(Livrosparatodos Net) Ian Fleming 007 Contra Goldfinger
(Livrosparatodos Net) Ian Fleming 007 Contra Goldfinger
(Livrosparatodos Net) Ian Fleming 007 Contra Goldfinger
GOLDFINGER
BESTSELLER
Importadora de Livros S. A.
SÃO PAULO
1965
Impresso no Brasil
PRIMEIRA PARTE
Um Acontecimento
1
reflexões com uísque duplo
JAMES BOND, com um uísque duplo por dentro, estava sentado na sala de
espera de passageiros do Aeroporto de Miami e pensava sobre a vida e a
morte.
Era parte de sua profissão matar gente. Nunca havia gostado disso mas,
quando tinha que matar, o fazia o melhor que sabia — e se esquecia. Como
agente secreto que ostentava o raro prefixo do duplo zero — a licença para
matar, no Serviço Secreto — era de seu dever ser frio, sobre a morte, como
um cirurgião. O arrependimento seria não-profissional — pior que isso, seria
a sombra da morte na alma.
E, contudo, havia qualquer coisa de curiosamente impressionante na
morte do mexicano. Não que ele não merecera morrer. Fora um homem
cruel, um homem que chamam de "capungo", no México. O "capungo" é um
bandido que mata por qualquer coisa, como por 40 pesos, que equivale a
algumas centenas de cruzeiros — embora, provavelmente, tenha sido pago
melhor, para tentar matar Bond — e, pelo seu aspecto, deveria ter sido, por
toda sua vida, um instrumento a serviço da tortura e da crueldade. Sim:
certamente já era tempo de ele morrer; mas, quando Bond o matara, menos
de 24 horas antes, a vida havia sido expulsa de seu corpo tão depressa, tão
inteiramente, que Bond quase pudera vê-la fugir-lhe pela boca, como
acontece nas histórias dos primitivos haitianos, na forma de um pássaro.
Que diferença extraordinária existe entre um corpo cheio de vida e um
outro vazio! Num instante ali está alguma coisa e, no instante seguinte, nada
mais há. Aquilo fora um mexicano com nome e endereço, um cartão de
emprego e, provavelmente, até uma licença para dirigir. Então, qualquer
coisa tinha saído para fora dele, para fora do envelope de carne e osso e
roupas pobres, e deixado apenas o saco de papel vazio, esperando pelo
varredor de lixo. E a diferença, a coisa que saíra para fora do bandido
mexicano que se afundava, era maior que todo o México.
Bond olhou para a arma com a qual havia matado. A face lateral de sua
mão estava vermelha e inchada. Logo começaria a aparecer a equimose.
Bond flexionou a mão, alisando-a com a esquerda. Tinha estado a fazer isso,
repetidamente, durante a rápida viagem aérea que o trouxera até ali. Era um
processo dolorido mas, se mantivesse a circulação ativa, a mão sararia mais
depressa. Não se poderia saber quando a arma poderia precisar ser utilizada
de novo. Um sorriso cínico assomou às extremidades da boca de Bond.
"Linhas Aéreas Nacionais, as Linhas Aéreas das Estrelas, anunciam a
partida de seu vôo NA 106, para o Aeroporto La Guardia, Nova York.
Passageiros devem dirigir-se, por favor, ao portão número 7. Todos ao
embarque, por obséquio."
O alto-falante foi desligado com um clique que reboou no ambiente.
Bond olhou para seu relógio. No mínimo dez minutos, ainda antes que a
Transamérica fosse chamada. Ele fez sinal para a garçonete e pediu mais um
uísque duplo, com gelo. Quando o copo alto chegou, ele o rodopiou para que
o gelo se afundasse e bebeu metade do líquido, num gole. Atirou fora o toco
do cigarro e se sentou, com as mãos segurando o queixo e ficou olhando
desconsolado, através da vidraça, para onde a última metade do sol
gloriosamente escorregava para dentro do golfo.
A morte do mexicano tinha sido o toque final de uma missão ruim, uma
das piores — perigosa e sem nenhum objetivo redentor, a não ser o fato de o
afastar de seu quartel-general.
Um homem, no México, tinha um campo de papoulas. As flores não se
destinavam à decoração. Elas eram colhidas e delas tirado o ópio, que se
vendia a preço comparativamente barato, e rapidamente, pelos garçoms, num
pequeno café da Cidade do México, chamado "Madre de Cacao". O "Madre
de Cacao" contava com bastante proteção. Se alguém precisasse de ópio,
entrava no café e pedia o que desejava, com a bebida. Pagava pela bebida na
caixa e o homem lhe dizia, então, quanto era o resto. Tratava-se de um
tranqüilo comércio, que não era da conta de ninguém, fora do México.
Então, lá longe, na Inglaterra, o governo, atendendo a solicitações das
Nações Unidas, com respeito à repressão ao contrabando de drogas
entorpecentes, anunciara que a heroína seria banida da Grã-Bretanha. Houve
alarma no Soho e também entre médicos respeitáveis, que desejavam livrar
seus pacientes do sofrimento. A proibição é o estopim do crime. Bem
depressa os canais rotineiros do contrabando procedente da China, da
Turquia e da Itália quase se esvaziaram, com o armazenamento ilícito da
"mercadoria" na Inglaterra. Na Cidade do México, vivia um comerciante de
fala macia, que se dedicava à importação e à exportação, chamado Blackwell
e que tinha uma irmã na Inglaterra, que era viciada em heroína. Ele a amava
e lhe tinha pena. Por isso, quando ela escreveu dizendo que morreria se
ninguém a ajudasse, acreditou que lhe dizia a verdade e passou a investigar o
tráfico de entorpecentes no México. Através de amigos, e de amigos dos
amigos, chegou ao "Madre de Cacao" e, dali, até o grande plantador de
papoulas. Durante as investigações, acabou se inteirando dos detalhes
econômicos do comércio: e decidiu que, se ao mesmo tempo conseguisse
fazer fortuna e aplacar as misérias da humanidade sofredora, teria descoberto
o Segredo da Vida. O negócio de Blackwell era de fertilizantes. Era dono
dum armazém e duma pequena fábrica. E contava com uma equipe de três,
para testes de solo e pesquisas de laboratório. Foi-lhe fácil convencer o
mexicano da plantação de papoulas de que, por trás de sua fachada
respeitável, a equipe de Blackwell poderia dedicar-se a extrair heroína do
ópio. O transporte para a Inglaterra fora arranjado espertamente pelo
mexicano. Pelo equivalente a mil libras por viagem, todos os meses, um dos
"correios" diplomáticos do Ministério dos Assuntos Exteriores levava uma
valise extra a Londres. O preço era razoável. O conteúdo da valise, depois
que o funcionário mexicano a depositava no guarda-malas da Estação de
Vitória, na capital inglesa, e despachado pelo correio o ticket para um
homem chamado Schwab, no endereço Boox-an-Pix Ltd., W.C.l — valia 20
mil libras esterlinas.
Infelizmente, Schwab era um quadrilheiro, sem nenhuma sensibilidade
pela humanidade sofredora. Tinha se convencido de que, se os delinqüentes
juvenis americanos podiam consumir milhões de dólares de heroína todos os
anos, também os seus primos ingleses, os Teddy-boys (e as moças),
poderiam fazer a mesma coisa. Em dois quartos, em Pimlico, sua equipe
dissolvia a heroína em água, ajuntando bicarbonato, e distribuía tudo pelos
salões de baile e locais de diversões.
Schwab já tinha feito uma fortuna, quando o "Esquadrão Fantasma" do
Departamento de Entorpecentes da Scotland Yard o pegou. A Scotland Yard
tinha decidido deixá-lo continuar ganhando, por algum tempo, mais um
pouco de dinheiro, enquanto fazia investigações, para descobrir a fonte de
seu suprimento. Puseram-no sob severa vigilância e, no devido tempo,
chegaram à Estação de Vitória e ao "correio" mexicano. Nessa altura, como
um país estrangeiro entrava na história, o Serviço Secreto tinha que ser
chamado e Bond fora convocado para descobrir de onde o "correio" trazia o
seu suprimento e destruir a fonte.
Bond fizera o que lhe haviam ordenado. Voou para o México e,
rapidamente, chegou ao "Madre de Cacao". Então, fingindo ser um
comprador para o tráfico londrino, estabeleceu contato com o mexicano
plantador de papoulas. Ele o recebeu amigavelmente e o levou a Blackwell.
Bond nada sabia da história da irmã do inglês mas, ao primeiro conta-
to, percebeu que o homem era um amador. Ouviu a revolta' de Blackwell
contra o banimento da heroína na Inglaterra e teve impressão de que o outro
era sincero no seu ponto de vista. Uma noite, Bond invadiu o armazém de
Blackwell e ali deixou uma bomba inflamável. Depois saiu e foi sentar-se no
café, para ficar apreciando as chamas, de longe, subindo para cima da linha
dos telhados e ouvir a cascata sonora dos sinos da brigada de bombeiros. Na
manhã seguinte, telefonou a Blackwell. Botou um lenço no fone e falou
através do pano, para disfarçar a voz.
— "Sinto muito que você tenha perdido seu negócio, ontem à noite.
Receio que o seguro não vá cobrir aqueles estoques de solo, que você estava
pesquisando."
— Quem é você? Quem está falando?
— Sou da Inglaterra. Sua mercadoria tem matado um bom número de
gente moça, por lá. E estragou uma porção de outros, também. Santos não
voltará mais para a Inglaterra, com sua valise diplomática. Schwab estará na
cadeia ainda hoje à noite. E aquele sujeito com quem você tem estado, o tal
de Bond, também não vai se safar da rede, não. A polícia já está atrás dele."
Expressões amedrontadas vieram do outro lado do fio.
— Está certo: mas, não caia na mesma, outra vez. Limite-se aos
fertilizantes.
Bond desligou.
Blackwell não teria tido esperteza suficiente. Obviamente, tinha sido o
mexicano que percebera o jeito de fazer as coisas. Bond tomara a precaução
de mudar de hotel mas, nessa noite, quando regressava para casa, depois
dum último drinque no "Copacabana", um homem, subitamente, pulara na
sua frente. O homem usava um terno de linho branco muito sujo e um boné
de chofer muito grande para sua cabeça. Havia sombras escuras sob o queixo
asteca. Num dos cantos da boca, estava um palito e, no outro, um cigarro. Os
olhos apareciam rebrilhantes pelo efeito de maconha.
— Senor gosta de mulheres? Fazer jigajig?
— Não.
— Garota escurinha?
— Não.
— Fotografias? Quem sabe?
O gesto da mão subindo para o bolso interno do paletó já era tão
conhecido de Bond, tão cheio de velhos perigos que, quando a mão voltou, a
faca rebrilhando em busca da garganta de Bond, já o encontrou pronto,
preparado.
Quase automaticamente, Bond executou o capítulo do livro de defesa
pessoal, que tinha por título "Defesa contra ataque a faca". Seu braço direito
se interpôs, o corpo girando junto. Os dois antebraços se encontraram a meio
do caminho, entre os dois corpos, deslocando a faca do mexicano para longe
do alvo, ao mesmo tempo em que lhe abria a guarda, para um golpe curto,
com a esquerda. O punho cerrado e duro de Bond não se movera muito,
talvez sessenta centímetros, mas, a ponta da palma, com os dedos já
distendidos para maior rigidez, já havia subido por baixo do queixo do outro,
com força terrível. O golpe quase levantou o homem da calçada. Talvez
tivesse sido esse golpe que matara o mexicano, quebrando-lhe o pescoço,
mas, enquanto ele descia de novo para o solo, Bond puxou a mão direita e a
chicoteou horizontalmente, na direção da garganta exposta. Era a mortal
cutelada no pomo de Adão, aplicada com os dedos colados para formar uma
lâmina, que tinha sido, na guerra, o golpe usado pelos Comandos. Se o
mexicano ainda estivesse vivo, certamente morrera antes de chegar ao solo.
