Linhagens Do Estado Absolutista-4a

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Copyright © by Perry Anderson, 1974

Título original em inglês: Lineages of the Absolutist State


Copyright © da tradução brasileira: Editora Brasiliense S. A.

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sem autorização prévia da editora.
O
ISBN: 85-11-13049-7 O
Primeira edição, 1985
3a edição, 1995
a
2 reimpressão, 2004

Tradução: Suely Bastos - Apêndice A, e Paulo Henrique Britto - Apêndice B.


Revisão: Suely Bastos e Mareia Copola Sumário
Capa: Depto. de Arte Brasiliense

Dadas Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Prefácio

Anderson, Perry
Linhagens do Estado absolutista / Perry Anderson : tradução Primeira parte
João Roberto Martins Filho. - - São Paulo : Brasiliense, 2004. EUROPA OCIDENTAL

Título original: Lineages of the absolutist state O Estado absolutista no Ocidente 15


2areimpr. da3 a ed. de 1994. Classe e Estado: problemas de periodização 42
Bibliografia. Espanha — 58
ISBN 85-11-13049-7 França 84
Inglaterra 112
1. Despotismo 2. Despotismo - Estudo de casos I. Título.
Itália 143
04-8040 CDD-321.6 Suécia 173

índices para catálogo sistemático:


l. Absolutismo : Ciência política 321.6
2. Estado absolutista : Ciência política 321.6

editora braslllense s.a. O absolutismo no Leste 195


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tismo no Leste. Com o estabelecimento dos regimes absolutistas na


Europa oriental completava-se, por sua vez, o sistema internacional de
Estados que definia e demarcava o continente no seu conjunto. O nas-
cimento de uma ordem política multilateral, funcionando como um
campo único de competição e conflito entre Estados rivais, foi por-
tanto, a um só tempo, a causa e o efeito da generalização do absolu-
tismo na Europa. A construção deste sistema internacional a partir da
Vestfália não tornou, evidentemente, homogêneas as duas partes do
continente. Ao contrário, representando desde o início linhagens histó-
ricas distintas, os Estados absolutistas da Europa ocidental e oriental
seguiram diferentes trajetórias até as respectivas conclusões. A ampla
gama de destinos que daí resultou é bem conhecida. No Ocidente, as
monarquias espanhola, inglesa e francesa foram derrotadas ou derru-
badas por revoluções burguesas a partir de baixo; os principados ita-
Apêndices
lianos e alemães foram eliminados por revoluções burguesas de cúpula,
tardiamente. No Leste, por outro lado, o império russo foi finalmente
destruído por uma revolução proletária. As conseqüências da divisão
do continente, simbolizadas por estas sucessivas e opostas sublevações,
ainda hoje nos acompanham.
A. O feudalismo japonês

No século 7 a.C., constituiu-se um Estado imperial centralizado


no Japão, sob uma sólida influência chinesa: a reforma Taika de 646
aboliu os imprecisos conjuntos anteriores de linhagens familiares no-
bres e de agricultores independentes, e pela primeira vez instalou um
sistema de Estados unitário. Administrativamente modelado no impé-
rio Tang da China contemporânea, o novo Estado japonês, que chegou
a ser regido pelos Códigos Taiho, surgidos no início do século VIII
(702), era baseado num monopólio imperial de proprietários fundiá-
rios. O solo era distribuído em pequenos lotes, periodicamente redistri-
buídos aos agricultores arrendatários, que deviam tributos em espécie
ou corvéia ao Estado: inicialmente aplicado nos domínios familiares da
própria linhagem imperial, o sistema de distribuição gradualmente
atingiu o país de ponta a ponta no próximo século, mais ou menos.
Uma grande burocracia central, composta de uma classe aristocrática
civil, recrutada para as funções mais por hereditariedade do que por
mérito, manteve o controle do país unificado. O domínio foi sistemati-
camente dividido em áreas, províncias, distritos e aldeias, todos sob
firme supervisão governamental. Foi também criado um exército recru-
tado permanente, ainda que de forma um tanto precária. Construíram.-
se cidades imperiais simetricamente planejadas ao longo das fronteiras
chinesas. O budismo, sincreticamente combinado aos cultos autócto-
nes xintoístas, tornou-se uma religião oficial formalmente integrada ao
aparelho do próprio Estado. Mais ou menos de 800 em diante, entre-

(1) Para uma lúcida análise do Estado Taiho, ver J. W. Hall, Japanfrom Prehis-
tory to Modem Times, Londres, 1970, pp. 43-60.
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tanto, esse império sinicizado começou a se desintegrar sob pressões cionários públicos do governo central quanto os proprietários shõen
centrífugas. locais congregaram bandos particulares desses guerreiros em torno de-
A ausência de algo parecido a um mandarinato propriamente les, com finalidade de defesa e agressão. Os conflitos civis aumentaram
dito dentro da burocracia tornou-a desde o início propensa à privati- junto com a privatização do poder coercitivo, ao passo que as tropas
zação nobre. As ordens religiosas budistas preservaram privilégios es- bushi intervieram nas lutas dos grupos da corte pelo controle da capital
peciais nas terras a elas doadas. O alistamento compulsório foi efetiva- Imperial e da estrutura administrativa.
mente abandonado em 792, e a redistribuição de lotes em torno de 844. A derrocada do velho sistema Taihõ culminou com a fundação
Surgiram cada vez mais Estados semiprivados ou shõen nas províncias, vitoriosa do shogunato Kamakura, por Minamoto-no-Yoritonio, no fi-
nos domínios de propriedade dos nobres ou nos monastérios: inicial- nal do século XII. A dinastia imperial, a corte de Kioto e a adminis-
mente tirados das terras de propriedade do Estado, eles subseqüente- tração civil tradicional foram preservadas pelo novo soberano, que era
mente obtiveram isenção fiscal e, finalmente, dispensa da inspeção de originário de Kioto e demonstrou grande respeito por seu legado.
cadastro pelo governo central, sem exceção. Os maiores desses Estados Mas, paralelo a elas, foi criado um novo aparelho militar de governo
— que muitas vezes se originavam de terras recentemente recuperadas lob o comando do Shogun ou "generalíssimo", preenchido pela classe
— abrangiam várias centenas de acres. Os camponeses que cultivavam bushi e sediado numa capital independente, em Kamakura. O poder
os shõen agora pagavam tributos diretamente aos seus senhores, em- real no Japão foi doravante exercido por essa autoridade para-imperial.
bora dentro desse sistema senhorial emergente se sobrepuseram direi- O shogunato, que chegou a ser denominado Bakufu ("tenda" ou quar-
tos de acesso à produção (principalmente, é claro, arroz) que foran tel-general militar), a princípio controlava a lealdade de quase 2 mil
adquiridos por camadas intermediárias de administradores ou bailioa ín "chefes de família" ou súditos pessoais de Yoritomo, e apro-
A organização interna dos feudos japoneses foi grandemente influen j priou ou confiscou muitos shõen para seu uso. Nas províncias, nomeou
ciada pela natureza da rizicultura, ramo básico da agricultura, N& governantes militares ou shugo e intendentes de região ou jitõ, escolhi-
havia um sistema de três campos do tipo europeu, e os servos erai dos entre seus servidores. Na prática, os primeiros se tornaram o poder
comparativamente insignificantes, dada a ausência de criação. As fa| dominante local em suas regiões, enquanto abaixo deles os últimos se
xás dos camponeses eram menores do que na Europa e os aldeões et incarregaram do recolhimento de tributos dos feudos shõen r sobre os
menor número, em meio a uma grande densidade da população rural] quais eles gradualmente chegaram a adquirir crescentes direitos shiki
escassez de terras. Acima de tudo, não havia um sistema de apropri" próprios, às expensas de seus proprietários anteriores.5 O novo entre-
cão real dentro da propriedade: os shiki, ou direitos divisíveis de apr jzamento shugo-jitõ, origem do shogunato e por ele criado, signifi-
priação do produto, eram recolhidos uniformemente do total da prod &u uma forma preliminar do sistema feudal: funções repressivas e fis-
cão do shoen.2 Entrementes, no interior do sistema político, a arin )tis foram por ele delegadas aos seguidores bushif em troca de títulos
cracia da corte ou kuge desenvolveu uma refinada cultura civil na ca** rendimento da terra. "Cartas de confirmação" formais garantiam
tal, onde a casa Fujiwara conseguiu uma prolongada ascendência llreitos feudais locais tanto aos arrendatários como aos homens em
bre a própria dinastia imperial. Mas, fora de Kioto, a administre' fmas. 6 A legalidade e a burocracia imperiais, no entanto, ainda sub-
imperial abriu cada vez mais espaço ao declínio. Ao mesmo teu Itiram: o Shogun era tecnicamente indicado pelo imperador, os shõen
uma vez desaparecido o alistamento compulsório, as tropas armi irmaneceram submetidos à lei pública e o grosso da terra e da popu-
nas províncias gradualmente se transformaram em apêndices de l çfto continuaram sob a velha administração civil.
nova nobreza militar de guerreiros samurais ou bushi, que se tornai Financeira e militarmente enfraquecido pelos ataques mongóis no
importantes pela primeira vez no decorrer do século XI.3 Tanto os * fiai do século XIII, o governo Kamakura finalmente desmoronou no

(2) Para uma análise comparativa dos shõen, ver Joüon dês Longrais, f,"J (4) M. Shinoda, The Founding of the Kamakura Shogunàte, 1180-1185, Nova
l'Ouest, Instiíutions duJapon et deVOccident Comparées, Paris, 1958, pp. 92-103.! Vque, 1960, pp. 112-3,141-4.
(3) As origens do bushi estão delineadas em J. W, Hall, Government and J (5) Ver a ampla discussão do/fóõ em Hall, op. cit., pp. 157-8f 182-90.
Power inJapan 500-1700, Princeton, 1966, pp. 131-3. (6) Shinoda, op. cit., p. 140.
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conflito civil. Foi durante o shogunato Ashikaga, que o sucedeu, que amplas do que as suas terras enfeudadas, e de modo algum todos os
sobreveio o próximo e decisivo passo para a completa feudalização da bushi dentro delas eram seus súditos pessoais.
sociedade e do poder japoneses, no decorrer do século XIV. O shogu- Foi o subseqüente colapso do shogunato Ashikaga após a insur-
nato foi então transferido para a própria Kioto e abolida a remanes- reição das Guerras Onin (1467-77), que finalmente dissolveu os últimos
cente autonomia da corte: a dinastia sagrada e a aristocracia kuge fo- vestígios da herança administrativa Taihõ e completou o processo de
ram privadas da maioria de suas terras e riquezas, e relegadas a papéis expansão do feudalismo no campo. Em meio a uma onda de anarquia
puramente cerimoniais. A administração civil nas províncias foi com- em que os "inferiores dominaram os superiores", os shugo regionais
pletamente eclipsada pelos governos militares shugo. Mas, ao mesmo foram depostos a partir de baixo por súditos usurpadores — muitas
tempo, o próprio shogunato Ashikaga era mais fraco que seu prede- vezes seus ex-representantes — e os grupos de shõen e jurisdições pro-
cessor Kamakura: em conseqüência, os próprios shugo tornaram-se vinciais sobre os quais eles reinaram desapareceram completamente.
cada vez mais senhores regionais sem freios, absorvendo os jitõ, arre- Os aventureiros surgidos na guerra da nova era Sengoku adquiriram
cadando suas próprias corvéias e anexando metade dos rendimentos seus próprios principados, que daí em diante organizaram e domina-
dos shõen locais à escala da província mais ampla; às vezes até "rece- ram como territórios puramente feudais, ao passo que se desintegrou
bendo" os shõen inteiros definitivamente de seus proprietários absen- todo poder real central no Japão. Os daimyõ, ou nobres do final do
teístas.7 Agora se desenvolvera um verdadeiro sistema feudal ou chi- século XV ou do início do XVI, controlaram domínios compactos, em
gyÕ, que num primeiro momento representou uma fusão direta de su- que todos os guerreiros eram seus súditos ou vassalos de retaguarda, e
jeição e domínio feudais, serviço militar e arrendamento condicional: todas as terras eram sua propriedade suserana. Os direitos divisíveis
os próprios shugo tanto possuíam esses feudos como os distribuíam a shiki foram concentrados em unidades chigyõ singulares. A feudali-
seus seguidores. A adoção da primogenitura dentro da classe aristo- zação foi territorialmente mais completa do que na Europa medieval,
crática consolidou a nova hierarquia feudal no interior do campo.8. Os pois as terras alodiais eram desconhecidas no campo. Os servidores
camponeses em posição inferior foram submetidos a uma degradação samurais prestaram juramento de lealdade militar a seus senhores e
correspondente, assim como sua mobilidade foi restringida e suas obri- receberam feudos inteiros deles (concessões de terra junto com direitos
gações aumentadas: os guerreiros rurais subalternos do estrato bushi de jurisdição).lo/ A enfeudação era calculada em termos de "aldeias"
estavam numa posição melhor para extorquir o excedente dos produ- (mura, unidades administrativas maiores do que as efetivas povoações)
tores diretos do que os nobres kuge absenteístas estiveram. Houve uma e os moradores foram submetidos à supervisão direta dos bushi. Desen-
expansão da produção de mercadorias no campo, especialmente nas volveram-se cidades-castelos e subfeudos nos domínios daimyõ, que
regiões centrais em torno de Kioto, onde estava concentrada a fabri- foram regulados pelas novas "leis dinásticas" feudais que codificavam
cação de saque, e cresceu o volume da circulação monetária. A produ- as prerrogativas de seu soberano e a hierarquia das dependências pes-
tividade rural aumentou com melhores instrumentos agrícolas, intensi- soais abaixo dele. O vínculo entre o senhor e o súdito no feudalismo
ficou-se o uso de tração animal e a produção agrária se elevou vertigi- japonês permaneceu caracterizado por duas peculiaridades. O vínculo
nosamente em muitas áreas.9 O comércio externo se expandiu, en- pessoal entre senhor e súdito era mais forte do que o vínculo econômico
quanto guildas de artesãos e comerciantes, de um tipo similar às da do servo à terra: a vassalagem tendeu a predominar sobre o domínio
Europa medieval, desenvolveram-se nas cidades. Mas a estrutura im- feudal dentro da própria relação feudal.11/ Ao mesmo tempo, a relação
perial arcaica ainda se manteve, embora agora solapada pelas novas entre o senhor e o súdito era mais assimétrica do que na Europa. O
hierarquias feudais, sob um shogunato central relativamente frágil. As componente contratual da vassalagem era muito mais fraco; a vassala-
jurisdições governamentais dos shugo continuaram a ser muito mais

(10) Para uma transcrição textual de um juramento de súdito e de concessão de


(7) H. P. Varley, The Õnin War, Nova Iorque, 1967, pp. 38-43. terra nessa época, ver Hall, Government and Local Power in Japan, op. cit., pp. 253-4. A
(8) /í/em,pp.76-7. organização feudal Sengoku é descrita genericamente, pp. 246-56.
(9) Hall, Japan from Prehistory to Modem Times, op. cit., p. 121. (11) Esta característica é bastante acentuada por Joüon, op. cit., pp. 119-20, 164.
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gem tinha mais um caráter semifamiliar e sagrado do que legal. A para estabelecer o controle do Japão central. Aniquilou o militarismo
noção senhorial de "delito grave" ou quebra do vínculo pelo senhor era budista, destruiu a independência das cidades mercantis e conquistou
desconhecida: também não existiram domínios múltiplos. A relação o domínio de um terço do país. O formidável trabalho de conquista íoi
propriamente feudal era, portanto, mais unilateralmente hierárquica; completado por Toyotomi Hideyoshi, comandando gigantescos exérci-
sua terminologia foi tomada de empréstimo da autoridade paterna e do tos equipados com mosquetes e canhões, e composto de um bloco de
sistema de parentesco. O feudalismo europeu sempre foi abundante em forças daimyõ aliadas, reunidas sob sua ordem!5' O resultado da sujei-
disputas interfamiliares e caracterizado por extrema litigiosidade; o ção de Hideyoshi de todos os outros nobres a sua própria autoridade
feudalismo japonês, entretanto, não só careceu de qualquer tendência não foi, entretanto, uma restauração do Estado centralizado desapa-
legalista, mas seu arranjo quase-patriarcal tornou-o mais autoritário recido da tradição Taihõ. Foi mais uma reintegração do mosaico de
pelos direitos paternos extensivos de adoção e deserdação, que efetiva- autoridades regionais num sistema feudal unitário, pela primeira vez.
mente reprimiram a insubordinação filial do tipo comum na Europa.12 Os daimyõ não foram despojados de seus domínios, mas foram por sua
Por outro lado, o grau de bem-estar feudal, com seu prêmio sobre o vez vassalizados ao novo soberano, de quem eles doravante mantiveram
valor e a habilidade dos cavaleiros armados, era tão inteiramente no- seus territórios como feudos e para quem eles outorgaram as famílias
tório como na recente Europa medieval durante essa época. Era cons- como penhor por sua lealdade. A dinastia imperial foi mantida como
tante a luta feroz entre principados daimyõ rivais. Além disso, nos um símbolo religioso de legitimidade, acima e à parte do sistema ope-
espaços deixados pela fragmentação política do Japão, cidades mer- racional de suserania feudal. Uma nova inspeção cadastral estabilizou
cantis autônomas reminiscentes das da Europa medieval — Sakai, Ha- ] o sistema de propriedades rurais, consolidando a pirâmide de autori-
kata, Otsu, Ujiyamada e outras — tiveram condições de aparecer: o] dade reorganizada sobre ele. A população foi dividida em quatro or-
porto de Sakai viria a ser chamado de "Veneza" oriental pelos viajantet] dens fechadas — nobres, camponeses, artesãos e comerciantes. Os
jesuítas.13 As seitas religiosas criaram seus próprios enclaves armad bushi foram retirados das aldeias e congregados nas cidades-castelos de
em Kaga e Noto no mar do Japão. Mesmo as comunas rurais rebeldeif icus daimyõ, como homens de armas disciplinados prontos para desen-
governadas por uma pequena nobreza dissidente e apoiada pelos volvimento militar imediato. Seus números foram oficialmente regis-
poneses rebeldes, logo apareceram: a mais notável se estabeleceu trados e a amplitude da classe samurai foi doravante fixada em torno
própria região central de Yamashiro, onde a comercialização criar^ de 5 a 7 por cento da população, um estrato de apoio militar compa-
dívidas críticas entre a população rural.14 A agitação dos tempos ai rativamente amplo. Os camponeses, em prova do que digo, foram pri-
mentou ainda mais com o impacto das armas de fogo, técnicas e ide vados de todas as armas, ligados à terra e juridicamente forçados a
européias depois da chegada dos portugueses no Japão, em 1543. entregar dois terços do seu produto aos seus senhores.16 As cidades
Na segunda metade do século XVI, uma série de guerras civis mi autônomas das eras Ashikaga e Sengoku foram dominadas e a classe
sivas entre os principais potentados daimyõ levaram a uma unificaçl dos comerciantes proibida de adquirir terras (assim como os samurais
vitoriosa do país por sucessivos comandantes militares — Nobuna foram excluídos do comércio). Por outro lado, as cidades-castelos dos
Hideyoshi e leyasu. Odo Nobunaga forjou a primeira coalizão regioí próprios nobres feudais cresceram prodigiosamente nesse período. O
comércio se desenvolveu rapidamente, sob a proteção dos daimyõ, cu-
jos quartéis-generais castelares proveram os núcleos de uma rede de
(12) Ver os penetrantes comentários de Joüon, op. cit., pp. 145-7, 395-6. De cidades vastamente ampliada no Japão. Com a morte de Hideyoshi, o
observado, no entanto, que apesar do viés terminalógico do feudalismo japonês voltl poder supremo foi conquistado por Tokugawa leyasu, um daimyõ do
para as relações de pseudoparentesco, na prática a vassalagem era considerada um <
culo de lealdade mais seguro do que a consangüinidade pelos senhores baronli
época: significativamente, ramos de famílias de uma fronteira senhorial foram
mente assimilados Aostatus de súditos. Ver Hall, op. cit., p. 251.
(13) Para uma análise de Sakai, ver G. Sansom, A History ofJapan 1334*1{ (15) "A vitória de Hideyoshi não representou uma verdadeira unificação mas a
Londres, 1961, pp. 189, 272-3,304-5. conquista do Japão por uma liga daimyõ do país inteiro", Hall, op. cit., p. 284.
(14) As circunstâncias que produz»ai.i i comuna Yamashiro são descrit (16) Sansom comenta que a real proporção reunida era próxima a dois quintos,
Varley, op. cit., pp. 192-204. por causa da ampla evasão: A History ofJapan 1334-1615, p. 319.
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bloco Toyotomi original, que mobilizou uma nova coalizão de senhores giam outros 25 por cento da superfície do Japão. Os fudai proveram
para derrotar seus rivais na batalha de Sekigahara em 1600 e lornou-se a maioria do alto funcionalismo da administração Bakufu, cujos es-
Shogun em 1603. leyasu fundou o Estado Tokugawa que duraria 250 calões mais baixos eram recrutados nos hatamoto, ao passo que as prin-
anos, ao longo da época da revolução industrial na Europa. A estabi- cipais casas colaterais foram excluídas do próprio governo shogunal,
lidade e longevidade do novo regime foram bastante fortalecidas pelo como potencialmente mais poderosas em seu próprio direito, embora
fechamento formal do Japão a praticamente todo contato com o mundo pudessem agir como consultores dele. O próprio shogunato gradual-
exterior: um expediente inspirado inicialmente no medo bem-fundado mente passou por um processo de "simbolização" comparável ao da
de que as missões católicas que tinham se estabelecido no Japão era própria linhagem imperial. Tokugawa leyasu tampouco deslocou a di-
uma ponta de lança ideológica para a infiltração militar e política eu- nastia imperial, como fizeram seus predecessores Nobunaga e Hideyo-
ropéias, O efeito do rigoroso insulamento do pais foi, naturalmente, shi: ^se há alguma diferença, ele restaurou cuidadosamente mais da
isolá-lo de quaisquer choques ou distúrbios externos durante os pró- aura religiosa que a circundava, ao mesmo tempo que segregou tanto o
ximos dois séculos e petrificar as estruturas estabelecidas por leyasu imperador como a corte nobre kuge mais completamente do que nunca
depois de Sekigahara. de qualquer poder secular. O monarca era uma autoridade divina, re-
O shogunato Tokugawa impôs a unidade do Japão, sem centra- legado a funções espirituais em Kioto, inteiramente divorciadas da
lismo. Ele de fato estabilizou uma espécie de condomínio entre o re- condução dos assuntos políticos. A dualidade residual dos sistemas im-
gime shogunal suserano, baseado na capitai Tokugawa de Edo, e os perial e shogunal em um aspecto forneceu uma espécie de correlato
governos daimyõ autônomos em seus feudos provinciais. Os historia- atenuado da separação entre Igreja e Estado dentro do feudalismo eu-
dores japoneses denominaram, por conseguinte, a época de sua domi- ropeu, devido à aura religiosa dos primeiros: sempre houve potencial-
nância como período Baku-han, ou combinação do poder do Bakufu — mente duas fontes de legitimidade no Japão na era Tokugawa. Em
o complexo de governo Tokugawa — e o han, ou casas baroniais em outros aspectos, entretanto, como o imperador era também um sím-
seus próprios domínios. Este sistema híbrido foi integrado pela origem bolo político, esta dualidade reproduziu a característica fissurada da
dual do próprio poder shogunal. Por um lado, o shogunato possuía soberania de qualquer feudalismo como um todo. O Shogun dominava
seus próprios domínios Tokugawa, as chamadas terras tenryõ, que em nome do imperador, como seu delegado, através de uma ficção
atingiram cerca de 20 a 25 por cento do país — um bloco bem mais oficial que institucionalizou o "governo atrás da cena". A dinastia To-
amplo do que o possuído por qualquer outra linhagem feudal —, e kugawa, que fornecia os sucessivos Shoguns que formalmente contro-
comandava estrategicamente as planícies e costas centrais do Japão lavam o aparelho de Estado Bakufu, entretanto, por fim deixou de
oriental. Pouco mais da metade destas eram diretamente administra- exercer a autoridade pessoal entre eles mesmos: após várias gerações o
das pelo próprio aparelho Bakufu; o resto foi concedido como feudos poder político substantivo refluiu do Conselho Shogunal de rõjü, com-
menores aos hatamoto ou "guias" da casa Tokugawa, do qual eram posto de nobres recrutados no seio das linhagens fudai — em um se-
cerca de 5 mil ao todo.17 Além disso, o shogunato podia contar, em gundo grau de "governo atrás da cena".18 A burocracia shogunal era
primeiro lugar, com as vinte ou mais linhas colaterais Tokugawa ou vasta e amorfa, com ampla confusão de funções e pluralidade de ocu-
senhores shimpan, que foram chamados a prover sucessores ao shogu- pações dentro dela. Tenebrosos grupos verticais manobravam por car-
nato, e, em segundo, os numerosos pequenos senhores que foram leais gos e proteção dentro de seus mecanismos encobertos. Em termos das
súditos regionais de leyasu, anteriormente a sua ascensão ao poder su- funções, metade da burocracia era civil e metade militar.
premo. Estes últimos compuseram os chamados fudai ou "casa" dai- O governo Bakufu teoricamente podia solicitar um tributo feudal
myõ: havia em torno'de 145 delas no século XVIII, e suas terras abran- de 80 mil guerreiros montados, composto de mais ou menos 20 mil sol-

(17) A. Craig, Ckõshü in the Meiji Restoration, Cambridge, EUA, 1961, p. 15. (18) As sucessivas fases desse processo dentro do shogunato são cuidadosamente
A terra no Japão foi oficialmente tributada de Hideyoshi em diante, conforme seus cam- traçadas em C. Totman, Politics in the Tokugawa Bakufu 1600-1843, Cambridge, ELA,
pos de arroz em koku (em torno de cinco alqueires). 1967, pp. 204-33.
442 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 443

dados e chefes, mais seus súditos de retaguarda: na prática, seu ver- tros oficiais do shogunato. Não havia taxação econômica dos domínios
dadeiro potencial armado era muito menor, e repousava na solidez da han, mas podiam ser requisitadas contribuições especiais deles pelo
lealdade dos contingentes fudai e shimpan, O efetivo de tempo de paz Bakufu, para despesas extraordinárias. Este conjunto de controles im-
de seus regimentos era de cerca de 12200.19' A rereita do shogunato era ponente e inquisitorial surgiu para dar completa supremacia política
basicamente derivada dos campos de arroz de seus próprios domínios no Japão ao shogunato Tokugawa. Na verdade, seu poder real foi sem-
(inicialmente uns dois terços de sua receita total),20 acrescida de seu pre menor do que sua soberania nominal e o hiato efetivo entre os dois
monopólio das minas de ouro e prata, dos quais ele cunhava moedas aumentou ao longo do tempo. O fundador da dinastia, leyasu, derro-
(uma posse declinante do século XVIII em diante); mais tarde, quando tara os senhores rivais do sudoeste em Sekigahara: não os destruíra. Os
cada vez mais tendeu a dificuldades financeiras, recorreu a deprecia- daimyõ eram cerca de 250 a 300 sob o shogunato Tokugawa. Destes,
ções freqüentes da moeda corrente e empréstimos compulsórios ou con- cerca de noventa representavam tozama ou casas "de fora'*, que não
fiscos da riqueza mercantil. A extensão tanto de seu exército como de tinham sido súditos de Tokugawa anteriormente e muitos dos quais
seu tesouro era então determinada pelos limites do território dominial lutaram contra leyasu. As casas tozama eram vistas como potencial e
da própria casa Tokugawa. Ao mesmo tempo, entretanto, o shogunato tradicionalmente hostis ao shogunato e foram rigorosamente excluí-
formalmente exercia estreitos controles externos sobre os daimyõ fora das de participação no aparelho Bakufu. Incluíam a grande maioria
das fronteiras de sua própria jurisdição direta. Todos os senhores dos dos maiores e mais ricos domínios: dos dezesseis maiores han, não
domínios han eram, de fato, seus principais arrendatários; eles eram menos do que onze eram tozama?2 Estes estavam localizados nas re-
investidos em seus feudos pelos Shogun, como seus súditos. Seus terri- giões periféricas do país, no sudoeste e no nordeste. Todas as casas
tórios em princípio podiam ser revocados ou transferidos, embora essa tozama respondiam por cerca de 40 por cento da terra no Japão. Entre-
prática tenha deixado de funcionar nas últimas fases da era Tokugawa, tanto, na prática, sua riqueza e poder se tornaram mais temíveis do que
quando os domínios han se tornaram efetivamente hereditários.21 A suas listagens oficiais nos registros Bakufu revelavam. Pouco antes do
habilidade política da união shogunal ao mesmo tempo procurou sujei- fim da era Tokugawa, o han Satsuma controlava 28 mil sâmurais ar-
tar as principais linhagens baroniais à dinastia Tokugawa. Os daimyõ mados, ou duas vezes o que o regime oficial o permitia; o han ChÕshü
foram, além disso, obrigados a manter uma residência alternativa na concentrava 11 mil, de novo mais do que se julgava que possuísse; en-
capital Bakufu de Edo, para onde eles mesmos tinham de se deslocar a quanto as casas fudai leais estavam geralmente abaixo de sua força
cada dois anos ou seis meses, e penhores familiares para trás quando nominal e o próprio shogunato na prática podia pôr em campo somente
voltavam a seus feudos. Esse sistema, chamado sankin-kõtai, era des- cerca de 30 mil guerreiros no início do século XVIII — menos da me-
tinado a assegurar uma vigilância permanente sobre a conduta dos no- tade do seu alistamento teórico.23 Ao mesmo tempo, as terras mais
bres regionais e impedir ações independentes deles em suas cidadelas. novas nos longínquos domínios tozama abrangiam mais superfícies
Ele era secundado por um amplo sistema de informantes e inspetores, desvalorizadas para conversão à rizicultura do que os domínios tenryõ
que forneciam um serviço de inteligência para o shogunato. Os deslo- mais antigos do próprio shogunato no centro do país. A rica planície
camentos ao longo das principais estradas reais eram estritamente po- Kanto, a mais desenvolvida área no Japão, era controlada pelo Bakufu \
liciados pelo uso de passaportes internos e barricadas; ao mesmo tempo mas exatamente as mais novas culturas comercializadas que o caracte-
que o transporte marítimo estava submetido aos preceitos governa- rizaram tenderam a burlar a tradicional arrecadação fiscal Tokugawa,
mentais que proibiam a construção de embarcações além de um certo baseada em unidades de arroz. Algumas das taxas dos campos tozama,
tamanho. Aos daimyõ era permitido manter um único casteto-sede e
limites máximos sobre seus séquitos armados eram fixados nos regis-
(22) Craig, op. cit., p. 11.
(23) Craig, op. cit., pp. 15-6; Totman, op. cit., pp. 49-50. A origem da proporção
excepcionalmente alta de sâmurais nos campos tozama do sul ocidental reside no aldea-
(19) Totman, ap. cit., pp. 45,50. mento pós-Sekigahara, quando leyasu reduziu drasticamente os domínios de seus inimi-
(20) P. Akamatsu, Meiji 1868: Révolution et Contre-Révolution au Japon, Paris, gos. O resultado foi concentrar seus servidores em áreas bem menores. Os senhores to-
1968, p. 30. zama, por sua vez, encobriam a produção real de suas terras a fim de minimizar a
(21) Hall, Japanfrom Prehistory to Modem Times, p. 169. proporção das reduções ordenadas pelo Bakufu.
444 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 445

portanto, finalmente chegaram a ser mais altas do que as dos domínios casa daimyõ chegou a adquirir sua própria burocracia, provida de sú-
shogunais?4 Embora ciente da discrepância entre a tributação nominal ditos samurais e dirigida por um conselho de servidores superiores ou
do arroz pelos campos tozama e sua produção real, que em alguns kashindan, que, como o conselho rojü no interior do shogunato, fre-
casos subsistiu do início do período Baku -han, a interrupção da autori- qüentemente exercia o poder efetivo em nome do próprio senhor do
dade shogunal nas fronteiras han impediram Edo de corrigir a situa- han, que na maioria das vezes se tornaram chefes nominais.25 A pró-
ção. Além disso, quando a agricultura comercializada atingiu as lon- pria classe bushi foi então estratificada num complexo sistema hierár-
gínquas regiões do Japão, os governos han mais sólidos e vigorosos ti- quico hereditário, do qual somente as categorias superiores forneciam
veram condições de estabelecer lucrativos monopólios locais de produ- os funcionários mais altos dos governos han. Um outro resultado da
ções comerciais (tal como açúcar ou papel), aumentando as rendas burocratização dos samurais foi torná-la uma classe educada, com uma
tozama, enquanto a receita Bakufu de mineração estava decrescente, lealdade crescentemente impessoal ao Aaw.como um todo, mais do que
A força econômica e militar de qualquer daimato estavam estreitamente à figura do daimyõ — ainda quê revoltas contra os últimos fossem pra-
entrelaçadas, pois os guerreiros samurais tiverayn de ser sustentados ticamente desconhecidas.
pelas rendas do arroz. A posição material das grandes casas tozama Na base do conjunto do sistema feudal, os camponeses eram ju-
era portanto muito mais pujante do que imediatamente pareceu e au- ridicamente ligados à terra e proibidos de migrar ou trocar suas pro-
mentou mais ainda com o passar do tempo. priedades. Estatisticamente, a média das faixas camponesas era extre-
Dentro de seus domínios, além disso, todos os daimyõ — fossem mamente pequena — cerca de dois a três acres — e os tributos sobre ela
tozama, shimpan ou fudai — comandavam uma autoridade imode- pertenciam aos senhores e chegaram a cerca de 40 a 60 por cento do
rada: o mandado direto do shogunato cessava nas fronteiras de seus produto no início da era Tokugawa; este declinou para 30 a 40 por
feudos. Eles legislavam, administravam justiça, arrecadaram taxas e cento perto do fim do shogunato?6 As aldeias eram coletivamente res-
mantinham tropas. O centralismo político dos daimyõ era efetiva- ponsáveis por seus tributos, que em geral eram pagos em espécie (em-
mente maior dentro de seus han do que o do shogunato em suas terras bora as conversões em dinheiro estivessem aumentando) e recolhidos
tenryo, porque não era mais mediatizado pela subenfeudação. Inicial- pelos funcionários fiscais dos daimyõ. Como os samurais não mais de-
mente, os territórios han foram divididos em domínios daimyõ e em sempenhavam funções senhoriais, todas as relações diretas entre cava-
feudos subordinados a seus servidores armados. No decorrer da era leiros e camponeses no campo foram eliminadas, excetuando a da ad-
Tokugawa, no entanto, houve um aumento regular no número de sa- ministração rural pelos magistrados han. A longa paz da era Toku-
murais dentro de todos os han, que eram predominantemente remune- gawa, e os métodos de tributação de extração do excedente fixados nela
rados em arroz e não submetidos à terra como tal. No final do século permitiram uma notável elevação da produção e da produtividade
XVIII, praticamente todos os servidores bushi fora do próprio território agrárias no primeiro século após a instalação do shogunato. A maioria
shogunal recebiam salários em arroz dos celeiros dominiais e a maioria das reclamações por terra foram garantidas, com o encorajamento ofi-
residia nos castelos-cidades de seus senhores. Esta mudança foi facili- cial ao Bakufu, e houve uma difusão crescente de implementos agrí-
tada mais pela tradicional disputa dentro das relações feudais pelo pólo colas de ferro. A irrigação foi intensificada e a área de campos de arroz
de sujeição do que pelo domínio feudal. O divórcio da classe samurai ampliada; os fertilizantes foram mais largamente usados e se multipli-
da produção agrária foi acompanhado, nos setores Bakufu e han do caram variadas culturas. As estimativas oficiais da área cultivada de
Japão, por seu ingresso na administração burocrática. Pois o aparelho arroz aumentaram em cerca de 40 por cento no século XVII; na ver-
de Estado shogunal, com sua proliferação de postos e de circunscrições dade estas avaliações sempre subestimaram a situação real por causa
incertas, era reproduzido nos territórios dos senhores provinciais. Cada

