PLUTARCO. Obras Morais Sobre A Amizade
PLUTARCO. Obras Morais Sobre A Amizade
PLUTARCO. Obras Morais Sobre A Amizade
Obras Morais
Como Distinguir um Adulador de um Amigo
Como Retirar Benefício dos Inimigos
Acerca do Número Excessivo de Amigos
Autor: Plutarco
Título: Obras Morais - Como Distinguir um Adulador de um Amigo, Como
Retirar Benefício dos Inimigos, Acerca do Número Excessivo de Amigos
Tradução do grego, introdução e notas: Paula Barata Dias
Editor: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos
Edição: 1ª/2010
Coordenador Científico do Plano de Edição: Maria do Céu Fialho
Conselho Editorial: José Ribeiro Ferreira, Maria de Fátima Silva,
Francisco de Oliveira, Maria do Céu Fialho, Nair Castro Soares
Director técnico da colecção / Investigador responsável pelo projecto
Plutarco e os fundamentos da identidade europeia: Delfim F. Leão
Concepção gráfica e paginação: Rodolfo Lopes
Universidade de Coimbra
Faculdade de Letras
Tel.: 239 859 981 | Fax: 239 836 733
3000‑447 Coimbra
ISBN: 978‑989‑8281‑28‑9
ISBN digital: 978‑989‑8281‑29‑6
Depósito Legal: 309396/10
Reservados todos os direitos. Nos termos legais fica expressamente proibida a reprodução total ou parcial
por qualquer meio, em papel ou em edição electrónica, sem autorização expressa dos titulares dos direitos.
É desde já excepcionada a utilização em circuitos académicos fechados para apoio a leccionação ou extensão
cultural por via de e‑learning.
I. Introdução Geral 7
1. Os Tratados de Plutarco sobre a Amizade 7
2. Contextualização Sócio‑Cultural da Produção
Plutarqueana sobre a Amizade 39
3. A Orientação Filosófica de Plutarco 44
4. Porquê a Amizade? A Importância do Tema no
Mundo Antigo e em Plutarco 51
5. Sobre a Tradução 57
6. Bibliografia 58
Introdução Geral
7
Paula Barata Dias
2
Heinrich Laubsberg, Elementos de uma Retórica Literária,
(Bona, 1967; trad. port. FCG, 3ª ed., 1982), p. 90; p. 112.
8
Introdução Geral
9
Paula Barata Dias
10
Introdução Geral
11
Paula Barata Dias
12
Introdução Geral
13
Paula Barata Dias
14
Introdução Geral
15
Paula Barata Dias
16
Introdução Geral
“E visto que a amizade tem, nos dias de hoje, a voz débil para
a franqueza no falar enquanto a adulação que dela vem é bem
sonora e a sua admoestação permanece muda, é da boca dos
inimigos que se deve escutar a verdade” (IC, 89 C)
17
Paula Barata Dias
18
Introdução Geral
19
Paula Barata Dias
3
Ver D. Pierre Miquel, Lexique du désert, S. O. 44 Bellefontaine,
1986, pp. 219‑132 s. v. “Parresia”.
20
Introdução Geral
21
Paula Barata Dias
22
Introdução Geral
23
Paula Barata Dias
24
Introdução Geral
25
Paula Barata Dias
26
Introdução Geral
27
Paula Barata Dias
28
Introdução Geral
29
Paula Barata Dias
30
Introdução Geral
31
Paula Barata Dias
32
Introdução Geral
33
Paula Barata Dias
34
Introdução Geral
35
Paula Barata Dias
36
Introdução Geral
37
Paula Barata Dias
38
Introdução Geral
39
Paula Barata Dias
40
Introdução Geral
41
Paula Barata Dias
42
Introdução Geral
43
Paula Barata Dias
44
Introdução Geral
11
E. L. Shields “Plutarch and the Tranquillity of Mind” CW,
42, 15 (1949), pp. 229‑234, p. 232.
12
Susan Prince “Socrates, Antisthenes, and the Cynics”, S.
Ahbel‑Rappe and R. Kamtekar eds. A Companion to Socrates
(Blackwell, 2006) pp. 75. Não há, portanto, em Plutarco, nenhuma
simpatia pelo relativismo sofísta.
45
Paula Barata Dias
46
Introdução Geral
palavras‑chave).
15
Rhet. 1356a26‑27 W. K. Guthrie, op. cit. vol VI, p. 331;
p. 336 cit “ethical training is the indispensable foundation for
political life, or rather perhaps for citizenship..”
16
“Cynicism”, New Pauly’s Encyclopaedia of the Ancient World,
(Brill’s,) p. 1054.
47
Paula Barata Dias
48
Introdução Geral
19
Louis Ucciani, op. cit. “Rire, ironie, dérision. Éléments pour
une critique par les formes exclues”, pp. 257‑270.
20
M.‑O. Goulet‑Cazé, L’ascèse Cynique, Un Commentaire de
Diogène Laërce VI 70‑71, (Paris, 1986) (“Cynicism”, New Pauly’s
Encyclopaedia of the Ancient World, (Brill’s), p. 1059.
49
Paula Barata Dias
50
Introdução Geral
51
Paula Barata Dias
22
Jonathan Powel, “Fiendship and its problems in Greek and
Roman Though”, (D. Innes, Ch. Pelling eds, Ethics and Rhetoric,
Classical Essays, Oxford, 1995, p. 33, reflecte sobre a importância
do tema da amizade na produção filosófica e ética antiga, em
contraponto com a escassez do tratamento do tema no mundo
contemporâneo. “The importance of amicitia in ancient public life
it thus held to be reflected in the prominence given to it in the
ethical writings of the philosophers; and since our own public life is
supposed not to be based on amicitia; and in any case what we mean
by friendship is something different, the relative unimportance
of this topic in modern ethical writing becomes apparently less
surprising”. Também Simon Goldhill, 1986, p. 82, apud David
Konstan p. 2) “The appellation or categorization philos is used to
mark not just affection but a series of complex obligations, duties
and claims”.
52
Introdução Geral
53
Paula Barata Dias
24
David Konstan “Greek Friendship”, AJPH 117, 1, 1996, pp.
71‑94 fez um estudo comparado dos contextos de utilização dos
termos philos e philia, atestando o seu emprego no contexto das
relações familiares, com valor afectivo. Trata‑se, portanto de termos
polissémicos.
25
John M. Cooper, “Aristoteles on friendship”, Essays on
Aristoteles Ethics, A. Oksenberg Rorty ed. (UCP, Berkeley, 1980), p.
306.
26
J. Hilton Turner, “Epicurus and Friendship” CJ, 42, 6, 1947,
pp. 351‑355.
54
Introdução Geral
55
Paula Barata Dias
56
Introdução Geral
5. Sobre a tradução
Foi utilizada para a tradução o texto grego da edição
teubneriana de 1974, da responsabilidade de W. R. Paton
e I. Wegehaut. Cada um dos opúsculos está precedido
por uma introdução que o apresenta, o contextualiza na
vasta produção plutarqueana, e o analisa sumariamente
enquanto texto literário. Quanto às anotações à tradução,
elas procuram restringir‑se à identificação de passos comuns
na restante obra plutarqueana, ao assinalar das fontes
unknown in democratic Athens, it was not normally articulated
as an imitation of friendship. Flattery implicitly acknowledges
the superior station of another, and (…) the egalitarian ideology
of the democracy discouraged the representation of relations of
dependency among free citizens”.
57
Paula Barata Dias
6 Bibliografia:
Edições de Plutarco
W. R. Paton , I Wegehaupt, M. Pohlenz eds., Plutarchus
Moralia I (Teubner, Leipzig, 1974), s. v. De
Adulatore et Amico, p. 97; De Capienda ex Inimicis
Vtilitate, p. 172, De Amicorum Multitudine, p.
197.
R. Klaerr, A. Philipon, J. Sirinelli (ed. e trad.), Plutarque,
Oeuvres Morales, t. I, 2 (Paris, Les Belles Lettres,
1989).
F. C. Babbitt (ed. e trad.), Plutarch’s Moralia, t. I
Quomodo Adulator ab Amico Internoscatur,
pp. 264‑395, (Loeb, Harvard, 1969), t. II,
De Capienda ex inimicis Vtilitate pp. 4‑41; De
Amicorum Multitudine pp. 46‑69.
Outros autores e bibliografia geral
Cícero, A Amizade, Sebastião Tavares de Pinho trad.,
(Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos,
1993).