Bond parou um momento, o peito arfando, a olhar para o amontoado de
roupas baratas no pó. Espiou a rua para cima e para baixo. Não havia
ninguém. Alguns carros passaram. Outros talvez tivessem passado durante a
luta, mas os dois tinham estado nas sombras. Bond se ajoelhou ao lado do
corpo: não havia sinal de pulsação. E já os olhos, que tinham estado tão
brilhantes por causa da maconha, começavam a embaçar. A casa, na qual a
vida do mexicano tinha morado, estava vazia. O inquilino tinha saído.
Bond pegou o corpo e o encostou contra a parede, na sombra mais
escura. Limpou as mãos na roupa, tocou na gravata para ver se estava no
lugar e foi para o hotel.
Ao amanhecer, Bond tinha se levantado, se barbeado e ido até o
aeroporto, onde tomou o primeiro avião para fora da Cidade do México.
Aconteceu ir para Caracas. Bond voou para Caracas e ficou na sala de espera
até que houvesse um avião para Miami, um "Constellation" da Transamérica
que o levaria, naquela mesma noite, a Nova York.
De novo, o alto-falante voltou a informar: "A Transamérica sente ter de
anunciar um retardamento em seu vôo TR 618 para Nova York, devido a
defeitos mecânicos. O novo horário de partida será 8 horas. Os passageiros
devem comparecer ao balcão da Transamérica, para acertar detalhes de
acomodação de pernoite. Muito obrigado!"
Puxa! Ainda isso? Deveria transferir a passagem para outro vôo ou
pernoitar em Miami? Bond tinha se esquecido de sua bebida. Pegou o copo
de novo e, jogando a cabeça para trás, engoliu o que restava do uísque dum
gole só. O gelo bateu contra seus dentes. Era isso. Isso era uma idéia.
Passaria a noite em Miami e tomaria uma bebedeira, se afogaria na bebida de
tal forma, que alguém teria que carregá-lo para a cama — qualquer um que o
pegasse. Fazia anos que não se embriagava assim. E já era tempo. Essa noite
extra, que lhe caía do céu, era uma noite de sobra, uma noite fora dos
cálculos. Ele a usaria muito bem. Já era tempo de se relaxar um pouco.
Estava muito tenso, muito introspectivo. Que diabo estava fazendo,
preocupando-se com esse mexicano, esse "capungo" que tinha sido mandado
para matá-lo? Tinha sido matar ou ser morto. De qualquer forma, os homens
andavam se matando, a todo o momento, em todas as partes do mundo.
Estavam utilizando seus carros, para matar os outros. Carregavam por toda
parte moléstias contagiosas, soprando micróbios na cara dos outros,
deixando bicos de gás abertos nas cozinhas, injetando monóxido de carbono
nas garagens fechadas. Quanta gente, por exemplo, estava colaborando na
feitura das bombas H, desde os mineiros que extraíam o urânio, até os
acionistas que eram donos das empresas de mineração? Haveria alguém, no
mundo inteiro que, pelo menos estatisticamente, não estivesse envolvido no
processo de matar seu vizinho?
A última luz do dia tinha sumido. Por baixo do céu azulado, os riscos de
reflexo compunham verdes e amarelos na superfície oleosamente rebrilhante
do pátio de manobras. Com um ronco ensurdecedor, um DC 7 descia para a
pista principal. Os vidros das janelas da estação trepidavam maciamente.
Gente se levantou para espiar. Bond tentava ler-lhes a expressão. Será que
eles esperavam que o avião caísse — para ter alguma coisa que ver, alguma
coisa de que falar, alguma coisa que preenchesse o vazio de suas vidas? Ou
será que desejavam felicidades ao avião? Que será que desejavam aos 60
passageiros: que vivessem ou que morressem?
Bond fez um muxoxo: deixa disso! Pare de ser tão mórbido! Tudo isso é
apenas o reflexo de uma missão ruim. Você está cansado de ter que ser
durão. Você está querendo é um pedaço bom da vida — vida fácil, macia,
cômoda. Bond sentiu passos que se aproximavam. Pararam ao seu lado. Ele
olhou. Era um homem de meia-idade, limpo, parecendo rico. Sua expressão
era embaraçada, de quem pede desculpas:
— Perdoe-me, mas o senhor é Mr. Bond?... Mr. James Bond, não?
2
vida boa
James Bond lançou seu carro D.B. III pela última milha da reta e mudou
a marcha para a terceira e, depois, para a segunda, a fim de enfrentar a curta
subida, antes de se lançar ao tráfego de Rochester. Segura pelas macias
garras dos discos dianteiros, a máquina externou seu protesto em "soluços"
raivosos, que fluíam pelo escapamento duplo. Bond passou para a terceira,
de novo, alcançou a luz verde no pé da colina, e resignadamente se
encaminhou para o fim da fila de carros que se arrastaria por uns quinze
minutos (se tivesse sorte), pela confusão de Rochester e Chatham.
Engatou a segunda, e deixou o carro à vontade. Esticou o braço para o
porta-luvas, procurando a larga cigarreira de Morland, acendeu um com o
acendedor do painel.
Havia escolhido a estrada A2 ao invés da A20 para Sandwich porque
desejava dar uma espiada pelas terras de Goldfinger. — Reculver e os
melancólicos confins do Tâmisa, que ele havia escolhido para instalar sua
sede. Cruzaria, então, a ilha de Thanet até Ramsgate, deixaria suas malas em
Channel Packet, tomaria um ligeiro lance para, finalmente, seguir até
Sandwich.
O carro era do depósito. Haviam oferecido a Bond um Aston Martin ou
um Jaguar, 3.4, mas ele preferira ficar com o D.B.III. Qualquer um dos
outros dois carros teria serviço para seu disfarce — o de um jovem bem
posto na vida, espírito meio aventureiro, com predileção pelas coisas boas e
dinâmicas da vida. Mas o D.B.III tinha as vantagens especiais de viagem,
uma cor discreta (cinza-chumbo) e recursos extras que poderiam (ou não),
ser-lhe útil. Entre estes se incluíam botões para mudar o tipo e a tonalidade
das lâmpadas traseiras e fronteiras, se estivesse seguindo alguém, ou sendo
seguido à noite, pára-choques de aço reforçado, na frente e atrás, em caso de
precisar dar uma batida, um Colt 45 de cano longo, num compartimento
disfarçado embaixo do banco do chofer, um radioreceptor ajustado para
receber transmissões de um aparato chamado Homer e muito espaço
escondido, que enganaria a maioria dos fiscais da Alfândega.
Bond viu uma brecha e ganhou uns cinqüenta metros, embocando num
buraco de dez metros deixado por um ônibus familiar que ia devagarinho. O
homem ao volante, que tinha a cara infalível do mau chofer, com um chapéu
firmemente enterrado bem no centro da cabeça, rosnou raivosamente. Bond,
pela janela, mostrou um enigmático punho fechado — e o rosnar terminou.
E, agora, que tal aquela teoria de M? Realmente, fazia sentido. Os russos
eram notoriamente incompetentes, no pagamento de seus homens. Seus
centros estavam sempre com os recursos esgotados e seus homens sempre se
queixando para Moscou, de que não podiam mesmo se arriscar a uma
refeição normal. Talvez a SMERSH não conseguia as divisas, no Ministério da
Segurança Nacional. Ou talvez o Ministério não conseguia arrancar o
dinheiro do Ministério das Finanças. Mas, em qualquer caso, sempre tinha
sido a mesma coisa: intermináveis problemas de dinheiro, que resultaram em
chances perdidas, promessas não cumpridas e perda de perigoso tempo pelo
rádio. Seria sensato manter um financiador esperto e inteligente, fora da
Rússia, que pudesse não só levar o dinheiro aos centros de espionagem,
como (no caso presente), conseguir lucros próprios tão grandes, que pudesse
financiar os centros da SMERSH, sem a assistência de Moscou. Não apenas
isso. Ao mesmo tempo, Goldfinger ainda estaria danificando
apreciàvelmente a base monetária de uma nação inimiga. Se tudo fosse
assim mesmo, seria típico da SMERSH — um esquema brilhante, operado
com perfeição por um homem consistente. E isso, pensou Bond, enquanto
fazia seu carro voar pela colina, em direção de Chatham, deixando vários
carros para trás, explicaria parcialmente a ganância de Goldfinger, por mais
e mais dinheiro. Devoção à causa, à SMERSH e talvez o prêmio de contrapeso
de uma Ordem de Lenine seriam o pretexto para recolher 10 ou 20 mil
dólares, quando as oportunidades fossem boas, ou quando fosse possível
controlá-las e ajustá-las favoravelmente. Os recursos para a Revolução
Vermelha, para a disciplina pelo medo, que era a especialidade da SMERSH,
nunca eram suficientemente grandes. Goldfinger não estava fazendo dinheiro
para ele próprio. Ele o estava amontoando para a conquista do mundo! O
risco menor de ser descoberto, como tinha sido por Bond, não era nada
importante. Por quê? Ao que poderia, o Banco de Londres conseguir que o
condenassem, se todas as suas anteriores pudessem ser descobertas e
denunciadas? Dois anos? Três?
O tráfego era mais leve, nas cercanias de Gillingham. Bond continuou a
guiar mas, dali por diante, com calma, não se apressando, seguindo com seu
raciocínio, enquanto mãos e pés continuavam com suas reações automáticas.
Então, em 1937, a SMERSH deve ter mandado Goldfinger viajar, com a
cinta de ouro ao redor de sua jovem cintura. Teria demonstrado suas aptidões
especiais, durante seu treinamento, na Escola de Espiões de Leningrado. Ter-
lhe-iam dito que haveria uma guerra e que ele deveria e precisaria começar a
cavar e quietamente, juntar. Goldfinger não deveria nunca sujar as mãos,
nunca encontrar-se com nenhum agente, nunca receber ou transmitir
nenhuma mensagem. Um jeito qualquer deveria ter sido arrumado. Qualquer
coisa assim como "Vaxhall de segunda mão", "Rover Imaculado, 2.000
libras", "Bentley, 5.000", sempre um anúncio de carro, que não atrairia nem
atenções nem correspondência. Na coluna de "Precisa-se", do "Times",
talvez. E, obedientemente, Goldfinger ia deixando as barras de ouro de mil,
dois mil, cinco mil libras esterlinas, nos locais de entrega, que constituíam a
longa (longuíssima) série arranjada por Moscou, muito antes de ele partir de
lá. Numa determinada ponte, numa árvore, embaixo duma pedra, num
regato, em qualquer lugar da Inglaterra. E ele nunca mais, em nenhuma
circunstância, voltaria ao mesmo local. Seria problema de Moscou certificar-
se de que o agente chegasse ao tesouro escondido. Mais tarde, depois da
guerra, quando Goldfinger começou a aparecer, quando ia se tornando um
grande homem, o lugar da entrega não mais seriam árvores ou pedras.
Agora, ele receberia instruções e números de caixas de segurança para
depósitos, depósitos de bagagens, nas estações. Mas ainda deveria prevalecer
a regra de que Goldfinger nunca deveria visitar o local, nunca arriscar-se
pessoalmente. Talvez receber suas instruções apenas uma vez por ano, num
encontro casual em algum jardim, numa carta posta em seu bolso, numa
viagem de trem. E sempre seriam barras de ouro, anônimo, impossível de
demonstrar a procedência, quando capturado — exceto pelo minúsculo Z,
que a sua vaidade havia arranhado para assinar seu trabalho e que um
entediado inglês do Banco da Inglaterra, chamado Coronel Smithers
encontrara, no desenrolar de suas obrigações.
