História Da Filosofia Moderna
História Da Filosofia Moderna
História Da Filosofia Moderna
PROPÓSITO
Compreender as transformações da Filosofia moderna em correspondência com as mudanças
seculares do período, bem como, em razão da influência do discurso filosófico em inúmeros
campos de saber, entender conceitos que fundamentam as mais diversas disciplinas, no
campo das Ciências Humanas e das Ciências Naturais.
PREPARAÇÃO
Antes de iniciar o estudo deste tema, é importante ter à mão um bom dicionário de Teoria
Política ou mesmo de Filosofia. Sugerimos o Dicionário de Filosofia, de Abbagnano, e o
Dicionário de Política, de Bobbio, Matteucci e Pasquino, ambos disponíveis virtualmente.
OBJETIVOS
MÓDULO 1
MÓDULO 2
MÓDULO 3
INTRODUÇÃO
Você está prestes a penetrar nos caminhos da modernidade, pelo campo da Filosofia, com
ênfase na Filosofia política. Para percorrer os eventos associados à modernidade, focaremos
três momentos centrais do período.
O primeiro deles é o Renascimento e a Filosofia humanista que foi construída nesse contexto.
Em seguida, analisaremos a noção de contrato social como modo de reestruturar o mundo
social e político de acordo com os modelos fornecidos pela razão. Por fim, discutiremos sobre
as questões novas trazidas para a Filosofia política a partir do Iluminismo, da Revolução
Francesa e de suas consequências.
Com essas análises, poderemos ter uma visão da pluralidade de questões e ideias que
circularam ao longo desse período.
MÓDULO 1
Identificar a relação entre o contexto histórico do Renascimento e as reflexões
políticas dos filósofos humanistas
CONTEXTO HISTÓRICO
O período histórico que costumamos chamar de Renascimento é geralmente concebido como
uma fase de transição entre dois momentos considerados mais importantes. Antes do
Renascimento, encontramos a Era Medieval: um momento em que houve o predomínio de
valores e de uma visão de mundo articulada a partir da centralidade do Deus cristão que
influenciava boa parte da Europa Ocidental.
No que diz respeito à Filosofia, suas principais contribuições para a tradição foram as reflexões
sobre as noções de indivíduo e de governo a partir de certa ideia de humanismo herdada da
Antiguidade Clássica. Essa herança permitia pensar as questões de maneira cada vez mais
descolada dos valores e das visões de um mundo teocêntrico, sem que isso implicasse as
especificidades da era moderna, sobre a qual discutiremos mais adiante.
Antes de comentar alguns dos momentos-chave desse período, cabe explicar três elementos
que ajudam a entender o contexto em que o Humanismo do Renascimento foi elaborado. São
eles:
Imagem: Sailko/Wikimedia commons/Domínio Público
Obra de arte: Portal de São Frediano em Florença , Filippino Lippi, século XV.
Imagem: RickMorais/Wikimedia commons/Domínio Público
CIDADES-ESTADOS
No período do Renascimento, ainda não havia o “país” Itália – pois a unificação italiana
aconteceu apenas em meados do século XIX –, mas sim cidades-Estados, com
autonomia, administração e até idiomas independentes.
Entre as cidades que cresceram nesse momento, podemos destacar duas que foram grandes
centros culturais ao longo do Renascimento: a cidade-Estado de Florença e a de Veneza. A
vantagem que os centros urbanos italianos possuíam e que permitiu que se tornassem
potências era sua posição no norte do Mediterrâneo, que transformou essa região em um
ponto central nas rotas de trocas comerciais que atravessavam a Europa.
O segundo elemento que devemos mencionar – uma consequência da natureza própria das
cidades comerciais – é que elas tendiam a ser um espaço de ampla circulação não apenas de
bens, mas de pessoas e ideias. No caso específico das cidades-Estados italianas, tratava-se
de um espaço que recebia influxos de todos os cantos do mar Mediterrâneo. Assim, havia
nesse mesmo espaço a circulação da cultura católica europeia, mas também da cultura árabe
e do que tinha sobrado da cultura bizantina – portanto, remanescente da cultura greco-romana.
Isso foi responsável por tornar a região um espaço multicultural que acabava diminuindo a
força do pensamento medieval católico pelo contato com outras ideias.
É esse efeito, por fim, que nos permite compreender o terceiro elemento do contexto do
Renascimento: o fato de que é um período de redescoberta da Antiguidade Clássica. É preciso
esclarecer, antes, que isso não significa que os autores clássicos estavam esquecidos ou que
tinham sido ignorados de alguma maneira ao longo da Era Medieval. Há cerca de mil anos de
distância entre o fim da Era Clássica e o início do que chamamos de Renascimento.
FIM DA ERA CLÁSSICA
Período que pode ser datado a partir da divisão do Império Romano em: Império Romano
do Ocidente e Império Bizantino.
Para que qualquer vestígio da cultura da Antiguidade chegasse a esse momento, era
necessário que os textos e as ideias fossem preservados e transmitidos ao longo desse tempo.
Isso aconteceu por meio das inúmeras escolas filosóficas no Império Bizantino, nos impérios
islâmicos e nas universidades medievais da Igreja Católica. Esses espaços de aprendizagem
não apenas mantiveram tais pensamentos vivos, como deram sequência a essas tradições,
ainda que subordinando a tradição clássica a questões trazidas pelo catolicismo e islamismo.
