2019 LigiaVellosoNobre VOrig
2019 LigiaVellosoNobre VOrig
2019 LigiaVellosoNobre VOrig
movimento
ponto riscado,
arte, ritual
Ligia Velloso Nobre
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO INTERUNIDADES
EM ESTÉTICA E HISTÓRIA DA ARTE
terra-chão em
movimento
ponto riscado,
arte, ritual
terra-chão em
movimento
ponto riscado,
arte, ritual
Área de concentração
Teoria e Crítica de Arte
Orientadora
Profa. Dra. Maria Cristina Machado Freire
Catalogação da Publicação
Biblioteca Lourival Gomes Machado
Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo
272 f. : il.
CDD
709.81
1
Ligia Velloso Nobre
terra-chão em movimento
ponto riscado, arte, ritual
Banca Examinadora
Assinatura Julgamento
Assinatura Julgamento
Assinatura Julgamento
Assinatura Julgamento
Assinatura Julgamento
AGRADECIMENTOS
This thesis aims to research the pontos riscados [drawn points] of Nação
Livre Aruanda (Cotia, São Paulo), a terreiro [temple, shrine, commu-
nity of followers] of worship to the orishas [Yoruba deities] and entities
or an artistic-ritualistic form of life, instituted in 2001 by the babalo-
risha [high priest] and artist Kabila Aruanda and Mentoria [Spiritual
Mentors]. The pontos riscados are inscriptions of Afro-diasporic ma-
trix, made by the babalorisha, in the rituals—on the ground floor, on
human bodies, on tissues or metals—in moving lines and multiple tem-
poralities. These 'ritual diagrams' or 'cosmograms' operate as gestu-
res of listening, producing and establishing modes of existence and
relationships between humans and nonhumans, along with plural tra-
jectories. The research dialogues with artistic practices that have pro-
blematized prior and standardized definitions of Western art history.
It proposes a coexistence of heterogeneous practices, and the political/
ritualistic power of the art to think-act-feel with and in between worlds.
Keywords: Drawn points. Art and ritual. Art theory and anthropology.
Forms of life and contemporary art. Afro-Brazilian rituals.
SUMÁRIO
15 PRÓLOGO
21 INTRODUÇÃO
41 1 Encruzilhada
43 1.1 ENCONTRO DAS LIBERDADES
61 1.2 RISCOS AFRO-ATLÂNTICOS
88 1.3 LINHAS EM MOVIMENTO
117 2 Chão
119 2.1 PELE DA TERRA, EM ESPIRAL
156 2.2 ASSENTAMENTO
182 2.3 DEBRUÇARMO-NOS
193 3 Cosmograma
195 3.1 GESTOS DA ESCUTA
207 3.2 NOS RISCOS DO TEMPO
225 3.3 EXISTÊNCIA/RESISTÊNCIA
243 CONTINUAMOS
245 REFERÊNCIAS
263 GLOSSÁRIO
15
PRÓLOGO
Carta ao meu tio avô: terremoto ou liberdade
como Terra-chão em movimento
Perder o chão, ficar sem chão, é perder o rumo, ficar atordoada, abalada.
Fiquei sem chão quando soube da sua morte em 1993. Fiquei sem chão
naquele terremoto no ano seguinte. Creio que perdi o chão em muitos mo-
mentos, mas sigo a jornada como movimento e libertação.
Lembro-me fortemente do terremoto que experienciei em 1994, na
madrugada de 17 de janeiro, às 4h31 da manhã, durante 10-20 segundos,
e no minuto seguinte, e onze horas depois, no dia de Martin Luther King
Jr., na região de Los Angeles, nos EUA. A terra tremia. Aquele chão não
era mais ‘seguro’, ‘estável’ – terá sido algum dia? Fui acordada na madru-
gada com os móveis caindo, o som ensurdecedor, e saí correndo para o
estacionamento do hotel de estrada, onde estava hospedada. Não sabia o
que fazer, buscava perguntar para outras pessoas, e não obtinha nenhuma
resposta. Na beira da estrada, caminhões virados e pegando fogo.
A terra tremia. E eu tremia junto com a Terra. E naquele momento a
reconheci vivente, sua alma e corpo fortes e inquietos, assim como minha
alma e corpo vulneráveis. Estávamos juntas, ambas tremendo, ambas aba-
ladas. Um som ensurdecedor e o tremor do chão em espasmos contínuos
durante horas. Vinte e tantos anos depois, meu sismógrafo interno conti-
nua sentindo todo e qualquer tremor da Terra, por mais sútil que seja, mas
nenhuma experiência foi tão radical quanto aquele terremoto de 6.7 na
escala. Chão movente. Chão que pode afundar sob nossos pés.
No dia 17 de janeiro daquele ano, a Califórnia experimentou um dos
mais intensos terremotos registrados no país no século XX. Aconteceu
justo no feriado nacional norte-americano em homenagem à Martin
Luther King, Jr. – pastor, ativista, importante liderança do movimento de
direitos humanos dos negros nos anos 1960. Movimento da crosta terres-
tre que abalou e destruiu estradas, edifícios, infraestruturas de energia,
atingindo e ferindo milhares de pessoas.1 Construções desmoronadas que
Saudações moventes,
Ligia
INTRODUÇÃO
Conexões entre
3 No original: “which frame allows for negotiation for what claim of reality?”.
4 Em uma conferência no Museu de Arte Contemporânea de Barcelona - MACBA,
em 2015, Walter Mignolo procura situar-se em relação ao terreno que ‘nos’
corresponde, nesse caso particular, o museu e a universidade, duas instituições da
“colonialidade do saber e do ser”. Ele pergunta, considerando que onde podemos
ser efetivos é onde trabalhamos, qual é a nossa forma de organização nessa pers-
pectiva descolonial, (La opción descolonial y la actualidade mundial – Conferência
a cargo de Walter Mignolo, 5 de março de 2015. MACBA_ Barcelona. Disponível
em: http://www.macba.cat/es/conferencia-walter-mignolo. Acesso em: 21 jul. 2016).
25 Zanini, e sua direção do Museu entre 1963 e 1978 como “laboratório de
criação” e “espaço livre e experimental” envolvendo articulações em rede
na América Latina, dentre outras iniciativas mais recentes.5
No Brasil, se a crítica de arte teve uma função histórica importante
nas construções de “identidades brasileiras” ao longo do século XX, embe-
bida em uma matriz moderna ocidental como modernidade ex-cêntrica,6
seguimos reproduzindo um colonialismo interno (com o pressuposto do
‘ocidental’ e seu ‘outro’) que assola o país desde o modernismo (e mesmo
antes), mas que vem sendo mais fortemente questionado e tensionado nas
últimas duas décadas. Como assinala Renata Marquez, “A história da arte
excluiu a sensibilidade estética de indígenas, negros, mulheres e tantos ou-
tros queers. É parte das narrativas produzidas pela distinção entre Nós e
um vasto Eles, linha divisora moderna que separou ciência e crença, sujei-
to e objeto, arte e artefato”. (MARQUEZ, 2017, p. 2). Em “Davi no Museu”
(2017), ela propõe, então, o exercício da escuta para novos aprendizados e
“um ato de fato revolucionário [...] o de sermos, um dia, capazes de não en-
xergar arte na nossa exaurida arte, para experimentá-la no seu extracam-
po e com o seu poder de pensar, explicar e agir sobre o mundo, como gene-
rosamente nos ensinam Davi e Lira”. (MARQUEZ, 2017, p. 11). Marquez
se refere ao xamã yanomami Davi Kopenawa, e à Lira Huni Kuin.
O interesse aqui é atentar para a urgência de se inventar e articu-
lar novas matrizes de arte e “suspendermos pressupostos e pontos de
partida, a fim de produzir uma experiência de pensamento em torno da
variação de modos de existência” (CESARINO, 2017, p. 4), como suge-
re o antropólogo Pedro Cesarino no artigo “Conflitos de Pressupostos na
Antropologia da Arte: Relações entre pessoas, coisas e imagens” (2017).
A partir das relações antigas e complexas entre arte e antropologia, para
o autor, “não se trata exatamente de abandonar o termo “arte”, tampou-
co de generalizá-lo via algum projeto teórico (como no caso de Gell) ou
via alguma construção comparativa unilateral” (CESARINO, 2017, p. 9).
Trata-se, segundo a proposição de Cesarino, de produzir uma zona de
complexidade “motivada por formas distintas de expressão pela ima-
gem, pela palavra ou pela materialidade” (CESARINO, 2017, p. 9), da
qual se “produzirá efeitos em um campo de reflexão que, talvez, não seja
mais propriamente nosso ou dos outros, mas sim constituído pela cone-
xão entre distintas capacidades”. (CESARINO, 2017, p. 13). O que está
em jogo é problematizar o paradigma ocidental composto por um “nós”
(“modernos”) e os “outros” (“não modernos”), num processo contínuo
de descolonização do pensamento, como coloca Eduardo Viveiros de
Castro, ou descolonização do inconsciente, como propõe Suely Rolnik,
9 No original: “Attending to the matter of the artwork, a black feminist poethical com-
mentary moves to release it from the realm of the subject, whose faculty of aesthetic
judgement rests on a figuring of the sensible (and the conditions of affectability)
mediated by the forms of transcendental reason and a view of the imagination that
articulates it as always already in the service of the abstract forms of the understan-
ding”.
10 No original: “In particular, it targets the (explicit or implicit) linking of art and its
particular mode of expression to an ideal of humanity. Doing so, it indicates why
perspectives such as Rancière’s aesthetic regime, which relies on a notion of equa-
lity, the emergence of which he locates in the late eighteenth century along with
that of Kant’s ideal of humanity, offer no entry point for a reflection on artwork
that is not immediately taken as an expression of it”.
Deslocamentos 28
14 “Aruanda é uma nação, um lugar de livre ritualização do culto aos orixás, mas
não é candomblé, nem umbanda. É uma livre escolha, são pessoas contemporâne-
as, são pessoas urbanas, e que escolheram cultuar os orixás. […] Os orixás são a
natureza, são os elementos que constituem o próprio planeta e constituem o nosso
organismo, e tem as graduações todas até chegar aqui nos indivíduos”. (NOBRE;
ARUANDA, 2015, p. 23).
15 Ver o livro Pedagogies of Crossing: Meditations on Feminism, Sexual Politics, Me-
mory, and the Sacred. de Jacques Alexander (2006).
16 A noção de “performático” é complexa e ampla. No âmbito desta tese, concentro-
-me nos pontos riscados, em suas pluridimensionalidades, e me aproximo também
das conexões com o corpo, que gira, incorpora, se coloca à disposição desse ponto
riscado-portal para experienciar diferentes dimensões de modos de existência.
Figura 3 - Processo de cocriação com Les Joynes, e Kabila Aruanda, para FormLab, Mube –SP
(2012). Foto: Ligia Nobre. Fonte: arquivo pessoal.
Figura 4 - Ponto riscado por Kabila Aruanda, Processo de cocriação com Les Joynes, para FormLab.
Mube – SP (2012). Foto: Ligia Nobre. Fonte: arquivo pessoal.
Figuras 5 e 6 – Performance L’Acte/Processus/
Rituel – Fureur, Clarissa Alcântara com Kabila
Aruanda, iaôs UAP e público, na exposição La Bête
et l’Adversité. Le Commun / BAC – Bâtiment d’Art
Contemporain – Genebra (2015). Fotos: Simone
Donatelli. Fonte: arquivo Aruanda.
do existir, é a própria arte de instaurar uma existência,17 em que existir é 32
fazer existir um outro, em engendramentos entre humanos e não huma-
nos, e temporalidades múltiplas. Kabila Aruanda criou também a Usina
da Alegria Planetária – UAP, situada em um grande galpão-atelier, no ter-
reno contíguo ao terreiro, para uso próprio e para a comunidade dos iaôs,
com atividades cotidianas e eventos plurais e pontuais como peças de tea-
tro, performances etc. com parcerias próximas e continuadas com alguns
iaôs-artistas-arquitetos em diversos projetos artísticos e expográficos18,
confluindo as experiências da UAP e do Ilê.
Nesta tese, destaco três situações com pontos riscados por Kabila Aruanda
em espaços institucionais de arte: o ritual–processo de colaboração e
co-criação com o artista Les Joynes no Mube (São Paulo), realizada em
2012; a performance-ritual L’acte/processus/rituel – Fureur, com a artista
Clarissa Alcantara no Le Commun / BAC – Bâtiment d’Art Contemporain
(Genebra, Suíça), em 2015; e, por último, a fotografia e o gesto-ritual no
IPad em Existência/Resistência para a exposição Campos de Invisibilidade
no Sesc Belenzinho (São Paulo), em 2018-2019, a convite meu e do artista
Claudio Bueno, como curadores, que desdobro no terceiro capítulo. Essas
instaurações-performances-riscados, como gestos rituais e artísticos, en-
gendram continuidades e conexões, deslocamentos e atravessamentos en-
tre distintos mundos.
Em 2015, justamente no período de inflexão de Aruanda, ao se
desvincular do candomblé, e se assumir como um Modo de Vida, como
um Território Ritualístico/Performático, a artista performer Clarissa
Alcântara se aproximou do terreiro e construiu uma colaboração perfor-
mática-ritual-artística com Kabila Aruanda, Guias da Mentoria e iaôs,
que se desdobrou na performance L’Acte/Processus/Rituel - Fureur (Ato/
Processo/Ritual - Fúria), para a exposição La Bête et l’Adversité (A besta
e a adversidade),19 em Le Commun / BAC – Bâtiment d’Art Contemporain
(Genebra, Suíça), no âmbito da performance da antropóloga francesa
Da feitura22
21 “Borram-se fronteiras, cores, línguas, nomes, pois lisa se faz a superfície por
onde se produzem esses dinamismos espaço-temporais. Uma cosmopolítica,
em um fazer antropológico indisciplinado, traça, entre espaços e tempos lon-
gínquos, o desenho de uma multiplicidade de linhas que se percebem comuns”.
(GLOWCZEWSKI, 2017, p. 302).
22 Esta tese foi feita a partir de uma dupla pertença, como iniciada-praticante do ter-
reiro e como pesquisadora-autora-curadora, e envolveu as próprias experiências
dos rituais e ritualizações desse modo de vida, além de conversas e provocações,
desde o início e ao longo de toda a pesquisa, com o Kabila Aruanda e a Mentoria,
e também com alguns iaôs do terreiro (Ilê), com o cuidado e a atenção contínuos
ao limite tênue entre o que é e não é publicamente partilhável dessa experiência e
modo de vida. Feitura esta entrelaçada com leituras e investigações de trabalhos
de autores de vários saberes e experiências, conversas e trocas vitais com inter-
locutores e amigos, acompanhamento de processo de escrita, grupo de estudos,
aulas, palestras, seminários, visitas a museus, exposições, performances, além
de projetos artísticos e curatoriais realizados por mim em parcerias diversas,
no Brasil, China, Suíça, Quênia, Alemanha, Turquia etc. Se esses deslocamentos
apresentam traços concretos no mundo, muitos outros, com seus eventuais abalos
sísmicos, terrestres e políticos, individuais e coletivos, devastadores e alguns
potencializadores, aconteceram e seguem com muita intensidade neste período.
Importante ressaltar também que assumo, aqui, a posição política ao equivaler
as citações/saberes das entidades-Guias de Aruanda (como modos de existência
virtuais, não humanas ou além-de-humanas) em conversações quando incorpora-
dos pelo Babalorixá Kabila Aruanda, com as citações/saberes de outros autores
humanos de diferentes publicações. A escrita desta tese porta uma individualiza-
ção da palavra (e seus riscos e responsabilidade) por quem a escreve, diferindo da
dimensão da oralidade como expressão livre e partilhada que constitui esse tipo
de experiência como desse Ilê. Ao término desta tese, portanto, eventuais erros e
falhas desta pesquisa acadêmica-artística são desta autora.
35 múltiplas dimensões. Uma dimensão é a da própria Nação Livre Aruanda
como um modo de vida e suas potenciais implicações com os pontos ris-
cados – enfoque desta pesquisa. Apresento um breve levantamento biblio-
gráfico dos ‘pontos riscados’ no Brasil, em relação às ‘firmas’ em Cuba
e aos ‘véves’ no Haiti, como diásporas nas Américas dos ‘cosmogramas’
Kongo da África ocidental – como riscados afro-atlânticos negros, suas
continuidades, rupturas e desdobramentos.23 Assim como nas giras-ritu-
ais no Ilê, abre-se o trabalho desta tese com os guias-Exus. Foco em im-
plicações e decifrações parciais de alguns pontos riscados de guias-Exus
Lebara (masculino) e Bombogira (feminino), em diferentes rituais, seus
elementos e instaurações – especificamente em giras-rituais ocorridas
entre 2016 e 2018 – da Nação Livre Aruanda. A potência do Orixá Exu
(divindade Ioruba, com presenças vitais em outras “nações” também) se
apresenta nos deslocamentos e encruzilhadas entre a África Ocidental e o
Brasil particularmente, e ressalta-se aqui as forças dos tridentes nos seus
riscados e dos guias-Exus. Outra dimensão é das decisões no caminhar,
na construção da existência, como apontou o Exu Seu Sete Portas (2018),
“A encruzilhada é o mistério da escolha que eu vou fazer. É a junção de
dois pontos”. Nesse caminhar, junto aos Orixás, guias-entidades, babalo-
rixá e iaôs de Aruanda, alguns autores dialogam e atravessam direta ou
indiretamente essas encruzilhadas: Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino,
este último com sua proposição da pedagogia das encruzilhadas, “como
um projeto político/epistemológico/educativo anti-racista/descolonial”,
em que “as encruzilhadas são campos de possibilidades, tempo/espaço de
potência, onde todas as opções se atravessam, dialogam, se entroncam e se
contaminam” (RUFINO, 2018, p. 75). O Atlântico como uma “gigantesca
encruzilhada” potencializando e reinventando-se nos terreiros e “corpos-
-terreiros” como encruzilhadas de diásporas e liberdades. Encruzilhada
como “conceito indelével do mundo atlântico Kongo como o ponto de cru-
zamento ou de intenção entre os ancestrais e vivos” (THOMPSON, 2011,
p. 113). Outro autor presente é Tim Ingold, com os emaranhados das linhas
Esta parte final da Introdução acontece num tempo após o término das
duzentas e tantas páginas de escrita-desenho-trajetória desta tese, e após
ser fortemente interpelada sobre quem escreve e a quem esta tese é en-
dereçada. Em conversa com José Fernando Peixoto de Azevedo, Renata
Marquez, Paola Berenstein Jaques, Renato Sztutman e Peter Pàl Pelbart,
me dei conta da fragilidade da própria construção da tese, em que eu como
autora desaparecia, não me posicionava, enquanto expunha outros iaôs do
terreiro. O texto original foi escrito sobre uma encruzilhada, um embate,
vertiginosamente, em que esta autora da tese sumia, se esquivava, apesar
de estar radicalmente implicada, e isso confundia e comprometia a própria
construção e leitura desta tese-trajetória que também foi a construção de
uma luta. Portanto, faço aqui esta correção. Não exponho mais e não no-
meio os outros iaôs, reconhecendo que todos participam e compõem essa
coletividade/Modo de Vida, mas assumo e exponho aqui a presença da au-
tora como iaô Mikangaya, em diálogos e relações com o babalorixá Kabila
Aruanda e com a Mentoria, e com os Orixás e Guias da Mikangaya, den-
tre outras vozes e trajetórias, autores e artistas. A escrita é assumida por
esta autora da tese, com enfoque na experiência da iaô Mikangaya – que
é o nome no Ilê desta mesma autora – como terceira pessoa do singular,
numa trajetória em que, ao final da tese, quem se reinventa e se instau-
ra é esta autora, já outra, engendrando o seu próprio ponto riscado. Os
“Riscos da tese” se posicionam então aqui como um Posfácio ou Epílogo.
Mas, faz-se necessário que sua presença esteja ao final desta Introdução,
como em uma espiral, produzindo uma finalização e um novo começo, e
não se deixando falsear e explicitando essas correções e decisões.
Figura 7 – Ponto riscado-diagrama processual do pensamento-atuante instaurador desta tese, a
partir do ponto riscado da Kamarinha da Rola do Seu Sete Portas (2016). Desenho: Ligia Nobre, 2018.
Fonte: arquivo pessoal.
1E
ncr
uzi
lha
da
43
Terreiro-Nação
(Kabila Aruanda)
trilogia composta pelos Orixás; Mentoria e Guias; Korrentes das Grandes Almas
e Korrentes das Almas”.[...] Na mitologia de Aruanda todo o indivíduo nasce pelas
mãos de Oxalá e morre pelas mãos de Olorum”. (KARTILHA, 2018, p. 2 e12).
51
9 Esta ruptura se fez necessária para o Ilê, visando um trabalho da linguagem, que
é também um trabalho de cura.
10 Como ressalta o historiador Rodrigo Bonciani, a escravidão é uma forma de ex-
ploração que se dava e ainda se dá por meio de um deslocamento –forçado ou por
aliciamento– “para fora” ou interno, implicando em dessocialização e despersona-
lização (BONCIANI, 2017, p.109).