Bond rodava através dos intermináveis orquidários dos criadores de
Faversham. O sol apareceu por trás da neblina de Londres. À sua esquerda,
havia o distante reverberar do rio Tâmisa. Havia tráfego, no rio — os barcos-
tanques, compridos e brilhantes, os de vendedores, as antediluvianas
barcaças holandesas. Bond deixou a estrada de Canterbury e enveredou pela
incongruentemente rica auto-estrada que se estende pelo mundo de bangalôs
de férias — Whitstable, Herne Bay, Birchington, Margate. Ele ainda se
mantinha a 50 milhas por hora, segurando o carro em rédea leve, ouvindo o
suave roncar nos escapamentos, ajustando os pedaços de pensamento no
quebra-cabeça geral, como havia feito com o rosto de Goldfinger, duas
noites antes, no Identcast.
E, continuou a raciocinar Bond, enquanto Goldfinger ia servindo um
milhão, dois milhões por ano, à sangrenta boca da SMERSH, também
amontoava suas próprias reservas, trabalhando-as, fazendo-as trabalhar para
ele, toda vez que as oportunidades eram favoráveis, estufando os extras para
o dia em que as trombetas soassem no Kremlin e todo ouro tivesse que ser
mobilizado. E ninguém fora do Kremlin tinha percebido o processo,
ninguém suspeitava de que Goldfinger — o joalheiro, o metalúrgico, o
residente de Reculver e Nassau, o respeitável membro do Blades e do Royal
St. Marks, em Sandwich — era um dos maiores conspiradores de todos os
tempos, de que havia financiado o assassínio de centenas, talvez milhares de
vítimas da SMERSH por todo o mundo. SMERSH, "Smiert Spionam", "Morte
aos espiões" — o aparato homicida a serviço do Presidium Supremo! E
apenas M o suspeitara, somente Bond o sabia. Aqui estava Bond lançado
contra esse homem por uma série de fatos, uma corrente de circunstâncias,
que tinham se iniciado com o defeito num avião, no outro lado do mundo.
Bond sorriu alegremente para si próprio. Quão amiúde, na sua profissão,
tinha acontecido o mesmo — o pequeno grão de coincidência, que levava à
árvore imensa, que obscurecia o céu. E, agora, uma vez mais, ele estava se
preparando para a derrubada do mal. Com o quê? Com uma bolsa de tacos
de golfe?
Um Ford Popular, repintado de azul celeste, com largos pára-lamas
amarelos, deslizava preguiçosamente pelo centro da estrada, à frente.
Mecanicamente, Bond deu dois tapinhas polidos na buzina. Não houve
reação. O Ford Popular ia nos seus seguros 40 quilômetros. Por que haveria
alguém de querer andar mais depressa que essa respeitável velocidade? O
Ford, obstinadamente, deu de ombro, e continuou seu curso. Bond deu uma
buzinada raivosa, esperando que o outro se afastasse. Mas teve que usar os
freios, porque o Ford não se moveu. Raio de homem! Claro: era a figura
usual, de mãos tensas segurando, muito no alto, a roda da direção, o chapéu
inevitável, desta vez um particular odioso chapéu negro de copa alta, metido
retamente na cabeça em forma de bala. Ora, bem, pensou Bond: não eram as
suas úlceras... Mudou a marcha, pisou no acelerador e, com desprezo, lançou
o D.B.III voando, pelo lado do outro. Palhaço, idiota!
Mais cinco milhas e ele atravessara Herne Bay. Um grupo de três aviões
a jato, os Super-Sabres, se dirigia à pista, para pousar. Eles baixaram para
além do horizonte, à direita de Bond, como se fossem espatifar de encontro
ao solo. Com metade da atenção, Bond ouviu o ronco dos jatos alcançá-los,
enquanto aterravam e taxiavam para os hangares. Chegou a uma
encruzilhada: à esquerda, a tabuleta dizia "Reculver". Embaixo, havia o sinal
antigo para marcar a igreja de Reculver. Bond diminuiu a marcha, mas não
parou. Nada de flanar por ali. Guiou serenamente, mantendo os olhos bem
abertos. A linha da praia era muito exposta, para que um barco fizesse outra
coisa além de ancorar normalmente. Provavelmente, Goldfinger teria usado
Ramsgate. Era um pequeno porto, muito quieto. Os fiscais da alfândega e da
polícia provavelmente só estariam alerta para ver se descobriam conhaque
vindo da França. Havia um denso grupo de árvores entre a estrada e a praia,
uma faixa de telhados, e uma chaminé de uma fábrica de tamanho médio,
com a sua leve plumagem de fumaça clara, ou vapor. Teria que ser aquela.
Logo, abrir-se-ia o portão para uma longa viagem. Um aviso discreto mas,
autoritário, dizia: "Thanet Alloys" e, embaixo: "Proibida a entrada, exceto a
serviço". Tudo muito respeitável. Bond guiou devagar, para a frente. Nada
mais havia para ser visto. Tomou a próxima curva para a direita, através da
planície do campo de Manston, para Ramsgate.
Era meio-dia. Bond inspecionou seu quarto, um duplo com banheiro, no
alto de Channel Packet, desemalou seus poucos pertences e desceu para o
barzinho, onde tomou tônica e vodca, com dois sanduíches de excelente
presunto, com muita mostarda. Então, voltou para o carro, e se dirigiu,
vagarosamente para o Royal St. Marks, cm Sandwich. Carregou seus tacos
de golfe para uma oficina profissional e atravessou-a até o quarto de
consertos. Alfred Blacking estava enrolando um novo cabo, num taco.
— Como vai, Alfred?
O profissional olhou para cima, vivamente. Sua face queimada do sol se
rasgou num sorriso largo:
— Ora! Vejam se não é Mr. James! — Apertaram-se as mãos. — Puxa,
devem fazer quinze ou vinte anos! Que é que traz o senhor aqui? Alguém
estava me dizendo, ainda outro dia, que o senhor estava na diplomacia, ou
coisa parecida. Sempre no estrangeiro. Bom, eu nunca imaginei!... Ainda
tem o mesmo defeito de mandar a bola? — Alfred juntou as mãos e suspirou.
— Receio que sim, Alfred. Nunca tive tempo de me livrar desse defeito.
Como é que vai a Sra. Blacking e Cecil?
— Não posso me queixar. Cecil foi muito bem sucedido no Campeonato
de Kent, no ano passado. Deve ganhá-lo, este ano, se puder sair mais da loja
e treinar mais nos campos.
Bond encostou sua bolsa de tacos na parede. Era bom estar de volta.
Tudo estava exatamente igual. Houve uma época, antes dos seus vinte anos,
quando jogava duas partidas por dia, em todos os dias da semana, no Sta.
Marks. Blacking sempre quisera tomá-lo sob sua direção. "Um pouco de
prática, Mr. James, e o senhor estará prontinho. Não é brincadeira, não. O
senhor realmente estaria. Por que é que tem de continuar aí, nos seis pontos?
O senhor tem duro, a não ser esse golpe seco e querendo mandar a bola para
longe demais, quando não há razão nenhuma para isso. E o senhor tem o
temperamento necessário. Uns dois anos, talvez apenas um, e eu poderia
inscrevê-lo no de Amadores. Mas, alguma coisa dizia a Bond que não
haveria muito golfe na sua vida e, se gostava do esporte, seria melhor se
esquecer de lições e jogá-lo o mais que pudesse. Sim, seriam uns vinte anos,
desde que jogara pela última vez nos campos de St. Marks. Nunca voltara,
mesma quando houvera aquele sangrento episódio em Kingsdown, 15
quilômetros mais abaixo, na costa. Talvez tenha sido sentimentalismo.
Desde St. Marks, Bond tivera muitos fins de semana com golfe, quando
estava parado no quartel-general. Mas sempre nos campos ao redor de
Londres — Huntercombe, Swuinley, Sunningdale, Berkshire. A sua média
tinha subido até nove. Mas era um nove de verdade — tivera que se manter
no esporte que decidira jogar, as 10 libras de Nassau, os sujeitos duros que
sempre insistiam numa dupla de tragos de "kümmel", depois do almoço.
— Alguma chance de encontrar parceiro, Alfred?
O profissional olhou pela janela traseira, para os campos abertos.
— Acho que não muita, senhor. Não aparecem muitos jogadores no meio
da semana, nesta época do ano.
— E você?
— Desculpe, mas não posso. Tenho compromisso com um membro do
clube. É uma coisa rotineira. Todos os dias, às duas horas. E o diabo é que
Cecil foi até o Princes, para treinar um pouco para o campeonato. Que
massada besta! (Alfred nunca usava nenhuma expressão mais forte que
essa). Tinha que acontecer uma coisa assim... Quanto tempo o senhor vai
ficar por aqui?
— Pouco tempo. Não se importe, não. Eu jogarei umas bolas com o
caddie. Quem é o sujeito com quem você vai jogar?
— Um tal de Mr. Goldfinger. — Alfred tinha uma expressão desiludida.
— Ah, o Goldfinger. Eu conheço o sujeito. Conheci-o outro dia, na
América.
— Conheceu, mesmo? — Era evidente que Alfred achava incrível que
alguém pudesse conhecer Goldfinger. Ficou vigiando a face de Bond, para
descobrir qualquer outra reação mais.
— E ele é bom?
— Mais ou menos. Quase bom pelos nove.
— Ele deve tomar esse negócio muito a sério, se joga com você todos os
dias.
— E é isso mesmo, senhor! — A face do profissional tinha a expressão
de que Bond se lembrava muito bem. Significava que Blacking tinha uma
opinião desfavorável do sócio em questão, mas era um servidor muito bom,
para deixar que isso extravasasse.
Bond sorriu. Em seguida, comentou:
— Você não mudou nada, Alfred. Você quer dizer que ninguém jogaria
com o sujeito. Lembra-se de Farquharson? O jogador mais lerdo de toda a
Inglaterra. Eu me lembro de você sempre atrás dele, voltas e voltas. Vamos,
vamos! Que é que há com Goldfinger?
O profissional riu. E disse:
— É o senhor que não mudou, Mr. James. O senhor sempre foi muito
perguntador. Deu mais um passo para perto e baixou a voz: — A verdade é
que muitos sócios pensam que Mr. Goldfinger é um pouquinho esquentado.
O senhor entende: melhora sua bola no chão e coisas assim. — O
profissional pegou o taco que tinha estado a segurar, levantou-o na pose de
jogar, olhou para um dos buracos imaginários e balançou a cabeça do taco
para cima e para baixo, como se estivesse mandando uma bola: — Deixa
ver: será esta uma bola para taco de metal, caddie? Que é que você pensa?
— Alfred Blacking fungou: — Naturalmente, quando ele termina de cutucar
a terra por trás da bola, a bola suspendeu uma polegada — e então será uma
bola para bater com o taco de metal. — A expressão de Alfred se fechou de
novo. Disse, então, numa expressão neutra: — Mas isso é só falatório,
senhor. Eu nunca vi nada. É um cavalheiro quieto. Tem uma propriedade em
Reculver. Vinha por aqui muitas vezes. Mas, nos últimos meses, tem vindo à
Inglaterra só por umas semanas, cada vez. Telefona e pergunta se tem
alguém querendo jogar com ele e, se não há ninguém, escala eu e o Cecil.
