria e saltitava, logo atrás
vinha o Chuvisco com os olhos bem fixos na lebre, e, próximo
a ele, aglomeravam-se os outros cachorros que se mantinham
firmes nas pegadas do Chuvisco.
A lebre atravessava, sem muitos problemas, todos os obs-
táculos que se apresentavam à sua frente, saltitando com pulos
enormes na busca de enganar a matilha, mas os cachorrinhos
estavam decididos a pegá-la e pareciam não querer desistir.

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A lebre chegou à margem do rio Tijucas e não demorou


em lançar-se nas águas em busca de atravessar, conseguindo
chegar à outra margem sem maiores dificuldades. E, quando os
cachorrinhos chegaram e se depararam com aquele rio enorme,
muitos não hesitaram e abandonaram a meta, voltando para
casa. Lembraram que era hora do almoço e que já estava quase
na hora da oração “do glória” (oração que rezamos todos os dias
em Bethânia ao encerrar nossas refeições, sendo que, somente
após o glória, retiramo-nos da mesa). Entretanto, alguns poucos
cachorrinhos tiveram a coragem de atravessar aquelas fortes
correntezas, porque se lembraram da passagem de Isaías 43,2:
“Se tiveres de atravessar a água, estarei contigo, e os rios não
te submergirão.” Lançaram-se nas águas e alcançaram a outra
margem, continuando a avançar atrás da lebre. Eram eles: o
Chuvisco, o Banzé, a Juli, o Baltazar e a Rejane.
Depois de quase três horas de uma perseguição ininterrupta
atrás da lebre, via-se a tarde chegando, e o caminho por onde a
lebre os levava dava direto num desfiladeiro que se dividia ao
meio por um abismo de 15 metros de altura, sem contar que
a distância de um lado ao outro era de pelo menos 3 metros,
isto é, qualquer um que caísse, com certeza, não sobreviveria à
queda. Bastou a lebre tomar um pouco de impulso para, sem
dificuldades, conseguir atravessar.
Quando os cachorrinhos chegaram e se depararam com
aquele abismo, o medo tomou conta deles, e não foi difícil
concluir que, por falta de coragem, muitos desistiriam.

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Ao deixar as redes

Enquanto praticamente todos voltavam cabisbaixos, um


deles tomou coragem (que significa força do coração) e pulou
com confiança sobre aquele abismo, alcançando o outro lado.
E, ao perceber que mais ninguém tomaria aquela decisão de
aventurar-se atrás da lebre, seguiu sozinho sua meta (a caminhada
vocacional reservará momentos em que a decisão de continuar
e desistir só dependerá de nossa decisão pessoal).
A noite já se aproximava, e, lá em Bethânia, os filhos que
tomavam conta do canil se deram conta de que os cachorros
haviam sumido. Logo comentaram com os consagrados que,
depois de terem participado da Santa Missa, a qual acontece
todos os dias em nossa comunidade (porque a Missa é o mo-
mento mais importante do nosso dia em Bethânia), Zezinho,
Zé Mendonça e Sandro, com alguns filhos, saíram pelo recanto
atrás dos cachorrinhos, mas não os encontraram.
Pouco antes do horário do descanso em Bethânia, ao final
do grupo de vida (é a última atividade comunitária, e nosso
último momento de espiritualidade diário, em que nossos fi-
lhos e consagrados reservam para partilhar o dia e agradecer a
Deus pelas graças recebidas), ouviu-se então, baixinho, o latir
dos cachorrinhos, que voltavam cobertos de lama e carrapichos
nos pelos, sinal de que estavam atrás de algo. Não demorou
para o consagrado Ney perceber a falta de um dos cachorrinhos
(consagrado de Bethânia deve ser especialista no olhar, espe-
cialmente para nossos filhos e filhas acolhidos). Mas qual era o
cachorro que faltava? Era aquele que viu a lebre!
Todos os consagrados, no outro dia de manhã, reuniram-se
e, preocupados pelo sumiço do Chuvisco, dividiram-se com os

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Daniel Amaral bth

vocacionados, aspirantes e discípulos indo à procura dele, mas,


depois de quase um dia todo de procura, deram-se por conven-
cidos de que o Chuvisco não voltaria mais. Alguns diziam que
alguma cobra o havia picado; outros acreditavam que algum
animal selvagem o havia devorado. A tristeza tomou conta de
todos da comunidade, pois o Chuvisco, além de ser o cachor-
rinho do fundador, padre Léo, era o primeiro cachorrinho de
Bethânia, o pai de todos os outros cachorrinhos.
Já estávamos todos convencidos de que não veríamos mais
o Chuvisco. Nossos filhos eram os que mais sentiam sua falta,
pois os filhos em Bethânia aprendem com os animais, assim
como com a natureza, a dar valor e cuidado à sua vida. Os
animais em Bethânia são canais de restauração!
Era noite de quinta-feira, estava acontecendo a Missa de
São Miguel, e a capela estava lotada. Na hora da coleta das
orações, em que são realizadas as intenções da Missa, alguns
dos nossos filhos de Bethânia não se esqueceram de pedir para
que Deus resgatasse o Chuvisco e que, se ainda estivesse vivo,
que o trouxesse para Bethânia. Nossos filhos sempre apresen-
tam, no começo das Missas, seus pedidos de oração e o fazem
em voz alta.
Quando chegou a hora do canto da proclamação do Evan-
gelho, o padre Léo pôs-se de pé com os demais padres que
concelebravam: padre Vicente, padre Lúcio, padre Elinton,
enquanto o diácono Ideraldo proclamava o Evangelho, que
trazia a passagem em que Jesus dizia: “As raposas têm suas tocas,