11 Entrevista com Achille Mbembe sobre seu livro Crítica da Razão Negra (2014):
“O Negro é uma invenção daquilo a que, no livro, eu chamo «o primeiro capita-
lismo». O tempo do primeiro capitalismo — pelo menos tal como eu o concebo
Figura 8 - “Orixás que regem a Aruanda”. Figura 9 - Pirâmide do Método de Aruanda.
Fonte: Kartilha Nação Livre Aruanda, 2018, p. 12. Fonte: Kartilha Nação Livre Aruanda, 2018, p. 2.
Figura 10 – Exu Bombogira Dona Maria Gertrudes/Exu-Orixá Mahamalé Oya. Nação Livre Aruanda. 2012. Fonte: arquivo Aruanda.
Figura 11 – Festa da Origem, Nação Livre Aruanda. Foto: Ligia Nobre (2019). Fonte: arquivo pessoal.
Figura 12 – Terreiro da Nação Livre Aruanda. Foto: Ligia Nobre (2015). Fonte: arquivo pessoal.
Figura 13 – (a,b,c,d) – Ponto riscado pelo babalorixá Kabila Aruanda, Nação Livre Aruanda, 2014.
Foto: Ligia Nobre. Fonte: arquivo pessoal.
Figura 14 – Gira-Ritual da Nação Livre Aruanda. Foto: Ligia Nobre (2015). Fonte: arquivo pessoal.
norma ou como situação das humanidades subalternizadas pelo neolibe- 56
ralismo contemporâneo (o que Mbembe chama de “devir-negro do mun-
do”). Como ressalta o autor, “era, assim, necessário determo-nos neste
tempo longo [da escravatura atlântica/modernidade] sem o qual não se
percebe nada da realidade contemporânea” (MBEMBE, 2018, p.10), tra-
zendo os leitores para o centro de um debate com várias reflexões sobre
a violência do capitalismo, a crítica da raça e a emancipação negra. Mas,
Achille Mbembe pontua que o Negro “– e esta é a sua manifesta dualidade
–, numa reviravolta espetacular, tornou-se o símbolo de um desejo cons-
ciente de vida, força pujante, flutuante e plástica, plenamente engajada no
ato de criação e até de viverem vários tempos e várias histórias ao mesmo
tempo”. (MBEMBE, 2014, p. 19).
Em Aruanda, ao assumir-se como um Modo de Vida ou Nação
Livre, continuam o culto12 aos orixás – que são todos pretos de origem
– e guias, as ritualísticas e o método. Se o Ilê deixa de ser religião, mas
persistem as ritualísticas e a dimensão do ‘sagrado’, pergunto, então,
quais outras relações estariam em jogo nesta ruptura para este Modo
de Vida? No ensaio “Elogio da Profanação” (2007), o filósofo italiano
Giorgio Agamben traz ensejos relevantes aqui, justamente a partir de
uma perspectiva ocidental-europeia-cristã. Agamben argumenta que
o termo religio não deriva de religare (no sentido que une o divino e
o humano), mas sim de relegere, “que indica a atitude de escrúpulo e
atenção que deve caracterizar as relações com os deuses [...]. [Portanto,]
religio não é o que une homens e deuses, mas aquilo que cuida para
que se mantenham distintos”. (AGAMBEN, 2007, p. 66). Por isso, em
oposição à estrutura da separação que define a religião, já presente no
cristianismo e que é absoluta no capitalismo, o autor sugere a profana-
ção: “profanar significa abrir a possibilidade de uma forma especial de
negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz dela um uso parti-
cular” (AGAMBEN, 2007, p. 66). Arrisco a sugerir, então, que o que
a Aruanda propõe com “materializar o sagrado” possa ser justamente
o “profanar” proposto por Agamben, que “não significa simplesmen-
te abolir e cancelar as separações, mas aprender a fazer delas um uso
novo, a brincar com elas” (AGAMBEN, 2007, p. 75), no sentido que os
franciscanos (século XIII) propuseram: o uso como algo inapropriável.
Aruanda como um modo de vida que também busca desativar “os dis-
positivos de poder e devolve[r] ao uso comum os espaços que ele havia
Ao se propor e colocar como um Modo de Vida, “uma vida que jamais pode
ser separada de sua forma” (AGAMBEN apud CASTRO, 2012, p. 213), assim
como “uma vida [que] é inseparável de suas variações” (PELBART, 2014,
p. 262), a forma de vida da Nação Livre Aruanda compreende justamente
uma dimensão da ritualização da existência, como trouxe a guia Imperatriz 58
Cigana dos Mistérios numa Gira–“Encontro Filosófico” 13, em 2015:
13 As giras (rituais) na Nação Livre Aruanda acontecem aos sábados, durante o dia,
em um calendário anual flexível, com diferentes guias regentes e dinâmicas, que
descreverei mais no Capitulo 2 Chão, em Assentamento. Incluem-se também, há
alguns anos, os “Encontros Filosóficos” como gira (com um mesmo iaô filósofo e o
babalorixá pessoalmente ou incorporado com um dos guias-entidades), enfocando
temáticas importantes em cada tempo-espaço específico do Ilê, em uma dimensão
política ampliada, como, por exemplo: método, verdade, violência, modo de vida,
território e nação, afetação, dentre outros. Importante ressaltar que a intenção
desses “Encontros Filosóficos” é pensar o próprio terreiro filosoficamente – seus
preceitos, mitos, práticas – como debates internos e imanentes ao terreiro, em
conversas entre pessoas com formações e perspectivas muito heterogêneas,
mediadas por essa experiência ‘em comum’ do terreiro. Não há, portanto, um
cunho acadêmico nesses Encontros, o que interessa é ampliar as perspectivas, em
conversas que apontem ou confirmam dimensões do próprio método Aruanda.
14 A socióloga Miriam Rabelo, em Modos de cuidado, ressalta a concepção de
“pessoa/indivíduo” nas religiões afro-brasileiras – principalmente nos trabalhos
dos antropólogos Roger Bastide e Márcio Goldman – de “pessoa múltipla e em
processo de construção”, que ecoa também com a concepção de indivíduo propos-
59 – questão básica para Aruanda desde o seu início (ARUANDA, 2019).
No caso desse modo de vida, a importância das escolhas, critérios, dis-
cernimentos e decisões no interesse próprio do indivíduo, na relação com
o outro, é fundamental para que haja um interesse comum, um uso ‘em
comum’, considerando que “o indivíduo, pra Aruanda, sempre será uma
comunidade”.15 E como o babalorixá sugere: “bons indivíduos fazem bons
coletivos” (NOBRE, ARUANDA, 2015, p.31).
Nessa “nação-terreiro-assembleia”, portanto, as transformações
das ações cotidianas, coletivas e de cada indivíduo (“como uma comu-
nidade”) – como invenção da própria regra do viver (com o método e a
ritualística) – instauram tempos-espaços ‘em comum’ (entre humanos e
não-humanos), em um movimento duplo da “vida comum [que] se dá ao
mesmo tempo que o indivíduo se produz”, se cria, se inventa. Nessa dire-
ção, se não há uma ideia reguladora a priori, haveria então uma ima-
nência diaspórica desse modo de vida, em que a experiência de cada
iaô (como acontecimento e devir), nos rituais e no seu cotidiano, tem a
potência de integrar Existência/Emoção (Nação), Arte/Ação (Livre),
Sagrado/Razão (Aruanda), num “caminho do prazer [que] seja prazer”
(IMPERATRIZ, 2015, transcrição minha do áudio), como materializado
no ‘ponto riscado–cosmograma’ da pirâmide triádica com a espiral de
Aruanda. Trata-se de uma espiral de espirais engendradas nesse “encon-
tro de liberdades”, ou seja, nesse encontro de múltiplas dimensões tem-
porais – de humanos e não-humanos –, intensificado e materializado nas
experiências das giras-rituais, particularmente nos transes (incorpora-
ções) de Orixás e guias-entidades pelo babalorixá e por alguns iaôs, nas
feituras16, nas assembleias, nos rituais. Encontro que implica também a
feitura, se faz a pessoa e o santo [no caso aqui exu ou orixá], mas fazer, aqui, não é
produzir algo novo (ex-nihilo) senão atualizar uma virtualidade: “[...] o que parece
ocorrer com todos os seres convocados pelo candomblé é que, de algum modo,
eles já são aquilo que podem ou que devem vir a tornar-se.” (GOLDMAN, 2009,
p. 124). A feitura não cria nem a pessoa, nem o orixá e nem tampouco sua relação
(que já existe no modo virtual), mas compondo uma pessoa e um santo, atualiza
essa virtualidade”. (RABELO, 2014, p. 88). E ela segue: “Ao mesmo tempo em
que a instituição (diferente da constituição) é a retomada de algo que já está dado
(que já existe e atua), é também percurso ou história que faz valer o dado na reto-
mada, e que assim fazendo, torna-se foco para uma sequência. Esta é justamente a
realização da feitura: não é apenas o feito de reencontrar uma relação – trazendo
à superfície algo que antes estava oculto–, mas o de efetivamente tomar parte de
sua história, ativá-lo no presente. [...] Entretanto, história aqui é [...] que as várias
atividades pelas quais deuses e humanos se associam e negociam os termos desta
associação”. (RABELO, 2014, p. 88).
17 Ao reconhecer os afro-americanos e afro-europeus como, de pleno direito, oci-
dentais, Mbembe propõe “no que respeita aos Africanos, [que] o desafio consiste
em habitar vários mundos e formas de inteligibilidade ao mesmo tempo, não num
gesto de distanciamento gratuito, mas de vaivém, que autoriza a articulação de
um pensamento da travessia, da circulação” (MBEMBE, 2018, p.6). Pergunto-me,
então, se esse gesto e risco de “pensamento-mundo” não atravessaria também
modos de vida afrodiaspóricos outros, mais especificamente experiências de
terreiros e “corpos-terreiros” na América do Sul e Caribe, incluindo a diaspórica
Nação Livre Aruanda?
61
1.2 RISCOS
AFRO-ATLÂNTICOS
yimbila ye sona : “cantando e desenhando [um ponto]”
(povo Bakongo)
18 Original: “DD: Is there some way you would like to sum up what you think in ter-
ms of the African writing systems and their influence in the Americas? It’s so mul-
ti-faceted – yard shows, sculpture and other arts, dance and body language. There
has to be some powerful unifying root in some of the African cultures that is
still expressed in the Americas. RFT: Well, I think the main thing is that African
[graphic] systems in the Americas are plura-dimensional and plura-dimensionali-
zing. These graphic systems in the Americas speak to the indestructibility of the
human spirit – the fact that you can shorthand intimate beliefs, immediately and
quickly. Afro-Brazilian pontos riscados, the vèvè of Haiti, the ground signs of Tri-
nidad, the signs on the Earth in Waycross, Georgia and New Orleans – the best of
these signs give us quick, little essences of belief and right living. You never know
when you might need them. / Once I was in an Umbanda shrine in Engenho Novo
in Rio witnessing a ritual. First they drew pontos (signatures of the deities) in the
corners of the room. Then they sang to the power in the ponto and knelt to them,
too. Then the drawings became flesh and the spirits came down.” / DD: When the
As inscrições abordadas nesta tese são denominadas pontos riscados, e 62
não pontos desenhados ou escritos, assim como os cantos e as batidas dos
atabaques são pontos cantados. O visual e o musical-oral (e o gestual-cor-
poral) se compõem, acontecendo juntos como ativadores das presenças
das forças no ritual, do axé. Riscado, riscar, risca, risco. No Dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa (HOUAISS, 2001, p. 2462), riscado é um
advérbio com diversos significados, incluindo: “1. que se riscou ou que pos-
sui risco(s), traço(s) <papel r.>. 2 marcado com riscos, para fins de realce
ou de exclusão”. Com a mesma etimologia, a palavra “risco” tem dois sig-
nificados principais: 1. como “probabilidade de perigo” e 2. como “traço
colorido e/ou pouco acentuado sobre uma superfície, feito com um ins-
trumento próprio (lápis, caneta etc.) ou um artefato pontiagudo; risca” e
“corte superficial; talho, vergão”. Essas dimensões do risco e do riscar, e,
portanto, do riscado, informam parte dos significados e engendramentos
dos pontos riscados. Pontos riscados como encontro de diásporas, como
palimpsestos, como cruzamento, captura e pulsão de múltiplas linhas, ris-
cos, forças, caminhos e trajetórias.
pontos arrived!. RFT: Yes, when the pontos arrived!” (Entrevista conduzida com
Robert Farris Thompson pelo artista C. Daniel Dawson, Set. 26, 2004, Madison
Avenue e 76th Street, NYC, EUA. In: KREAMER, Christine; ADAMS, (ed.). Ins-
cribing Meaning: Writing and Graphic Systems in African Art. Washington, D.C:
Smithsonian National Museum of African Art, 2007, p. 198, tradução minha).
63 emoção estética” (BASTIDE, 2011, p. 93), e analisa elementos e caracte-
rísticas dos pontos riscados realizando uma comparação estética prelimi-
nar com os vèvè do Haiti.
Ecoando questões que eu havia levantado nas primeiras conversas e
pesquisa de campo com o babalorixá Kabila Aruanda, foi importante a leitu-
ra desse ensaio de Bastide com enfoque em algumas dimensões dos pontos
riscados como “campo de forças” e comunicação com os orixás. Essa leitura
ampliou o conhecimento de outros elementos e características dos pontos,
possibilitando também sua comparação formal e a das condições sociológi-
cas respectivas dos pontos riscados no Brasil e entre os vèvès no Haiti, que
eu conhecia pelo livro de Maya Deren, The Divine Horsemen ([1953] 2004).
Além de apresentar detalhadamente esse ensaio de Bastide, Gilda de Mello
e Souza lança uma observação breve ao comparar os pontos riscados do
candomblé com as “marcas industriais” do mundo ocidental – “Usando uma
analogia grosseira, eu diria que os pontos riscados correspondem ao que
são, na sociedade de consumo, as marcas industriais” (MELLO E SOUZA,
1973, p. 26) – correspondência provocadora e pertinente que ecoa hoje com
mais veemência, em que as marcas são como signos-fetiches do capitalismo
animista atual (MBEMBE, 2014; LATOUR, 2009).19
O primeiro registro etnográfico do candomblé no Brasil foi feito
por Nina Rodrigues, datado do início do século XX, fortemente racista,
e identifica antecedentes dos pontos riscados, de uma escritura ideográ-
fica de Dahomey, ressaltados no livro Os africanos no Brasil.20 Em “Arte
afro-brasileira”, artigo que integra a publicação organizada pelo crítico e
historiador da arte brasileiro Walter Zanini, intitulada História Geral da
Arte no Brasil, o antropólogo brasileiro Marianno Carneiro da Cunha se
refere aos pontos riscados, relacionando-os com a expansão da umban-
da por volta dos anos 1940 (ORTIZ, 1978), quando o culto de Exu ganha
uma grande ênfase – “divindade ligada ao mercado, ao comércio, às en-
cruzilhadas, representa portanto a própria noção de mudança, de dina-
mismo no quadro rijo de normas culturais. [...] contra os valores impostos
pela sociedade dominante” (CUNHA, 1983, p. 1013). Aqui, ao considerar
a trajetória formal21 das representações de Exu, os pontos riscados são
23 No curso que tive oportunidade de assistir, no segundo semestre de 2018 (no âmbito
da bolsa-sanduíche da Capes), ministrado pela Profa. Dra Z. S. Strother, “African
Art and the Realpolitik of Decolonizing Art History”, no Depto. de História da Arte
& Arqueologia da Columbia University (NY, EUA), a professora Strother ressaltou a
importância do Professor Robert Farris Thompson, ao abrir uma disciplina de “Arte
Africana” nos anos 1970, na Yale University. em razão das lutas e desdobramentos
dos movimentos de direitos civis dos negros nesse período nos EUA, instituiu-se essa
disciplina, deslocando a “Arte Africana” do departamento de Antropologia para um
departamento de História da Arte, pela primeira vez nos EUA. Em 1965, Thompson
era o segundo doutor formado em História da Arte Africana nos EUA, e o quarto no
mundo inteiro, segundo notas da Delegação da ONU no Primeiro Festival Mundial de
Arte Negra, organizado pela Unesco em 19666. (STROTHER, 2018).
67 “A marca dos quatro momentos do Sol: A arte e a religião dos Kongo nas
Américas” (THOMPSON, 2011, p. 107-159), Thompson nos revela que
o Tendwa Nzá Kongo, o “cosmograma Kongo” – “como pontos de canto
e de desenho de contato entre os dois mundos” (THOMPSON, 2011, p.
114) – é uma manifestação ritualística que se desdobrou na diáspora nas
Américas, ao longo das firmas em Cuba, vèvè no Haiti, desenhos de chão
de Trinidad, os signos na terra nos Estados Unidos, e pontos riscados no
Brasil, dentre outros.
O autor distingue a civilização do Kongo e o povo Bakongo da en-
tidade colonial chamada de Congo Belga (atualmente Zaire) e da atual
República Popular do Congo Brazzaville. A civilização Kongo abrange o
moderno Zaire e os territórios vizinhos na moderna Cabinda, o Congo
Brazzaville, o Gabão e o norte de Angola. Se, no começo dos anos 1500, os
traficantes de escravos usavam o nome “Kongo” referindo-se somente ao
povo Bakongo, Thompson aponta que, gradualmente, “usaram-no [nome
Kongo] para designar qualquer pessoa levada da costa ocidental da África
Central para a América” (THOMPSON, 2011, p. 108). O autor aponta que
31 No original: “The spiral is one of the most common symbols in the graphic
vocabulary of the Bantu. Use of the spiral has been documented in early accounts
of human existence through the present day among the Kongo, Pende, Kuba,
Luba, and Chokwe peoples, and it has appeared in syncretized form in European
Figura 15 - Yowa: a marca Kongo do cosmos da continuidade da vida
humana. Fonte: THOMPSON, 2011, p.113
Figura 18 – Série de signos dikenga Kongo. Adaptada por Martínez-Ruiz de uma publicação
de K. K. Bunseki Fu-Kiau (1969). Fonte: Martínez-Ruiz, 2007, p.188.
Figura 19 – Série de signos dikenga Kongo. Adaptada por Martínez-Ruiz de uma publicação
de Robert Farris Thompson (1981). Fonte: Martínez-Ruiz, 2007, p. 188.
aparece individualmente ou em sequência linear –, essas inscrições na 76
diáspora nas Américas “expressam significado em parte através de suas
localizações na narrativa coletiva, e da ordem na qual a narrativa é lida/
contada” (MARTINEZ-RUIZ, 2007, p. 192, tradução minha). Todos esses
modos de existência afro-atlânticos têm em comum o rito praticado, o cul-
to à natureza e aos ancestrais (e divindades), nas suas múltiplas variações
e modulações, em riscos que são resilientes e flexíveis, conforme as neces-
sidades e especificidades dos tempos, espaços e corpos.
O autor ressalta que as firmas da religião afro-cubana Palo Monte
significam “assinatura” em espanhol, e também em português, apon-
tando uma marca pessoal, única e distinta de uma pessoa ou de um
espírito. Firmas são formas de escrita e performance pelos sacerdotes,
em contextos rituais, feitas com mpemba (giz) em chãos, portas, pare-
des, na frente das casas, ou em objetos religiosos, como uma forma de
divinação e comunicação que descreve e convoca as forças espirituais,
nesta religião cuja prática se baseia nas forças das árvores (Palo: tron-
co), das plantas, dos elementos da natureza, e das forças cósmicas.
O exemplo de firma conhecida como Lucero (Figura 20), ou estrela,
é usada para guiar o caminho-jornada dos ancestrais entre os dois
mundos; o centro dessa firma é justamente o cosmograma em cruz-
-encruzilhada dikenga, ou como é chamado em Cuba – nkuyu – “mais
frequentemente usado para representar o espírito pessoal de um an-
cestral, para guiá-lo no dia a dia. O cosmograma é tradicionalmente
desenhado na própria casa, para marcar a entrada e purificar a casa”.
(MARTINEZ-RUIZ, 2007, p. 192, tradução minha). E “sacerdotes
afro-cubanos têm dito: ‘Todos os espíritos sentam, eles próprios, no
centro da marca, ou sinal como fonte de firmeza’. Canções (mambos)
são entoadas, como no Kongo, para persuadir essa concentração de
poder sobre o ponto designado” (THOMPSON, 2011, p.114). Outros
autores clássicos voltados à cultura afro-cubana, e que também aten-
tam para as firmas, são Fernando Ortiz (com o argumento proposi-
tivo de “transculturação” entre africanos e afrodescendentes), Lydia
Cabrera, e Argeliers León.
Os vèvè, do Vodu haitiano, são “diagramas rituais” (RIGAUD, 1974)
dessa prática espiritual complexa que reúne elementos do Vodu de Benin
e Togo, e da cultura Kongo. Feitos pelos sacerdotes (chamados houngans),
durante os rituais, com substâncias em pó (geralmente com farinha de
milho ou de trigo, e/ou com cinzas, pó de café e de gengibre) ou com giz,
Catholicism. The specificity of the spiral in the Kongo and other Bantu cultural
groups represents both the time of the graphic narrative and the metaphysical
time that serves as the foundation for religious belief. The spiral as a graphic form
is mainly associated with the mythical creation of the world, the beginning of
time. The popular understanding among the Bakongo, Kibundu, Bachokwe, and
Baluba is that a spiral means eternal life. The spiral has also been associated with
the Kongo migration materially represented by a shell. Finally, it can symbolize
the course of the sun, the spiritual migration of human growth during the cycle of
life.” (MARTINEZ-RUIZ, 2007, p. 190).