58
Introdução Geral
59
Paula Barata Dias
60
Introdução Geral
61
Como Distinguir um Adulador
de um Amigo
63
Palavras Introdutórias
Palavras Introdutórias
65
Paula Barata Dias
66
Palavras Introdutórias
67
Paula Barata Dias
68
Palavras Introdutórias
69
Paula Barata Dias
70
Palavras Introdutórias
71
Como Distinguir um Adulador
de um Amigo
Tradução
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
1
Platão afirma, meu caro Antíoco Filopapo1, que 48
todos dão assentimento ao homem que confessa um
amor desmesurado por si mesmo, mas que isto cria o f
maior de todos os males, em conjunto com outros, que
é o facto de não ser possível a tal homem ser juiz honesto
e imparcial de si próprio. Pois o amor fica cego à vista do
amado2, salvo aquele que, pela aprendizagem, se tenha
acostumado a dar valor e a seguir mais as coisas belas do
que as familiares e as privadas.
Este facto fornece ao adulador terreno largo
para passar através da amizade, porque tem no nosso
amor‑próprio uma base de ataque propícia contra nós,
1
Antíoco Filopapo, personagem que também surge em
Quaestiones Conuiuales I, 10 (Ver Obras Morais, No Banquete
I, 2008, 10, p. 83), onde é apresentado como corego de muitas
tribos. Júlio Antíoco Filopapo descende dos reis de Comagena,
reside em Atenas, desde que foi destituído do trono pelo imperador
Vespasiano (72 d. C). Tal como ele é apresentado em No Banquete,
depreende‑se que pertenceria à elite rica, cultivada e bem relacionada
de Atenas.
2
Platão, Leis, 731d‑e. Plutarco utiliza a mesma sentença
platónica em Como Retirar Benefício dos Inimigos 90 A e 92 E.
75
Plutarco
2
Com efeito, se nestes termos, como a maior
parte dos outros males, o adulador atacar somente,
ou sobretudo, os que são mais vulgares e mesquinhos,
não será tão terrível, nem tão difícil de vigiar. Pois,
tal como o caruncho entra com mais intensidade nas
madeiras macias e doces, também são as mais generosas,
c honestas e promissoras das personalidades que acolhem
3
Platão, Leis, 730 C.
76
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
O potro não faz amizade com o jacinto, mas sim com os campos
férteis4.
77
Plutarco
6
No tratado Como Retirar Benefício dos Inimigos, Plutarco
também recorre à comparação entre a amizade e a moeda (93 E,
94 D), num contexto bastante semelhante: tal como a moeda, a
amizade deve ser avaliada, testada, antes de ser aceite, ou posta
em circulação. A experiência e a prova são fundamentais para a
consolidação de uma amizade (49 D peiran 49 E; empeirian labein;
tauto peisometha 49 E). Tanto um texto como o outro vincam o
facto de a aceitação de uma amizade não dever ser impulsiva, e sim
depender de um deliberado acto de discernimento prévio.
78
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
79
Plutarco
3
c Desta forma, alguém poderia dizer que é difícil
distinguir um adulador de um amigo, já que não estão
separados nem pelo prazer nem pelo elogio. Na verdade, é
possível observar que a amizade é, muitas vezes, no auxílio
e nos serviços prestados, ultrapassada pela adulação.
E como não ser tarefa de cuidado – diremos
nós– o procurar do verdadeiro adulador naquele que
se entrega à sua tarefa com aplicação e arte, ao invés
de nos limitarmos a pensar que são aduladores apenas
os tais chamados, como alguém diz, de “carregadores
dos seus próprios frascos de azeite”, os “parasitas”, ou
“o que só se ouve depois de ter água nas mãos9”, cujo
d baixo nível, associado ao mau gosto e ao impudor, se
tornam evidentes ao primeiro prato e ao primeiro copo
de vinho?
De facto, seguramente não era necessário
denunciar Melântio, parasita de Alexandre de Feras,
9
Expressões idiomáticas para descrever os parasitas (trapezeas),
à letra, “os que estão à volta da mesa”, que normalmente são tão
pobres que precisam de carregar o seu próprio frasco de azeite
para o banho, ou seja, que não dispõem de um servo que o faça
(autolekuthous), ou que só ganham voz quando se avizinha o
momento da refeição, anunciado pelo lavar das mãos. O adulador
(kolax) é, portanto, uma categoria mais refinada do que o parasita,
e mais subtil de captar. Este passo é muito interessante do ponto de
vista da avaliação das categorias sociais do mundo antigo.
80
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
4
Em relação a quem, por conseguinte, devemos
estar de guarda? Em relação ao que não parece adular
e que não reconhece que o faz; ao que não é possível
apanhar perto da cozinha; ao que não é visto a medir a
sombra até à hora da refeição12; ao que não é encontrado
bêbado no solo, no mesmo sítio em que caiu, mas e
que, na maioria das vezes, permanece sóbrio e muito
ocupado, e que acha que se deve envolver em muitos
10
Êupolis, Os Aduladores (Kock, Com. Att. Frag. 1, p. 303).
Também A Coragem das Mulheres 256 D.
11
Louvadoras (kolakides); elevadoras (klimakides). Procuramos,
com esta tradução, preservar o jogo de palavras evidente no original
grego. Traduzimos habitualmente ho kolax, substantivo, por “o
adulador”, por isso, parece‑nos defensável traduzir de outro modo
o derivado kolakis, que neste ponto foi empregado.
12
Ou seja, o que não está de olho no movimento do sol para
saber se se avizinha a hora de comer.
81
Plutarco
13
Desenvolve‑se aqui o tópico do carácter falso do adulador,
usado também na metáfora da moeda contrafeita, alguém que
desempenha um papel, tal como os actores. A gravidade do papel
do adulador patenteia‑se na sua comparação com um actor de
tragédia, e não de um actor de comédia ou de sátira. No parágrafo
seguinte, a falsidade do adulador é agravada por imitar a própria
amizade.
14
República 361 A.
15
Heródoto, 3.78.
82
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
5
Mas é precisamente também porque a
amizade é a mais doce das coisas, e nenhuma outra b
proporciona maior alegria, que o adulador cativa por
meio dos prazeres, ou que está ele próprio sempre
associado aos prazeres. E porque o afecto e a utilidade
acompanham a amizade (por isto se diz que o amigo
é mais preciso do que o fogo e a água)17, por esse
motivo o adulador, entregando‑se a trabalhos, se
esforça por aparecer como alguém sempre prestável,
dedicado e amistoso.
16
Nauck, Trag. Graec. Frag., Adesp. Nº 362.
17
Plutarco recupera aqui a teoria das três condições básicas
satisfeitas pela amizade em Aristóteles, Ética a Nicómaco, 1156
A ‑1156 B (VIII, 2) que usara em Acerca do Número Excessivo de
Amigos 94 B: a amizade como algo que proporciona prazer (hedonai);
que proporciona um afecto fundamentado na razão (charis); que
proporciona serviços úteis (chreia). Todas estas condições são
imitadas pelo adulador.
83
Plutarco
18
Nauck, Trag. Graec. Frag., Adespot., nº 363. Também em
Plutarco, Vida de Alcibíades, 203 C.
84
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
6
Portanto, vamos prontamente examinar o assunto
desde o início. Já afirmámos que o princípio da amizade,
para a maioria, são o temperamento e a natureza,
que dão as boas vindas à concórdia de interesses e de e
personalidades, e se alegram com os mesmos propósitos,
acções e decisões. Acerca deste assunto foi já dito que:
85
Plutarco
7
Então, como desmascará‑lo? E por que diferenças
se pode descobrir que não é, nem nunca será nosso igual,
mas que apenas finge sê‑lo?
Em primeiro lugar, é preciso contemplar a
uniformidade e a constância no seu modo de pensar:
se ele se alegra sempre com as mesmas coisas, se elogia
o mesmo, se conduz e organiza a sua própria vida sob
uma só orientação, tal como sucede com o homem livre,
apreciador da amizade e da convivência com o que lhe é
próximo. Essa é a conduta de um amigo.
Já o adulador, contudo, não tem para o seu
b carácter uma morada só, e vive, não a própria vida, mas
a que outros escolheram, moldando‑se e adaptando‑se a
partir de outro. Por isso não é nem simples, nem uno, e
86
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
87
Plutarco
88
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
89
Plutarco
28
Odisseia XVI, 181.
90
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
9
Contudo, no meio de tais semelhanças, convém c
estar de guarda em relação a uma outra diferença do
mesmo género. O verdadeiro amigo está disponível, não
para ser imitador de tudo, nem para tudo louvar, mas só
o que existe de melhor:
29
Adaptação do famoso verso de Sófocles, Antígona, v. 523 “Não
nasci para odiar, mas para amar”.
91
Plutarco
30
Díon e Dionísio de Siracusa (séc. IV a.C.), este último o
tirano, figura recorrente nas obras de Plutarco; Filipe V da
Macedónia e o poeta lírico e epigramatista Sâmio, a quem Filipe
mandou matar depois de ter sido seu amigo; Cleómenes III, Rei de
Esparta (240‑222 a.C.) e Ptolomeu Filopátor, rei do Egipto de 221
a 205 a. C. (Cf. Plutarco, Vida de Cleómenes 33).