(25) Entretanto, o papel dos daimyõ variou bastante. No período Bakumatsu, por
exemplo, enquanto o senhor de Chõshü era uma pessoa insignificante, os senhores de
(24) Ver as estimativas aproximadas em W. G. Beasley, "Feudal revenues in Já- Satsuma ou Tosa foram politicamente ativos.
pan at the time of the Meiji Restoration", Journal of Asian Studies, XIX, n? 3, maio de (26) Kohachiro Takahashi, "La place de Ia révolution de Meiji dans 1'histoire
1960, pp. 255-72. agraire du Japon", RevueHistorique, outubro-dezembro de 1953, pp. 235-6.
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da sonegação, e é provável que o total da produção cereal tenha apro- para o mercado, seja indiretamente, através da venda das receitas feu-
ximadamente dobrado nessa época.27 A população aumentou em 50 dais de arroz proveniente do sistema tributário.
por cento, para em torno de 30 milhões em 1721. Posteriormente, no A invasão de uma economia monetária nas aldeias e as agudas
entanto, estabilizou, porque más colheitas e fome doravante diminuí- flutuações conjunturais do preço do arroz inevitavelmente aceleraram a
ram o excedente de trabalho e as aldeias começaram a praticar con- diferenciação social entre o campesinato. Mesmo desde o início da era
troles malthusianos para afastar estes perigos. No século XVIII, por- Tokugawa, a propriedade da terra no interior das aldeias japonesas
tanto, o crescimento demográfico foi mínimo. Ao mesmo tempo, o cres- fora sempre muito desigual. As famílias camponesas ricas tipicamente
cimento do total da produção parece ter diminuído consideravelmente: possuíam propriedades em média mais extensas, que elas trabalhavam
a terra cultivada aumentou em menos do que 30 por cento, conforme com a ajuda de trabalho dependente disfarçado em várias formas de
cálculos oficiais.28 Por outro lado, o último período Tokugawa foi ca- pseudoparentesco ou de relações de costume com camponeses mais po-
racterizado por uma comercialização mais intensiva da agricultura. A bres, enquanto dominavam os-conselhos de aldeia como uma elite ple-
rizicultura continuou a suprir dois terços da produção rural ao longo do béia tradicional.31' A ampliação da agricultura comercial intensificou
fim do shogunato, favorecida pela introdução de debulhadoras aper- muito o poder e a riqueza desse grupo social. Embora a venda ou a
feiçoadas.29 O excedente de arroz extraído pelos tributos senhoriais foi compra de terras por eles fosse tecnicamente ilegal, na prática os cam-
fundamentalmente monetarizado pela classe feudal nas cidades. Ao poneses pobres foram largamente impelidos ao desespero por empe-
mesmo tempo, a especialização regional se desenvolveu rapidamente nhar suas terras aos usurários das aldeias quando as colheitas eram
no curso do século XVIII: colheitas comerciais como as de açúcar, al- baixas e os preços estavam altos, durante o século XVIII. Emergiu,
godão, chá, índigo e tabaco eram produzidas diretamente para o mer- então, dentro da economia rural, um segundo estrato explorador, in-
cado, seu cultivo com freqüência promovido pelo monopólio han de termediário entre o funcionalismo senhorial e o produtor imediato: os
empreendimentos em mercadorias específicas. No final do shogunato, jinushi ou proprietários usurários, que por origem eram habitualmente
é claro que uma proporção excepcionalmente alta da produção agrícola os camponeses mais ricos ou maíorais (shõya) dentro das aldeias, e que
total era comercializada?0 seja diretamente pela produção camponesa com freqüência aumentaram sua riqueza através do financiamento de
novos cultivos, empreendidos por subarrendatários ou mão-de-obra
assalariada. O padrão de propriedade da terra dentro dos mura tor-
nou-se, portanto, regularmente mais concentrado e as ficções de paren-
(27) Ha\l, Japan from Prekistory to Modem Times,op. cit.,p. 201, tesco foram abandonadas por relações de troca entre aldeões. Assim,
(28) Idem, pp. 201-2. As reclamações por novas terras em alguns casos, como na enquanto a renda per capita provavelmente aumentou durante o pe-
Europa feudal ou na China medieva, levaram a uma deterioração das terras mais antigas
e os trabalhos marginais superampliados resultaram em desastrosas inundações. Ver J. ríodo Tokugawa posterior com a estabilização do crescimento demo-
W. Hall, Tanuma Okitsugu, 1719-1788, Cambridge, EUA, 1955, pp. 63-5. gráfico,32 e o estrato jinushi expandiu e prosperou, o resultado líquido
(29) As novas debulhadoras do século XVIII parecem ter sido a única invenção
técnica importante na agricultura japonesa durante esse período. T. C. Smith, The Agra-
rian Origins of Modem Japan, Stanford, 1959, p. 102.
(30) A extensão exata dessa comercialização é um problema de considerável con- (31) Smith, op. cit., pp. 5-64, apresenta uma análise abrangente desse padrão
trovérsia. Crawcour assegura que "pode-se afirmar" que mais da metade e talvez em torno tradicional.
de dois terços do grosso da produção eram mercantilizados de uma forma ou de outra em (32) O desempenho geral da economia agrária no final do período Tokugawa
meados do século XIX. E. S. Crawcour, "The Tokugawa heritage", in: W. Lockwood ainda é um foco de controvérsia. Em seu importante estudo revisando as estimativas
(Org.), The State andEconomic Enterprise in Japan, Princeton, 1965, pp. 39-41. Ohka- oficiais do arroz do começo da era Meiji para diante, Nakamura desenvolve um conjunto
wa e Rozovsky, por outro lado, descontam o exagero dessas altas estimativas enfatizando de hipóteses que indicam um aumento do produto per capita em torno de 23 por cento
que mesmo no começo da década de 1960 somente cerca de 60 por cento da produção durante o período de 1680-1870. Ver J. Nakamura, Agricultura! Production and the
agrária japonesa chegava ao mercado: eles calculam que, excluindo a taxa do arroz, o Economic Development of Japan 1873-1922, Princeton, 1966, pp. 75-8, 90, 137. Foram
índice da real comercialização (camponesa) era provavelmente não mais do que 20 por feitas, entretanto, vigorosas objeçôes a essas afirmações por Rozovsky, que argumenta
cento na década de 1860: "Um século de crescimento econômico japonês", in: Lock- que os índices de produção imputados à rizicultura Tokugawa por Nakamura devem ser
wood, op. cit., p. 57. Deve ser enfatizado que a distinção estrutural entre formas nobres e muito altos, pois excedem os de todos os outros países da Ásia monçônica no século XX:
camponesas de comercialização é crucial para uma compreensão da dinâmica e dos li- H. Rozovsky, "Rumbles in the rice-fields: professor Nakamura versus the official statis-
mites da agricultura Tokugawa. tics", JournalofAsian Studies, XXX, n? 2, fevereiro de 1971, pp. 373-84; e Kee II Choi,
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do mesmo processo foi também destruir gradualmente o lamentável de 60 a 80 por cento dos gastos em dinheiro dos han eram explicados
modo de vida dos camponeses mais pobres. Pontuados por carestias pelas despesas do sankin-kõtai?5 Havia acima de seiscentas residências
ruinosas, os séculos XVIII e XIX assistiram a um número crescente de oficiais ou yashiki mantidas pelos daimyõ em Edo (quase todos os se-
rebeliões populares no campo. Inicialmente de caráter local, estas ten- nhores importantes tinham mais do que três). Estas residências na ver-
deram com o passar do tempo a adquirir uma incidência regional e, dade eram propriedades compósitas espalhadas, e as mais amplas
finalmente, quase-nacional, para a apreensão das autoridades han e podiam atingir quatrocentos acres de extensão, incluindo mansões, ga-
BakufuP As revoltas camponesas da era Tokugawa ainda eram muito binetes, quartéis, escolas, estábulos, ginásios, jardins e até prisões.
aleatórias e desorganizadas para significarem uma ameaça política sé- Talvez um sexto dos séquitos han ficavam permanentemente estacio-
ria ao sistema Baku-han: foram, entretanto, sintomas de uma cumu- nados nelas. A grande aglomeração urbana de Edo era dominada por
lativa crise dentro da velha ordem feudal. um sistema concêntrico dessas residências daimyõ, cuidadosamente
Enquanto isso, no interior de sua economia agrária, como na distribuídas ao redor do vasto* palácio-fortaleza Chiyoda do próprio
Europa feudal, desenvolveram-se importantes centros urbanos, empe- shogunato, no centro da cidade. Ao todo, metade da população de Edo
nhados em operações mercantis e manufatureiras. A autonomia muni- vivia em famílias samurais e não menos do que dois terços da área total
cipal das cidades mercantis das eras Ashikaga e Sengoku foi duravel- da cidade era propriedade da classe militar.36 Para sustentar os custos
mente sufocada até o fim do século XVI. O shogunato Tokugawa não enormes desse sistema de consumo feudal compulsório, os governos
permitiu autonomia urbana: no máximo, conselhos de mercadores ho- han eram obrigados a converter suas rendas-tributos, extraídas da
noríficos foram consentidos em Osaka e Edo, sob o firme controle dos maior parte dos camponeses em espécie, em rendas monetárias. Seu
magistrados Bakufu encarregados da administração das cidades.34 Os excedente de arroz era então comercializado em Osaka, que chegou a
castelos-cidades han naturalmente não produziram nenhum espaço ser um centro de distribuição que foi o complemento comercial do cen-
para instituições municipais também. Por outro lado, a pacificação do tro de consumo de Edo: era aí que comerciantes especializados geriam
país e o estabelecimento do sistema sankin-kotai deu um ímpeto co- armazéns han, forneciam crédito em troca de tributos ou despesas aos
mercial sem precedentes ao setor urbano da economia japonesa. O con- senhores ou aos seus súditos e especulavam com futuras mercadorias.
sumo de bens de luxo pela aristocracia superior rapidamente se desen- A monetarização imposta das rendas feudais, portanto, preparou as
volveu, enquanto abaixo dela a transformação da classe de cavaleiros condições para uma rápida expansão do capital mercantil nas cidades.
em funcionários assalariados aumentou a demanda de bem-estar (as Ao mesmo tempo, a classe chõnin de residentes urbanos era legalmente
burocracias shogunal e han eram congenitamente superinchadas por proibida de adquirir terra agrícola: os comerciantes japoneses da era
causa da classe samurai). Houve uma irresistível drenagem da riqueza Tokugawa, conseqüentemente, impediram que seu capital se apartasse
daimyõ para Edo e Osaka, causada pela construção suntuosa e pelos da propriedade rural, depois dos métodos de suas contrapartes chine-
aparatosos itinerários que acompanhavam as sucessivas residências dos sas.37 A extrema rigidez do sistema de classe criado por Hideyoshi,
grandes senhores feudais na capital Tokugawa. Estimou-se que mais

(35) T. G. Tsukahira, Feudal Controle in Tokugawa Japan: The Sankin-Kõtai


System, Cambridge, EUA, 1966, pp. 96-102. Para uma descrição gráfica dos novos es-
"Technological diffusion in agriculture under the Baku-han system", Journal of Asian tilos de vida urbanos assumidos pelos nobres e comerciantes em Edo, ver Hall, Tanuma
Studies, XXX, n? 4, agosto de 1971, pp. 749-59. Okitsugu.pp. 107-17.
(33) Entre 1590 e 1867, a pesquisa moderna identificou até agora cerca de 2800 (36) Após a Restauração, o governo Mejji divulgou as seguintes cifras da proprie-
insurreições camponesas; outras mil sublevacões populares ocorreram nas cidades: Ko- dade urbana em Edo: 68,6 por cento eram "terra militar", 15,6 por cento pertenciam a
hachiro Takahashi, "La restauration de Meiji au Japon et Ia révolution française", Re- "templos e santuários",, e somente 15,8 por cento eram de propriedade das próprias pes-
cherches Internationales, n? 60, 1970, p. 78. No século XIX, o número de distúrbios in- soas da cidade ou chõnin. Tsukahira, Feudal Controle in Tokugawa Japan, pp. 91, 196.
tercamponeses (como opostos aos anti-senhoriais) aumentou: Akamatsu, Meiji 1868, Totman calcula o tamanho do castelo Chiyoda inteiro em cerca de 1500 metros quadra-
pp.44-5. dos e o complexo administrativo do Fosso Principal apenas em nove acres: Politics in the
(34) C. D. Sheldon, The Rise ofthe Merchant Class in Tokugawa Japan 1600- Tokugawa Bakufu, pp. 92, 95.
1868, Locust Valley, 1958, pp. 33-6, que comenta que os chefes camponeses exerciam (37) A classe chõnin tecnicamente incluía comerciantes (shõnirt) e artesãos (kõ-
mais poder real nas aldeias do que os comerciantes nas cidades. nin). A discussão deles aqui subseqüente refere-se essencialmente aos comerciantes.
450 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 451

então, paradoxalmente encorajou o rápido crescimento de fortunas os chõnin estavam juridicamente à mercê da nobreza, que eles supriam
puramente urbanas. com crédito, e seus ganhos podiam ser arbitrariamente suprimidos por
Assim, lá se desenvolveu no decorrer dos séculos XVII e XVIII benevolências obrigatórias e tributos especiais sobre eles. A lei Toku-
um estrato de comerciantes extremamente prósperos nas maiores ci- gawa era "socialmente leviana e territorialmente limitada": abrangia
dades, que se engajaram em um amplo círculo de atividades comer- apenas os próprios domínios tenryõ, não tinha uma justiça genuína e
ciais. As companhias chõnin nas cidades acumularam capital através da dizia respeito principalmente à repressão do crime. A lei civil era rudi-
comercialização do excedente agrícola (negociando arroz e culturas mentar, administrada pelas autoridades Bakufu de má vontade, como
mais novas como algodão, seda ou índigo), de serviços de transporte uma "questão de cortesia" no litígio entre partes privadas.39A garantia
(a navegação costeira desenvolveu-se intensamente), transações de legal para as transações do capital era, portanto, sempre precária,
troca (havia cerca de trinta moedas correntes importantes em circula- embora as grandes cidades shogunais oferecessem proteção aos comer-
ção nesse período, desde as cédulas emitidas pelos han além das moe- ciantes contra as pressões daimyp, se não Bakufu. Por outro lado, a
das metálicas áoBakufu), manufaturas de têxteis, porcelana ou outras preservação do sistema Baku-han impediu a emergência de um mer-
mercadorias (concentradas em oficinas urbanas ou dispersas nas al- cado doméstico unificado e dificultou o crescimento do capital mercan-
deias através de um sistema de encomenda), empresas madeireiras e de til numa escala nacional, uma vez que os limites das despesas sankin-
construção (freqüentes incêndios obrigaram a uma constante recons- kotai foram atingidos. Barreiras han e guardas de fronteira impediam
trução das cidades) e empréstimos aos daimyõ do shogunato. As maio- a livre movimentação de bens e pessoas, enquanto muitas das princi-
res casas comerciais chegaram a controlar rendas equivalentes às dos pais casas daimyõ seguiam políticas protecionistas de restrição de im-
mais importantes senhores territoriais, para os quais elas atuavam portações. O mais decisivo de tudo para o destino da classe chõnin
como agentes financeiros e fontes de crédito. A expansão da comercia- no Japão, entretanto, foi o isolacionismo Tokugawa. De 1630 em dian-
lização da agricultura, acompanhada por uma migração massiva ilegal te, o Japão foi fechado aos estrangeiros, exceto por um enclave alemão-
para as cidades, permitiu uma ampliação enorme do mercado urbano. chinês na altura de Nagasaki e nenhum japonês podia deixar o país.
Durante o século XVIII, Edo deve ter tido uma população de um mi- Estas fronteiras intransponíveis foram daí em diante uma amarra per-
lhão — maior do que as de Londres ou Paris contemporâneas; Osaka e manente sobre o desenvolvimento do capital mercantil no Japão. Uma
Kioto tinham talvez 400 mil habitantes cada; e talvez um décimo do das precondições fundamentais da acumulação primitiva no início da
total da população do Japão vivia em cidades de mais de 10 mil habi- Europa moderna foi a dramática internacionalização da troca de mer-
tantes?8 Essa rápida vaga de urbanização levou a um efeito de ruptura cadorias e a exploração da Época das Descobertas em diante. Lênin
entre os preços dos bens manufaturados e agrícolas, dada a relativa ri- enfatizou repetida e acertadamente que: "Ê impossível conceber uma
gidez do abastecimento do setor rural, do qual a nobreza derivava sua nação capitalista sem comércio externo, nem há semelhante nação". *
renda. O resultado foi criar dificuldades orçamentárias crônicas tanto A política shogunal de insulamento, de fato, frustrou qualquer possibi-
para os Bakufu como para os governos han, que se endividaram cada lidade de uma transição para o modo capitalista de produção propria-
vez mais com os comerciantes que lhes forneciam empréstimos em troca mente dito dentro da estrutura Tokugawa. Privado do comércio ex-
de suas rendas fiscais. terno, o capital comercial no Japão foi constantemente refreado e reo-
Os profundos déficits da aristocracia no fim da era Tokugawa, rientado na direção de uma dependência parasítica da nobreza feudal e
entretanto, não significaram nenhuma ascensão correspondente da co- de seus sistemas políticos. Seu crescimento notável, apesar desse limite
munidade chõnin dentro da ordem social como um todo. O shogunato insuperável à sua expansão, só foi possível por causa da densidade e da
e os daimyõ reagiram à crise em suas rendas cancelando seus débitos,
extraindo coercitivamente generosas "doações" da classe comercial e
cortando as remunerações em arroz de seus servidores samurais, pois (39) D. F. Henderson, "The evolution of Tokugawa law", ín: J. Hall e M. Jansen,
Studies in the Institutional History of Early Modern Japan, Princeton, 1968, pp. 207,
214, 225-8.
(40) Lênin, Collected Works, vol. 3, p. 65; ver também vol. l, pp. 102-3; voi, 2,
(38) Hall, Japanfrom Prehistory to Modern Times, op. cit., p. 210. pp. 164-5.
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escala dos mercados domésticos, apesar de suas divisões — com 30 mi- mínios da imaginação e da diversão; nunca se estendeu à pesquisa ou à
lhões de habitantes, o Japão em meados do século XVIII era mais crítica. A comunidade mercantil, como uma classe a que faltava auto-
populoso do que a França. Mas não poderia haver "capitalismo num só nomia intelectual ou dignidade corporativa, estava determinada ao fim
país". O isolacionismo Tokugawa condenou os chõnin a uma existên- pelas condições históricas de existência impostas a ela pela autarquia
cia fundamentalmente subalterna. feudal do shogunato.
O grande boom metropolitano causado pelo sistema sankin- A imobilidade do próprio Bakufu, por sua vez, perpetuou o para-
kõtai chegou ao fim no início do século XVIII, junto com a diminuição doxo estrutural do Estado e da sociedade a que o shogunato dera nas-
gradual do crescimento da população como um todo. Os restritivos cimento. Pois diferentemente de qualquer variante de feudalismo na
monopólios oficiais foram autorizados pelo shogunato em 1721. Desde Europa, o Japão Tokugawa combinou um parcelamento notavelmente
cerca de 1735, a construção e a expansão estacionou nas grandes ci- rígido e estático da soberania com uma circulação de mercadorias de
dades Bakufu^ A vitalidade comercial, de fato, foi já então deslocada volume e velocidade extremamente altos. A estrutura social e política
dos banqueiros e comerciantes de Osaka para os pequenos atacadistas do país permaneceu comparável à do século XIV na França, no julga-
inter-regionais. Estes, por sua vez, adquiriram privilégios monopolís- mento de um de seus maiores historiadores modernos,43 embora a
ticos pouco antes do fim do século XVIII, e a iniciativa empresarial se magnitude econômica de Edo fosse maior do que a de Londres do sé-
orientou mais visivelmente para dentro das províncias. No início do sé- culo XVIII. Culturalmente, também, o nível educacional global no
culo XIX, foi o estrato de proprietários-comerciantes rurais de'jinushi Japão era notável: talvez 30 por cento da população adulta, e 40 a 50
que se mostrou o mais dinâmico grupo comercial, aproveitando-se da por cento dos homens eram alfabetizados em meados do século XIX.
ausência de restrições ás guildas no campo para implantar indústrias Nenhuma outra região no mundo, exceto a Europa e a América do
nas aldeias, assim como a fabricação de saque ou a manufatura de seda Norte, tinha esses mecanismos financeiros integrados, esse comércio
(que migraram das cidades nessa época). Houve então uma progres- desenvolvido ou essa alta alfabetização. A compatibilidade básica entre
siva difusão do comércio para fora, que estava transformando o campo a política e a economia japonesas na era Tokugawa repousava funda-
no fechamento da era Tokugawa, e não revolucionando as cidades. Pois mentalmente na desproporção entre troca de mercadorias e produção
a própria atividade manufatureira permaneceu extremamente primi- dentro do país: porque, como foi visto, a monetarização do excedente
tiva: havia pequena divisão de trabalho tanto nas empresas urbanas senhoria], que era o motor básico do crescimento urbano, não corres-
como rurais, nenhuma invenção técnica importante e relativamente pondeu a uma escala real da agricultura comercial para os camponeses
poucas concentrações de mão-de-obra. A indústria japonesa, de fato, enquanto tais. Era uma conversão "artificial" de cessões feudais em
era esmagadoramente de caráter artesanal e escassa em equipamentos. espécie, superimposta a uma produção primária que ainda era predo-
O desenvolvimento extensivo do comércio organizado nunca correspon- minantemente de subsistência, apesar de sua crescente auto-orientação
deu a um avanço intensivo dos métodos de produção. A tecnologia in- para o mercado nas últimas fases do shogunato. Foi essa disjunção
dustrial era arcaica e seu aperfeiçoamento alheio às tradições chõnin* objetiva na base do sistema econômico que permitiu internamente a
A prosperidade e a vitalidade da classe comercial japonesa produzirailij conservação da fragmentação jurídica e territorial original do Japão,
uma cultura urbana característica, de grande sofisticação artística* que datava do estabelecimento pós-Sekigahara. As precondições ex-
sobretudo em pintura e literatura. Mas não gerou qualquer desenvolvi^ ternas da estabilidade Tokugawa — inteiramente vital — eram o per-
mento do conhecimento científico ou inovação do pensamento políticc sistente insulamento do Japão em relação ao mundo exterior, que fe-
A criatividade chõnin dentro da ordem Baku-han foi confinada aos de chou-o a contágios ideológicos, rupturas econômicas, disputas diplo-
máticas ou questões militares de quaisquer espécies. Apesar disso,
mesmo no mundo pouco arejado da fortaleza Chiyoda, as tensões da
(41) Sheldon, op. cit., p. 100.
(42) Para esses sucessivos deslocamentos no centro de gravidade comercial sobd
shogunato, ver E. S. Crawcour, "Changes in Japanese commerce in the Tokugawa ;
riod", in: Hall e Jansen, Studies in the Institutional History ofEarly Modem Japan, i (43) Craíg, Chõshü in the Meiji Restoration, p. 33.
«í.,pp. 193-201. (44) R. P. Dore, Educaíion in Tokugawa Japan, Berkeley, 1965, pp. 254, 321.
454 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 455

manutenção de um aparelho de governo "medieval" obsoleto numa Tokugawa, o monopólio de metais preciosos do shogunato fora uma
economia ''inicialmente moderna'* e dinâmica foram se tornando cada vantagem extraordinariamente lucrativa: a produção japonesa de prata
vez mais evidentes no início do século XIX. por volta do século XVII, por exemplo, era de cerca da metade do
Pois o Bakufu foi gradualmente refreado, assim como os damia- volume total das exportações dos Estados Unidos para a Europa, no
tos provinciais, por uma lenta crise da receita: na interseção material apogeu dos comboios espanhóis?8 Mas, no século XVIII, as minas so-
da supremacia e da produtividade, seu sistema fiscal era logicamente o freram inundações e a produção declinou bastante. O Bakufu respon-
elo mais vulnerável do shogunato. O próprio governo Tokugawa, é dia pelo recurso a depreciações sistemáticas das moedas existentes:
entre 1700 e 1854, o volume nominal de moedas correntes em circula-
óbvio, não tinha de sustentar as despesas do sistema sankin-kõtai que
ele impusera aos han. Mas como o próprio fundamento lógico do con- ção emitidas pelo shogunato aumentou em 400 por cento."19 Essas des-
sumo ostensivo envolvido nele era para demonstrar graus de posição e valorizações praticamente chegaram a compensar algo entre um quarto
prestígio dentro da classe aristocrática, os próprios custos voluntários à metade de sua receita anual: como nenhuma moeda sonante compe-
do shogunato eram mesmo necessariamente maiores do que os dos titiva estava entrando no país e a demanda estava expandindo dentro
daimyõ: somente a família imperial, composta de mulheres da corte, da economia como um todo, havia uma inflação de preços relativa-
absorvia uma porção maior do orçamento no século XVIII do que os mente pequena a longo prazo. Não existia nenhuma taxação regular
efetivos de defesa combinados de Osaka e Kioto.45 Além disso, o Bakufu do comércio, mas confiscos importantes e periódicos foram feitos da
tinha de desempenhar determinadas funções quase-nacionais como o classe mercantil do início do século XVIII em diante, quando o shogu-
ápice unitário da pirâmide da soberania feudal no Japão, enquanto ele nato assim o decidiu. Repetidas pequenas quedas orçamentárias e
mesmo dispunha de apenas cerca de um quinto dos recursos de terra do emergências financeiras, contudo, continuaram a inquietar o Bakufu
país: sempre houve, portanto, um desequilíbrio potencial entre suas cujos déficits anuais estavam bem acima da metade de um milhão de
responsabilidades e sua capacidade de tributação. Sua extensa buro- ryõ ouro em 1837-41 ;x ao mesmo tempo que as oscilações de preços a
cracia de servidores bushi era naturalmente mais ampla do que a de curto prazo durante más colheitas pudessem precipitar crises no campo
qualquer han e extremamente custosa para manter. O custo total das e igualmente na capital. Após quase uma década de colapsos da pro-
remunerações de posição e funções de seus súditos abrangia em torno dução, a maior parte do Japão foi assolada pela fome na década de
da metade do orçamento anual, enquanto a corrupção oficial dentro do 1830, embora o grupo rõjü beneficiado tenha em vão se esforçado
Bakufu praticamente tornou-se desenfreada?6 Ao mesmo tempo, o por fazer baixar os preços e estabilizar a receita doméstica. Em 1837,
raio de ação fiscal de seus domínios tendeu a declinar em termos reais, Osaka foi o cenário de uma tentativa desesperada de insurreição ple-
porque rião podia evitar a crescente transformação das taxas de arroz béia, que revelou quão carregado o clima político do país estava se tor-
em dinheiro, que depauperaram seu tesouro devido à taxa de conversão nando. Ao mesmo tempo, o aparelho armado do shogunato fora —
comumente estar abaixo dos preços de mercado e os próprios valores após mais de dois séculos de paz doméstica — drasticamente debili-
monetários estarem decrescendo rapidamente?7 Na fase inicial da era; tado: os obsoletos e incompetentes regimentos dos tenryõ demonstra-
ram-se incapazes de garantir a segurança dentro da própria Edo numa
crise civil;51 enquanto o Bakufu não tinha mais qualquer superioridade
sobre as forças que podiam ser concentradas na tozama han do su-
(45) Totman, Politics in the Tokugawa Bakufu, p. 287. doeste. A evolução militar do feudalismo Tokugawa foi a antítese da do
(46) Para os custos salariais, ver Totman, op. cit., p. 82. Para a corrupção e Of j
montante de negócios, ver a cativante sinceridade de Tanuma Okitsugu, Grande Cama*
reiro do Bakufu no final do século XVÍII: "O ouro e a prata são tesouros mais preciosotl
do que a própria vida. Se uma pessoa traz consigo esse tesouro como uma expressão d* f (48) Vilar, Oroy Moneda en Ia Historia, p, 103.
seu desejo de servir em alguma posição pública, posso assegurar que ela é séria em seuf (49) P. Frost, The Bakumatsu Currency Crisis, Cambridge-EUA, 1970, p. 9.
desejo. A força do desejo de um homem será evidente no tamanho de sua doação". Ha (50) W. G. Beasley, TheMeijiRestoration, Londres, 1973, p. 51.
Tanuma Okitsugu, p. 55. (51) Um sinal notável do arcaísmo militar do shogunato era a continuada pre-
(47) Totman, op. cit., pp. 78-80. O limite legal para a conversão em dinheiro i cedência oficial dada às espadas sobre os mosquetes, apesar de toda a experiência da era
de um terço da taxa, mas a média realmente chegou a ser acima de dois quintos. Sengoku na superioridade das armas de fogo. Totman, op. cit., pp. 47-8.
456 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 457

absolutismo europeu: ocorreu uma diminuição e dilapidação progres- versão armada contra si próprio. Obrigado pelo perigo externo, tornou-
sivas do poder de suas tropas. se cada vez mais incapaz de enfrentar a inquietação interna que suas
A ordem feudal japonesa estava, portanto, já convulsionada por táticas contemporiza dor as provocaram.
urna lenta crise interna no início do século XIX: mas se a economia Economicamente, além disso, o abrupto fim do isolamento japo-
mercantil erodira a estabilidade do velho arcabouço social e institu- nês perturbou a total viabilidade do sistema monetário shogunal: pois
cional, ainda não gerara os elementos de uma solução política para su- como as moedas Tokugawa eram essencialmente de curso forçado,
perá-lo. A paz Tokugawa ainda estava intata em meados do século. com muito menos conteúdo metálico do que seu valor nominal, os co-
Foi o impacto exógeno do imperialismo ocidental, com a chegada da merciantes estrangeiros se recusavam a aceitá-las em paridade com as
esquadra do comodoro Perry em 1853, que repentinamente condensou moedas ocidentais baseadas em pesos médios de prata verdadeiros. O
as múltiplas contradições latentes do Estado shogunal e provocou uma advento do comércio exterior em larga escala, portanto, forçou o Ba-
explosão revolucionária contra ele. Pois a agressiva invasão das arma- kufu a desvalorizar vertiginosamente o conteúdo metálico real de suas
das americana, russa, britânica, francesa e outras nas águas japonesas, moedas e a emitir papel-moeda, enquanto a demanda externa por pro-
exigindo o estabelecimento de relações comerciais e diplomáticas na dutos-chave locais — seda, chá e algodão — se elevou às alturas. O re-
ponta da espada, colocou um nefasto dilema para o Bakufu. Durante sultado foi uma catastrófica inflação doméstica: o preço do arroz quin-
dois séculos, ele sistematicamente instilara xenofobia em todas as clas- ruplicou entre 1853 e 1869,52 causando intensos tumultos populares
ses no Japão como um dos mais sagrados temas da ideologia oficial: nas cidades e nos campos. A burocracia shogunal, embaraçada e divi-
a expulsão total de estrangeiros fora, na verdade, um dos eixos socio- dida, foi incapaz de reagir com qualquer política clara ou decisiva aos
lógicos de sua dominação. No entanto, confrontado agora a uma amea- perigos que então a pressionavam. O lamentável estado de seu aparato
ça militar cujo poder tecnológico estava corporificado nos navios a va- de segurança se revelou quando o único líder resoluto que o Bakufu
por encouraçados que flutuavam na baía de Yokohama, tornou-se ime- produziu em sua última fase, li Naosuke, foi assassinado por samurais
diatamente cônscio de que ela era facilmente capaz de esmagar seus xenófobos em Edo, em 1860;53 dois anos depois, outro atentado obri-
próprios exércitos. Teve então de contemporizar e conceder ao Oci- gou seu sucessor a renunciar. Os feudos tozama do sudoeste — Satsu-
dente as exigências de "abertura" do Japão, para preservar sua própria ma, Chõshü, Tosa e Saga —, por sua posição estrutural sempre anta-
sobrevivência. Ao fazê-lo, entretanto, tornou-se imediatamente vulne- gonistas do Bakufu, foram então encorajados a passar à ofensiva e
rável aos ataques xenófobos internos. As importantes linhagens cola- conspirar por sua derrubada. Seus próprios recursos militares e econô-
terais da própria casa Tokugawa foram fanaticamente hostis à pre- micos, poupados por regimes mais sólidos e eficazes do que o governo
sença de missões estrangeiras no Japão: os primeiros assassinatos de de Edo, foram postos em passo de guerra. As tropas han foram mo-
ocidentais em seu enclave em Yokohama foram com freqüência o tra- dernizadas, ampliadas e reequipadas com armamentos ocidentais; en-
balho de samurais do feudo de Mito, um dos três principais ramos re- quanto Satsuma já possuía o mais amplo quadro de samurais no Japão,
centes da dinastia Tokugawa. O imperador em Kioto, guardião e sím- os comandantes Chõshü recrutaram e treinaram camponeses ricos,
bolo dos valores culturais tradicionais, também se opunha ferozmente para criar uma força de massa capaz, para ser utilizada contra o shogu-
a ter relações com os intrusos. Com o ataque do que todas as facções da nato. As expectativas populares de grandes mudanças foram então dis-
classe feudal japonesa sentiram como sendo uma emergência nacional, seminadas em formas supersticiosas entre as multidões de Nagoya, Osa-
a corte imperial repentinamente se reativou como um pólo de poder ka e Edo, enquanto o apoio tácito de determinados banqueiros chõnin
secundário efetivo e a aristocracia kuge de Kioto logo se tornou um foco conseguiu prover as reservas financeiras necessárias para uma guerra ci-
constante de intriga contra a burocracia shogunal em Edo. O regime vil. As constantes ligações com os kuge descontentes em Kioto assegura-
Tokugawa estava, efetivamente, de novo numa situação impossível. ram aos líderes tozama a cobertura ideológica crucial para a operação
Politicamente, ele apenas podia justificar suas retiradas e concessões
progressivas ante as exigências ocidentais explicando aos daimyõ a in-
ferioridade militar que as tornava indispensáveis. Mas fazê-lo era ad- (52) Frost, op. «V.,p. 41.
mitir sua própria fraqueza e, desse modo, provocar a revolta e a sub- (53) Para esse episódio critico, ver Akamatsu, Meiji 1868, pp, 165-7,
458 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 459

projetada: era nada menos do que uma revolução cujo objetivo formal foi dentro de algumas décadas testada em ação contra um absolutismo
era restaurar a autoridade imperial que fora usurpada pelo shogunato. genuíno. Em 1905, as derrotas russas em Tsushima e Mukden revela-
O imperador, assim, fornecia um símbolo transcendental ao qual todas ram ao mundo a diferença entre os dois. A passagem do feudalismo
as classes podiam teoricamente ser reunidas. Um rápido ataque liber- para o capitalismo no Japão foi efetuada, de uma maneira sem prece-
tou Kioto para as tropas Satsuma em 1867. Com a cidade sob controle dentes, sem interlúdio político.
militar, o imperador Meiji leu uma proclamação esboçada por sua
corte encerrando formalmente o shogunato. O Bakufu, subvertido e
desmoralizado, se mostrou incapaz de qualquer resistência determi-
nada: dentro de algumas semanas, o Japão todo fora dominado pelos
exércitos insurretos tozama e o Estado unitário Meiji fora fundado.
A queda do shogunato significou o fim do feudalismo japonês.
Solapado econômica e diplomaticamente do exterior, uma vez
que a segurança de seu isolamento se fora, o Estado Tokugawa se ar-
ruinou política e militarmente do interior pelo total parcelamento da
soberania que sempre o preservara: a sua falta de qualquer monopólio
das forças armadas, e sua incapacidade de sufocar a legitimidade im-
perial, praticamente o tornaram impotente ante a bem organizada in-
surreição em nome do imperador. O Estado Meiji que o sucedeu pron-
tamente procedeu a um amplo arco de medidas para abolir o feuda-
lismo a partir de cima — o mais radical desses programas já estabele-
cido. O sistema feudal foi liquidado, a ordem de quatro estados des-
truída, a igualdade de todos os cidadãos perante a lei proclamada, o
calendário e a bandeira reformados, um mercado unificado e uma úni-
ca moeda foram criados e a industrialização e a expansão militar siste-
maticamente promovidas. Uma economia e uma política capitalistas
emergiram diretamente da eliminação do shogunato. Os complexos
mecanismos históricos da transformação revolucionária desenvolvidos
pela Restauração Meiji restam ser examinados. Aqui é necessário ape-
nas acentuar que, ao contrário da suposição de alguns historiadores
japoneses,54 o Estado Meiji não foi em nenhum sentido categórico um
absolutismo. Inicialmente uma ditadura emergente do novo bloco do-
minante, logo se mostrou um Estado capitalista autoritário, cuja índole