Ainda que certos textos tenham sido de fato descobertos no contexto do Renascimento – como
alguns discursos do filósofo Cícero (106 a.C.-43 a.C.) e o poema filosófico epicurista de
Lucrécio (94 a.C.-50 a.C.), intitulado Sobre a natureza das coisas –, a novidade desse
período tem mais relação com recuperar os textos da Antiguidade sob outro olhar . O que
vemos, portanto, é um retorno a esses textos sem que estejam subordinados aos valores e à
visão de mundo católica – algo que foi possível por conta do espaço multicultural que eram as
cidades-Estados italianas.
A consequência disso foi o desenvolvimento do Humanismo, que, com auxílio dos textos
clássicos, buscou colocar o ser humano na centralidade da reflexão histórica. E é justamente
nesse ponto que reside a singularidade do pensamento do Renascimento: não se trata de um
mero retorno às fontes clássicas, mas de retornar aos clássicos como uma estratégia para se
afastar de uma tradição medieval que se mostrava insuficiente.
Mas o inverso também poderia ser relevante nesse momento, isto é, a tradição medieval, de
influência predominantemente cristã, poderia estar atrapalhando o desenvolvimento comercial
e, por isso, deveria ser substituída. Em outras palavras:
As reflexões sobre a forma de ação política dessas novas figuras políticas que foram as
cidades-Estados e que prefiguraram os Estados Modernos em alguns sentidos.
No caso, analisaremos a novidade desse período a partir dos conceitos de três autores: Michel
de Montaigne (1533-1592), Étienne de La Boétie (1530-1563) e Nicolau Maquiavel (1469-
1527). Discutiremos sobre a nova noção de indivíduo a partir da obra de Montaigne, falaremos
sobre o problema da servidão voluntária a partir de Étienne de La Boétie e terminaremos com
as reflexões de Maquiavel sobre Estado.
MICHEL DE MONTAIGNE
Um dos principais filósofos do Renascimento, tanto pelas ideias que elaborou em suas obras
quanto pelas inovações literárias. Costuma-se creditar a Montaigne a criação do gênero
literário do ensaio por conta do tipo de escrita peculiar que realizou em sua única obra
publicada, intitulada Os ensaios . Se Montaigne pode ser considerado um pensador marcante
nesses dois campos é porque seu estilo de escrita encena o tipo de Filosofia que ele acabou
elaborando.
Seus ensaios costumam ser textos que misturam anedotas autobiográficas, citações de
autores da Antiguidade Clássica e reflexões aguçadas sobre os mais variados temas, dos mais
clássicos (como ensaios sobre a natureza do conhecimento ou sobre a amizade) aos mais
mundanos (sobre o sono ou sobre estar bêbado). Apesar dessa variedade – ou justamente por
ela –, a Filosofia elaborada por Montaigne acabou atravessando toda a sua obra. Ela pode ser
resumida, nas palavras do próprio autor:
(MONTAIGNE, 2010)
Imagem: Dornicke/Wikimedia commons/Domínio Público
Canibais , Theodore de Bry, século XVI.
Seu pensamento era, portanto, uma tentativa de analisar a experiência sem se ater a qualquer
ideia ou doutrina prévia, de modo que é possível tomar Montaigne como um herdeiro do
ceticismo da Antiguidade Grega. É essa sensibilidade com as transformações do indivíduo,
mas que não deixa de olhar atentamente para o mundo ao redor (como em seus comentários
sobre um contato com indígenas no ensaio Os canibais ), que nos permite situar Montaigne
como um dos pensadores mais fundamentais desse momento. Seu pensamento pode ser
compreendido, portanto, a partir de dois pontos centrais: seu ceticismo e seu ensaísmo
literário.
O ceticismo é uma das tradições mais antigas da Filosofia e tem como princípio certa
desconfiança sobre nossa experiência da realidade, o que forçaria o filósofo a suspender o que
pensa sobre suas experiências. A radicalidade dessa posição pode ser vista em um de seus
pais fundadores: Pirro de Élis (360 a.C.- 270 a.C.).
Montaigne herdou de Pirro e dos céticos a desconfiança do que sentimos. O que Montaigne fez
com essa suspensão foi tomar o mundo como espaço de constante reavaliação, uma vez que,
diante da impossibilidade de ter certeza sobre o que vemos e o que experimentamos, restaria à
Filosofia tomar como compromisso não se prender a nenhuma posição e sempre estar aberta
às transformações, em nós e no mundo, que demandam mudar de posição.
Foi a partir desse compromisso filosófico que seu estilo se tornou uma questão. Diante da
impossibilidade de determinar absolutamente suas reflexões, ao autor só restaria ensaiar
posições , sem se preocupar se essa posição seria superada ou não.
Diante das questões postas por seu ceticismo, Montaigne tornou tudo no mundo objeto de
avaliação e reflexão, permitindo que comentasse seu cálculo renal e a história romana sem que
um tópico fosse de antemão superior ao outro. Em Montaigne, vemos, portanto, uma ideia de
humano que acaba concentrando boa parte do que foi pensado no contexto renascentista.
ÉTIENNE DE LA BOÉTIE
Se na obra de Montaigne encontramos certa imagem de indivíduo que carregamos até os dias
atuais, em Étienne de La Boétie, seu amigo, vemos a formulação de um dos maiores enigmas
da vida política: o problema da servidão voluntária. Esse problema é tratado na obra Discurso
sobre a servidão voluntária .