Telefonou esta manhã e perguntou se havia alguém por aí. Vez em quando,
alguém aparece. — Alfred Blacking olhou interrogativamente para Bond: —
Será que o senhor não gostaria de jogar com ele, esta tarde? Parece esquisito
o senhor estar por aqui, sem parceiro, e conhecendo o homem, por cima. Ele
poderá pensar que eu o esteja guardando para mim, ou coisa assim. E isso
não ficaria bem.
— Besteira, Alfred. Além do mais, você tem que ganhar a vida. Por que
a gente não joga em três?
— Ele não faria isso, não. Diz que é muito vagaroso. E eu também acho.
E o senhor não se preocupe com o meu pagamento. Há muito serviço para
ser feito aqui na oficina e eu gostaria, mesmo, de uma tarde livre, para me
dedicar a isso. — Olhou de relance para seu relógio: — Ele estará chegando
a qualquer momento, agora. Arranjo um caddie para o senhor. Lembra-se de
Hawker? — Alfred Blacking riu: — O velho Hawker ainda é o mesmo. É
um outro que vai ficar contente de vê-lo por aqui, de novo, Mr. Bond.
Bond replicou:
— Muito obrigado, Alfred. Mas eu gostaria de ver como é o jogo desse
sujeito. Por que não fazer o seguinte? Você diz que eu passei por aqui, para
apanhar um taco, ou consertar um. Sócio velho. Que eu já joguei aqui antes
da guerra. De fato, preciso de um novo taco n.° 4. Aquele velho, que você
me deu, já está dando o prego. Diga coisas assim, casuais. Não fale que
contou que ele estava por aqui. Ficarei pela oficina e assim lhe dou a
oportunidade de escolher, sem ofendê-lo. Talvez ele não goste da minha
cara, ou qualquer coisa. Certo?
— Tá bom, Mr. James. Deixa comigo. O carro dele está chegando, já. —
Blacking apontou pela janela: uns oitocentos metros adiante, um carro
amarelo rebrilhante fazia a curva e entrava pela avenida privativa do clube.
— Calhambeque esquisito, aquele. Parece com os que se viam, quando eu
era criança.
Bond olhou o velho Silver Ghost vencer majestosamente a avenida, em
direção à sede do clube. Era uma beleza, de carro! O sol reverberava no
radiador niquelado, nas partes laterais do capo e nos caixilhos do vidro da
frente. O porta--bagagem no teto da carroçaria estilo "limousine" — tão feio
há 20 anos e tão estranhamente belo hoje — era de cobre polido, como o
eram os faróis dianteiros, destacados por cima dos pára-lamas, espiando
petulantemente para a estrada, ao lado da buzina. O carro inteiro, exceto pela
carroçaria e o teto negros, era de um amarelo gritante. Passou pela cabeça de
Bond que o tal presidente sul-americano deveria ter copiado o modelo do
famoso carro amarelo no qual Lord Lonsdale ia ao Derby e a Ascot.
E agora? No lugar do motorista estava uma figura usando um guarda-pó
e boné da cor de café com leite, sua face redonda e grande meio escondida
pelos óculos negros de corredor. A seu lado, um homem quadrado,
atarracado, vestido de preto, mantinha o chapéu firmemente seguro no centro
da cabeça. Os dois olhavam diretamente para a frente, com uma curiosa
imobilidade. Era como se, ao invés daquele automóvel, estivessem num
carro fúnebre.
O carro se aproximava. Os seis pares de olhos — os olhos dos dois
homens e as enormes órbitas gêmeas do veículo — pareciam olhar
diretamente através da pequena janela, para os olhos de Bond.
Instintivamente, Bond afastou-se alguns passos para os lados escuros da
oficina. Notou o movimento e sorriu para si mesmo. Pegou um descanso de
bola de alguém, abaixou-se e, pensativamente, o colocou sobre um nó do
assoalho de madeira.
SEGUNDA PARTE
Coincidência
8
tudo para jogar
Bond saiu da estrada principal, entrou na alameda e seguiu por ela, entre
os altos pinheiros vitorianos, até a área pedregulhada diante da casa, que era
exatamente da espécie que merecia ser chamada de Granja — uma feia e
pesada mansão do começo do século, com um terraço envidraçado cujo
cheiro de sol fechado, plantas e moscas mortas, Bond sentiu com a
imaginação antes mesmo de ter desligado o motor. Desceu vagarosamente
do carro e ficou olhando a casa. Ela também olhava com seus olhos vazios e
caiados. A casa tinha um barulho de fundo, um forte latejar rítmico como um
enorme animal com pulsação muito rápida. Bond presumiu que proviesse da
fábrica, cuja chaminé se erguia como um gigantesco dedo admonitório entre
as altas coníferas à direita, onde normalmente deveriam ficar os estábulos e
garagens. A silenciosa e vigilante fachada da casa parecia estar esperando
que Bond fizesse alguma coisa, fizesse algum movimento ofensivo ao qual
seria dada pronta resposta. Bond encolheu os ombros para aliviar seus
pensamentos, subiu os degraus que levavam à porta de painéis de vidro
opaco e apertou a campainha. Não ouviu barulho da campainha, mas a porta
abriu-se vagarosamente. O motorista coreano ainda estava com seu chapéu-
de-côco. Olhou sem interesse para Bond. Permaneceu imóvel, com a mão
esquerda no trinco do lado de dentro da porta e a mão direita estendida,
apontando como uma flecha indicativa para o hall escuro da casa.
Bond entrou, passando ao lado dele e vencendo o desejo de pisar em
seus pés pretos e lustrosos ou dar-lhe um soco bem forte no estômago preto
firmemente abotoado. Esse coreano correspondia ao que sempre ouvira dizer
dos coreanos e, de qualquer maneira, Bond desejava fazer algo violento com
a atmosfera pesada e elétrica da casa.
O sombrio hall era também a principal sala de estar. Um magro fogo
bruxuleava por trás da grade da larga lareira. Duas poltronas e um sofá
Knole observavam impassivelmente as chamas. Entre eles, sobre um canapé
baixo, havia uma bem sortida bandeja de bebidas. Os amplos espaços ao
redor dessa centelha de vida estavam cheios de maciças e rothschildianas
peças de mobiliário do Segundo Império. Ouropel, tartaruga, bronze e
madrepérola cintilavam ricamente sob a luz da pequena fogueira. Por trás
desse ordeiro museu, lambris escuros subiam até uma galeria ao nível do
primeiro andar, à qual se chegava por uma pesada escada curva do lado
esquerdo do hall. O forro era guarnecido com a lúgubre madeira trabalhada
da época.
Bond estava em pé absorvendo isso tudo quando o coreano reapareceu
silenciosamente. Estendeu a flecha indicativa de seu braço em direção à
bandeja de bebidas e às poltronas. Bond acenou com a cabeça e ficou onde
estava. O coreano passou a seu lado e desapareceu por uma porta que Bond
presumiu conduzir aos alojamentos da criadagem. O silêncio, ajudado pelo
vagaroso e metálico tique-taque de um relógio de caixa maciçamente
decorado, avolumou-se e tornou--se mais próximo.
Bond avançou para a lareira e ficou de costas para o fogo. Fitou
ofensivamente o aposento. Que pocilga! Que lugar horrível para se viver.
Como vivia alguém, como podia alguém viver nesse rico e opressivo
necrotério entre as coníferas quando a uma centena de metros havia luz, ar e
largos horizontes? Bond tirou um cigarro e acendeu-o. Que fazia Goldfinger
no referente a distração, prazer e sexo? Talvez não precisasse dessas coisas.
Talvez a procura de ouro saciasse todas as suas sedes.
Em algum lugar distante um telefone tocou. A campainha soou
agudamente duas vezes e silenciou. Houve um murmúrio de vozes. Depois
passos ecoaram em um corredor e uma porta embaixo da escada abriu-se.
Goldfinger entrou e fechou a porta sem fazer barulho. Vestia uma jaqueta de
jantar, de veludo, cor de ameixa. Avançou vagarosamente pelo soalho de
madeira encerada. Não estendeu a mão. Disse, sorrindo só com a boca.
— Foi muita bondade sua ter vindo, convidado com tão pouca
antecedência, Sr. Bond. Estava sozinho e eu também. Ocorreu-me então que
poderíamos discutir o preço do milho.
Era a espécie de observação que homens ricos fazem entre si. Bond
achou divertido ser membro temporário do clube. Respondeu:
— Fiquei encantado em receber o convite. Já estava aborrecido de
preocupar-me com meus problemas. Ramsgate não tem muita coisa a
oferecer.
— Não. E agora preciso pedir-lhe desculpas. Recebi um telefonema. Um
de meus empregados — a propósito, eu emprego coreanos — teve uma
pequena dificuldade com a polícia de Margate e eu preciso ir até lá para
arrumar as coisas. Soube que foi um incidente no parque de diversões. Essa
gente excita-se facilmente. Meu chofer vai levar-me e não demoraremos
mais de meia hora. Enquanto isso, acho que preciso deixá-lo sozinho. Por
favor, sirva-se de bebidas. Há revistas, para ler. Desculpa-me? Garanto-lhe
que não demorarei mais de meia hora.
— Está muito bem — disse Bond, sentindo que havia algo de suspeito
naquilo. Mas não conseguia imaginar o que era.
— Bem, então, até a volta — disse Goldfinger, encaminhando-se para a
porta da frente. — Mas preciso acender algumas luzes para você. Aqui está
realmente muito escuro.
Goldfinger passou a mão por um quadro de interruptores e de repente
brilharam luzes em todo o hall — nos abajures de coluna, nas arandelas e em
quatro lustres no forro. Agora o aposento estava tão iluminado quanto um
estúdio cinematográfico. Era uma transformação extraordinária. Meio
aturdido, Bond viu Goldfinger abrir a porta da frente e sair. Um minuto
depois, ouviu o barulho de um carro, mas não o Rolls. O carro foi
ruidosamente acelerado, mudou de marcha e disparou pela alameda.
Por instinto, Bond chegou até a porta da frente e abriu-a. A alameda
estava vazia. À distância, viu as luzes do carro virarem para a esquerda na
estrada principal e afastarem-se na direção de Margate. Voltou para dentro
da casa e fechou a porta. Ficou imóvel, escutando. O silêncio era completo, a
não ser pelo alto tique-taque do relógio. Caminhou até a porta de serviço e
abriu-a. Um comprido e escuro corredor desaparecia em direção ao fundo da
casa. Bond curvou-se para frente, com todos os sentidos alertas. Silêncio, um
silêncio mortal. Fechou a porta e correu pensativamente os olhos pelo hall
brilhantemente iluminado. Havia sido deixado sozinho na casa de
Goldfinger, sozinho com os segredos da casa. Por quê?
Bond aproximou-se da bandeja de bebidas e serviu-se de uma forte dose
de gim com tônica. Não havia dúvida que houvera um telefonema, mas
poderia facilmente ter sido uma ligação premeditada feita da fábrica. A
história do empregado era plausível e era razoável que Goldfinger fosse
pessoalmente pagar a fiança do homem, levando consigo o chofer.
Goldfinger mencionara duas vezes que Bond ficaria sozinho durante meia
hora. Poderia ter sido uma observação inocente, mas poderia também ter
sido um convite para que Bond abrisse o jogo e cometesse alguma
indiscrição. Estaria sendo observado por alguém? Quantos desses coreanos
existiriam e que estariam eles fazendo? Bond olhou para seu relógio. Já
haviam passado cinco minutos. Decidiu-se. Com cilada ou sem cilada, era
uma oportunidade boa demais para ser perdida. Poderia dar uma rápida
olhada em roda — mas uma olhada inocente, com alguma história preparada
para explicar porque saíra do hall. Por onde devia começar? Dar uma olhada
na fábrica. E a história? Diria que seu carro apresentara defeito na viagem —
provavelmente estava afogando — e que fora ver se havia um mecânico que
lhe pudesse dar uma mão. Frágil, mas serviria. Bond tomou a bebida de um
gole, encaminhou-se decididamente para a porta de serviço e entrou por ela.