77 sobre o chão de terra batida, próximos ou em volta da coluna central (po-
teaumitan) do peristilo (o oum’phor – templo vodu), eles são assinaturas
também dos Loas (deidades, como os Orixás para o povo Ioruba). Esses
desenhos geométricos e simétricos invocam um panteão de deidades e
emblemas legados de outras terras, em variações e modulações múlti-
plas. Martínez-Ruiz (2007) traz também dois exemplos de vèvè (Figura
21), com descrições detalhadas, aqui do Loa Legba (que corresponde ao
Orixá Exu, Irouba), e o mais próximo do cosmograma Dikenga, com o
cruzamento dos quatro pontos cardinais que invocam os elementos água,
fogo, terra, ar, no qual Legba, o mensageiro de Deus, convoca seus po-
deres de comunicação entre os mundos. Dos riscados afro-atlânticos, foi
sobre os vèvè que encontrei bibliografia e estudos mais ampliados e apro-
fundados, a destacar, aqui, dentre muitos outros, o livro da artista ucra-
niana-estadunidense Maya Deren, Divine Horsemen: The Living Gods of
Haiti ([1953] 2004), complementado por pesquisa que realizei na Maya
Deren Collection, no Howard Gotlieb Archival Research Center – Boston
University (EUA); os vários ensaios, exposições e publicações de Robert
Farris Thompson, desde a primeira vez em que ele viu uma reprodução
do vèvè em 1952; o livro Ve-Ve: Diagrammes Rituels du Voudou (1974), do
etnólogo haitiano Milo Rigaud; e o doutorado da antropóloga estaduni-
dense Karen McCarthy Brown, The Veve of Haitian Vodou – A Structural
Analysis of Visual Imagery (1976).
McCarthy Brown aponta a lógica geométrica das formas dos vèvè
que invoca a presença, o foco e a condensação da experiência ritual, da
existência, da potencialidade criativa da colisão de diferentes mundos.
Thompson complementa salientando que os vèvè “traduzem o mundo em
generosidade. Eles tomam o que é carne, e tomam o que é espírito, e então
traduzem esses opostos em uma plenitude geométrica completada pelos
deuses”. (THOMPSON, 1997, tradução minha). Rigaud, em sua pesquisa
extensa e minuciosa que ele nomeia “diagramas rituais”, associa que, na
tradição cosmogônica, o vèvè corresponde ao papel ritualístico da manda-
la hindu, “como a mandala, o vèvè é uma síntese astronômica da criação
[...]. Sua essência geométrica coloca os houn’gan em contato direto com
os “poderes” universais dos ancestrais” (RIGAUD, 1974, p. 77 tradução
minha).32 Ele ressalta então que os vèvè são reconhecidos na tradição Vodu
como “padrões cosmo-planetários”.33 Deren situa que os vèvè “criam uma
porta [um portal] na terra” (DEREN, 2005, p. 205) – “símbolos sagra-
dos desenhados durante as cerimônias – [que] são frequentemente feitos
[designed] em simetria espelhada para ambos os lados de um horizonte”
(DEREN, 2004, p. 34) – o horizontal do mundo mortal, com o vertical
do eixo metafísico. Dimensão de “simetria espelhada” que ela observa
36 Isis Costa McElroy se aproxima dos pontos riscados na Umbanda por meio do
trabalho de Cavalcanti Bandeira, que detecta quatro características fundamentais
dos pontos riscados, como: “1) um sinal identificador de uma presença ancestral;
2) um instrumento ou ferramenta para performar mágica; 3) um campo polariza-
dor de energias mágicas; 4) um núcleo pictográfico de uma narrativa cosmológica
ou testemunhal”. (McELROY, 2007, p. 105, tradução minha).
37 Ver também outros autores: Molina, N. A., 3777 Pontos cantados e riscados na Um-
banda e na Quimbanda. Edição aumentada e melhorada em 10 anos de pesquisa.
Rio de Janeiro: Espiritualista, 1975; 3000 Pontos-riscados e cantados na Umbanda
e Candomblé. Rio de Janeiro: Eco, 1974; Cacciatore, O. D. Dicionário de cultos
afro-brasileiros (1977). Rio de Janeiro: Forense-Universitaria, 1988; Munanga, K.;
Manzochi, H. M. Símbolos, poder e autoridade nas sociedades negro-africanas.
Dédalo, Museu da Arqueologia e Etnologia/USP, São Paulo, n. 25, p. 23-38, 1997;
Negrão, L. N. Entre a Cruz e a Encruzilhada. São Paulo: Edusp, 1996.
38 No original: “They define the properties of a sacred microcosm and are in turn
defined via their extension and reverberation, according to their related coordi-
83 feitas de estruturas não verbais, no espaço e no tempo (RISÉRIO, 1993).
Como ressalta o autor, “Quem circula por este vasto e riquíssimo universo
de linguagem, fica impressionado, na verdade, quando se vê na obriga-
ção que essas formas, técnicas e códigos criativos atravessam milênios”.
(RISÉRIO, 1993, p. 185). Ele aponta o exemplo da chamada “poesia visu-
al”, e traz o caso, dentre muitos outros, 39 dos “ditos e provérbios dos fons
do Daomé (Benin) [que] não se continham dentro das fronteiras da comu-
nicação oral. Existiam também provérbios visuais [...] transmitidos por
desenhos gravados nos mais variados objetos” (RISÉRIO, 1993, p. 18), eco-
ando a “história complexa de contato”, encontros e invenções dos pontos
riscados no Brasil. Compartilho, portanto, da postura de Costa McElroy
ao não se propor fazer uma decodificação sistemática da mensagem dos
pontos riscados – seja em práticas da Umbanda, de Candomblés, dentre
outras, e, particularmente no caso desta tese, da Nação Livre Aruanda.
Ao invés disso, busco desdobrar a proposição da autora ao inscrevê-los
em uma “tradição poética” diaspórica e em um registro contemporâneo
dos usos, contextos e leituras40 que abrem para caminhos ainda a serem
decifrados e riscados. 41
que explorar.”
42 Terminologia proposta por Jarbas Siqueira Ramos (2017).
88
1.3 LINHAS
EM MOVIMENTO
vivos, humanos e não humanos, habitam o mundo. [...] O habitante é antes aquele
que participa internamente ao próprio processo de criação contínua do mundo
e que, ao estabelecer uma trilha de vida, contribui para sua trama e textura.”
(INGOLD, 2007, p. 90, tradução minha). No original: “Wayfaring, I believe, is
the most fundamental mode by which living beings, both human and non-human,
inhabit the world. [...] The inhabitant is rather one who participates from within
in the very process of the world’s continual coming into being and who, in laying a
trail of life, contributes to its weave and texture.”
45 No original: “Meaning of the ‘relation’ – not as a connection between pre-located
entities but as a path traced through the terrain of lived experience. Far from con-
necting points in a network, every relation is one line in a meshwork of interwo-
ven trails.”
91 e três homens. Potenciais paralelos entre orixás regentes daqueles iaôs
(iniciados) podem ser traçados: duas de Oxum, dois de Oxum-Marê, dois
de Exus–Orixá feminino e masculino, e dois do povo da mata de Oxossy e
Ewá. Energias de criação e das águas doces, das forças potentes dos exus
orixás, e do povo da mata – das folhas, da caça, e “que nos sopra ar”.
Naquele início da Kamarinha, estavam todos sentados, em bancos
baixos sagrados, alinhados lateralmente e de frente ao ‘Ibeji’ dos Exus
(similar ao altar para as religiões judaico-cristãs), sobre o chão de terra
batida, e no entorno variadas árvores altas, plantas e flores. O Ibeji dos
Exus em Aruanda já foi feito e refeito algumas vezes, reutilizando ma-
teriais, que é um dos princípios do Ilê. Este Ibeji foi construído em uma
estrutura de metal pintada de dourado fosco, tendo placas de vidro como
prateleiras. Por detrás está a estrutura anterior do Ibeji, feita com garra-
fas de vidro de bebidas, vazias, dispostas horizontalmente, sobrepostas e
coladas com cimento, formando duas colunas. A estrutura de metal atual,
com altura aproximada de quase dois metros, tem três prateleiras de vi-
dro, onde ficam os ferros-ferramentas dos Exus Lebara e Bombogira do
babalorixá, isto é, da Mentoria de Aruanda, e as moilas (velas). Durante
os rituais, ficam apoiados os padês (oferendas de alimentos feitas no início
das giras), e outros objetos de uso dos Exus, incluindo bebidas e taças. No
chão de terra batida, circundado pelo verde das plantas e árvores, incluin-
do uma grande amoreira, olhando de frente para o Ibeji, à direita, vibram
as forças das Bombogiras, e à esquerda as forças dos Exus Lebara. Os
pontos riscados durante as giras, junto dos corpos dos iaôs nas feituras no
terreiro, na maioria das vezes, acompanham estas disposições – do lado
direito são riscados os pontos das Bombogiras, e do lado esquerdo são
riscados os pontos dos Exus Lebara.
Na imanência dos desdobramentos que iriam ali se dar, ao som dos
atabaques, dos tambores, com os pontos cantados para o orixá Ogum pri-
meiro, e depois para os Exus Lebara e Exus Bombogira , o babalorixá ris-
ca os pontos, de frente para cada iaô, a partir dos seus pés, com a limpeza
daqueles corpos com ervas e pipoca, com oferendas de comidas e bebidas
e algumas com pólvora, impulsionando corpos que dançam e giram, em
festa, dos iaôs e seus exus incorporados, de iaôs não incorporados, do ba-
balorixá já incorporado com um guia mentor do Ilê, com apoio de outros
iaôs para as dinâmicas sempre mutantes da gira.
Desse ritual de firmeza dos Exus da Kamarinha da Rola do Sete
Portas, em novembro de 2016, destaca-se inicialmente, aqui, um dos pon-
tos riscados, o que está no centro das fotografias (Figuras 31 e 32), dentre
os cinco pontos riscados fotografados. Neste ponto, o babalorixá riscou
duas linhas que partem dos pés paralelos retos da iaô Mikangaya, contor-
nando-os, como que os abraçando por fora, formando duas linhas sinuo-
sas que quase se encontram, e depois se abrem novamente. Nas extremi-
dades de ambas as linhas, pequenos riscos cruzam-nas formando como
uma espécie de “C” em linha reta e um “C” curvo, sinalizando, respectiva-
mente, as energias dos Exus Lebara e Bombogira. São os tridentes. Uma
Figura 31 (a,b,c) – Pontos riscados na Kamarinha da Rola do Sete Portas, Nação Livre Aruanda. Fotos: Ligia Nobre (2016).
Fonte: arquivo pessoal
Figura 31 (d,e) – Pontos riscados na Kamarinha da Rola do Sete Portas, Nação Livre
Aruanda. Fotos: Ligia Nobre (2016). Fonte: arquivo pessoal
flecha-espiral se inicia próxima ao centro, entre as duas linhas sinuosas, 94
num movimento centrípeto. Essas linhas sinuosas, em movimento contí-
nuo e com seus ritmos próprios, operam vetorialmente. São linhas como
trilhas. E é justamente na “virada na trilha”, isto é, na encruzilhada, que se
decide por qual caminho seguir, com os guias Exus, no mistério da existência.
Outro ponto riscado destacado, aconteceu em uma Firmeza para os
guias exus em abril de 2017. Aqui (Figuras 33 e 34), os pés abertos são
“banhados” por linhas onduladas. Linhas riscadas com pemba amarela
de Oxum, nas quais os pés mergulham e encostam, e das quais emergem
linhas vetoriais, transversais. Essas linhas se cruzam, formando um X,
reforçando o enlace e a encruzilhada – uma tomada de posição? A ponta
que saiu do pé esquerdo na diagonal, em direção à direita, firma o tridente
feminino – uma curva com duas pontas como uma lança na horizontal.
Do vetor que saiu do pé direito, indo à esquerda, firmou-se o tridente reto,
masculino, também com duas extremidades dobradas e a flecha no centro
– como a reforçar suas qualidades como armas, para penetrar, agarrar e
girar, para o que for necessário. No ponto de intersecção do cruzamento,
o babalorixá risca uma espiral-flecha, também em amarelo. A espiral é
preenchida parcialmente de azul, em espaços intercalados, ressaltando os
preenchimentos do tempo da trajetória, e o ainda a preencher. No eixo do
masculino, à esquerda, em amarelo ainda, faz-se uma espada de Ogum ou
arma de caça de Oxossy. Enquanto, à esquerda, o raio de Yansã/Oyá, em
vermelho, cruza o vetor feminino. É na fluidez e na força das águas dos
rios e cachoeiras, e no entrelaçamento dos vetores das forças do raio, do
vento e da lança de caçador e de guerreiro que essa iaô, Mikangaya, se faz
e refaz, se desenha e é desenhada.
Firmeza, na Umbanda e no Candomblé, é uma forma de evocar de-
terminadas energias para o benefício da pessoa que está pedindo ou pre-
cisando – seja iniciado (iaô) ou não. Pode-se ter firmezas de proteção, cura,
e muitas outras. As oferendas podem ser consideradas uma firmeza tam-
bém. As firmezas reúnem um conjunto de elementos com um propósito
determinado, e com uma conjuração ou evocação específica – por meio
de pontos cantados, ou outras orações e preces – para cumprir um de-
terminado objetivo. A firmeza tem um tempo determinado de ativação e
execução, e deixa de atuar por fim.
Firmaram-se ali, naquelas giras situadas (e em muitas outras), a par-
tir daqueles pontos riscados, engendramentos potentes: os pontos risca-
dos com pembas de diferentes cores e energias, o chão de terra batida, o
banco sagrado baixo segurando e aportando os corpos sentados, próxi-
mos da terra, o babalorixá e as forças dos Exus e Orixás da Mentoria e
dos panteões dos iaôs, a Aruanda como plano físico e como plano espiri-
tual-cósmico, os ancestrais, dentre outros. Confluindo forças dos orixás
e dos exus-guias masculinos e femininos (que irrigam a matéria, os mais
próximos dos humanos), os pontos riscados no ritual evocam e validam
essas forças implicadas: É “fazer acontecer e deixar que aconteça”. Como
enxergou Roger Bastide, os pontos riscados “serviriam para revelar aos
95 indivíduos sua vida secreta e também orientá-los no sentido de uma espiri-
tualidade mais alta, pois esses desenhos não são simples decorações, mas
centros dinâmicos de forças”. (BASTIDE, [1948-1949] 2011, p. 95).
Ambos os pontos riscados dos guias exus, aquele destacado da
Kamarinha da Rola do Sete Portas, em novembro de 2016, e o da Firmeza,
em abril de 2017, da iaô Mikangaya, bem como os demais, existiram pelo
tempo efêmero daqueles rituais, e pelo tempo expandido nos três meses
seguidos de vibração daquelas forças, reverberando no tempo dos aconteci-
mentos mentalizados-desejados-ritualizados-feitos, na produção e decifra-
ção do mistério da própria existência de cada iaô implicado. Encontra-se
muitos paralelos entre esses dois pontos riscados dos guias Exus que os
diferenciam dos outros presentes nesta tese. As duas linhas estruturantes
sinuosas e verticais com os tridentes, em X, quase se encontram ou se cru-
zam, e as linhas em espiral-flecha direcionadas caracterizam esses dois pon-
tos riscados. Linhas em movimento, em seus ritmos próprios: em paralelos
nos sentidos vertical – com as linhas vetoriais estruturantes dos tridentes
dos Exus Lebara e Bombogira, e no sentido horizontal – com o corpo dessa
iaô e as linhas em espiral-flecha. Nesses pontos riscados, a confluência das
linhas-traços sinuosas dos tridentes impulsiona a linha em espiral-flecha.
A espiral do tempo (como linha e emaranhado de vida) está relacio-
nada à tessitura das experiências e histórias. “A presença da espiral e da
curva como noção de movimento”, como identificou Mariano Carneiro da
Cunha (1983, p. 1012), é recorrente nos pontos riscados e emblemas de
ferros de Exus. Nesses dois riscados, as duas espirais-flechas estão na con-
fluência dos passos da iaô Mikangaya e dos seus guias exus, reafirmando
a presença do mistério no tempo do agora. Espiral no girar da gira que co-
necta terra e céu. Espiral que gira, colocando todas as energias-forças em
movimento, em circulação, catalisada pelas forças do vento, raio e água de
Oyá/Yansã e de Oxum, e pelo guerrear e caçar de Ogum e Oxossy. Espiral
que aponta convidando a caminhar, a se expor e a se dispor. Espiral pre-
sente em inúmeros modos de existência e riscados humanos e não huma-
nos. Espirais em movimento centrípeto ou centrífugo contínuo. Se está
situado na periferia ou no vórtex das espirais? Como diz a artista Louise
Bourgeois, a espiral é simultaneamente o “medo de perder o controle” e a
experiência de “desapegar do controle; de confiar, da energia positiva, da
vida em si” (BOURGEOIS, 2016). 46 Espiral como domínio e como liber-
dade. Como trouxe Tim Ingold, é possível dizer que se inscrevem e cami-
nham, então, espirais dos riscos-traços-cantos no chão de terra na gira,
transformados em riscos-fios-passos nos cotidianos, transformados, por
sua vez, em riscos-traços-peles novamente nas experiências e gestos nas
escritas-desenhos, em contínuo movimento nos percursos-linhas de vida.
Em Exu do Brasil, Vagner Gonçalves da Silva argumenta que Exu, por seu
“caráter de mensageiro”, seria um “mediador cultural”, ou “um “tropo”,
por meio do qual podemos refletir sobre os conflitos e as alianças existen-
tes nessas relações”, isto é, nas relações “entre grupos étnico-raciais que
compõem a sociedade brasileira” (SILVA, 2012, p. 1085), na “estrutura so-
cial excludente da sociedade brasileira” (SILVA, 2012, p. 1105). Associado
às passagens, rotas, cruzamentos, com caráter agregador e disruptivo, a
divindade Exu atravessa os imaginários africanos e afro-brasileiros com
continuidades e rupturas, tendo o oceano Atlântico como uma “gigantes- 104
ca encruzilhada” (SIMAS, RUFINO, 2018, p. 11).
Silva ressalta como “Exu é a chave deste diálogo de longa duração entre
as cosmologias africanas, americanas e europeias que, desde o século XVI,
fluem umas nas outras”. (SILVA, 2012, p. 1109). O autor assinala ainda que
Exu ou Légba, entre os fon-ioruba, na África Ocidental, é uma divindade
mensageira, um trickster do dinamismo e da fertilidade; é sempre o primeiro
a ser saudado, cultuado preferencialmente nas encruzilhadas, em lugares de
passagem e de trocas. Com a chegada do Cristianismo à África, a partir do
século XVI, Exu passa a ser interpretado negativamente pelos Europeus colo-
nizadores, sendo por eles associado ao Demônio da Bíblia. Exu sintetiza a “en-
cruzilhada ética e moral” da Europa Ocidental, como coloca Silva, via os seus
próprios demônios, e que, a partir do século XIX, seguiu sendo mal interpre-
tado pela racionalidade da modernidade/colonialidade, a qual se opunha ao
pensamento mágico de religiões e modos de vida outros que não o seu próprio.
No Brasil, com a colonização, a escravidão e a conversão obrigatória
ao catolicismo, Exu assumiu múltiplas faces, “ora prevalecendo seu aspec-
to de deus mensageiro e ordeiro, ora seu aspecto de trickster e promotor
de caos social” (SILVA, 2012, p. 1188), cuja função é abrir caminhos, sendo
uma de suas características principais a de ter “dupla face, com uma ele
olha para frente e com outra, para trás”. (SILVA, 2012, p. 1092). No Brasil,
Exu é cultuado na entrada dos terreiros e em assentamentos coletivos,
sobre o qual são feitas oferendas, responsável por proteger o ilê contra
energias negativas e dinamizar os ritos que acontecem ali, com altares em
diferentes formas e expressões. Cultuado também em espaços públicos,
em lugares de passagem ou limítrofes, como nos conta Silva,
Traçando paralelos
(Lewis Hyde)50
51 Como disse o babalorixá, [...] tem uma questão de equivalências. Os dois sentados.
Ela está representando todos vocês, todas as mulheres, [ele] todos os homens, e os
yaôs que estão vinculadas à Aruanda. Tem uma energia emanada. O ponto de par-
tida é ele representando o Exu [Lebara], e ela a [Exu] Bombogira, e às vezes... é os
dois fazem essa vez, e que irradia para todos. Cada sábado tem uma pessoa sentada
aqui. Kabila Aruanda, Gira, 2 de novembro de 2018.