(54) Ver, por exemplo, o estudo marxista clássico da Restauração, acessível fora
do Japão apenas na Rússia: Shígeki Toyama, Meiji hin, Krushenie Feodalizma v Yapo-
nii, Moscou, 1959, pp. 183, 217-8, 241, 295. Aqui não há espaço para fazer mais do que a
trivial afirmação acima: uma discussão completa do caráter histórico da Restauração
Meiji deve ser reservado a um estudo posterior. O ponto de vista de Lênin acerca da
natureza do vencedor na Guerra Russo-Japonesa pode, entretanto, ser observado. Ele
acreditava que "a burguesia japonesa" infligira "uma derrota esmagadora" sobre a "au-
tocracia feudal" do czarismo: "A Rússia autocrática fora derrotada pelo Japão consti-
tucional". Lenin, Collected Works, vol. 8, pp. 28,52,53.
B. O "modo de produção asiático"
I
Já vimos que Marx rejeitava categoricamente a idéia de que a
índia dos mongóis seria uma formação social feudal — e, por uma
implicação necessária, também a Turquia otomana. Porém esta deli-
mitação negativa, que reservava o conceito de feudalismo para a Eu-
ropa e o Japão, levanta a questão de qual a classificação positiva que
Marx atribuía aos sistemas sócio-econômicos que estes dois Estados tão
bem exemplificavam. Desde os anos 60, a tendência é cada vez mais no
sentido de se atribuir a Marx a opinião de que eles representavam um
padrão específico a que ele dava o nome de "modo de produção asiá-
tico". Esta idéia veio a se tornar o foco de uma ampla discussão inter-
nacional entre marxistas em anos recentes e, à luz das conclusões do
presente estudo, talvez valha a pena ressaltar o contexto intelectual no
qual Marx viveu e escreveu. Conforme já vimos, a justaposição teórica e
o contraste entre estruturas de Estado européias e asiáticas faziam
parte de uma longa tradição que tem início com Maquiavel e Bodin:
originada pela proximidade do poder turco, esta tradição surgiu junta-
mente com o renascer da teoria política enquanto tal no Renascimento,
e daí em diante acompanhou seu desenvolvimento etapa por etapa até o
Huminismo.
Já mencionamos as sucessivas — e importantes — reflexões de
Maquiavel, Bodin, Bacon, Harrington, Bernier e Montesquieu a rés-
462 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 463

peito do próprio Império Otomano, com que a Europa convive íntima e expressamente atribuído à Ãsia na fons et origo de toda a filosofia
inamistosamente a partir do século XV.1 Porém, no século XVIII, a política européia. O iluminismo, que, após as grandes viagens de des-
aplicação das idéias inicialmente concebidas através do contato com a cobrimento e conquista, podia agora abranger mentalmente todo o
Turquia já se havia espalhado mais para o Leste, com a exploração e globo terrestre, estava pela primeira vez em condições de elaborar uma
expansão coloniais, chegando à Pérsia, depois à índia e finalmente à formulação geral e sistemática desta ligação entre despotismo e Ásia.
China. Juntamente com esta expansão geográfica veio uma generaliza- A tarefa foi assumida por Montesquieu, com sua categorizacão teórica
ção conceituai do complexo de características inicialmente percebidas madura de "despotismo oriental". Montesquieu, profundamente in-
ou confinadas na Turquia otomana. Nasceu a idéia de "despotismo'* fluenciado por Bodin e leitor assíduo de Bernier, herdou de seus prede-
político — termo que até então não aparecia no vocabulário das obser- cessores os axiomas básicos: os Estados asiáticos não possuíam proprie-
vações sobre a Turquia feitas por europeus, ainda que a idéia já esti- dade privada estável nem nobreza hereditária, e portanto eram de ca-
vesse presente há muito. A maneira tradicional de designar o sultão ráter arbitrário e tirânico; tais idéias Montesquieu repetiu com toda a
osmanliem Maquiavel, Bodin e Harrington era "Grão-Senhor" — uma força lapidar que lhe era característica. Além disso, o despotismo
extensão imprópria da terminologia do feudalismo europeu para uni oriental não apenas baseava-se no medo abjeto, mas também em uma
Estado turco que se fazia questão de diferenciar explicitamente de to- igualdade aníquiladora de todos os súditos — pois todos eram iguais
dos os sistemas políticos vigentes na Europa. Hobbes foi o primeiro em sua sujeição aos mortais caprichos do déspota. "O princípio do go-
escritor importante a falar em poder despótico no século XVII — elo- verno despótico é o medo (...) uma característica uniforme e geral."4
giando-o, paradoxalmente, por ser a forma normal e apropriada de Esta uniformidade era a antítese sinistra da unidade municipal da an-
soberania. Esta conotação, como seria de se esperar, não foi adotada tigüidade clássica: "Todos os homens são iguais num Estado republi-
por outros autores. Pelo contrário, à medida que o século avançava, cano; também o são num Estado despótico; no primeiro, porque são
por toda a parte o poder despótico era equiparado à tirania; na França, tudo; no segundo, porque não são nada".5 A ausência de uma nobreza
a dinastia dos Bourbons era freqüentemente qualificada de "tirania hereditária, já há muito observada na Turquia, aqui tornava-se algo
turca" na literatura polêmica de seus opositores, a partir da época da muito mais forte: uma condição de servidão patente e igualitária em
Fronda. Aparentemente, foi Bayle o primeiro filósofo a utilizar o con- toda a Ásia. Montesquieu acrescentou mais dois conceitos à tradição
ceito genérico de despotismo enquanto tal, em 1704;2' embora ele pró- que herdou; ambas refletiam especificamente as doutrinas iluministas
prio o questionasse, Bayle implicitamente aceitava que a idéia já se de secularismo e progresso. Argumentava ele que as sociedades asiáti-
havia tornado bastante difundida. cas eram desprovidas de códigos legais, e nelas a religião atuava como
Além disso, a fixação definitiva do conceito de "despotismo" substituto funcional das leis: "Há Estados em que as leis não são nada,
coincidiu com a aplicação ao "Oriente" desde o início. A passagem
canônica central na antigüidade clássica em que aparecia o termo grego
original (uma palavra pouco usada) era uma afirmação famosa de Aris-
(4) De l'Esprit dês Lois, I, pp. 64, 69, Naturalmente, o discurso de Montesquieu
tóteles: "Os bárbaros são, por natureza, mais servis que os gregos, e os sobre o despotismo não era apenas uma teorização sobre a Ásia. Era também um alerta
asiáticos mais servis que os europeus; assim sendo, aceitam o jugo des- cifrado a respeito dos perigos do absolutismo na França, que, se não íosse contido pelos
pótico sem protestar. Tais monarquias são como tiranias, porém são "poderes intermediários" da nobreza e do clero, poderia terminar levando a uma situa-
ção semelhante à do Oriente — é o que Montesquieu dá a entender. Com relação às
estáveis por serem hereditárias e legais"? Portanto, o despotismo era conotações polêmicas do Esprit dês Lois, ver a análise de L. Althusser em Montesquieu
— La Politique et 1'Histoire, pp. 92-7, Embora de modo geral excelente, a analise de
Althusser exagera o aspecto propagandfstico da teoria do despotismo desenvolvida por
Montesquieu, minimizando demais sua demarcação geográfica. Superpolitizar o signi-
(1) Ver acima, pp. 395-430. ficado do Esprit dês Lois é reduzir a obra a uma dimensão puramente local. Na verdade,
(2) R. Koebner, "Despot and despotism: vicissitudes of a political term", The está mais do que claro que Montesquieu levava muitíssimo a sério suas análises do Oriente:
Journalofthe Warburg and Courtauld Institutes, XIV, 1951, p. 300. Este ensaio tam- não eram apenas, nem sequer basicamente, um recurso alegórico, porém um compo-
bém examina a pré-história da palavra na Idade Média, antes que ela fosse banida du- nente integrai de seu projeto de uma ciência global de sistemas políticos, em ambos os
rante o Renascimento por ter um pedigree filológico impuro, sentidos.
(3) Aristóteles, Política, III, ix, 3. (5) De l'Esprit dês Lois, I, p. 81.
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ou nada mais que a vontade caprichosa e arbitrária do soberano. Se uma das bases da economia e filosofia políticas. Adam Smith deu o que
neles as leis da religião fossem semelhantes às leis dos homens, elas tam- foi talvez o próximo passo importante no desenvolvimento da oposição
bém seriam nulas; mas, como uma sociedade precisa de algum princí- já estabelecida entre Ásia e Europa quando, pela primeira vez, a rede-
pio fixo, é a religião que serve a este objetivo"? Ao mesmo tempo, finiu como um contraste entre dois tipos de economia, dominados res-
Montesquieu julgava que estas sociedades eram essencialmente imutá- pectivamente por diferentes formas de produção: "Assim como a eco-
veis: "As leis, costumes e maneiras do Oriente — mesmo os mais tri- nomia política das nações da Europa moderna tem favorecido as manu-
viais, como a vestimenta — hoje são essencialmente os mesmos que faturas e o comércio externo — atividade das cidades — mais do que a
eram mil anos atrás"! agricultura — atividade do campo —, da mesma forma a economia
O princípio explícito por meio do qual Montesquieu explicava a política de outras nações tem seguido um plano diferente, favorecendo
diferença entre o caráter dos Estados europeus e o dos asiáticos era, mais a agricultura do que as manufaturas e o comércio externo. A polí-
naturalmente, geográfico: o clima e a topografia determinavam os dife- tica da China favorece a agricultura mais do que todas as outras ocu-
rentes destinos dos dois continentes. Assim, ele sintetizava suas idéias a
respeito da natureza da Europa e da Ásia numa comparação artistica-
mente vivida: "Na Ásia, sempre encontramos grandes impérios; na são do particularismo feudal — precisamente o motivo pelo qual Montesquieu, um aris-
Europa, eles nunca subsistiram. Ê que na Ásia que conhecemos estão tocrata saudosista, o temia e denunciava. Outro crítico, muito diferente, do Esprit dês
situadas as maiores planícies; e é cortada em maiores porções pelos Lois, que tem sido elogiado por autores recentes, era Anquetü-Duperron, estudioso de
textos sagrados zoroástricos e védicos, que passou alguns anos na índia e escreveu uma
mares e, como está localizada mais ao sul, as fontes aí secam maís obra intitulada Législation Orientale (1778), inteiramente dedicada ao objetivo de negar
facilmente, as montanhas são menos cobertas de neve e os rios menos a existência de despotismo na Turquia, Pérsia e índia, e afirmar a presença de sistemas
caudalosos formam barreiras menores. Na Ásia, o poder deve sempre legais racionais e da propriedade privada nestes países. Montesquieu e Bernier eram
explicitamente criticados (pp. 2-9,12-3,140-2) por haverem afirmado o contrário. Anque-
ser despótico, pois, não sendo a servidão tão extremada, ocorreria logo til-Duperron dedicou seu livro aos "infelizes povos da índia", defendendo seus "direitos
uma divisão que a natureza da região não poderia suportar. Na Eu- espoliados", e acusou as teorias de despotismo oriental elaboradas pelos europeus de
ropa, a divisão natural forma vários Estados de extensão média, nos servirem apenas para dar cobertura ideológica a um colonialismo agressivo e predatório
no Oriente: "O despotismo é o governo destes países, em que o soberano declara-se
quais o governo das leis não é incompatível com a manutenção do Es- proprietário de todos os bens de seus súditos: tornemo-nos este soberano e seremos se-
tado, sendo, pelo contrário, tão favorável, que, sem elas, este Estado nhores de todas as terras do Industão. Tal é o raciocínio da ganância ávida, oculta por
trás de uma fachada de pretextos que devem ser demolidos" (p. 178). Por ter expresso
cairia na decadência e tornar-se-ia inferior a todos os demais. Foi isso tais sentimentos, Anquetil-Duperron foi posteriormente aclamado como um dos primei-
que originou um espírito de liberdade que torna cada parte muito difí- ros defensores da nobre causa do anticolonialismo. Althusser, com certa ingenuidade,
cil de ser subjugada e submetida a uma força estrangeira, a não ser afirmou que Législation Orientale é um panorama "admirável" do "verdadeiro Orien-
te", em oposição à visão de Montesquieu. Dois artigos recentes repetem este elogio: F.
pelas leis e pela utilidade de seu comércio. Pelo contrário, na Ásia reina Venturi, "Despotismo orientale", Rivista Storica Italiana, LXXI1, I, 1960, pp. 117-26,
um espírito de servidão que nunca a abandonou e, em todas as histórias e S. Stelling-Michaud, "Lê mythe du despotismo oriental", Sckweizer Beitrage zur Ali-
desse continente, não é possível encontrar um só traço que marque uma gemeinen Geschichte, Bd 18/19, 1960/1961, pp. 344-5 (que, de modo geral, segue de
perto a posição de Althusser). Na verdade, Anquetil-Duperron era uma figura mais equí-
alma livre; aí nunca se verá senão o heroísmo da servidão"? voca e mais trivial do que tais elogios podem levar a crer, como teriam descoberto estes
A visão de Montesquieu, ainda que contestada por uns poucos autores se tivessem aprofundado suas investigações um pouco mais. Não era um inimigo
contemporâneos,9 foi de modo geral aceita por sua época, e tornou-se do colonialismo por uma questão de princípios, e sim um patriota francês decepcionado e
humilhado com o sucesso do colonialismo inglês na índia, que expulsou os franceses. Em
1782, Anquetil-Duperron escreveu outro livro, L'Inde en Rapport avec VEurope, este
dedicado às "Sombras de Dupleix e Labourdonnais", violenta diatribe em que atacava
(6) Idem,U,p. 168. "a audaz Albion, que usurpou o tridente dos mares e o cetro da índia", e pedia que "a
(7) /item, I, p. 244. bandeira francesa volte a desfraldar-se em majestade nos mares e terras da índia". Pu-
(8) Idem, I, pp. 291-2. blicado em 1798, durante o período do Diretório, este livro afirmava que "o tigre deve ser
(9) O mais notável destes foi Voltaire, que — mais preocupado com os problemas atacado em sua toca", e propunha uma expedição naval francesa para "tomar Bom-
culturais do que com os políticos — vigorosamente contestou o quadro que Montesquieu baim" e desse modo "derrubar o poder dos ingleses além do cabo da Boa Esperança"
pintou do Império Chinês, o qual Voltaire admirava pela benevolência que ele atribuía a (pp. i-ii, xxv-xxvi). Quem lê o verbete hagiográfico do Dictionnaire Historique, que é
seu governo e costumes: o "despotismo esclarecido" era, como já vimos acima, um ideal aparentemente a fonte principal da reputação moderna do autor, não imagina que ele
positivo para muitos dos pkiíosophes burgueses, para os quais ele representava a supres- tivesse escrito tais coisas.
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pações. Afirma-se que na China a condição de um trabalhador do dante tem total liberdade de ação. A China, a Pérsia, a Turquia — a
campo é tão superior à de um artífice quanto, na maior parte da Eu- Ásia, em geral, é cenário de despotismo, e, num sentido mau, de tira-
ropa, a de um artífice é superior à do trabalhador do campo"!0 Smith nia". O Reino Celestial, que despertara sentimentos tão antagônicos
postulou uma nova correlação entre o caráter agrário das sociedades entre os pensadores iluministas, interessava-lhe particularmente en-
asiáticas e africanas e o papel nelas desempenhado pelas obras de en- quanto modelo do que Hegel considerava uma autocracia igualitária.
genharia hidráulica — irrigação e transporte; pois, argumentou ele, "Na China, temos a realidade da igualdade absoluta, e todas as dife-
como o Estado era o proprietário de toda a terra nestes países, ele es- renças existentes só são possíveis em relação a esta administração, e em
tava diretamente interessado no aperfeiçoamento público da agricul- virtude do valor que um indivíduo pode adquirir, permitindo-lhe ocu-
tura. "As obras construídas pelos antigos soberanos do Egito para a par uma posição elevada no governo. Como na China prevalece a igual-
distribuição adequada das águas do Nilo eram famosas na antigüidade, dade, porém sem qualquer liberdade, é necessariamente o despotismo
e as ruínas restantes de algumas delas constituem ainda objeto de admi- a forma de governo. Entre nós, os homens só são iguais perante a lei, e
ração dos viajantes. As obras do mesmo gênero construídas pelos an- quanto ao respeito que se concede à propriedade de cada um; porém
tigos soberanos do Industão para a distribuição mais apropriada das têm eles também muitos interesses e privilégios peculiares que devem
águas do Ganges, assim como de muitos outros rios, embora menos ser garantidos para que se possa ter o que denominamos liberdade.
comentadas, parecem ter sido igualmente importantes. (...) Na China, Mas no Império Chinês estes interesses especiais não gozam de ne-
bem como em várias outras províncias da Ásia, o poder executivo se nhuma consideração por si sós, e o governo é função exclusiva do im-
encarrega tanto da reparação das estradas principais como da manu- perador, que põe em movimento uma hierarquia de funcionários ou
tenção dos canais navegáveis, (...) Pelo que se diz, esse setor da política mandarins. " H Hegel, como muitos de seus predecessores, manifes-
pública é muito bem atendido em todas essas regiões, sobretudo na tava uma certa admiração, ainda que com ressalvas, pela civilização
China, onde as estradas principais e, mais ainda, os canais navegáveis, chinesa. Sua visão da civilização indiana, embora também não despro-
ultrapassam de muito o que se conhece de similar na Europa."11 vida de nuanças, era bem mais negativa. Para Hegel, o sistema de cas-
No século XIX, os sucessores de Montesquieu e Smith seguiram tas adotado na índia era muito diferente de tudo que havia na China, e
linhas de pensamento bem semelhantes. No contexto da filosofia alemã representava um progresso da hierarquia em detrimento da igualdade,
clássica, Hegel estudou a obra de ambos em profundidade, e em seu mas que assim mesmo imobilizava e degradava toda a estrutura social.
livro Filosofia da História reafirmou a maioria das idéias de Montes- "Na China prevalecia uma igualdade entre todos os indivíduos que
quieu a respeito do despotismo asiático, sem escalões ou poderes inter- compuríham o império; conseqüentemente, todo o governo concen-
mediários, em sua linguagem característica. "O despotismo, desenvol- trava-se no centro, na figura do imperador, de modo que os membros
vido em dimensões magníficas", era, no Oriente, a "forma de governo individuais não podiam atingir a independência e a liberdade subjeti-
estritamente apropriada à terra da alvorada da História.'*12 Hegel enu- vas. (...) Sob esse aspecto, na índia faz-se um avanço essencial, a sa-
merou as principais regiões do continente às quais se aplicava esta re- ber: membros independentes ramtficam-se da unidade do poder des-
gra: "Na índia, portanto, o despotismo mais arbitrário, cruel e degra- pótico. Porém as distinções representadas por estas ramificações são
atribuídas à natureza. Ao invés de estimular a atividade de uma alma
enquanto seu centro de união, e espontaneamente realizando esta alma
— como no caso da vida orgânica —, elas se petrificam e tornam-se
(10) An Inquiry into the Nature and Causes ofthe Wealth of Nations, Londres,
1778, II, p, 281. rígidas, e devido a seu caráter estereotipado condenam o povo da índia
(11) Wealth of Nations, II, pp. 283, 340. "Contudo, os relatos sobre essas obras, à mais degradante servidão espiritual. As distinções em questão são as
que têm chegado à Europa, geralmente sSo feitos por viajantes imprecisos e facilmente
impressionáveis, muitas vezes estultos e mentirosos. Se as obras tivessem sido exami-
castas. "1S O resultado foi que, "se constatamos um despotismo moral
nadas por observadores mais inteligentes, e se os relatos tivessem sido feitos por teste-
munhas mais dignas de fé, talvez não pareceriam tão maravilhosos. O relato de Bernier
sobre algumas obras deste tipo no Industão fica muitíssimo aquém daquilo que tem sido (13) Idem, p. 168.
dito sobre elas por outros viajantes mais propensos ao maravilhoso do que Bernier." (14) Idem,pp. 130-1.
(12) Filosofia da História, Londres, 1878, p. 260. (15) Idem,pp. 150-1.
468 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 469

tia China, o que se pode denominar de relíquia de vida política na índia início do estudo, Jones afirmava: "Por toda a Ásia, os soberanos sem-
é um despotismo sem princípios, sem qualquer regra de moralidade e pre detiveram a posse exclusiva das terras de seus domínios, e a pre-
religião".16 Hegel caracterizou a base nuclear do despotismo indiano servaram num estado de singular e inauspiciosa integridade, indivisível
como um sistema de comunidades aldeãs inertes, governadas pelos cos- e forte. Lá, as pessoas são universalmente arrendatários do soberano
tumes hereditários e a distribuição das colheitas após o pagamento de que é o único proprietário; apenas usurpações ocasionais de seus fun-
impostos, sem serem afetadas pelas alterações políticas ocorridas no cionários quebram os elos da cadeia de dependência por algum tempo.
Estado que pairava acima delas. "A renda total que pertence a cada É esta dependência universal em relação ao trono como meio de garan-
aldeia é, como já vimos, dividida em duas partes, uma das quais per- tir o sustento que é a verdadeira base do despotismo generalizado do
tence ao Rajá e a outra aos agricultores, porém partes proporcionais mundo oriental, bem como a base da renda dos soberanos e da forma
são também recebidas pelo Preboste do lugar, o Juiz, o Inspetor de assumida pela sociedade a seus pés"?0 Porém Jones não se satisfazia
Águas, o Brâmane que dirige o culto religioso, o Astrólogo (que é com as afirmativas generalizantes de seus predecessores. Tentou de-
também um Brâmane, e anuncia os dias de bom e mau agouro), o marcar com alguma precisão as quatro grandes zonas nas quais pre-
Ferreiro, o Carpinteiro, o Oleiro, o Lavadeiro, o Barbeiro, o Médico, as valeciam as ryot rents — isto é, impostos pagos pelos camponeses dire-
Dançarinas, o Músico, o Poeta. Este sistema é fixo e imutável, e não tamente para o Estado enquanto proprietário da terra que eles culti-
está sujeito à vontade de quem quer que seja. Todas as revoluções polí- vavam: índia, Pérsia, Turquia e China. A natureza uniforme do sis-
ticas, portanto, são assuntos absolutamente irrelevantes para o hindu tema econômico e do governo político dessas terras diferentes podia ser
17
comum, pois em nada alteram sua condição." Estas formulações, atribuída, julgava Jones, ao fato de que todas elas haviam sido conquis-
conforme veremos, viriam a ter uma influência notável. Hegel concluía tadas pelas tribos tártaras da Ásia Central. "A China, a índia, a Pérsia
repetindo o tema já tradicional da estagnação histórica, que atribuía a e a Turquia asiática, todas localizadas na periferia da grande bacia da
ambos os países: "A China e a índia permanecem estacionárias, e per- Ásia central, foram em momentos diferentes subjugadas por invasões
petuam uma existência vegetativa natural até os dias presentes".18 de tribos de lá provenientes, algumas destas nações mais de uma vez.
Se, dentro da filosofia alemã clássica, Hegel seguiu muito de per- No momento presente, a China parece que dificilmente escapará de ser
to os passos de Montesquieu, quando voltamos nossa atenção para a subjugada mais uma vez. Em todo lugar que estes invasores citas se
economia política inglesa constatamos que os temas desenvolvidos estabeleceram, eles instituíram uma forma de governo despótica, à
por Smith não foram imediatamente adotados por seus seguidores. MUI qual eles próprios se submeteram prontamente, ao mesmo tempo em
pai acrescentou pouco às idéias tradicionais de despotismo asiático em que obrigaram os habitantes dos países conquistados a submeterem-
seu estudo da Inglaterra sob o domínio inglês.19 O economista inglês se a ela. (...) Por toda parte, os tártaros ou adotaram ou estabeleceram
seguinte que desenvolveu uma análise mais original das condições um sistema político que se une tão prontamente a seus hábitos naturais
orientais foi Richard Jones, sucessor de Malthus no East índia College, de submissão do povo e poder absoluto dos chefes: e suas conquistas ou
cujo Essay on the Distríbution of Wealth and the Sources of Taxation introduziram ou restabeleceram este sistema, desde o mar Negro até o
foi publicado em Londres em 1831, o mesmo ano em que Hegel estava Pacífico, de Pequim ao Nerbuda. Por toda a Ásia agrícola (com exce-
lecionando sobre a China e a índia em Berlim. A obra de Jones, cujo ção da Rússia) predomina o mesmo sistema."21
objetivo era desenvolver uma crítica a Ricardo, continha o que era pro- A hipótese geral de Jones, segundo a qual a conquista nomádica é
vavelmente a tentativa mais cuidadosa de realizar um levantamento a origem da propriedade estatal da terra, combinava-se com uma nova
concreto das formas de propriedade da terra na Ásia até então feita. No

(20) Richard Jones, An Essay on the Distríbution of Wealth a tne Sources of


(16) Idem,p. 168. Taxation, Londres, 1831, pp. 7-8.
(17) Idem,p. 161. (21) AnEssayon the Distríbution of Wealth, pp. 110, 112. Ao aludir aos punhais
(18) Idem.p. 180. tártaros que ameaçam a China, Jones provavelmente refere-se às rebeliões dos khoja em
(19) James Mill, The History of British índia, Londres, 1858 (reedição), I, pp. Kashgar em 1830. Observe-se que ele exclui explicitamente a Rússia do sistema asiático
141,211. em questão.
470 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 471

série de discriminações em sua avaliação do grau e efeitos desta pro- ria dos climas tropicais, seria praticamente impossível a agricultu-
priedade nos países que estudava. Assim, Jones escreveu que, na etapa ra" —, porém, afora isso, limitou-se a repetir a caracterização ge-
final do período de domínio mongol, a índia testemunhou "o fim de ral das "extensas monarquias, que desde tempos imemoriais ocupam
todos os sistemas, de toda moderação e proteção; aluguéis ruinosos, as planícies da Ásia", que há muito se tornara uma fórmula consensual
impostos arbitrariamente, eram recolhidos em freqüentes investidas na Europa Ocidental.
militares, na ponta da lança; e a resistência, a que muitos chegavam É, portanto, essencial compreender que as duas principais tradi-
em desespero, era invariavelmente punida pelo fogo e a morte".22 O ções intelectuais que contribuíram de forma decisiva para a formação
Estado turco, por outro lado, mantinha formalmente níveis mais sua- da obra de Marx e Engels continham uma concepção comum, preexis-
ves de exploração, mas a corrupção de seus agentes fazia com que, na tente, dos sistemas políticos e sociais asiáticos — um complexo de idéias
prática, tais restrições não funcionassem. "Certamente há vantagens comuns que remontava aos tempos do iluminismo. Este complexo pode
no sistema turco, em comparação com o da índia e o da Pérsia. A per- ser resumido mais ou menos assim:28
manência e a moderação do miri ou renda da terra é muito grande. (...)
Porém esta moderação e força relativas de nada servem para os infeli- Posse estatal da terra
zes súditos, devido a sua sujeição e indiferença às malversações de seus Ausência de restrições jurídicas B,B 3 M 2
funcionários distantes."23 Na Pérsia, a ganância do poder real não co- Religião substituindo leis M2
nhecia limites, porém o sistema de irrigação local reduzia seu alcance Ausência de nobreza hereditária M! B2 M2
— ao contrário do papel por ele representado dentro do esquema de Igualdade social na servidão M2H2
Smith — ao introduzir formas de propriedade privada: "De todos os Comunidades aldeãs isoladas H2
governos despóticos do Oriente, o da Pérsia é talvez o mais ganancioso, Predomínio da agricultura sobre a indústria SB 3
e o mais desprovido de escrúpulos e princípios; porém o solo peculiar Obras públicas de engenharia hidráulica SM 3
deste país introduziu algumas modificações valiosas no sistema asiático Clima tórrido M2M3
de ryot rents (...) (pois) aquele que traz água à superfície onde antes Imutabilidade histórica M 2 H2 J M3
água não havia tem garantida pelo governo a posse hereditária da terra
por ele fertilizada" ?4 Por fim, Jones percebeu com muita clareza que a Despotismo oriental
agricultura chinesa era um caso à parte, que não podia ser enqua-
drado com o dos outros países por ele estudados; sua imensa produti- Nenhum autor combinou todas estas idéias num único conceito,
vidade o distinguia. "De fato, toda a conduta do Império contrasta como se pode ver. Bernier foi o único que estudou países asiáticos em
modo notável com a das monarquias asiáticas vizinhas. (...) Enquanto primeira mão. Montesquieu foi o único a formular uma teoria geral
nem metade da índia jamais foi aproveitada, e menos ainda da Pérsia^J coerente do despotismo oriental enquanto tal. Os referentes geográficos
a China é inteiramente cultivada, e mais povoada que a maioria dai de autores sucessivos se foram ampliando, partindo da Turquia, pas-
monarquias européias."M Assim, a obra de Jones sem dúvida represei^ sando pela índia, até chegar à China: Hegel e Jones foram os únicos a
tou o ponto culminante da economia política da primeira metade do tentar distinguir variações regionais dentro de um padrão asiático
século XIX no que diz respeito à análise da Ãsia. Stuart Mill júnior,J geral.
quase duas décadas depois, retomou a idéia de Smith de que os Estadc
orientais normalmente financiam obras públicas de engenharia hidráu-
lica — "os tanques, poços e canais de irrigação sem os quais, na maic

(22) An Essay on the Distribution of Wealth, p. 117. (26) John Stuart MUI, Principies of Political Economy, Londres, 1848, I, p. 15
(23) Idem,pp. 129-30. (27) Idem.p. 14.
(24) /dem.pp. 119, 122-3. (28) HI — Harrington; H 2 = Hegel; BI = Bodin; B2 = Bacon; B3 = Bernier;
(25) Idem,p.l33. Ml - Maquiavel; M 2 — Montesquieu; M3 - Mill; S = Smith; 3 = Jones.
LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 473

dade privada da terra devia ser a aridez do solo do norte da África e da


Ásia, o que tornava necessárias uma irrigação intensiva e, em conse-
qüência, obras de engenharia executadas pelo Estado central e outras
autoridades públicas. "A ausência da propriedade de terra é de fato a
II chave de todo o Oriente. Neste fato está contida a sua história política
e religiosa. Mas por que motivo os orientais não chegaram à proprie-
dade da terra, nem mesmo em sua forma feudal? Creio que isto se deve
Podemos agora examinar os trechos famosos da correspondência principalmente ao clima, juntamente com a natureza do solo, especial-
de Marx e Engels em que eles discutem pela primeira vez o problema mente as grandes áreas desérticas que se estendem diretamente desde o
do Oriente. Em 2 de junho de 1853, Marx escreveu a Engels, que estava Saara, atravessando a Arábia, a Pérsia, a índia e a Tartária, até o mais
estudando a história da Ãsia e aprendendo o persa, para recomendar- elevado planalto asiático. Aqui, a irrigação artificial é a primeira con-
lhe a descrição das cidades orientais feitas por Bernier, qualificando-a dição da agricultura, o que é uma questão a cargo das comunas, das
de "brilhante, vivida e impressionante". E Marx endossou a principal províncias ou do governo central. Os governos orientais nunca tiveram
tese de Bernier de modo inequivoco, num trecho famoso: "Bernier cor- mais de três departamentos: finanças (pilhagem interna), guerra (pi-
retamente considerou como base de todos os fenômenos no Oriente — lhagem interna e externa) e obras públicas (provisões para a reprodu-
ele se refere à Turquia, à Pérsia e ao Industão — a ausência de pro- ção). (...) Esta fertilização artificial da terra, que cessou imediatamente
priedade privada da terra. Esta é a verdadeira chave, até mesmo do quando o sistema de irrigação entrou em decadência, explica o fato
paraíso oriental".1 Em sua resposta, escrita alguns dias depois, Engels curioso de que grandes extensões que já foram muito bem cultivadas
aventou que a explicação histórica básica desta ausência de proprie- são hoje desertas e abandonadas (Palmira, Petra, as ruínas no lêmen,
distritos do Egito, Pérsia e Industão); explica o fato de que uma guerra
devastadora tinha o efeito de despovoar um país por séculos e arrasar
(1) Ma.rx-Engéis,SelectedCorrespondence, pp. 80-1. O trecho de Bernier de im- toda a sua civilização."
portância central a que Marx se referia vale a pena ser reproduzido aqui, tanto pelo seu Uma semana depois, Marx respondeu, concordando a respeito
conteúdo quanto por seu espírito: "Estes três países, Turquia, Pérsia e Industão, não têm da importância das obras públicas na sociedade asiática e enfatizando
idéia dos princípios de meum e tuum, em relação à terra e outras posses concretas; e
tendo perdido aquele respeito pelo direito de propriedade que é a base de tudo que há de a coexistência com elas de aldeias auto-suficientes: "O caráter estacio-
bom e útil no mundo, eles necessariamente se assemelham quanto a aspectos essenciais: nário desta região da Ãsia — apesar de toda a movimentação sem rumo
caem nos mesmos erros perniciosos e necessariamente, mais cedo ou mais tarde, sofrem que se vê na superfície política — é integralmente explicado por duas
suas conseqüências naturais — tirania, ruína.e desolação. Quão gratos e felizes devería-
mos ser por não serem os monarcas da Europa os únicos proprietários da terra! Se fos- circunstâncias que se completam mutuamente: (1) as obras públicas de
sem, não haveria aqui países cultos e populosas, cidades prósperas e bem construídas, que era encarregado o governo central; (2) além disso, todo o império,
gente educada e bem-sucedida. Se este princípio prevalecesse, muito diferentes seriam as excluídas umas poucas cidades maiores, era dividido em aldeias, cada
verdadeiras riquezas e o poder dos soberanos europeus, e a lealdade e fidelidade dos que
os servem: em pouco tempo reinariam sobre solidões e desertos, mendigos e bárbaros. uma das quais possuía uma organização completamente separada e
Movidos por uma paixão cega, a ambição de serem mais absolutos do que consentem as formava um pequeno mundo em si. (...) Em algumas dessas comuni-
leis de Deus e da natureza, os reis da Ásia se apossam de tudo, até que terminam por dades, as terras da aldeia são cultivadas em comum; na maioria dos
tudo perder; ambicionando posses em demasia, terminam sem riquezas, ou com muito
menos do que desejavam. Se o mesmo sistema de governo existisse entre nós, onde encon- casos, cada ocupante cultiva sua própria terra. Dentro delas existe a
trar príncipes, prelados e nobres, opulentos burgueses e prósperos mercadores, ou enge- escravidão e o sistema de castas. As terras improdutivas servem de pas-
nhosos artesãos? Onde encontrar cidades como Paris, Lyon, Toulouse, Rouen ou mesmo to comum. As esposas e filhas se encarregam de fiar e tecer em casa.
Londres, e tantas outras? Onde encontrar essa infinidade de vilas e aldeias; todas essas
belas casas de campo, esses campos e colinas cultivados com tanto afinco, arte e tra- Estas repúblicas idílicas, que guardam com zelo as fronteiras de sua
balho? Que seria das extensas rendas que eles proporcionam tanto aos súditos quanto aos
soberanos? Nossas grandes cidades se tornariam inabitáveis em conseqüência de seu ar
malsão, e cairiam em ruínas sem despertar em ninguém a idéia de reparar os estragos;
nossas colinas seriam abandonadas e nossas planícies seriam ocupadas por espinheiros e (2) Marx-Engels, Selected Correspondence, p, 82. Observe-se que Engels Jala
ervas, ou cobertas por pântanos pestilentos". Traveis in the Mogul Empire, pp. 232-3. aqui especificamente de "civilização".
474 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 475

aldeia contra a aldeia vizinha, ainda existem de forma bem perfeita nas paixão e eloqüência, Marx examinou as conseqüências históricas da
regiões do noroeste da índia, que foram recentemente tomadas pela conquista européia de território asiático que estava se desenrolando na
Inglaterra. Creio que não seria possível imaginar uma base mais sólida sua época: "Por mais que agrida os sentimentos humanos testemunhar
para o despotismo asiático estagnado". Marx acrescentou esta obser- estas inúmeras organizações sociais patriarcais e inofensivas sendo de-
vação significativa: "Seja como for, aparentemente foram os maome- sorganizadas e dissolvidas em suas unidades, lançadas num mar de
tanos os primeiros a estabelecer o princípio da 'não-propriedade da sofrimentos, e seus membros individuais perdendo ao mesmo tempo
terra' por toda a Ásia". sua antiga forma de civilização e seu meio de subsistência hereditário,
Nesta mesma época, Marx apresentou estas suas reflexões e de não devemos esquecer que estas idílicas comunidades, ainda que pa-
Engels numa série de artigos publicados no New York Daily Tribune: reçam inofensivas, sempre foram as bases sólidas do despotismo orien-
"O clima e as condições territoriais, especialmente as grandes exten- tal; que elas limitavam a mente humana ao âmbito mais estreito possí-
sões de deserto, que vão do Saara, passando pela Arábia, Pérsia, índia vel, dela fazendo o instrumento dócil da superstição, escravizando-a
e Tartária, até os mais elevados planaltos asiáticos, fizeram com que a sob regras tradicionais, roubando-lhe toda a grandeza e as energias his-
irrigação artificial por meio de canais e sistemas hidráulicos se tornas- tóricas. Não devemos esquecer o egotismo bárbaro que, concentrando-
sem a base da agricultura oriental. Como no Egito e na índia as inun- se em algum pedaço de terra miserável, tranqüilamente testemunhou a
dações são usadas para fertilizar o solo na Mesopotâmia, Pérsia e ou- ruína de impérios, a perpetração de crueldades indizíveis, o massacre
tras regiões; utiliza-se a presença de um nível elevado para abastecer da população de grandes cidades, sem lhes dar maiores considerações
canais de irrigação. Esta necessidade fundamental de uma utilização do que a eventos naturais, ele próprio a presa indefesa de qualquer
econômica e comum da água, que no Ocidente levou a iniciativa pri- agressor que lhe percebesse a existência". Acrescentou: "Não devemos
vada à associação voluntária, como em Flandres e na Itália, tornou esquecer que estas pequenas comunidades eram contaminadas pelas
necessário, no Oriente, onde o nível de civilização era muito baixo e as distinções de casta e pela escravidão, que subjugavam o homem a cir-
extensões territoriais muito grandes para que surgisse a associação vo- cunstâncias externas ao invés de elevá-lo à condição de soberano das
luntária, que intendesse o poder centralizador do governo. Assim, to- circunstâncias, que transformaram um estado social que se desenvolvia
dos os governos asiáticos foram levados a assumir uma função econô- num destino natural imutável".8
mica, a de realizar obras públicas"? Marx ressaltou também que a Assim, a correspondência particular de Marx e seus artigos jor-
base social deste tipo de governo na índia era a "união doméstica das nalísticos de 1853 seguiam bem de perto os temas da visão européia
atividades agrícolas e manufatureiras" no "chamado sistema de al- tradicional da história e sociedade da Ásia, tanto em termos de ten-
deias, que dava a cada uma dessas pequenas associações uma organi- dência quanto de atitude. A continuidade, afirmada no início pela
zação independente e uma vida distinta"? O domínio britânico havia menção a Bernier, é particularmente notável nas repetidas afirmações
destruído a superestrutura política do Estado imperial mongol, e agora da estagnação e imutabilidade do mundo oriental. "A sociedade in-
estava atacando a infra-estrutura sócio-econômica na qual ele se ba- diana não tem nenhuma história, ou pelo menos nenhuma história co-
seava, pela introdução à força da propriedade privada da terra: "Os nhecida", escreveu Marx; alguns anos depois, referiu-se à China, di-
próprios zamindari e ryotwari, ainda que abomináveis, envolvem duas zendo que ela "vegetava contra o tempo"í° Porém podem-se destacar
formas distintas de propriedade privada da terra — o grande deside- dois pontos enfatizados em sua correspondência com Engels. Ambos já
rato da sociedade asiática"? Numa passagem grandiosa, da maior haviam sido prenunciados em parte pela tradição anterior. O primeiro
é a idéia de que as obras públicas de irrigação, tornadas necessárias
pela aridez do clima, foram um fator determinante básico nos Estados
(3) /dem,pp.85-6.
(4) Marx-Engels, On Colonialism, Moscou, 1960, p. 33: "The British rule in
índia", artigo de 10 de junho de 1853. (7) /Am, p. 36.
(5) Idem, p. 35. (8) Idem, p. 37.
(6) Idem, p. 77: "The future resultes of British rule in índia", artigo de 22 d* (9) Idem, p. 76.
julho de 1853. (10) /£fem,p.l88.
476 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 477

despóticos centralizados, com o monopólio da terra, na Ásia. Na ver- de uma considerável extensão do campo de aplicação do conceito mar-
dade, tratava-se da fusão de três temas que antes eram relativamente xista deste modo de produção, que não estava mais tão diretamente
distintos — engenharia hidráulica na agricultura (Smith), destino geo- vinculado à Ãsia. Assim, prossegue Marx: "Este tipo de propriedade
gráfico (Montesquieu) e propriedade agrária estatal (Bernier). Um se- comunitária, enquanto se realiza realmente no trabalho, pode por sua
gundo elemento temático foi acrescentado pela afirmação de que as cé- vez aparecer de duas maneiras: por um lado, as pequenas comunidades
lulas sociais básicas às quais se sobrepunham o despotismo oriental podem vegetar independentemente, uma ao lado da outra, e nelas o
eram aldeias auto-suficientes, em que se uniam os ofícios domésticos e indivíduo trabalha independentemente, com sua família, no lote que
a agricultura. Como já vimos, esta concepção também tinha sido pro- lhe foi atribuído. (...) a unidade pode estender-se até incluir também o
posta anteriormente (Hegel). Marx, com base nos dados fornecidos caráter coletivo do próprio trabalho, que pode constituir um sistema
pelos relatórios da administração colonial britânica na índia, agora lhe formalizado como no México, em especial no Peru, entre os antigos
deu uma posição de maior destaque dentro do esquema geral que her- celtas e algumas tribos da índia. Além disso, o caráter coletivo pode
dou de seus predecessores. O Estado hidráulico ''em cima" e a aldeia estar presente na tribo de modo que a unidade esteja representada por
autárquica "embaixo" uniam-se numa fórmula única, na qual havia um chefe da família tribal ou como a relação recíproca entre os chefes
um equilíbrio conceituai entre os dois. de família. Daí o caráter mais despótico ou mais democrático da enti-
Porém, quatro ou cinco anos depois, quando Marx esboçava seus dade comunitária. Em conseqüência, as condições coletivas da apro-
Grundrisse, foi o conceito de "aldeia auto-suficiente" que adquiriu priação real através do trabalho, tais como os sistemas de irrigação,
uma função claramente predominante em sua visão do que ele viria a muito importantes entre os povos asiáticos, meios de comunicação,
denominar de "modo de produção asiático". Pois agora Marx chegou etc., aparecerão como obra da unidade superior, do governo despótico
à conclusão de que a propriedade estatal da terra no Oriente ocultava o que paira acima das pequenas comunidades".12 Tais governos despó-
fato de que a propriedade era tribal-comunal; quem possuía as terras ticos, Marx parece ter acreditado, impunham a suas populações uma
eram as aldeias autônomas, que eram a realidade sócio-econômica por obrigação de ceder-lhes mão-de-obra não-qualificada e irregular; era o
trás da "unidade imaginária" do direito de posse do soberano despó- que ele denominava de "escravidão generalizada do Oriente"13 (que
tico em relação à terra. "A unidade onicompreensiva, que está acima não deve ser confundida com a escravidão propriamente dita da antigüi-
de todas estas pequenas entidades comunitárias, pode aparecer como o dade clássica no Mediterrâneo, como o próprio Marx ressaltava). Em
proprietário superior ou como o único proprietário, de tal modo que as tais condições, as cidades eram normalmente contingentes ou supér-
comunidades efetivas só apareçam como possuidoras hereditárias. (...) fluas na Ásia: "Nestes casos, as cidades propriamente ditas surgem junto
O déspota, como pai das muitas entidades comunitárias (outorga) ao a estas aldeias só naquele ponto que é particularmente favorável para o
indivíduo por intermédio da comunidade particular. O excedente — comércio com o exterior e ali onde o governante e seus sátrapas trocam
que além disso se vê legalmente determinado como conseqüência da suas rendas (sobreproduto) por trabalho, gastam estas rendas como la-
apropriação efetiva através do trabalho — pertence então a esta uni- bourfounds.(...) a história asiática é uma espécie de unidade indiferen-
dade suprema. Portanto, em meio ao despotismo oriental e à carência te de cidade e campo (neste caso as cidades verdadeiramente grandes de-
de propriedade que parece existir juridicamente nele, existe de fato, vem ser consideradas meramente como acampamento senhoria!, como
como fundamento, esta propriedade comunitária ou tribal, produto excrescência superimposta à estrutura propriamente econômica)".14
sobretudo de uma combinação de manufatura e agricultura dentro da Aqui, mais uma vez, ouvimos claramente a voz de Bernier, que
pequena comunidade, que desse modo se torna inteiramente auto-sufi- fez Marx refletir sobre o Oriente pela primeira vez em 1853.
ciente e contém em si mesma todas as condições da reprodução e da
produção de excedente".11 Esta inovação temática vinha acompanhada
(12) Pre-Capitalist Economic Formations, pp. 70-1. (Grundrisse, pp. 437-74.)
Formaciones, pp. 53-4.
(11) Pre-Capitalist Economic Formations, pp. 69-70, (Grundrisse, pp. 472-3.) (13) Idem, p. 95. Formaciones, p. 75.
Na tradução espanhola, com introdução de Eric Hobsbawm, Formaciones Econômicas (14) Idem, pp. 71, 77-8. (Grundrisse, pp. 474, 479, 495.) Formaciones, pp. 54,
Precapiíalistas, Córdoba, P&P, n? 20, 1971, p. 53. 60.
PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 479