92
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
31
Os verbos sunekballein e apopempein significam “afastar”,
e “reenviar, devolver” e fazem sentido na cultura antiga, em que
separar‑se da mulher implicava o seu “reenvio” para o seu antigo
tutor, provavelmente o seu pai. Traduzimos pelo moderno
“separar‑se” contudo, por aproximação à linguagem moderna.
93
Plutarco
10
Mas deixemos estes assuntos para o seu lugar
próprio da nossa discussão34. Não cessemos, no entanto,
de destacar a sagacidade do adulador nas imitações,
porque, mesmo quando sucede imitar as qualidades
c daquele que ele adula, zela para que a dianteira seja
do outro. É que os verdadeiramente amigos não têm
ciúme um do outro, nem inveja, mas, se tiverem
êxito igual ou menor, suportam‑no sem mágoa e com
moderação.
Pelo contrário, o adulador, recordando sempre que
representa um papel secundário, deixa passar a igualdade
na imitação e confessa que foi derrotado em todos
os domínios, e que em tudo, menos nos defeitos, foi
ultrapassado. Não cede a primazia nas coisas inferiores,
32
Berck, Poet. Lyr. Gr., 3, 669. Ou seja, o adulador é alguém
com traços mais subtis do que aqueles que permitem reconhecer
um caranguejo pelo aspecto. Não se identifica a quem se refere
Plutarco, mas Êupolis, e também Menandro, foram autores de
comédias em que punham em acção parasitas e aduladores, de que
restam fragmentos, pelo que é possível, até pela referência seguinte
ao comediógrafo, que Plutarco proceda a uma crítica ao tratamento
do tema pela Comédia.
33
Kock, Com. Att. Frag. 1, 349.
34
Plutarco pode estar a referir‑se ao cap. 3, em que já apresentou,
também por traços genéricos, o parasita.
94
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
Ou então:
11
Visto que, como já foi dito, o elemento do prazer
é comum (pois o homem bom não se alegra menos com
os amigos do que o homem mau com os aduladores),
95
Plutarco
E ainda:
35
De Profectibus in Virtute, 79 D.
36
Ilíada, XI 643.
37
Odisseia, IV, 178.
96
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
38
Os verbos opsopoiein e karukeuein pertencem ao vocabulário
da gastronomia.
39
Nicandro, Theriaca 64. Acerca das qualidades da erva pólio,
ver Plínio, História Natural 21,7 (21). 44 e 21.20 (84). O kastorios
é o líquido oleoso segregado pelas glândulas anais do castor, com
aplicações na medicina antiga como anti‑espasmódico.
40
Ilíada VIII 281.
97
Plutarco
E:
98
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
Ele, que nem com os maus é rigoroso, como pode ser um homem
bom?46
44
Cf. Acerca do Número Excessivo de Amigos, 96 E, sobre a
metáfora da amizade como uma melodia polifónica, cuja harmonia
resulta da composição de sons diferentes. Em comparação, o
adulador corresponde a uma melodia a um só tom, uma monotonia,
portanto. Plutarco evidencia bem, pelo recurso ao campo semântico
da música, a diferença de qualidades entre a amizade e a adulação.
45
Xenofonte, Agelisau, 11, 5.
46
Arquidâmidas, segundo conta Plutarco em Apophtegmata
Laconica 218 B.
99
Plutarco
12
Dizem que a mosca do gado se prende às orelhas
dos touros, tal como a carraça à do cão. O adulador,
tomando conta das orelhas dos homens ambiciosos, bem
fixados a elas com elogios, é de igual forma difícil de
arrancar. Por esse motivo é necessário ter, nessas ocasiões,
o máximo discernimento, rápido e atento, para saber se
o elogio é dirigido ao acto ou ao homem. É dirigido ao
acto, se elogiam mais os ausentes do que os presentes;
se os que o fazem desejam e aspiram às mesmas coisas;
se tecem elogios semelhantes não especificamente só
para nós, mas para todos nas mesmas circunstâncias; se
não são apanhados a fazer e a dizer agora estas coisas, e
f depois o seu contrário; e, o que é mais importante, se
nós próprios temos consciência de que não nos vamos
arrepender das coisas pelas quais somos louvados, nem
envergonhar‑nos, e que não desejávamos ter feito ou
dito o oposto47.
Pois se o discernimento individual dá um
56a testemunho adverso e não aceita o elogio, então também
permanece insensível e intocado contra a investida do
adulador. No entanto, não sei bem como, a maioria
não suporta palavras de conforto nos momentos de
infortúnio, e deixa‑se levar mais pelos que se associam
em choros e gemidos.
Mas quando estas pessoas erram, ou cometem
crimes, parece inimigo o homem que, ao acusar e
reprovar dos seus actos, provoca dor e arrependimento,
47
A perspectiva de Plutarco continua a ser o aperfeiçoamento do
sujeito. O melhor dos testes à amizade é considerar se essa relação
promove o que de melhor tem o carácter individual de cada um.
100
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
101
Plutarco
102
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
13
Por estas razões, sobretudo em relação aos seus
elogios, se deve vigiar o adulador. Mas destas coisas ele 57a
não está de modo nenhum esquecido, e é habilidoso
em preservar‑se da suspeita. Se por ventura representa
alguém de manto púrpura, ou algum rústico que enverga
uma grossa pele, serve‑se de todo o tipo de enganos,
tal como Estrúcias, quando passeava com Bias, e com
elogios fazia pouco da sua estultícia:
E:
52
Plutarco, Vida de António 9.
53
Forbeia é o nome dado a uma tira de couro que o flautista
ajustava em volta dos lábios para regular o som da flauta.
103
Plutarco
54
Menandro, O Adulador (Kock, Com. Att. Frag. 3, 293 e 29).
55
Não se conhece a fonte desta citação. A metáfora venatória
para interpretar a dissimulada aproximação do adulador já foi
usada em 51 E.
56
Quadro comportamental semelhante surge em Teofrasto,
Caracteres, 2 “O bajulador” (Maria de Fátima Silva trad., Relógio
d’Água, p. 51 “Durante um passeio, diz ao companheiro: “Estás a
reparar como toda a gente olha para ti? É coisa de que, na cidade,
ninguém se pode gabar como tu”; “ontem, lá no pórtico, passaram‑te
um elogio. (…) e quando se pôs a questão de saber quem era o tipo
mais distinto da cidade, foi por ti que todos começaram…”.
104
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
14
Outros, no entanto, iguais aos pintores que
realçam a luz e o brilho por meio dos esfumados e
do sombreado colocados ao seu lado, assim passam
despercebidos, quando reprovam, acusam, criticam
e ridicularizam atitudes contraditórias, e conseguem
enaltecer e alimentar os vícios presentes nos que são
adulados. Entre os gastadores, denunciam a moderação
como sendo rudeza. Entre os arrogantes, entre os
malfeitores e entre os que se tornaram ricos graças a
acções vergonhosas e desonestas, denunciam como falta
de coragem e de espírito empreendedor a sobriedade e
o amor pela justiça. Sempre que lidam com indolentes, d
com ociosos e com os que fogem da vida pública das
cidades57, não se envergonham de classificar a actividade
política como uma extenuante entrega aos interesses
de terceiros, e o desejo de reconhecimento público, de
vaidade inútil. Já a adulação a um orador passa por pôr a
ridículo um filósofo, e entre as mulheres dissolutas, são
bem vistos os que apelidam mulheres fiéis e dedicadas
de serem frias para o amor e de simplórias.
Supera, porém, toda a maldade, o facto de
os aduladores nem em desfavor de si próprios se
deterem. Tal como os lutadores posicionam o corpo
57
Platão, Górgias 485 D.
105
Plutarco
E diz:
Com ele nada é assustador, nem árduo, mas ele é uma pessoa
singular, tudo suporta facilmente, tudo sem sofrimento.”
58
Ilíada X, 249.
106
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
15
Ainda mais, tal como alguns definiram a pintura
como uma poesia silenciosa, também existe um elogio
59
Verso euripidiano muito recorrente (Alceste, Andrómaca,
Bacantes, Helena).
60
Nauck, Trag. Graec. Frag. Adespot. nº 365.
107
Plutarco
108
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
16
E por esse motivo é verdade que algumas pessoas
não suportam ouvir os estóicos quando proclamam
que o sábio é rico, formoso, nobre, ou rei64, mas os
aduladores, porém, ao rico apodam simultaneamente
de orador, de poeta, e se lhes der na gana, de pintor, de
62
Também em De Tranquilitate Animi, 472 A. Um determinado
tipo de argila (melis) era usado como base estabilizante para
aplicação dos pigmentos.
63
Heródoto, 1.30‑33. Cf. também Plutarco, Vida de Sólon 27.
64
É sabida a pouca simpatia de Plutarco pelos Estóicos, juízo
subliminar latente no modo de invocar este argumento. A mesma
referência em De Tranquilitate Animi, 472 A.
109
Plutarco
65
De Tranquilitate Animi, 471F.