52 Duas datas, com diferença de poucos meses, marcam uma cisão do tempo no Bra-
sil: pouco antes do início das campanhas eleitorais, e logo após o resultado final
da eleição presidencial. Marcam um período anterior, os últimos trinta anos do
país de uma certa democracia, e um depois ainda incerto que reconecta e aponta
uma certa continuidade com os tempos sombrios da ditadura militar de cinquenta
e tantos anos atrás. O tempo é linear? O tempo é em espiral, circular, expandido,
misterioso? O tempo é malha em suas múltiplas flechas? O tempo é agora. Parale-
los, equivalências e encruzilhadas se praticaram entre múltiplos tempos singula-
res e coletivos.
vermelhos. São linhas amarelas dos fluídos das águas da Oxum. Entre 108
as duas linhas amarelas, sai uma linha vermelha, desde os pés também,
para fora: um raio de Yansã/Oyá – orixá dos raios e tempestades, do fogo
e do vento, do tempo e da ancestralidade. Duas forças femininas muito
potentes que compõem e com quem compomos. É a Oxum da fonte de
água que entra e volta.
O ponto riscado dos exus do outro iaô direciona para a necessidade
da definição de limites, formando um quadrado de tridentes femininos e
masculinos e uma espiral no centro, para que a criação aconteça com for-
ça e não se disperse. Os limites em quadratura, pelos tridentes, firmam
um território potente de proteção e impulso que são para a liberdade, e
não para o cárcere, a depender de como esse iaô se posiciona na política
das decisões. Em linhas azuis, de Ogum ou Yemanjá, quatro hastes com
tridentes em ambas as pontas, curvos e retos, se cruzam formando um
quadrado, um campo concentrado de energia, como uma base ou uma pla-
taforma que sustenta, limita, e impulsiona as forças da espiral do tempo
inscrita em linha vermelha no centro do quadrado.
O ponto riscado é uma inscrição no mundo, diz respeito aos iaôs in-
divíduos se conhecerem suficientemente para saberem do que são capazes
e quais seus limites. Limite, cuja etimologia vem do Latim limes, -it is., 53
pode ser compreendido aqui como potência e restrição, como porosidade e
barreira. Limites podem ser extrínsecos, definidos por métricas e leis que
informam os corpos, independente deles, ou podem ser intrínsecos aos mo-
vimentos e caminhos, expressar formas de vida, uma maneira de habitar
o mundo, como “duas experiências do limite”: “limite-contorno (externo,
extenso)” e “limite-dinâmico (imanente, intenso)”.54 Esses dois iaôs, talvez
não estejam somente como “representantes” dos iaôs do Ilê na gira, mas es-
tão justamente compondo caminhos-traços-riscos consigo mesmos, com os
guias e orixás, e com todos os outros iaôs, com tantos outros seres e forças.
Figura 36 - Pontos riscados dos Exus Lebara e Bombogira, para iaô Mikangaya e outro iaô. Nação Livre Aruanda.
(2018). Foto: Giselle Peixe. Fonte: arquivo pessoal.
Figura 37 - Pontos riscados dos Exus Bombogira e Lebara, para iaô Mikangaya e outro iaô. Nação Livre Aruanda.
(2018). Foto: Giselle Peixe. Fonte: arquivo pessoal.
Figura 38 – Ponto riscado de Exu Bombogira para iaô Mikangaya, Nação Livre Aruanda. Foto: Ligia Nobre
(2018). Fonte: arquivo pessoal.
Figura 39 – Ponto riscado de Exu Lebara, para iaô, Nação Livre Aruanda. Foto: Ligia
Nobre (2018). Fonte: arquivo pessoal.
ou da morte (pois seus frutos são ambivalentes, como tudo que é sagrado)” 114
(BASTIDE, [1948-1949] 2011, p. 114).
Ao lado, o ponto riscado das energias de ‘expansão’ da Bombogira são
como a da expansão de um átomo, da amplificação da presença e alegria,
como movimentos de exposição. Ou também, em uma disposição de ele-
mentos que “se organizam para formar uma estrutura estrelada de raios
múltiplos”, como observado por Bastide a partir de outros pontos riscados
(BASTIDE, [1948-1949] 2011, p. 113). No ensaio “Quem tem medo de pom-
bagira”, Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino, afirmam que “a pombagira é
um dos símbolos presente no complexo cultural das macumbas brasileiras
que mais nos desafia” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 89), por “aquilo que ela re-
cusa ser”, por sua “sedução, provocação, abuso e desobediência”. Afirmam
ainda que “É ela a mulher que roda e nos propicia as virações necessárias
para a reinvenção”. (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 91). Os autores ressaltam a
potência de transgressão da pombagira, sua liberdade, “senhora dos dese-
jos do próprio corpo”, sua ginga sincopada e sedutora, sua gargalhada, que
desafiam as normativas racistas e machistas da colonialidade que regem a
sociedade brasileira e o mundo ocidental capitalista. “A pombagira é o enig-
ma que poetiza as transgressões necessárias às normatizações da domina-
ção do homem na sociedade, que inferioriza, regula e interdita o papel da
mulher”. (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 90). A própria etimologia da palavra
“pombagira” ou “bombogira” designa as encruzilhadas e os portões:
E é por aí, nos mistérios das encruzas e dos caminhos, que firma-se esse
ponto riscado de expansão, acompanhado de um dos pontos cantados das
Bombogiras em Nação Livre Aruanda:
Traço aqui paralelos entre situações e agires. Paralelos entre limite e cria-
ção, defesa e expansão como habilidades (individuais e coletivas) de de-
cidir e de responder, como o máximo da própria potência que se é dado
experimentar, com os riscos implicados. Seja no chão de terra batida de
Aruanda, e noutras muitas terras, humanos e não-humanos traçam cami-
nhos, decifrando parcialmente os movimentos, as linhas e os riscos ema-
ranhados. Riscos em seus significados multiplicados: como inscrição, ca-
minhar, assumir uma posição, experiência imanente de limites (in)certos,
e como condensação de temporalidades. Riscos como cortes ou adições
nas superfícies, com matérias e materiais diferentes, com a força e o atrito
dos movimentos. A liberdade é inseparável dos limites (e dos potenciais
de criação, defesa e expansão) do próprio corpo e das situações em que
nos encontramos. Nessas situações e encruzas, os limites físicos, mentais
e emocionais fazem cada iaô indivíduo reconhecer seus cárceres internos
e externos, e suas responsabilidades e libertações também. Luiz Rufino
e Luiz Antonio Simas (2018, p.12) situam que, para eles, “as encruzilha-
das são campos de possibilidades, tempo/espaço de potência, onde todas
as opções se atravessam, dialogam, se entroncam e se contaminam”. Em
devires e mistérios, os guias exus e Orixás Exu (Tricksters55) seguem atra-
vessando, apagando, contorcendo e cruzando as múltiplas linhas, incluin-
do as “que saem para passear”.
1 Citações extraídas do filme The Education of Bruno Latour – From the Critical
Zone to the Anthropocene. Duke University, EUA, 2019. Disponível em: https://
www.youtube.com/watch?v=6sVDpDXIMSw&feature=youtu.be. Acesso em:
10 mai. 2019. No original: “Critical Zone Observatories (CZO’s) study Earth’s
outer skin – where water, atmosphere, ecosystems, soil and rock interact, thus
displaying the effects of the Anthropocene”. E “The Anthropocene prompts us to
face the dilapidated state of our world acknowledging the profundity of humani-
ty’s harmful impact across all of the Earth’s natural system.” Mais informações
encontram-se disponíveis em: <https://humanitiesfutures.org/media/the-educa-
tion-of-bruno-latour-from-the-critical-zone-to-the-anthropocene-unlisted/>.
121 e com os heterogêneos modos de existência humanos e não humanos no
Antropoceno:
2 No original: “Foregrounding the importance of soil and more generally the surfa-
ce of the Earth —what is now often called the Critical Zone (CZ) — remains very
difficult as long as the usual planetary view, familiar since the scientific revolu-
tion, is maintained. In this joint effort, we offer an alternative visualization which
allows to shift from a planetary vision of places located in the geographic grid, to a
representation of events located in what we call a Gaiagraphic view. We claim that
such a view because it gives pride of place to the CZ is much better suited to situa-
te the new actors of the Anthropocene”. Abstract da palestra performance Inside
por Bruno Latour, com cenografia e staging de Frédérique Ait-Touati, e imagens e
animação de Alexandra Arènes, Axele Grégoire e Sonia Levy, grupo de pesquisa
da SPEAP (França). Realizada em Berlim, em 2017 (parte do projeto Welcome to
Caveland!, de Philippe Quesne, 2016). Disponível em: <http://www.bruno-latour.
fr/node/755>. Acesso em: 15 nov. 2018.
3 Disponível em: <https://cargocollective.com/etherrestrategiclandscape/TERRA-
-FORMA, e em: https://editions-b42.com/produit/terra-forma/>. Acesso em: 9
mai. 2019.
4 Disponível em: <https://www.e-flux.com/announcements/275052/critical-zones-
-observatories-for-earthly-politics/>. Acesso em: 14 jul. 2019.
Figura 40 - The “Energetic Maelstrom” [O “Redemoinho Energético”] “Visualização axonométrica [...] [e
anamórfica], tornando visível a posição do sol em uma visão cartográfica, mas também seu papel em
uma perspectiva hidrológica e geoquímica dinâmica. [...] matéria e os elementos são ativados por uma
circulação cosmo-tectônica denominado aqui como um “redemoinho energético”. Fonte: Arènes, Latour,
Gaillardet, 2018, p. 14.
Figura 43 - “Transformation V Espace-Temps” [Transformação V Espaço-Tempos]. Fonte: Ait-Touati, Arènes, Grégoire, 2019, p. 142-143.
Esta nova exposição [Critical Zones. Observatories for Eartlhy 124
Politics] é sobre a Terra, mas está tentando entender a Terra
de uma nova perspectiva. Não é a Terra traçada, digamos, de
acordo com os ideais geográficos do século XVIII ou XIX, nem é
uma grelha geográfica ou um imaginário geográfico. Mesmo que
essas noções sejam muito úteis por muitas razões, a Terra agora
deve ser entendida como algo que reage à nossa ação. A Terra é
agora entendida como tendo uma espécie de agência. Esse novo
entendimento não será muito surpreendente para os japoneses
acostumados a terremotos. Mas agora estamos vivendo outro
terremoto, no qual a Terra reage à sociedade humana, na qual a
sociedade humana age como um terremoto que afeta a Terra. Isso
requer uma mudança na representação da superfície da Terra.
[…]
Enfim, o terrestrial é minha invenção, então precisamos de uma
definição. O terrestrial é na verdade um termo de ciência política
para descrever onde todos nós finalmente pousaremos no final
do modernismo. Assim, é um conceito para descrever a Terra,
diferindo do Globo. Existe um triângulo formado entre o Globo,
o Local e o Terrestrial. Bruno Latour, 2018. (LATOUR, 2018,
tradução minha, grifo meu). 5
5 No original: “This new exhibition is about the Earth, but it is trying to understand
the Earth from a new perspective. It is not the Earth drawn, let’s say, according
to 18th or 19th century geographical ideals nor is it a geographical grid or geogra-
phical imaginary. Even though these notions are very useful for many reasons,
the Earth is now to be understood as something that reacts to our action. The
Earth is now understood as having a sort of agency. This new understanding will
not be terribly surprising for Japanese people who are used to earthquakes. But
now we are living through another earthquake, one in which the Earth reacts to
human society, in which human society acts as an earthquake affecting the Earth.
This requires a change in the representation of the Earth’s surface. […] Anyway,
the terrestrial is my invention, so we need a definition. The terrestrial is actually
a political science term to describe where all of us will finally land at the end of
modernism. Thus, it is a concept to describe the Earth, differing from the Globe.
There is a triangle formed between the Globe, the Local, and the Terrestrial.”
Disponível em: <http://ga.geidai.ac.jp/en/indepth/bruno2018en/>. Acesso em: 14
mai. 2019.
125 do “humano” como um “permutador, um interruptor, um alterador de
forma e intercâmbio de ciclos”6 (LATOUR et al., 2018, p. 23, tradução
minha). Como provocou Latour na palestra-performance Inside, nessa
cosmologia, o Deus (ou deuses!) é processual, não sendo, portanto, um
deus cristão, transcendente, fixo – o qual se associaria à visão planetária
distante, exterior, na qual também é muito difícil identificar os fenômenos
influenciados pela ação da vida humana, isto é, pela ação do anthropos.
Nessa nova cosmologia e gaiagrafia, a Terra é compreendida como
um vórtice, uma hélice, ou como uma série de gira-giras, com ciclos geo-
químicos infinitamente complexos, emaranhados, dinâmicos, mais lentos
e mais rápidos, em círculos que se bifurcam de um para outro, em ambas
as direções. Os círculos e ciclos não são lidos topograficamente, mas cine-
ticamente, estando implicados o tempo, a transformação e a intensidade,
numa espécie de “redemoinho energético”. Como apontam os autores no
ensaio Giving Depth to the Surface (2017), “Todos nós vivemos neste rede-
moinho, em espiral entre esses três conjuntos de forças: a Terra profunda,
o sol, e as formas vivas” (LATOUR et al., 2018, p. 13, tradução minha)7, e
eles seguem:
(Robert Smithson)11
13 No original: “Sometimes the tools I bring from a lifetime in and on the edge of the arts
are pretty useless when confronting land use and abuse. During roughly twenty-five
years in the western United States, I’ve learned a new vocabulary, or perhaps forgotten
the old one. It’s a strech to squeeze modernism, modernity, post-modernity, and the
shifting mainstreams of the art world into the framework of my current lived experi-
ence, which is what I always work from”.
14 No original: “Gravel pits offer a casual archeology of the meeting places of nature
and culture, past and present, construction and destruction, indigenous peoples
and colonizers, art and life, creeping globalization and local survival”.
129 mesmo negue, a origem “rural” (e de expropriação humana e não humana)
das britas e de outros elementos da Terra utilizados. Como Lippard coloca,
15 No original: “The gravel pit, like other mining holes, is the reverse image of the
cityscape it creates – extraction in aid of erection. If the modern city is vertical (a
climb, leading to a privileged penthouse overview), landscape is predominantly
horizontal (a walk, through all waks of life). Like archeology, which is time read
backwards, gravel mines are metaphorically cities turned upside down, though
urban culture is unaware of its origins and rural birthplaces. Where the vertical
rules – [...] – the power of upward is added to outward mobility.”
16 Essa é uma discussão-disputa importantíssima, significativa no Brasil também.
Dentre muitas pesquisas e atuações, destaco brevemente aqui dois projetos
transdisciplinares nos quais atuei como Curadora: Contracondutas – uma ação
político-pedagógica, Escola da Cidade, São Paulo-Guarulhos, 2016-2017 (Cura-
doria com Ana Carolina Tonetti) e Campos de Invisibilidade, SESC Belenzinho,
São Paulo, 2018-2019 (Curadoria com Claudio Bueno). Nesses projetos, autores e
artistas refletem sobre estas questões no Brasil, América Latina, África, e outros,
que envolvem situações específicas em emaranhados e implicações globais.
aproveitado”. Comparações com a profanação de igrejas cristãs e 130
cemitérios judaicos aparentemente não têm efeito. (LIPPARD, 2014,
p. 50, tradução minha).17
17 No original: “The fundamental issue here is that we colonials are hard put to
understand the sanctity of an ‘unimproved’ piece of earth. Comparisons to the
desecration of Christian churches and Jewish cemeteries apparently cut no ice”.
18 No original: “We abuse the land because we regard it as a commodity belonging
to us. When we can see land as a community to which we belong we may begin to
use it with love and respect”.
19 Vide reportagens de Eliane Brum (El Pais) e publicações de Elizabeth Povinelli,
Isabelle Stengers, Donna Haraway, Anna Tsing, Eduardo Viveiros de Castro,
Deborah Danowski, Macarena Gómes-Barris, dentre outras.
131 dos anos 1960, entre o novo e o velho oeste norte-americano, as escultu-
ras gigantes “desenhadas ou cortadas da própria terra” (LIPPARD, 2014,
p. 81), são Spiral Jetty, de Robert Smithson, Sun Tunnels, de Nancy Holt,
Lightning Field, de Walter de Maria, Star Axis, de Charles Ross, Roden
Crater, de James Turrel, e Double Negative e City Complex, de Michael
Heizer. Ela aponta que todos são brancos, e excetuando uma artista, os
demais são homens – que seriam capazes de angariar milhares de dólares
para criarem esses trabalhos monumentais. A autora ressalta que a
O Spiral Jetty (1970) com as pedras (dos gravel pits, que Lippard comen-
ta), cristais e águas (dentre muitos outros seres viventes), engendram um
girar em espiral, como um enorme cais de um “espaço-tempo contínuo”
– em que passado, presente e futuro se contorcem – naquele lago de sal e
cristais em Utah, no noroeste norte-americano. Spiral Jetty que é também
uma inscrição na própria Terra, uma cosmografia da própria Terra, as-
sim como os earthworks aborígenes (do sudoeste norte-americano a que
Lippard nos remete, por exemplo), com suas práticas e invocações artís-
ticas e sagradas de tempos imemoriais e no tempo do agora. Spiral Jetty
e earthworks aborígenes, indígenas como invocações, cosmografias e es-
capes, em espiral, libertando de noções preconcebidas de arte e de vida.
Afinal, no Brasil (e em todas as Américas e alhures) “todo mundo é índio,
exceto quem não é”, como provoca o etnólogo brasileiro Eduardo Viveiros
de Castro (2006). Spiral Jetty e earthworks aborígenes convoca a todos
coletivamente, assim como a gaiagrafia e as cosmografias dos pontos ris-
cados e de outros modos de existência heterogêneos, a mudar e ampliar
os vocabulários, percepções e caminhares, ações e ritualísticas, diálogos
e conflitos, engendrando a Terra experienciada e celebrada como comuni-
dade de seres humanos e não humanos.
A Palestra-Performance Inside, de Bruno Latour, juntamente com
a Palestra-Livro Undermining, de Lucy Lippard, se colocam como Falas-
Palestras, intersectando, cada qual a seu modo, oralidade e visualidade,
escritas e cosmografias-imagens, performance-teatro e livro, uma voz
bewildered inhabitants. The land is not separate from the often harsh realities
of lives lived upon and around it. A land art in the New West could acknowledge
the rough edges as well as the romance. It could be integrated into a cultural
landscape, which is a forever changing production featuring vegetation, wildlife,
water, and human agency. A vernacular land art might include commemoration
that looks to the smaller scale, land-based notions of nature, remembering small
farms and common lands, the disappearing histories of places and ecosystems.
[…] “I have to admit that today my favorite art in the land is not contemporary but
aboriginal earthworks –rock art (petroglyphs and pictographs), earth mounds,
geomorphs, the ruins of ancient puddled adobe towns found by roadsides, on golf
courses, and in the most remote deserts, forests, and canyons. Where contempo-
rary land art demands all the attention, rock art quietly absorbs us into its place,
even when we understand very little about the messages we are getting. Although
individual images stand out, they are most evocative in relation to each other and
to the place and clues they offer about the cultures that created them. (Many of
these sites are still utilized ceremonially.) And of course it is easier to identify with
the people who were once relatively peaceful stewards of that particular landsca-
pe than with today’s property owner, who is likely to appear with a rifle and arrest
you for trespassing.”
Figura 44 - Robert Smithson, Spiral Jetty (1970), Salt Lake, Utah, EUA. Fonte: phaidon.com
Figura 45 – “Geometria elementar numa base rochosa, Novo México” [Elemental geometrics on
flat bedrock, New Mexico]. Fonte: Malotki, Dissanyake, 2018. p. 229.
Figura 46 – Tacita Dean, film still de JG, 2013. [esq.] e Joan Myers, Chino Pit [aka Santa Rita del Cobre],
NM, 2013 [dir.]. Fonte: Lippard, 2014. p.82-83.
coral nas intersecções entre saberes e práticas das artes visuais, geoquí- 136
mica, física, antropologia, filosofia, dentre outros, com a Pele da Terra.
Dimensões poéticas-políticas, riscados e vozes-sons-percepções que res-
soam também com a obra escavada nas entranhas da Terra do Teatro
Anatômico da Terra e a prática artística de Camila Sposati, na Ilha de
Itaparica e em Salvador, na 3a Bienal da Bahia. Dialogam aqui também
com a obra Chalk Circle, de Ian Wilson, em Salvador, e com os terreiros
circulares de chão de terra batida dos candomblés; com a encruzilhada
em espiral do cosmograma Kongo, “cantando e desenhando [um ponto]”
(THOMPSON, 2011, p. 113-114); com os círculos dos pontos riscados da
umbanda; dentre outros riscados circulares e espiralados.
Círculos de Giz
25 Instalação Circle on the Floor (Chalk Circle), 1968. Giz. Aprox. 72 polegadas/1.82
m de diâmetro. “I was interested in its abstract intangibility. The circle can
be drawn everywhere, at anytime, and still remain the same. I discovered that
thinking and talking about that circle had a greater abstraction than reproducing
that circle on the floor or the wall. The circle could be represented by using the
word ‘circle’. The circle could be brought to mind by the signifier. […] By concen-
trating on spoken language as an art form I have become more distinctly aware
that I as an artist am a part of the world.” Oscar van den Boogaard. Interview with
Ian Wilson. Newspaper 32, may-june 2002. Disponível em< http://janmot.com/
ian_wilson/text.php>. Acesso em: 26 set. 2014. Ver mais sobre Ian Wilson também
no website do Van Abben Museum (Holanda). Disponível em: <https://vanabbe-
museum.nl/en/programme/programme/ian-wilson-1/>. Acesso em: 26 set. 2014.