O elemento realmente novo nos escritos de Marx de 1857-8 sobre forme a antiga, numa terra desocupada".16 Observe-se que esta des-
o que, um ano depois, pela primeira e última vez, ele designou formal- crição, até no que diz respeito à ordem em que as profissões são enu-
mente de "modo de produção asiático*',15 foi a idéia de que existia na meradas (juiz-supervisor de águas-brâmane-astrólogo-ferreiro-carpin-
Ásia e em outros lugares a propriedade tribal ou comunal da terra em teiro-oleiro-barbeiro-lavadeiro-poeta), é quase literalmente a mesma
aldeias auto-suficientes, por trás da máscara oficial da propriedade es- que aparece naFilosofia da História de Hegel, citada acima. As únicas
tatal. Porém, em suas obras completas publicadas, Marx jamais en- mudanças no dramatis personae são o alongamento da lista e a substi-
dossou explicitamente esta concepção original. Em O Capital, pelo tuição dos itens ''médico, dançarinas e músico", de Hegel, pelas ocu-
contrário, ele voltou claramente às posições que defendia anteriormente pações mais prosaicas de "guarda-fronteiras, prateiro e mestre-es-
em sua correspondência com Engels. Pois, por um lado, voltou a ressal- cola"!7
tar, e mais detalhadamente do que jamais fizera antes, a importância As conclusões políticas que Marx tirou desta miniatura cje painel
da estrutura peculiar das aldeias da índia, que, segundo ele, eram típi- social também são muito semelhantes às que Hegel propusera 35 anos
cas de toda a Ásia, Assim Marx as descreve: "Estas antiqüíssimas pe- antes: uma abundância amorfa de aldeias auto-suficientes, com a união
quenas propriedades indianas, por exemplo, que em parte continuam de artesanato e agricultura, e com agricultura coletiva, era a base social
ainda a existir, fundamentam-se na posse comum das terras, na união da imutabilidade asiática. Pois as comunidades rurais imutáveis esta-
direta da agricultura com o artesanato e numa divisão inalterada do vam isoladas das vicissitudes do Estado que pairava acima delas. "A
trabalho (...). Nas diferentes regiões da índia existem diferentes formas simplicidade da organização para a produção nestas comunidades
de comunidades. Em sua forma mais simples, a comunidade cultiva a auto-suficientes, que constantemente se reproduzem da mesma forma
terra de forma comum e distribui entre seus membros o produto, en- e, quando acidentalmente destruídas, se refazem no mesmo lugar e
quanto a fiação e a tecelagem são realizadas em cada família, como com o mesmo nome — esta simplicidade constitui a chave do segredo
ocupações acessórias. Ao lado dessa massa ocupada no mesmo traba- da imutabilidade das sociedades asiáticas, que tanto contrasta com a
lho, encontramos o 'habitante-chefe', juiz, policial e coletor de impos- constante dissolução e refundação de sociedades asiáticas e as inces-
tos ao mesmo tempo; o guarda-livros, que mantém os registros das santes mudanças de dinastia. A estrutura dos elementos econômicos da
colheitas e tudo o que a elas se relaciona; um outro funcionário, que sociedade não é em absoluto afetada pelas nuvens de tempestade do
processa os criminosos, protege os viajantes em trânsito e os escolta até céu político"!8 Por outro lado, embora sustentasse que essas aldeias
a aldeia mais próxima; o guarda-fronteiras, que as protege das aldeias eram caracterizadas pela posse comum da terra, e em muitos casos pelo
vizinhas; o inspetor de águas dos tanques comuns para a irrigação; trabalho agrícola comunitário, Marx não afirmava mais que nelas ha-
o brâmane, que exerce os serviços religiosos; o mestre-escola, que en- via propriedade comunal ou tribal da terra. Pelo contrário, Marx vol-
sina as crianças a ler e a escrever na areía; o brâmane do calendário, ou tou à reafirmação direta e inequívoca de sua posição original, segundo
astrólogo, que determina os dias fastos e nefastos para o plantio e a a qual as sociedades asiáticas eram caracteristicamente definidas pela
colheita, bem como para todos os outros tipos de trabalho agrícola; um propriedade estatal da terra. "Se os produtores diretos não se confron-
ferreiro e um carpinteiro, que fazem e consertam todos os instrumentos tam com um proprietário particular e sim, como na Ásia, estão direta-
agrícolas; o oleiro, que faz toda a cerâmica da aldeia; o barbeiro, o mente subordinados a um Estado que paira sobre eles na condição ao
lavador de roupas, o prateiro e, em alguns casos, o poeta, que em algu- mesmo tempo de proprietário e soberano, então o aluguel e os impostos
mas comunidades substitui o ourives e em outras o mestre-escola. Este
punhado de pessoas é sustentado às custas de toda a comunidade. Se a
f 16) Capital, I, pp. 537-8. Há uma tradução brasileira, publicada pela Abril Cul-
população aumenta, funda-se uma nova comunidade, estruturada con- tural, 1983, p. 281.
(17) Hegel e Marx estavam evidentemente usando a mesma fonte. Louis Dumonl
observa que o paradigma original dessas descrições estereotipadas era um relatório de
Munro, de 1806: ver "The 'village community' from Munro to Maine", Contribution to
(15) "Em linhas gerais, os modos de produção asiático, antigo, feudal e burguês
Indian Sociology, IX, dezembro de 1966, pp. 70-3. O relatório de Munro foi constante-
moderno podem ser considerados como épocas que assinalam o progresso do desenvolvi-
mente reiterado e discutido nas décadas subseqüentes.
mento econômico da sociedade." Prefácio de A Contribution to the Critique ofPolitical
Economy, Londres, 1971, p. 21. (18) Capital, I, p. 358.
480 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 461

coincidem, ou melhor, não existe nenhum imposto que difira dessa distribui por diferentes famílias, e onde conseqüentemente ainda não
forma de aluguel de terra. Em tais circunstâncias, não é necessário que se desenvolveu a propriedade privada da terra, como no caso dos povos
haja pressões políticas ou econômicas mais fortes do que as que são arianos da Ásia e dos russos, o poder do Estado assume a forma do
comuns a toda sujeição a esse Estado. O Estado é, pois, o senhor su- despotismo"? Finalmente, em sua principal obra publicada nessa
premo. Aqui a soberania consiste na propriedade da terra concentrada época, Engels reafirmou ambas as idéias que desde o início recebiam
em escala nacional. Mas, por outro lado, não existe propriedade pri- mais ênfase em suas reflexões comuns com Marx. Por um lado, Engels
vada da terra, embora haja posse da terra tanto privada quanto co- reiterou — após um lapso de duas décadas — a importância das obras
mum". Mane maduro de O Capital, portanto, permanecia substan- de engenharia hidráulica para a formação de Estados despóticos na
cialmente fiel à imagem européia clássica da Ãsia, que lhe fora legada Ásia. "Por maior que seja o número de despotismos que surgiram e
por uma longa série de predecessores. desapareceram na Pérsia e na índia, cada um deles estava plenamente
Falta ainda examinar as intervenções posteriores — e informais consciente de que era, acima de tudo, o empresário responsável pela
— de Marx e Engels que são relevantes à questão do "despotismo manutenção coletiva da irrigação em todos os vales de rios, sem a qual
oriental". Pode-se dizer de início que praticamente todas estas obser- tornava-se impossível a agricultura lá".23 Ao mesmo tempo, Engels
vações feitas após O Capital — a maioria delas na correspondência — mais uma vez afirmou a subsistência típica das aldeias com proprie-
retomam novamente o leitmotiv característico dos Grundrisse: elas re- dade coletiva da terra sob os despotismos asiáticos. Pois embora afir-
petidamente associam a propriedade comum da terra em aldeias auto- masse que "em todo o Oriente (...) a aldeia ou o Estado é o proprietário
suficientes ao despotismo asiático centralizado, e afirmam que aquela é da terra",24 ele afirmava também que as formas mais antigas dessas
a base sócio-econômica deste. Assim, nos rascunhos de suas cartas a comunidades — ou seja, precisamente aquelas a que ele atribuía a
Zasulich, de 1881, ao definir a comunidade russa do mir sob o cza- propriedade comum da terra — eram a base do despotismo. "Onde as
rismo como um tipo em que "a propriedade da terra é comunal, mas antigas comunas continuam a existir, elas constituem há milênios a
cada camponês cultiva por si só seu lote", Marx afirmou: "O isola- base da forma mais cruel de Estado, o despotismo oriental, da índia
25
,'
mento das aldeias, a ausência de vínculos entre suas vidas, este micro- ate aD ' • i'
Rússia.
cosmo limitado à localidade, não é em todos os lugares uma caracte- Com esta afirmação categórica, podemos concluir nosso exame
rística imanente do último dos tipos primitivos. Porém, onde quer que das concepções dos fundadores do materialismo histórico a respeito da
de fato ocorra, ele permite o surgimento de um despotismo central aci- história e sociedade da Ásia. Como resumi-las? Está claro que Marx, se,
ma das comunidades"?0 Engels, por sua vez, duas vezes retoma o por um lado se recusava a generalizar o conceito de modo de produção
mesmo tema. Em 1875, bem antes da correspondência entre Marx e feudal de forma a aplicá-lo a sociedades não-européias, por outro lado
Zasulich, ele havia escrito o seguinte num artigo a respeito da Rússia: ele, como Engels, estava convicto de que havia um "modo de produção
"O completo isolamento dessas comunidades, que cria no país interes- asiático" específico, que caracterizava o Oriente e o separava histórica
ses idênticos, porém de forma alguma comuns, é a base natural do e sociologicamente do Ocidente. A característica fundamental deste
despotismo oriental: da índia à Rússia, onde quer que esta forma so- modo de produção, a qual o separava imediatamente do feudalismo,
cial tenha predominado, ele gerou como seu complemento um Estado era a ausência de propriedade privada de terra: para Marx, era esta a
deste tipo"?1 Em 1882, num manuscrito inédito sobre a época frâncica "chave" de toda a estrutura do modo de produção asiático. Engels atri-
da história da Europa ocidental, Engels comentou novamente: "Onde buía esta ausência de propriedade agrária individual à aridez do clima,
quer que o Estado surja numa época em que a comunidade de aldeia que tornava necessárias grandes obras de irrigação e, conseqüente-
cultiva sua terra em comum, ou ao menos a loteia temporariamente e a

(19) Capital, III, pp. 771-2. (22) Werke, Bd 19, p. 475.


(20) Comentários extraídos do segundo rascunho de carta a Zasulich; reprodu- (23) Anti-Dühríng, Moscou, 1947, p. 215.
zido nos textos suplementares dePre-Capitalist Economic Formations, p. 143. (24) Afem,p.,211.
(21) Marx-Engels, Werke, Bd 18, p. 563. (25) Idem, p. 217.
482 PERRY ANDERSON

mente, a supervisão estatal das forças de produção. Marx considerou


por algum tempo a hipótese de que esta característica teria sido'intro-
duzida no Oriente pelos conquistadores islâmicos; porém em seguida
adotou a tese de Engels, segundo a qual a agricultura baseada na enge-
nharia hidráulica era provavelmente a base geográfica da ausência da III
propriedade privada de terras que caracterizava o modo de produção
asiático. Mais tarde, porém, Marx veio a afirmar, nos Grundrisse, que,
por trás da propriedade estatal da terra no Oriente, as aldeias deti- O conceito de "modo de produção asiático*' de Marx tem sido
nham uma forma de propriedade tribal-comunai sobre a terra. Em retomado em anos recentes em escala considerável: muitos autores,
O Capital ele abandonou esta idéia, reafirmando o tradicional axioma conscientes do impasse de um conceito quase-universal de feudalismo,
europeu segundo o qual na Ásia o Estado detém o monopólio sobre a saudaram o "modo de produção.asiático" como uma emancipação teó-
terra, mantendo ao mesmo tempo sua convicção a respeito da impor- rica de um esquema de desenvolvimento histórico demasiadamente rí-
tância das comunidades rurais autônomas como base da sociedade gido e linear. Depois de um longo período de ostracismo, o "modo de
oriental. Nas duas décadas que se seguiram à publicação de O Capital, produção asiático" está agora em alta.1 Para os propósitos desse co-
porém, tanto Marx quanto Engels voltaram à idéia de que a base social mentário, é evidente que a ocupação otomana dos Bálcãs levanta para
do despotismo oriental era a aldeia auto-suficiente, com propriedade qualquer estudioso marxista da história européia a questão da validade
agrária comuna!. É impossível extrair um conceito coerente ou siste- do conceito de "modo de produção asiático" para o estudo do Estado
mático de "modo de produção asiático" dos escritos de Marx e Engels, turco que existia na Europa, do outro lado do feudalismo. Â função
devido às oscilações que vimos acima. Porém, levando-se este fato em original do conceito de Marx é bem clara: destinava-se essencialmente
conta, a visão de Marx da formação social asiática arquetípica conti- a explicar por que as principais civilizações não-européias de sua época,
nha os seguintes elementos fundamentais: ausência de propriedade apesar do altíssimo nível de suas realizações culturais, não haviam evo-
privada na terra; presença de grandes sistemas de irrigação na agricul- luído em direção ao capitalismo, tal como acontecera na Europa. Os
tura; existência de aldeias autárquicas onde se combinam o artesanato despotismos orientais que Marx tinha em mente de início eram os im-
e a agricultura, com propriedade comunal da terra; cidades estagna- périos asiáticos recentes ou contemporâneos da Turquia, Pérsia, índia
das, habitadas porrentiers ou burocratas passivos; e domínio de uma e China — os que constituíam o núcleo do estudo de Jones. Na verdade,
máquina estatal despótica que monopoliza o grosso do excedente e fun- a maioria dos dados usados por Marx dizia respeito a um único impé-
ciona não apenas como aparelho central repressivo da classe domi- rio, o da índia dos mongóis, destruído um século antes pelos ingleses.
nante, mas também como seu principal instrumento de exploração eco- Porém, em trechos um pouco posteriores dos Grundrisse, Marx esten-
nômica. Entre as aldeias que se auto-reproduziam "embaixo" e o Es- deu a aplicação de seu conceito de "asiatismo** a uma gama muito
tado hipertrofiado "em cima'* não havia forças intermediárias. O im- diferente de sociedades, que nem ficavam na Ásia: em particular, às
pacto do Estado sobre o mosaico de aldeias "embaixo** era puramente formações sociais americanas do México e do Peru antes da conquista
externo e tributário; tanto sua consolidação quanto sua destruição dei- espanhola, e até mesmo aos celtas e a outras sociedades tribais. A razão
xavam a sociedade rural intata. A história política do Oriente era, deste desvio conceituai fica evidente quando se examinam os rascunhos
assim, essencialmente cíclica: não continha nenhum desenvolvimento dos Grundrisse. Marx passou a acreditar que a realidade fundamental
dinâmico ou cumulativo. O resultado foi a secular inércia e imutabili- do modo de produção "asiático" não era a propriedade estatal da terra,
dade da Ãsia, uma vez atingido seu nível peculiar de civilização. as obras de engenharia hidráulica centralizadas nem o despotismo polí-

(1) Dois livros bastam para exemplificar: a ampla coletânea de ensaios intitulada
Sur lê "Mode de Production Asiatique", Paris, 1969, que contém uma bibliografia de
outras contribuições ao estudo deste tema; e o resumo geral em G. Sofri. H Moda dl
Produzione Asiático, Turim, 1969.
484 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 485

tico, e sim a "propriedade tribal ou comunal" da terra em aldeias auto- ou semitribais, com um nível de civilização muito inferior ao da anti-
suficientes, em que se uniam o artesanato e a agricultura. Nos termos güidade pré-clássica: ilhas da Polinésia, tribos africanas, aldeias de
de seu esquema original, a ênfase de seu interesse deslocou-se do Es- ameríndios. Esta utilização do conceito normalmente não leva em conta
tado burocrático "em cima'* para as aldeias autárquicas "em baixo", a ênfase em obras de irrigação de grande escala, nem em um Estado
e uma vez que se rotulavam as aldeias de "tribais" e se lhes atribuía um particularmente despótico: ela enfatiza essencialmente a sobrevivência
sistema de produção e propriedade comunal mais ou menos igualitário, das relações de parentesco, da propriedade rural comunal e das aldeias
estava aberto o caminho para uma extensão indefinida do conceito de auto-suficientes e coesivas. Todo este modo de produção é encarado
modo de produção asiático a sociedades de tipo totalmente diferente como de "transição" entre uma sociedade sem classes e uma sociedade
das que, ao que parece, Marx e Engels tinham em mente em sua cor- de classes, preservando muitas características daquela.3 O resultado
respondência — nem "orientais" em termos de localização geográficas destas duas tendências tem sido uma enorme inflação da extensão do
nem relativamente ''civilizadas" quanto ao desenvolvimento. Em O Ca- conceito de modo de produção asiático — cronologicamente, chegando
pital, Marx teve escrúpulos em relação à lógica desta evolução concei- até os mais remotos primórdios da civilização, e geograficamente até as
tuai, e até certo ponto voltou atrás às suas concepções originais. Porém mais distantes formas de organização tribal. A confusão supra-histó-
posteriormente tanto Engels quanto Marx desenvolveram os temas da rica resultante desafia qualquer princípio científico de classificação.
propriedade comunal ou tribal da terra em aldeias auto-suficientes, Um "asiatismo" onipresente não representa um progresso em relação à
como o fundamento dos Estados despóticos, sem fazer ressalvas impor- idéia de um "feudalismo" universal: na verdade, o novo termo é ainda
tantes. menos rigoroso que o velho. Que espécie de unidade histórica séria
Hoje em dia, percebe-se que as atuais discussões e utilizações do pode existir entre a China da dinastia Ming e a Irlanda megalítica,
conceito de modo de produção asiático se copcentram principalmente o Egito dos faraós e o Havaí? É evidente que há uma distância inco-
sobre os rascunhos de 1857-8 e suas continuações esparsas de 1875-82, mensurável entre uma e outra dessas formações sociais. As sociedades
e por isto tendem a radicalizar as tendências centrífugas do conceito tribais da Melanésia e da África, com suas técnicas de produção rudi-
que se manifestam pela primeira vez nos Grundrisse, Na verdade, o mentares, sua população mínima e pouquíssimos excedentes, e sua au-
que tem acontecido com mais freqüência é estender-se o conceito em sência de escrita estão muito distantes das Hochkulturen imponentes
dois sentidos diferentes. Por um lado, voltou-se atrás muitos séculos e sofisticadas do Oriente Médio da antigüidade. Estas, por sua vez,
para aplicá-lo às sociedades da antigüidade do Oriente Médio e Medi-
terrâneo, anteriores à época clássica: a Mesopotâmia dos sumérios, o
Egito dos faraós, a Anatólia dos hititas, a Grécia micênica ou a Itália
etrusca. Esta utilização do conceito mantém a ênfase original a um (3) Sem dúvida, os estudos mais notáveis nessa linha são os de autoria de Maurice
Godelier: "La notion de 'mode de production asiatique' et lês schémas marxistes d'évo-
Estado forte e centralizado, e muitas vezes a obras de engenharia hi- lutíon dês sociétés", in Sur lê "Mode de Production Asiatique", pp. 47-100, e o longo
dráulica na agricultura, e enfatiza a "escravidão generalizada'*, em prefácio a Sur lês Sociétés Pré-Capiíalistes: Textes Choisis de Marx Engels Lénine,
que um poder burocrático superior arbitrariamente recrutava mão-de- Paris, 1970, especialmente pp. 105-42. O segundo texto também contém uma análise que
é de longe a mais escnipulosa e correta da evolução do pensamento de Marx e Engels &
obra não-qualif içada junto às populações rurais primitivas.2 Ao mesmo respeito do problema das sociedades "orientais" (pp. 13-104). As conclusões taxonômi-
tempo, uma segunda extensão ocorreu em outra direção. Pois o con- cas das obras de Godelier, porém, são insustentáveis. Ao realinhar o "modo de produção
ceito de "modo de produção asiático" também foi ampliado de modo a asiático" ao longo do eixo das sociedades tribais na passagem da forma de organização
acéfala para a condição de Estado, desta forma deslocando toda a ênfase muito para trás
abranger as primeiras organizações estatais de formações sociais tribais no "tempo" evolucionário, Godelier é paradoxalmente obrigado a terminar rotulando as
grandes civilizações da China e da índia do início da era moderna de "feudais" nova-
mente, ainda que com certa hesitação, para estabelecer uma distinção entre os dois tipos
de formação social. A lógica de seu procedimento o força a adotar esta solução, cuja
(2) O melhor exemplo desta tendência é o estudo de Charles Parrain, "Preto- aporia já foi demonstrada acima, apesar do autor ficar claramente insatisfeito: ver
histoire mediterranéenne et mode de production asiatique", in Sur lê "Mode de Pró» Sur lê "Mode de Production Asiatique", pp. 90-1; Sur lês Sociétés Pré-Capitali&tes, pp.
duction Asiatique", pp. 169-94, que aborda as formações sociais megalítica, creto-micÉ- 136-7. Por outro lado, livre de todo o esquema impróprio do "asiatismo", a abordagem
nica e etrusca; trata-se de um ensaio de muito interesse, embora algumas de suas classl* j antropológica de Godelier às diferentes fases e formas de transição das formações sociais
ficaçoes básicas sejam inaceitáveis. tribais para as estruturas centralizadas de Estado é extremamente enriquecedora.
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representaram níveis de desenvolvimento histórico claramente dife- camente apenas em seus estudos a respeito da Índia, em que os admi-
rentes dos das civilizações orientais do início da idade moderna, sepa- nistradores ingleses os haviam descrito após a Grã-Bretanha conquistar
radas por grandes revoluções nas esferas da tecnologia, demografia, o subcontinente. Na verdade, porém, não há dados históricos que pro-
guerra, religião e cultura, ocorridas no decorrer dos milênios. Misturar vem a existência de propriedade comunal na índia nem durante nem
formas históricas e épocas tão diferentes sob a mesma rubrica4 leva à após o período mongol.5 Os relatórios ingleses nos quais Marx se ba-
mesma reductio ad absurdum produzida por uma extensão indefinida seou eram frutos de erros e interpretações equívocas por parte dos colo-
do conceito de feudalismo: se tantas formações sócio-econômicas dife- nizadores. Também o cultivo comunitário nas aldeias era um mito: no
rentes, de níveis de civilização tão diversos, são todas reduzidas a um início da era moderna; a agricultura sempre foi individual.6 Além
mesmo modo de produção, então as divisões e mudanças fundamentais disso, as aldeias indianas, longe de serem igualitárias, sempre foram
da história devem derivar de uma outra fonte, que nada tem a ver com rigidamente divididas em castas, e o que havia de propriedade coletiva
o conceito marxista de modos de produção. A inflação de idéias, como da terra se limitava às castas superiores, que nela exploravam as infe-
a de moedas, só leva à sua desvalorização. riores como agricultores-arrendatários.7 Em seus primeiros comentá-
Porém é no próprio Marx que encontramos a autorização para a rios sobre os sislemas das aldeias indianas, em 1853, Marx mencionou
emissão inflacionária de asiatismos. Pois foi a sua mudança gradual de de passagem que "dentro delas há escravidão e o sistema de castas",
ênfase do Estado oriental despótico para a aldeia auto-suficiente que e que elas eram "contaminadas pelas distinções de casta e pela escra-
viria a tornar possível a descoberta do mesmo modo de produção fora vidão"; porém ele não parece ter dado muita importância a essas "con-
da Ãsia, que fora o campo de aplicação original do conceito. Uma vez taminações" nas aldeias que, no mesmo parágrafo, qualificou de "or-
que todo o peso de sua análise se deslocou da unidade "ideal" do Es- ganismos sociais inofensivos". Daí em diante, Marx praticamente ig-
tado para a base "real" da propriedade comunal-tribal nas aldeias norou toda a complexa estrutura do sistema hindu de castas — o me-
igualitárias "em baixo", imperceptivelmente tornou-se natural assimi- canismo social básico de estratificação de classes na índia tradicio-
lar as formações sociais tribais ou os Estados da antigüidade com uma nal —, para todos os fins. As descrições subseqüentes das "aldeias
economia rural ainda relativamente primitiva à mesma categoria das auto-suficientes" que aparecem em Marx não contêm nenhuma refe-
civilizações modernas que Marx e Engels tinham em mente originaria- rência ao sistema de castas.
mente: o próprio Marx, conforme já vimos, foi o primeiro a fazê-lo. As Embora Marx acreditasse que havia uma liderança política here-
subseqüentes confusões teóricas e historiográficas apontam inexoravel- ditária nessas aldeias, tanto na índia quanto na Rússia, de tipo "pa-
mente para toda a concepção de "aldeia auto-suficiente" com "pro- triarcal", toda a sua análise — explicitada em sua correspondência
priedade comunal" como a falha empírica básica da explicação de com Zasulich na década de 1880, na qual ele aprovava a idéia de uma
Marx. Os elementos centrais da "aldeia auto-suficiente'1 nesta concep- transição direta da aldeia conáunal russa para o socialismo — apontava
ção eram: a união entre ofícios domésticos e agricultura, a ausência de para a idéia de que o caráter fundamental das comunidades rurais
trocas de bens com o mundo externo e, portanto, o isolamento e a auto-suficientes era um igualitarismo econômico primitivo. O que tor-
indiferença em relação aos problemas do Estado, a propriedade co- nava esta ilusão particularmente estranha é o fato de que Hegel, que,
mum da terra e, em alguns casos, também o cultivo comunitário dá sob outros aspectos, Marx seguiu tão de perto em seus textos sobre a
terra. Marx fundamentava sua concepção de palingenesia destas co- índia, estava muito mais consciente da brutal onipresença da desigual-
munidades rurais e de seus sistemas de propriedade igualitária prati-
(5) Ver Daniel Thorner, "Marx on índia and the asiatic mode of production",
Contributions to Indian Sociology, IX, dezembro de 1966, p. 57, um artigo implacável c
(4) A forma mais extrema desta confusão, naturalmente, não é obra de um mar- salutar.
xista, e sim de uma espécie de sobrevivente do spencerismo: K. Wittfogel, Oriental Dês- (6) Thorner, op. cit., p. 57.
potism, New Haven, 1957. Esta b ar afunda vulgar, desprovida de qualquer senso histó- (7) Louis Dumont, "The 'village community' from Munro to Maine", pp. 76-80;
rico, faz uma salada com Roma imperial, Rússia czarista, Arizona dos hopis, Peru dos Irfan Habib, The Agrarian System of Mughal índia (1556-1707), Londres, 1963, pp,
incas, Turquia otomana e Mesopotâmia dos sumérios — para nSo falar de Bizâncio, 119-24.
Babilônia, Pérsia e Havaí. (8) Ver acima, pp. 473 e 475.
488 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 489

dade entre as castas e da exploração do que o próprio Marx: A Filosofia aldeias da índia podia, na verdade, ser inferida a partir da contradição
da História dedica todo um trecho muito vivido a um assunto que é teórica que ela introduziu em todo o conceito de modo de produção
ignorado tanto pelos Grundrisse quanto por O Capital.9 Na verdade, asiático. Pois a presença, de um Estado centralizado e poderoso pres-
o sistema de castas fazia com que estas aldeias da índia — tanto na supõe uma estratificação de classes desenvolvida, segundo os mais ele-
época de Marx quanto antes — fossem uma das mais extremas nega- mentares princípios do materialismo histórico, e o predomínio da pro-
ções da imagem da comunidade bucólica "inofensiva" e da igualdade priedade comunal nas aldeias implica uma estrutura social pratica-
social existentes no mundo. Além disso, as aldeias rurais da índia mente pré-classista ou sem classes. Como reconciliar estas duas coisas?
nunca foram de forma alguma "desligadas" do Estado que pairava Do mesmo modo, a ênfase dada originariamente por Marx e Engels à
sobre elas, nem "isoladas" de seu controle. O monopólio imperial da importância das obras públicas de irrigação realizadas pelo Estado des-
terra na índia dos mongóis era exercido através de um sistema fiscal pótico era completamente incompatível com a ênfase que os autores
que impunha pesados tributos aos camponeses, a maioria dos quais passam a dar posteriormente à autonomia e auto-suficiência das al-
eram pagos em dinheiro ou em produtos agrícolas que eram subse- deias: pois aquela envolve precisamente a intervenção direta do Estado
qüentemente revendidos pelo Estado, desta forma limitando a autar- central no ciclo produtivo local das aldeias — o que é a antítese ex-
quia "econômica" das mais humildes comunidades rurais. Ademais, trema de seu isolamento econômico e independência.12 Assim, a com-
do ponto de vista administrativo as aldeias da índia sempre foram su- binação de um Estado despótico forte com aldeias comunais igualitá-
bordinadas ao Estado central, que nomeava seus chefes.10 Assim, lon- rias é intrinsecamente improvável; uma possibilidade praticamente ex-
ge de ser "indiferente" ao jugo mongol, o campesinato indiano levan- clui a outra, por motivos políticos, sociais e econômicos. Sempre que
tou-se em grandes revoltas contra a opressão, que diretamente apres- surge um Estado central poderoso, surge também uma diferenciação
saram a queda do domínio mongol. social avançada, e há sempre um emaranhado complexo de exploração
A auto-suficiência, a igualdade e o isolamento das aldeias india- e desigualdade que chega até as unidades de produção mais básicas. As
nas eram, portanto, simples mitos; tanto o sistema de castas que vigo- concepções de "propriedade tribal" ou "comunal" e de "aldeias auto-
rava dentro delas quanto o Estado que pairava acima delas tornava tais suficientes", que abriu caminho para a posterior inflação do conceito
coisas impossíveis.11 A falsidade empírica da visão que tinha Marx das de modo de produção asiático, não resistem a uma análise crítica. A
eliminação destas concepções desembaraça a falsa problemática das
formações sociais tribais ou antigas da questão do modo de produção
(9) A Filosofia da História, pp. 150-61. Hegel, embora afirmasse tranqüilamente asiático. Assim, voltamos ao assunto que interessava a Marx inicial-
que "a igualdade na vida social é algo absolutamente impossível" e que "este princípio mente: os grandes impérios asiáticos do início da era moderna, os des-
nos leva a ter que conviver com uma variedade de profissões, e com as distinções entre as
classes a que elas são atribuídas", não obstante não foi capaz de coriíj&r sua repulsa pelo potismos orientais caracterizados pela ausência de propriedade privada
sistema de castas hindu, no qual "o indivíduo pertence a uma classe por nascimento, da terra, que constituíram o ponto de partida da correspondência entre
e fica preso a ela até o fim da vida. Toda a vitalidade concreta que se manifesta desa- Marx e Engels a respeito dos problemas da história da Ásia. Se o con-
parece e morre. Uma cadeia prende a vida que estava prestes a explodir" (p. 152).
(10) "Em todo o país, o grupo dominante da aldeia era composto de aliados do ceito de "aldeias comunais" não resiste ao escrutínio da historiografia
Estado, pessoas que se beneficiavam com o sistema de exploração. Em todas as aldeias, a moderna, o que acontece com a noção de "Estado hidráulico*'?
camada inferior era representada pelos intocáveis, que viviam quase à margem da sub- Pois lembremos que as duas características fundamentais do Es-
sistência. A exploração externa era sancionada pela força militar, a exploração interna
pelo sistema de castas e suas sanções religiosas." Angus Maddíson, Ecanomic Growth tado oriental observadas inicialmente por Engels e Marx eram a ausên-
and Class Structure. índia and Pakistan since the Moghuls, Londres, 1971, p. 27. Ver
também Dumont, "The 'village community* from Munro to Maine", pp. 74-5, 88; Ha-
bib, TheAgrarían System ofMughal índia, pp. 328-38.
(11) Pode-se até afirmar que a única coisa que havia de correto na imagem que (12) Thorner ressalta mais uma contradição: Marx acreditava que a propriedade
linha Marx das aldeias da índia era a união entre ofícios e agricultura: mas esta carac- comunal indiana era a forma mais antiga de propriedade rural que havia no mundo, que
terística era comum a praticamente todas as comunidades rurais pré-industriais do mun- constituía o ponto de partida e a chave de todos os tipos subseqüentes de desenvolvimento
do, qualquer que fosse seu modo de produção, e nada revelava de específico a respeito doj de aldeias, e no entanto afirmava também que as aldeias indianas eram essencialmente
campo asiático. Na índia, além disso, a presença dessa estrutura de trabalho doméstico| estagnadas e não sofriam nenhuma evolução. As duas idéias são incompatíveis. "Mane
não excluía um volume considerável de trocas de produtos. on índia and the asiatic mode of production", p. 66.
490 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 491

cia de propriedade privada da terra e a presença de obras públicas de Engels perceberam entre todos os Estados por eles considerados asiá-
engenharia hidráulica de grande escala. Uma coisa pressupunha a ticos era enganosa, e em grande parte produto de sua inevitável desin-
outra; era a construção de grandes sistemas de irrigação, assumida formação, já que naquela época o estudo da história do Oriente estava
pelo Estado, que possibilitava o monopólio do soberano sobre a terra apenas começando na Europa. De fato, é impressionante constatar que
cultivada. A interligação entre as duas era o fundamento do caráter Marx e Engels herdaram praticamente in totum um discurso europeu
relativamente estacionário da história da Ásia, a base comum de todos tradicional referente à Ásia, e o reproduziram com poucas variações.
os impérios orientais que a dominaram. Cabe agora a pergunta; os As duas principais inovações — ambas já antevistas in nuce por autores
dados empíricos de que dispomos hoje em dia confirmam esta hipó- mais antigos, conforme já vimos — introduzidas por Marx e Engels
tese? A resposta é negativa. Pelo contrário, pode-se dizer que os dois foram a aldeia auto-suficiente e o Estado hidráulico, e ambas se revela-
fenômenos destacados por Marx e Engels como fundamentais à his- ram cientificamente insustentáveis. Sob certos aspectos, pode-se mes-
tória da Ásia representavam, paradoxalmente, princípios de desenvol- mo dizer que Marx e Engels regrediram em relação a seus predecesso-
vimento não associados e sim alternativos. Grosso modo, os dados mos- res no que diz respeito à visão européia da Ásia. Jones tinha mais cons-
tram que, dos grandes impérios orientais do inicio da era moderna que ciência das variações políticas existentes entre os diferentes Estados
despertaram o interesse de Marx e Engels, os que se caracterizavam orientais; Hegel percebeu com mais clareza o papel representado pelo
pela ausência de propriedade privada da terra — Turquia, Pérsia e ín- sistema de castas na índia; Montesquieu revelou um interesse maior
dia — jamais possuíram obras públicas de irrigação importantes, en- pelos sistemas religiosos e legais da Ásia. Nenhum desses autores rotu-
quanto o império que possuía tais obras — a China — era caracteri- lou de oriental a Rússia com tão poucos escrúpulos quanto Marx, e
zado pela existência de propriedade privada fundiária.13 Assim, os dois todos eles revelaram conhecimentos mais sólidos a respeito da China.
termos do binômio postulado por Marx e Engels não coincidiam, e sim Os comentários de Marx sobre a China, aliás, fornecem um
divergiam. Além disso, a Rússia, que os autores repetidamente incluí- exemplo final das limitações de seus conhecimentos de história da Ásia.
ram como parte do Oriente, como exemplo de "despotismo asiático", Embora não constasse das principais discussões entre Marx e Engels a
jamais foi caracterizada por grandes sistemas de irrigação nem pela respeito do modo de produção asiático, que diziam respeito basica-
ausência de propriedade privada de terra.14 A semelhança que Marx e mente à índia e ao mundo islâmico, nem por isso a China foi excluída
do âmbito de aplicação dos conceitos por eles elaborados nesse con-
texto.15 Tanto Marx quanto Engels repetidamente se referiam à China
(13) Adiante examinaremos os dados em questão. exatamente do mesmo modo como caracterizavam o Oriente em geral.
(14) A história das sucessivas "localizações" da Rússia no pensamento político
ocidental é por si só uma questão importante e reveladora, que nSo discutiremos aqui Suas alusões a ela eram mesmo particularmente categóricas. O "imper-
mais a fundo por limitações de espaço. Maquiavel ainda considerava a Rússia a "Citia"
clássica da antigüidade, "terra fria e pobre, onde há homens demais para a terra susten-
tar, de forma que são forçados a migrar, sofrendo muitas pressões no sentido de partir e
nenhuma no de ficar": assim, estava além das fronteiras da Europa, que para Maquia- "A Rússia é uma potência européia". Daí em diante, poucos contestaram a sério esta
vel terminava na Alemanha, Hungria e Polônia, os bastiões contra as invasões bárbaras: afirmação. Porém Marx e Engels, profundamente abalados com a intervenção contra-
II Príncipe e Discorsi, p. 300. Bodin, por outro lado, incluía a "Moscóvia" na Europa* revolucionária do czarismo em 1848, repetidamente — e anacronicamente — se referi-
porém a isolava, considerando-a o único exemplo de "monarquia despótica" no conti- ram ao czarismo como um "despotismo asiático", incluindo a índia e a Rússia numa
nente, ao contrário dos reinos constitucionais dos outros países da Europa, que contras- mesma diatribe. Em particular, o teor geral das opiniões de Marx sobre a história e socie-
tavam com os da Ásia e África: "Em plena Europa, os príncipes da Tartária e Moscóvia dade da Rússia muitas vezes não revela equilíbrio nem controle.
governam súditos denominados kholopi, o que significa escravos": Lês Six Livres de Ia (15) Por vezes aventa-se que Marx não mencionou a China em suas análises origi-
Republique, p. 201. Montesquieu, pelo contrário, dois séculos depois elogiava o governo nais do despotismo asiático em 1853 talvez por saber que no século XIX havia proprie-
russo por ter abandonado os hábitos do despotismo: "Vede com que empenho o governo dade privada da terra no Império Chinês. Num artigo de 1859, Marx citou um relatório
de Moscóvia tenta abandonar um despotismo que é um fardo ainda mais pesado para si inglês que, entre outras coisas, mencionava a existência de camponeses proprietários na
próprio do que é para seus povos". Montesquieu estava convicto de que a Rússia agora China: "Trade with China", Marx on China, Londres, 1968, p. 91; há também uma
fazia parte da Europa: "Pedro I deu os costumes e maneiras da Europa a uma nação passagem de O Capital que dá a entender que o sistema de propriedade das aldeias
européia, e, ao faze-lo, encontrou facilidades que ele próprio não esperava encontrar", chinesas era mais avançado — ou seja, menos comunal — que o das aldeias da índia:
Del'EspritdesLois, I, pp. 66, 325-6. Naturalmente, estas discussões tinham repercussão Capital, III, p. 328. Na verdade, porém, como mostram as passagens discutidas acima,
na própria Rússia. Em 1767, Catarina II declarou oficialmente em seu famoso Nakax: Marx claramente não fazia nenhuma distinção geral entre a China e o Oriente.
492 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 493