Havia um interruptor na parede. Bond acendeu a luz e avançou
rapidamente por um comprido corredor, que terminava em uma parede lisa,
com duas portas, à direita e à esquerda. Ficou escutando um instante na porta
da esquerda e ouviu barulhos abafados de cozinha. Abriu a porta da direita e
encontrou-se, como poderia ter esperado, no pátio pavimentado da garagem.
A única coisa estranha é que estava brilhantemente iluminado por lâmpadas
elétricas. A longa parede da fábrica estendia-se do outro lado e agora as
batidas rítmicas do motor soavam muito alto. Havia uma porta comum de
madeira na parede do outro lado. Bond atravessou o pátio, olhando em roda
com interesse casual. A porta não estava fechada à chave. Abriu-a
discretamente e entrou, deixando-a entreaberta. Viu-se em um pequeno
escritório vazio iluminado por uma única lâmpada nua pendente do teto.
Havia uma mesa com papéis em cima, um relógio de ponto, um par de
armários de arquivo e um telefone. Outra porta ligava o escritório ao salão
principal da fábrica e, ao lado da porta, havia uma janela para vigiar os
trabalhadores. Devia ser o escritório do capataz. Bond aproximou-se da
janela e olhou por ela.
Bond não sabia que havia esperado, mas o que viu parecia ser o
equipamento comum de uma pequena indústria metalúrgica. À sua frente
havia as bocas abertas de duas fornalhas, agora com o fogo apagado. Ao lado
delas estendia--se uma fileira de fornos para metal fundido, do qual havia
folhas de tamanhos e cores diferentes encostadas em uma parede próxima.
Havia uma mesa de aço polido com serra circular, presumivelmente serra de
diamante, para cortar as folhas e, à esquerda, na sombra, um grande motor a
óleo ligado a um gerador roncava produzindo energia. À direita, sob
lâmpadas elétricas, um grupo de cinco homens de macacão, quatro deles
coreanos, trabalhavam — por incrível que parecesse — no Rolls-Royce de
Goldfinger. O carro cintilava sob as luzes, impecável salvo quanto à porta
direita que fora tirada de suas dobradiças e estava sobre dois bancos
próximos sem a chapa externa. Enquanto Bond observava, dois homens
apanharam a nova chapa, uma pesada e descolorida folha de metal cor de
alumínio, e colocaram-na sobre a armação da porta. Havia dois rebitadores
manuais no chão e logo, pensou Bond, os homens rebitariam a chapa no
lugar e pintá-la--iam para que combinasse com o resto do carro. Tudo
perfeitamente inocente e acima de qualquer suspeita. Goldfinger amassara a
porta naquela tarde e mandara fazer um rápido conserto, como preparativo
para sua viagem no dia seguinte. Bond deu um rápido e mal-humorado olhar
a seu redor, afastou-se da janela, saiu pela porta da fábrica e fechou-a
silenciosamente. Diabo! Ali nada havia. E agora que iria dizer? Que não
quisera incomodar os homens em seu trabalho... talvez depois do jantar, se
um deles estivesse desocupado por um momento.
Bond voltou sem pressa pelo mesmo caminho e chegou ao hall sem
contratempos.
Olhou o relógio. Faltavam dez minutos. Agora, o primeiro andar. Os
segredos de uma casa estão nos dormitórios e banheiros. São os lugares
privados, onde os armários de remédios, a camiseira, as gavetas ao lado da
cama revelam as coisas íntimas, as fraquezas. Bond estava com muita dor de
cabeça. Ia procurar uma aspirina. Representou para uma platéia invisível.
Esfregou as têmporas, olhou para a galeria, atravessou decididamente o hall
e subiu a escada. A galeria dava para um corredor brilhantemente iluminado.
Bond avançou por ele, abrindo as portas e olhando dentro dos aposentos.
Mas eram dormitórios vazios, cujas camas não estavam arrumadas. Tinham
cheiro de bolor e de janelas fechadas. Um grande gato amarelo avermelhado
apareceu sem que Bond soubesse de onde e seguiu-o, miando e esfregando-
se nas pernas de sua calça. O último quarto era o que interessava. Bond
entrou e encostou a porta, deixando apenas uma fresta aberta.
Todas as luzes estavam acesas. Talvez um dos empregados estivesse no
banheiro. Bond caminhou ousadamente até a porta de comunicação e abriu-
a. Mais luzes, mas ninguém. Era uma grande sala de banho, provavelmente
um dormitório transformado em banheiro. Além da banheira e da pia, havia
vários aparelhos de exercício: uma máquina de remar, uma roda de bicicleta
fixa, maças índias e um Cinto de Saúde Ralli. O armário de remédios nada
continha além de uma grande variedade de purgativos: vagens de sena,
cascara sagrada, Calsalettes, Enos e vários aparelhos destinados ao mesmo
fim. Não havia outros remédios e nada de aspirina. Bond voltou ao
dormitório e nada viu de suspeito também. Era o dormitório típico de um
homem, confortável e com aparência de uso, dotado de numerosos armários
embutidos. Tinha até mesmo cheiro neutro. Havia uma pequena estante ao
lado da cama na qual todos os livros eram de história ou biografia, todos em
inglês. A gaveta da mesa de cabeceira apresentou uma solitária indiscrição,
um exemplar de capa amarela de The Hidden Sight of Love (*), Palladium
Publications, Paris.
(*) N. do T. — "A Visão Oculta do Amor".
Bond olhou seu relógio. Mais cinco minutos. Era tempo de voltar.
Correu os olhos pelo quarto pela última vez e caminhou em direção à porta.
De repente, parou. Que havia observado quase subconscientemente desde
que entrara no quarto? Aguçou seus sentidos. Havia uma incongruência em
algum lugar. Qual era? Uma cor? Um objeto? Um cheiro? Um som? Era
aquilo! De onde estava podia ouvir um zumbido muito fraco, como de um
mosquito. Era de uma altura quase imperceptível ao ouvido. De onde vinha?
Era produzido por que? Agora havia mais alguma coisa no quarto, alguma
coisa que Bond conhecia muito bem: o cheiro de perigo.
Tensamente, aproximou-se do armário embutido ao lado da cama. Abriu-
o vagarosamente. Sim, vinha de dentro do armário, de trás de uma fileira de
paletós esportes que caíam até a parte superior das três gavetas. Brutalmente,
Bond empurrou os paletós para os lados. Cerrou os dentes ao ver o que havia
atrás deles.
De três fendas perto do alto do armário, filmes de dezesseis milímetros
desciam vagarosamente em três tiras separadas para dentro de uma funda
caixa por trás da frente falsa das gavetas. As viscosas cobras de filme
enchiam quase metade da caixa. Os olhos de Bond estreitaram-se
tensamente, enquanto observava a prova condenatória enrolar-se
vagarosamente sobre a pilha. Então era isso: câmaras cinematográficas, três
delas, com as lentes escondidas só Deus sabia onde — no hall, no pátio da
garagem, naquele quarto — observando todos os seus movimentos desde
quando Goldfinger deixara a casa, ligando as câmaras e, naturalmente,
acendendo as luzes ofuscantes, ao passar pela porta. Por que Bond não
percebera a significação daquelas luzes? Por que não tivera a elementar
imaginação de ver a cilada e não só senti-la? Histórias para justificar seus
movimentos! De que adiantariam elas agora, depois de ter passado meia hora
espionando sem descobrir nada que compensasse seu trabalho? Isso também!
Nada descobrira — não desenterrara segredo algum. Fora tudo uma idiota
perda de tempo. E agora Goldfinger o tinha em suas mãos. Agora estava
liquidado, arrasado sem a menor esperança. Não haveria um meio de salvar
alguma coisa do naufrágio? Bond permaneceu imóvel, fitando a lenta
catarata de filme.
Vejamos! O espírito de Bond corria, imaginando meios e desculpas, mas
eliminando todos eles. Bem, pelo menos ao abrir a porta do armário velara
uma parte do filme. Então por que não velar todo o resto? Por que não, mas
como? Como poderia explicar que a porta fosse aberta, sem que ele a tivesse
aberto? Da fresta da porta do dormitório veio um miado. O gato! Por que não
poderia o gato ter feito aquilo tudo? Explicação bem fraca, mas seria pelo
menos a sombra de um álibi. Bond abriu a porta. Apanhou o gato nos braços.
Voltou com ele em direção ao armário, acariciando-o rudemente. O animal
ronronou. Bond debruçou-se sobre a caixa de filme e ergueu punhados dele
para que tudo recebesse luz. Depois, quando se convenceu de que devia estar
tudo velado, deixou-o cair de novo na caixa e jogou o gato por cima. O gato
não seria capaz de sair facilmente. Se tivesse sorte, ele se acomodaria e
dormiria. Bond deixou a porta do armário com uma fresta de uns cinco
centímetros para velar o filme que continuava rondando. Deixou também a
porta do quarto entreaberta e atravessou depressa o corredor. No alto da
escada, diminuiu o passo e desceu vagarosamente. O hall vazio bocejou
diante de sua representação. Bond caminhou até a lareira, derramou mais
bebida em seu copo e apanhou The Field. Abriu-o no comentário de golfe de
Bernard Darwin, correu os olhos por ele para ver do que tratava, sentou-se
em uma poltrona e acendeu um cigarro.
Que havia encontrado? Que havia do lado positivo? Muito pouco, exceto
que Goldfinger sofria de prisão de ventre, tinha uma mentalidade suja e
desejaria submeter Bond a uma prova elementar. Sem dúvida fizera isso com
habilidade. Não era trabalho de amador. A técnica estava perfeitamente à
altura dos padrões do SMERSH e era certamente a técnica de alguém que tinha
muita coisa a esconder. E agora que iria acontecer? Para que o álibi do gato
se sustentasse, era preciso que Goldfinger tivesse deixado abertas duas
portas, uma delas vital, e que o animal tivesse entrado no quarto e sido
atraído pelo zumbido das câmaras. Muito pouco provável, quase incrível.
Goldfinger teria noventa por cento de certeza de que fora Bond — mas só
noventa por cento. Ainda restariam aqueles dez por cento de incerteza.
Ficaria Goldfinger sabendo muito mais do que já sabia — que Bond era um
sujeito astucioso e engenhoso, que se mostrara muito curioso e que talvez
fosse um ladrão? Perceberia que Bond estivera no dormitório, mas os outros
movimentos de Bond, fosse qual fosse seu valor, continuariam sendo um
segredo no filme velado.
Bond levantou-se, apanhou um punhado de revistas e jogou-as no chão
ao lado de sua poltrona. A única coisa que lhe restava fazer era enfrentar
ousadamente a situação e anotar para o futuro — se ia haver futuro — que
faria bem em avivar suas idéias e não cometer mais erros. Não haveria no
mundo gatos amarelo-avermelhados em quantidade suficiente para ajudá-lo
a sair de outra situação tão difícil quanto aquela em que estivera.
Não houve barulho de carro descendo pela alameda, nem o som de uma
porta, mas Bond sentiu a brisa da tarde no pescoço e percebeu que
Goldfinger havia entrado de novo no aposento.
11
faz-tudo
15
a sala de pressão
A REAÇÃO de Bond foi automática. Não havia raciocínio por trás dela.