137 visível e invisível, e como ritual, seja nos trabalhos artísticos, nos exercí-
cios de teatro e performance, seja em outras múltiplas práticas culturais
e espirituais.
A 3a Bienal da Bahia26, É tudo Nordeste?, realizada em 2014, com
curadoria de Marcelo Rezende e cocuradoria de Ana Pato, Alessandra
Munoz, Ayrson Hieráclito e Fernando Oliva, montou uma rede de intera-
ções entre múltiplas histórias, seres e experiências constituídas em mais
de cinquenta lugares, em toda a cidade de Salvador e no Estado da Bahia.
A 3a Bienal da Bahia questionou e marcou as condições e diferenças das
perspectivas e de modos de vida outros, principalmente do Nordeste e do
Norte, em relação à região Sudeste do país – que se coloca como hege-
mônica economicamente (principalmente São Paulo e Rio de Janeiro) –,
tanto quanto questionou os conceitos de centro e periferia, e quais arqui-
vos e memórias são ativados e são apagados, e por quem. Instaurada no
território brasileiro com a presença mais marcante dos povos diaspóricos
da África Ocidental (por conta da colonização e escravização empreendi-
da pelos europeus), uma das potências e singularidades desta 3ª Bienal
da Bahia foi ter criado condições temporal-espaciais para o encontro de
formas plurais de saberes e realidades, através de práticas curatoriais e
artísticas processuais e situadas, sem estabelecer hierarquias ou reduzir o
desconhecido ao conhecido, como atuação e contradiscurso às crescentes
desigualdades sociopolíticas brasileiras e planetárias, e aos anseios cres-
centes por enclausuramento.27 Nesse sentido, a 3a Bienal da Bahia emerge
como um acontecimento potente e singular, uma gira-encruza de inflexão
histórica ainda a ser justamente mais (re)conhecida no tempo e espaço
ampliados (que nesta tese se enuncia minimamente).
Ian Wilson, em Chalk Circle (1968), está interessado na “intangi-
bilidade abstrata” do círculo, cuja forma pode ser ativada mental e ima-
ginariamente ao se falar a palavra ‘círculo’. Como situa Wilson, artista
importante da arte conceitual, “ao concentrar na linguagem falada como
uma forma de arte, eu tomei mais consciência de que eu como um artis-
ta sou parte do mundo” (tradução minha).28 Forma de arte que também
se instaura minimamente e temporariamente, materializada com o risco
Figura 48 - Teatro Anatômico da Terra, Camila Sposati, 2014, 3a Bienal da Bahia, MAS, Salvador. Fonte: Sposati, 2016, p.6.
Figura 49 – Ian Wilson, Chalk Circle, 1968. Galeria Jan Mot, Bruxelas.
Fonte: www.blogs.erg.be/art2/?p=1002
Buracos da Terra
Água da Oxum
(Guimarães Rosa)
36 Registro da aula de Gilles Deleuze, em Vicennes, sobre a obra Mil Platôs a respei-
to dos “Dois Regimes de Signos”. Disponível em: <https://territoriosdefilosofia.
wordpress.com/2014/04/29/dois-regimes-de-signos-gilles-deleuze/>. Acesso em:
11 jun. 2019.
37 Na Nação Livre Aruanda, a saudação é “Oraiêieô Oxum!
Oraiêieô!”, que significa: “Eu te agrado, te mimo, te bajulo, te dengo para merecer
o seu ouro, seu axé!”. (Ver Kartilha Nação Livre Aruanda, 2018.)
147 Òsun/Oxum38, sua autoridade ilimitada na vida e no pensamento Ioruba
(povo com aproximadamente 40 milhões de pessoas, um dos maiores
grupos ou nação atualmente em África), que não foi destruída, mesmo
com os deslocamentos transatlânticos por séculos, nos processos de co-
lonização europeia e de conversões cristã ou/e islâmica em África e nas
Américas. Abiodun ressalta o caráter complexo desse orixá Ioruba, de
caráter ìwà tútú (isto é, de caráter calmo e fresco, ou “cool” em inglês),
“maior [ou mais ampla] que a vida”, sendo continuamente reconstruído
e diferindo em necessidades e caminhos, e que apresenta algumas ca-
racterísticas comuns:
Importante ressaltar aqui essa concepção chave da arte Ioruba como oríkì
verbal e visual, proposta e elaborada meticulosamente por Abiodun em
Yoruba Art and Language. O autor concebe a arte Iorubá como oríkì, isto
é, como uma teoria da arte Iorubá. Oríkì é conhecido como arte verbal
(como provérbios, nomes, epítetos, poemas) central para o modo de vida
Ioruba, abrangendo uma variedade de gêneros literários e performativos.
Como ressalta Olúfémi Táíwò, em sua resenha sobre o livro de Abiodun
para o Nka: Journal of Contemporary Art, “oríkì está associado a delinear
os limites, a própria essência de uma coisa, uma pessoa, uma prática e/
ou um processo, bem como das muitas concatenações de pessoas, coisas,
práticas e processos” (TÁÍWÒ, 2017, p. 108, tradução minha). A tese de
Abiodun é de que a arte é oríkì verbal e visual. Ao formular oríkì também
40 “Òsun is, and has, however, always been accessible to her devotees through oríkì
that may be in the form of sculpture, painting, architecture, poetic Ifá verses, reci-
tation songs, dance, movements, ritual performances, fragrances, natural objects,
and/or her favorite food items. Not infrequently, priests and priestesses of Òsun
simply invoke her àse ritually with water, hand fan, hair comb, color coded beads,
and the red tail feather of the African tropical parrot.
From Òsogbo in Òsum State to Ikóro in Èkitì, from Ìbàdàn in Òyó to Ìjùmú in Kwara
State of Nigeria, and throughout the Yorubá diaspora in the Caribbean, Latin
America, and North America, Yorùbá and their descendants continue to venerate
this most powerful female òrisá. Her verbal and visual oríkì are as diverse as the
people and the geographical locations where she is worshipped; so also is her
image, which changes as we travel from Òsogbo to many Yoruba towns in Nigeria
where she is believed to have turned into the Òsun River, and to Brazil and Cuba
in the New World where she may be broadly associated with the huge and expan-
sive bodies of water”.
149 como arte visual, o autor traz junto um outro conceito – o de àsà, entendido
aqui como um tempo limite, com ingredientes de mudança, tradição e con-
tinuidade a serem escutados cuidadosamente e selecionados, próximo ao
que é entendido como ‘estilo’ na arte ocidental: “Àsà, aqui, é um princípio
de individuação entre vários modos conflitantes de fazer arte e avaliá-la”
(TÁÍWÒ, 2017, p.109, tradução minha). Essas conceituações exigem uma
familiaridade com o modo de vida Ioruba, suas complexidades, sua língua
e linguagens, como ressalta Abiodun na introdução de seu livro (e refor-
çado por Táíwò como questão chave para o conhecimento do africano nas
Artes Africanas, como o próprio subtítulo do livro aponta também), con-
vidando leitores e interessados a ampliarem sua disponibilidade de escuta
e investigação, considerando particularmente aqui que esses oríkì visuais
raramente são separáveis de seu contexto ou de sua função nesses contex-
tos, assim como no caso do òrìsà Òsun, como Abiodun compartilha.
Um dos exemplos que o autor traz de Òsun, é o do òrìsà como uma
“artista de oríkì visual”, por ser “a mais destacada especialista em tran-
çados de cabelos na mitologia Ioruba” (ABIODUN, 2014, p. 90). O autor
ressalta que o trançado de cabelo tem uma função de prazer estético do
rosto e da cabeça humanos no modo de vida Ioruba – enfoque de gran-
de interesse estético na arte Ioruba –, além do significado religioso im-
portante também em sua tradição: a trançadora de cabelo é uma artis-
ta de oríkì visual que honra Orí, o orixá da cabeça para os Iorubas, que
é o “Orí interno espiritual” (Ori-inú), cujo trabalho de trançado adorna
a cabeça externa, física (Orí-òde). Como ele situa, com o poder de Òsun
como trançadora de cabelos, “vemos como isso se torna um oríkì visual
para sua influência e controle indireto de Orí, o òrisà da cabeça espiritual
interna ou distribuição pré-natal de uma pessoa, coisa ou divindade por
extensão, o governo divino Ioruba que é modelado a partir do conceito de
Orí.” (ABIODUN, 2014. p.118, tradução minha). 41 Por isso, Abiodun argu-
menta que, como trançadora de cabelos que honra e adorna a cabeça–Orí,
com os trançados como oríkì visual, “Òsun tem o poder de influenciar os
destinos de homens, mulheres, e òrìsà[s], somando ao seu papel como o
òrìsà responsável pelo sustento da vida na terra” (ABIODUN, 2014. p.91,
tradução minha). 42
No final deste ensaio, o autor reforça e argumenta que Òsun é o òrìsà
mais poderoso do panteão ioruba. Entende-se que esse seu poder pode se
manifestar de diversos modos: como trançadora de cabelos do òrìsà Orì;
pelo seu caráter “calmo” que compartilha com o òrìsà Olódumarê (força
primordial do Panteão); pelo seu àse43 (poder ou força de vida) que fez
41 “we see how that becomes a visual oríkì for her influence on, and indirect control
of, Orí, the òrisà of the inner spiritual head or prenatal allotment of a person,
thing, or deity by extension, the Yoruba divine rulership that is modeled after the
concept of Orí”.
42 “Òsun has the power to influence the destinies of men, women, and the òrisà, in
addition to her role as the òrisà responsible for the sustenance of life on earth”.
43 “The most important element in the Yoruba concept of divine leadership is àse,
com que sucedesse a missão dos mais dezesseis Odù masculinos (divin- 150
dades), ao virem todos para a Terra no momento da criação, em uma das
histórias-versos importantes do Ifá; e ao dar à luz ao òrìsà Òse-Túrá (tam-
bém conhecido como Èsú), consolidando o seu poder basal. No panteão,
Èsú (Exu, no Brasil) se tornou o mais importante òrìsà, ao manter o equi-
líbrio precário entre as forças malevolentes e benevolentes do universo, e
por manter a relação entre sua mãe Òsun e os outros òrìsàs masculinos.
Abiodum coloca que o àse (axé) de Òsun é complexo, que ela é um òrìsà
resiliente e indispensável. Apesar de reconhecer uma sociedade ioruba
patriarcal atualmente, a força do poder (àse) feminino é indispensável e
vital, como ressalta na passagem abaixo:
Sabendo como ela sabia, que ela era a fonte de todas as coisas
boas como declaradas no corpus literário de Ifá, Òsun nunca
precisou disputar posição entre os dezesseis Odù masculinos ou
até mesmo entre seus companheiros òrìsà. Comparada com todos
os outros òrìsà no panteão Ioruba, Òsun é reconhecida como um
conceito estético-religioso mais inclusivo, cujos cânones podem ser
imediatamente relevantes para a solução de problemas humanos,
independentemente de sua origem, natureza ou severidade.
Sua presença e a de “nossas mães” (que incluem todas as outras
mulheres òrìsà) são reconhecidas em todos os grandes eventos,
festivais e celebrações de novas temporadas e do Ano Novo.
Praticamente todas as saudações nessas ocasiões terminam com
uma oração Odún á yabo, que é um desejo de um “ano, estação ou
celebração feminino, produtivo, harmonioso e bem-sucedido”. Essa
invocação verbal não apenas reconhece os atributos espirituais e a
força vital (àse) da feminilidade que é condensada em Òsun, mas é
também uma aceitação prática dos poderes superiores de “nossas
mães” em ajudar a comunidade a lidar com todos os desafios de
uma nova temporada, ano ou milênio. (ABIODUN, 2014. p.119,
tradução minha). 44
the essence of which is the energy or life force needed to control the physical
world as well as to activate, direct, and restructure social and political processes”.
Leia-se: “O elemento mais importante no conceito Ioruba de liderança divina
é àse [axé], cuja essência é a energia ou força vital necessária para controlar o
mundo físico, bem como para ativar, dirigir e reestruturar processos sociais e
políticos”. (ABIODUN, 2014, p. 107, tradução minha).
44 “Knowing as she [Òsun] did, that she was the source of all good things as stated
in the Ifá literary corpus, Òsun never needed to vie for position among the sixteen
male Odù or even her fellow òrìsà. Compared with all other òrìsà in the Yoruba
pantheon, Òsun is recognized as a higher, more inclusive religio-aesthetic concept
whose canons can be immediately relevant to the solution of human problems,
regardless of their origin, nature, or severity. Her presence and that of “our mo-
thers” (which include all other female òrìsà) are acknowledged at all major events,
festivals, and celebrations of new seasons and the New Year. Virtually all greetin-
gs on these occasions end with a prayer Odún á yabo, which is a wish for a “femini-
ne, productive, harmonious, and successful year, season, or celebration.” This
151
verbal invocation not only acknowledges the spiritual attributes and vital force
(àse) of womanhood that is epitomized in Òsun, but is also a practical acceptance
of the superior powers of “our mothers” in helping the community to cope with all
the challenges of a new season, year, or millennium”.
das grandes águas, mãe dos deuses, dos homens e dos peixes” (PRANDI, 152
2001, p. 22). No Brasil, Oxum é orixá das águas dos rios doces que se en-
contram e desaguam nos mares e oceanos das grandes águas de Iemanjá,
“aquela que rege o equilíbrio emocional e a loucura, talvez o orixá mais
conhecido no Brasil. É uma das mães primordiais e está presente em mui-
tos mitos que falam da criação do mundo” (PRANDI, 2001, p. 22). Oxum,
junto dos orixás femininos Yansã/Oiá e Obá, é também uma das esposas
de Xangô, orixá da justiça – “praticamente o grande patrono das religiões
dos orixás no Brasil” (PRANDI, 2001, p. 22).
O livro Mitologia dos Orixás (2001) reúne 301 mitos de orixás de
religiões ou modos de vida de orixás afro-americanos e africanos, num
trabalho extenso e longevo, com múltiplas fontes e uma miríade de cola-
boradores e contribuições, concebido e organizado por Prandi. Segundo
um mito, 301 histórias foram reunidas pelo orixá Exu, cuja enumeração
significa um número incontável de histórias para os antigos iorubas, e
no qual todo esse saber reunido de tantas histórias de orixás e seres hu-
manos foi dado ao orixá Orunmilá (Ifá), que então transmitiu aos baba-
laôs, seus sacerdotes do oráculo de Ifá. Conforme o autor argumenta,
“os valores e ritos dessas religiões repousam num conhecimento mítico”
(PRANDI, 2001, p. 26). Portanto, Prandi ressalta esse critério para esta
seleção, pois “os mitos justificam papéis e atributos dos orixás, explicam
a ocorrência de fatos do dia-a-dia e legitimam as práticas rituais, des-
de as fórmulas iniciáticas, oraculares e sacrificais até a coreografia das
danças sagradas, definindo cores, objetos etc.” (PRANDI, 2001, p. 32).
Da composição dos mitos desta coleção, o último #301, definido como
Epílogo, chamado “E foi inventado o candomblé...”, é um mito muito cor-
rente em terreiros ketu do Rio de Janeiro e de São Paulo e terreiros nagô
do Recife, conforme o autor (PRANDI, 2001, p. 561). Este mito ressalta
um papel importante de Oxum na reconexão entre os orixás e os huma-
nos, entre o Céu e a Terra, que havia sido rompida. Com o consentimento
de Olodumare, Oxum recebe então de Olorum o encargo de “preparar
os mortais para receberem em seus corpos os orixás”, em que “Oxum
fez oferendas a Exu para propiciar sua delicada missão. De seu sucesso
dependia a alegria dos seus irmãos e amigos orixás” (PRANDI, 2001, p.
527). Oxum vem para a Terra e reúne as mulheres, e orna-as e enfeita-as
para receberem os deuses. E o mito finaliza:
Oxum da Pele
2.2 ASSENTAMENTO
45 Esta autora escreveu vários textos a partir do Copan/EXO. Ver também website
disponível em: <ligianobre.org>.
46 “Projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer (1951-66), o maior edifício residencial
da América Latina opera como um dispositivo do habitar, trabalhar e conviver
157 cinquenta e sessenta, período marcado pelo desenvolvimentismo, indus-
trialização e modernização do capitalismo periférico brasileiro, pela ex-
plosão demográfica e expansão urbana inédita no país – de uma “cida-
de moderna” da densidade construtiva e populacional. O Edifício Copan
“contorce” com suas curvas alguns dos preceitos e entropias paulista-
nos47, e numa certa continuidade dessa multiplicidade espaço-temporal,
vertical, de milhares de pessoas (moradores, trabalhadores, transeuntes
e não-humanas) e suas histórias, desloca-se (e amplia-se) para essa outra
multiplicidade espaço-temporal, horizontal e em espiral, de dezenas, tal-
vez centenas de pessoas (iaôs-iniciados, visitantes, vizinhos, aliados, en-
tidades, orixás, humanas e não-humanas), no chão de terra que “rever-
bera a vida”, da Nação Livre Aruanda. A cidade de São Paulo e a Região
Metropolitana (com 39 municípios, incluindo Cotia) são marcadas histo-
ricamente por segregações, assimetrias e desigualdades em seus espaços
e territórios, com padrões muito distintos de acesso aos serviços, infra-
estruturas e recursos. Ao longo de percursos, caminhos e emaranhados
pelo Copan, no terreiro e em muitos outros espaços heterogêneos que se
atravessa nas trajetórias cotidianas e de vida, transita-se “entre códigos
diferentes e fronteiras diversas, com circuitos, conexões e bloqueios que
(trans/in)formam [...] formas de vida” (NOBRE, 2014), em que se afeta e se
é afetado por esses artefatos e espaços, em relações de força que disputam
cada corpo e subjetividade.
Percorrer com atenção esse curto trajeto partindo da Crosta
Terrestre, do Edifício Copan, na República, em São Paulo, até a Nação
Livre Aruanda, no Jardim das Cerejeiras, em Cotia, implica “trajetórias
urbanas e sociais que atravessam territórios e temporalidades distintas
da metrópole, revelando algumas de suas múltiplas faces e dinâmicas”
(NOBRE, 2013). Aqui, aciono novamente as trajetórias urbanas “para
operar um ‘método de pensar’ e experimentar a cidade, levando mais em
48 Artistas e autores incluem Sylvaine Bulle, Kazuo Nakano, Luciana Itikawa, Ma-
riana Fix, George Dupin, Paola Salerno, Pablo Leon de la Barra, Alejandra Riera,
dentre outros, no âmbito do projeto São Paulo S.A. – práticas estéticas, sociais e
políticas em debate (2002-07), dirigido por Catherine David, realizado pela exo,
e iniciado pelo coletivo Resistência/Criação – Peter Pal Pelbart, Suely Rolnik,
Denise Bernuzzi Sant’Anna, e diversos interlocutores.
49 Conteúdo originalmente disponível em: <arquivoexo.org> (2013-2018). Ver tam-
bém o livro Nas tramas da cidade (2006) da socióloga Vera da Silva Telles.
50 República, Consolação, Paulista, Faria Lima, Rebouças, Raposo Tavares, nomes
de lugares que nos trazem tantos emaranhamentos, ainda muito atuais, do
engenheiro abolicionista a um bandeirante, passando por um brigadeiro militar,
dentre outros.
159 Ao longo do trecho da Rodovia até a entrada do Rodoanel – outra
grande obra de infraestrutura controversa –, uma paisagem lindeira de
bairros residenciais de classe média, galpões industriais e comerciais foi
bastante reconfigurada nas últimas duas décadas. Shopping centers no-
vos, grandes galpões de lojas de material de construção civil, de equipa-
mentos e artefatos esportivos, hipermercados, condomínios residenciais
murados de dez-doze torres altas e médias, foram construídos nesse perí-
odo. No trecho do Rodoanel Mário Covas, parte da Mata Atlântica ainda
está parcialmente preservada, e avista-se algumas construções em ruína.
Fica evidente, então, a presença massiva de moradias populares de baixa
renda, favelas e assentamentos precários, segregados e informais, ocupa-
dos por moradias “autoconstruídas”, concentradas ali também por conta
da própria obra do Rodoanel, pela demanda de presença de mão de obra.
Esse “padrão periférico de urbanização”, por falta de “chão” para essas
populações, revela a contraface do desenvolvimentismo vigente, modelo
inaugurado nos anos 1950/60 e que segue como lógica extrativista há dé-
cadas, ou melhor, há séculos. Embora tenham procedimentos bastante
distintos de acesso à terra, as ocupações de terra e favelas resultam em
espacialidades muitas vezes semelhantes às dos loteamentos clandestinos.
“Nesses assentamentos cada vez mais densos, as lajes substituem os an-
tigos quintais eliminados com o adensamento dos assentamentos provo-
cados pela construção de puxadinhos ou das casas de fundo”. (NOBRE;
NAKANO, 2008, p. 52). As lajes como “índices do depois”, como potência
de sociabilidade também.