turbável Império Celestial" era um bastião do "arqui-reacionarismo e As tentativas modernas de construir uma teoria desenvolvida do
arquiconservadorismo" que eram "a verdadeira antítese da Europa", "modo de produção asiático" com base no legado desconexo de Marx e
encerrado num "isolamento bárbaro e hermético em relação ao mundo Engels — seja seguindo a direção "comunal-tribal" ou a "hidráulica-
civilizado". A "semicivilização putrefaciente" do "mais velho império despótica" — são, portanto, empreendimentos essencialmente equivo-
do mundo" inculcava uma "estupidez hereditária" em sua população; cados. Subestimam tanto o ônus da problemática anterior que Marx e
"vegetando em desafio ao tempo", era um "representante do mundo Engels aceitavam quanto a vulnerabilidade das limitadas modificações
antiquado" que se esforçava no sentido de "auto-iludir-se com fanta- que os dois autores introduziram. O "modo de produção asiático",
sias de perfeição celestial".1/ Num artigo significativo de 1862, Marx ainda que eliminados os mitos da aldeia comunal, continua sendo pre-
mais uma vez aplicou à China sua formulação padrão de despotismo judicado pelas suas fraquezas inerentes devidas à sua condição de cate-
oriental e modo de produção asiático. Comentando a rebelião do Tai goria residual para abarcar todas as formas não-européias de desenvol-
P'ing, afirmou que a China, "este fóssil vivo", agora estava convulsio- vimento,20' combinando dessa forma características de formações so-
nada por uma revolução, acrescentando: "Não há nada de extraordi- ciais distintas num único arquétipo confuso. A distorção mais gritante
nário neste fenômeno, já que os impérios orientais se caracterizam pela e pronunciada que resultou deste procedimento foi a atribuição persis-
imobilidade permanente de suas bases sociais e mudanças incessantes tente de um caráter "estacionário" às sociedades asiáticas. Na verdade,
dos indivíduos e tribos que assumem o controle da superestrutura polí- a ausência de uma dinâmica feudal de tipo ocidental nos grandes im-
tica".17 As conseqüências intelectuais desta concepção estão particu- périos orientais não implica que seu desenvolvimento fosse estagnado
larmente evidentes na avaliação feita por Marx da própria rebelião do ou cíclico. A história da Ásia no início da era moderna foi marcada por
Tai P'ing — o maior levante de massas exploradas e oprimidas ocor- mudanças e progressos imensos, embora não desaguassem no capita-
rido no século XIX em todo o mundo. Pois Marx, paradoxalmente, lismo. Esta relativa ignorância gerou a ilusão de que os impérios orien-
reagiu com a maior hostilidade e acrimônia aos rebeldes do T'ai P'ing, tais teriam um caráter "estacionário" e "idêntico", quando hoje em dia
que chegou a descrever nesses termos: "Eles são ainda mais abominá- o que mais chama a atenção do historiador é sua diversidade e desen-
veis para as massas populares do que os antigos dirigentes. Seu destino, volvimento. Para ficarmos apenas num esboço o mais breve possível, o
aparentemente, não é mais do que opor-se à estagnação conservadora
com um reino de destruição grotesca e detestável, uma destruição que
não contém nenhum núcleo novo ou construtivo".18 Os rebeldes, "ele- (20) Ernest Mandei ressalta, com razão, que a verdadeira função original do con-
mentos do lumpemproletariado, vagabundos e malfeitores", recebe- ceito para Marx e Engels era tentar explicar "o desenvolvimento especial do Oriente em
ram "carta branca para cometer todas as atrocidades imagináveis em comparação com a Europa ocidental e mediterrânea": The Formation of the Economic
Thought of Karl Marx, Londres, 1971, p. 128. (Há uma tradução brasileira: a For-
relação às mulheres e moças", e "após dez anos de pseudo-atividade mação do Pensamento Econômico de Karl Marx — de 1843 até a redação de O Capital.
ruidosa, destruíram tudo e não produziram nada'1.19 Este vocabulário,, Rio de Janeiro, Zahar, 1968, p. 127.) Este livro contém a crítica marxista mais perceptiva
copiado sem reservas dos relatórios consulares ingleses, mostram com ds versões "tribal-comunais" do conceito de modo de produção asiático, pp. 124-32;
porém peca por um excesso de confiança nas versões "hidráulicas". Mandei justificada-
mais clareza do que qualquer outra coisa o abismo de incompreensão! mente acusa Godelier e outros de "gradualmente reduzir as características do modo de
que separava Marx das realidades da sociedade chinesa. Na prática,j produção asiático àquelas que caracterizam todas as primeiras manifestações do Estado
nem Marx nem Engels conseguiram dedicar à história da China um| e das classes dominantes numa sociedade ainda essencialmente baseada na aldeia", e
corretamente ressalta que "nos escritos de Marx e Engels a idéia de modo de produção
atenção maior: seus interesses essenciais eram outros. asiático não está relacionada apenas a alguma sociedade 'primitiva1 indiana ou chinesa,
perdida nas brumas do passado, e sim às sociedades indiana e chinesa tal como se encon-
travam quando o capital industrial europeu as descobriu no século XVIII, ás vésperas da
(16) Marx-Engels, On Colonialism, pp, 13-16, 111, 188. conquista (índia) ou penetração intensa (China) desses países realizada por este capital"
(17) "Chinesisches", Werke, Bd 15, p. 514. Este artigo não está incluído na i — uma sociedade que "não era em absoluto 'primitiva', no sentido de não haver classes
cão em língua inglesa Marx ou China, e foi escrito depois dos artigos nela contid sociais claramente definidas ou constituídas": pp. 125, 127, 129. Porém Mandei não vê
(18) Werke, Bd 15, p. 514. Na verdade, o "Reino dos Céus" da rebelião do ' que até certo ponto o próprio Marx deu origem a esta confusão^ Por outro lado, ao rea-
P*ing incluía um amplo programa utópico, de caráter igualitário. firmar a centralidade das funções hidráulicas exercidas por um Estado altamente desen-
(19) Werke, Bd 15, p. 515. Na verdade, os seguidores do movimento Tai P*| volvido, até mesmo hipertrofiado, no contexto do modo de produção asiático, Mandei
observavam um regime puritano de abstinência e disciplina. não se dá conta da fragilidade empírica desta hipótese.
494 PERRY ANDERSON

contraste entre os sistemas sócio-políticos islâmico e chinês, na Ásia


que constituiu o foco inicial do interesse de Marx e Engels, não poderia
ser mais gritante. A expansão de ambos fora, na verdade, imensa, e
cessara há relativamente pouco tempo. A civilização islâmica atingiu
sua maior expansão geográfica no início do século XVII; o Sudeste
Asiático já fora conquistado, a maior parte da Indonésia e da Malaia
IV
fora convertida, e — o mais importante — três poderosos impérios
islâmicos, a Turquia otomana, a Pérsia dos safávidas e a índia dos Os impérios islâmicos do início da era moderna, dos quais .o oto-
mongóis, coexistiam, todos eles com grande riqueza econômica e pode- mano era aquele com que a Europa tinha mais contato, herdaram um
rio militar. A civilização chinesa atingiu o auge de sua prosperidade e antigo legado institucional e político. O modelo original árabe de con-
expansão geográfica durante o século XVIII, quando os imensos terri- quista e conversão fixou o curso da história do Islã segundo certas li-
tórios da Mongólia, Sinkiang e Tibete foram conquistados pela dinas- nhas às quais ela permaneceu relativamente fiel. Os nômades do de-
tia Ch'ing e a população dobrou no intervalo de um século, atingindo serto e os mercadores urbanos foram os dois grupos sociais que, em-
um nível cinco vezes maior do que o de três séculos antes. Porém as bora o tivessem rejeitado de início, garantiram o sucesso de Maomé no
estruturas sócio.-econômicas e os sistemas de Estado que caracteri- Hedjaz: seus ensinamentos tiveram o efeito preciso de proporcionar a
zavam os dois impérios eram bem distintos, e seus contextos geográfi- unificação ideológica e psíquica de uma sociedade em que a coesão de
cos eram muito diferentes. No que se segue, não se tentará colocar a clã e família estava sendo cada vez mais abalada pelas divisões de classe
questão central de definir os modos de produção fundamentais e suas nas cidades e pelos conflitos tribais no deserto, à medida que o inter-
complexas combinações, que constituíram as sucessivas formações so- câmbio de produtos dissolvia os costumes e vínculos tradicionais nas
ciais da história das civilizações islâmica e chinesa: o termo genérico rotas comerciais ao norte da península.1 Como praticamente todos os
"civilizações" pode ser entendido aqui como nada mais que um rótulo povos pastoris nômades, as tribos beduínas da Arábia haviam combi-
convencional que oculta estes problemas concretos e não resolvidos. nado a propriedade privada de rebanhos com o uso coletivo da terra:2
Mas mesmo sem abordá-los diretamente, podem-se fazer certos con- a propriedade privada fundiária era tão desconhecida nos desertos do
trastes preliminares, sujeitos às inevitáveis correções posteriores que se norte da Arábia quanto na Ásia central. Por outro lado, os prósperos
fizerem necessárias. mercadores e banqueiros de Meca e Medina possuíam terra tanto na
cidade quanto nas zonas rurais em seus arredores.3/ Quando ocorreram
as primeiras vitórias islâmicas, nas quais ambos os grupos participa-
ram, o destino dado aos territórios conquistados refletia basicamente
as concepções dos habitantes das cidades: Maomé aprovou a divisão
dos despojes — inclusive terra — entre os fiéis. Mas quando os exér-
citos árabes percorreram o Oriente Médio nas grandes jihads islâmi-
cas do século VII, após a morte de Maomé, as tradições dos beduínos
gradualmente foram se reafirmando, sob nova forma. De início, as pro-
priedades reais ou de inimigos nos impérios bizantino e persa, cujos
donos haviam sido vencidos pela força das armas, eram confiscadas e

(1) Com relação às bases sociais da origem do Islã, ver Montgomery Watt, Mu-
hammadat Mecca, Oxford, 1953, pp. 16-20, 72-9, 141-4,152-3.
(2) B. Lewis, The Arabs in ffistory, Londres, 1950, p. 29.
(3) F. Lòkkegaard, Islamic Taxation in the Clássica! Period, Copenhagen, 1950,
pp. 20, 32.
496 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 497

delas se apropriava a comunidade islâmica, a Umma, comandada pelo priedade fundiária, uma vez que o conceito de "propriedade" sempre
califa que havia herdado a autoridade do Profeta; as terras que per- envolve pluralidade e negatividade: a plenitude de um único proprie-
tenciam a infiéis que se renderam através de negociações eram deixa- tário exclui as divisões necessárias que dão à propriedade suas frontei-
das em suas mãos, mediante o pagamento de tributo; e os soldados ras nítidas.
árabes recebiam em arrendamento (qat'ia) terras confiscadas, ou po- Assim, o estado característico das leis islâmicas em relação à pro-
diam comprar terras para si fora da Arábia, mediante o pagamento de priedade de terra era de "vacilação" e "caos" endêmicos, como já foi
uma dízima religiosa.4 observado muitas vezes.8 O que piorava esta confusão era o caráter
Porém em meados do século VIII já se desenvolvera um imposto religioso da jurisprudência islâmica. A lei sagrada do shari'a, que se
sobre terras mais ou menos uniforme, o kharaj, que todos os agricul- desenvolveu durante o segundo século após a Hégira e tornou-se for-
tores tinham de pagar ao califado, qualquer que fosse sua religião; os malmente aceita pelo califato abássida, compreendia "um corpo de
infiéis tinham, além disso, de pagar um tributo discriminatório, oyV- obrigações religiosas que a tudo abrange, a totalidade dos mandamen-
zya. Ao mesmo tempo, cresceu muito a categoria de terras "tomadas", tos de Alá que regulamentam a vida de todo muçulmano sob todos os
em detrimento das terras "negociadas". Estas mudanças foram fixa- seus aspectos".9 Precisamente por este motivo, sua interpretação era
das pelo estabelecimento formal, durante o califado de Umar II (717- caracterizada por disputas teológicas entre escolas rivais. Além disso,
20), da doutrina segundo a qual todas as terras eram, por direito de embora em princípio ela fosse universal, na prática existia o governo
conquista, de propriedade do soberano, e os súditos pagavam ao califa secular como um domínio separado: o soberano gozava de um poder
arrendamentos correspondentes a elas. "O conceito de fay' (espólio), praticamente ilimitado de "completar", conforme seu entendimento, a
em sua forma final, significa que, em todos os países conquistados, lei sagrada no que dizia respeito a questões que afetavam o Estado dire-
o Estado se reserva direitos absolutos de propriedade sobre todas as tamente — em particular, a guerra, a política, a tributação e o crime.!0
terras."6 Os vastos territórios recém-adquiri dos pelo mundo islâmico Assim, havia sempre um fosso muito grande entre teoria jurídica e prá-
eram, portanto, daí em diante oficialmente propriedade do califado; tica legal no Islã clássico, manifestação inevitável da contradição entre
e apesar de muitas interpretações divergentes e derrogações locais, o um Estado secular e uma comunidade religiosa numa civilização que
monopólio estatal sobre a terra tornou-se um cânone legal tradicional não conhecia qualquer distinção entre Igreja e Estado. Havia sempre
dos sistemas políticos islâmicos — desde os Estados omíada e abássida "duas justiças" em vigor no interior da Umma. Além disso, a diver-
até a Turquia otomana e a Pérsia dos safávidas.7<Assim, não era intei- sidade de escolas religiosas de jurisprudência tornava impossível qual-
ramente infundada a idéia de Marx de que a difusão deste princípio na quer codificação sistemática até mesmo da lei sagrada. O resultado era
Ãsia talvez se devesse em grande parte às conquistas islâmicas. Natu- a impossibilidade de surgir uma ordem legal lúcida e precisa, qualquer
ralmente, na prática o sistema quase sempre funcionava de modo pre- que fosse. Assim, em relação à terra, o shari'a não desenvolveu prati-
cário e imperfeito, especialmente nos primórdios da história do mundo camente nenhum conceito claro e específico de propriedade, e a prá-
islâmico — a época "árabe" propriamente dita, após a Hégira. Pois tica administrativa freqüentemente ditava normas que não guardavam
não havia organismos políticos na época capazes de garantir ao Estado nenhuma relação com ele.11 Portanto, fora o direito de propriedade do
um controle integral e eficaz sobre toda a propriedade agrária. Além califa sobre toda a terra, normalmente o que havia era uma extrema
disso, a própria existência jurídica de um tal monopólio inevitavel- tndeterminação jurídica em relação à terra. Após as conquistas iniciais
mente impedia o surgimento de categorias precisas e unívocas depro-

(8) Ver os comentários característicos de Lókkegaard, op. cit,, pp. 44,50.


(4) R. Mantran, L'Expansion Musulmane (Vlle-Xle Siècles), Paris, 1969, pp. (9) J, Schacht, An Introduction to hlamic Law, Oxford, 1964, pp. 1-2, 200-1
105-6, 108-10; Lewis, op. cit., p. 57. (10) Idem,pp. 54-5,84-5.
(5) Lííkkegaard, op. cit., p. 77. (11) Schacht, An Introduction to Islamic Law: "A teoria do direito islâmico por-
(6) fdem.p.49. tanto desenvolveu apenas alguns rudimentos de uma lei especial de propriedade imobi-
(7) R. Levy, The Social Strucíure ofhlam, p. 401; X. De Planhol, Lês Fandé- liária; as condições de i>osse da terra na prática eram muitas vezes diferentes da teoria,
ments Géographiques del'Histoiredel'lslam, p. 54. variando conforme o lugar e a época" (p. 142).
498 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 499

dos árabes no Oriente Médio, o campesinato local nas terras subjuga- produção agrária e apropriação de excedentes urbanos, mediada pela
das normalmente continuava a exercer a posse sobre suas terras; en- estrutura tributária do Estado. Caracteristicamente, não surgiu no
quanto terras de kharaj, elas eram consideradas parte àofay* coletivo campo nenhum relacionamento direto entre proprietário e camponês:
do soberano, sendo portanto oficialmente propriedade estatal. Na prá- era o Estado que arrendava certos direitos de exploração rural a fun-
tica, na maioria das regiões havia poucas restrições à utilização da terra cionários militares ou civis, que moravam em cidades — basicamente a
pelos camponeses que a cultivavam — assim como, por outro lado, arrecadação do imposto sobre a terra, denominado kharaj. O resultado
havia poucas garantias; enquanto em outras regiões, tais como o Egito, foi o 'iqta árabe, precursor do tintar otomano e óojagir da índia mon-
os direitos do Estado sobre a terra eram exercidos rigidamente.12'As- gol. Os 'iqta dos abássjdas eram, na prática, concessões de terras a
sim, também, os qat'ia distribuídos aos soldados islâmicos na era guerreiros, que assumiam a forma de autorizações fiscais distribuídas a
omíada eram teoricamente arrendamentos enfitêuticos de domínios rentiers urbanos absenteístas para oprimir pequenos agricultores. Os
públicos, mas na prática podiam se tornar hipotecas pessoais de quase- estados dos buídas e dos seldjúcidas, bem como os primeiros da dinas-
propriedade. Por outro lado, a herança divisível governava este qat' tia osmanli, impunham o serviço militar aos indivíduos que recebiam
ia, bem como outras formas de posse individual, e normalmente impe- tais direitos, ou versões posteriores deles, mas a tendência natural do
dia a consolidação de grandes propriedades hereditárias onde vigorava sistema sempre foi de degenerar numa exploração parasítica dos agri-
a lei sagrada. Assim, a propriedade fundiária no mundo islâmico sem- cultores através de impostos — o iltizam do final do período otomano.
pre se caracterizou por ambigüidade e improvisação. Mesmo com um controle centralizado rigoroso, o monopólio estatal da
O corolário da ausência legal de propriedade privada estável de terra, através da comercialização dos direitos de exploração absenteís-
terra era a destruição econômica da agricultura nos grandes impérios ta, constantemente reproduzia uma atmosfera geral de indeterminação
islâmicos. Em sua forma mais extrema, este fenômeno típico manifes- legal, e impedia o surgimento de qualquer tipo de relacionamento posi-
tava-se como a "beduinização" de extensas áreas de cultivo em mãos de tivo entre o agricultor e o indivíduo que o explorava.15 Em conseqüên-
camponeses, que sob o impacto da invasão de povos pastoris ou de cia deste fato, na melhor das hipóteses, as grandes obras de engenharia
saques militares eram reduzidas a terras abandonadas e áridas. Em hidráulica já existentes eram mantidas e reparadas; na pior, abando-
geral, as primeiras conquistas árabes no Oriente Médio e no norte da nadas ou danificadas. Nos primeiros séculos das dinastias omíada e
África inicialmente parecem ter preservado ou restaurado as práticas abássida, de modo geral os canais da Síria e do Egito foram conser-
agrícolas preexistentes, ainda que sem acrescentar-lhes muita coisa. vados, e o sistema subterrâneo de qanat da Pérsia foi até expandido,
Mas as ondas subseqüentes de invasões de nômades que se sucederam Mas já no século X a rede de canais da Mesopotâmía estava em mau esta-
no desenvolvimento do mundo islâmico tiveram muitas vezes um im- do, pois o nível do solo subia e alguns canais eram abandonados.16 Ja-
pacto destrutivo duradouro sobre a agricultura estabelecida. Os dois
casos mais extremos foram a devastação da Tunísia pelos hilalis e a
beduinização da Anatólia realizada pelos turcomanos.13 A tendência a
longo prazo desta curva era negativa. Mas desde o início, em pratica- (14) Em relação às mudanças de forma e função do 'iqta, ver C. Cahen, "L'évo-
lution de 1'Íqta du Xle au Xlle siêcle", Annales ESC, janeiro-março de 1953, n? l,
mente todos os lugares foi estabelecida uma divisão permanente entre pp. 25-52.
(15) Ver a passagem memorável em Planhol, Lês Fondéments Géographiques,
pp. 54-7. Ibn Khaldun, com um desprezo característico, jogou no mesmo saco os campo-
neses e os pastores, taxando ambos de habitantes primitivos do interior rural: como diz
(12) Claude Cahen, L 'Islam dês Origins au Débuí de 1'Empire Qttomane, Paris, Goitein, "tanto os feias quanta os beduínos estão além das fronteiras da civilização" para
1970, p. 109: em relação às condições gerais da agricultura da época, ver pp. 107-13. ele: A Mediterranean Society, I, p. 75,
O livro de Cahen é a melhor das sínteses recentes sobre o período árabe da história do (16) D. e J. Sourdel, La Civilisation deTIslam Classique, Paris, 1968, pp. 272-87,
Islã. examinam o papel e o destino das obras de engenharia hidráulica nos períodos omíada e
(13) Cahen, L'Islam, p. 103, ressalta a distinção entre as conquistas iniciais do : abássida; ver em particular pp. 279, 289. Os autores ressaltam que o sistema de irrigação
século VII e as devastações dos nômades posteriores, tendendo a atribuir as piores destat l! do Iraque estava em completo declínio muito antes das invasões dos mongóis, aos quais &
devastações às invasões dos mongóis nao-islâmicos do século XIII, p. 247. De Planhol i decadência do sistema foi posteriormente atribuída muitas vezes. Os qanat subterrâneos
muito mais abrangente: ver seu relato vivido do processo de beduinização na agricultor! da Pérsia, naturalmente, surgiram bem mais de mil anos antes da conquista islâmica,
islâmica em geral, em Lês Fondéments Géographiques de l'Histoire de 1'hlam, pp. 35-7*1 tendo sido uma característica importante do Estado aquemênida: ver H. Goblot, "Dans
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mais ioi construído um sistema de irrigação novo comparável em escala micos, chegando a elevados níveis técnicos e inspirando a compilação de
às antigas represas do lêmen, cuja ruína constituiu um prólogo apro- tratados sobre plantas e arbustos, da Andaluzia até a Pérsia.20 O motivo
priado ao nascimento do Islã na Arábia.17 A única invenção impor- deste fato é revelador: os jardins e pomares eram normalmente situados
tante no campo da agricultura que ocorreu desde a conquista árabe do nas cidades e subúrbios, e portanto estavam excluídos do âmbito
Oriente Médio, o moinho de vento, surgiu na Pérsia, na região de Sis- da propriedade estatal, que tradicionalmente permitia a propriedade
tan, e pelo visto acabou beneficiando mais a agricultura européia que a privada do solo nas cidades. Assim, a horticultura eqüivalia a um setor
islâmica. A indiferença ou mesmo o desprezo pela agricultura impedia industrial "de luxo", sustentado pelos ricos e poderosos, que desfru-
até mesmo o surgimento de uma classe estável de servos: a classe ex- tavam do prestígio conferido pelas próprias cidades, cujos jardins mui-
ploradora nunca deu importância à mão-de-obra a ponto de se preocu- to bem cuidados floresciam à sombra dos palácios e minaretes.
par muito com a adscrição de camponeses. Nestas condições, a produ- Pois o mundo islâmico sempre foi — desde as primeiras conquis-
tividade agrária repetidamente estagnava ou regredia nos países islâ- tas árabes — um amplo sistema de cidades encadeadas, separadas pelo
micos, originando um panorama rural de "mediocridade desoladora" campo abandonado e desprezado. Nascida na cidade de Meca, situada
em muitos casos.18 numa rota de caravanas, e herdeira do legado metropolitano da anti-
Duas exceções notáveis confirmam estas regras gerais que vigo- güidade tardia do Mediterrâneo e da Mesopotâmia, a civilização islâ-
ravam no campo. Por um lado, o baixo Iraque dos abássidas no século mica era caracteristicamente urbana, incentivando a produção de mer-
VIII produzia açúcar, algodão e anil, em plantações organizadas como cadorias, o comércio e a circulação de moeda nas cidades que, desde o
empresas comerciais sofisticadas em terras pantanosas aproveitadas, início, a constituíam. No princípio, os nômades árabes que conquis-
por mercadores de Basra. A exploração racional desta economia agrí- taram o Oriente Médio estabeleceram seus acampamentos militares no
cola, que prefigurou a economia do açúcar estabelecida pelo colonia- deserto, perto de capitais que já existiam, que vieram a se tornar gran-
lismo europeu no Novo Mundo, era coisa muito diferente da regra geral des cidades — Kufa, Basra, Fostat, Kairuan. Depois, com a estabili-
de fiscalismo indolente: porém ela se baseava no uso intensivo de es- zação do domínio islâmico do Atlântico ao Golfo Pérsico, nas regiões
cravos africanos importados de Zanzibar. Porém a escravidão rural nun- mais privilegiadas do califado ocorreu talvez a maior e mais rápida ex-
ca foi uma prática estabelecida na agricultura islâmica em geral: as plan- pansão urbana de todos os tempos. Segundo uma estimativa recente
tações do Iraque permaneceram como um episódio isolado, ressaltando (sem dúvida exagerada), a cidade de Bagdá atingiu uma população de
a ausência de uma capitalização da produção comparável em qualquer 2 milhões de habitantes em menos de meio século, de 767 a 800.21 Esta
outro lugar no mundo islâmico.19 Por outro lado, observa-se que a horti- urbanização concentrada em lugares específicos era em parte o reflexo
cultura sempre ocupou uma posição especial nos sistemas agrários islâ- do "baom do ouro" das eras omíada e abássida, quando entraram em
circulação tesouros egípcios e persas, a produção do Sudão foi canali-
zada para o mundo islâmico e as técnicas de mineração melhoraram
Fancien Iran, lês techniques de Feau et Ia grande histoire", Annales ESC, maio-junho de sensivelmente com a utilização do amálgama de mercúrio; e em parte
1963, pp. 510-11.
(17) A misteriosa queda das grandes barragens de Marib no lêmen coincidiu com foi resultado da criação de uma zona de comércio unificada de dímen-
a mudança da vitalidade econômica e social do sul da Arábia para o norte no século VI;
Engels tinha consciência da importância básica da regressão do lêmen para a ascensão
do Islã no Hedjaz, embora ele lhe atribuísse uma data mais antiga do que a verdadeira t
achasse que sua causa praticamente exclusiva era a invasão etiope: Marx-Engels, Selec* (20) Planhol, op. cit., p. 57; André Miquel, L'Islam et sã Civilisation, V2Ie-XXe
ted Correspondence, pp. 82-3. Siècles, Paris, 1968, pp. 130, 203; Irfan Habib, "Potentíalities of capitalist development
(18) A expressão é de Planhol, op. cit., p. 57. Um relato mais otimista pode ín the economy of mughal índia", The Journal of Economic History, XXIX, março de
encontrado em C. Cahen, "Economy, society, institutions", The Camhridge fíistory \ 1969, pp. 46-7,49.
Islam, II, Cambridge, 1970, pp. 511-2 ss. Planhol equipara de forma acrítica os padr (21) M. Lombard, L'lslam dans sã Première Grandeur (Vlle-Xle Siècles), Paris,
agrícolas islâmicos aos da antigüidade clássica, e faz generalizações indevidas, mas sul 1972, p. 121. G. Von Grunebaum, Clássica! fslam, Londres, 1970, p. 100, estima a
análises geográficas das conseqüências finais do desprezo dos muçulmanos pela agriculj população de Bagdá em 300 mil, em contraste. Cahen julga impossível avaliar com pre-
tura são muitas vezes muito convincentes. cisão o tamanho de cidades como Bagdá nessa época: "Economy, society, institutions",
(19) Em relação às plantações dos zanjes, ver Lewis, The Arabs in Histtfy p. 521. Mantran faz ressalvas às estimativas feitas por Lombard da escala da urbani-
pp. 103-4. zação do mundo islâmico em seusprimórdÍos:Í'£jçpa«Jíbn Musitlm&ne, pp. 270-1,
502 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 503

soes intercontinentais. A classe comerciante do mundo árabe, que es- riavelmente ameaçado por intrigas e reveses, e sua riqueza podia sem-
tava na crista dessa onda de prosperidade comercial, era respeitada e pre ser confiscada por governantes militares. A simetria e ordem muni-
honrada pelas leis religiosas e pela opinião da sociedade: a vocação de cipal das cidades do mundo clássico tardio que foram tomadas pelos
comerciante e manufator era sancionada pelo Corão, que jamais disso- exércitos árabes no início das conquistas exerceram uma certa influên-
ciou o lucro da fé.22 Os recursos financeiros e empresariais do comércio cia inicial sobre as cidades do sistema imperial que as sucederam, mas
islâmico em pouco tempo tornaram-se muito avançados; de fato, foi no esta influência em pouco tempo morreu, sendo lembrada apenas em
Oriente Médio que a instituição da commenda — que viria a desempe- alguns conselhos privados ou palacianos de alguns soberanos poste-
nhar um papel tão importante na Europa medieval — foi inventada. ^ riores.25 Assim, a cidade islâmica típica não tinha nenhuma estrutura
Além disso, as fortunas acumuladas pelos mercadores árahes não eram interna coerente, nem administrativa nem arquitetônica. Eram labirin-
mais transportadas apenas por rotas de caravanas. Um dos aspectos tos confusos e amorfos de ruas e prédios, sem centros públicos nem es-
mais notáveis do início do período de expansão islâmica foi a rapidez e paços: seus únicos centros eram as mesquitas e os bazares, e as oficinas
facilidade com que os árabes do deserto aprenderam a dominar o mar. de artesãos que se concentravam em torno deles.26 Assim como ne-
O Mediterrâneo e o Oceano Indico foram reunidos mim mesmo sistema nhuma associação mercantil nem profissional organizava o conjunto de
marítimo pela primeira vez desde o período helenístico; e os navios comerciantes prósperos, nenhuma guilda protegia nem regulava as ati-
muçulmanos do califado abássida se aventuravam desde o Atlântico até vidades dos pequenos artesãos das grandes cidades árabes.27 Eram os
o mar da China. Ó mundo islâmico, situado entre a Europa e a China, aglomerados residenciais e as associações religiosas que proporciona-
passou a dominar o comércio entre Ocidente e Oriente. A riqueza acu- vam um ponto de apoio, ainda que humilde, para a vida do povo, num
mulada pelo comércio, por sua vez, estimulou as manufaturas, princi- meio urbano que se fundia imperceptivelmente com os subúrbios e as
palmente os têxteis, o papel e a porcelana. À medida que os preços aldeias rurais. Abaixo da classe devota dos artesãos, normalmente en-
subiam constantemente e o campo afundava na depressão, o artesanato contrava-se um submundo de quadrilhas de criminosos e mendigos
urbano e o consumo de luxo floresciam nas cidades. Esta configuração entre desempregados e membros do lumpemproletariado.28 O único
não se restringiu ao califado dos abássidas. Os impérios islâmicos sub- grupo institucional que conferia uma certa unidade à cidade era o ule-
seqüentes foram sempre caracterizados pelo extraordinário crescimen- mato, que continuava a reunir os papéis clerical e secular e um zelo
to das principais cidades: os exemplos mais conhecidos são Constanti- religioso volúvel, e até certo ponto agia no sentido de mediar e unificar
nopla, Isfahan e Delhi. as camadas da população abaixo do príncipe e seus guardas.29 Porém
Porém a grandeza econômica e a opulência destas cidades islâ- eram estes que determinavam o destino das cidades. Crescendo caoti-
micas não vinha acompanhada de autonomia municipal nem de condi-
ções urbanas. As cidades não tinham identidade política de municípios;
os mercadores que nelas viviam tinham pouco poder social enquanto (25) D. e J. Sourdel, op. cit.,pp. 424-7.
(26) Planhol, op, cír., pp. 48-52, apresenta um painel muito vivido, embora tal-
classe. Desconheciam-se os forais, e a vida de todas as cidades era su- vez atribua uma data um pouco antiga demais à confusão típica das cidades islâmicas:
jeita à vontade mais ou menos arbitrária dos príncipes ou emires. Co- cf. Sourdel. op. cit., pp. 397-9, 430-1.
merciantes individuais às vezes atingiam os mais elevados postos polí- (27) O texto mais recente em que se reafirma a total ausência de guildas no
mundo islâmico antes do final do século XV é G. Baer, "Guilds in middle eastern his-
ticos nos conselhos das dinastias;24- porém seu sucesso pessoal era inva- tory", in M. A. Cook (Org.), Studies in the Economic History ofthe Middle East, Lon-
dres, 1970, pp, 11-7.
(28) Estas características são apresentadas em I. M. Lapidus, Muslim Chies in
the Later Middle Ages, Cambridge-EUA, 1967, pp. 170-83 (quadrilhas de criminosos e
di A melhor análise desta questão é a de Maxime Rodinson, Islam and Capita- mendigos) e "Muslim citíes and islamic societies", in Lapidus (Org.), Middle Eastern
tistn, Londres, 1974, pp. 28-55. Rodinson também apresenta uma crítica bem abalizada Cities, Berkeley-Los Angeles, 1969, pp. 60-74 (ausência de comunidades urbanas delimi-
da idéia de Weber de que a ideologia islâmica era, de modo geral, hostil à atividade tadas e cidades auto-suficientes). Lapidus protesta contra os tradicionais contrastes esta-
comercial racionalizada: pp. 103-17. belecidos entre cidades da Europa Ocidental e do mundo islâmico na Idade Média, m&i
(23) Ver A. L. Udovitch, "Commercial techniques in early mediaeval islamic tra- as descrições que ele apresenta têm o efeito de reforçar muito tais contrastes, ainda que
de", in D. S. Richards (Org.), Islam and the Trade of Ásia, Oxford, 1970, pp. 37-62. refinando-os.
(24) Exemplos disto encontram-se em S, D. Goitein, Studies in Islamic History (29) Lapidus, pp. ciV., pp. 107-13.
andlnstitutions, Leiden, 1966, pp. 236-9.
504 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 505

camente, sem forais nem qualquer planejamento, as cidades islâmicas gaznávida no Khurasan, e dominaram o califado abássida em seu pe-
dependiam normalmente do Estado cuja fortuna lhes conferira sua ríodo de decadência no Iraque; regimentos de escravos núbios sitiaram
prosperidade. o califado fatímida, e escravos circassianos e turcos trazidos do mar
Os Estados islâmicos, por sua vez, eram normalmente de origem Negro administravam o Estado mameluco no Egito; escravos eslavos e
nomádica: os omíadas, hamdanidas, seldjúcidas, almorávidas, almôa- italianos chefiaram os últimos exércitos do califado omíada na Espa-
das, osmanlis, safávidas e mongóis desenvolveram sistemas políticos a nha, e criaram seus próprios reinos taifa na Andaluzia quando o cali-
partir de confederações de nômades do deserto. Até mesmo o califado fado caiu; eram escravos georgianos e armênios que constituíam os re-
dos abássidas, talvez o de origem mais urbana e estabelecida, de início gimentos de elite ghulam do Estado safávida na Pérsia sob o xá Ab-
dependia basicamente, em termos de poder militar, das tribos que bas.32 O caráter estrangeiro e servil dessas unidades palacianas corres-
haviam recentemente colonizado o Khurasan. Todos esses estados islâ- pondia à estranha lógica estrutural de sucessivos Estados islâmicos.
micos, bem como o próprio Império Otomano, eram essencialmente Pois os guerreiros tribais nomádicos que eram normalmente seus fun-
guerreiros e saqueadores por natureza: seu poder baseava-se nas con- dadores não conseguiam conservar sua identidade de beduínos por
quistas, e todos os seus objetivos e estrutura eram militares. A admi- muito tempo após a conquista: os clãs desapareciam junto com a tran-
nistração civil propriamente dita, como esfera funcional em si, jamais sumância após a sedentarização. Por outro lado, também não era fácil
chegou a controlar a classe dominante: não se desenvolveu uma buro- transformá-los rapidamente numa nobreza rural, vivendo em proprie-
cracia de escribas muito mais do que o necessário para cuidar da arre- dades hereditárias, nem numa burocracia de escribas, organizada em
cadação de impostos. A máquina do Estado era basicamente um gran- uma administração civil: o tradicional desprezo pela agricultura e as
de consórcio de soldados, organizados ou em unidades rigidamente letras impediam ambas as possibilidades, ao mesmo tempo que sua
centralizadas ou de forma mais difusa, sendo em ambos os casos nor- turbulenta independência os fazia resistir a uma hierarquização militar
malmente sustentado pelo recolhimento de impostos em terras públi- rigorosa. Assim, diversas dinastias criaram corpos de guarda especiais
cas. A sabedoria política do Estado islâmico típico era resumida pelo compostas de escravos que constituíam o núcleo de seus exércitos, uma
expressivo apotegma contido em seus manuais de governo: "O mundo vez estabelecidos no poder. Como praticamente não existia a institui-
é, acima de tudo, um jardim verdejante cujo âmbito é o Estado, o ção do servo da gleba no campo, a escravidão pretoriana podia ser
Estado é um governo cujo chefe é o príncipe, o príncipe é um pastor considerada honrosa. Os diversos corpos de guarda islâmicos eram a
auxiliado pelo exército, o exército é um corpo de guardas mantidos com instituição mais semelhante a uma elite puramente militar que era
dinheiro, e o dinheiro é o recurso indispensável fornecido pelos súdi- concebível na época, desligada de qualquer atividade agropecuária e
tos*'.30 A lógica linear desses silogismos tinha curiosas conseqüências desvinculada de todas as organizações de clãs — e portanto eram teo-
estruturais. Pois era a combinação de rapina militar e desprezo pela ricamente capazes de ser incondicionalmente leais ao soberano, sendo
produção agrícola que, ao que parece, deu origem a fenômeno peculiar sua condição de escravos uma garantia de sua obediência militar, e na
de uma guarda de elite composta de escravos, que inúmeras vezes veio prática, é claro, capazes de se apoderarem do poder supremo. A he-
a dominar o próprio aparelho de Estado. O devshirme otomano foi gemonia desses guardas era um indício da eterna ausência de uma no-
apenas o representante mais desenvolvido e sofisticado deste sistema de breza territorial no mundo islâmico.
recrutamento militar que era encontrado em todo o mundo islâmico, e As características sociais arroladas acima, naturalmente, sempre
só nele.31 Oficiais escravos turcos da Ásia central fundaram o estado