Deu um rápido passo à frente e jogou-se por cima da mesa em direção a
Goldfinger. Seu corpo, lançado em um mergulho baixo, bateu na tampa da
mesa e deslizou através da papelada. Houve uma forte batida quando sua
cabeça chocou com o ombro de Goldfinger. O impulso da pancada fez
Goldfinger virar na cadeira. Bond bateu com os pés para trás na beirada da
mesa, conseguiu um ponto de apoio e projetou-se de novo para frente.
Quando a cadeira virou para trás e os dois corpos caíram com o barulho de
madeira quebrando-se, os dedos de Bond procuraram a garganta de
Goldfinger e seus polegares afundaram na base do pescoço com toda força.
Depois, toda a casa caiu sobre Bond, uma viga de madeira atingiu-o na
base do crânio e ele rolou inerte de cima de Goldfinger para o chão, onde
ficou imóvel.
O vórtice de luz através do qual Bond estava girando achatou-se
vagarosamente, transformando-se em um disco, uma lua amarela e depois
em um ardente olho de Ciclope. Havia algo escrito em volta do faiscante
globo ocular. Era uma mensagem, uma mensagem importante para ele.
Precisava lê-la. Cuidadosamente, uma a uma, Bond soletrou as minúsculas
letras. A mensagem dizia: SOCIETÉ ANONYME MAZDA. Qual seria sua
significação? Um jato de água atingiu Bond no rosto. A água fez arder seus
olhos e encheu sua boca. Sentiu desesperada ânsia de vômito e tentou
mover-se. Não conseguiu. Seus olhos clarearam, assim como seu cérebro.
Sentia uma dor latejante na nuca. Estava olhando para um grande abajur
esmaltado com uma única e forte lâmpada. Estava sobre alguma espécie de
mesa, com os pulsos e os tornozelos amarrados nas beiradas dela. Tateou
com os dedos. Sentiu metal polido.
Uma voz, a voz de Goldfinger, monótona e desinteressada, disse:
— Agora podemos começar.
Bond virou a cabeça na direção da voz. Seus olhos estavam ofuscados
pela luz. Apertou-os bem e depois abriu-os. Goldfinger estava sentado em
uma cadeira de lona. Tirara sua jaqueta e estava em mangas de camisa.
Havia marcas vermelhas em volta da base de seu pescoço. Em uma mesa
dobradiça ao seu lado viam-se várias ferramentas, instrumentos de metal e
um painel de controle. Do outro lado da mesa, Tilly Masterton estava
sentada em uma cadeira. Seus pulsos e tornozelos estavam amarrados na
cadeira. Sentava-se com o corpo reto, como se estivesse na escola. Parecia
incrivelmente bela, mas traumatizada, distante. Seus olhos olhavam vazios
para Bond. Estava narcotizada ou hipnotizada.
Bond virou a cabeça para a direita. A alguns passos de distância estava o
coreano. Ainda usava seu chapéu-de-côco, mas estava nu da cintura para
cima. A pele amarela de seu enorme tórax brilhava de suor. Nela não havia
pelos. Os chatos músculos peitorais eram largos como pratos de jantar e o
estômago mostrava-se côncavo abaixo do grande arco das costelas. Os
bíceps e os antebraços, também sem pelos, eram grossos como coxas. A
superfície oleosa e oblíqua dos olhos parecia contente, sôfrega. Os dentes
escuros formavam um esgar oblongo de prelibação.
Bond levantou a cabeça. O rápido olhar em roda causou-lhe dor.
Estavam em uma das oficinas da fábrica. Luz branca brilhava em volta das
portas de ferro de duas fornalhas elétricas. Havia lâminas azuladas de metal
empilhadas em prateleiras de madeira. De um lugar qualquer vinha o
zumbido de um gerador. Ouvia-se o barulho distante e abafado de martelos
batendo e, por trás do som, o distante pulsar metálico da usina de energia.
Bond olhou para o fundo da mesa em que estava estendido. Deixou a
cabeça cair novamente com um suspiro. Havia uma estreita fenda ao longo
do centro da mesa de aço polido. Na extremidade da fenda, como uma massa
de mira enquadrada no "V" de seus pés separados, viam-se os dentes
cintilantes de uma serra circular.
Bond ficou deitado, fitando a pequena mensagem na lâmpada.
Goldfinger começou a falar em tom sossegado de conversa. Bond cerrou as
cortinas sobre a horrível cena reproduzida em sua imaginação e ouviu.
— Sr. Bond, a palavra "pena" provém do latim poena, que significa
"penalidade" — aquilo que precisa ser pago. Você agora precisa pagar pela
curiosidade que seu ataque contra mim provou ser, como eu suspeitava,
hostil. A curiosidade, como dizem, matou o gato. Desta vez terei de matar
dois gatos, pois temo que precisarei considerar essa moça também como
inimiga. Ela me disse que estava hospedada no Bergues. Um telefonema
provou que isso era mentira. Faz-tudo foi mandado até onde vocês estavam
escondidos e encontrou o fuzil dela, assim como um anel que eu reconheci.
Sob hipnotismo saiu o resto. Esta moça veio aqui para matar-me. Talvez
você também. Ambos falharam. Agora precisam pagar a poena. Sr. Bond —
a voz denotava tédio e aborrecimento — já tive muitos inimigos em minha
vida. Sou muito bem sucedido e imensamente rico. As riquezas, se me
permite aborrecê-lo com outro de meus aforismas, podem não fazer amigos,
mas aumentam grandemente a classe e a variedade dos inimigos.
— Diz isso com muita precisão.
Goldfinger ignorou a interrupção.
— Se fosse um homem livre, com seu talento para investigação, seria
capaz de encontrar pelo mundo as relíquias daqueles que me quiseram mal
ou que tentaram contrariar-me. Houve, como já disse, muitas dessas pessoas
e descobriria, Sr. Bond, que seus restos assemelham-se aos de porcos-
espinhos esmagados nas rodovias durante o verão.
— Comparação muito poética.
— Acontece, Sr. Bond, que eu sou poeta em atos — não muitas vezes
em palavras. Preocupo-me em ordenar minhas ações de acordo com padrões
adequados e eficientes. Mas isto é uma digressão. Desejo fazê-lo entender
que foi um dia muito ruim para você aquele em que cruzou meu caminho
pela primeira vez e, sem dúvida de maneira muito insignificante, contrariou
um minúsculo projeto em que eu estava interessado. Naquela ocasião outra
pessoa sofreu a poena que devia ter sido aplicada a você. Foi olho por olho,
mas não foi seu olho. Você teve sorte e, se tivesse encontrado então um
oráculo para consultar, o oráculo ter-lhe-ia dito: "Sr. Bond, teve muita sorte.
Conserve-se longe do Sr. Auric Goldfinger. Ele é um homem muito
poderoso. Se o Sr. Goldfinger quiser esmagá-lo, não precisa senão virar na
cama quando dormindo."
— Você se expressa muito vividamente — disse Bond, virando a cabeça.
A grande cabeça semelhante a uma bola de futebol marrom e alaranjada
estava ligeiramente inclinada para a frente. O rosto redondo como a lua era
afável, indiferente. Despreocupadamente, uma mão estendeu-se para o painel
de controle e baixou uma chave. Um ronco metálico baixo veio da ponta de
mesa sobre a qual Bond estava deitado. Transformou-se rapidamente em um
zumbido áspero e depois em um assobio alto e agudo que mal se ouvia.
Bond virou aborrecido a cabeça para o outro lado. Qual era o tempo mínimo
em que poderia morrer? Haveria algum meio pelo qual pudesse apressar a
morte? Um amigo seu havia sobrevivido à Gestapo. Descrevera a Bond
como tentara suicidar-se prendendo a respiração. Por uma força de vontade
sobre-humana, depois de alguns minutos sem respiração, caíra na
inconsciência. Com a paralisação dos sentidos, porém, a vontade e a
intenção também deixaram o corpo. E uma vez esquecida a razão, o instinto
de viver do corpo manejara as bombas e introduzira novamente ar no
organismo. Mas Bond poderia experimentar. Não havia outra coisa que
pudesse ajudá-lo a atravessar a barreira da dor antes da bênção da morte. A
morte era apenas uma saída. Sabia que não poderia contar a verdade a
Goldfinger e continuar vivendo consigo mesmo — no caso pouco provável
de Goldfinger poder ser comprado pela verdade. Não, precisava sustentar
sua débil história e esperar que o outro que o seguisse na pista de Goldfinger
tivesse mais sorte. Quem iria M escolher? Provavelmente 008, o segundo
dos três homens com licença para matar. Era um bom homem, mais
cuidadoso que Bond. M ficaria sabendo que Goldfinger matara Bond e daria
a 008 licença para matar em represália. O 258 em Genebra daria ao homem a
pista que terminava com a indagação de Bond sobre as Enterprises Auric.
Sim, o destino apanharia Goldfinger, se Bond pudesse conservar a boca
fechada. Se revelasse o menor indício, Goldfinger escaparia. Nem podia
pensar nisso.
— Pois bem, Sr. Bond — disse Goldfinger, com voz ríspida. — Chega
de amabilidades. Cante, como dizem meus amigos de Chicago, e morrerá
depressa e sem dor. A moça também. Não cante e sua morte será um longo
grito. Quanto à moça, darei a Faz-tudo para o jantar, como fiz com o gato.
Que vai decidir?
— Não seja bobo, Goldfinger — respondeu Bond. — Informei a meus
amigos da Universal para onde ia e porque. Os pais da moça sabem que ela
veio comigo. Fiz indagações sobre sua fábrica antes de virmos aqui. Seremos
localizados aqui muito facilmente. A Universal é poderosa. A polícia estará
atrás de você alguns dias depois de nosso desaparecimento. Posso fazer um
negócio com você. Deixa-nos ir embora e não se falará mais no assunto. Eu
me responsabilizo pela moça. Você está cometendo um erro estúpido. Nós
somos duas pessoas perfeitamente inocentes.
Goldfinger disse com voz entediada:
— Acho que não está compreendendo, Sr. Bond. Tudo quanto descobriu
a meu respeito, e suspeito que seja muito pouco, pode ser apenas um grão da
verdade. Estou empenhado em empreendimentos gigantescos. Arriscar-me a
deixar que qualquer de vocês saísse daqui seria absolutamente ridículo. Isso
está fora de cogitação. Quanto a ser incomodado pela polícia, terei o maior
prazer em recebê-la se aqui vier. Os meus coreanos que não são capazes de
falar não falarão — nem as bocas de minhas fornalhas elétricas que terão
transformado vocês dois e todos os seus pertences em vapor à temperatura
de dois mil graus centígrados. Não, Sr. Bond, faça sua escolha. Talvez eu
possa encorajá-lo — ouviu-se o barulho de uma alavanca movimentando-se
sobre dentes de ferro — a serra está agora aproximando-se de seu corpo na
velocidade de dois centímetros por minuto. Entrementes — prosseguiu
Goldfinger, olhando para Faz-tudo e erguendo um dedo — Faz-tudo aplicará
um pouco de massagem. Para começar, só o primeiro grau. O segundo e
terceiro graus são ainda mais convincentes.
Bond fechou os olhos. O enjoativo cheiro animal de Faz-tudo envolveu-
o. Grandes e irritantes dedos puseram-se a trabalhar cuidadosamente em seu
corpo. Uma pressão aqui, combinada com outra pressão lá, um apertão, uma
pausa e depois um golpe rápido e forte. As mãos duras eram sempre
cirurgicamente precisas. Bond cerrou os dentes até pensar que ia quebrá-los.