Apesar de um tratamento curto, o problema apresentado não deixa de ser um dos mais
relevantes não apenas no contexto político do Renascimento, em que disputas políticas se
acirravam no contexto de crise cada vez maior do feudalismo, mas também diante do novo
individualismo que surgia nas Filosofias humanistas do Renascimento, como nas de
Montaigne.
O que parece acontecer – e é esta a questão que La Boétie põe – é que o ditador só pode se
manter no poder, nessas condições, caso o próprio povo abdique de seu poder e de sua
liberdade.
Ainda assim, mesmo que não concordemos com a solução proposta por La Boétie (ou que até
concordemos, mas a achemos vaga demais), é interessante notar que, apesar de não ficar
explicitado, toda a análise do filósofo é construída a partir da imagem de um indivíduo que
pode desejar sua liberdade. Vemos aqui que a subordinação é um problema na medida em que
fere o indivíduo em sua singularidade.
É com isso em mente que podemos enxergar que a formulação do problema da servidão
voluntária só faz sentido a partir de um contexto do Humanismo renascentista. Afinal, se o que
se está tentando defender é a liberdade inata ao indivíduo singular, então esse valor só pode
ser preservado se estamos inseridos em uma cultura que celebra a dignidade da vida humana.
Esse é um dos pilares do pensamento elaborado no Renascimento.
NICOLAU MAQUIAVEL
A principal característica das reflexões de Nicolau Maquiavel sobre o exercício do poder é a
ruptura com a visão dos autores da Idade Média e do Renascimento de que haveria uma
relação direta entre a bondade do governante e a legitimidade de seu poder.
O que a experiência havia ensinado a Maquiavel é que bondade e retidão não são suficientes
para manter o poder político. Pelo contrário, é o uso adequado do poder que fará com que os
indivíduos obedeçam e com que o governante mantenha seu Estado.
Explicaremos adiante o sentido do uso adequado do poder para Maquiavel. Mas, antes, vamos
nos ocupar, por um instante, com a experiência do pensador na vida pública, que, como
veremos, serviu de fundamento para suas análises.
Em 1513, escreveu O príncipe , que foi publicado apenas postumamente, em 1532. A escrita
dessa obra foi um esforço de Maquiavel para retornar à política florentina, uma vez que muitos
de seus colegas do período republicano conseguiram restabelecer seus postos no regime dos
Medici.
Somente em 1520, no entanto, Maquiavel conseguiu recuperar algum vínculo com o poder por
meio do pedido do cardeal Giulio Medici de que escrevesse uma história de Florença. Antes
que pudesse alcançar uma reabilitação plena no novo regime de governo, Maquiavel morreu,
em 1527.
Em um sistema político bem ordenado, o poder se impõe por meio da legislação e do exército,
mas Maquiavel identificava uma prioridade do segundo sobre o primeiro. Em suas palavras,
não podia haver boas leis sem bons exércitos.
Considerando que a legitimidade das leis deriva da força coercitiva, a conclusão é que o afeto
que um governante deve preferencialmente estimular em seus súditos é o medo, não o amor.
Se um súdito acredita que não deveria obedecer a uma lei específica, aquilo que o forçaria a se
submeter a essa lei seria o medo do poder do Estado ou o exercício efetivo desse poder. O
súdito só se veria em condições de não obedecer em duas situações: se tivesse o poder de
resistir ao Estado ou se estivesse disposto a aceitar as consequências da força coercitiva do
Estado.
Vemos que o poder político não está separado do exercício efetivo desse poder. Maquiavel
chamou de virtù as qualidades que um governante deve possuir para manter seu Estado. Não
é muito adequado traduzir o termo italiano virtù por virtude, pois não são a bondade e a ética
que garantem seu poder. Um governante dotado de virtù é, para Maquiavel, alguém que se
caracteriza por uma “disposição flexível”, isto é, alguém que é capaz de modificar sua conduta
do bem para o mal e novamente para o bem, conforme as circunstâncias exigirem.
Maquiavel também utiliza o termo virtù para descrever, em seu livro A arte da guerra , as
estratégias de um general que se adapta às diferentes condições do campo de batalha. É
como se a política fosse um campo de batalhas em outra escala. Assim como o general, o
governante deve se valer de técnicas e estratégias adequadas para cada circunstância. Um
governante dotado de virtù saberá exercer adequadamente o poder, ou seja, saberá subjugar
a fortuna.
FORTUNA
Termo que designa, na obra O príncipe , os eventos que podem ameaçar a segurança
do Estado.
VERIFICANDO O APRENDIZADO
C) O incentivo da Igreja Católica na tradução de textos de Filosofia clássica para expandir seu
horizonte de influência.
A) É sempre capaz de agir segundo a bondade e a ética para manter seu poder político.
C) Foi conduzido ao poder por meio de um arranjo suprapartidário que buscava pôr fim às
guerras religiosas.
GABARITO
Trata-se do contato com os textos clássicos mediado por um ambiente multicultural que
acabava por diminuir a influência da cultura católica na recepção dos textos da Antiguidade e
que permitia que um novo olhar fosse construído com vistas a novos problemas.
Para Maquiavel, um governante dotado de virtù é alguém que se caracteriza por uma
“disposição flexível”, alguém capaz de modificar sua conduta para manter seu Estado.