(32) O último caso citado acima constitui um exemplo particularmente claro e


(30) Sourdel, vp. cit., p. 327. bem documentado dos objetivos políticos que estes corpos de guarda normalmente ser-
(31} Ver os comentários, ainda que incompletos, de Levy, The Social Structure of viam, talvez por ser cronologicamente posterior aos outros. As unidades de cavalaria
hlam, pp. 74-5, 417, 445-50. Não existe um exame sistemático adequado deste fenô- ghulam de georgianos foram criadas pela dinastia com o objetivo específico de livrá-la da
meno. Cahen observa que esta guarda de escravos era algo menos importante na parte turbulência das tribos turcomanas qizilbaxes, as mesmas que levaram ao poder a di-
ocidental do mundo islâmico (Espanha e norte da África), uma zona politicamente me- nastia safávida. Ver R. M. Savory, "Safavid Pérsia", The Cambrídge History oflsiam, I,
nos desenvolvida: L'Jslam, p. 149. Cambridge, 1970, pp. 407, 419-30.
506 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 507

foram distribuídas de modo desigual por entre as diferentes épocas e lar da revolta foi garantido pela insatisfação generalizada dos mawalis
regiões do mundo islâmico; mas à primeira vista parece haver uma da Pérsia e do Iraque. Com a organização de uma campanha secreta de
semelhança geral entre a maior parte dos Estados islâmicos — pelo agitação contra o domínio omíada, que utilizou o fervor religioso da
menos em contraste com a outra principal civilização imperial do heterodoxia xiita, e — mais importante ainda — com a mobilização da
Oriente. Isto, porém, não significa que a história do Islã foi apenas hostilidade que sentiam os mawalis pelo arabismo estreito da dinastia
uma repetição cíclica. Pelo contrário, é evidente uma periodização de instalada em Damasco, foi desencadeada a revolução popular que ins-
seu desenvolvimento interno. O Estado omíada instalado nos territórios talou no poder os abássidas, e que teve início em sua base no Khurasan
subjugados do Oriente Médio no século VII representava essencial- e em seguida tomou a Pérsia e o Iraque.36
mente as confederações tribais árabes que haviam realizado as conquis- O califado abássida assinalou o fim da aristocracia tribal árabe; a
tas iniciais, nas quais a oligarquia comercial de Meca recuperara uma nova máquina administrativa estatal criada em Bagdá era manejada
posição de vantagem. O califado de Damasco coordenava xeques be- por administradores persas e protegida por guardas do Khurasan. A
duínos mais ou menos autônomos, que comandavam seus próprios formação de uma burocracia e um exército permanentes, com uma
guerreiros nos acampamentos militares próximos às grandes cidades da disciplina cosmopolita, concedeu ao novo califado uma autocracia polí-
Síria, Egito e Iraque. Soldados árabes do deserto monopolizavam as tica com muito mais poder centralizado que o da dinastia anterior.37
pensões do tesouro central, as isenções fiscais e os privilégios militares. Descartando-se de suas origens heréticas, ele pregava a ortodoxia reli-
A burocracia civil ficou por muito tempo nas mãos de antigos funcio- giosa e afirmava estar investido de autoridade divina. O Estado abás-
nários bizantinos ou persas, que cuidavam dos aspectos técnicos da sida foi o período em que atingiram o auge o comércio, a indústria e a
administração para seus novos suseranos.33 Os convertidos ao Islã de ciência do Islã: em seu apogeu, no início do século IX, era a civilização
origem não-árabe (bem como os árabes mais pobres e marginalizados) mais próspera e avançada do mundo.38 Comerciantes, banqueiros, ma-
eram confinados ao status inferior de mawali\ pagavam impostos mais nufatores, especuladores e proprietários de terra absenteístas acumu-
onerosos e serviam os acampamentos tribais como pequenos artesãos, lavam grandes quantias nas cidades mais importantes: os ofícios ur-
criados e peões. Assim, o califado omíada estabeleceu uma "soberania banos proliferavam e diversificavam-se; surgiu um setor comercial na
política árabe"34 no Oriente Médio, e não uma comunidade religiosa agricultura; navios de longa distância singraram os oceanos; a astrono-
islâmica. Porém, com a estabilização das conquistas, a classe dirigente mia, a física e a matemática dos gregos foram transpostas para a cul-
constituída de guerreiros árabes foi-se tornando cada vez mais anacrô- tura árabe. Porém o desenvolvimento abássida atingiu seus limites rela-
nica; seu exclusivismo étnico e a exploração econômica que ela prati-
cava sobre a massa de muçulmanos da população subjugada do impé-
rio provocou um descontentamento cada vez maior entre os mawalis (36) A composição social exata e a importância do levante dos abássidas têm sido
muçulmanos, que em pouco tempo se tornaram a maioria numérica.3? muito discutidas. As abordagens tradicionais o interpretam essencialmente como uma
revolta popular e étnica da população mawali não-árabe, embora a presença de facções
Ao mesmo tempo, os atritos entre tribos do norte e do sul também tribais árabes (de filiação iemeníta) dentro dela tenha sempre sido reconhecida. O grau
enfraqueceram sua unidade. Enquanto isso, as populações que coloni- de importância atribuído à heterodoxia religiosa no movimento foi questionado por Ca-
zavam as regiões mais longínquas da Pérsia ressentiam-se dos métodos hen, "Points de vue sur Ia révolution abbasside", Revue Historique, CCXXX, 1963, pp.
336-7. A abordagem mais recente e mais completa das origens da revolta é M. A. Sha-
tradicionais de administração a que eram submetidas. Foi esta comuni- ban, The Abbassid Révolution, Cambridge, 1970, que dá uma ênfase especial às injusti-
dade de colonos que, ao que tudo indica, agiu como estopim do levante ças sofridas pelos colonizadores árabes do Khurasan, sujeitos à dominação tradicional do
final contra o Estado centrado em Damasco, na Síria; o sucesso popu- diqhãn persa local pelas políticas administrativas conservadoras do Estado omíada: pp.
158-60. De qualquer forma, não há dúvida de que o exército insurgente que iniciou a
derrubada do califado em Damasco tomando Merv era, na prática, composto por ele-
mentos tanto árabes quanto iranianos.
(37) Lewis, TkeArabsin History,pp.&3-5.
(33) Lewis, TheArabs in ffistory, pp. 65-6. (38) Goitein chama o período inaugurado pela consolidação do poder abássida de
(34) A expressão é de F. Gabrieli, Muhammed and the Conquests oflslam, Lon« j civilização "intermediária" do Islã: um mundo situado entre as épocas helênica e renas-
dres, 1968, p. 111. centista no tempo, entre Europa/África e Índia/China no espaço, e entre as culturas
(35) Lewis, op. ciY.,pp. 70-1. secular e religiosa em caráter: Studies in Islamic History andlnstitutions, p. 46 ss.
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tivamente cedo. Apesar do grande crescimento da prosperidade nos sé- num declínio econômico e político irremediável, e todo o centro de gra-
culos VIII e IX, foram registradas poucas inovações no campo das ma- vidade do mundo islâmico se deslocou para o novo Estado fatímida no
nufaturas, e os estudos científicos então iniciados não levaram a muitos Egito, que saiu vencedor das convulsões sociais da época e fundou o
progressos tecnológicos. A invenção árabe mais importante foi prova- Cairo.
velmente a vela latina — um melhoramento nos transportes que teve o Ao contrário de seu predecessor, o califato fatímida não abando-
único efeito de facilitar o comércio; o algodão, o produto agrícola de nou sua heterodoxia após conseguir o poder, e sim a propagou agressi-
maior importância comercial da época, vinha do Turquestão prê-islâ- vamente. Não foram recriadas plantações que utilizavam escravos; por
mico; a fórmula do papel, a principal das novas indústrias, foi apren- outro lado, a mobilidade do cathpesinato era mais controlada no Egito
dida com prisioneiros de guerra chineses.39 O próprio volume e inten- fatímida. O comércio internacional foi reativado em grande escala,
sidade da atividade mercantil, que superava o ímpeto da própria pro- tanto na índia quanto na Europa: a prosperidade egípcia nos séculos
dução, parece ter causado uma série de tensões sociais e políticas no XI e XII mais uma vez demonstrou a categoria internacional da classe
califado. A corrupção e mercenarização da administração vinham mercantil árabe e as habilidades tradicionais dos artesãos árabes. Mas
acompanhadas de uma exploração fiscal do campesinato cada vez a transferência da primazia político-econômica dentro do mundo islâ-
maior; a inflação generalizada prejudicava os pequenos artesãos e lo- mico do Tigre ao Nilo também era sinal de uma nova força que viria a
jistas; os enclaves de plantações concentravam trabalhadores escravos afetar todo o desenvolvimento futuro do mundo islâmico. Pois o pre-
em grupos numerosos e desesperados. À medida que deteriorava a se- domínio do Egito fatímida era geograficamente uma função de sua re-
gurança interna do regime, a guarda profissional turca ia usurpando o lativa proximidade do Mediterrâneo central e da Europa medieval. "O
poder central, atuando como trincheira militar contra as diversas revol- impacto do comércio europeu sobre o mercado local foi esmagador."41
tas sociais que explodiam. No final do século IX e no X, uma sucessão A dinastia já havia estabelecido laços estreitos com comerciantes italia-
de insurreições e conspirações abalou toda a estrutura do império. Os nos desde o início de sua existência, na Tunísia do século X, cuja pros-
escravos zanjes se rebelaram no baixo Iraque, e durante quinze anos peridade comercial lhe possibilitara a conquista do Egito posterior-
conseguiram lutar com sucesso contra os exércitos regulares, até serem mente. Daí em diante, a ascensão do feudalismo no Ocidente seria uma
subjugados; o movimento quarmata, uma seita dissidente dos xiitas, presença histórica constante ao lado do mundo islâmico. Inicialmente,
criou uma república igualitária escravagista em Bahrein; enquanto os o comércio marítimo com as cidades italianas acelerou o crescimento
ismaelitas — membros de outra seita xiita — tramaram e organizaram econômico do Cairo; por fim, as incursões militares de cavaleiros euro-
a derrubada da ordem estabelecida em todo o Oriente Médio, até con- peus no Levante viria perturbar todo o equilíbrio estratégico da civili-
seguir tomar o poder na Tunísia e estabelecer um império rival no Egi- zação árabe no Oriente Médio. Os benefícios do comércio logo seriam
to, o califado fatímida.40 Nesta época, o Iraque dos abássidas já entrara seguidos pelos ataques das Cruzadas. Aproximava-se um grande divi-
sor de águas na história do Islã.
Em meados do século XI, nômades turcomanos já haviam inva-
(39) Após a batalha de Talas na Ásia central, em 751, na qual tropas árabes der- dido a Pérsia e o Iraque, tomando Bagdá, enquanto beduínos árabes
rotaram contingentes uigures e chineses. Para abordagens gerais da atividade comercial e do Hedjaz haviam devastado o norte da África, saqueando Kairuan:
manufatureira do mundo islâmico no período abássida, ver P. K. Hitte, History of the estas invasões de seldjúcidas e hilalis revelaram a fraqueza e a vulnera-
Arabs, Londres, 1956, pp. 345-9; Sourdel, La Civilisatíon de 1'Islam Classigue, pp. 289-
311, 317-24; Lombard, L'Islam dans sã Première Grandeur, pp. 161-203 (particular- bilidade de grandes regiões do mundo islâmico estabelecido. Nenhuma
mente informativo em relação ao tráfico de escravos, uma das principais atividades co- delas criou uma nova ordem estável, nem no noroeste da África nem no
merciais do Islã abássida, que explorava o interior das terras eslavas, turcas e africanas). Oriente Médio. Exércitos seldjúcidas tomaram Jerusalém e Damasco,
Em relação à expansão do algodão, ver Miquel, op. cit., p. 130.
(40) Em relação a essas diversas revoltas, ver a análise perceptiva de Lewis, The mas não conseguiram consolidar seu domínio nem na Síria nem na Pa-
Arabs in History, pp. 103-12, segundo a qual o regime quarmata no Golfo Pérsico parece
ter sido o mais semelhante a uma cidade-Estado da antigüidade clássica que jamais
houve no mundo islâmico — uma comunidade espartana de cidadãos iguais perante a lei,
fundamentada na agricultura movida pelo trabalho escravo. O regime foi derrubado em (41) S. D. Goitein, A Afediterranean Society, vol. I, Economic Foundation, Ber-
Bahrein no final do século XI. keley-Los Angeles, 1967, pp. 44-5.
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lestina. A súbita ofensiva crista no Levante durante o século XII, por- foram as características estruturais gerais dos novos Estados turcos do
tanto, precipitou uma crise estratégica geral no Oriente Médio. Pela início da época moderna que mais importância tiveram para o desen-
primeira vez, as fronteiras do mundo islâmico encolhiam, à medida volvimento das formações sociais islâmicas em geral. O grande sulta-
que os principados fragmentados da costa sírio-palestina iam sendo nato seldjúcida do Iraque, e, acima de tudo, o sultanato mameluco do
fragorosamente derrotados. O próprio Egito, centro da riqueza e poder Egito foram os protótipos desse regime, ainda no final da Idade Média;
dos árabes, agora estava exposto a ataques diretos. Enquanto isso, a os três grandes impérios islâmicos — Turquia otomana, Pérsia safávida
dinastia fatímida atingira o último grau de corrupção e decadência; em e índia mongol — exemplificaram sua forma final.
1153 as forças dos cruzados já chegavam ao Sinai. Mas no meio da Em cada um desses casos, foi como se a ascensão da Turquia na
confusão e desorientação da época, começou a surgir um novo tipo de ordem política islâmica acentuasse de forma decisiva o aspecto militar
ordem política islâmica, e, com ela, abriu-se uma nova fase do desen- dos sistemas árabes originais, em prejuízo do componente mercantil.
volvimento da sociedade muçulmana. Com o expansionismo do mundo Os nômades turcomanos da Ásia central que invadiram o mundo islâ-
ocidental, foi como se a reação do Islã assumisse a forma de uma ex- mico a partir do século XI, em ondas sucessivas, tinham uma estrutura
trema militarização das estruturas estatais dominantes do Oriente Mé- social e econômica aparentemente muito semelhante à dos beduínos
dio, juntamente com a descomercialização das economias da região, árabes do sudoeste asiático que haviam tomado o Oriente Médio origi-
sob a égide de um novo grupo étnico. Em 1154, Nureddin Zangi, neto nariamente. A congruência histórica das duas grandes zonas pastoris a
de um soldado escravo turco e senhor de Alepo e Mossul, tomou Da- norte e sul do Crescente Fértil foi que garantiu a continuidade funda-
masco. A partir deste momento, o conflito entre cristãos e muçulma- mental da civilização islâmica após as conquistas turcas: os recém-che-
nos pelo controle do Cairo viria decidir o destino de todo o Levante. A gados encontravam uma cultura não muito diferente da sua. Havia,
disputa pelo delta do Nilo foi ganha por Saladino, um oficial curdo não obstante, algumas diferenças críticas entre o nomadismo pastoril
enviado para o sul por Nureddin, que conquistou o Egito, destruiu o da Ásia central e o da Arábia, que deixariam sua marca em toda a
calífado dos fatímidas e fundou o regime aiúbida, que seguia o modelo história subseqüente da sociedade islâmica. Enquanto a pátria islâmica
turco. Pouco depois de conquistar a Síria e a Mesopotâmia, Saladino da Arábia continha desertos e cidades, mercadores e nômades, sendo
derrotou definitivamente os cruzados, retomando Jerusalém e a maior herdeira das instituições urbanas da antigüidade, as estepes da Ãsia
parte da costa da Palestina. Os europeus contra-atacaram por mar e central de onde vinham os conquistadores pastoris da Turquia, Pérsia e
restabeleceram enclaves de cruzados; e no início do século XIII, o pró- índia possuíam relativamente poucas cidades e pouco comércio. A re-
prio Egito foi invadido duas vezes por expedições marítimas, que cap- gião fértil da Transoxiana, entre o mar Cáspio e o Pamir, sempre fora
turaram Damietta em 1219 e 1249. Mas estes ataques não levaram a densamente povoada e relativamente urbanizada: Bukhara e Samar-
nada. Os cristãos foram expulsos do continente definitivamente por kand, do outro lado das grandes rotas comerciais terrestres para a
Baybars, chefe militar que criou o sultanato mameluco, integralmente China, podiam ser favoravelmente comparadas a Meca e Medina. Mas
turco,42 cujo poder estendeu-se do Egito até a Síria. Enquanto isso, ao esta rica faixa territorial, que os árabes viriam a denominar Mawa-
norte os seldjúcidas haviam conquistado a maior parte da Anatólia; a rannahr, era historicamente de caráter iraniano. Além dela vinham as
ascensão dos otomanos completaria seu trabalho na Ãsia Menor. No imensas expansões vazias de estepes, desertos, montanhas e florestas,
Iraque e na Pérsia, as invasões dos mongóis timúridas criaram Estados até chegar à Mongólia e à Sibéria, onde praticamente não havia ne-
tártaros e turcomanos. Facilitada pela crise generalizada do feudalismo nhuma concentração urbana, e das quais partiam sucessivamente tri-
europeu na última fase da Idade Média, uma nova onda de expansão bos de nômades altaicos — seldjúcidas, danixmendas, ghuzzas, mon-
islâmica entrou em ação, e permaneceria ativa durante mais quatro sé- góis, oirotes, usbeques, casaques, quirguizes —, cujas invasões suces-
culos. Sua manifestação mais espetacular foi, naturalmente, a con- sivas impediram que ocorresse uma sedentarização mais duradoura
quista de Constantinopla e o avanço dos otomanos na Europa. Mas do mundo turco da Ãsia central. A península árabe era relativamente
pequena, e cercada pelo mar: desde o início fora circundada pelo co-
mércio marítimo, e tinha um potencial demográfico bem limitado. Na
(42) Goitiein, A Mediterranean Society, l, pp. 35-8. verdade, após as primeiras conquistas dos séculos VII e VIII, a Arábia
512 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 513

propriamente dita voltou à mais absoluta insigníficância política du- fora aperfeiçoada pelos otomanos, que a aprenderam com os europeus.
rante todo o resto da história do mundo islâmico, até o século atual. A Os exércitos safávidas rapidamente aprenderam a importância das
Ãsia central, por outro lado, era uma imensa massa terrestre isolada do armas de fogo, após serem derrotados de início por soldados armados
mar, constantemente recebendo novos influxos de povos belicosos e otomanos em Chaldiran, e equiparam-se com armas modernas. Desde
migrantes.113 Assim, o equilíbrio entre as tradições nomádicas e urba- o início das conquistas de Baber, as tropas mongóis na índia eram
nas dentro da civilização islâmica clássica foi inevitavelmente pertur- armadas com artilharia e mosquetaria.44 Na verdade, a difusão da pól-
bado pela ascensão dos turcos, a partir do final da Idade Média. A or- vora no Oriente Médio foi sem dúvida uma das razões mais óbvias da
ganização militar tornou-se mais rígida, à medida que o comércio per- maior estabilidade e durabilidade dos novos Estados turcos, em com-
dia ímpeto. Esta mudança nunca foi absoluta nem uniforme, porém paração com os regimes árabes dos séculos anteriores. O aparato mili-
sua direção geral era clara. Além disso, a lenta modificação do meta- tar otomano conseguia defender-se dos ataques europeus, mesmo mui-
bolismo do mundo islâmico após as Cruzadas não foi, naturalmente, to depois de haver perdido a iniciativa estratégica nos Bálcãs e na re-
exclusivamente causada por forças internas: o contexto externo tam- gião do Ponto. Os exércitos safávidas e mongóis finalmente impediram
bém teve igual peso, tanto no que diz respeito à guerra quanto ao co- que os turcomanos continuassem suas invasões na Pérsia e índia, com a
mércio. derrota dos nômades usbeques que ocuparam o Mawarannahr no sé-
Os nômades turcomanos da Ásia central iniciaram sua suprema- culo XVI: doravante, um baluarte estratégico protegeria os três gran-
cia no Oriente Médio devido a sua perícia como arqueiros montados — des Estados imperiais do Islã das turbulências tribais da Ásia central.45
os beduínos árabes, que lutavam com lanças, não conheciam esta arte. A superioridade desses impérios do início da era moderna, porém, não
Porém o poderio militar dos novos Estados imperiais do início da era se dava apenas no campo da tecnologia militar: verificava-se também
moderna baseava-se em tropas de batalha regulares, equipadas com na administração e na política. A estadística mongol, na época de Gen-
armas de fogo e apoiadas pela artilharia: a pólvora era essencial para ghis-Khan e seus sucessores, já era superior à dos árabes quanto à sua
seu poderio. Canhões pesados, utilizados para sitiar cidades, foram organização, e talvez tenha deixado influências no Oriente Médio após
adotados pela primeira vez pelo Estado mameluco do Egito, no final do conquistar boa parte da região. Seja como for, os exércitos otomanos,
século XIV. Mas as tradições conservadoras de cavalaria do exército safávidas e mongóis, no seu apogeu, possuíam um nível de disciplina e
mameluco impediram a utilização da artilharia ou mosquetaria de treinamento que seus predecessores jamais conheceram. Suas subestru-
campanha. A conquista otomana do Egito deveu-se precisamente à su- ruras administrativas eram também mais rígidas e mais integradas. O
perioridade dos arcabuzeiros turcos em relação aos cavaleiros mame- tradicional 'iqta árabe fora um dispositivo fiscal de natureza basica-
lucos. Em meados do século XVI, a utilização de mosquetões e canhões mente parasítica, que tinha o efeito de neutralizar a vocação marcial de
seus beneficiários urbanos, ao invés de reforçá-la. Por outro lado, o
timar otomano e o jagir mongol vinham associados a obrigações de
(43) Duas comparações antropológicas: R. Pataí, "Nomadism: middle eastern serviço militar muito mais rígidas, e tiveram o efeito de consolidar a
and central Asian", Southwesíern Journal of Antftropotogy, vol, 7, n? 4, 1951, pp. 401- pirâmide de comando militar, agora organizada numa hierarquia mais
14, e E. Bacon, "Types of pastoral nomadism in central and south-west Ásia", South-
western Journal of Anthropology, vol. 10, n? l, 1954, pp. 44-65. Patai propõe uma série
organizada de contrastes entre nomadismo turco e nomadismo árabe (cavalo versus ca-
melo, yurt versus tenda, arco versus espada, exogamia versus endogamia, etc.}. Bacon (44) Em relação ao papel desempenhado pelos mosquetões e canhões no Império
critica com razão estes contrastes por não terem uma perspectiva histórica adequada, Otomano, ver o verbete "Bãrüd" (pólvora) na Encyclopaedia of Islam (New Edition),
ressaltando que Patai projetou no passado o cultivo agrícola praticado pelos casaques nos Leiden, 1967, Vol. I, pp. 1061-9. A incapacidade dos mamelucos de dominar a artilharia
séculos XVIII e XIX, sem qualquer base empírica, e partiu da premissa falsa de que de campanha e o uso de armas de mão é analisada em D. Ayalon, Gunpowder and Fire-
havia mais estratificação de classes no pastoralismo da Ásia central do que no do su- Arms in the Mamluk Kingdom, Londres, 1956, pp, 46-7, 61-83.
doeste asiático. Porém ambos os artigos, cada um a sua maneira, confirmam as diver- (45) A conquista da Transoxíana pelos usbeques ao mesmo tempo turquificou
gências essenciais delineadas acima: o nomadismo turco não possuía nenhuma simbiose a região pela primeira vez e precipitou sua estagnação econômica e seu declínio. As cam-
estável com a agricultura sedentária (Bacon, pp. 46, 52) e era a "cultura" predominante panhas do império mongol para reconquistar o Mawarannahr no século XVII nSo tive-
na Ãsia central, enquanto o nomadismo árabe era uma "cultura" mais subordinada no ram sucesso: a extensão excessiva das Unhas de comunicação quase levaram ao desastre,
sudoeste asiático (Patai, pp. 413-14). em 1645-7, Aurangzeb, que se salvou graças a sua maior potência de fogo.
514 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 515

formalizada. Além disso, nesses sistemas políticos turcos, o monopólio viagens de descobrimento dos portugueses passaram para trás todo o
estatal da propriedade de terra era exercido com mais ímpeto: pois na mundo islâmico, estabelecendo seu predomínio estratégico em todo li-
regulamentação e concessão de propriedades agrárias, agora prevale- toral do Oceano Indico no início do século XVI, com bases na África
ciam tradições nomádicas mais puras, mais do que em qualquer outra oriental, no Golfo Pérsico, no subcontínente indiano e nas ilhas da
época anterior. Nizam-ul-Mulk, o famoso grão-vizir do primeiro sobe- Malásia e Indonésia. Daí em diante, as vias marítimas internacionais
rano seldjúcida de Bagdá, declarou que o sultão era o único senhor de passaram a ser permanentemente dominadas por potências ocidentais,
todas as terras; a extensão e o rigor dos direitos otomanos sobre a terra privando os impérios islâmicos do comércio marítimo que fora respon-
eram notórios; os xás safávidas revigoravam a validade jurídica do mo- sável por boa parte da fortuna de seus predecessores. Este fato era
nopólio sobre a terra; os imperadores mongóis impuseram um sistema ainda mais grave na medida em que as economias árabes medievais
fiscal predatório e impiedoso, que se baseava no monopólio do governo sempre haviam prosperado mais no campo das trocas do que no da
sobre toda a agricultura.46 Suleiman, Abbas e Akhbar exerceram sobre produção — mais no comércio *do que na manufatura; a discrepância
seus domínios um poder imperial que nenhum califa jamais conheceu. entre os dois foi uma das causas fundamentais da crise das economias
Por outro lado, a vitalidade comercial do período de domínio islâmicas na última fase da Idade Média, e o sucesso do progresso eco-
árabe, que sobrevivera durante a civilização "intermediária" do Islã nômico europeu se deu em detrimento do mundo islâmico.'19 Ao mesmo
clássico, agora morria gradualmente. Esta mudança, naturalmente, es- tempo, o tradicional prestígio que os árabes concediam ao comerciante
tava relacionada com a ascensão do comércio europeu. A expulsão à foi substituído pelo desprezo com que as classes dominantes dos novos
força dos cruzados do Levante não fora acompanhada pela retomada Estados turcos encaravam as atividades mercantis: sua política comer-
do domínio do comércio no Mediterrâneo oriental. Pelo contrário, no cial era, na melhor das hipóteses, a tolerância, e, na pior, a discrimi-
século XII os navios cristãos já haviam conquistado uma posição do- nação contra as classes mercantis das cidades.50 O clima comercial de
minante em águas egípcias.47 A contra-ofensiva curdo-turca em terra, Constantinopla, Isfahan e Delhi no início da era moderna nunca che-
simbolizada por Saladino e Baybars, só foi possível com a renúncia gou perto do que havia em Bagdá ou no Cairo durante a Idade Média.
deliberada ao poder naval: para impedir que os europeus continuassem Minorias alienígenas — gregos, judeus, armênios ou hindus — normal-
a aportar, os governantes aiúbidas e mamelucos foram forçados a des- mente concentravam em suas mãos as atividades comerciais e bancá-
mantelar os portos e devastar o litoral da Palestina. O Estado oto- rias. Inversamente, pela primeira vez começaram a surgir guildas de
mano, por outro lado, construiu uma poderosa marinha no século XVI, artesãos, dentro dos domínios otomanos, com o propósito explícito de
com farta utilização de marinheiros gregos, e retomou o controle do servir como instrumento para o governo controlar a população ur-
Mediterrâneo oriental, avançando no Mediterrâneo ocidental através bana,51 tornando-se normalmente repositórios do obscurantismo teoló-
de bases de corsários no norte da África. Mas o poder marítimo dos gico e técnico. Os sistemas legais dos grandes impérios também foram
osmanlis foi relativamente efêmero e artificial: sempre foi restrito à em geral reclericalizados; as doutrinas religiosas com o tempo ganha-
guerra e à pirataria, não tendo jamais desenvolvido uma marinha mer-
cante digna do nome, e dependendo demais das qualificações e mão-
de-obra de povos subjugados. Além disso, justamente no momento em (49) Numa nota importante, Claude Cahen aventa que os superávits na balança
que o Egito dos mamelucos estava sendo absorvido pelo Império Oto- de pagamentos obtidos no Islã medieval em seu comércio exterior, em parte devidos a seu
estoque superior de metais preciosos, constituíam um desíncentivo ao aumento da pro-
mano, dando-lhe acesso direto ao mar Vermelho pela primeira vez, as dução de manufaturados, já que raramente ocorria um déficit comercial do tipo que
estimulava as economias da Europa ocidental da época a produzir mais artigos para
exportação: "Quelques mots sur lê déclin commercial du monde musulman à Ia fin du
Moyen Age", in Cook (Org.), Studies in the Economic History of the Middle East,
(46) Ver A. Lambton, Landlord and Tenant in Pérsia, Oxford, 1953, pp. 61, 66, pp. 31-6.
105-6 (seldjúcídas e safávidas); Gibb e Bowen, íslamic Society and the West, l/l, pp. (50) Por exemplo, os emires mamelucos da Síria deliberadamente descarregavam
236-7 (otomanos); W. H. Moreland, índia at the Death ofAkbar, Londres, 1920, p. 256 seus excedentes de cereais nas cidades, prejudicando os comerciantes urbanos, ou força-
(mongóis). vam-nos a adquirir estoques a preços inflacionados, e freqüentemente confiscavam-th es o
(47) Goitien, A Mediterranean Society, l, p. 149. capital: Lapidus, Muslim Cities in the Later Middle Ages, pp. 51-7.
(48) Ver "Bãhriyya", Encyclopaedia of Islam (New Edition), Vol. I, pp. 945-7. (51) Baer, "Guilds in middle eastern history", pp. 27-9.
516 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 517

ram mais força administrativa, em detrimento dos costumes seculares direitos de negociá-las ou aliená-las; os que não cultivavam suas terras
que predominavam antes.52 A intolerância religiosa oficial dos safávi- estavam sujeitos a ser expulsos pelo Estado.54 Não havia posse coletiva
das era particularmente intensa. nas aldeias, que eram divididas por castas, com grandes desigualdades
A rigidez militar, o fanatismo ideológico e a letargia comercial econômicas.55 O Estado sempre se apropriava de até metade do total
tornaram-se, portanto, a norma nos governos da Turquia, Pérsia e ín- da produção dos camponeses, como "receita fundiária".56 Esses tribu-
dia. A última geração de grandes Estados islâmicos que precedeu o tos eram muitas vezes pagos em dinheiro, ou em espécie, sendo neste
domínio colonial europeu já testemunhou a dupla pressão do Ocidente. caso os produtores posteriormente revendidos pelo Estado, o que levou
Embora ultrapassados do ponto de vista econômico a partir da época à expansão do cultivo de produtos de valor comercial (trigo, algodão,
dos descobrimentos, eles continuaram na dianteira durante um século açúcar, anil e fumo). A terra era relativamente abundante e a produ-
no que dizia respeito a guerras e conversões, desde os Bálcãs até Ben- tividade agrária não era menor do que a da índia do século XX; a irri-
gala. Quanto ao aspecto territorial, as fronteiras do Islã continuavam a gação por meio de canais era insignificante; toda a umidade do solo
se expandir no Oriente; Mas as novas conversões no sul e sudeste da vinha das chuvas e de poços e lagoas locais.57 Porém a intensa pressão
Ásia ocultavam uma estagnação ou mesmo regressão demográfica no fiscal do Estado mongoi sobre a população rural deu um grande im-
cômputo geral dos territórios da civilização islâmica clássica. Após pulso à agiotagem, aumentando o endividamento das aldeias e cau-
1600, segundo os cálculos mais otimistas, ocorreu um pequeno, porém sando migrações de camponeses cada vez maiores.
sensível declínio na população total — cerca de 46 milhões — da ampla A cúpula do aparelho de Estado em si era a e.lite mansabdar,
área entre o Marrocos e o Afeganistão, e o Saara e o Turquestão, du- cerca de 8 milhões de oficiais militares num complexo sistema hierár-
rante os dois séculos seguintes.53 O proselitismo na índia e na Indoné- quico, a quem era concedido o polpudo montante das receitas fundiá-
sia, que levava a uma extensão territorial do mundo islâmico, não com- rias sob a forma dejagir, concessões de direitos temporários, pelo im-
pensava a ausência de uma vitalidade demográfica mais profunda. O perador. Em 1647, 445 desses indivíduos recebiam mais de 60% da
contraste com a Europa e a China da época é revelador. Os impérios receita total do Estado; 73 deles dividiam 37,6% do total.58 Do ponto
islâmicos do século XVII, mesmo em seus momentos de maior vibração de vista étnico, predominavam entre os mansabdar — como era de se
militar e sucesso, sempre levavam desvantagem quanto ao fator demo- esperar — os elementos alienígenas, principalmente persas, ural-altai-
gráfico em comparação com as outras civilizações do Velho Mundo.
O império mongol, que interessava a Marx especificamente,
exibe a maioria das características dos últimos Estados islâmicos, em-
bora — por ser o mais afastado da Europa e o que tinha a população (54) Habib, TheAgrarian System ofMughalíndia, pp. 113-8. A ausência de uma
menos islamizada — apresentasse, sob certos aspectos, um panorama concepção concreta de propriedade de terra íoi enfatizada na obra clássica de W. More-
land, TheAgrarian Systemsof Moslem índia, Cambridge, 1929, pp. 3-4, 63; para More-
mais variado e mais cheio de vida do que os impérios turco e persa. A land, essa característica remontava ao período anterior, hindu, da história da índia.
semelhança administrativa entre o império mongol e o otomano já fora (55) Habib, TheAgrarian System ofMughal índia, pp. 119-24.
notada por Bernier no século XVII. As terras cultivadas eram inteira- (56) Idem, pp. 195-6; o autor julga que o nível de extração de superávit pelo
Estado era relativamente estável, ao contrário de Moreland, que calculara que a norma
mente sujeitas ao poder econômico e político do imperador. O campe- variava entre 1/2 e 1/3, conforme a política de cada soberano.
sinato nativo tinha o direito garantido de ocupação permanente e here- (57) Cerca de 5% da terra cultivada foi irrigada no período mongol; Maddison,
ditária de suas terras (como no sistema turco), mas não tinha sobre elas Class Struggle and Economic Growth. índia and Pakistan since the Moghuls, Londres,
1971, pp. 23-4. Marx julgava que a agricultura indiana era definida por uma irrigação
intensiva, e que o colonialismo britânico destruiria a sociedade indiana tradicional ao
industrializá-la. Ironicamente, após o efêmero boom ferroviário de meados do século
XIX, os efeitos do domínio britânico foram justamente o contrário. Houve muito pouca
(52) Schacht, An Introducíiort to Islamic Law, pp. 4, 89-90, 94; "Law and jus- industrialização sob o colonialismo britânico; por outro lado, uma boa parte das terras
tice", The CambridgeHistoryoflslam, II, p. 567. cultivadas foram irrigadas pela primeira vez. Ao final do jugo britânico, as terras irri-
(53) Miquel, L'Islam et sã Civilization, pp. 280-3; o autor estima que em 1800 gadas haviam aumentado oito vezes, cobrindo um quarto do total, tendo sido feitas inclu-
talvez a população tivesse caído para cerca de 43 milhões. Tais cifras devem ser enca- sive algumas obras espetaculares de abertura de canais no Punjab e Sind. Ver Maddi-
radas com muita cautela, como o próprio Miquel ressalta, já que não há dados confiá- son, p. 50.
veis. Mas é provável que em linhas gerais a estimativa corresponda à realidade. (58) Habib, "Potentialities of capitalistic development", pp. 54-5.
518 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 519

cos e afegãos. Cerca de 70 por cento dos mansabdar de Akhbar eram nas- século XVII, as principais cidades indianas eram às vezes consideradas
cidos no estrangeiro ou filhos de estrangeiros; os demais eram muçulma- pelos viajantes maiores que as da Europa. A força de trabalho urbana
nos "indianos" ou rajaputros hindus. Em 1700, a proporção de muçul- era majoritariamente muçulmana, e os artesãos eram numerosos e bem
manos nascidos na índia já chegava a cerca de 30 por cento do total qualificados. A presença destes artesãos deu origem, em algumas
O grau de continuidade hereditária era muito pequeno: a concessão áreas, a um sistema de distribuição controlado pelo capital mercantil,
do grau de mansabdar a um indivíduo era atribuição pessoal do impe- Mas apenas as grandes manufaturas, que empregavam mão-de-obra
rador. Este corpo militar não possuía unidade social horizontal en- contratada, eramkarkhana reais ou "nobres", que produziam exclusi-
quanto ordem aristocrática, embora seus membros mais elevados rece- vamente para o consumo doméstico.61 As fortunas adquiridas pelos
bessem o título de "nobres'*: seus componentes de origens diversas comerciantes estavam sempre sujeitas ao confisco arbitrário por parte
sempre se mantinham conscientes de suas origens étnicas específicas, o do soberano, e jamais se desenvolveu um capital proto-industrial. O
que normalmente dava origem ao surgimento de facções. A única coisa Estado mongol, o principal instrumento da exploração econômica da
que as mantinha unidas era a obediência vertical ao imperador. Os classe dominante, durou 150 anos, até que sucumbiu às revoltas cam-
mansabdar moravam ehi cidades e eram obrigados a manter o exército ponesas, ao separatismo hindu e à invasão britânica.
de cavalaria de 200 mil homens do qual dependeria o poderio militar do
Estado mongol: o custo do sustento dessas tropas absorvia cerca de dois
terços de sua renda proveniente do jagir ou salários pagos pelo tesouro
central. A duração média de uma concessão de jagir era de menos de
três anos, e ela sempre podia ser retirada pelo imperador, que constan-
temente transferia seus agraciados para evitar que eles desenvolvessem
raízes locais. Juntamente com esse sistema, no campo havia zamindar
nativos, potentados locais que tinham a sua disposição soldados de in-
fantaria e castelos, e recebiam o direito de recolher uma fatia muito
menor do excedente dos camponeses, cerca de 10% da receita fundiá-
ria devida ao Estado no norte da índia.60
As rendas provenientes da agricultura eram quase completa-
mente consumidas nas cidades, onde os gastos da família imperial e
dos mansabdar com palácios, jardins, pomares, criados e artigos de
luxo eram suntuosos. Conseqüentemente, a urbanização era relativa-
mente alta; cerca de um décimo da população era urbana. No início do