O suor de dor começou a formar poças nas órbitas de seus olhos fechados. O
agudo zumbido da serra tornava-se mais alto. Fazia lembrar a Bond os sons
com cheiro de pó de serra das noites de verão de muito tempo antes em seu
lar na Inglaterra. Lar! Este era seu lar, este casulo de perigo que escolhera
para viver. E ali seria enterrado "em algum canto de um alto-forno
estrangeiro onde a temperatura era sempre de dois mil graus centígrados".
Deus vos dê repouso, alegres cavalheiros do Serviço Secreto! Que epitáfio
poderia fazer para si próprio? Quais deveriam ser suas "famosas últimas
palavras"? Que a gente não tem escolha quanto ao próprio nascimento, mas
pode escolher a maneira como morre? Sim, isso ficaria bem em uma lápide
— não Savoir vivre, mas Savoir mourir.
— Sr. Bond — insistiu a voz de Goldfinger, que tinha agora uma
pontinha de urgência. — Isto será realmente necessário? Conte-me
simplesmente a verdade. Quem é você? Quem o mandou aqui? Que sabe?
Depois será tão fácil. Cada um de vocês dois tomará uma pílula. Não haverá
dor. Será o mesmo que tomar um comprimido de sedativo. Caso contrário,
será tão atrapalhado — atrapalhado e desagradável. E você não está sendo
leal com a moça! Isso é comportamento de um cavalheiro inglês?
O tormento de Faz-tudo havia cessado. Bond virou vagarosamente a
cabeça na direção da voz e abriu os olhos. Disse:
— Goldfinger, nada mais tenho a dizer-lhe porque nada mais existe. Se
não aceita minha primeira proposta, posso fazer-lhe outra. A moça e eu
trabalharemos para você. Que acha? Somos pessoas capazes. Poderia
aproveitar bem nossos serviços.
— E receber uma faca, duas facas nas costas? Não, muito obrigado, Sr.
Bond.
Bond decidiu que era tempo de parar de falar. Era tempo de começar a
dar corda na mola-mestra da força de vontade que não deveria desenrolar-se
de novo enquanto não estivesse morto. Cortesmente, Bond disse:
— Então pode ir para a...
Expeliu todo o ar dos pulmões e fechou os olhos.
— Nem eu sou capaz disso, Sr. Bond — disse Goldfinger com bom
humor. — E agora, já que escolheu o caminho pedregulhoso em lugar do
caminho macio, vou dar o maior interesse possível à sua provação tornando
o caminho o mais pedregulhoso possível. Faz-tudo, segundo grau.
A alavanca sobre a mesa movimentou-se sobre os dentes de ferro. Agora
Bond podia sentir o vento que a serra fazia entre seus joelhos. As mãos
baixaram.
Bond contou a pulsação vagarosamente latejante que dominava
completamente seu corpo. Era como a enorme e pulsante usina de energia na
outra parte da fábrica, mas, em seu caso, estava-se desacelerando
lentamente. Se pelo menos diminuísse mais depressa. Que era essa ridícula
vontade de viver que recusava ouvir o cérebro? Que fazia o motor funcionar
embora o tanque estivesse vazio de combustível? Mas precisava esvaziar de
pensamento sua mente, assim como esvaziar de oxigênio seu corpo.
Precisava tornar-se um vácuo, um fundo buraco de inconsciência.
A luz ainda ardia vermelha através de suas pálpebras. Ainda podia sentir
a ardente pressão em suas têmporas. O lento tambor da vida ainda batia em
seus ouvidos.
Um grito tentou sair à força através dos dentes cerrados.
Morra maldito, morra maldito, morra maldito, morra maldito, morra
maldito...
16
o último e o maior
Secretários: J. Bond
Srta. Tilly Masterton
Presentes:
Helmut M. Springer, Quadrilha Roxa. Detroit
Jed Midnight, Sindicato da Sombra. Miami e Havana
Billy (Risonho) Ring, A Máquina. Chicago
Jack Strap, Bando Reluzente. Las Vegas
Sr. Solo, Unione Siciliano
Srta. Pussy Galore, Misturadoras de Cimento. Harlém e Nova York
Agenda
Um projeto com o nome cifrado de
OPERAÇÃO GRANDE GOLPE
(Lanche)
Foi DOIS DIAS depois, Felix costurava velozmente com o Studillac preto
através das pistas do preguiçoso tráfego na ponte Triborough. Havia muito
tempo para apanhar o avião de Bond, o Monarch, noturno da B.Ò.A. para
Londres, mas Leiter gostava de abalar a má opinião que Bond fazia dos
carros americanos. O gancho de aço que usava como mão direita engatou o
câmbio em segunda e o baixo carro preto saltou por um estreito espaço entre
um gigantesco caminhão refrigerado e um vagaroso Oldmosbile cuja janela
traseira estava quase tapada por etiquetas de estâncias de férias.
O corpo de Bond saltou para trás com o impulso dos 300 b.h.p. e seus
dentes fecharam-se com uma batida. Quando foi completada a manobra e os
irados toques de buzina ficaram para trás, Bond disse maciamente:
— Já é tempo de você abandonar os carrinhos de menino e comprar um
veículo rápido. Você precisa progredir. Este negócio de pedalar envelhece a
gente. Qualquer dia desses você para completamente de movimentar-se e
quando a gente para de movimentar-se começa a morrer.
Leiter riu ao responder:
— Está vendo aquele farol verde lá na frente? Aposto como chego lá
antes de mudar para vermelho.
O carro saltou para a frente como se tivesse levado um pontapé. Houve
um breve hiato na vida de Bond, uma impressão de vôo e de uma parede
metálica de carros que se abriu milagrosamente diante do toque da buzina
tripla de Leiter, cem metros em que o velocímetro marcou 150. Depois
cruzaram o farol e avançaram suavemente pela pista do centro.
Bond disse calmamente:
— Se você encontrar um guarda de trânsito enfezado, aquele seu cartão
da Pinkerton de nada lhe adiantara, Não é tanto por guiar devagar que vão
multá-lo. É porque você amarra os carros de trás. O carro de que você
precisa é um belo e velho Rolls-Royce Fantasma Prateado, com grandes
janelas de vidro plano para poder apreciar as belezas da natureza —
prosseguiu Bond, fazendo um gesto em direção a um enorme monte de
automóveis velhos à direita. — A velocidade máxima é oitenta, e você pode
parar e até mesmo andar para trás se quiser. Buzina de bola. Vai bem com
seu estilo calmo. Por falar nisso, deve haver agora um à venda... o de
Goldfinger. E também por falar nisso, que diabo aconteceu com Goldfinger?
Não o agarraram ainda?
Leiter olhou para seu relógio e levou o carro para a pista de fora.
Reduziu a velocidade para 65. Disse em tom sério:
— Para dizer a verdade, todos nós estamos um pouco preocupados. Os
jornais investindo como o diabo contra nós, ou melhor, contra o pessoal de
Edgar Hoover. Em primeiro lugar, ficaram furiosos com o silêncio de
segurança que impusemos em torno de você. Não poderíamos dizer-lhes que
não era culpa nossa e que alguém em Londres, um velho inglês chamado M,
insistira nisso. Agora, estão-se desforrando. Dizem que estamos arrastando
os pés e assim por diante. E vou dizer-lhe uma coisa, James — a voz de
Leiter era triste e humilde — simplesmente não temos a menor pista.
Apanharam a diesel. Goldfinger regulou os controles na velocidade de 50
quilômetros e deixou-a correr pela linha. Em algum lugar ele e o coreano
saltaram. Provavelmente o mesmo fizeram aquela mulher chamada Galore e
os quatro bandidos, pois eles também desapareceram. Naturalmente
encontramos seu comboio de caminhões, esperando na estrada que vai de
Elizabethville para leste. Mas nenhum motorista. Provavelmente se
dispersaram, mas em algum lugar está Goldfinger escondido com uma turma
bem dura. Não chegaram ao cruzador "Sverdlovsk" em Norfolk. Espalhamos
pelo cais guardas à paisana, os quais informaram que o barco partiu na hora
marcada sem que estranhos tivessem subido a bordo. Perto daquele armazém
no East River não apareceu nem um gato e ninguém se apresentou em
Idlewild ou nas fronteiras — do México e do Canadá. Juro por meu dinheiro
que Jed Midnight levou-os de algum jeito para Cuba. Se tomaram dois ou
três caminhões do comboio e guiaram como loucos, podem ter chegado à
Flórida, em algum lugar como Daytona Beach, às primeiras horas do D-1. E
Midnight está muito bem organizado lá. A Guarda Costa e a Força Aérea
empregaram todos os seus recursos, mas até agora nada apareceu. É
possível, porém, que se tenham escondido durante o dia e seguido para Cuba
à noite. Isso deixou todo o mundo preocupado como o diabo e não ajuda
muito o fato de o presidente estar louco da vida.
Bond passara o dia anterior em Washington sendo alvo das mais
lisonjeiras homenagens. Houvera discursos no Departamento da Casa da
Moeda, um grande almoço no Pentágono, um embaraçoso quarto de hora
com o presidente e o resto do dia fora trabalho árduo com uma turma de
estenógrafos no conjunto de salas de Edgar Hoover, com a presença de um
colega de Bond da Estação A. Depois disso tudo, houvera uma animada
conversa de quinze minutos com M através do teletipo transatlântico da
Embaixada. M lhe contara o que estava acontecendo no lado europeu do
caso. Como Bond esperava, o cabograma de Goldfinger à Universal Export
fora tratado como emergência. As fábricas de Reculver e Coppet haviam
sido vasculhadas, tendo sido encontradas novas provas do contrabando de
ouro. O governo indiano fora avisado quanto ao avião da Mecca que já se
encontrava a caminho de Bombaim e aquele lado da operação já estava
sendo liquidado. A Brigada Especial Suíça encontrara rapidamente o carro
de Bond e descobrira a rota pela qual Bond e a moça haviam sido levados
para os Estados Unidos, mas lá, em Idlewild, o FBI perdera a pista. M
parecia satisfeito com a maneira como Bond lidara a Operação Grande
Golpe, mas disse que o Banco da Inglaterra o estava aborrecendo por causa
dos vinte milhões de libras de ouro de Goldfinger. Goldfinger guardara todo
o ouro na Paragon Safe Deposit Co. em Nova York, mas tornara a retirar no
D-1. Ele e seus homens haviam levado o ouro em um caminhão fechado. O
Banco da Inglaterra preparara uma ordem para apreender o ouro quando
fosse encontrado e seria então preciso provar que havia sido contrabandeado
da Inglaterra ou pelo menos que fora originariamente ouro contrabandeado
cujo valor aumentara por vários meios suspeitos. Mas quem estava cuidando
disso agora era o Tesouro dos Estados e o FBI Como M não tinha jurisdição
nos Estados Unidos, o melhor que Bond tinha a fazer era voltar
imediatamente para casa e ajudar a esclarecer as coisas. Oh, sim — no fim
da conversa a voz de M tornou-se ríspida — fora dirigido ao primeiro-
ministro um pedido muito amável para que permitisse a Bond aceitar a
Medalha Americana de Mérito. Naturalmente, M fora obrigado a explicar,
através do primeiro-ministro, que o Serviço não admitia essas coisas —
particularmente partindo de países estrangeiros, por mais amigos que
fossem. Era pena, mas M sabia que Bond já esperaria por isso. Conhecia as
regras. Bond disse que sim, naturalmente, que estava muito agradecido e que
tomaria o primeiro avião para a Inglaterra.