MÓDULO 2
Distinguir as concepções do contrato social na Filosofia política moderna
CONTEXTO HISTÓRICO
A Era Moderna é geralmente caracterizada pela primazia da razão e pelo desenvolvimento das
Ciências Naturais. Seu início remonta à elaboração da Filosofia de René Descartes (1596-
1650) no início do século XVII – momento em que a razão humana se consolidou como
principal ferramenta para compreender o mundo: não foram os valores e as ideias dos cristãos
que articularam as filosofias que predominaram nesse momento.
COPÉRNICO
Astrônomo polonês que formulou a teoria heliocêntrica, cujo princípio afirmava que a
Terra orbitava ao redor do Sol. Ele iniciou a Revolução Científica que acompanhou o
Renascimento europeu junto à sistematização da Física e a uma profunda mudança nas
convicções filosóficas e religiosas. Essa ruptura foi chamada de Revolução Copernicana,
de tão longo alcance que ultrapassou o reino da Astronomia e da Ciência para marcar a
história das ideias e da cultura.
Ainda que nessa nova visão do universo o homem não estivesse no centro de nada, parecia
que estava cada vez menos subordinado a algo fora dele. Os efeitos desses deslocamentos se
fazem sentir ainda no presente, sobretudo quando nos damos conta de que as ciências e a
razão são elementos centrais de nossa vida.
Isso poderia nos fazer acreditar que ainda vivemos na Era Moderna (e, em certo sentido,
vivemos), mas o que nos impede de afirmar isso completamente é que a situação política já
não é a mesma daquele momento. O que vimos entre o início do século XVI e o final do século
XVII foi um período em que ainda estavam se formando os Estados Nacionais Modernos, tal
como os conhecemos nos dias atuais.
Com o enfraquecimento dos nobres aristocratas, que eram detentores dos feudos, vimos uma
centralização do poder nas mãos de figuras monárquicas (que estavam enfraquecidas ao longo
da era feudal) por meio da criação de exércitos e da realização de inúmeras guerras para
unificar e delimitar as fronteiras de seus Estados, que, agora, eram pensados, também, como
nações.
A isso tudo se somava o surgimento de uma nova classe social que também almejava maior
participação política: a burguesia. Tratava-se de uma parcela da população envolvida no
comércio e na produção de mercadorias. A nova classe social tinha recursos econômicos que
cada vez mais se traduziam em força política, mas, diferentemente das classes nobres, não
possuía legitimidade para participar da política.
VAMOS COMPREENDER O IMPACTO CAUSADO PELA
CHAMADA REVOLUÇÃO CIENTÍFICA, A PARTIR DO
SÉC. XVII NA SOCIEDADE EUROPEIA, E
ESPECIALMENTE SEU IMPACTO NA VISÃO DE MUNDO
E ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DAQUELA SOCIEDADE.
É nesse contexto que uma série de questões de ordem política surge, exigindo que se pense
tanto na natureza dessa nova figura do campo político – os Estados-nações modernos –
quanto na origem de sua legitimação como instância de ação política. Esse aspecto, que
geralmente é designado como a questão do contrato social, será o fio central deste módulo.
Investigaremos, aqui, três pensadores-chave desse momento que tocam nesses problemas:
Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704) e Baruch de Espinosa (1632-1677).
THOMAS HOBBES
A Filosofia política de Thomas Hobbes foi marcada por um esforço de elaboração de uma
estrutura estatal capaz de pôr fim às guerras religiosas que se estenderam durante o século
XVI e a primeira metade do século XVII no continente europeu.
O historiador alemão Koselleck (1999) afirma que todos os teólogos, filósofos da moral e
juristas que antecederam Hobbes falharam nas soluções que propunham para o impasse que a
Europa vivia, porque suas doutrinas apoiavam os direitos de determinada parte e, assim,
incitavam ainda mais a guerra civil em vez de elaborar um ordenamento que estivesse acima
das partes.
A teoria do contrato social é um método de análise do arranjo político que ocorre por meio do
acordo entre partes racionais, livres e iguais entre si. Não é irrelevante que Hobbes (2015)
suponha a igualdade entre as partes em meados do século XVII. Mas a astúcia de seu sistema
suprarreligioso e suprapartidário, apresentado no livro Leviatã (1651), é que seu resultado – o
Estado – está contido nas premissas da guerra civil. O motivo da guerra era, para Hobbes, o
desejo incessante pelo poder, ao qual só a morte põe fim. A causa da guerra civil era a
invocação das consciências sem um amparo externo, era a inexistência de um ordenamento
que pudesse tomar os partidos como elementos de uma unidade.
Para Hobbes, a paz só seria assegurada se, na formação do Estado, essa moral se
convertesse em dever de obediência. Note que o problema hobbesiano envolve a passagem
do âmbito da convicção, a que Hobbes havia reduzido todos os conteúdos religiosos, para o
âmbito do Estado, em que as convicções privadas são destituídas de sua repercussão política.
O próprio estado de natureza, que é o reino da convicção, é definido pela ausência do Estado.
À medida que os indivíduos transferem sua agência política ao soberano, a consciência
individual se transforma em moral privada.
Koselleck (1999) afirma que Hobbes divide o homem em duas partes: uma privada e outra
pública. Os atos são submetidos à lei do Estado, mas a convicção é livre. E é justamente à
ampliação desse foro interior da convicção que, como veremos, está associado o Iluminismo.