Chega-se a uma das entradas do município de Embu das Artes para
acessar a Estrada do Caputera. Esse pequeno trecho passou por muta-
ções radicais recentemente – foram instalados um outlet de roupas, su-
permercado, unidades do McDonald’s e do Habib’s, um centro comer-
cial com farmácias e lojas de pets, uma padaria-pizzaria gourmet, a nova
Rodoviária municipal, dentre outros comércios. O trajeto ao longo da
Estrada do Caputera, até chegar ao Jardim das Cerejeiras, onde fica a
Nação Livre Aruanda, condensa vários sinais das mudanças urbanas de
tensões e disputas em curso também. Do centro de treinamento de joga-
dores de futebol, a motel, castelo para festas, à Cidade das Abelhas; da es-
cola municipal, mercado, igrejas pentecostais, a terreiros de candomblé;
de comércios de pequenos agricultores-produtores, vendas locais, barra-
cas, a algumas conurbações urbanas mais adensadas; além de manacás e
paineiras belíssimas apontando o caminho, percebe-se no percurso por
estradas antes totalmente de terra, e hoje majoritariamente asfaltadas, o
aumento expressivo de construções irregulares – dos expulsos da cidade
–, principalmente nos últimos quatro ou cinco anos de grave crise política
e econômica no país, que também chegou ao loteamento e vizinhança do
território do Ilê, situado ali desde 2005-6.
O terreno da Nação Livre Aruanda foi adquirido pelo babalorixá
Kabila Aruanda de uma antiga proprietária, Gertrudes Maria. Alguns
terrenos no entorno foram comprados por “contratos de gaveta”, outros
foram ocupados de modo irregular. São dinâmicas conturbadas, contro- 160
versas51. “Na tangência entre a posse e a propriedade, ocorre a violência
dos conflitos de terra nesses pontos extremos” da metrópole (NOBRE;
NAKANO, 2008, p. 50), e o Jardim das Cerejeiras também não escapa
das situações de disputa de uso da terra e negociações de loteamento regu-
lar e irregular, ocupações clandestinas antigas e muito recentes. Próximo
ao terreiro avista-se montanhas de Mata Atlântica preservada, que agora,
em meados de 2019, está parcialmente desmatada. Talvez seja parte de um
modus operandi que arrisquei chamar de azuleijabilizante – uma tentativa
de flagrar, ou cosmografar, esse anseio incessante (tanto vertical quanto
horizontal) de “manter-se impermeável a mundos diferentes, o lacre entre
os mundos [...] e o impedimento da permeabilidade e fertilidade da terra e
de rituais e narrativas significativas” (NOBRE, 2015, verbete).52
Nas proximidades do terreiro Nação Livre Aruanda, no loteamento
Jardim das Cerejeiras, a velocidade do carro diminui, a estrada é de terra,
bem irregular, e pede cuidado. Nesse caminho até o terreiro, a mata ainda
está parcialmente presente. A atmosfera se transforma. Passam algumas
crianças e adultos, cachorros e borboletas, às vezes ciclistas, e poucos car-
ros. Vê-se, então, as casas mais antigas, várias construções bem recentes e
irregulares, até se começar a encontrar tecidos e roupas coloridas pendu-
radas em cercados, 53 que enunciam a presença da Nação Livre Aruanda,
51 O processo de disputa atual para regularizar o loteamento tem sido árduo, o que
inclui tentar regularizar ou retirar as atuais e evitar novas ocupações irregula-
res. Processo encapado, nos últimos dois anos, pela administradora da principal
família que loteou essa antiga fazenda.
52 Este trecho corresponde à parte final de verbete elaborado para a Revista #56:
Brasil Distópico: “Ato e efeito de revestir e impermeabilizar com revestimentos
cerâmicos os espaços e os modos de vida, tornando-os ‘limpos e brilhantes’, durá-
veis, assépticos, homogêneos, uniformes e impermeáveis. Em seu livro Casa-Gran-
de & Senzala, Gilberto Freire ressaltou a conexão existente com o uso do azulejo
por parte do colonizador português no Brasil não só pelo gosto, mas também pela
limpeza, claridade, e um senso de higiene tropical. Anseio que perdura no país,
atualmente o segundo maior produtor e consumidor mundial de revestimentos
cerâmicos, atrás somente da China, acompanhando o boom do mercado inter-
no da construção civil na última década. Entre 2006 e 2012 foram consumidos
aproximadamente 4,5 milhões m2 de porcelanatos, azulejos, lajotas etc. (fonte:
Anfacer e BNDES), com muita área ainda a azulejar com mais de 8,5 milhões km2
(!). Em variados padrões, cores e tamanhos, e que imitam pedras, mármores ou
madeiras, no Brazil Distópico impermeabiliza-se vidas e existências e inteligên-
cias e sensibilidades e pisos e paredes e banheiros e cozinhas e salas e quartos e
corredores e varandas e fachadas e calçadas e quintais de casas e lojas e institui-
ções e indústrias e hospitais e escolas e escritórios e supermercados e aeroportos
e shopping centers e restaurantes e templos religiosos e cidades e florestas. Uma
grelha contínua de azulejos-porcelanatos repete ad infinitum o espaço abstrato do
Capital, reduzido a área e preço/m2 – valor do mercado imobiliário (e financeiro)
que formata não somente o Brasil, mas praticamente todo o planeta. [...]”.
53 “Vista sua Existência”: são vestimentas doadas, por pessoas as mais diversas, ao
Ilê e seguem povoando os cercados do sítio do terreiro e dos terrenos dos iaôs na
vizinhança imediata, compondo como um campo de forças de temporalidades
múltiplas, numa dimensão estética e política que pulsa e enuncia presenças, histó-
rias, convivências e disputas.
161 em terrenos de parte da comunidade que vive ao redor do terreiro e no
terreiro, formando como um campo magnético e imagético – de mistério,
força e proteção – desse território chão-terra sagrado. Chega-se. Iaôs ou
visitantes geralmente estacionam na área em frente ao Ilê, e descem cami-
nhando pelo terreno até onde acontecem as giras (rituais).
O portão vermelho, duplo e de ferro, de acesso ao Ilê, é como um
portal. Portão com duas inscrições, em estêncil preto, do ponto riscado-
-cosmograma (triangular-espiralado) da Nação Livre Aruanda. Próximos
ao portão, na área externa, encontram-se dois fundamentos assentados:
de exus-guardiões e do orixá Xangô regente do terreiro. O terreno em
declive, de aproximadamente dez mil metros quadrados (sendo metade
área de preservação), tem uma grandiosa árvore de oliveira logo à direi-
ta, e a Casa de Oxalá – orixá da individualidade – próxima a ela. A iaô
Mikangaya costuma chegar no meio da manhã, quando muitas vezes a
gira já começou, e é, para ela, uma alegria imensurável escutar, já próxima
ao Portão-Portal, o som dos atabaques (tambores) e as vozes dos pontos
cantados, e agradecer e celebrar a energia e o encontro potentes daquela
gira-ritual. Os iaôs descem o caminho, também para carros, seguindo as
faixas de pedregulhos, lindeiras a um muro à esquerda, com árvores e
arvoredos, roupas e bandeirolas, e à direita está o jardim-mata e as Casas
dos Orixás de Aruanda em disposições diversas. Mais abaixo, é Yemanjá
quem recebe, acolhe e abraça, de sua Casa com um pequeno lago – lem-
brando que Oxalá e Yemanjá compõem a tríade de orixás regentes do Ilê,
juntamente com Xangô.
Passa-se em seguida pela casa do Exu Seu Sete Portas de Aruanda,
com sua grande e poderosa rola vermelha, a Casa dos erês, perpassando
flores e vestimentas de orixás penduradas em árvores, e também bandei-
rolas, e chega-se ao espaço onde acontecem as giras: primeiro ao Quartão
(onde os iaôs se trocam e são mantidas as indumentárias sagradas dos
guias e orixás), contíguo ao Roncó (casa dos orixás, onde estão também os
assentamentos dos iaôs), com o daidó (banheiro) na divisa-encontro entre
os dois espaços, como uma única construção de aproximadamente 4 me-
tros de largura e 16 de comprimento, com um telhado de duas águas como
cobertura. São todas construções, adições e subtrações feitas por Kabila
Aruanda, por alguns dos iaôs artistas e arquitetos, além do pedreiro e
mestre de obra, amigo e vizinho, às vezes em esquemas de mutirão, ou-
tras vezes em serviços específicos. As construções contínuas no terreiro
são compostas em grande parte por materiais doados. Na parede externa
do Quartão, de frente para o terreiro de terra batida, onde acontecem as
rodas das giras externas, estão pendurados “objetos os mais diversos, co-
loridos, de múltiplos tempos, espaços e histórias [que] são ressignificados
como ex-votos” (NOBRE; ARUANDA, 2015, p. 27-28); são objetos de iaôs
e visitantes que passam por Aruanda, expostos à contínua transformação
do tempo.54 Também emanam a multiplicidade pulsante deste território,
Figura 59 – Terreiro e Roncó, Nação Livre Aruanda, 2010. Fonte: arquivo Aruanda.
não são mais usadas nas giras. Com suas presenças pulsantes, seguem também
penduradas no alto das árvores, juntamente com outros objetos, em composições,
decomposições e recomposições com o tempo – como yansã/oyá e olorum (ao
relacionar às divindades de orixás de Aruanda, de heranças africanas de yoru-
balandia e afro-diaspóricas) e/ou como kronos, kairós e gaia (se relacionar às
divindades gregas).
55 Em Aruanda, saúda-se os orixás e guias com o paô: gesto de bater palmas com as mãos
em concha.
169 No período da manhã, as giras são abertas com oferendas aos guias
Exus protetores do Ilê, em que Exus Lebara e Bombogira chegam para
celebrar, dançar, cantar, e também “atender” e conversar com quem qui-
ser e puder, como práticas mútuas de liberdade e troca. É nesse início que,
com frequência, o babalorixá convida duas pessoas a se sentarem em ban-
cos sagrados baixos, muitas vezes um homem e uma mulher, como “re-
presentantes” compondo com os Exus Lebara e Bombogira e iaôs do Ilê,
nesse ritual de limpeza e firmeza dos Exus, com os pontos riscados e can-
tados, plantas, água, pipoca, farinha, e outros elementos necessários no
mistério daquele tempo. Outras feituras podem acontecer nessa dinâmica
matutina, sempre muito ágil e imprevisível. Terminam saudando os Exus
e os Orixás regentes com paôs de sete e de três palmas. Nesse chão sa-
grado, em dinâmicas ágeis, intensas, em ritmos variados que demandam
a atenção e presença inteira de cada indivíduo, corpos pisam, deslizam,
repousam, se lançam, saltam, se deslocam. Pés descalços (ou com chine-
los), mãos, corpos inteiros humanos se dispõem, afetam e são afetados por
corpos outros de “seres diversos”.
Paralelamente, um ou dois iaôs preparam o almoço coletivo que é
servido na Senzageum (cozinha) e todos comem e bebem em duas gran-
des mesas na TendAlegria – momento de descontração, conversas, risa-
das, e um ritual também.... Ao final, na hora do café, tem sempre uma fala
do babalorixa, abordando questões as mais diversas do terreiro, políticas,
afetivas, reflexões-ações em curso naquele momento. Às vezes, alguns
iaôs se manifestam pontualmente. Em seguida, é momento de recolher as
comidas, lavar e secar todos os utensílios utilizados no almoço e no ritu-
al da manhã, atividades realizadas coletivamente, e é também tempo de
descansar, relaxar, deitar no Roncó e noutros lugares, caminhar na mata,
o que for do desejo de cada um. Tempo que segue até que o babalorixá
convoca todos, tocando um sino, para o ritual da unção, no início da tarde.
A unção se dá no terreiro aberto, junto à porta ou dentro do Roncó, a
depender da situação e do clima (se faz frio, calor, chuva, sol etc.). Todos os
presentes, dispostos em roda, são ungidos. É o momento de conexão indi-
vidual, um a um, entre o babalorixá e iaô, e seus Guias e Orixás. Após ser
ungida, a pessoa saúda o seu sagrado no Roncó (onde só se entra descalço,
e onde não entra plástico), deitada, bate a cabeça no chão, no Ibá (tapete-
-tecido sagrado), em direção ao Ibeji-assentamento dos orixás, com varia-
ções de movimentos de corpo conforme o Orixá feminino ou masculino.
Tocar os atabaques e cantar os pontos (com um repertório continuamente
ampliado de pontos cantados do próprio Ilê, e que também acolhe outros
mundos-cantos), são escolhas abertas a quem quiser e se dispor a fazer,
homens e mulheres, iaôs e visitantes. São saudados também com paôs to-
dos os Orixás e grandes almas do Terreiro, com todos em pé, direcionados
ao Ibej (altar) dos Orixás no Roncó. No ato da saudação ao Orixá regente
de cada iaô, este toca três dedos de uma mão no chão, levando-os em se-
guida à cabeça, como gesto de reverência e confirmação dessa conexão
Odi-Ori-Orum (terra-cabeça-céu).
Atividades muito diversas acontecem às tardes, com as presenças 170
de diferentes Guias-Entidades e Orixás, em corpos que “batucam-can-
tam-dançam”56 num continuum, em vivências de experiências múltiplas
de “materialização do sagrado”. No final da tarde, chega o Exu Seu Sete
Portas de Aruanda, incorporado também no babalorixá, para finalizar a
gira, em Assembleia, com conversas, muitas provocações, e o exercício de
cada iaô se expor e de fazer um pedido ao Exu – exercício de saber o que se
quer, saber elaborar os desejos e escolhas, para que ele também possa tra-
balhar. E finaliza-se a gira com os iaôs que puderem varrendo, limpando,
arrumando novamente o Ilê. A maioria retorna, então, no final da tarde ou
início da noite, no sistema de carona, para os diferentes bairros da cidade
de São Paulo.
56 Ver FU-KIAU, Kimbwandende Kia Bunseki. Buluwa meso, master’s voice of Africa
e “Batucar-Cantar-Dançar: desenho das performances africanas no Brasil”, por
Zeca Ligério, 2011.
57 Percebo uma grande diferença nas práticas de terreiros de candomblé, como esse
de ketu, em Salvador, descrito pela socióloga Miriam Rabelo (2014, p. 108): “O
tempo que leva para que a iaô tenha acesso direto aos procedimentos rituais, que
na condição de novata pode, quando muito, ver de longe, é preenchido por outra
forma de aprendizado. Trata-se do domínio de habilidades práticas requeridas
no terreiro, algumas apenas marginalmente relacionadas à lida com orixás e
caboclos: limpar o barracão, lavar, engomar e passar a roupa das festas, depenar
171 construindo suas casas, somando, em 2015, 15 adultos, além de crianças
e adolescentes, residindo em nove casas entre a Aruanda e o entorno ime-
diato. Com atuações diversas e múltiplas – como pedreiro, costureira,
esteticista, cineasta, ator, preparador e diretor de teatro, ambientalista,
terapeuta, artista, figurinista, arquiteto, produtor, museóloga, músi-
co, diretor financeiro, etc. –, os residentes conviviam e construíam um
“modo de vida Aruanda”, expandindo-se por todos os iaôs. Essa dinâ-
mica mudou no último ano, em que quase metade dos iaôs dessa comu-
nidade direta (sendo a maioria os mais longevos do Ilê) se desligaram do
terreiro e saíram do entorno, e outros seguem como iaôs mas retornaram
para a cidade de São Paulo, em processos e negociações muitas vezes ten-
sas, parte dessa transformação contínua das dinâmicas de convivência
do Ilê e seu entorno.
Como foi apresentado no capítulo um, a Nação Livre Aruanda é um
território de encontro de liberdades, de experimentação e de viver expe-
riências, de culto aos Orixás e Guias, liderados pelo babalorixá Kabila
Aruanda e Mentoria, que tem suas tradições, filosofia, fundamentos e as-
sentamentos neste chão-terra sagrado. Entrelaçamentos são feitos, des-
feitos e refeitos continuamente, ao longo da trajetória do babalorixá e de
seus Orixás e Guias (que são a Mentoria), com as trajetórias vivenciadas
e compartilhadas por (e com) cada iaô, seus Guias e Orixás, além das de
visitantes e vizinhanças, se fazem e se transformam continuamente, com-
pondo o terreiro-chão material-espiritual (Odi e Orum), em heterogêneos
fluxos, graduações, agenciamentos e ritmos.58
Se no começo do assentamento da Aruanda ali, naquele espaço, a
terra se encontrava seca e degradada, quase quinze anos depois, o ter-
reno está repleto de árvores, flores, ervas, muitas delas plantadas para
os exus guias e orixás dos e pelos diversos iaôs nos rituais-kamarinhas,
assim como foram instaurados os Fundamentos e Assentamentos do Ilê.
2.3
DEBRUÇARMO-NOS
No Ilê, cada ano é regido por um ou mais orixás específicos, situando ques-
tões e desafios para a comunidade. E a cada ano, cada iaô também é regido
por um orixá do seu panteão, com desafios singulares. Em 2018, o terreiro
foi regido por Yemanjá, Oxalá e Eu-Orixá. Nesse mesmo ano, em julho,
fez-se essa celebração dos 14 Dekás – um ritual de confirmação do orixá de
aterramento, que é quem rege o mistério do caminhar dessa iaô. Nesse caso,
Xangô é o orixá de aterramento da iaô Mikangaya (e também seu regente
nesse mesmo ano), que firma seus 14 Dekás em Xangô em Aruanda. Não
outro. Esse Xangô, da cor da brasa, vermelho flamejante. Fogo. Fogueira.
Pedra. Pedreira. Xangô com sua mitologia e “relações entrelaçadas”. O
Exu Orixá Seu Sete Portas lhe conta – relembrando que “quando ele fala
de tudo isso, é sempre o indivíduo com ele mesmo. O que ele está dizendo,
está dizendo do teu [de cada um] universo” – a mitologia desse Xangô:
3.1 GESTOS DA
ESCUTA1
(Simas e Rufino)
Caminhando
(David Lapoujade)
5 Breve resenha do livro de Suely Rolnik por Josy Panão, publicada no website da
editora n-1. Disponível em: <https://n-1publications.org/esferas-da-insurreicao>.
Acesso em: 25 jul. 2019.
6 “Seria este o poema de gestos escrito entre as linhas desta breve narrativa remi-
niscente. Nela acompanhamos o destino de uma imagem capaz de cristalizar em
torno de si um saber e uma memória, uma dor e um desejo. Nela descobrimos a
montagem anacrónica de situações separadas no tempo, embora reiterando, com
variantes comoventes e inversões de polos, o mesmo Pathosformel do corpo incli-
nado ou do que designaria por um pensar debruçado.” (DIDI-HUBERMAN, 2015,
p. 24, grifo do autor).
199 gestos de debruçar-se, gestos em espiral, gestos instauradores, gestos de
decifração, gestos da escuta.
Sim, são múltiplos os gestos humanos e não humanos. Em Gestures
(Gestos), o filósofo Vilém Flusser (2014) propõe uma teoria dos gestos7
para um ‘povo por vir’, por serem os gestos um “fenômeno concreto do
nosso-ser-no-mundo” (FLUSSER, 2014, p. 176, tradução minha), capaz
de reorientar para poder agir a partir dos mundos, de maneiras outras –
pois os gestos dizem respeito à liberdade. Numa multiplicidade de gestos
– de escrever, fazer, fumar cachimbo, escutar música, pintar, fotografar,
dentre outros –, o autor propõe, ao final, que o “gesto é um movimento
através do qual uma liberdade é expressa, uma liberdade para aquele que
gesticula, de se esconder ou se revelar aos outros” (FLUSSER, 2014, p.
164, tradução minha).8 Ao estar no próprio gesto – seja de pensar, ins-
crever, desenhar, escutar etc. –, a pessoa não tem liberdade, mas está na
liberdade, conforme Flusser, que é estar no espaço-tempo presente. Gesto
como prática da liberdade – que implica escolha, decisão e responsabili-
dade, individual e coletiva – é também gesto de partilha e de confronto,
a exemplo das feministas na Itália nos anos 1970, ao fazerem o gesto do
sexo feminino com as mãos (como sinais vetoriais), em manifestações no
espaço público, como gesto de pulsão, que separa e reúne,9 e mesmo os
gestos-atos plurais e dialógicos de Caminhando proposto por Lygia Clark,
e a filosofia dos “gestos” do filósofo francês Etienne Souriau ([1943] 2009).
E também os gestos firmes de guias-entidades e orixás nas giras-rituais
da Nação Livre Aruanda, e o “gestos de escuta” dos pontos riscados – com
o babalorixá, o mistério (orixás e guias), a Terra-chão e o cosmos, os ma-
teriais (pemba, pólvora, alimentos etc.), os iaôs etc.
A dimensão efêmera da existência da “obra enquanto ato” (e da ex-
periência que atua no corpo) de Caminhando, de Lygia Clark (e de sua
obra e percurso a partir de então), pode propiciar outras aproximações da
experiência-existência efêmera dos pontos riscados enquanto inscrições-
-ato-gesto no tempo-espaço do ritual-gira na Nação Livre Aruanda. Atos-
gestos do babalorixá para o(s) iaô(s), e também “de e para”, e pode-se dizer
“com”, os guias e orixás implicados, isto é, com a Terra e o Cosmos (as
10 Como David Lapoujade (2017a) sugere: “No cosmos das coisas, há aberturas, inú-
meras aberturas desenhadas pelos virtuais. Raros são aqueles que as percebem e
lhes dão importância; mais raros são aqueles que exploram essa abertura em uma
experimentação criadora.” (LAPOUJADE, 2017a, p. 44).