66
Trata‑se provavelmente de Bíon de Boristena, filósofo Cínico
autor de Diatribes.
110
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
17
Acerca deste assunto, portanto, é suficiente o que
foi já dito. Observemos a seguir o tema da franqueza
de linguagem67. Com efeito, tal como Pátroclo,
adestrando‑se com as armas de Aquiles e montando b
os seus cavalos para a batalha, somente não se atreveu
a empunhar a espada do Pelida e a deixou para trás,
do mesmo modo era conveniente que o adulador, ao
disfarçar‑se e ao adestrar‑se com os sinais e os atributos
do amigo, deixasse apenas a franqueza no falar para trás,
sem se atrever a tocá‑la nem a imitá‑la, essa que é a arma
“pesada, imponente, enorme”68 da amizade.
Mas como fogem de serem notados no riso, no
vinho, no sarcasmo e nas brincadeiras, os aduladores
esforçam‑se por apresentar um perfil mais elevado de
acção, tecendo louvores com o rosto sério, misturando
às advertências alguma censura, importa não deixar esta
estratégia por analisar.
Aqui está o que eu penso: tal como na comédia c
de Menandro dá entrada um falso Héracles, com uma
maça que não é nem pesada nem resistente, mas sim uma
imitação macia e oca, também a franqueza de linguagem
do adulador será vista pelos que a experimentam como
67
Inicia‑se neste cap. 17 o segundo núcleo temático deste
tratado, dedicado ao tema da parresia “franqueza no falar”. Alguns
comentadores defendem que esta parte do tratado constituiria,
no projecto inicial do autor, um tratado distinto, que depois seria
fundido num só (ver introdução ao tratado).
68
Ilíada XVI,141. Tal como Pátroclo não leva para o combate
a espada de Aquiles, embora o imite na sua postura bélica, também
o adulador, na sua imitação do amigo, deve abster‑se de usar a
franqueza.
111
Plutarco
69
Em Grego, o verbo daknein “picar, acicatar, renovar”.
Optamos pelo termo médico “debridar”, porque seria esse o efeito
do mel nas feridas abertas, o de permitir a remoção das partes
mortas ou queimadas.
70
A partir do cap. 25 o assunto da franqueza purificadora volta
a ser focado.
112
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
113
Plutarco
18
Outros há, porém, mais nocivos ainda do que os
anteriores, que fazem uso desta franqueza no falar e da
crítica como um meio para agradar. Por exemplo, Ágis,
o Argivo74, vendo que Alexandre dava grandes presentes
a alguém que o fazia rir, com inveja e pena, gritou:
73
Stikidion. O emprego do diminutivo é pejorativo, acentua o
ridículo do objecto discutido.
74
Cf. Arriano, Anábase 4, 9, 9. O poeta Ágis era um frequentador
da corte de Alexandre Magno.
114
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
Confesso que fico perturbado e sofro por vos ver a Vós, filhos
de Zeus, a rirem‑se de igual maneira com os aduladores e os c
homens ridículos. Pois até Héracles se deleitava com um certo
Cécrops, e Dioniso com uns Selenos, e é visível que pessoas de
igual tipo também te merecem consideração.
115
Plutarco
19
Estas coisas são, de facto, de menor importância.
Porém, já difíceis e prejudiciais para os néscios acontecem
sempre que os aduladores os criticam pelos paixões e
defeitos inversos, (tal como Himério, o adulador, acusava
o mais vil e avarento dos ricos de Atenas de ser um
perdulário e um desleixado, e que miseravelmente haveria
de passar fome com os filhos), ou ainda, ao contrário,
quando apontam a homens dissolutos e pródigos a sua
mesquinhez e a sua rapacidade (como Tito Petrónio
e a Nero75) ou quando incentivam governantes que se
comportam de modo cruel e violento a libertarem‑se da
sua enorme clemência e da sua despropositada e inútil
compaixão.
Semelhante a estes é o que faz de conta que teme e
que está de atalaia em relação a um homem simples e tolo,
como se ele fosse esperto e cheio de recursos. E também
aquele que interpela um tipo invejoso, que só está bem
a dizer mal e a censurar, num dia em que este se sentiu
compelido a elogiar alguém famoso, contra‑argumenta
que tal comportamento é uma fraqueza que ele tem:
75
Tito Petrónio é o escritor do romance Satyricon, do séc. I, e
que era frequentador da corte de Nero.
116
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
E:
76
Ver n. 71. Adelphois diapheresthai …; goneon huperphronein…;
gunaikas huperoptikos echontas.
77
A expressão grega ou gar aisthane sautou significa, à letra “não
te sentes a ti mesmo”. Pensamos que a expressão quase idiomática
actual de “não tens amor‑próprio” pode reproduzir bem em
Português o sentido da expressão grega, ao significar, na nossa
interpretação, “não te dás o devido valor”.
78
Ésquilo, Mirmidões (Nauck, Trag. Graec. Frag. Nº 135).
Também Plutarco Obras Morais. No Banquete VII, 715 C.
117
Plutarco
118
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
20
Ao que parece, existe apenas um modo de protecção:
o conhecer e ter sempre na lembrança que, tendo a nossa d
alma um lado verdadeiro, amante do bem e do racional,
e outro irracional, amante da fantasia e dado às paixões,
o amigo apresenta‑se sempre como advogado de defesa
da parte mais nobre, tal como o médico promove e vigia
a saúde, ao passo que o adulador se coloca ao lado da
parte emocional e irracional, faz‑lhe cócegas, acicata‑a,
e persuade‑a, e afasta‑a do pensamento correcto,
maquinando para ela alguns deleites de baixo nível81.
81
Na alma humana, a divisão entre um elemento racional e outro
irracional que se opõem é uma concepção frequente no pensamento
de Plutarco (cf. De Virtute Morali 441 D, De Facie quae in Orbe
119
Plutarco
120
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
82
Sunegoros. Ver n. anterior. Este capítulo, encerrando uma parte
lógica do tratado, recupera no final o argumento de dramatização
enunciado no princípio.
121
Plutarco
21
Iremos agora debruçar‑nos sobre as ajudas e os
serviços. É que o adulador também nestes domínios
provoca grande confusão e insegurança quando se
trata da distinção entre si próprio e um amigo, dando
a aparência de ser activo, disponível sem reservas para
tudo.
c É que a maneira de ser do amigo é, segundo
diz Eurípides, como a linguagem da verdade, simples,
chã e sem afectação, ao passo que a do adulador, está,
na realidade “infectada em si mesma, carente de sábios
remédios”83. De muitos, ouso dizê‑lo, e eficazes!
Assim sucede quando, nos encontros sociais se
encontra o amigo, que não diz palavra nem nada escuta
da nossa parte, apenas entregando um olhar bondoso e
sorridente, dando e recebendo com os olhos a bondade
e a familiaridade profundas, e por fim se vai embora.
Agora o adulador corre, persegue, de longe levanta a
mão, e se acontecer ter sido visto e for cumprimentado
primeiro, desfaz‑se em perdões, com testemunhos e juras.
d Do mesmo modo, nas acções, muitos amigos relevam
as pequenas, não sendo rigorosos nem fazendo grande
caso delas, nem se lançam indiscriminadamente a todos
os serviços. Ora, pelo contrário, é nestas ocasiões que o
adulador está sempre presente, assíduo e incansável, não
dispensando a nenhum outro nem lugar nem margem para
uma gentileza, desejoso de que lhe sejam feitos pedidos, e
se nada lhe for solicitado, fica magoado, ou melhor ainda,
fica fora de si e dá largas aos seus lamentos.
83
Eurípides, Fenícias 469, 472.
122
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
22
Para as pessoas sensatas, estas são as manifestações,
não de uma verdadeira e sincera amizade, mas de uma
relação postiça, à maneira de uma cortesã que dá abraços,
com mais entusiasmo do que o que era necessário.
Porém, é conveniente que se observe a diferença e
nas ofertas de serviços a prestar. Pois também escritores
nossos antepassados muito bem disseram que o serviço
de um amigo é, para nós, o que afirma:
123
Plutarco
87
Eurípides, Ino (Nauck, Trag. Graec. Frag. Euripides. Nº
412).
88
Eurípides, Ino (Nauck, Trag. Graec. Frag. , Eurípides nº 362
11, 18‑20).
124
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
125
Plutarco
126
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
127
Plutarco
93
Eurípides, Ifigénia em Áulide, 407.
128
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
94
Referido também em Coniugalia Praecepta 142 B e Regum et
Imperatorum Apophtegmata, 188 F.
129
Plutarco
24
A grande diferença entre ele e um amigo poderá
ser ainda conhecida na sua atitude para com os amigos
dos outros. Com efeito, para o amigo, amar e ser
amado juntamente com outros é a mais agradável de
todas as coisas, e esforça‑se continuamente para que o
seu amigo tenha muitos amigos e seja muito apreciado.