Embora Hobbes insista que o monarca deve possuir autoridade absoluta, os súditos possuem
a liberdade de desobedecer ou resistir quando suas vidas estão em perigo. Isto é, os súditos
mantêm o direito à autodefesa diante do poder soberano. A explicação é que se o monarca
falha em prover proteção adequada a seus súditos, extingue-se, também, o dever dos
indivíduos de obedecer. Essa exceção mencionada por Hobbes mostra, por um lado, que
obediência e proteção são elementos inseparáveis na formação do Estado, e, por outro, que se
os súditos mantêm a capacidade de avaliar a adequação da proteção oferecida pelo monarca,
o medo que caracteriza o estado de natureza não é inteiramente eliminado.
JOHN LOCKE
Ao delegar sua agência política ao soberano, os súditos ficam reduzidos à instância moral
privada. Esse é o único espaço no interior do contrato social em que o Estado não legisla, em
que os indivíduos gozam de certa autonomia. Como veremos, o Iluminismo se caracteriza
justamente pela expansão desse foro interior privado (ao qual o Estado havia limitado os
súditos) para um domínio público.
John Locke fornece certa consistência a esse espaço da moral ao escrever, em seu Ensaio
sobre o entendimento humano , publicado em 1670, sobre os três tipos de leis que devem
orientar a vida dos cidadãos:
Imagem: Uau/Wikimedia commons/Domínio Público
Retrato de John Locke, Sir Godfrey Kneller, 1697.
LEI DIVINA
Aquela que regulamenta o que é pecado e o que é dever, e da qual só se pode ter
conhecimento por meio da natureza ou da revelação.
LEI CIVIL
Aquela que regula o crime e a inocência, elaborada pelo Estado para proteger o cidadão.
Imagem: Mauritshuis/Wikimedia Commons/Domínio público.
LEI MORAL
Note que, diferentemente de Hobbes, Locke (2012) estabelece uma separação entre a lei
divina e a lei civil. Há uma ruptura entre direito natural e direito político, que haviam sido
reunidos por Hobbes na figura do soberano. Mais do que isso, Locke cristaliza a divisão entre
política e moral a partir do estabelecimento da lei moral, ao lado da lei divina e da lei civil.
Trata-se da lei dos filósofos ou, como também a chama, da lei da opinião ou da reputação.
Locke associa a origem das leis morais ao foro interior da consciência humana, que estava
excluído do domínio do Estado. Como vimos, os súditos abdicam de sua agência política em
favor do soberano, o que significa que sua ação em relação aos demais cidadãos está limitada
pelas leis civis, mas isso não impede que mantenham a capacidade de formar uma opinião a
respeito daqueles com quem convivem.
Koselleck (1999) afirma que os indivíduos não têm poder executivo, mas conservam o poder
espiritual do juízo moral, e suas opiniões sobre os vícios e as virtudes não se restringem a
opiniões privadas. Os juízos morais têm caráter de lei.
Enquanto as leis do Estado se impõem por meio da coerção, os cidadãos só se submetem às
leis da moral civil com base em um consentimento secreto e tácito. Entretanto, com Locke, a
moral deixa de ser algo que se restringe ao foro individual. O portador da moral não é o
indivíduo, mas a sociedade. Os indivíduos formam juntos uma sociedade que desenvolve suas
próprias leis morais – leis que se situam ao lado das leis divinas e do Estado.
Koselleck (1999) explica que a ideia é que o espaço público emana do privado. É na certeza
que o foro privado tem de si que está sua capacidade de se tornar público, e é somente no
espaço público que as opiniões privadas se manifestam como lei.
Para Locke (2012), a moral não é a moral hobbesiana de obediência ao soberano, mas a fonte
de uma legislação que rivaliza com as leis do Estado. Enquanto a legislação do Estado se
realiza diretamente pelo poder político, a lei moral tem ação indireta por meio da opinião
pública. Embora não detenha os meios estatais de coerção, a lei da opinião se impõe a partir
do elogio e da censura.
A eficiência da lei moral está em seu alcance: ninguém pode escapar ao juízo moral. Essa
característica faz dela um poder político que age de modo indireto, mas, quando considerada
diretamente, permanece politicamente invisível. É mero juízo.
REVOLUÇÃO GLORIOSA
A Revolução Gloriosa, ocorrida em fins do séc. XVII, iniciou-se por questões religiosas
(moral católica x moral protestante), mas acabou tornando-se a precursora de um
importante documento (Bill of Rights /Declaração de Direitos, 1689), que limitou os
poderes da monarquia, fortalecendo a burguesia.
BARUCH DE ESPINOSA
Entre os principais interlocutores de Hobbes na modernidade, encontramos o filósofo holandês
Baruch de Espinosa. Herdeiro de René Descartes, sua Filosofia tem como principal motor
tentar fornecer uma ideia de vida boa que seja construída a partir de uma investigação racional
do que é o ser humano, sem qualquer apoio em valores externos, como os religiosos, por
exemplo.
Em sua obra Ética , Espinosa deteve-se, sobretudo, no caráter afetivo e racional dos seres
humanos. Para ele, a vida afetiva significa que os desejos dos seres humanos são sua
essência (ESPINOSA, 2009). Isso quer dizer que a singularidade de um indivíduo qualquer
está atrelada não ao que ele quer de maneira abstrata, mas ao que ele quer na medida em que
se engajar nesse movimento. E o que os indivíduos querem, em última instância, é perseverar
em seu ser (o que Espinosa chama de conatus dos seres), independentemente do que seja
esse perseverar. Além disso, esse “perseverar” tem de lidar com objetos no mundo que
dificultam ou impedem a realização desse desejo.