Agora, enquanto rodavam calmamente pela Van Wyck Expressway,
Bond sentia-se vagamente descontente. Não gostava de deixar rabos em um
caso. Nenhum dos grandes gangsters fora preso e ele falhara nas duas tarefas
que lhe haviam sido confiadas: agarrar Goldfinger e agarrar o ouro de
Goldfinger. Não fora senão por milagre que tinham anulado a Operação
Grande Golpe. Só dois dias antes é que o Beechcraft fora limpado e o
limpador que encontrara o recado só chegara à Pinkerton trinta minutos antes
da hora em que Leiter devia partir para a Costa, onde ocorrera um grande
escândalo nas corridas de cavalos. Mas então Leiter pusera-se realmente em
ação. Falara com seu chefe, depois com o FBI e em seguida com o
Pentágono. O conhecimento que o FBI tinha dos antecedentes de Bond,
aliado a um contato com M através da Agência Central de Inteligência, fora
suficiente para que se levasse todo o caso ao conhecimento do presidente
dentro de uma hora. Depois disso, fora apenas uma questão de organizar o
gigantesco blefe do qual todos os habitantes de Fort Knox participaram, de
uma maneira ou outra. Os dois "japoneses" haviam sido apanhados
facilmente e a Guerra Química confirmara que o litro e meio de GB que eles
levavam como gim em suas pastas teriam sido suficientes para matar toda a
população de Fort Knox. Os dois homens haviam sido rápida e
vigorosamente forçados a explicar a fórmula do cabograma que passariam a
Goldfinger para dizer que tudo estava pronto. O cabograma fora remetido.
Depois o Exército declarara o estado de emergência. Todo o tráfego
rodoviário, ferroviário e aéreo fora desviado de Fort Knox, com exceção dos
comboios dos gangsters que não foram incomodados. O resto fora
representação, inclusive a espuma cor de rosa e os bebês chorões, que,
segundo pensaram, dariam belos toque de verossimilhança à cena.
Sim, tudo fora muito satisfatório no que se referia a Washington, mas
que dizer do lado inglês? Quem nos Estados Unidos se preocupava com o
ouro do Banco da Inglaterra? Quem se preocupava com o fato de duas moças
inglesas terem sido assassinadas no decorrer daquele caso? Quem realmente
se importava com o fato de Goldfinger estar ainda em liberdade, agora que o
ouro dos Estados Unidos se encontrava novamente em segurança?
Rodaram preguiçosamente pela monótona planície de Idlewild, passaram
pelos esqueletos de aço e concreto de dez milhões de dólares de custo que
um dia se tornariam um aeroporto adulto e pararam diante da improvisada
confusão de caixões de concreto que Bond conhecia tão bem. As corteses
vozes metálicas já chegavam até eles. "A Pan American World Airways
anuncia a partida de seu Vôo Presidente PA 100". "Transworld Airways
chamando capitão Murphy. Capitão Murphy, por favor." As vogais com
forma de pêra e a maviosa dicção da B.O.A.C. "B.O.A.C. anuncia a chegada
de seu Vôo BA 491 das Bermudas. Os passageiros vão desembarcar pelo
portão número nove."
Bond tomou sua mala e despediu-se de Leiter dizendo:
— Bem, obrigado por tudo. Escreva-me diariamente. Leiter segurou
firme sua mão. Disse:
— Certamente, rapaz. E tenha calma. Diga àquele velho bastardo M que
o mande de volta logo. Na próxima visita tiraremos algum tempo de folga. Já
é tempo de você conhecer meu Estado natal. Gostaria que conhecesse meu
poço de petróleo. Agora, até a vista.
Leiter entrou no carro e afastou-se acelerando firme. Bond ergueu a mão.
O Studillac derrapou na curva da pista. O brilho do gancho de aço fora da
janela foi a resposta de Leiter, que depois desapareceu.
Bond suspirou. Apanhou sua mala, entrou e encaminhou--se para o
balcão de passagens da B.O.A.C.
Bond não se aborrecia em aeroportos, desde que ficasse sozinho. Tinha
meia hora de espera e contentou-se em vaguear entre a multidão, tomar um
uísque com soda no restaurante e passar algum tempo escolhendo algo para
ler na banca de jornais. Comprou "Modem Fundamentais of Golf", de Ben
Hogan, e o último livro de Raymond Chandler. Em seguida, dirigiu-se à Loja
de Souvenirs a fim de ver se encontrava alguma coisa curiosa para levar à
sua secretária.
Uma voz de homem falava pelo sistema de anúncio da B.O.A.C. Leu
uma longa lista de passageiros do Monarch que eram chamados ao balcão de
passagens. Dez minutos depois, Bond estava pagando uma das mais
modernas e mais caras esferográficas quando ouviu seu nome sendo
chamado. "Pedimos ao Sr. James Bond, passageiro do Monarch da B.O.A.C,
vôo N.° 510 para Gander e Londres, o favor de comparecer ao balcão de
passagens da B.O.A.C. Sr. James Bond, por favor." Era evidentemente
aquele maldito formulário de imposto para mostrar quanto ganhara durante
sua permanência nos Estados Unidos. Por princípio, Bond nunca ia ao
Escritório de Rendas Internas, em Nova York, para obter certidão negativa e
só uma vez precisara discutir a questão em Idlewild. Saiu da banca de jornais
e foi até o balcão da B.O.A.C. O funcionário disse delicadamente:
— Quer deixar-me ver seu certificado de saúde, por favor, Sr. Bond.
Bond tirou o papel de seu passaporte e entregou-o. O homem olhou-o
cuidadosamente e depois disse:
— Sinto muito, cavalheiro, mas houve um caso de febre tifóide em
Gander e eles insistem em que sejam vacinados todos os passageiros em
trânsito que não receberam vacina nos últimos seis meses. É muito
aborrecido, cavalheiro, mas o pessoal de Gander é muito melindroso nessas
coisas. É pena não termos podido organizar um vôo direto, mas há um forte
vento de frente.
Bond odiava vacina. Disse irritadamente:
— Mas, escute aqui. Estou cheio de vacinas de uma ou outra espécie.
Faz vinte anos que venho tomando vacinas para uma ou outra dessas
malditas coisas! — Olhou em volta. A área perto do portão de partida da
B.O.A.C. parecia curiosamente deserta. — E os outros passageiros? Onde
estão?
— Todos concordaram, cavalheiro. Estão recebendo a vacina agora. Não
demora mais que um minuto, cavalheiro, se vier por aqui.
— Oh, está bem — disse Bond, encolhendo os ombros impacientemente.
Seguiu o homem atrás do balcão e entrou por uma porta que levava à sala do
gerente do escritório da B.O.A.C. Havia o costumeiro médico com avental
branco e uma máscara cobrindo a parte inferior do rosto.
— É o último? — perguntou ele ao funcionário da B.O.A.C.
— Sim, doutor.
— Okay. Tire o paletó e arregace a manga, por favor. É desagradável que
sejam sensíveis em Gander.
— Muito desagradável — concordou Bond. — Mas que temem eles?
Uma epidemia de peste negra?
Sentiu o cheiro forte de álcool e a picada da agulha.
— Obrigado — disse Bond rapidamente. Abaixou a manga da camisa e
tentou apanhar o paletó que estava sobre o encosto da cadeira. Sua mão
desceu em direção a ele, errou, continuou descendo, descendo em direção ao
chão. Seu corpo seguiu a mão, caindo, caindo...
Duas horas, dois anos, depois Bond estava deitado na quente cabina do
navio meteorológico Charlie, ouvindo sonhadoramente um programa
matutino de rádio transmitido do Canadá. Várias partes de seu corpo doíam.
Tinha ido para a parte traseira do avião e feito a moça ajoelhar-se com a
cabeça aninhada nos braços sobre o assento de uma poltrona. Depois,
colocara-se por trás e por cima dela, apertando os braços em torno de seu
corpo vestido com o colete salva--vidas e firmando as costas no encosto do
banco de trás.
Ela fizera nervosamente observações jocosas sobre a indelicadeza dessa
posição, até quando a barriga do Stratocruiser batera na primeira montanha
de água a cento e cinqüenta quilômetros por hora. O enorme avião deslizara
uma vez e depois batera de nariz em uma parede de água. O impacto
quebrara a espinha do aparelho. O enorme peso do ouro no compartimento
de bagagem partira o avião em dois pedaços, arremessando para fora Bond e
a mulher, que caíram na água gelada, avermelhada pela linha de sinais
luminosos. Lá ficaram boiando, meio atordoados, em seus coletes salva-
vidas amarelos, até serem alcançados pelo barco salva-vidas. A essa altura,
restavam apenas alguns pedaços do avião na superfície e a tripulação, com
três toneladas de ouro amarradas ao pescoço, afundava em direção ao leito
do Atlântico. O barco procurou durante uns dez minutos, mas vendo que não
subiam corpos à superfície, desistiu da busca e voltou roncando sob a luz do
holofote em direção ao abençoado costado de ferro da velha fragata.
Foram tratados como mistura de realeza e gente de Marte. Bond
respondeu às primeiras e mais urgentes perguntas. Depois, de repente, tudo
pareceu demais para sua mente. Agora estava deitado regaladamente na paz
e no calor do uísque, pensando em Pussy Galore e na razão pela qual ela
preferira abrigar-se sob sua asa e não sob a asa de Goldfinger.
A porta de ligação com a cabina vizinha abriu-se e a moça entrou. Não
vestia senão um suéter cinzento de pescador que com mais uns dois
centímetros ficaria decente. As mangas estavam arregaçadas. Ela parecia
uma pintura de Vertes. Disse:
— Continuam insistindo em perguntar-me se não quero que me
esfreguem com álcool e continuo dizendo que, se alguém vai esfregar-me, é
você e se vou ser esfregada com alguma coisa é com você que quero ser
esfregada. — Concluiu desajeitadamente: — Por isso, aqui estou.
Bond disse firmemente:
— Feche aquela porta, Pussy, tire esse suéter e venha para a cama. Senão
vai apanhar um resfriado.
Ela fez o que lhe foi dito, como uma criança obediente.
Deitou-se sobre a dobra do braço de Bond e ergueu os olhos para ele.
Disse, não com voz de gangster nem de lésbia, mas com voz de mulher:
— Você vai escrever-me para Sing Sing?
Bond olhou dentro dos profundos olhos cor de violeta azulada que não
eram mais duros nem imperiosos. Curvou-se e beijou-os levemente. Depois
disse:
— Disseram-me que você gostava de mulher.
— Nunca havia conhecido um homem — respondeu ela, com voz
novamente dura. — Eu vim do Sul. Sabe qual a definição de virgem lá
embaixo? Bem, é a moça que corre mais que seu irmão. No meu caso, não
consegui correr mais que meu tio. Eu tinha doze anos. Não é muito bom,
James. Você devia ter adivinhado isso.
Bond sorriu para o rosto pálido e bonito, dizendo:
— Você só precisa de um curso de T.C.A.
— Que é T.C.A.?
— Abreviação de tratamento de Terno Cuidado Amoroso. É o que
escrevem na maioria dos documentos quando uma criança abandonada é
levada a uma clínica infantil.
— Vou gostar disso.
Pussy olhou para a boca apaixonada, quase cruel, que esperava por cima
dela. Ergueu a cabeça e alisou para trás a mecha de cabelos pretos que caíra
sobre sua sobrancelha direita. Olhou para os olhos cinzentos que eram duas
fendas ardentes e perguntou:
— Quando vai começar?
A mão direita de Bond subiu vagarosamente pelas coxas firmes e
musculosas, passou sobre a lisa e macia planície do estômago para chegar
até o seio direito. O mamilo estava duro de desejo.
— Já — disse ele baixinho. Sua boca desceu implacavelmente sobre a
dela.