11 Lapoujade aponta que “Para Souriau, perceber não é observar de fora um mundo
estendido diante de si, pelo contrário, é entrar num ponto de vista, assim como
simpatizamos. Percepção é participação. Um fenômeno surge, surpreende por
sua beleza, e lá estamos nós presos no interior de uma espécie de monumento
perceptivo do qual exploramos a composição momentânea. Nossa perspectiva se
encaixa em outra perspectiva, nosso ponto de vista em outro ponto de vista, como
se houvesse uma intencionalidade, ou melhor, um princípio de ordem, visível
na arquitetura do fenômeno. Não temos uma perspectiva sobre o mundo, pelo
contrário, é o mundo que nos faz entrar em uma de suas perspectivas. (LAPOU-
JADE, 2017a, p. 47). Como coloca Peter Pál Pelbart, “a percepção é essencial, é
reconhecer o direito daquilo que é percebido de existir. E que para Gilles Deleuze: “a
política é uma questão de percepção” (Anotações de aula do Prof. Pelbart na PUC
SP, 2017).
201 terra-chão-cosmos inscrevem, mão-pé-corpo inscrevem, os guias-enti-
dades e orixás (que também são a natureza) inscrevem, isto é, feitura de
um gesto-inscrita da Terra, do Cosmos, do Tempo. Como acentuou Kabila
Aruanda em seu texto sobre os pontos riscados em Aruanda:
Figuras 75 e 76 – Pembas usadas para riscar os pontos. Nação Livre Aruanda. (2018). Fotos: Ligia Nobre. Fonte: arquivo pessoal.
Figuras 77 e 78 – Caminhando, 1963, Lygia Clark. Fonte: Catálogo da exposição Lygia Clark (1998), p. 148-149
entre modo (“que pensa a existência a partir dos limites”) e maneira (como 204
gesto, imanente à própria existência):
Mas essas passagens, alerta o filósofo, são sempre problemáticas, pois “Há
uma força problemática dos virtuais” na instauração que faz justamente
perguntar: “Com que gestos? Qual é a “arte” que permite que as existên-
cias aumentem suas realidades? São provavelmente realidades mais frá-
geis, próximas do nada, que exigem com força tornarem-se mais reais.
É preciso ser capaz de percebê-las, de apreender [...] sua importância”.
(LAPOUJADE, 2017a, p. 41). Nesse sentido, Pelbart dirá que:
205 Se há existências em estado de “ínfimo esboço e de instauração
precária que escapam à consciência”, Souriau parece querer
devolver o direito a essas existências liminares – evanescentes,
precárias, frágeis – as quais negligenciamos, mesmo que essa
consistência que lhes oferecemos seja incorporal ou espiritual e que
seja preciso emprestar-lhes alma. É assim que nos tornamos suas
testemunhas, seus advogados, seus “porta-existência”, segundo
Lapoujade: carregamos sua existência assim como elas carregam a
nossa, uma vez que, sob certo ponto de vista, só existimos na medida
em que fazemos existir outros, ou que ampliamos outras existências,
ou que vemos alma ou força onde outros nada viam ou sentiam, e
assim fazemos com eles causa comum. (PELBART, 2014, p. 253).
13 A artista norte-americana Mary Kelly fez uma fala sobre o processo de decifrar
uma obra artística, com sua perspectiva feminista de arte, um método coletivo de
decifrar (não prescritivo), como uma forma ou tática de “escuta” da obra, em que
é preciso suspender o julgamento, e sim proceder com generosidade, em que se é
sensível ao tempo presente – perspectiva que ressoa aqui. Palestra integrante do
Independent Study Program 50th Anniversary Symposium (out. 2018), Whitney
Museum, Nova York (EUA). Anotações pessoais da Palestra. Disponível em: <ht-
tps://www.youtube.com/watch?v=pDtxiQlRkaE>. Acesso em: 25 jul. 2019.
14 “Para Souriau, em que consiste o ato de instaurar? A instauração não é sinônimo
de anáfora. A anáfora designa o processo de intensificação pelo qual uma existên-
cia ganha em realidade, enquanto que a instauração designa a operação pela qual
uma existência ganha em ‘formalidade’ ou em solidez. Souriau prefere esse termo
aos de produção ou de criação, considerados excessivamente ambíguos. (IP, 73n).
Instaurar consiste em fixar a existência de um ser, assim como estabelecemos
uma instituição, uma cerimônia ou um ritual. Criar é instituir ou formalizar (IP,
73n). E formalizar é fazer passar para a existência a arquitetura envolvida no ser
Souriau) da sua própria existência (como caminhar em “linhas curvilí- 206
neas”, trilhas e tramas de vida). Como coloca Kabila Aruanda (2014), o
ritual é uma forma de expressão, e o ponto riscado significa porque ele é
uma forma de expressão, ele pontua uma comunicação, é uma tentativa
de comunicar a própria existência. Ato-gesto que compreende justamen-
te a dimensão da ritualização em Aruanda de “uma constante criação”,
ou em outras palavras, de uma contínua experimentação ou instauração
de modos de existência, plurais, que criam o seu próprio tempo-espaço
(LAPOUJADE, 2017a, p. 19). Parafraseando Lygia Clark, “em sendo a
obra o ato de fazer a própria obra [que é o ponto riscado e a própria exis-
tência], você [iaô-participante] e ela tornam-se totalmente indissociáveis”
(CLARK, [1983] 1998, p. 151). Como Lygia diz, em Caminhando, “é o ato
que engendra a poesia” (CLARK, [1983] 1998, p. 152). Reverbero então,
aqui, os pontos riscados como “poema de gestos” que multiplicam os pon-
tos de vista-pontos de vida em caminhos e engendramentos, em que existir
é fazer existir um outro.15
virtual, ainda no estado ‘implexo’; é desvelar a sua estrutura. Nesse sentido, com-
preendemos porque se trata menos de criar do que de instaurar”. (LAPOUJADE,
2017a, p. 81).
15 “A instauração só se sustenta com seu próprio gesto, nada preexiste a ela”.
(LAPOUJADE, 2017a, p. 88). [...] “instaurar é fazer existir, mas fazer existir de
certa maneira – a cada vez (re)inventada” (LAPOUJADE, 2017a, p. 89).
207
Constelação
17 Como Kabila Aruanda colocou: “[…] alguns direcionamentos que eles [Exus] preten-
dem, como se eles estivessem se dando uma certa missão, direcionamentos para vida
de vocês [iaôs “deitandos”]. Então, da mesma forma, isso [ponto riscado] equivale
a uma força, é como se estivesse escrevendo no odi (chão) do nosso sagrado, no chão
sagrado essa intenção. E essa intenção tem uma conexão – como se fosse desenhar
uma constelação – tem uma conexão direta com esse sutil (a gente chama de sutil),
com esse lugar energético. E, logicamente, nós não somos a única cultura que faz isso
(então, tem relatos das três pirâmides grandes do Egito que elas estão alinhadas a
uma constelação, que não sei o nome agora…). E aí, eu gosto de comparar isso com
uma constelação. Porque uma das funções, principalmente do Lebara e da Bombogi-
ra, é produzir, fazer com que vocês brilhem”. (Kabila Aruanda, Kamarinha da Rola
do Seu Sete Portas, 5/11/2016).
209 tempos mais remotos, empenha-se, obsessivamente, em decifrar os enig-
mas do universo” (OTTE; VOLPE, 2000, p. 35), ressaltam Georg Otte e
Miriam Lidia Volpe no artigo “Um olhar constelar sobre o pensamento de
Walter Benjamin” (2000). Ao traçar linhas entre as estrelas,
Figura 80 - Ponto riscado-Cosmograma-Portal, Nação Livre Aruanda. Jun. 2015. Foto: Ligia Nobre. Fonte:
arquivo pessoal.
Figura 81 - Ponto riscado-Cosmograma-Portal, Nação Livre Aruanda. Jun. 2015. Foto: Ligia Nobre. Fonte: arquivo pessoal.
212
violeta para Omulu e para Iemanjá; vermelho pra Xangô e para Iansâ, sua mulher;
verde para Oxóssi; amarelo para Oxum e cinza para Nanã”. (BASTIDE [1948-
1949] 2011, p. 109). No Ilê, dentre as cores de pembas disponíveis atualmente,
muitas daquelas descritas por Bastide são também utilizadas em Aruanda, para
evocar os mesmos orixás. Conforme vários pesquisadores, a pemba foi trazida
pelos bantos, que já a utilizavam em seus ritos religiosos na África. Esta aborda-
gem é reforçada segundo a Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana (2004),
de Nei Lopes, em que a palavra ‘pemba’ significa cal em kimbundo, e mpemba é o
termo para giz em Kikongo. Como ressaltado também na seção 1.2 ‘Riscos afro-
-atlânticos’, no Cosmograma Kongo, “A montanha dos mortos é chamada “argila
branca” (mpemba)” (THOMPSON, 2011, 113). Ver ainda o artigo “The power of
powder: multiplicity and motion in the divinatory cosmology of Cuban Ifá”, de
Martin Holbraad (2007).
21 Roger Bastide detalha, nesse mesmo Ensaio de uma Estética Afro-Brasileira: “Os
elementos utilizados nos pontos são de várias procedências: cruz católica; astros
do céu, como o Sol, a Lua ou as estrelas; armas, como o arco e suas flechas, a lan-
ça, a espada (seja reta ou então flamívola), a machadinha; ou, ainda, linhas, como a
espiral”. (BASTIDE, [1948-1949] 2011, p. 109-110). Sobre os elementos singulares,
alguns também estão presentes em Aruanda, como o arco e flecha para Oxossy,
a machadinha para Xangô, a espada para Ogum, ou a linha em espiral, dentre
outros. São signos que estabelecem também ações e relações, convocam os orixás
e exus-entidades.
22 “Os Orixás de Aruanda tem uma mitologia própria, trazidas por eles mesmos ao
babalorixá que tem a capacidade de ouvi-los. Xangô, parceiro de Yemanjá, tem sua
prole representada por Oxalá. Em Aruanda, Oxalá representa todo indivíduo (ho-
mem/mulher). Todos em Aruanda nascem pelas mãos de Oxalá e morrem pelas
mãos de Olorum”. (ARUANDA, 2017).
Figura 82 – Ponto riscado-Cosmograma-Bandeira da Nação Livre Aruanda. Estêncil por UAP/Aruanda.
Jun. 2017. Foto: Ligia Nobre. Fonte: arquivo pessoal.
Figura 83 - Ponto riscado-Cosmograma-Portal, Nação Livre Aruanda. Jun. 2015. Foto: Ligia Nobre. Fonte:
arquivo pessoal.
Figura 84 – Ponto riscado-Cosmograma da Nação
Livre Aruanda. Foto: Kabila Aruanda (2019). Fonte:
arquivo Aruanda.
considerações como “leitura de estrelas”23) dessas constelações, através 216
dos tempos. Tem-se aqui um ponto riscado-cosmograma-portal “como
ponto de partida para novas interpretações e ações” (TRESH, 2005 p.
11). Ponto de partida concreto, útil, em que se trata de “inventar outras
formas de ligações, uma estética da coabitação” (ROYOUX, 2005, p. 3).
Assim como colocou Walter Benjamin, a “imagem é aquilo onde, à ma-
neira de um relâmpago, o acontecido se une ao agora numa constelação”
(BENJAMIN, 1983, p. 576 apud OTTE; VOLPE, 2000, p. 42), pode-se en-
tão unir a essa imagem o tempo imanente do devir, do mistério. Como que
dilatando os poros da Pele da Terra, esse ponto riscado-cosmograma-por-
tal, uma constelação de constelações, engendrou e segue engendrando en-
contros entre pontos riscados-pontos de vista-pontos de vida, na implicação
política do viver “o tempo do agora”.
Diagrama ritual
Milo Rigaud nomeou o vèvè do Vodu no Haiti como “diagrama ritual”, sen-
do este o título do seu livro-pesquisa dessas inscrições Ve-ve: Diagrammes
Rituels du Voudou (RIGAUD, 1974, p.1). Esse termo, “diagrama ritual”,
possibilita desdobrar aqui, parcialmente, ambos os termos, ‘diagrama’ e
‘ritual’, para me aproximar e interpelar os pontos riscados da Nação Livre
Aruanda também como “diagramas rituais” – justamente por permitir
escapar do esquema da representação e de categorias clássicas da lingua-
gem (de uma perspectiva ocidental).
São múltiplas dimensões do diagrama como uma forma de pensa-
mento, notação gráfica e de agenciamento (NOBRE, 1999). Seu potencial
está justamente em sua possibilidade generativa, e não apenas descritiva.
O diagrama opera através de gráficos, tabelas, desenhos, figuras ou pa-
drões, apresentando os cursos de um fenômeno e relações entre dados, ex-
primindo ideias e suas possíveis formas. O conceito de diagrama é amplo,
inclui os números imaginários na matemática, assim como a pesquisa de
Charles Sanders Peirce sobre as três variedades fundamentais de signos –
o índice, o símbolo e o ícone (sendo o diagrama uma subcategoria do ícone,
junto de imagens e metáforas). Contudo, focarei brevemente na concepção
de diagrama do filósofo francês Gilles Deleuze (que parte de Foucault) e
do esquizoanalista francês Félix Guattari (que parte de Pierce), concepção
que passa pela noção de diagrama do filósofo francês Michel Foucault.25
28 No original: “In today’s world of ever-rising inequality, of ceaseless conflict and in-
justice, [...] we [artistas] must strive to reinvent ways our subjectivties are formed,
by developing new practices of resistance”.
29 No original: “An SD occupies and activates an existential territory as a collective
force that generates resistance, disobedience, and affect – the capacity for acting
and being acted upon”.
30 No original: “It is a process of production that has the potency of being disruptive,
provoking another way of living and conceiving of the relations among the social,
the political, the historical, the unconscious, and the subject.”
221 humanos e entre humanos e não humanos) e gesto ritualístico (que impli-
ca a experiência em movimento reflexivo, uma forma de ‘pensamento atu-
ante’), em implicações cosmopolíticas. Uma experiência da Nação Livre
Aruanda como um “devir-minoritário”, incluindo os pontos riscados (e
cantados) como ‘diagrama rituais’ ou ‘cosmogramas’.
“O ritual, assim como o agenciamento, é uma ‘máquina’ que simul-
taneamente agencia fluxos cósmicos e moleculares, forças atuais e virtu-
ais, afetos sensíveis e corporais, e entidades incorporais, mitos e univer-
sos de referência” (LAZZARATO; MELITOPOULOS, 2011, p. 13). Em
Aruanda, ao considerar o ritualizar como “materialização do sagrado”,
me interessa repensar as relações entre o virtual e o ritual. Em outras pa-
lavras, repensar a função do ritual como “contraefetuação do virtual”31,
que Guattari e Deleuze desdobram em O que é Filosofia? (1992). Razão
pela qual o ritual precisa ser incessantemente produzido, instaurado (seja
nas giras coletivas, seja na dimensão do cotidiano), “para construir uma
existência”. O ritual implica ritmo, implica articular, no sentido de uma
disposição, uma configuração criadora. E o ponto riscado tem seu ritmo,
como apontou o guia Baiano Seu Zé do Koko Verde (2016), trazendo o pon-
to cantado, a dança, e a palavra. A ritualização, ou a ritualidade, é uma
forma de “pensar-agir-sentir” no tempo presente, é experiência em mo-
vimento, em que os riscos do devir estão sempre na iminência de falhar.
34 Como aponta David Lapoujade sobre Mil Platôs de Deleuze e Guattari, uma
“nova terra” como “um campo de relações, um mundo composto de todas as
relações entre multiplicidades não ligadas” (LAPOUJADE, 2015, p. 195).
225
3.3 EXISTÊNCIA/
RESISTÊNCIA
Abrir esta exposição com tal afirmação nos convida a refletir sobre
a ecologia de problemas mobilizada pelo que chamaremos aqui de
infraestrutura tecnológica global. São aspectos sociais, econômicos,
técnicos, simbólicos, espirituais, culturais, sexuais, políticos,
geográficos, ambientais, todos fortemente intrincados e que acabam
por atualizar, e dar sequência global, a normativas e narrativas
coloniais preexistentes. E para que tais narrativas se perpetuem,
muitos artifícios, codificações, transações, operações e abstrações
são criados, no sentido de empurrar para fora de nosso campo de
visão, reflexão, percepção e conhecimento, todas essas implicações.
35 Como Kabila Aruanda coloca, “Eu faço ponto no chão sagrado com giz, e faço com
caneta, com lápis. Já fiz no MUBE, com Les Joynes, na Suíça em Genebra, fiz em
Lisboa e na Cidade do México. Essa grafia também me traz a própria temporalidade
do chão sagrado para onde eu estiver. Ele materializa essa energia” (ARUANDA,
2018, transcrição minha do áudio). E ele desdobra então, que, “ fazendo essa analo-
gia com as constelações, é isso, de onde você estiver, a Terra gira, em algum momento
você se conecta – como as pirâmides no Egito [...] eles seguem uma rota, um reflexo
das estrelas, [...] porque [...] elas são temporais” (ARUANDA, 2018, transcrição
minha do áudio).
36 Em agenciamentos similares aos próprios círculos de pemba dos pontos riscados
na umbanda, e também, ao Chalk Circle por Ian Wilson e ao círculo de giz para o
Teatro Anatômico da Terra, por Camila Sposati, como Capitulo 2 Chão.
229 Parece-me, então, que uma das potências dos pontos riscados – seja
no Ilê, em dimensões públicas em instituições de arte e cultura, e/ou em
outros lugares e corpos – é a capacidade e responsabilidade de (se) des-
locarem, (re)situarem, (re)ativarem e instaurarem modos de existências
múltiplos e coletivos, “em fluxos, redes e encruzilhadas” (MBEMBE,
2018). Em Campos de Invisibilidade (São Paulo) em 2018-2019, ao invés de
riscar os pontos no chão do espaço expositivo, que demarcaria um campo
de forças performático-ritualístico efêmero, como nos dois casos anterio-
res, com Existência/Resistência (2018) (Figuras 98-101) engendrou-se uma
experimentação-experiência, eu diria mais dialógica – agenciada com a
curadoria – com os autores e artistas dessa exposição. Aqui, a convocação
e emanação de forças dos riscados se dá a partir de duas imagens emol-
duradas (como imanência e grafias impressa e digital), dispostas lado a
lado na parede, na temporalidade expandida dos 3 meses da exposição.
Se o ponto riscado como cosmograma é “feit[o] por quem tem uma visão
de mundo daquela visão de mundo” (TRESH, 2005, p. 11), a curadoria
buscou aqui, justamente, produzir experiências em torno da variação de
modos de existência, incluindo os pontos riscados de Aruanda, buscando
“constituir conexão entre distintas capacidades” (CESARINO, 2017, p.13),
ou seja, produzir encontros entre visões–obras plurais de mundos.
Na fotografia colorida impressa (tamanho aproximado A3), o gesto
do ponto riscado dispõe a vibração dos ‘caboclos pretos’, traçados no chão
de terra batida do Ilê. Essa menção aos ‘caboclos pretos’ é “uma comuni-
cação com o espírito dos negros africanos que morreram nessa trajetória [do
tráfego de escravos atlântico], foram deixados ao mar. [...] Eles foram ar-
rancados da sua raiz, do seu lugar de origem, morreram em algum momento
dessa trajetória, e foram lançados ao mar, sem nenhum tipo de ritualística, e
também não aportaram” (ARUANDA, 2018, transcrição minha do áudio).
Esse riscado dos ‘caboclos pretos’ foi feito com cinco linhas pretas, como
se fossem cinco dedos de uma mão – que resgata do fundo do mar esses
corpos –, paralelas e entrelaçadas a linhas vermelhas de sangue e também
como asas “dessa tentativa de liberdade”. O riscado tem na sua ‘base’ linhas
onduladas, em azul, que remetem ao mar (e também ao orixá Yemanjá)
onde esses corpos foram jogados, e a machadinha do orixá Xangô, em ver-
melho, como busca por justiça e reparação. Na parte de cima do riscado,
como céu (Olorum), folhas e sementes emanam para “que esses espíritos
possam encontrar um lugar de acolhimento e de justiça para esse sentimento
de não pertencimento” (ARUANDA, 2018, transcrição minha do áudio).
Em um monitor, ao lado da fotografia, visibiliza-se a duração dos gestos
das linhas em movimento (vídeo-animação em looping) com riscados que fa-
zem menção principalmente aos ‘caboclos indígenas’, trazendo essa conexão
com os povos ameríndios desta terra – “essa conexão entre céu e terra, entre
essas duas atmosferas – o plano astral, o plano do universo fora daqui, e o nosso
universo terreno” (ARUANDA, 2018, transcrição minha do áudio). Aqui, o
babalorixá (ar)riscou os pontos num iPad, traçando e aprendendo enquanto
usava o aplicativo, em uma ritualística com pontos cantados entoados pela
ialorixá e um iaô durante o riscado, além das presenças de parte dos pro- 230
dutores executivos, da curadoria, e de outra artista convidada. Num breve
depoimento a alguns visitantes, durante a abertura da exposição (nov. 2018),
o babalorixá ressalta: “Então, assim como você busca uma conexão wifi, você
busca uma conexão com essas energias, com essa ancestralidade, com essa lin-
guagem. Essa conexão se dá, e dentro dessa atmosfera toda. Mas, ela foi adensa-
da, porque foi feita dentro desse espaço [expositivo], que também foi pertinente
fazer aqui” (ARUANDA, 2018, transcrição minha do áudio). Kabila Aruanda
coloca que, para ele, justamente a matéria de que é feito o IPad, os vários
componentes e minérios, acabou atraindo muitas outras conexões externas,
como se “todo mundo” quisesse se comunicar (como uma interferência–ru-
ído de várias estações de radio concomitantes num mesmo sinal), tanto que,
o último ponto riscado foi ganhando complexidades e muitas camadas so-
brepostas, ao limite de ser inteiramente rabiscado por cima, formando uma
mancha escura ao final – como um excesso que provocou um pane.