É nesse ponto que Espinosa fornece sua teoria dos afetos. Para ele, os seres humanos são, ao
mesmo tempo, seres que procuram realizar seus desejos (suas finalidades), mas também são
seres inicialmente ignorantes das causas que os movem. Isso significa que os indivíduos
conseguem entender o que querem , mas não conseguem saber por que querem.
Essa estrutura não apenas aponta uma dificuldade de se situar no mundo, mas também deixa
claro como os afetos (alegria, tristeza, esperança, medo etc.) são os modos que os homens
têm para se orientar inicialmente. Os afetos não nos ajudam a entender os objetos com que
nos deparamos no mundo, mas apenas seu efeito em nós – se contribuem com nosso desejo
ou não. Esse seria o jeito mais simples de navegação no mundo para os humanos, de acordo
com o filósofo.
Mas isso não é tudo, pois, para Espinosa, a partir de certos encontros positivos com algo que
faz bem a nós mesmos, é possível desenvolver um pensamento racional sobre as coisas, isto
é, experimentá-las para além de seus efeitos em nós. Podemos compreender as coisas a partir
de como elas combinam conosco. O pensamento racional seria, portanto, não algo que se
opõe aos afetos, mas algo que emerge e é elaborado a partir das coisas que afetam
positivamente o humano. Isso tem efeitos importantes para a Filosofia política de Espinosa e
em sua visão sobre a sociedade em geral.
Espinosa parte de pontos bem semelhantes aos de Hobbes para pensar no contrato social. Ele
também pensa que, sem qualquer intervenção externa, os seres humanos inevitavelmente
entram em disputas intermináveis, uma vez que cada um simplesmente buscaria realizar seus
desejos. Também como Hobbes, ele acredita que algum tipo de autoridade política externa é
necessário para frear certos impulsos e produzir alguma estabilidade política.
Isso significa que, para Espinosa, a organização de seres humanos entre si não é algo que
emerge apenas a partir de uma tentativa de afastar a disputa que há entre eles. A organização
pode surgir, também, quando se dão conta dos benefícios mútuos. Vemos, portanto, que,
apesar de Espinosa ver o Estado como um ponto importante para a estabilidade (e para dar fim
a certo caos), essa solução não é completamente pessimista.
Além disso, essa transferência de poder dos indivíduos para o Estado não é uma renúncia
absoluta. Para Espinosa, os seres individuais são essencialmente seus desejos. Isso significa,
também, que eles são o que eles podem ser. O direito natural na Filosofia política espinosana é
que um indivíduo pode fazer aquilo que ele tem capacidade de fazer. Assim, não haveria
nenhuma limitação moral inata que poderia ser descoberta e utilizada para forçar a renúncia da
capacidade dos indivíduos. Mas isso tem algumas implicações que cabe observar.
A primeira é que um indivíduo não tem como realmente renunciar a suas capacidades, pois são
suas – é justamente sua natureza. O que ele pode fazer é apenas aplicar sua força a uma série
de estruturas burocráticas que acabam constituindo o Estado – é esse o objeto de análise do
Tratado político .
Um caso contemporâneo que pode ser lido na chave espinosana da “aplicação a uma estrutura
burocrática” é a participação política da população no processo político por meio das eleições –
como se dirigíssemos nosso desejo e nossa capacidade para esses momentos de participação
política. Contudo, como se trata apenas de um direcionamento das forças do indivíduo, ele
também pode, caso a situação necessite, caso haja algum abuso de poder, rebelar-se, deixar
de fortalecer o Estado.
A) Legisla sobre todas as esferas da vida social, inclusive sobre a moral privada
B) Pode ser desobedecido, caso o súdito julgue que sua vida está em perigo.
C) Deve ser dotado de virtù para exercer adequadamente o poder e subjugar a fortuna.
GABARITO
Embora Hobbes insista que o monarca deve possuir autoridade absoluta, os súditos possuem
a liberdade de desobedecer ou resistir quando suas vidas estão em perigo.
O que faz com que surjam conflitos entre homens é o desejo de perseverar em si mesmo
(conatus ). Afinal, na medida em que se esbarram no mundo, caso não haja uma força externa
para conciliá-los, os desejos de uns podem entrar no caminho dos desejos de outros. É,
portanto, essa característica que torna a autoridade externa uma condição necessária para a
convivência pacífica.
MÓDULO 3
Reconhecer os principais conceitos do pensamento iluminista
CONTEXTO HISTÓRICO
Imagem: Trzęsacz/Wikimedia commons/Domínio Público
A Liberdade guiando o povo , Eugène Delacroix, 1830.
O Iluminismo está diretamente associado às transformações políticas dos séculos XVII e XVIII.
Esse período foi marcado por três grandes revoluções políticas que constituem a base das
democracias modernas: a Revolução Inglesa (1688), a Revolução Americana (1775-1783) e a
Revolução Francesa (1789-1799).
É nesse período que se elabora, como vimos, o modelo básico de governo fundado no
consentimento do governado, bem como a articulação dos ideais políticos de liberdade e
igualdade com a teoria de sua realização institucional. Também se consolidam nessa fase uma
lista de direitos humanos individuais básicos a serem respeitados por um sistema político
legítimo, a tolerância religiosa, os poderes políticos como um sistema de freios e contrapesos,
e tantas outras características com as quais identificamos as democracias modernas.