130
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
131
Plutarco
96
Plutarco, Vida de Alexandre 22 e Quaestiones Conuiuales III,
717 B.
132
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
25
Por este motivo, quando começámos o
nosso discurso, aconselhámos, e agora novamente
aconselhamos, a arrancar de nós o amor‑próprio e a
arrogância97. É que esta, sendo a primeira a adular‑nos,
torna‑nos mais permeáveis aos aduladores de fora, que
assim se tornam bem vindos. Mas se formos obedientes
ao deus e cientes de que o preceito “conhece‑te a ti mesmo”
é fundamental para cada um de nós, e se, ao mesmo
tempo, nós tivermos em conta o modo como, de diversos
modos, a nossa natureza, a nossa instrução e a nossa f
formação estão carentes do bem, e se considerarmos
o muito que com elas se mistura, perversamente e de
modo vão, nos nossos actos, nas nossas palavras, nos
nossos sentimentos, então não permitiremos nunca ser
facilmente pisados pelos aduladores.
Alexandre, a este propósito, dizia que não confiava
nos que o veneravam como um deus, pela razão de ele
ter um sono muito pesado e pelo seu ardor sexual, pois
lhe parecia que era precisamente nestes domínios que
ele se mostrava mais ignóbil e mais instintivo. Nós, é 66a
pela observação frequente dos múltiplos defeitos que
nos são próprios, das misérias, das imperfeições e dos
erros, que chegaremos à conclusão de que nos faz falta,
não um amigo que nos elogie e que fale bem de nós,
mas sim um que nos assinale as falhas, nos fale com
97
Neste cap. 25 é retomado o assunto da franqueza no falar.
Plutarco refere‑se ao início do tratado, quando começou por dizer
que o excesso de amor‑próprio, em que cada um é o seu primeiro
e mais entusiástico adulador, torna as pessoas receptivas à adulação
(cap. 1).
133
Plutarco
134
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
26 e
Como verificamos, por conseguinte, que alguns
erros graves acompanham a franqueza, comecemos
135
Plutarco
136
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
137
Plutarco
Respondeu Platão:
138
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
27
Em segundo lugar, portanto, deveremos purificar a
nossa franqueza, como os que fazem uma purga, de toda
a insolência, o riso, o ludíbrio e a mofa, que são temperos
prejudiciais. Tal como uma certa precisão e limpeza
de gestos deve prevalecer nos trabalhos do cirurgião
quando opera, e a sua mão deve abster‑se de qualquer
movimento bailarino e ousado, e de toda a gesticulação
supérflua, também a franqueza aceita a conveniência e
a elegância, se esta dádiva conservar a dignidade. Mas f
quando a afronta, o insulto e a jactância a acompanham,
dilaceram‑na e aniquilam‑na por completo.
Por essa razão calou o harpista a boca de Filipe,
de um modo nada grosseiro ou desprovido de elegância,
quando este manifestava a pretensão de com ele competir
na arte de tocar as cordas, dizendo:
139
Plutarco
140
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
141
Plutarco
28
Há, de facto, muitos que não querem nem ousam
advertir os amigos quando estes são bem sucedidos
e nos seus negócios, e que pensam que a boa fortuna é
geralmente inacessível e inexpugnável à advertência.
Contudo, na situação inversa, atacam e golpeiam os que
estão por terra, e com suas mãos oprimem o colhido
por uma desgraça. Tal como um rio que contra a sua
natureza foi represado, vertem violentamente sobre
eles a franqueza, e colhem uma certa alegria pela
mudança, dada a anterior sobranceria dos amigos e a
debilidade própria que então experimentavam. Não é,
106
Ou seja, quem se comporta como um “desmancha‑prazeres”.
Berck, Poet. Lyr. Gr. I, 480 (fr. 248). Luaios, “o Libertador” é um
dos muitos nomes de Dioniso.
142
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
143
Plutarco
Dirá:
144
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
Com efeito,
145
Plutarco
que algum mal toma conta do corpo, dão logo sinal de si114”.
29
Então em que circunstâncias deve um amigo
ser severo, e quando empregar o vigor da franqueza?
Sempre que as circunstâncias o convocarem a censurar
um episódio de prazer, de ira ou de soberba, ou a abater
a avareza, ou a fazer frente a um hábito insensato.
Dessa maneira Sólon foi franco com Creso, que tinha
sido corrompido e inflado por uma felicidade volúvel,
quando este lhe pediu que previsse o seu fim116. Assim
foi a censura de Sócrates contra Alcibíades, e lágrimas
sinceras foram derramadas quando, ao criticá‑lo,
f procurava transformar o seu coração117. Idênticos
foram os actos de Ciro em relação a Ciaxares118, e de
114
Demóstenes, Da Coroa, 198.
115
Ilíada IX, 108. Estas palavras são de Nestor, a condenar
Agamémnon pela decisão de arrancar Briseida da tenda de
Aquiles.
116
Heródoto, Histórias I, 30‑32; Plutarco, Vida de Sólon 20,
(94D).
117
Platão, Banquete, 215 E.
118
Xenofonte, Ciropedia V, 5.5.
146
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
30
Portanto, aqui ficou, em traços largos,
apresentado o valor da oportunidade. Todavia,
aquelas oportunidades que com frequência surgem, o
amigo atencioso não as deve deixar passar, mas sim
deve servir‑se delas. Pois muitas vezes uma pergunta,
uma história, uma crítica ou um elogio de factos
119
Platão, Cartas, IV 321 C. Também é citado por Plutarco na
Vida de Díon 8 e Vida de Coriolano, 15.
147
Plutarco
148
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
31
Mas há uma outra oportunidade para a
advertência, quando se é censurado por outros por causa d
de falhas que se cometeram, e se gera como resultado o
sentimento de humilhação e de depressão. Um homem
dotado usá‑la‑ia convenientemente, expulsando e
dispersando os que criticam, e, ocupando‑se ele próprio
do seu amigo em particular, trazia‑lhe à memória que,
se algum fundamento deve encontrar‑se no facto de
ele estar atento, que seja para travar a arrogância dos
inimigos:
149
Plutarco
32
Deve‑se ainda, além disso, ser cuidadoso em usar
da franqueza com um amigo na presença de muitos,
tendo interiorizado um determinado episódio de Platão.
Com efeito, depois de Sócrates haver criticado com
mais vigor um dos seus discípulos enquanto conversava
à mesa, disse Platão:
Não era melhor que lhe tivesses dito essas coisas em privado?
f E Sócrates respondeu‑lhe:
150
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
151
Plutarco
126
Cf. Plutarco, Vida de Alexandre, 51.
127
Ptolomeu V Epífanes (205‑181 a.C.). Cf. Políbio 15, 31.
128
Aristófanes, Acarnenses, 503.
152
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
129
Tucídides, I, 70.
130
Plutarco, Vida de Lisandro, 22; Regum et Imperatorum
Apophtegmata, 190 F. O mesmo passo surge mencionado em Vida
de Temístocles, 11, 5.
131
Também em Plutarco, De Fraterno Amore, 491F.
132
Xenócrates de Calédon e Pólemon de Atenas (séc. IV a.C),
respectivamente mestre e discípulo, foram chefes da Academia
platónica.
133
Eurípides, Nauck, Trag. Graec. Frag., nº 1086. Também em
Como Retirar Proveito dos Inimigos 88D.
153
Plutarco
33
f Porém, como as circunstâncias impelem, com
frequência, homens corruptos a advertirem outros do
mesmo tipo que eles, com quem se relacionam, o modo
mais razoável de o fazer será o que implica e o que inclui na
acusação o autor do discurso franco. Acerca disso é dito:
E ainda:
72a Pois agora nós juntos não valemos um Heitor, que é só um134.
134
Ilíada XI, 313 e VIII, 234.
154
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
E:
155
Plutarco
E:
156
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
um, a não ser que, por Zeus! sejam os próprios pais. Por
exemplo, Agamémnon pode dizer:
34
O menos conveniente é que o admoestado
admoeste, e que contraponha à franqueza a própria
franqueza. Pois isto rapidamente incendeia os espíritos
e cria conflito, e tal altercação normalmente torna
audível não o homem que responde à franqueza com a
franqueza, mas o homem que não a suporta. É, portanto,
preferível suportar o amigo que pensa que adverte, pois
se, mais tarde, ele cometer uma falta e necessitar de uma f
admoestação, só este facto de si oferece à franqueza a
legitimidade para falar à vontade.
Pois se lhe trouxeres à lembrança, sem nenhuma
manifestação de ressentimento, que também ele não tem
por hábito deixar passar as faltas dos amigos, mas que as
assinala e que as censura, mais facilmente interiorizará
e receberá a correcção, como sendo uma recompensa
motivada pela benevolência e pela gratidão, e não como
produto de uma crítica ou da ira.
157
Plutarco
73a 35
Além disso, como diz Tucídides:
140
Tucídides, II, 64.