Essa busca por comunicação (e interferências e panes) entre Terra
e Cosmos dos pontos riscados dos caboclos indígenas em Existência/
Resistência, ressoa com a reflexão da educadora, filósofa indígena Cristine
Takuá na áudio-conversa Yvyrupa, Terra Livre – sobre conexão espiritu-
al, tecnologias de comunicação ocidental, a luta pelo território dos povos
da floresta e contra o “estupro da Terra”, – cuja presença ‘abre’ o espaço
expositivo. A voz-canto por Takuá e os riscados por Aruanda dialogam
também com os desenhos-narrativas indígenas (das Américas) dos rios
como entidades vivas dotadas de histórias, diante dos projetos violentos
de barragens e mineração – causando interrupções e destruição dos rios
e desses modos de vida autóctones – por obras infraestruturais de caráter
desenvolvimentista, na obra A Gente Rio (2016) com a artista colombiana-
-inglesa Carolina Caycedo. De outra maneira, o gesto de rompimento da
escravidão e de busca por justiça e auxílio de milhares de corpos negros
jogados no Atlântico, por séculos de colonização (e ainda hoje), conjura-
do no ponto riscado dos ‘caboclos pretos’, correlaciona-se também com a
video-instalação Deep Down Tidal (2017), da artista e agente de cura ba-
seada na Guiana Francesa Tabita Rezaire. Ao identificar e problematizar
as rotas genocidas dos navios no Atlântico Negro atualizadas nas mesmas
rotas traçadas dos cabos submarinos infraestruturais de telecomunica-
ções, como “colonialismo eletrônico” ocidental, em contraposição, Rezaire
propõe “espaços-tempos de vida em que a tecnologia e a espiritualidade
se interseccionam” (BUENO; NOBRE, 2018, p.78). Dialoga também com
Lettres du Voyant (2013), do artista inglês Louis Henderson, um “docu-
mentário-ficção sobre espiritismo e tecnologia na Gana contemporânea.
[Que] Reflete sobre uma prática misteriosa chamada Sakawa – golpes de
internet misturados com magia vodu, por meio dos quais seus praticantes
prometem recuperar tudo que lhes foi historicamente roubado” (BUENO;
NOBRE, 2018, p.141) – como uma forma de resistência anticolonial.
São muitas trajetórias a serem potencialmente traçadas e invocadas
em Campos de Invisibilidade (da cobra grande aos cabos submarinos, do cyan
231 ao cianeto, a tecnologia espiritual e do corpo, minérios e matérias, infraes-
truturas, ‘nuvem’ e lixo eletrônicos, etc.) – entre múltiplos corpos e presen-
ças (visíveis e invisíveis) e imagens em movimento nesta exposição37– que
se propôs também como processo experimental e dialógico. Este conjunto
de narrativas situadas audiovisuais e gráficas são uma tomada de posição,
como “contrafeitiçaria”38 ou “desenfeitiçamento”, diante da “feitiçaria” e
dos “negacionismos”39 do capitalismo neoliberal, do Antropoceno e do am-
biente tecnológico contemporâneo. Se o capitalismo capturou palavras e
práticas como feitiçaria, magia e animismo, para se tornar um “sistema de
feiticeiros sem feiticeiros” – “que transforma todo saber em mercadoria e
destrói as capacidades de pensar e agir em conjunto” (SZTUTMAN, 2018,
p.340), Isabelle Stengers (com Pignarre) propõe então que “para resistir,
seria preciso desenfeitiçar (o que não deixa de ser também tornar-se fei-
tiçeiro, praticante de magia, arte da imanência) e aliar-se com Gaia (essa
curiosa “terra viva” [...] que nos impele a pensar meios de contratranscen-
dência)” (SZTUTMAN, 2018, p.343), ou seja, “seria preciso, enfim, reati-
var vínculos julgados perdidos ou inexistentes – com deuses e espíritos, mas
também com a Terra” (SZTUTMAN, 2018, p.343), como ressalta o antro-
pólogo brasileiro Renato Sztutman no ensaio “Reativar a feitiçaria e outras
receitas de resistência – pensando com Isabelle Stengers” (SZTUTMAN,
2018). Isto é, “contrafeitiçarias” são feitiços também, não como resgate ou
apropriação cultural, como aponta Sztutman, mas como novas formas de
ação política (STENGERS, PIGNARRE, 2005), de (re)ativar novos rituais
como ação política, de proteção e resistência, de afirmação e conexão entre
modos de existência heterogêneos.
Figura 86 – Campo Nova Praia do Futuro, com trabalhos Louis Henderson, All That is Solid (Tudo que é sólido) (2014); Ruy
César Campos, Landing Monet (2017); e Julio Plaza, La Differencia (1981). Exposição Campos de Invisibilidade. Foto: Marcos
Cimardi. Fonte: arquivo O grupo inteiro.
Figura 87 – Louis Henderson, All That is Solid (Tudo que é sólido) (2014). Foto: Louis Henderson. Fonte: arquivo do artista.
Figura 88 e 89 –Instalação
Octopus (O grupo inteiro).
Campos: Cosmogramas (Alan
Turing, Desenhos (1940/50);
Rita Wu, Sem título (2018) e Ada
Lovelace, Diagrama algoritmo);
Visualizações de Mundo (Mapas
de Cabos Submarinos; Livestream
de Tráfego Aéreo; Livestream de
Tráfego Marítmo; Mapa de Minas
Desativadas (Agência Pública/
MG); Gráfico da Bolsa de Valores
de São Paulo), e Adeus a Sete
Quedas (Déborah Danowski,
Negacionsimos, 2018). Exposição
Campos de Invisibilidade. Foto:
Marcos Cimardi. Fonte: arquivo O
grupo inteiro.
Figura 90 e 91 - Tabita Rezaire, Deep Down Tidal (No Fundo das Marés) (2017). Campo Nova Praia do Futuro. Instalação e
Print do vídeo com articulação dos cabos submarinos de internet com as rotas marítimas da escravização/colonização.
Fotos: Tabita Rezaire, e Marcos Cimardi (Instalação). Fonte: Tabita Rezaire, e arquivo O grupo inteiro.
Figura 92 – Aretha Sadick, ]XY[ (2011-2018). Campo Ouroboros. Exposição Campos de Invisibilidade. Foto: Marcos Cimardi.
Fonte: arquivo O grupo inteiro.
Figura 97 – Kabila Aruanda, Existência/Resistência (2018). Constelação Cosmogramas. Exposição Campos de Invisibilidade.
Foto: Marcos Cimardi. Fonte: arquivo O grupo inteiro.
Figura 98 – Kabila Aruanda, Existência/Resistência (2018). Campo Cosmogramas. Exposição
Campos de Invisibilidade. Foto: Marcos Cimardi. Fonte: arquivo O grupo inteiro
CONTINUAMOS
Começo e finalizo esta tese com uma carta para você. Os pontos riscados
também são uma carta. São uma carta escrita à mão por e para o orixá,
por e para o guia-entidade, por humanos e não humanos, numa ‘cosmo-
política’. Uma carta sobre o que se deseja e para quem. Uma carta-inscri-
ção que gera uma força. Portanto, riscar é um comprometimento. Assim
como esta curta longa carta. Riscar, escrever, desenhar, gestualizar, ca-
minhar, são verbos que se fazem carne. São ações que se materializam,
continuam. São comprometimentos em assumir responsabilidade não
‘por’, mas ‘diante de’. Em uma assembleia-gira agitada em abril de 2016,
no terreiro, já em meio ao período turbulento político e afetivo que tem
assolado o país, o Exu Seu Sete Portas, provocou a todos os presentes:
“tudo que acontece é responsabilidade de todos”. Difícil escutar isso, mas
necessário. Ecoa, de certa forma, com o que propõe a Donna Haraway
ao perguntar quais são as nossas responsabilidades, em outras palavras,
quais são as nossas habilidades de responder? Pergunto-me como escre-
ver-desenhar-caminhar-ritualizar ou dar significado a uma tese em um
L.
245
REFERÊNCIAS
ABIODUN, R. Yoruba Art and Language: seeking the african in
african art. New York: Cambridge University Press, 2014.
CASTRO, E. V. de. No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é. In:
RICARDO, B.; RICARDO, F. (Ed.). Povos indígenas no Brasil: 2001-
2005. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006.
. Flying over Dikenga: the circle of new life. In: KREAMER, C.;
ADAMS, S. (Eds.). Inscribing Meaning: writing and graphic systems in
african art. Washington DC: Smithsonian National Museum of African
Art, 2007.
GLOSSÁRIO
Este glossário compartilha os significados das expressões, nomes e ter-
mos presentes nesta tese (e expandido para alguns outros termos do re-
pertório do terreiro) e que são de uso corrente na Nação Livre Aruanda.
Muitos dos termos são similares ou os mesmos dos usos das religiões dos
orixás no Brasil. Sua base é o “Vocabulário da Aruanda” e outros conte-
údos da Kartilha Nação Livre Aruanda (ARUNDA, 2018) – “livreto [que]
é um breve resumo sobre os fundamentos do método da Nação Livre
Aruanda e sobre seus Guias e Orixás. Sintetiza as muitas camadas que
fazem parte do método” (KARTILHA, 2018, p.2) – elaborada pelo babalo-
rixá Kabila Aruanda, com assistência de alguns iaôs em 2018. Os termos
grifados referem-se aos Orixás e aos guias da Mentoria do Panteão da
Nação Livre Aruanda.
A
Adjá instrumento para chamar o Orixá
Adobá bater cabeça para o Oixá
Ageum comida do sagrado
Agiokó ajoelhado
Agô licença
Agô dado licença concedida
Aküé dinheiro
Alabê Yaô/Iaô que toca atabaque
Alguidar pote de barro
Apoti banco
Aruanda Tempo
Axé Tudo o que temos de melhor, acumulado
de vidas anteriores, um verdadeiro
tesouro que não pode ser jamais
maculado, cuidadosamente mantido
intacto por todos os Orixás que compõem
nosso Panteão
Axé obrigado
Axé Axelem obrigado a você
Axogum Ogan que cuida dos Exus
B 264
Babalorixá Sacerdote
Benguê tambor
Baianas e Baianos Guias Mentores de Aruanda. São a
ponte com o Culto aos Orixás no Brasil.
Miscigenação, diversidade. Vinculados
aos artistas e artesãos. Ligados à
KORRENTE DAS GRANDES ALMAS
DA ALEGRIA. Ligados aos sabores,
aos temperos, às mandingas [patuás],
às festas.
Cuidam das carências: Todas
[do que não está]. Ladinos, perspicazes,
ajudam nas conclusões. Vibram o
desfrutar, a criação, a criatividade, os
negócios, “compra e venda”.
Boiadeiros Guias Mentores de Aruanda.
Cavaleiros, mensageiros, tropeiros,
ligados ao universo masculino, força.
Estradas, caminhos, transportes, fazer
solitário, missões individuais, solidão,
viagem interna, conduzir, insistência,
persistência. Ligados aos desaparecidos.
Bombogira Exu feminino
Bori retiro espiritual
C
Caboclas, Caboclos e Juremas Guias Mentores de Aruanda. Fazem
o filtro energético em tudo que se
relaciona ao terreiro. Ligados aos povos
indígenas: Povo da Mata, Povo Xamã e
Povo do Kaminho Sagrado. Curandeiros e
caçadores.
Ciganos e Ciganas Guias Mentores de Aruanda. Trabalham
juntos com os Exus e Bombogiras e a eles
estão intimamente ligados.
D
Dadê / Dadewé Orixá da consciência. São Orixás da linha
do oriente. Ensinamento: não se separa
a natureza feminina da masculina e
vice-versa.
Denen-Axé uva (alimento sagrado)
265 E
Ebó fortificante
Ekede cargo do Terreiro
Enló coletivo (para todos)
Epô dendê
Erê/Ibejis espírito de crianças
Eró mistério
Ewá Orixá. Cada folha é um Orixá.
Fotossíntese. Elemento: Wewá [Folha]
Ewê ervas
Exus guardiões
Exu Bombogira e Guias Mentores de Aruanda. São os
guardiões. Vibram a matéria.
Exu Lebara Toda a materialização do Sagrado.
Manutenção do mundo material, corpo
(principalmente o cérebro e suas
conexões), dinheiro, trabalhos, sexo,
comunicação, riquezas, prazer, proteção.
Ligados à dissolução do ego. O ego é
a imperfeição. Abandonar o ego é se
aproximar da plenitude. Transmutação.
Mito da Fênix (renascer das cinzas).
Construção e destruição são as essências
da existência. Ensinam a lidar com
o imperfeito. Tudo que é material é
imperfeito. Na natureza não existe nada
puro. Existe uma ligação muito tênue
entre o prazer e a dor.
F
Fundunga pólvora
G
Guias espíritos dos mortos que se
comunicam conosco
I 266
Ibá quartinha
Ibeji altar
Ibejis/Erês Guias Mentores de Aruanda. Erês,
espíritos das crianças, infância. Ligados
ao desenvolvimento, ao primário,
associações simples, lúdico, brincadeira,
malvadeza, confiança, auto-estima,
presentificação da memória, exposição,
coragem, pedir alguma coisa. Acham
objetos perdidos. São mensageiros:
podem transitar por todos os lugares e
muitas vezes trabalham para os Exus.
Existem Erês marinheiros, kaboklos,
Exus Mirins.
Ibeji Orixá do Espírito infantil ou Espírito das
crianças – alegria herdada do espírito das
crianças ancestrais africanas.
Ilê casa
Ilekun porta, portão
Indé Totô pipoca; flor das Chagas de Atotô
Intê de Axé tempero
Iroko Orixá da mata em todo seu ecossistema.
Elemento: Tudo o que constitui a Floresta.
K
Kambono quem dá assistência ao Guia
Kawisa amor
Kazuá moradia; corpo moradia do espírito
Kessaulê formatura do Yaô/Iaô
Kizila desentendimento; desavença
Korrente das Grandes Sustentam todo o funcionamento
energético do terreiro.
Almas de Aruanda
Kossy varrer
267 L
Lebara exu homem
Logum-Edé Orixá da busca da maturidade.
Adolescente, Caçados, Provedor,
Dançarino. Elemento: Matas, Festas.
M
Mahamalé Oyá Orixá-Exu Feminino. Elevação máxima
de um Exu, tudo que é matéria, ligação
íntima com os prazeres. Orixá mais
“humano” do panteão. Elemento: a
matéria. Significado da Saudação: Me
liberta dos eguns, me separa das más
companhias, me desconecta do temo
ruim! E me transforma!
Makumba trabalho
Maleime desculpa; perdão
Marafa cachaça
Maroim mel
Marinheiras e Marinheiros Guias Mentores de Aruanda que
auxiliam os viciados, o desamparados, os
sofredores, os coitados. Ligações com a
angústia, depressão, distúrbios mentais.
Pescam as dores, levam as dores para o
fundo do mar. Afogam as mágoas. Trazem
esperança e alimento. Vislumbram a
chegada de dias melhores.
Mentoria Guias do Babalorixá Kabila Aruanda.
Os mentores de Aruanda [Guias de
Mestre Kabila] são responsáveis pelos
Guias dos Yaôs do terreiro. Por exemplo.
a Bombogira Marafona é responsável
por todas as Bombogiras de Aruanda.
No método de Aruanda a hierarquia
é horizontal, valendo o sistema de
equivalência: Mestre Kabila se equivale
a todos os Yaôs e é responsável pela
condução do método, assim como
Exu Sete Portas se equivale a todos os
Mentores e é responsável pelos Exus dos
Yaôs.
Moila vela
Monajamba Exu feminino 268
Moté bacia
Mussuru silêncio
Muzambi que o sagrado esteja com você
Muzambi aos Orixás que os Orixás abençoem o seu sagrado
N
Nanã Orixá da Sabedoria, Fôlego, Vontade.
Elemento: Lagoa, Terra molhada, Possas,
Lama.
Nirê Farinha
O
Obá Orixá feminino da emoção, Ingenuidade,
Guerreira, Imperfeição, amor humano.
Elemento vai depender da qualidade de
cada Obá.
Obaluaiê/Omulu Orixá da Saúde. Elemento: terra do
Cemitério [Oblauaiê acima e Omulu
abaixo], Decomposição.
Obathalá Orixá Mensageiro de Olorum. Liga o
céu ao fundo do mar. Transita no buraco
negro e no fundo do mar – lugares
de silêncio (como o inconsciente e o
subconsciente). O silêncio é uma forma de
desapego, de pausa.
Obé faca
Obé de Lonan faca de ritual; força do Orixá
materializada
Obé Kuruzu tesoura
Obi semente Africana que simboliza o cérebro
Odara belo; bonito
Odi chão
Odu terra (elemento)
Oduduwá Orixá Mensageiro de Olorum. Respeito
[Pai Terra Feminino]. Elemento: Odu
[Terra]
Odum preto
269 Ofilá mascara neutra feita de fios de contas
Ogan cargo no Terreiro
Ogum Orixá da Ação, Guerreiro, Ferreiro.
Ogum Beira Mar, Ogum Xoroquê, Ogum
Megê, Ogum Branco – Mensageiro de
Olorum. Elemento: Metal
Olorum É o Orixá Universo. O começo e o fim
de todas as coisas. Ele é o tudo, o todo.
O universo para nós [Aruanda] é o
movimento, assim é o Orixá Movimento.
E nesse universo estão inclusos todos os
Orixás. Agradecemos para o universo o
movimento do sacrifício, e o sacrifício no
movimento. Elemento: Tempo.
Omin água
Omin-Doiê água de cheiro; perfume
Omin Odu café
Omin Tinhô vinho, champagne
Orí cabeça
Orixá divindades da natureza
Orixá Exu Elevação máxima de um Exu, tudo
que é matéria, ligação íntima com os
prazeres. Orixá mais “humano” do
panteão. Elemento: a matéria. Significado
da saudação: Eu te respeito, te ouço, te
obedeço porque você trabalha ao meu favor
Orum’Ihlá Orixá Mensageiro. O escriba.
Responsável pelo registro da história de
nossa existência para Olorum. Elemento:
trajetória do Indivíduo no Tempo.
Orobô semente Africana ligada aos Exus
Ossanha Orixá da Ponderação, Pesquisa, Cura,
Tratamento. Elemento: Wewá [Folhas],
Ervas
Ossaim Orixá da Inocência, Pureza [Menino das
Matas]. Elemento: Matas
Ossé limpar
Otá pedra
Oxalá Orixá da Individualidade, Personalidade,
Nascimento, Princípio. Elemento: ar,
Sopro de vida.
Oxossy Orixá da Cura, Caçador, responsável pela 270
proteína animal na tribo. Elemento: Mata
Oxum Orixá da Criação, Concepção, Formação,
Vaidade, Vontade. Elemento: Água Doce,
Cachoeira
Oxum-Marê Orixá menos “humano” do panteão.
Transformação. Orixá dos caminhos.
Elemento: cobra, vapor, água no estado
gasoso, arco-íris.
P
Padé oferenda às divindades
Pano da Kosta protetor para vibração na gira
Pano de cabeça protetor de orí
Paô saudação de palmas ritmadas
Pemba giz
Ponto reza em forma de canto
Ponto riscado símbolo sagrado
Povo do Oriente Guias Mentores de Aruanda. Oriente,
ligado à plenitude. Ciclos. A plenitude é a
ponte para obtenção do prazer. O prazer é
o poder absoluto.
Preceito preparação
Pretas Velhas/ Pretos Velhos Guias Mentores de Aruanda.
Aconselhadores, benzedeiros, sábios,
e anciãos. Responsáveis pelas Korrentes
das Almas. Cuidam dos animais. Ligação
com a origem da humanidade e a herança
africana de culto aos orixás.
R
Ronkó casa do Orixá; lugar de reconhecimento
S
Senzajeum cozinha
Simiê semente
Sirê esteira
271 T
Tendalegria refeitório
Terreiro chão sagrado
V
Vamunha preparem-se para ir embora
Vudunso antigo no culto aos Orixás
W
Wewá folha
X
Xangô Orixá da Razão, Justiça. Elemento: Otás
[Pedras]
Xapanã Orixá que obedece a Olorum e Orixá-
Exu. Vibra o ódio, a vingança com
motivação. Significado da saudação: Velho
Irado!
Xauê-Odara canjica
Xek-Xek sal
Y
Yansã/ Oyá Orixá do Tempo, Ancestralidade.
Responsável por encaminhar os eguns.
Elemento: Raio, Fogo, Vento, Tempestade.
Yaô/Iaô iniciado
Yaomiwé banho de erva
Yemanjá Orixá da emoção. Elemento: Mar
Z
Zabelê alegria
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