(59) P. Spear, "The mughal 'Mansabdari' system", m: E. Leach e S. N. Mukher-


jee(Orgs.), Elites in South Ásia,|Cambridge, 1970, pp. 8-11.
(60) Habib, The Agrarían System of Mughal índia, pp. 160-7 ss.; "Potentialitíes
of capitalistic development", p. 38. Levando-se em conta a diferença de origens, há uma
certa semelhança entre a posição estrutural relativa das classes mansabdar e zamindar
dentro do sistema mongol e os setores devshirme e timariot do aparelho de Estado oto-
mano; em ambos os casos, uma elite militar central foi superposta a uma camada social
local de guerreiros. Por outro lado, havia um contraste entre as composições delas: a
devshirme turca era uma unidade de escravos ex-cristaos, e os timariot formavam uma
cavalaria de muçulmanos, enquanto na índia mongol os mansabdar é que formavam
uma "aristocracia" muçulmana, sendo os zamindar exploradores regionais hinduB.
Assim, os papéis honoríficos de cada classe dentro do sistema político como um todo í
eram bem diferentes. (61) Habib, "Potentialitiesof capitalistic development", pp. 61-77.
LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA S21

dradas;3 e a utilização de arrozais em plataformas parece ter iniciado


no século I a.C., mais para o sul.4 Nesta época, porém, o cultivo de
painço e trigo em terrenos não-alagados ainda predominava na econo-
mia rural. Tanto o Estado Ch'in quanto o Han construíram imponentes
canais de transporte para acelerar o envio dos impostos sobre cereais a
seus tesouros — talvez os primeiros canais de navegação construídos no

v mundo: aliás, durante toda a história da China, o Estado sempre daria


mais prioridade às vias navegáveis, com suas funções fiscais e militares
(logísticas), do que aos sistemas de irrigação, com fins agrícolas.5 Po-
rém, além da engenharia hidráulica, foram feitos avanços técnicos no
Muito resumidamente, estes são alguns dos elementos centrais
campo desde cedo, de modo geral antes que surgissem na Europa. O
da história social do Islã. O caráter e o rumo da civilização chinesa, por
moinho rotativo foi inventado mais ou menos ao mesmo tempo na
outro lado, parecem apresentar toda uma série de características que
China e no Império Romano, no século II a.C. O carrinho de mão, por
configuram um contraponto ao desenvolvimento do mundo islâmico.
outro lado, foi descoberto na China mil anos antes que na Europa, no
Por motivos de espaço, não poderemos examinar aqui a longa e com-
século III; o estribo começou a ser usado mais ou menos nessa época;
plexa evolução da China antiga propriamente dita, desde a idade do
o uso de eqüinos como animais de tração melhorou muito com o surgi-
bronze, o período Shang, que começa em 1400 a.C., até o final da era
mento do moderno arreio de coleira no século V; pontes em segmentos
Chou no século V a.C. e a formação do Estado Ch'in unitário no século
de arco já eram construídas no século VII. Mais surpreendentemente
III a.C. Será suficiente resumir rapidamente os legados materiais de
ainda, já nos séculos VI e V a.C. começavam a usar-se técnicas de fun-
dois milênios de civilização contínua dotada de escrita que antecede-
dição de ferro, enquanto na Europa elas só entraram em uso no final da
ram o surgimento do sistema imperial que se tornaria a marca caracte-
Idade Média; e a China começou a produzir acos a partir do século
rística da bistória política da China como um todo.
II a.C. Assim, a metalurgia chinesa era muito mais avançada do que a
O berço da civilização chinesa foi o noroeste da China, cuja eco-
de qualquer outra região do mundo desde uma época muito remota. Ao
nomia baseava-se na agricultura em terrenos não-alagados; os cereais
mesmo tempo, três importantes produtos manufaturados foram inven-
mais cultivados na China antiga sempre foram o painço, o trigo e a
tados na China antiga: a seda já era produzida desde os primórdios da
cevada. Nesta sua agricultura intensiva, porém, a civilização chinesa
história; o papel foi inventado por volta dos séculos I e II a.C.; e a
desde cedo desenvolveu sistemas hidráulicos importantes para o cultivo
técnica de fabricação de porcelana já havia sido dominada no século
de cereais nos vales e planaltos do noroeste da China, em que há loesse;
V. Estas extraordinárias conquistas tecnológicas constituíram as bases
os primeiros grandes canais em contornos construídos para desviar
materiais que permitiram que o primeiro grande império dinástico reu-
água dos rios e irrigar campos foram construídos no Estado Ch'in, sé-
nificasse a China de modo duradouro após o período de desunião e
culo III a.C. Numa região mais baixa, a bacia do rio Amarelo mais
conflitos regionais que vai de 300 a 600 — o Estado Tang, que é nor-
para o nordeste, o Estado Han, que sucedeu ao Ch'in, construiu poste-
riormente uma importante série de diques, represas e reservatórios com
o objetivo complementar de controlar inundações e regularizar a distri- (3) Needham, Science and Civilization in China, IV/2 (MechanicalEngineering),
buição de água para a agricultura;2 projetaram-se bombas de pás qua- Cambridge, 1965, pp. 344, 362.
(4) Yi-Fu Tuan, China, Londres, 1970, p. 83.
(5) Needham, Science and Civilization in China, IV/3, p. 225.
(6) Needham, Science and Civilization in China, IV/2, pp. 190, 258-65 ss., 312-
(1) Em relação aos três principais tipos de sistemas hidráulicos chineses e sua 27, IV/3, p. 184.
localização regional, ver a análise original de Chi Ch*ao Ting, Key Economic Áreas in (7) Needham, The Development of Iron and Steel Technology in China, Londres,
Ckinese Hisíory, Nova Iorque, 1963 (reedição), pp. 12-21, e a abordagem magistral de J. 1958, p. 9; o aço já era feito, com uma combinação de ferro batido e ferro fundido, desde
Needham, Science and Civilization in China, vol. IV/3 (Civil Engineering and Nautics), o século VI: pp. 26, 47.
Cambridge, 1971, pp. 217-27, 373-5. (8) Needham, Science and Civilization in China, I (Introductory Orientations),
(2) Chi Ch'ao Ting, op. cit., pp. 89-92. Cambridge, 1954, pp. 111, 129.
522 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 523

malmente considerado o momento decisivo do surgimento da civili- Á máquina estatal que exercia esta vigilância sobre a cidade e o
zação imperial chinesa propriamente dita. campo era de início controlada por uma aristocracia militar, que con-
O sistema fundiário do Império T'ang era, sob muitos aspectos, quistara sua posição nas incessantes guerras intestinas da época prece-
curiosamente semelhante ao arquétipo asiático imaginado por pensa- dente, e ainda era, quanto a suas tradições e posições, uma nobreza
dores europeus posteriores, inclusive Marx. Pela lei, o Estado era o hereditária de cavaleiros. Aliás, no primeiro século do período Tang
único proprietário da terra, segundo a máxima: "Sob o céu, todo tor- houve uma onda espetacular de conquistas militares chinesas para o
rão é terra do imperador". O cultivo agrícola baseava-se no sistema de norte e o oeste. A Mandchúria e a Coréia foram subjugadas; a Mon-
"loteamento igual" (chün~t'ien)f originário do norte de Wei, que era gólia foi pacificada; e o poder chinês foi estendido na Ásia central até a
cumprido na prática com um rigor que chegou a surpreender historia- região da Transoxiana e o Pamir. Esta grande expansão foi, em grande
dores subseqüentes. Lotes fixos de terra, em princípio de cerca de 5,3 parte, obra da cavalaria Tang, preparada com afinco através de um
ha, eram cedidos pelo Estado a casais de camponeses durante toda sua programa doméstico de criação- de cavalos de elite, e comandada por
vida ativa, mediante a obrigação de pagar impostos em espécie — prin- uma aristocracia belicosa.12 O sistema de segurança do novo império,
cipalmente em cereais e tecidos — e prestar serviços; um quinto desses uma vez construído, foi então confiado a colônias de infantaria de milí-
lotes, reservado para o cultivo da seda ou do cânhamo, podia ser her- cias de divisões, que recebiam terras para o cultivo e eram encarre-
dado, enquanto o resto voltava para o Estado quando o casal se apo- gadas de cuidar da defesa; mas a partir do século VII tornou-se neces-
sentava.10 Os objetivos centrais do sistema eram expandir a área culti- sário manter grandes unidades permanentes para defender as frontei-
vada e impedir a formação de grandes domínios privados de proprietá- ras do império. O expansionismo estratégico veio acompanhado do
rios aristocratas. Os próprios funcionários do governo recebiam vastos cosmopolitismo cultural; pela primeira vez na história da China, fortes
domínios públicos para seu sustento. Era importante para o sistema influências estrangeiras moldaram a ideologia oficial, com a ascensão
manter um registro cuidadoso de todas as propriedades e da mão-de- do budismo como religião estatal. Porém ao mesmo tempo uma mu-
obra. O controle administrativo meticuloso estabelecido em todo o dança muito mais profunda e duradoura estava alterando gradual-
campo era duplicado — ou melhor, intensificado — dentro das cida- mente toda a constituição do próprio aparelho de Estado. Pois foi du-
des, a começar pela própria capital do império, Chang'an, que prova- rante o período Tang que nasceu a burocracia civil que se tornou uma
velmente tinha mais de l milhão de habitantes. As cidades chinesas do característica da China imperial. A partir de meados do século VII,
início do período Tang eram rigorosamente planejadas e policiadas uma elite de altos funcionários do governo começou a ser recrutada
pelo Estado imperial. Normalmente eram de forma geometricamente através de um sistema de concursos públicos, embora a grande maioria
regular, cercadas de fossos e muralhas, e divididas em quarteirões re- dos cargos ainda continuassem sendo preenchidos por privilégios here-
tangulares separados uns dos outros por muros, com portões guarda- ditários ou por recomendação das famílias nobres tradicionais. A "cen-
dos durante o dia e toque de recolher à noite; os funcionários moravam sura" compreendia um grupo separado de funcionários cuja função era
numa área especial, separada do resto da cidade por um muro duplo.1! criticar e fiscalizar o trabalho do resto da burocracia imperial, para
Pessoas comuns que transgrediam as restrições de passagem de um manter os padrões corretos de desempenho e as políticas desejadas.
compartimento a outro eram devidamente punidas. Em meados do período Tang, a ascensão política do funcionalismo
através do sistema de concursos, cujo prestígio começava a atrair até
mesmo candidatos nobres, já era visível. O ramo militar do aparelho de
(9) D. Twítchett, Financial Administration under the T'ang Dynasty, Cam- Estado, embora ainda viesse mais tarde a produzir uma longa série de
bridge, 1963, pp. 1,194. generais usurpadores, jamais se tornaria funcionalmente dominante no
(10) Twitchett, op. cit., pp. 1-6. Em regiões densamente povoadas, o tamanho
dos lotes era às vezes de apenas de pouco mais ou menos que um hectare: pp. 4, 201.
O sistema nunca foi implantado com firmeza nos distritos produtores de arroz do sul,
onde era tecnicamente inadequado às grandes exigências de mão-de-obra da riztcultura
irrigada. (12) J. Gernet, Lê Monde Chinois, Paris, 1972, pp. 217-9: este livro é talvez Et
(11) E. Balazs, Chinese Civilization and Bureaucracy, New Haven, 1967, pp, melhor visão geral da história chinesa publicada recentemente em idioma europeu.
68-70. (13) R. DWSQII, Imperial China, Londres, 1972, pp. 56-8.
524 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 525

Império Chinês. Em épocas subseqüentes, a China seria invadida por rém, pôs em circulação grandes quantidades de cobre, melhorando a
conquistadores nômades — turcos, mongóis ou manchus — cujo poder circulação monetária. Esta medida, por sua vez, foi inspirada em parte
dependeria de suas tropas: mas estes exércitos intrusos permaneciam à pela reação xenófoba que caracterizou as etapas posteriores do período
margem do governo administrativo normal, que sempre sobrevivia a Tang. A recuperação dinástica após a crise da metade do século VIII
eles. O Estado imperial chinês passou a caracterizar-se por uma buro- foi acompanhada por uma nova hostilidade dirigida a instituições reli-
cracia letrada. giosas alienígenas, o que pôs fim ao predomínio do budismo dentro do
O sistema agrícola do período Tang na prática desintegrou-se complexo ideológico do Estado chinês. O conservadorismo laico do
em pouco tempo, com a migração de camponeses para terras desocu- pensamento confucionísta, moralista e contrário ao entusiasmo, subs-
padas e não registradas, os projetos de recuperação de terras feitos tituiu o budismo como principal doutrina oficial da ordem imperial.
pelos ricos e as sabotagens perpetradas por funcionários interessados Doravante o Império Chinês se caracterizaria sempre pelo caráter fun-
em acumular terras; esses fatores acabaram derrubando a regulamen- damentalmente laico de seu sistema de legitimação. O impulso subja-
tação do chün-t'ien. Então, em 756, ocorreu a decisiva rebelião do ge- cente a esta mudança cultural veio, por sua vez, principalmente da no-
neral bárbaro An-Lu Shan, justamente no momento em que o poderio breza sulista, que fornecia os mais importantes contingentes à buro-
externo da China tinha sido enfraquecido pelas vitórias dos árabes e cracia civil: com o recuo da Ásia central e Mandchúria-Coféia, foi en-
uigures no Turquestão. A estabilidade dinástica se rompeu temporaria- fraquecida a velha aristocracia militar do noroeste, com sua maior re-
mente; as fronteiras regrediram, com revoltas de povos subjugados; ceptividade para influências estrangeiras, fortalecendo-se a posição dos
ocorreu uma quebra geral da ordem interna. A crise aguda do meio do funcionários letrados dentro do Estado.17 Ao mesmo tempo, a popu-
século VIII confundiu completamente os registros do sistema de lotea- lação e a riqueza foram-se deslocando inexoravelmente para o sul, em
mento, e na prática pôs fim ao sistema do chün-t 'ien no campo. Cinco direção ao baixo vale do Yang-tsé. O cultivo intensivo do arroz come-
anos após o início da rebelião de An-Lu-Shan, o número de casais çava a adquirir importância pela primeira vez, com o desenvolvimento
registrados caiu em 80 por cento.14 Surgiram grandes propriedades pri- da utilização de sementeiras, que eliminou a necessidade de alqueives,
vadas (chang-yuan), de nobres, burocratas ou oficiais. Não eram lati- e portanto aumentou em muito a produção.
fúndios consolidados e sim agrupamentos de lotes trabalhados por No período seguinte, a era Sung, dos séculos X a XIII, toda a
camponeses arrendatários, empregados ou mesmo escravos às vezes, ordem rural foi conseqüentemente alterada. A última fase do período
sob a supervisão de bailios. Normalmente, o arrendamento eqüivalia à Tang, caracterizada pela desintegração do poder dinástico central, a
metade da produção dos arrendatários, uma exploração bem maior do proliferação de rebeliões regionais e as freqüentes invasões de bárbaros
que a que o Estado fazia através do chün-t'ien.ÍS Ao mesmo tempo, do norte, testemunhou o desaparecimento completo da tradicional aris-
o sistema fiscal mudou, substituindo os impostos per capita pagos em tocracia militar do noroeste. A classe dominante chinesa no Estado
espécie e corvéias por tributos proporcionais sobre a propriedade e a Sung, cuja composição social imediata era basicamente nova, descen-
área, pagos em dinheiro e cereais; os impostos indiretos sobre produtos dia do funcionalismo da dinastia precedente: agora transformou-se
se tornaram cada vez mais lucrativos, à medida que aumentavam as numa nobreza de letrados ampliada e estabilizada. O aparelho de Es-
transações comerciais e a economia se monetarizava.16, Antes do pe- tado foi dividido em três setores funcionais — civil, financeiro e militar
ríodo Tang, a China fora basicamente uma economia de escambo; —, cada um com sua carreira específica; a administração provincial foi
mesmo no período Tang havia uma escassez crônica de cobre para também reorganizada e fortalecida. A burocracia imperial resultante
cunhar moedas, *e em parte a economia dependia da seda como meio de era muito maior do que a do período Tang, e seu tamanho dobrou
troca. A abolição dos mosteiros budistas em meados do século IX, po- durante o primeiro século do período Sung. No século X, foi estabele-
cida uma carreira burocrática regular, com a admissão controlada por
concursos e as promoções determinadas por mérito e recomendações
(14) Twitchett, op. cit., pp. 12-17.
(15) Idem.pp. 18-20.
(16) Idem,pp. 24-65. (17) Gernet, Lê Monde Chinois, pp. 255-7.
526 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 527

por apadrinhamento. A formação para a obtenção do grau tornou-se Sua ascendência social coincidiu com grandes avanços no campo.
muito mais rigorosa, e a idade média dos candidatos subiu da faixa dos A mudança geral na distribuição da população e no cultivo que resul-
vinte para a dos trinta anos. Os concursados em pouco tempo domi- tou no predomínio da rizicultura no vale do baixo Yang-tsé foi acom-
naram todos os setores do Estado, exceto o militar; teoricamente as panhada pelo rápido desenvolvimento de um terceiro tipo de sistema
carreiras militares eram equiparadas às civis, mas na prática tinham hidráulico — a drenagem de pântanos aluviais e recuperação de fundo
muito menos prestígio.18 No século XI, a maioria dos funcionários de de lagos. Houve um aumento espetacular no nível total de projetos de
responsabilidade já eram graduados, que normalmente moravam nas irrigação, cuja incidência média anual durante o período Sung aumen-
cidades e controlavam as propriedades rurais através de administrado- tou mais de três vezes em relação a qualquer dinastia anterior. Os
res; tais propriedades eram trabalhadas por arrendatários dependen- proprietários de terras do período Sung investiram em grandes projetos
tes. As maiores delas vieram a se concentrar nas novas regiões de de recuperação de terras, mais extensos que os projetos públicos. O
Kiangsu, Anhwei e Chekiang, onde residia a maior parte dos candida- advento da propriedade privada fundiária foi concomitante ao predo-
tos e altos funcionários do Estado.19 Os camponeses que cultivavam as mínio da rizicultura irrigada dentro da economia agrícola chinesa como
terras desses proprietários deviam-lhes trabalho e pagamento em espé- um todo: ambos eram fenômenos novos do período Sung. A grande
cie, e sua mobilidade era restringida pelos seus contratos de arrenda- maioria das obras de irrigação seriam doravante de caráter local, com
mento. Não há dúvida quanto à importância deste sistema de proprie- pouca ou nenhuma intervenção central do Estado:23 a iniciativa dos
dade fundiária, com a fixação de camponeses na terra, na agricultura proprietários ou habitantes das vilas era responsável pela maior parte
do período Sung. Por outro lado, é possível que até 60 por cento ou dessas obras, desde que foram estabelecidos os ciclos bem mais produ-
mais do total da população rural fosse agora composta de pequenos tivos da agricultura em terrenos alagados na região do Yang-tsé. Foi
proprietários, fora do perímetro das grandes propriedades.20 Eram eles nesta época que se generalizou o uso de máquinas movidas a água mais
que pagavam a maior parte dos impostos rurais. Teoricamente, o Es- complexas, para bombear, moer e debulhar. Ferramentas como ara-
tado continuava sendo o proprietário de todas as terras no período dos, enxadas, pás e foices foram aperfeiçoadas e difundidas. Foi im-
Sung, mas na prática isto não mais funcionou daqui em diante.21 Ago- portada do Vietnã uma variedade de arroz precoce e a produção de
ra a propriedade privada no campo, ainda que sujeita a algumas res- trigo aumentou muito.24 Foram cultivados produtos comerciais como
trições importantes, viria a caracterizar a sociedade imperial chinesa cânhamo, chá e açúcar. De modo geral, a produtividade agrícola au-
até o fim do império. mentou muito depressa, e com ela aumentou também a densidade de-
mográfica. A população da China, que desde o século II a.C. estava
praticamente estacionada em cerca de 50 milhões de habitantes, pro-
vavelmente dobrou entre meados do século VIII e o período do século X
(18) Twitchett, "Chinese politics and society from the bronze age to the man-
chus", in A. Toynbee(Org.), Halfthe World, Londres, 1973, p. 69. ao XIII, chegando a cerca de 100 milhões.25
(19) Twitchett, Land Tenure and the Social Order in T'ang and Sung China, Enquanto isso, grandes progressos industriais haviam sido reali-
Londres, 1962, pp. 26-7. zados na mineração e metalurgia. No século XI aumentou muito a pro-
(20) Twitchett, op. cit., pp. 28-30. O problema do verdadeiro equilíbrio entre o
setor de propriedades chang-yuan e a agricultura dos pequenos proprietários na econo- dução de carvão, exigindo investimentos muito maiores em capital e
mia da era Sung é um dos mais polêmicos na atual historiografia do período. Em sua
importante obra recente, Elvin sustenta que o "senhorialismo" chinês, fundamentado no
trabalho de "servos", predominava na maior parte do campo, embora admita que o nú-
mero de camponeses fora das propriedades "não era desprezível": The Pattern of the (22) Ver as computações apresentadas em Needham, Science and Civilizatioa in
ChinesePast, Londres, 1973, pp. 78-83. Porém ele não aceita as estimativas quantitati- China, IV/3, pp. 282-4, refinadas com base em cálculos feitos inicialmente por Chi
vas baseadas nos registros demográficos da época, sem oferecer alternativas, e baseia boa Ch'ao Ting, op. cií., p. 36.
parte de suas interpretações em dois estudiosos japoneses, Kusano e Sudõ, cujas opiniões (23) Dwight Perkins, Agricultural Development in China 1368-1968, Edinburgo,
parecem ser contestadas até mesmo no Japão. Twítchett, ao contrário, condena o uso de 1969, pp. 171-2. O estudo de Perkins diz respeito à China posterior ao período Yuan,
termos como "senhorialismo" em referência ao chang-yuan, e dá muita ênfase à impor- mas tudo indica que o que ele diz também se aplica a toda a época que se segue ao
tância relativa dos pequenos proprietários do período Sung. Os dados atuais não permi- período T'ang.
tem conclusões decisivas. (24) Twitchett, op. cíí.,pp. 30-1.
(21) Twitchett, op. cit., p. 25. (25) Gernet.op. cit., p. 281.
528 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 529

mão-de-obra do que eram necessários com os combustíveis tradicio- de recolher foi abolido na capital do Império Sung, Kaifeng, no século
nais, e atingindo níveis extraordinários de produção. A demanda era XI, e as velhas divisões dentro das cidades imperiais foram substituídas
aquecida pelos avanços decisivos da indústria do ferro, cuja tecnologia por um sistema de ruas mais fluido. As novas comunidades mercantis
estava agora extremamente sofisticada (o fole de pistões já era equi- nas cidades lucraram com o advento de uma agricultura voltada para a
pamento padrão), empregando fundições que foram talvez as maiores comercialização, com o crescimento da mineração e da metalurgia e
do mundo até o século XIX. Em 1078, a produção de ferro no norte com a descoberta de novos recursos nas atividades bancárias e finan-
estava entre 75 e 150 mil toneladas, um aumento de doze vezes em dois ceiras. A produção de moedas de cobre tornou-se vinte vezes maior do
séculos: é possível que a produção chinesa de ferro no século XI fosse que no período T'ang. O comércio marítimo a longas distâncias melho-
aproximadamente equivalente ao total da produção européia no início rava cada vez mais, auxiliado pelos numerosos avanços na engenharia
do século XVIII. 26 Foi este rápido crescimento da indústria do ferro naval e pela criação da primeira marinha imperial.
que tornou possível a multiplicação das ferramentas agrícolas por todo A mudança radical na configuração geral da economia chinesa
o campo, bem como o aumento na fabricação de armas. Neste mesmo no período Sung foi acentuada pela conquista do norte da China pelos
período, surgiu um número extraordinário de novas invenções. Pela nômades jürchen em meados do século XII. Separado do tradicional
primeira vez, armas de fogo foram empregadas na guerra; o tipo móvel interior da Ãsia central e da Mongólia da civilização chinesa, o Império
foi usado na imprensa; a bússola foi utilizada na navegação; e foram Sung sulista foi obrigado a deixar de ser um país voltado para o interior
construídos relógios mecânicos.27 Assim, as três ou quatro mais famo- e tornar-se uma potência marítima, algo absolutamente novo na histó-
sas inovações tecnológicas da Europa renascentista já haviam há muito ria da China; enquanto isso, a importância do comércio urbano crescia
sido feitas na China. Comportas para represamento na construção de proporcionalmente. Em conseqüência, pela primeira vez na história,
canais, lemes de cadaste de popa e rodas de pás para navios melhora- a agricultura deixou de ser a principal fonte de renda do Estado na
ram o transporte.28 A indústria de cerâmica desenvolveu-se muito de- China. No século XI, a renda do império proveniente de impostos co-
pressa, e talvez pela primeira vez a produção de cerâmica ultrapassou a merciais e monopólios já era equivalente ao montante dos impostos
da seda como o mais importante produto de exportação do império. A sobre a terra; no Estado sulista do período Sung, no final do século XII
circulação de moedas de cobre aumentou muito, e notas de papel co- e no século XIII, a renda proveniente do comércio tornou-se muito
meçaram a ser emitidas por banqueiros particulares e pelo Estado. maior do que a oriunda dos impostos fundiários.31 Este novo equilíbrio
Esta combinação de progresso agrícola e industrial desencadeou uma fiscal era um reflexo não apenas do crescimento do comércio interno e
tremenda vaga de urbanização. Em 1100, a China já possuía talvez externo como também do aumento da base industrial de toda a econo-
cinco cidades com mais de um milhão de habitantes.29 Estas grandes mia, da expansão da mineração e da difusão do cultivo para a comer-
aglomerações eram muito mais conseqüência de um crescimento eco- cialização na agricultura. O império islâmico do califado abássida fora
nômico espontâneo do que de uma intenção deliberada da burocracia, por algum tempo a civilização mais rica e poderosa do mundo, nos sé-
c eram caracterizadas por um plano urbano bem mais livre.30 O toque culos VIII e IX; o império chinês do período Sung foi inquestionavel-
mente a economia mais rica e avançada do mundo nos séculos XI e XII,
e seu êxito dependia de algo muito mais sólido do que o comércio ex-
(26) R. Hartwell, "A revolution in the chinese iron and coal industries during the terno: a produção diversificada de sua agricultura e indústria. O dina-
northern Sung, 920-1126 A.D.", The Journal ofAsian Studies, XXI, n? 2, fevereiro de
1962, pp. 155, 160. mismo econômico do Estado Sung foi acompanhado por uma ebulição
(27) Needham, Science and Civilization in China, I, pp. 134, 231; IV/2, pp. intelectual que combinava a reverência pelo passado chinês com novas
446-65; IV/3, p. 562. Na prática, a impressão com blocos sempre predominou na China explorações nos campos da matemática, astronomia, medicina, carto-
imperial, porque a escrita ideográfica minimizava as vantagens do tipo móvel: Gernet,
op. cit., pp. 292-6. grafia, arqueologia e outras disciplinas.32 O nobre letrado que agora
(28) Needham, Science and Civilization in China, IV/2, pp. 417-27; IV/3, pp.
350, 357-60, 641-2.
(29) E. Kracke, "Sung society: change within tradition", The Far Eastern Quar- (31) Gernet, op. cit., p, 285.
terly, XIV, agosto de 1955, n? 4, pp. 481-2. (32) Gernet, entre outros, fala numa "Renascença" Sung comparável ao Renas-
(30) VerTuan, China, pp. 132-5. cimento europeu da época: op. cit., pp. 290-1, 296-302. Mas a analogia é insustentáve],
530 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 531

governava a China era caracterizado por um tradicional desprezo pelos mental Grande Canal, que unia os centros econômicos e políticos do
esportes físicos e pelos exercícios marciais, e por um culto acentuado país por uma rede contínua de rios e canais. Mas a discriminação ét-
dos passatempos estéticos e intelectuais. As especulações cósmicas vi- nica da dinastia em pouco tempo alienou boa parte da nobreza, en-
nham associadas a um neoconfucionismo sistematizado na cultura do quanto a intensidade da tributação, a depreciação da moeda emitida
período Sung. sem lastro e o aumento da opressão dos proprietários de terras levou o
A conquista mongol da China no século XII foi uma provação da campesinato a uma revolta armada. O resultado foi a sublevação social
capacidade de recuperação do sistema sócio-econômico que havia ama- nacional que pôs fim ao domínio mongol no século XIV, levando ao
durecido neste período de apogeu. Grandes áreas do norte da China poder a dinastia Ming.
foram de início "pastorializadas" pelos novos governantes nômades, e O novo Estado representava, com algumas modificações impor-
a agricultura entrou em declínio; as tentativas posteriores de recuperá- tantes, um revigoramento da tradicional estrutura política em que do-
la no período Yuan não tiveram muito sucesso.33 Praticamente cessa- minavam os nobres letrados. Q sistema de concursos foi logo reintro-
ram as inovações industriais; o mais notável avanço técnico do período duzido; porém foi necessário criar um sistema de cotas regionais para
mongol parece ter sido — significativamente — a função de canhões de garantir que o sul não monopolizaria os cargos, sendo reservados cerca
tubo metálico.34 A carga tributária sobre as massas rurais e urbanas de 40% dos diplomas para candidatos nortistas. Grandes proprietários
aumentou, e o registro hereditário de suas ocupações foi introduzido, de terra da região do Yang-tsé foram trazidos para a nova capital em
para imobilizar a estrutura de classes do país. Os arrendamentos e Nanquim, onde eram obrigados a morar, o que facilitava o controle
taxas de juros permaneceram elevados, e o endividamento dos campo- pelo governo; e foi abolido o secretariado imperial, que tradicional-
neses foi aumentando progressivamente. Embora os proprietários de mente restringia o poder arbitrário do imperador. O Estado tornou-se
terra do sul se aliassem aos exércitos mongóis invasores, a dinastia mais autoritário no período Ming; os sistemas de policiamento e infor-
Yuan não demonstrava muita confiança no mandarinato. O sistema de mações eram muito mais cruéis e extensos do que os da dinastia Sung.36
concursos foi abolido, a autoridade imperial foi fortalecida, a admi- A política da corte foi cada vez mais dominada por um grande contin-
nistração das províncias foi reorganizada e a coleta de tributos foi dele- gente de eunucos (que não se enquadrava nas normas confucianas de
gada a corporações estrangeiras de uigures, de quem os governantes autoridade e responsabilidade paternais) e conflitos acirrados entre
mongóis dependiam muito nas áreas de administração e comércio.35 facções. A solidariedade da burocracia foi enfraquecida pela insegu-
Por outro lado, as políticas adotadas no período Yuan favoreceram os rança nos cargos e a divisão de atribuições, enquanto a idade média
empreendimentos mercantis e estimularam o comércio. A integração do indivíduo que alcançava a graduação através do sistema de graus
da China ao vasto sistema imperial mongol levou a um influxo de co- subia progressivamente. Um exército enorme de 3 milhões de homens
merciantes islâmicos da Ásia central e à expansão do comércio marí- foi criado de início; boa parte dele foi subseqüentemente diluído numa
timo. Foi introduzido um papel-moeda nacional. Foi instituído o trans- rede de colônias militares. A principal inovação fiscal do Estado Ming
porte de cabotagem em grande escala para enviar cereais ao norte, foi a imposição sistemática de serviços em obras públicas à população
onde fora fundada a nova capital em Pequim; e foi concluído o monu- rural e urbana, organizada em unidades "comunitárias" cuidadosa-
mente supervisionadas para a execução das obras.
No campo, os contratos de arrendamento restritivo do período
Sung foram caducando,37 enquanto os registros hereditários de ocupa-
pois os estudiosos chineses jamais deixaram de se interessar pela sua antigüidade: não
houve um processo de ruptura cultural tal como ocorreu com a redescoberta da anti-
güidade clássica na Europa. Em outra passagem, o próprio Gernet alerta contra a impor-
tação abusiva de períodos e conceitos próprios à Europa para a história da China, e
insiste na necessidade de criar novos conceitos específicos e apropriados à experiência (36) Dawson, op. cit., pp. 214-15, 218-19; Twitchett, "Chinese politics and so-
chinesa: op. cit., pp. 571-2. ciety", pp. 72-3.
(33) H. F. Schurmann, Economia Structure of the Yuan Dynasty, Cambridge- (37) Pelo menos esta é a opinião geral. Elvínacha que o sistema de "servidão" do
EUA, 1956, pp. 8-9, 29-30, 43-8. arrendatário acabou muito depois — já no início do período Ch*ing, que ele considera o
(34) Needham, Science and Civilization in China, I, p. 142. primeiro período em que as pequenas propriedades generalizaram-se no interior: The
(35) Schurmann, op. dt., pp. 8, 27-8; Dawson, Imperial China, pp. 186, 197. Pattern ofthe ChinesePast, pp. 247-50.
532 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 533

cão do regime Yuan foram mantidos, embora com mais flexibilidade. China, até que a maior parte do sistema fiscal foi convertido ao novo
Com a volta da paz social e o relaxamento dos títulos fundiários, as padrão.
forças rurais de produção voltaram a realizar avanços prodigiosos. Um Porém o grande surto de crescimento econômico do início do pe-
imenso programa de recuperação da agricultura foi oficialmente lan- ríodo Ming não se manteve no segundo século do domínio da dinastia.
çado pelo fundador da dinastia Ming, o imperador Hongwu, para com- Os primeiros problemas surgiram na agricultura: a partir de 1520,
pensar as devastações do período mongol e as destruições causadas pe- mais ou menos, os preços da terra começaram a cair, à medida que
las revoltas que puseram fim ao período. A terra foi recuperada, as diminuía a lucratividade dos investimentos rurais para a nobreza.40 O
obras de engenharia hidráulica foram restauradas e ampliadas, e um crescimento da população aparentemente diminuiu também. Por outro
programa de reflorestamento inédito foi realizado, segundo instruções lado, as cidades pareciam exibir grande prosperidade comercial, com
do Estado imperial.38 Os resultados foram rápidos e espetaculares. Seis o aperfeiçoamento dos métodos de produção em algumas indústrias
anos após a derrubada da dinastia Yuan, o volume de impostos sobre mais antigas e o volume maior de prata no país. Porém ao mesmo
cereais recebidos pelo tesouro central havia quase triplicado. O ímpeto tempo diminuiu o dinamismo inovador da tecnologia industrial num
inicial dado à economia rural por esta reconstrução iniciada pelo go- plano mais fundamental. Aparentemente, não houve novas invenções
verno central desencadeou um crescimento extremamente rápido na urbanas de importância no período Ming, e algumas invenções ante-
agricultura. A rizicultura irrigada expandiu-se e aperfeiçoou-se progres- riores (relógios e comportas) foram abandonadas ou esquecidas.41 A
sivamente nos vales e planícies, com a expansão das variedades preco- indústria têxtil progrediu ao adotar o algodão em vez do cânhamo como
ces e com a realização de duas colheitas por ano, do baixo Yang-tsé até matéria-prima, mas ao fazê-lo ela abandonou as rodas de fiar utiliza-
Hopei, Hunan e Fukien; no sudoeste, foi colonizado o Yuanan. Terras das para a produção de roupas de cânhamo no século XIV — uma
marginais no sul foram cultivadas, com trigo, cevada e painço adapta- regressão técnica crítica. Também do ponto de vista organizacional
dos do norte. Produtos para comercialização, como anil, açúcar e fu- houve regressão: enquanto no período Sung se desenvolvera no campo
mo, começaram a ser cultivados em escala muito maior. A população um sistema de distribuição de roupas de cânhamo sob controle dos
da China, que provavelmente caíra para a faixa dos 65-80 milhões no mercadores, agora as manufaturas rurais de algodão de modo geral
período mongol, agora voltou a crescer rapidamente, situando-se entre regrediram à condição de indústrias artesanais.42 A expansão naval
120 e 200 milhões em 1600, em conseqüência deste progresso.39 Nas atingiu o apogeu no início do século XV, quando juncos chineses, cuja
cidades, as indústrias da seda, cerâmica e refinamento do açúcar sofre- tonelagem era muito superior a de qualquer navio europeu da época,
ram um desenvolvimento notável; pela primeira vez, os têxteis de algo- singravam os oceanos até a Arábia e a África; porém estas expedições
dão se popularizaram, substituindo as tradicionais roupas decânhamo. marítimas foram abandonadas em meados do século, e a marinha im-
A adoção dos novos tecidos pelo campesinato tornou possível a criação perial foi desmantelada, numa reação dos burocratas-nobres que prefi-
de grandes centros manufatureiros na indústria têxtil: no final do pe- gurava um período de regressão e obscurantismo.43 O clima de nati-
ríodo Ming, a região de Sungkiang já possuía cerca de 200 mil artesãos vismo e volta às raízes da cultura Ming, que começou como uma reação
dessa área. O comércio inter-regional cada vez mais aumentava a inte- xenófoba ao jugo mongol, aparentemente levou a um "desvio" da ati-
gração do país, e gradualmente foi-se adotando um novo sistema mo- vidade intelectual para a filologia e literatura, com o conseqüente de-
netário. O papel-moeda foi abandonado devido às sucessivas desvalori- créscimo do interesse pela ciência e tecnologia. Politicamente, o Estado
zações ocorridas no início da segunda metade do século XV: foram imperial Ming logo caiu num esquema já bem conhecido: extravagân-
aumentando as importações de prata da América (via Filipinas) e Ja- cias palacianas, corrupção administrativa e evasão de impostos por
pão, e a prata foi-se tornando o principal meio de trocas dentro da

(40) Gernet, op. cit., pp. 370-1.


(38) Gernet, op. cit., pp. 341-2. (41) Needham, Science and Civilization in China, IV/2, p. 508; IV/3, p. 360.
(39) Ping-Ti Ho, Studies on the Populaíion of China 1368-1953, Cambridge- (42) Elvin, The Pattern ofthe Chinese Past, pp. 195-9,162, 274-6.
EUA, 1969, pp. 101, 277; Perkins, Agricultura! Development in China, pp. 16, 194-201, (43) Needham, Science and Civilization in China, IV/3, pp. 524-7, resume as
208-9. hipóteses atuais a respeito das causas dessa mudança súbita.
534 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 535

proprietários de terras — fatores que esvaziaram os cofres imperiais, pliou a colonização. A expansão dos produtos agrícolas americanos, via
aumentando a pressão sobre os camponeses, sendo as corvéias conver- Filipinas — milho, batata, amendoim, batata-doce — permitiu que,
tidas em impostos cobrados em dinheiro, que foram aumentando à pela primeira vez, fossem utilizadas as terras montanhosas, em que
medida que o regime ia sofrendo ataques externos. Piratas japoneses havia pouco húmus. A migração de camponeses para as terras mais
infestavam os mares, pondo fim ao período de poder marítimo chinês; elevadas cobertas de florestas, até então habitadas por povos tribais,
os ataques dos mongóis no norte recrudesceram, causando muita des- ocorreu em velocidade acelerada, e grandes extensões de terra passa-
truição; e as investidas dos japoneses na Coréia só eram repelidas com ram a ser cultivadas. Fizeram-se aperfeiçoamentos ainda maiores na£
grande esforço dos exércitos imperiais.44 O crescimento econômico e variedades de arroz, de modo a conseguir-se uma colheita em menos da
demográfico do país, portanto, gradualmente foi cessando durante o metade do tempo que era necessário quando, no período Sung, foram
século XVI, com o declínio político do governo e o preço militar de sua introduzidas as primeiras variedades precoces. Assim, mais uma vez
incompetência. No início do século XVII, quando iniciaram as incur- aumentou muito a extensão de áreas cultivadas, bem como a produti-
sões dos manchus no nordeste da China, a segurança interna do Impé- vidade, permitindo um crescimento demográfico explosivo, quebrando
rio Ming já se esboroava, e a fome devastava os campos, enquanto a todos os recordes anteriores. Entre 1700 e 1850 a população chinesa
força do exército era minada pelas deserções. Em pouco tempo, revol- duplicou ou triplicou, chegando a 430 milhões.46 Enquanto o total da
tas de usurpadores e insurreições camponesas agitavam o país, de população da Europa subiu de 144 milhões em 1750 a 193 milhões em
Shensi e Szechuan até Kiangzu. 1800, a população chinesa aumentou, segundo uma estimativa, de 143
Assim, a conquista manchu foi facilitada pela situação interna da milhões em 1741 a 360 milhões em 1812: o aumento da produção de
China no tempo dos últimos imperadores do período Ming: em duas arroz, sempre maior que a de produtos da lavoura em terras não-inun-
gerações, os ataques prolongados dos regimentos tungúsios avançaram dadas, tornou possível uma densidade demográfica jamais vista no Oci-
de Mukden a Cantão. Em 1681, todo o território continental chinês dente.47 Ao^mesmo tempo, as conquistas militares dos manchus — que
tinha sido conquistado. A nova dinastia Ch'ing, uma vez instalada no pela primeira vez na história colocaram sob o domínio chinês a Mongó-
poder, viria a repetir o mesmo ciclo econômico da anterior, em escala lia, o Sinkiang e o Tibete — aumentaram muito o território potencial
mais ampla. Politicamente, o governo adotou uma mistura das tradi- para a agricultura e a colonização. Os exércitos Ch'ing ampliaram
ções Yuan e Ming. O separatismo étnico foi mantido pela classe domi- muito as fronteiras da China na Ásia central.
nante manchu, que ocupou todo o país com seus próprios regimentos e No século XIX, porém, já tivera início uma estagnação econô-
monopolizou os-altos postos militares.45 Na maioria dos casos, os go- mica relativa. A erosão estava extinguindo boa parte do cultivo em
vernadores-gerais, cada um responsável por duas províncias, tinham morros e inundando os sistemas de irrigação: o excesso de exploração
mais poder que os governadores chineses encarregados da administra- dos proprietários de terra e agiotas era generalizado nas regiões mais
ção, cada um de uma única província. Mas a nobreza chinesa conti- férteis, e a superpopulação no campo estava começando a se tornar
nuou controlando a burocracia civil, e o sistema de concursos foi ainda evidente nas aldeias.48 A expansão militar e a extravagância da corte,
mais aperfeiçoado para dar igual representatividade às diferentes pro- no reinado do imperador Ch'ien Lung, na segunda metade do século
víncias. Intensificou-se a tradicional censura cultural imposta pelo Es- XVIII, mais uma vez levaram as pressões tributárias a níveis intolerá-
tado imperial. Por quase um século, de 1683 a 1753, o regime manchu veis. Em 1795, a primeira grande insurreição de camponeses explodiu
baixou os impostos, conteve a corrupção, manteve a paz interna e ara- no noroeste, e só foi contida com dificuldade, após oito anos de luta.