158
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
36
Visto que, parafraseando Eurípides “nem tudo
o que vem com a velhice é mau”141, nem é mau tudo o
que vem com amizades medíocres, é necessário observar
os amigos, não apenas quando erram, mas também
quando acertam, e, até, de bom grado ser os primeiros
a louvá‑los. Depois, tal como o ferro solidifica com o
arrefecimento, e recebe o golpe do malho depois de se ter d
tornado primeiro maleável por acção do calor, também
é quando os nossos amigos se tornaram mais flexíveis e
tépidos com os elogios, que nesse instante se derrama a
141
Eurípides, Fenícias, 528.
159
Plutarco
160
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
E Nestor a Agamémnon:
143
Ilíada VI, 326. Ibid. IX 109.
144
Nauck, Trag. Graec. Frag., Sófocles nº 141.
161
Plutarco
162
Como Distinguir um Amigo de um Adulador
37
Portanto, visto que, como já foi dito, a franqueza
muitas vezes é dolorosa para a pessoa em que ela é
aplicada, é necessário imitar os médicos. É que estes, ao
operarem, não abandonam a parte que está a ser operada
ao sofrimento e à dor, mas tratam‑na convenientemente
com unguentos e ligaduras. Os que são sábios a
admoestar não se limitam a aplicam a sua acidez e a sua
mordacidade, e depois simplesmente partem, mas são
permanentes em contactos e palavras gentis, acalmam
e avivam, como os escultores alisam e dão brilho às
estátuas trabalhadas a martelo e cinzel.
Mas o homem que foi ferido e inflamado pela e
franqueza, se for abandonado ao sofrimento, inchado
e fora de si por causa da ira, difícil de acalmar, não
responderá facilmente a uma nova chamada. Por essa
razão, é também preciso que os que admoestam tenham
um cuidado particular nestes casos, e não se vão embora
demasiado cedo, nem deixem que algo penoso ou
incómodo para os seus amigos ponha fim ao diálogo e
aos contactos.
163
Como Retirar Benefício
dos Inimigos
165
Palavras Introdutórias
Palavras Introdutórias
167
Paula Barata Dias
168
Palavras Introdutórias
169
Paula Barata Dias
E visto que a amizade tem, nos dias de hoje (ta nun), a voz
débil para a franqueza no falar, enquanto o elogio que dela
vem é bem sonoro e a sua admoestação é muda, é da boca dos
inimigos que se deve escutar a verdade (cap. 6, 89 C).
170
Palavras Introdutórias
1
Eberhard Nestle, Studia Sinaitica IV, Londres, 1864.
171
Como Retirar Benefício
dos Inimigos
Tradução
Como Retirar Benefício dos Inimigos
1
Reparo, Cornélio Pulcro, que escolheste a mais 86
doce forma de exercitares a cidadania, pela qual manténs
a máxima disponibilidade para as causas públicas, e te
revelas absolutamente sereno perante os que te solicitam
em privado.
É que se pode encontrar uma terra – Creta, segundo
se conta – livre de animais selvagens, mas um Estado que c
não enfrente a inveja, nem o egoísmo, nem a rivalidade,
as emoções mais capazes de produzir inimizade, não
existiu até agora (pois as próprias amizades nos enredam
em inimizades, coisa que também o sábio Quílon tinha
em mente, quando perguntou a alguém que afirmava
que não tinha nenhum inimigo, se porventura tinha
algum amigo1).
Parece‑me, por isso, que é dever do homem de
Estado examinar a fundo as questões dos inimigos, e
dar, de modo não displicente, ouvidos à afirmação de
1
O mesmo episódio surge relatado em Acerca do Número
Excessivo de Amigos 96 A.
175
Plutarco
2
Aos homens primitivos, era já bastante não ser
ferido pelos animais desconhecidos e selvagens, e esta
era a finalidade dos combates entre eles e as feras4. Mas
os que lhes sucederam, depois de terem aprendido a
explorar a sua utilidade, retiram deles benefício, pois
alimentam‑se da sua carne e vestem‑se do seu pêlo, e
tratam as suas doenças com a sua bílis e o seu colostro,
e com o seu couro fabricam armaduras, de tal maneira
que é justo temer que, se por um acaso deixasse de haver
animais selvagens, a existência humana tornar‑se‑ia ela
própria selvagem, penosa e incivilizada5.
Desta forma, se para muitos já é suficiente não
e sofrer dano provocado pelos inimigos, e segundo
Xenofonte afirma6, os homens sensatos, até dos
2
Xenofonte, Económico 1, 15.
3
Plutarco, Praecepta Gerendae Reipublicae, 798 a.
4
Regressa o tópico do confronto entre a natureza e a civilização,
entre o primitivo e o cultivado, usado logo na segunda frase deste
tratado.
5
De Sollertia Animalium, 964 A e 965 B.
6
Cf. Xenofonte, Económico, I, 15 e Ciropedia I, 6, 11.
176
Como Retirar Benefício dos Inimigos
177
Plutarco
178
Como Retirar Benefício dos Inimigos
3
Em primeiro lugar, considero que o mais
prejudicial da inimizade pode tornar‑se no mais útil
para os que se dispõem a tal transformação. O que quer
isto dizer?
O inimigo vigia atentamente os teus actos,
pretendendo sempre tomar a dianteira em todos os teus
passos, cerca a tua vida, espreitando, não apenas entre
as árvores, como fazia Linceu11, nem só entre seixos e c
cacos12, mas através do teu amigo, do teu escravo, e
de todos os teus familiares, procurando informar‑se o
mais possível sobre o que tu estás a fazer, e atento, segue
no encalço dos teus projectos. Muitas vezes, os nossos
amigos ficam doentes ou falecem sem que nós tenhamos
sabido, por negligência ou descuido nosso; agora dos
nossos inimigos, pouco falta até para lhes ocuparmos
os sonhos. Doenças, dívidas, desacertos conjugais,
mais facilmente passam despercebidos aos amigos do
que ao inimigo. E o que é mais importante, ele fixa‑se
sobretudo às nossas fragilidades e procura expô‑las. Tal
como os abutres são atraídos pelos odores dos cadáveres
em decomposição, mas são incapazes de sentir que d
estão purificados e limpos, também as enfermidades, as
fraquezas e os sofrimentos da nossa vida põem o inimigo
em movimento, e os que nos odeiam lançam‑se sobre
11
Linceu, timoneiro da nau Argos, gozava de uma visão excelente,
capaz de atravessar muralhas. Cf. Plutarco, De communibus notitiis
aduersus Stoicos, 1083 D.
12
Expressão proverbial que pretende significar “em todo o lado”,
dada a abundância, nas cidades antigas, deste tipo de matérias (dia
lithon kai ostrakon).
179
Plutarco
13
Ilíada, I 255. A fala de Nestor procura acalmar a contenda
entre Aquiles e Agamémnon, trazendo o argumento maior de
que os Troianos são os que mais lucram com a dissensão entre os
maiores dos Aqueus.
180
Como Retirar Benefício dos Inimigos
14
Horomen (cap. 3), do verbo horan (cf. infra horas, “observa”,
cap. 2). O autor oscila entre um destinatário explícito e uma
primeira pessoa do plural de identificação. No início do cap. 4
recupera o diálogo directo (proslabe).
15
Públio Cornélio Cipião Nasica opôs‑se à destruição total de
Cartago defendida por Catão, por achar que, sem um inimigo,
Roma tombaria na lassidão (Plutarco, Vida de Catão o Antigo, 27).
Mas no relato da Biografia, a oposição de Nasica manifesta‑se antes
da destruição de Cartago.
181
Plutarco
4
Acrescenta ainda também a opinião de Diógenes,
bem própria de um filósofo e de um homem de
Estado:
182
Como Retirar Benefício dos Inimigos
183
Plutarco
5
Platão, sempre que se encontrava com homens
de conduta inconveniente, costumava perguntar a si
próprio:
184
Como Retirar Benefício dos Inimigos
24
Plutarco, Obras Morais – No Banquete VI, 2, 633 C. Hefestos,
filho de Hera e de Zeus, era coxo e corcunda porque o seu pai o
lançara do Olimpo, agastado por este ter tomado o partido de Hera
numa discussão conjugal.
25
Eurípides, Alcméon (Nauck Trag. Graec. Frag., Adespot. nº
358, também em Como Distinguir um Adulador de um Amigo, 35
D.
26
A dedicação de Crasso à sua moreia de estimação é também
referida em Praecepta Gerendae Reipublicae 811 A e De Sollertia
Animalium 976 A Também Eliano, De Natura Animalium 8, 4.
185
Plutarco
6
Existe, é claro, alguma vantagem e utilidade no
censurar dos inimigos. Mas não menor benefício existe
no ser censurado por outrem, e no ouvir alguém ser
criticado pelos seus inimigos. Nesse aspecto Antístenes
teve razão, quando disse que os que procuram sair‑se bem,
necessitam tanto de amigos verdadeiros como de inimigos
fogosos, os primeiros, por admoestarem, os segundos por,
ao fazerem censuras, os demoverem dos erros.