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Ao deixar as redes

e as aves do céu têm seus ninhos, mas o Filho do homem não


tem onde repousar a cabeça.” (Mt 8,20).
Enquanto se assentavam para ouvir a homilia do padre Léo,
os olhares de todos se voltaram para os fundos da capela, de
onde se via aproximar, com passos lentos e respiração ofegante,
seguindo na direção do altar, o cachorro Chuvisco. Ele entrava
sem se incomodar, trazendo arrastado pela boca seu prêmio da
vitória: a lebre! O padre Léo não perdeu tempo em aproveitar
aquela cena para pregar sobre o Evangelho:
 
O que vos parece essa imagem? Chuvisco tem muito a nos
ensinar a respeito do tema de hoje, que nos fala da vocação. Com
este cachorrinho, descobrimos o grande segredo para viver nosso
chamado e respondermos à vontade de Deus em nossa vida, pois
só conseguirá ser fiel a Deus quem tiver feito a experiência que fez
Chuvisco: de sentir, ver e correr atrás da sua lebre.
O Chuvisco representa cada um de nós que desejamos servir a
Deus e nos tornarmos seus discípulos. A lebre, por sua vez, significa
nossa vocação, e só conseguirá alcançá-la e respondê-la aquele que
a tiver sentido verdadeiramente no coração e visto com seus olhos,
uma vez que só se vê bem com o coração, pois o essencial é invisível
aos olhos, já dizia Antoine de Saint-Exupéry.
Por que todos os cachorros saíram atrás do Chuvisco? Porque
foram movidos pela euforia, pelo calor do momento. Muitas pessoas
são assim quando sentem que Deus as chama, são impulsionadas
pela alegria da vocação, sentem-se empolgadas, mas querem viver
a vocação sem precisar passar pelas provações. A vocação reservará,
em muitos momentos, um caminho, muitas e muitas vezes, pelo
qual não gostaríamos de passar; por isso muitos, ao se depararem
com as dificuldades e obstáculos no caminho vocacional, desistem.
A Palavra de Deus nos ensina que aquele que é chamado pelo
Senhor passará por provações, ou seja, por provas. “Pois é pelo fogo

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Daniel Amaral bth

que se experimentam o ouro e a prata, e os homens agradáveis a


Deus, pelo cadinho da humilhação” (Eclo 2,5).
Só conseguirá permanecer firme até o fim quem sentiu o
cheiro da vocação. Vocação tem cheiro? Sim, o vocacionado traz no
conteúdo de seu ser o odor do perfume do céu, “porque para Deus
somos o bom perfume de Cristo […]” (2Cor 2,15).
Por que o Chuvisco foi o único cachorro que permaneceu
firme e determinado a pegar a lebre? Porque foi somente ele que viu
a lebre. A lebre também significa essa experiência pessoal que faço
de Jesus, de vê-lo e de testemunhá-lo a todos, assim como fez Maria
Madalena no domingo da Ressurreição: “Eu vi o Senhor” (Jo 20,18).
Enquanto não virmos com nossos próprios olhos a Jesus, ficaremos
na dependência das experiências de outros e correremos o risco de
nos cansarmos e desistirmos de seguir o Senhor.
A lebre, ainda, significa o ponto de partida e nosso ponto
de chegada: quem não sabe de onde vem e não sabe para onde vai
corre o risco de se perder no caminho, especialmente quando a crise
das dúvidas e incertezas lhe bater à porta do coração; desse modo,
abandonará rapidamente sua caminhada.
Queremos aprender com essa analogia da lebre e do cachorro.
Jesus é nossa lebre, nós somos esse cachorrinho. Só quem viu a lebre
vai até o fim, não desistirá enquanto não a alcançar. Somos chama-
dos a alcançar, assim como o Chuvisco, a coroa da vitória. Deus
quer colocar em nossa cabeça essa coroa, mas, para isso, precisamos
alcançar a lebre e não a largar jamais, pois só os que perseverarem
até o fim é que alcançarão a vitória. Todos os atletas se impõem
muitas privações, e o fazem para alcançar uma coroa corruptível;
nós o fazemos por uma coroa incorruptível (1Cor 9,18).
Talvez, quando iniciamos nossa caminhada, muitos começa-
ram a caminhar conosco para responder ao chamado de Deus, mas
ficaram para trás, desistiram, principalmente quando se depararam
com as dificuldades que advieram diante da caminhada. Só não
desistirá aquele que tiver seus olhos fixos na lebre, seus olhos fixos

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Ao deixar as redes

em Jesus: “Corramos com perseverança ao combate proposto, com


o olhar fixo no autor e consumador de nossa fé, Jesus.” (Hb 12,1b).
Jesus nos ensina que a vocação requer que tenhamos as mesmas
características do Chuvisco: é preciso ter faro aguçado e um olhar
fixo na meta.
A vocação é captada no coração, interpretada pela razão e res-
pondida com atitudes de fé. Deus fala ao meu coração, e eu decido
com a minha razão e traduzo com minhas escolhas, ao ponto que
Deus consolida com seus sinais e suas graças os passos que imprimo
na busca de fazer Sua vontade. A vocação é mais uma das formas
concretas que Deus criou para viver no meio dos homens e estar em
comunhão, diálogo e convivência com eles. A vocação é uma das
formas mais tangíveis, assim como os sacramentos, para experimentar
já, aqui e agora, a experiência antecipada da eternidade, daquilo que
chamamos Reino dos céus.
Sendo assim, a vocação é uma escolha que faço em querer ser e
viver com o Sagrado, tornando-me presença divina na vida das pessoas.
 
Se fores aquilo que Deus quer, colocareis fogo no mundo.
Santa Catarina de Sena

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