O grande impasse da Filosofia política iluminista é que não está claro como a razão pode
substituir o objeto de sua crítica por um novo tipo de autoridade. Jean-Jacques Rousseau
(1712-1778) é um dos pensadores que encarnam essa dificuldade.
Que destino assumem os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade tão logo as velhas
instituições criticadas pelos iluministas são tomadas?
Não se trata apenas de nos lembrarmos do recurso à violência e ao terror ainda no auge da
revolução, mas da forma como o Código Civil de Napoleão, de 1804, passou a figurar para
Hegel (1770-1831), por exemplo, como o destino para o qual a história convergia.
JEAN-JACQUES ROUSSEAU
Com Rousseau, notamos que o campo da moral já havia crescido de tal modo que seria
preciso que a oposição entre moral e política fosse transferida para o próprio campo da política.
Em outras palavras, ao diagnóstico iluminista do progresso infinito parecia cada vez mais se
impor uma decisão política, considerando o crescente desacordo entre os juízos morais e a
estrutura do Estado.
O caráter político da revolução estava reduzido, até então, à crítica ao despotismo. Rousseau
não se unia ao coro de que a derrubada da ordem estabelecida correspondia ao simples
progresso moral. Em lugar da vitória dos interesses sociais, o que a revolução traria seria
insegurança, incerteza e crise.
Para Rousseau, a sociedade possui uma vontade una e incondicional, e, mesmo que o
soberano seja destronado, a chamada vontade geral se mantém. Essa vontade não é a soma
de vontades individuais, mas a emanação de uma totalidade. O impasse a que chega
Rousseau é que uma nação tem uma vontade geral que faz dela uma nação, mas essa
vontade não se realiza de maneira direta, não há um executor.
A conclusão é que cabe justamente ao Estado criar, de modo permanente, essa identidade
complexa entre a sociedade civil e a decisão soberana. O cidadão só é livre quando participa
da vontade geral, mas, como o homem, não tem como saber quando sua vontade coincide com
a vontade geral. De fato, a vontade geral opera uma correção permanente dos indivíduos que
ainda não foram integrados a ela.
Koselleck (1999) argumenta que Rousseau estatizou a censura moral, isto é, o líder deve
legislar sobre a opinião pública permanentemente para estabelecer a unidade entre convicção
e ação. Sua tarefa mais importante é substituir a autoridade pelo poder da opinião pública.
A moral do cidadão e a política do Estado não são coincidentes. Por isso, cabe ao líder manter
essa identidade complexa a partir de meios como o terror e a ideologia. É como se, em
Rousseau, a crítica progressista fosse transferida para o âmbito político.
Nas palavras de Koselleck (1999), é como se a ideia de progresso moral cobrasse suas notas
promissórias por meio da ditadura da soberania. O estado de crise que Rousseau descreve é
como se fosse o cumprimento da crítica dos iluministas ao absolutismo, a execução de seus
juízos. É, como dizíamos, uma forma de trazer a oposição entre moral e política para o campo
da política.
IMMANUEL KANT
Immanuel Kant (1724-1804) é possivelmente um dos filósofos mais influentes de toda a
modernidade. Suas contribuições no campo da Filosofia incluem a teoria do conhecimento, a
estética e as questões éticas e políticas. A partir de sua obra Crítica da razão pura , vemos a
elaboração de uma ideia que procura traçar os limites da razão ao diferenciar o pensamento do
conhecimento.
O conhecimento é concebido por Kant (2015) como uma experiência das coisas fora de nós,
mediada por conceitos do sujeito que conhece. O pensamento, por sua vez, seria o uso da
razão para elaborar ideias e princípios sem qualquer referência à experiência. Isso não
significa, porém, que a razão não tem sentido ou que é irrelevante. O que Kant procura fazer é
apenas delimitar seu campo de atuação. Ela não pode, por conta própria, mostrar-nos como o
mundo é, mas apenas nos fornecer ideias consistentes capazes de regular nossas ações, sem
que essas ideias possam ser determinadas como reais ou não.
Imagem: Sardanaphalus/Wikimedia commons/Domínio Público
Retrato de Immanuel Kant , Johann Gottlieb Becker, 1768.
Isso teve um papel importantíssimo em sua ética e em sua política, pois, ainda que não se
pudesse averiguar a realidade de certas questões filosóficas por não serem objeto da
experiência, elas ainda podiam ser pensadas: era o caso da liberdade dos homens.
Por ser livre, agir eticamente implica assumir sua liberdade na escolha de suas ações.
Visto que os homens são todos livres, nenhum homem deve ser um meio para um fim .
Isso significa que, como não haveria nenhuma contradição nesse conceito, o homem poderia
ser pensado como livre, ainda que essa ideia jamais pudesse ser comprovada de fato. Disso
resulta que, se essa ideia fosse preservada como certo princípio regulador de nossas vidas
(ainda que não fosse passível de comprovação), uma situação de coação significaria que
haveria certa escolha na submissão.
Nesses casos, para Kant, o homem estaria livremente escolhendo delegar o poder de decisão
e controle para outras pessoas ou até para outros valores. Assim, as ações dos homens seriam
meios para fins , isto é, o homem estaria agindo sempre de acordo com um outro.
Com isso em mente, podemos entender o que é a ação ética para Kant. Trata-se de realizar
uma ação como um fim em si mesmo, como uma ação que é assumida (independentemente de
seu conteúdo) como decisão do sujeito que age e que se assume como sujeito livre.