E visto que a amizade tem, nos dias de hoje, a voz
débil para a franqueza no falar enquanto a adulação que
dela vem é bem sonora e a sua admoestação permanece
c muda, é da boca dos inimigos que se deve escutar a
verdade.
Tal como Télefon, que, por não haver um médico
apropriado entre os seus, confiou o ferimento à lança
27
Sófocles, de peça desconhecida (Nauck, Trag. Graec. Frag.
Nº 843).
186
Como Retirar Benefício dos Inimigos
28
Télefon foi ferido na coxa por Aquiles, e o golpe só sarou
depois de Aquiles nela aplicar a ferrugem da sua própria espada.
O episódio consta de muitas obras literárias da Antiguidade.
Cf. Apolodoro, Epitome III, 20; Higino, Fabulae, 99, 100, 101;
Eurípides, Télefon (Nauck Trag. Graec. Frag. , frag. 724); Propércio,
II, I, 63; Ovídio, Metamorfoses, XIII, 171.
29
Prometeu o Tessálio é, seguramente, um cognome de Jasão de
Feras, pois a mesma história é relatada a seu respeito em Cícero, De
Natura Deorum 3, 28, 70; também Plínio o Velho História Natural
7, 51; Valério Máximo I, 8, ext. 6., Xenofonte, Hellenica 2, 3, 36.
187
Plutarco
188
Como Retirar Benefício dos Inimigos
7
Portanto, sempre que for lançada uma falsidade, é
imperioso que não se desvalorize e que não seja ignorada
pelo facto de ser mentira, mas antes que examines as 90a
tuas palavras ou os teus actos, para saber qual dos teus
interesses ou relações podem apresentar semelhanças
com a calúnia, e depois preservares‑te zelosamente, e
mesmo distanciares‑te disso.
De facto, se outros, vítimas de circunstâncias
adversas, aprendem uma útil lição, tal como Mérope
diz:
189
Plutarco
8
Mas, tirando à parte estas considerações, o domínio
sobre a língua não é uma insignificante componente da
virtude, pois nem sempre é possível tê‑la controlada e
obediente à razão, a não ser alguém que, pelo treino,
propósito e aplicação, tenha conseguido domar as
c piores das paixões, como é, por exemplo, a ira. É que
“a palavra que inadvertidamente se solta” e a “palavra que
foge da grade dos dentes” e ainda “algumas palavras que
por si próprias voam36”, são coisas que ocorrem sobretudo
aos que têm um espírito fraco, tais como aqueles que se
35
Episódio também repetido em Apophtegmata Laconica 175 B.
36
A primeira destas citações é uma expressão recorrente em
Homero (Ilíada, IV, 350; XIV, 83; Odisseia, I,64; 23, 70. As
restantes são desconhecidas, mas o vocabulário é homérico.
190
Como Retirar Benefício dos Inimigos
191
Plutarco
9
Bondade e mansidão, eis portanto o que nós
devemos mostrar mais com os inimigos do que com os
amigos, assim como integridade e grandeza de carácter,
bem como disponibilidade. É que não é mais formoso
fazer bem a um amigo do que é mais vergonhoso
recusar‑lhe auxílio, quando ele necessita 42.
É também a atitude correcta deixar passar a
vingança sobre um inimigo quando a oportunidade
se apresenta. Pois alguém que se compadece do
inimigo em queda, e que estende uma mão à sua
f necessidade, e que dá mostras de generosidade e de
interesse pelos seus filhos caídos em privação ou
pelos seus assuntos particulares, a este, quem não
o admirar pela sua bondade nem o louvar por ser
41
Xenofonte, Banquete, 2.10.
42
Plutarco afirma que a omissão de ajuda a um amigo necessitado
é muito mais culposa do que é virtuoso o agrado em tempos mais
bonançosos . Ou seja, a atitude positiva vale pouco, ao passo que a
negativa é seriamente agravada.
192
Como Retirar Benefício dos Inimigos
193
Plutarco
194
Como Retirar Benefício dos Inimigos
10
E posto que é necessário “que uma crista nasça a
todas as gaivotas”, segundo Simónides48, e que toda a
46
O episódio é contado com mais detalhe em Cícero, Oratio Pro
Rege Deiotaro, 11,31, embora aqui os papéis sejam invertidos: Gaio
Domício Aenobarbo, tribuno da plebe em 104 a.C., era o acusador,
e Mário Escauro Domício o acusado. Talvez estejamos perante um
episódio em que o escravo foi vítima de duas culturas jurídicas e
cívicas divergentes. A menysis era, à luz do direito grego, um dos
poucos casos em que um escravo se poderia dirigir directamente ao
tribunal (por exemplo, para denunciar actos de alta traição ou de
impiedade religiosa). Se fosse provado o crime, obtinha liberdade;
caso contrário, seria morto. No episódio descrito, sobre a alegada
legitimidade do escravo para proceder à denúncia, prevaleceu
a consciência de classe dos senhorios romanos, profundamente
receosa do excesso de iniciativas por parte dos escravos.
47
Plutarco narra este episódio na Vida de Catão Menor, 21 (769
B).
48
Verso de Simónides citado também em De Vnius in Republica
Dominatione, Populari Statu et Paucorum Imperio 809 B e na Vida
de Timocleão 37, (253 E). (Cf. Berck, Poet. Lyr. Graec. III, p. 418,
195
Plutarco
Simónides nº 68).
49
Píndaro frg. 212 Snell.
50
De Vnius in Republica Dominatione, Populari Statu et
Paucorum Imperio, 813 A.
51
Referências tiradas de Hesíodo, Trabalhos e Dias, 25‑27.
196
Como Retirar Benefício dos Inimigos
197
Plutarco
11
Porém, mesmo que os nossos inimigos dêem
a impressão de ter colhido o sucesso nos pátios e nas
praças públicas do poder de um modo vergonhoso e
indigno de um homem livre, à força de adulações ou de
maldades, ou a corromper, ou a vender os seus serviços
como mercenários, isto não nos deve perturbar, mas
antes deve trazer‑nos alegria, se o podemos confrontar
com a nossa liberdade e com a nossa conduta imaculada
e impossível de atacar.
É que, como afirma Platão, “Todo o ouro que existe
sobre a terra e debaixo da terra não se pode comparar à
virtude53”, e é preciso ter sempre à mão no nosso espírito
o dito de Sólon:
e Mas com eles nós não trocaremos a nossa virtude pela sua
riqueza54,
53
Platão, Leis, 728 A. Também citado em Aduersus Colotem
1124 E.
54
Uma referência mais extensa surge em Quomodo Quis Suos in
Virtute Sentiat Profectus 78 C e De Tranquilitate Animi 472 E.
198
Como Retirar Benefício dos Inimigos
55
Enquanto modo de reforçar o desprendimento dos bens e
a impassibilidade diante das vitórias (fugazes!) dos inimigos, esta
afirmação é profundamente cáustica: a virtude não deve ser trocada
por lugares no teatro, previamente comprados com banquetes, nem
por almejar fazer parte do séquito que serve os reis, constituído
por eunucos, concubinas e sátrapas. Parece‑nos evidente a crítica às
monarquias de tipo oriental que contaminaram o legado político
alexandrino (ver Intr. Geral, p. 42)
56
Reminiscência platónica muito usada em Plutarco (cf. n.
33).
199
Acerca do Número Excessivo
de Amigos
Palavras Introdutórias
Palavras Introdutórias
203
Paula Barata Dias
204
Palavras Introdutórias
205
Paula Barata Dias
206
Palavras Introdutórias
207
Acerca do Número Excessivo de Amigos
1
A Ménon , o Tessálio, que se achava bastante
1 93
treinado no debate, e que, parafraseando o dito de b
Empédocles, “frequentava os cumes da sabedoria”2,
perguntou Sócrates o que era a virtude.
À impulsiva e pronta resposta que ele deu, de que
havia uma virtude própria de uma criança, outra de um
ancião, uma de um homem, outra de uma mulher, uma
específica de um governante, outra de um cidadão, uma
de um senhor, outra de um servo, Sócrates respondeu:
FDV, I, p. 309‑311.
3
Plutarco, De Virtute Morali, 441 B. O episódio surge também
em Platão, Ménon, 72 A.
209
Plutarco
2
Ora, o desejo de frequentar muitas amizades é
um obstáculo não menos adverso, entre muitas outras
razões, ao desenvolvimento de novas amizades; pois tal
como as mulheres dissolutas, estamos envolvidos em
frequentes contactos, com muitas e diferentes pessoas,
por isso deixamos de poder manter os mais antigos, que
são negligenciados e acabam por se afastar. Uma melhor
comparação, talvez, é a ama Hipsípile que, sentada no
prado colhia flores,
4
Briareu é um gigante de cem braços, filho de Urano e de Gaia.