(44) Em relação às yícissitudes do final do regime Ming, ver Dawson, imperial (46) Ping-Ti Ho, Studies on the Population of China, pp. 208-15.
China, pp. 247-9, 256-7. (47) Gernet, op. cií., p. 424. Até hoje, a produtividade internacional média de
(45) Tropas chinesas de "Regimentos Verdes" formavam um ramo subordinado arroz por hectare é cerca de 75 por cento mais alta do que a de milho; no século XVIII,
do Estado Ch'ing. O dualismo entre regimentos manchus e chineses foi mantido até os as vantagens que o arroz chinês levava em relação ao trigo europeu eram muito maiores.
últimos anos da dinastia, na virada do século XX: ver Purcell, The Boxer Uprising, (48) Dawson, op. cit., pp. 301-2; Ho, Síudies on the Population of China, pp.
Cambridge, 1963, pp. 20-4. 217-21.
536 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 537

Pouco depois as manufaturas urbanas entraram num período de crise ideais igualitários e puritanos da doutrina T1 ai P'ing. Enquanto isso,
crescente. O século XVIII testemunhara o aumento da prosperidade o norte da China estava sendo convulsionado pelas rebeliões rurais do
comercial nas cidades. A produção de têxteis, porcelana, seda, papel, Nien; e as minorias étnicas e religiosas oprimidas — principalmente
chá e açúcar aumentou muito no período de paz. O comércio exterior as comunidades muçulmanas — desencadearam rebeliões em Kwei-
aumentou consideravelmente, estimulado pelo novo mercado europeu chow, Yunnan, Shensi, Kansu e Sinkiang. As ferozes guerras de re-
para artigos chineses, embora no final do século ele ainda correspon- pressão desencadeadas pelo Estado Ch'ing contra estas revoltas da po-
desse a cerca de um sexto da renda tributária sobre o comércio interno. pulação pobre duraram quase três décadas. Foi só em 1878 que os
Mas não houve mudanças qualitativas na indústria chinesa. Os gran- manchus completaram suas operações militares e conseguiram "pacifi-
des progressos no campo da siderurgia do período Sung não foram car" a Ásia central; o número de mortos nesses conflitos gigantescos
seguidos por progressos comparáveis no início da idade moderna: não chegava talvez a 20-30 milhões, e os prejuízos à agricultura foram sé-
houve desenvolvimento de uma indústria de bens de produção. As in- rios. A revolta do T'ai P'ing e os-outros conflitos concomitantes assina-
dústrias de consumo, que desde o período Ming eram as que mais pros- laram o declínio irreversível do sistema político manchu. O Estado Im-
peravam, também não geraram nenhum grande avanço tecnológico no perial tentou recuperar suas finanças criando novos impostos comer-
período Ch'ing; e no início do século XIX ainda não havia se expandido ciais, cujo valor total aumentou em sete vezes entre 1850 e 1910: um
muito o emprego de mão-de-obra assalariada. No período de domínio ônus que enfraqueceu ainda mais as indústrias nacionais justamente no
manchu, houve um equilíbrio geral entre os setores urbano e rural da momento em que elas estavam sendo mais abaladas por uma acirrada
economia, como se pode verificar pelo predomínio absoluto dos impos- competição estrangeira.50 Os têxteis de algodão ingleses e norte-ameri-
tos sobre a terra e per capita no sistema fiscal; até o final do século canos arrasaram a produção chinesa; as plantações de chá foram arrui-
XVIII, estes impostos correspondiam a 70-80 por cento da renda total nadas pelo predomínio do chá indiano e cingalês no mercado; as sedas
do Estado Ch'ing.49 Além disso, a partir de meados do século XIX, a japonesas e italianas conquistaram mercados tradicionalmente chine-
expansão imperialísta européia pela primeira vez começou a prejudicar ses. A pressão militar imperialista aumentava progressivamente, cul-
o comércio e as manufaturas chinesas tradicionais, e a deslocar todo o minando na guerra sino-japonesa de 1894-5. As humilhações impostas
aparato militar do Estado Ch'ing. De início, a pressão ocidental se fez pelos estrangeiros provocaram turbulências internas (a rebelião dos
sentir essencialmente através do comércio: o tráfico ilícito de ópio reali- hoxers), que levaram a novas intervenções estrangeiras. O Estado
zado por companhias inglesas a partir da segunda década do século Ch'ing, abalado por esses golpes sucessivos, foi finalmente derrubado
XIX no sul da China criou um déficit na balança comercial, à medida pela revolução republicana de 1911, na qual mais uma vez combina-
que aumentavam rapidamente as importações de narcóticos. A crise no ram-se elementos sociais e nacionais.
balanço de pagamentos piorou com a queda do preço da prata no mer- A agonia e queda do império na China deu aos observadores eu-
cado internacional, que levou à desvalorização da moeda chinesa e ao ropeus do século XIX a idéia de uma sociedade essencialmente estag-
aumento da inflação. A tentativa de deter o comércio de ópio fracassou nada, que desmoronava ante a aproximação do Ocidente dinâmico.
quando a China perdeu a guerra contra a Inglaterra de 1841-2. Porém o espetáculo da queda dos Ch'Íng foi, numa perspectiva mais
Estes problemas econômicos e militares, acompanhados por uma ampla, enganador. Pois a história do Império Chinês como um todo,
perturbadora penetração ideológica do exterior, foram então seguidos desde o período T'ang ao Ch'ing, revela, sob certos aspectos fundamen-
pela grande convulsão social da rebelião do T'ai P'ing. Durante quinze tais, um desenvolvimento claramente cumulativo: o enorme aumento
anos, entre 1850 e 1864, esta imensa rebelião camponesa e plebéia — da população, que saltou de cerca de 65 milhões em 1400 para aproxi-
de longe a maior revolta popular ocorrida em todo o mundo no século madamente 430 milhões em 1850 — um aumento demográfico muito
XIX — abalou os alicerces do império. A maior parte da China central superior ao ocorrido na Europa no mesmo período — por si só indica o
foi conquistada pelos soldados do "Reino dos Céus", inspirados pelos grau de expansão das forças de produção da China imperial após o

(49) Gernet, op. cit., p. 424. (50) Wem.pp. 485-6.


538 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 539

período Yan. Os progressos realizados na agricultura no inicio do pe- séculos de história. Nas décadas de 20 e 30 do atual século, cerca de 50
ríodo moderno foram, dentro de qualquer perspectiva material, admi- por cento dos camponeses chineses eram proprietários das terras que
ráveis. O imenso crescimento populacional, que multiplicou em seis ocupavam, 30 por cento eram arrendatários e outros 20 por cento eram
vezes a população no decorrer de cinco séculos, foi provavelmente tanto proprietários quanto arrendatários.56 A agiotagem era tão gene-
acompanhado de um crescimento proporcional da produção agrícola ralizada que o proprietário "muitas vezes não passava de arrendatário
até os últimos momentos do império: a produção per capita prova- de um agiota".57 Três quartos da terra cultivada por arrendatários no
velmente manteve-se mais ou menos constante entre 1400 e 1900.51 período Ch'ing estavam arrendadas a aluguéis fixos, pagos em espécie
Este grande aumento absoluto na produção de cereais registrado num ou dinheiro, o que formalmente permitia que as melhorias na produti-
período de meio milênio é atribuído em partes mais ou menos iguais à vidade fornecessem lucros ao produtor direto; um quarto era ocupado
expansão quantitativa da extensão de terras cultivadas e à melhoria por meeiros, principalmente nas regiões mais pobres do norte em que
qualitativa dos índices de produtividade; cada um desses fatores por si era menos comum o arrendamento.58 No máximo cerca de 30-40 por
só parece ter sido responsável por cerca de metade do total do cresci- cento da produção rural era comercializada, já no final do período
mento da produção.52 Dentro do fator qualitativo, por sua vez, é prová- Ch'ing.59 Os latifúndios — concentrados na região do Yang-tsé, no sul
vel que metade do avanço tenha sido devido à utilização de melhores e na Mandchúria — perfaziam a maior parte das terras mais produ-
sementes, à prática de realizar duas colheitas por ano e à utilização de tivas: 10 por cento da população rural possuíam 53 por cento da terra
novas variedades de plantas, e que a outra metade tenha sido devida ao cultivada, e o latifúndio médio era 128 vezes maior do que o lote médio
maior controle da água e utilização de fertilizantes.53 No final desta cultivado por arrendatário. Três quartos dos proprietários fundiários
longa evolução, apesar dos desastrosos últimos anos do período Ch'ing, eram absenteístas. Normalmente as cidades atuavam como centros de
os níveis de produtividade da rizicultura chinesa ainda eram bem mais diferentes círculos concêntricos de prop .dade e produção agrária: nos
altos do que os de outros países asiáticos, como índia e Tailândia. Po- subúrbios ficavam as terras monopolizadas pelos comerciantes, funcio-
rém todo o desenvolvimento agrário chinês não conheceu praticamente nários e nobres, que eram utilizadas para o cultivo de produtos indus-
nenhum aperfeiçoamento tecnológico importante, desde o período triais e a horticultura; depois vinham os campos de produção comercial
Sung.54 A produção de cereais foi sempre aumentada pelo cultivo ex- de arroz e trigo, dominados por nobres; por fim vinham os lotes de
tensivo de terra, uma aplicação mais intensiva de mão-de-obra, a di- agricultura de subsistência, trabalhados por camponeses, nas regiões
versificação de plantas cultivadas e o uso mais ampliado de irriga- mais altas ou mais inacessíveis. As cidades provincianas se multiplica-
ção e fertilização. No mais, nada mudou em termos de tecnologia ram durante o período Ch'ing, mas a sociedade chinesa era proporcio-
agrícola. nalmente mais urbanizada no período Sung, mais de meio milênio
É provável que também as relações de propriedade tenham mu- antes.61
dado relativamente pouco após o período Sung, embora as pesquisas Na verdade, o crescimento das forças de produção na China
neste campo ainda sejam fragmentárias e incertas. Segundo uma esti- imperial parece ter seguido uma curiosa trajetória espiral apôs as
mativa recente, a taxa de ocupação da terra por arrendatários talvez grandes revoluções sócio-econômicas da era Sung nos séculos X-XIII.
tenha permanecido praticamente constante, por volta de 30 por cento, O mesmo movimento era repetido, em níveis ascendentes, sem jamais
do século XI até o XIX.55 O Estado Ch'ing legou a seu sucessor uma partir para uma forma nova, até que esta recorrência dinâmica foi der-
configuração agrícola que era, na verdade, uma súmula expressiva de
(56) R. H, Tawney, LandandLabour in China, Londres, 1937, p. 34,
(57) Idem,p. 36.
(51) Perkins, Agricultura!Development in China, pp. 14-15, 32. (58) Perkins, op. cit., pp. 104-6.
(52) /rfem,pp.33,37. (59) Idem,pp. 114-5,136.
(53) Idem,pp.38-51,60-73. (60) Ho, Studies on the Population of China, p. 222.
(54) fdem, pp.56-8, 77. Uma das poucas exceções parece ter sido a introdução do (61) Elvin, ThePattern ofthe Chinese Past, pp. 176-8; a porcentagem da popu-
moinho de vento, mencionado pela primeira vez no inicio do século XIX. lação que vivia em cidades com mais de 100 mil habitantes era de cerca de 6 a 7,5 por
(55) Perkins, op. cit., pp. 98-102. cento no século XII; em 1900, era de 4 por cento.
540 PERRY ANDERSON LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 541

rubada por forças externas à formação social tradicional. O paradoxo fundamentais para o império. Talvez sugestivamente, a última grande
desta dinâmica específica à história chinesa no início da era moderna é fundação de cidade foi a construção da nova capital Yuan, Pequim. A
o fato de que a maioria das precondições especificamente técnicas da dinastia Ming tentou relocalizar o centro político do país na velha ci-
industrialização capitalista foram alcançadas na China muito antes do dade de Nanquim, uma tentativa abortada: não criou nada de seu. Daí
que na Europa. No final da Idade Média, a China levava uma vanta- em diante, do ponto de vista econômico, foi como se as sucessivas fases
gem tecnológica ampla e decisiva em relação ao Ocidente; lá surgiram, de grande expansão agrícola não encontrassem avanços corresponden-
séculos antes de seu aparecimento na Europa, praticamente todas as tes na indústria, nem recebessem qualquer impulso tecnológico da eco-
invenções-chave no campo da produção material, cuja conjunção libe- nomia urbana, até que por fim o crescimento agrícola isolado defron-
raria o dinamismo econômico da Europa renascentista. Todo o desen- tou-se com limites insuperáveis de superpopulação e escassez de terras.
volvimento da civilização imperial chinesa, de fato, pode num certo Parece claro que, à sua maneira, a agricultura chinesa tradicional atin-
sentido ser encarado como a mais grandiosa demonstração e a mais giu o apogeu no início do período Ch'ing, quando seus níveis de produ-
profunda experiência do poder — e impotência — da técnica ocorrida tividade eram bem mais altos que os da agricultura européia da época,
em toda a história.62 Pois os grandes avanços inovadores da economia do e daí em diante só poderia ter sido aperfeiçoada pela utilização de in-
período Sung — principalmente na metalurgia — foram desperdiçados sumos industriais propriamente ditos (fertilizantes químicos, tração
nas épocas subseqüentes: a transformação radical da indústria e da mecânica).64 Foi porque o setor urbano não gerou estes insumos que a
sociedade que estas inovações prometiam jamais se concretizaram. Sob economia chinesa como um todo chegou a um impasse. A presença de
este aspecto, tudo indica que a era Ming foi a chave do enigma chinês, um imenso mercado interno, que se estendia por todo o interior, e de
enigma este que os historiadores do futuro terão de resolver: pois foi enormes concentrações de capital no comércio parecia oferecer condi-
neste momento que, apesar de notáveis avanços iniciais na terra e no ções propícias para o surgimento de um verdadeiro sistema de fábricas,
mar, os mecanismos do crescimento científico e tecnológico nas cidades que combinasse a utilização de equipamento mecanizado com trabalho
parecem ter parado ou mesmo começado a andar para trás.63 A partir assalariado. Na verdade, jamais ocorreram nem o salto para a produ-
do início do século XVI, justamente quando a Renascença das cidades ção fabril em massa de bens de consumo, nem a transformação do ar-
italianas começava a espalhar-se pelo resto da Europa Ocidental, as tesanato urbano num proletariado industrial. O crescimento da agri-
cidades chinesas pararam de produzir as inovações e o ímpeto que eram cultura chegou ao ponto de saturação, enquanto o potencial industrial
não foi explorado.

(62) E esta, de fato, a lição inesquecível da grande obra apaixonante de Need-


ham, de alcance maior do que qualquer outra na historiografia moderna. Deve-se lem-
brar que a classificação superficial feita por Needham da sociedade imperial chinesa (64) Elvin foi quem analisou este impasse de modo mais completo: The Pattern of
como "burocratismo feudal" está claramente aquém dos padrões científicos que seu livro the Chinese Past, pp. 306-9 ss. O grande mérito do livro de Elvin é colocar com mais
segue de modo geral. Juntar os dois termos não torna "feudalismo" mais aplicável, nem clareza do que qualquer outro estudo os paradoxos centrais da economia chinesa no
"burocracia" menos vazio, para o objetivo de definir a formação social chinesa a partir início da era moderna, após o florescimento do período Sung. Porém a solução que ele dá
do ano 200 a.C. Na prática, Needham é lúcido demais para deixar de perceber este fato, e ao impasse imperial é estreita e superficial demais para ser convincente. O termo "arma-
jamais utiliza o termo de modo categórico. Ver, por exemplo, esta sua afirmativa revela- dilha de alto equilíbrio" que ele emprega para designar o impasse da economia pós-Sung
dora: "A sociedade chinesa era um burocratismo (ou talvez um feudalismo burocrático), não explica nada, e sim apenas reformula o problema com uma falsa roupagem técnica,.
ou seja, um tipo de sociedade inexistente na Europa". Science and Civilization in China, Pois o alto equilíbrio foi atingido apenas na agricultura, que é, apesar das aparências,
II, p. 337. À última oração é que é importante, naturalmente: o "ou seja" implicitamente tudo que a análise final de Elvin aborda. O "equilíbrio" na indústria, em contraste, foi
reduz os predicados anteriores ao seu papel real. Em, outra passagem, Needham expli- bem baixo. Em outras palavras: a análise de Elvin não responde à pergunta: por que não
citamente alerta contra a identificação do "feudalismo" ou "burocratismo feudal" chinês houve uma revolução industrial nas cidades para fornecer insumos "científicos" à agri-
com qualquer coisa denotada por estas palavras na civilização européia (IV/3, p. 263) — cultura? Seus comentários depreciativos em relação às explicações sociológicas das inibi-
dessa forma questionando radicalmente (e involuntariamente?) a utilidade de um con- ções sofridas pela indústria chinesa (pp. 286-98) são superficiais demais para convencer,
ceito que se aplicasse a ambas civilizações. e também contradizem o que ele próprio afirma sobre as condições da indústria, têxtil
(63) Os progressos em campos como a medicina e a botânica parecem ter sido (pp. 279-82). De modo geral, The Pattern of the Chinese Past peca por uma falta de
exceções. Ver Needham, Science and Civilization in China, III (Mathematics and the integração ou articulação entre as análises econômicas e as sociais, que se dão em níveis
Sciences oftheHeavens and the Earíh), Cambridge, 1959, pp. 437, 442, 457; IV/2, p. diferentes. A tentativa final de apresentar uma explicação "puramente" econômica do
508; IV/3, p. 526. impasse chinês é claramente inadequada.
542 PERRY ANDERSQN LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 543

Esta profunda desproporção pode sem dúvida ser atribuída a sar revoluções teóricas.68 Além disso, a rígida divisão social entre le-
toda a estrutura do Estado e da sociedade da China, pois, conforme já trados e artesãos impedia a interação indispensável entre matemática e
vimos, os modos de produção de qualquer formação social pré-capita- experimentação que produziu, na Europa, o surgimento da física mo-
lista são sempre especificados pelo aparelho político-jurídico do domí- derna. Conseqüentemente, a ciência chinesa permaneceu sempre no
nio de classe que impõe a coação extra-econômica que lhe é peculiar. nível de Da Vinci, sem jamais chegar ao de Galileu, como diz Need-
A propriedade privada de terra, o meio de produção básico, desenvol- ham;69 jamais atravessou a fronteira do "universo da precisão*'.
veu-se muito mais na China do que na civilização islâmica, e as dife- A ausência de leis jurídicas e leis naturais nas tradições superes-
rentes trajetórias do Islã e da China foram certamente marcadas por truturais do sistema imperial a longo prazo só poderia ter o efeito de
esta diferença fundamental. Mas os conceitos chineses de propriedade, inibir sutilmente as manufaturas urbanas, nas cidades que jamais ha-
não obstante, eram mais restritos do que os europeus. Entre a nobreza viam conquistado qualquer autonomia civil. Os comerciantes do Yang-
era comum uma propriedade pertencer a toda uma família, e os di- tsé freqüentemente acumularam grandes fortunas, enquanto os ban-
reitos de preempção ou recompra limitavam as vendas de terras.65 O queiros de Shansi espalhavam filiais por todo o país no período Ch'ing.
capital mercantil urbano era prejudicado pela falta de normas de pri- Mas o processo de produção em si jamais foi tocado pelo capital mer-
mogenitura e pelo monopólio estatal de setores-chave da produção na- cantil ou o financeiro na China. Com umas poucas exceções, o estágio
cional e exportações.66 O arcaísmo dos vínculos clânicos — que não intermediário do sistema de distribuição nem mesmo se desenvolveu na
existiam nos grandes Estados islâmicos — refletia a ausência de qual- economia urbana. Os comerciantes atacadistas negociavam com mer-
quer sistema legal enquanto tal. Os costumes e as relações de paren- cadores que compravam diretamente de produtores artesãos e comer-
tesco sobreviviam como forças poderosas que ajudavam a preservar a cializavam os produtos sem qualquer intervenção gerencial em sua pro-
tradição, na falta de uma lei codificada: as prescrições legais do Estado dução. A barreira entre produção e distribuição era muitas vezes insti-
eram essencialmente de caráter punitivo, relacionadas apenas com a tucionalizada peta concessão oficial de monopólios no setor de servi-
repressão ao crime, e não proporcionavam uma estrutura jurídica que ços.70 Havia, portanto, um investimento mínimo de capital mercantil
regulamentasse a vida econômica.67 Do mesmo modo, a cultura chi- no aperfeiçoamento da tecnologia de manufatura: as duas coisas per-
nesa não desenvolveu conceitos teóricos de leis naturais que fossem além maneciam funcionalmente separadas. Os comerciantes e banqueiros,
da engenhosidade de suas invenções técnicas e os refinamentos de sua que jamais desfrutaram do prestígio que era concedido aos mercadores
astronomia patrocinada pelo Estado. As ciências chinesas eram mais no mundo árabe, normalmente tentavam fazer fortuna comprando ter-
de cunho classificatório do que causai, tolerando as irregularidades ob- ras e, mais tarde, graus no sistema de concursos. Era-lhes negada uma
servadas — muitas vezes com mais precisão do que ocorria na ciência identidade política jurídica, mas não a mobilidade social individual.
ocidental contemporânea — dentro de uma cosmologia flexível, ao in- Inversamente, os nobres viriam depois a apropriar-se das oportunida-
vés de tentar explicar tais irregularidades: daí sua característica falta
de paradigmas determinados que, ao serem refutados, pudessem cau-
(68) Ver a análise excelente de S. Nakayama, "Science and technology in China",
Halfthe World, pp. 143-4; as irregularidades astronômicas que perturbavam os cálculos
(65) H. F. Schurmann, "Traditional property concepts in China", TheFarEast- tradicionais eram tranqüilamente aceitas, com o comentário de que "mesmo os céus às
ern Quarterfy, XV, n? 4, agosto de 1956, pp. 507-16, insiste em ressaltar estas limitações vezes se extraviam".
dos conceitos chineses de propriedade privada fundiária. (69) Needham apresenta algumas análises eloqüentes: Science and Civützation in
(66) Balasz, Chinese Civilization and Bureaucracy, ressalta particularmente o China, II (History of Scientific Thought), Cambridge, 1956, pp. 542-3; 582-3; III, pp.
papel inibidor dos monopólios estatais e a propriedade imperial de boa parte dos imóveis 150-68; The Grand Titration, Londres, 1969, pp, 36-7, 39-40, 184-6, 299-330. Needham
urbanos, pp. 44-51. dá a entender que havia uma relação íntima entre o atraso da física, em particular, e a
(67) Isto foi enfatizado pela maioria dos estudiosos. Ver, por exemplo, D. Bodde heteronímia social da classe comercial na China imperial.
e C. Morris, Law in Imperial China, Cambridge-EUA, 1967, pp. 4-6. "A lei oficial sem- (70) Elvin, The Paiternofthe ChinesePast.pp. 278-84.
pre atuava na vertical, do Estado para o indivíduo, e não no plano horizontal, entre dois (71) Píng-TÍ Ho, The Ladder of Success in imperial China: Aspects of Social
indivíduos." Bodde sustenta que a cultura chinesa nunca, em época alguma, considerou Mobility, 1368-1911, Nova Iorque, 1962, pp. 46-52; em relação à mobilidade social no
a idéia de que a lei escrita poderia ser de origem divina — justamente o contrário da período MÍng-Ch'ing em geral, pp. 54-72. Ver também Balazs, Chinese Civüizatíon and
jurisprudência islâmica, por exemplo (p. 10). Bureaucracy, pp. 51-2.
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dês de lucrar com as atividades mercantis. Em conseqüência desta si- periores a sua renda pessoal derivada da terra no período Ch'ing, tal-
tuação, não ocorreu nenhuma cristalização, solidariedade coletiva nem vez excedendo-a em 50 por cento.76 Assim, enquanto a nobreza chinesa
organização entre as classes comerciais urbanas, nem mesmo quando o como um todo devia seu poder social e político ao controle por ela
setor privado da economia aumentou quantitativamente nas etapas exercido sobre os meios de produção básicos, concretizado na proprie-
finais do período Ch'ing; as associações de comerciantes eram caracte- dade privada sobre a terra (ainda que com restrições), sua elite mutável
risticamente do tipo regionalista Landsmaanschaft,72 cuja função era — talvez pouco mais de l por cento da população no século XIX — era
politicamente mais divisionista do que unificadora. Como era de se determinada pelo sistema de titulação que dava oficialmente acesso às
esperar, o papel da classe mercantil chinesa na revolução republicana posições que conferiam mais riquezas e autoridade dentro do próprio
que derrubou o império no início do século XX foi cauteloso e ambi- sistema administrativo.77 Assim, o investimento na agricultura tam-
valente.73 bém era desviado pelo papel absorvente do Estado imperial dentro da
A máquina do Estado imperial que limitava as cidades desse classe dominante. Os súbitos avanços notáveis na produtividade agrí-
modo também deixava sua marca na nobreza, pelo mesmo motivo. A cola normalmente partiam de baixo, em fases em que eram menores as
classe de proprietários fundiários sempre possuiu uma base econômica pressões fiscais e políticas do Estado sobre o campesmato, no início de
dupla: suas propriedades e seus cargos oficiais. O tamanho total da um ciclo dinástico. Os aumentos demográficos conseqüentes então nor-
burocracia oficial sempre foi muito pequeno em comparação com a malmente desencadeavam perturbações sociais, que eram cada vez
população do país: cerca de 10-15 mil funcionários no período Ming, e mais perigosas para a nobreza à medida que a população tornava-se
menos de 25 mil na época Ch'ing.74 Sua eficiência dependia das rela- maior, culminando com a revolta do T'ai P*ing. Ao mesmo tempo, o
ções informais entre os funcionários enviados às províncias e os pro- autoritarismo político do Estado imperial passou a aumentar após o
prietários de terras locais que colaboravam com eles no exercício das período Sung.78 O confucionismo foi-se tornando cada vez mais repres-
funções públicas (transporte, irrigação, educação, religião, etc,) e na sivo, e o poder do imperador cada vez maior, até as vésperas da queda
manutenção da ordem (unidades de defesa, etc.), tarefa pela qual eles da dinastia Ch'ing.
recebiam lucrativas rendas de "serviços".75 As extensas famílias nobres As civilizações chinesa e islâmica, que, em seus contextos natu-
tradicionalmente continham alguns membros que haviam passado nos rais diferentes,79 ocupavam a maior parte do continente asiático no
concursos que conferiam o grau de chin-shih e davam acesso formal ao início da era moderna, constituíram duas morfologias de Estado e so-
aparato burocrático estatal, bem como membros que viviam em pe-
quenas cidades provincianas e distritos rurais, que não possuíam tais
(76) Idem, p. 197. Os graduados além disso tinham normalmente uma boa renda
credenciais: normalmente os titulados ocupavam cargos administra- oriunda de atividades mercantis, que segundo Chiang talvez eqüivalesse a cerca de me-
tivos ao nível central ou local, enquanto seus parentes cuidavam das tade da renda de suas terras.
terras. Mas a camada mais rica e poderosa dentro da classe de pro- (77) Idem, p. 139. Chang estima que os graduados e suas famílias correspondiam
a 1,3 por cento da população antes da rebelião do T'ai P*ing. Os estudos de Chang
prietários fundiários era sempre composta de indivíduos que ocupavam arbitrariamente restringem a definição de "nobreza" a esta camada social apenas; porém
cargos ou tinham vínculos com o Estado, cujos emolumentos públicos suas conclusões podem ser separadas da aceitação desta restrição.
(oriundos de salários, corrupção, taxas de serviço) costumavam ser su- (78) Ho, "Salient aspects of China's heritage", pp. 22-4.
(79) O determinismo estritamente geográfico das estruturas sociais era caracterls-
ticamente exagerado por Montesquieu e seus contemporâneos, em suas tentativas de
compreender o mundo nãoeuropeu. Os marxistas de nosso século acabaram caindo no
(72) Ping-Ti Ho, "Salient aspects of China's heritage", m Ping-Ti Ho e Tang erro oposto, no afã de compensar este legado do iluminísmo, ignorando completamente B
Tsou (Orgs.), China in Crísis, I, Chicago, 1968, pp. 34-5. importância relativa do meio ambiente natural na história. Foram historiadores mo-
(73) Ver o ensaio longo e esclarecedor de M.-C. Bergères, "The role of the bour- dernos como Braudel que atribuíram a este fator sua importância devida. Na verdade,
geoisie", in M. Wright (Org.)t China in Revolution: The First Phase, 1900-1913, New um historiador verdadeiramente materialista não pode simplesmente deixar de lado u
Haven, 1968, pp. 229-95. condições geográficas, considerando-as externas aos meios de produção. O próprio Marx
(74) Gernet, Lê Monde Chinois, pp. 343-4; Chang-Li Chang, The Income ofthe enfatizava o meio ambiente natural como um constituinte prévio irredutível de qualquer
Chinese Gentry, Seattle, 1962, pp. 38, 42. Na burocracia Ch'üig havia ainda mais uns 4 economia: "As condições de produção originais por si só não podem ser produzidas
mil funcionários manchus. originariamente — elas não são resultado da produção". Pre-Capitali&t formationa, p,
(75) Chang, The Income ofthe Chinese Gentry, pp. 43-7 ss. 86. (Grundrisse, p. 389.)
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ciedade claramente divergentes. O contraste entre as duas pode ser diferença importante — o mundo islâmico era contíguo à civilização
feito praticamente em relação a cada fator. Os guardas-escravos mili- ocidental, desde cedo sujeito à sua expansão, terminando cercado por
tares que tantas vezes constituíram a cúpula dos sistemas políticos islâ- ela, enquanto a China estava isolada do Ocidente, fora do alcance da
micos eram a antítese da nobreza intelectual civil que dominava o Es- Europa — e por muito mais tempo deu mais ao mundo ocidental do
tado imperial chinês: num caso, o poder era uma guarda pretoriana; que recebeu dele, talvez, enquanto a civilização "intermediária" do
no outro, um mandarinato. A religião saturava todo o universo ideoló- Islã defrontou-se com a ascensão do feudalismo ocidental e seu her-
gico dos sistemas sociais muçulmanos, enquanto as redes de parentesco deiro invencível, na extremidade oposta da Eurásia.
ocupavam uma posição secundária; na China, a cultura oficial era go- Estes contrastes elementares, naturalmente, estão longe de cons-
vernada pela moralidade e a filosofia seculares, enquanto os sistemas tituir sequer um esboço de comparação dos verdadeiros modos de pro-
de clãs permaneciam incrustados na vida social. O prestígio social dos dução cujas combinações e sucessões complexas definiram as forma-
comerciantes nos impérios árabes jamais teve equivalente no Império ções sociais dessas imensas regiões não-européias. Eles simplesmente
Celestial, e o alcance de seu comércio marítimo no auge da civilização resumem alguns dos índices mais óbvios da divergência entre as civili-
islâmica deixou de longe as realizações chinesas nesse campo. As cida- zações islâmica e chinesa (elas próprias, por sua vez, objetos termino-
des de uma e outra cultura também eram muito diferentes. Na China, lógicos improvisados, que precisam de uma diferenciação e retradução
as cidades clássicas formavam redes burocráticas e segmentadas, en- para que se possa fazer qualquer análise científica), que tornam impos-
quanto as islâmicas eram labirintos emaranhados e aleatórios. O apo- sível qualquer tentativa de assimilar as duas como exemplos de um
geu da agricultura intensiva, utilizando as obras de engenharia hidráu- modo de produção "asiático*' geral. Que este conceito receba o enterro
lica mais desenvolvidas do mundo, combinava-se com a propriedade condigno que ele merece. Não há dúvida de que serão necessárias mui-
privada de terra na China, enquanto no mundo islâmico prevalecia o tas e muitas pesquisas históricas para que se possa chegar a conclusões
monopólio jurídico da terra em mãos do soberano, sendo a agricultura realmente científicas em relação aos diferentes caminhos do desenvol-
uma atividade irregular e extensiva, sem a utilização de grandes siste- vimento não-europeu, nos séculos contemporâneos à Idade Média e
mas de irrigação. Em ambos os impérios inexistiam aldeias igualitá- início da era moderna na Europa. Na maioria dos casos, o que se fez foi
rias; não obstante, a produtividade rural estagnada do Oriente Médio e apenas arranhar a superfície de imensas áreas e períodos, em compa-
norte da África contrastava vivamente com o imenso progresso regis- ração com a intensidade e o grau de detalhe com que a história da Eu-
trado na agricultura chinesa. Naturalmente, havia também diferenças ropa já foi estudada.81 Mas uma lição está clara: o desenvolvimento da
no clima e no solo. A população das duas regiões correspondia natural- Ásia não pode de forma alguma ser reduzido a uma única categoria
mente às forças de produção no ramo principal de qualquer economia residual, que englobe tudo que sobra depois de estabelecidos os câno-
pré-capitalista: estabilidade islâmica, multiplicação chinesa. Também nes da evolução européia. Qualquer exploração teórica séria da história
a tecnologia e a ciência seguiram em direções opostas: a civilização de civilizações exteriores à Europa feudal terá de ir além dos tradicio-
imperial chinesa gerou um número muito maior de invenções técnicas
do que a Europa medieval, enquanto a história islâmica parece relati-
vamente estéril quanto a este aspecto.80 Por fim — e esta é talvez uma

(80) A relação entre a proficiência técnica das civilizações chinesa, islâmica e eu- informação válida em documentos históricos, que persistiu até uma data já bem tardia —
ropéia era expressa no dito tradicional recolhido em Samarkand pelo embaixador cas- é difícil de conciliar com a idéia de que havia uma íntercomunicaçào técnica freqüente
telhano na corte de Tamerlão no século XIV: "Os artesãos de Catai, segundo se diz, são entre as duas, por mais informal que fosse, sendo portanto impossível de documentar.
de longe os mais hábeis de todas as nações; e dizem então que só eles têm dois olhos, que Do fato de que a China era superior à Europa não se segue necessariamente que a Europa
os cristãos talvez tenham um, enquanto os muçulmanos são cegos". Needham, Science aprendeu com a China: é só a primeira proposição que é um fato crucial e inquestio-
and Civilization in China, IV/2, p. 602. O próprio Needham supõe que a transmissão nável.
direta de invenções da China para a Europa foi maior do que se pode comprovar com os (81) Twitchett compara o estado atual dos estudos sobre os períodos Tang « Sung
dados que a história oferece. A ignorância social quase completa de uma civilização em à etapa a que a historiografia medieval inglesa havia chegado na época de Scebohm c
relação à outra durante a antigüidade e a Idade Média — a mútua falta de qualquer do início da carreira de Vinogradoff: Land Tenure and Social Order, p. 32.
548 PERRY ANDERSON

nais contrastes genéricos com o Ocidente, e elaborar uma tipologia


concreta e precisa das formações sociais e sistemas estatais examinados
em si, que respeite suas imensas diferenças de estrutura e desenvol-
vimento. É apenas na noite de nossa ignorância que todas as formas
desconhecidas têm a mesma cor.

Sobre o autor
Perry Anderson <-nascido em Londres em 1938, é um dos mais conhecidos his-
toriadores ingleses e durante longo tempo editor da New Left Review, principal publi-
cação de esquerda na Inglaterra.
Sua formação política data de 1956, quando ingressou na Universidade de Ox-
ford e passou a militar em grupos de esquerda da universidade. Seu interesse pelo
marxismo teve num primeiro momento, como vários intelectuais de sua geração, a in-
fluência de Jean-Paul Sartre, Ela está presente particularmente em Questão de Méto-
do, publicado em 1960.
No mesmo ano surge a New Left Review, que se engajou ao movimento britâni-
co contra os armamentos nucleares. A campanha sofreu uma grande derrota, causan-
do uma profunda crise na revista. Logo depois. Perry Anderson tornou-se editor. Fo-
ram necessários dois anos para que ele criasse um novo corpo editorial, agora declara-
damente marxista.
Perry Anderson trouxe para a revista um profundo conhecimento da obra de
Sartre e do marxismo. Inicialmente sua linha editorial sofreu a influência de Gramsci
e mais tarde de Lukács e Althusser. Dedicou-se a introduzir, comparar e criticar as
principais correntes da tradição marxista ocidental.
A derrota do movimento de 1968 na França conduziu Perry Anderson ao estu-
do do Estado burguês nos países desenvolvidos. Daí resultaram dois livros: Passagens
da Antigüidade ao Feudalismo e Linhagens do Estado Absolutista (ambos em 1974),
além de uma obra não concluída sobre as revoluções burguesas.
A essas pesquisas somam-se inúmeros artigos publicados na New Left Review
nos anos 60 sobre o caráter da sociedade e da cultura Ínglesast onde polemizou viva-
mente com E. P. Thompson. Nos últimos anos sua obra embrenhou-se por outra ver-
tente: a análise db marxismo oficial, iniciada com a publicação de Considerações so-
bre o Marxismo Ocidental, em 1976, e continuada com A Crise da Crise do Marxis-
mo, em 2983 (cuja tradução foi publicada pela Brasiliense na coleção "Primeiros
Vôos").

Outras obras do autor:

As Antinomias de Gramsci (1978)


Argumentos sobre o Marxismo Inglês (1980)

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