Combateu por Zeus na titanomaquia. Argos Panoptes “que tudo
vê”, gigante fidelíssimo a Hera, foi transformado por ela em pavão,
com os seus múltiplos olhos.
5
Menandro, Epiclero (Kock Com. Attic. Frag. 3, nº 554).
Também em Plutarco, De Fraterno Amore 479 C.
6
Eurípides, Hipsípile (Nauck Trag. Graec. Frag. nº 754.).
Também em Plutarco, Obras Morais, No Banquete, 4, 661 E
210
Acerca do Número Excessivo de Amigos
211
Plutarco
3
Nós não defendemos que o nosso amigo deva ser
“o único”, mas, entre outros, que alguém seja o filho da
nossa velhice e o nosso descendente serôdio, aquele que
consumiu, durante longos tempos, a famosa medida de
sal11, e não como agora, em que muitos são considerados
amigos por beberem um único copo, ou por jogarem à
pela ou aos dados, ou por passarem um serão juntos,
10
Ilíada, IX, 482.
11
Expressão proverbial, que já se encontra em Aristóteles, Ética
a Nicómaco 8 1156 b 27, que pretende transmitir a ideia da partilha
íntima de um bem quotidiano e precioso como o sal. Também em
Cícero, Tratado da Amizade 19, 67 “é verdadeiro aquele provérbio
que diz que, para que o fruto da amizade seja inteiramente
consumido, é necessário comer juntos muitos módios de sal”.
212
Acerca do Número Excessivo de Amigos
12
Cf. Obras Morais, No Banquete, 4, 659 E ‑ 660 A (op. cit., n.
6). A verdadeira amizade exige tempo.
13
Passagem inspirada em Aristóteles, Ética a Nicómaco, 1156 a
‑1156 b (VIII, 2).
213
Plutarco
4
É pois necessário acolher, não os que pelas
circunstâncias se colam a nós facilmente, nem fazer
14
O termo grego sunapodusomenos, do verbo sunapoduesthai
significa “despir a roupa em conjunto”, acto que antecedia qualquer
combate programado.
15
Autor desconhecido, Nauck, Trag. Graec. Frag., nº 366.
16
Sófocles, Nauck, op. cit, nº 779, Também em Plutarco, 768
E (Obras Morais, Diálogo sobre o Amor, Relatos de Amor, Coimbra,
2009).
214
Acerca do Número Excessivo de Amigos
5
Tal como Zêuxis disse, quando algumas pessoas o
acusaram de pintar muito devagar:
17
Plutarco, Vida de Péricles, 13 (159D).
18
Ilíada XXIII, 77.
215
Plutarco
19
Odisseia IV, 179.
20
Empédocles (Diels, FDV, I, p. 239), provavelmente adaptado
da Ilíada, V, 2.
21
Bergk, Poet. Lyr. Graec., 3, p. 721, Adespot. nº 99.
216
Acerca do Número Excessivo de Amigos
6
Ora, mesmo se todos os nossos amigos nas c
mesmas alturas precisam de favores idênticos, é difícil
estar à altura de todos, nas suas necessidades, na sua vida
pública, nas suas ambições, e mesmo nas ocasiões em
que rendem hospitalidade22.
E se acontece solicitarem‑nos ao mesmo tempo,
por estarem envolvidos em diferentes actividades e
experiências, um porque, indo viajar, reclama a nossa
companhia; outro porque, estando a ser julgado, solicita
que o auxiliemos na defesa; outro ainda que, agora como
juiz, nos pede que com ele deliberemos; outro mais que
o ajudemos nas suas aquisições e vendas; este que, por
se ir casar, que celebremos com ele os sacrifícios rituais,
aquele que nos aliemos ao seu luto, num funeral:
22
Acerca das desvantagens da polifilia, Aristóteles, Ética a
Nicómaco, 9, 10 (1171a 2‑7).
23
Sófocles, Rei Édipo 4, citado também em Plutarco, De
Superstitione 169 D; De se Ipsum Citra Inuidiam Laudando (445
D) e Quaestiones Conuiuales VI 623 C.
217
Plutarco
24
Menandro, (Kock, Com. Attic. Frag. 3, p. 213), também
citado em Plutarco, De Fraterno Amore 491 C.
218
Acerca do Número Excessivo de Amigos
219
Plutarco
7
É que rapidamente as inimizades vão no encalço
das amizades, e se interligam de tal modo que é
impossível não se ver envolvido nos juízos que se fazem
do amigo, nas humilhações que lhe são infligidas, nas
b derrotas que sofre. Por um lado, os inimigos de alguém
logo olham com reservas e ódio o amigo deste, por
outro, com frequência os outros amigos sentem inveja e
ciúmes, e tentam desviá‑lo de nós. Com efeito, tal como
foi profetizado pelo oráculo dado a Timésias28 sobre a
sua colónia, “depressa os favos de abelhas se converterão
em enxames de vespas”, do mesmo modo os homens
que andam à procura de favos de amigos, tombam
inadvertidamente em enxames de inimigos.
Além disso, a afeição de um amigo e o rancor de
um inimigo não têm igual gravidade. Tortura e morte:
vê o tratamento que Alexandre reservou aos amigos
e aos familiares de Filotas e de Parménio; o que fez
Dionísio aos de Díon; Nero aos de Plauto; Tibério aos
c de Sejano…29. Tal como a Creonte, a tiara de ouro e o
27
Esta referência também ocorre no tratado Como Retirar
Benefício dos Inimigos, 86 C.
28
Timésias de Clazómenas, fundador de Abdera (Heródoto, I,
168). O episódio aqui referido surge com mais desenvoltura em
Praecepta Gerendae Reipublicae 812 A.
29
A morte de Filotas e do seu pai Parménio são relatadas em
Plutarco, Vida de Alexandre, 49. Quanto a Nero e a Tibério como
perseguidores, cf., respectivamente, Tácito, Analles, XIV, 57; Díon
Cássio LXII, 14 e Tácito, Analles V, 7 e Díon Cássio LVIII, 11‑12.
220
Acerca do Número Excessivo de Amigos
832 d
Por estas razões, não é conveniente desbaratar
a virtude, ora acompanhando qualquer um nas suas
questões, ora interagindo com quaisquer outros, mas
apenas com os que estão à altura de dar a mesma
confiança, ou seja, os que são capazes de retribuir
igualmente em amor e em companhia.
É que a amizade nasce da semelhança, e este é o
maior de todos os obstáculos ao facto de se ter um grande
30
Eurípides, provavelmente da peça perdida Pirítoo (Nauck,
Trag. Graec. Frag., Eurípides, nº 595). Este passo surge também
citado em Plutarco De Amore Prolis 482 A; De Vitioso Pudore 533
A; Amatorius 748 E.
31
Tucídides, II, 51, 5.
32
O cap. 8 e 9 deste tratado recorda a argumentação apresentada
em Como Distinguir o Adulador do Amigo 6‑10 (vide infra).
221
Plutarco
9
Portanto, haverá um homem de tal modo aplicado,
tão capaz de se transformar e tão universalmente
f adaptável, a ponto de poder assimilar e de se acomodar
33
Cf. Cícero, Tratado da Amizade IV, 15...uoluntatum,
studiorum, sententiarum summa consensio; “a consonância máxima
de vontades, de interesses, de discursos”.
34
Esta fórmula de Plutarco, a amizade como a partilha de uma
só alma, parece adoptar um conceito de amizade divulgado entre
os espíritos cultivados. Cf. Cícero, Tratado da Amizade XXI, 80;
Horácio Odes I, 3, 8.
222
Acerca do Número Excessivo de Amigos
223
Plutarco
224
Índices
225
Índice de Nomes
Índice Onomástico
Abreviaturas
AD ‑ Como Distinguir um Adulador de um Amigo de 48 A a 74D
IC‑ Como Retirar Benefício dos Inimigos 86 B a 92 F
AM‑ Acerca do Número Excessivo de Amigos 93 A a 97 A
227
Índice de Nomes
228
Índice de Nomes
229
Índice de Nomes
230
Índice de Palavras-Chave
Índice de Palavras‑Chave
Siglas adoptadas:
AD ‑ Como Distinguir um Adulador de um Amigo de 48 F a 74D
IC ‑ Como Retirar Benefício dos Inimigos 86 B a 92 F
AM ‑ Acerca do Número Excessivo de Amigos 93 A a 97 A
231
Índice de Palavras-Chave
232
Índice de Palavras-Chave
233
Índice de Palavras-Chave
234
Índice de Palavras-Chave
235
Índice de Palavras-Chave
236
Índice de Palavras-Chave
237
Índice de Palavras-Chave
238
Índice de Palavras-Chave
239
Volumes publicados na Colecção Autores
Gregos e Latinos – Série Textos