Essa demanda pela ação responsável foi descrita por Kant como imperativo categórico : uma
espécie de princípio que não tem nenhum conteúdo específico, mas que nos urge a agir de
forma que assumamos a autoria de nossas ações. A consequência disso no âmbito social é
que, como os seres humanos são livres, nenhum pode ser tratado como meio para fim , ou
seja, nenhum ser humano pode ser usado, pois isso seria uma afronta à sua liberdade.
Nesse sentido, também podemos entender a posição de Kant sobre a organização do Estado.
Em seu nível interno, seu objetivo deve ser garantir e preservar a liberdade de seus cidadãos.
Na prática, significa que o Estado deve lutar para preservar a liberdade de que os indivíduos
procurem sua felicidade como bem entenderem, assim como a liberdade religiosa e a liberdade
de expressão – sobretudo considerando que seria a liberdade para se exercer a razão
publicamente.
Mas não há, por parte do filósofo, uma crença de que isso ocorra de maneira absolutamente
espontânea. Kant enxerga essa possibilidade como uma ideia que deve regular as ações do
Estado, mesmo que se viva em períodos de disputas turbulentas. Para ele, as guerras devem
ser compreendidas não como entraves para a paz, mas como sinais de desequilíbrios entre os
países, que, uma vez resolvidos, reconfiguram as relações internacionais de modo mais
balanceado.
A paz perpétua, para Kant, funciona, portanto, como algo que vai se tornando cada vez mais
real, na medida em que os Estados ficam cada vez mais balanceados entre si, mesmo que o
caminho para isso seja feito – paradoxalmente – por meio da guerra.
Vamos entender o que isso significa com base em duas aproximações dessa inserção da
História na Filosofia a partir da Filosofia política de Hegel: o fato de a Filosofia hegeliana ser
aquela que lida com os problemas de seu tempo e aquela que lida com as consequências de o
movimento histórico ser a condição da verdade das coisas.
Em primeiro lugar, inserir a História na Filosofia não é nada mais que tomar a Filosofia como a
apreensão de seu próprio tempo pelo pensamento (HEGEL, 2006). Se a Filosofia de Hegel foi
gestada quando a Revolução Francesa se desdobrou e se deparou com suas tensões e seus
limites, seu pensamento também se viu diante dessas questões. Observamos isso em sua
Filosofia política, em que a distinção entre sociedade civil e Estado aparece como fundamental
devido aos desdobramentos da Revolução Francesa, sobretudo se considerarmos que ela foi
motivada por uma incapacidade do Estado de dar conta das demandas dos cidadãos.
Isso se diferencia do Estado, que seria a concretização formal dos laços e valores sociais por
meio de leis, estruturas burocráticas estatais e instâncias de poder regulamentadas – uma
concretização que não necessariamente se articula com a sociedade civil.
Como vimos, há também outro sentido em que a questão da História se torna central no
pensamento hegeliano. Para Hegel, é apenas por meio do que chama de dialética que se
pode observar a verdade das coisas.
Por exemplo, a verdade de uma flor não estaria apenas em sua fase final, em seu “estado
florescido”, mas no fato de que ela, antes de desabrochar, foi um botão, embora este tenha
sido negado pela própria flor. Nos termos de Hegel, diz-se, portanto, que a verdade da flor
conserva negativamente (como algo que foi negado e superado) o botão.
DIALÉTICA
Desenvolvimento das coisas no tempo por meio de uma série de negações sucessivas.
Imagem: Shutterstock.com
Vemos isso, porém, também no campo político, quando pensamos na Filosofia da história de
Hegel. No que diz respeito às ideias do Iluminismo, como liberdade, igualdade e fraternidade,
ainda que servissem como imagens desejáveis da política, não se pode deixar de notar a
distância entre elas e a sociedade tal como existia naquele momento. Essa distância, para
Hegel, não é simplesmente um problema, mas é o que acaba sendo o motor para que as
condições atuais da sociedade sejam transformadas em nome das ideias a que se aspira.
Nesse sentido, vemos como os próprios acontecimentos históricos em Hegel são encarados a
partir da dialética, de modo que procuram realizar as transformações que adéquam o mundo
social a suas aspirações.
UTILITARISMO
O progresso do conhecimento científico, com a criação da Royal Society na segunda metade
do século XVII, influenciou Jeremy Bentham (1748-1832) a trazer os princípios básicos do
experimentalismo e do empirismo para as Ciências Morais.
Bentham (1974) argumentava que as Ciências Morais deveriam ser pensadas em analogia
com as Ciências Naturais, ou seja, aquilo que um físico é para um corpo natural o legislador
deveria ser para o corpo político. A legislação seria a Medicina exercida em larga escala.
ROYAL SOCIETY
Embora as entidades fictícias sejam necessárias para o discurso humano, seu sentido só se
torna manifesto, para Bentham, por meio de sua conexão com essas entidades reais. Direitos e
deveres, por exemplo, só se tornam conceitos plenos de sentido a partir das dores e dos
prazeres que significam para os indivíduos.
As proposições teológicas, por sua vez, não lidam com fatos da experiência comum, mas com
uma realidade que transcende o mundo físico, de modo que, assim como a opinião não tem
lugar no discurso das Ciências Naturais, as verdades teológicas não têm lugar nas Ciências
Morais.
Além disso, Bentham argumenta que princípios como o senso comum e a justiça natural são
vazios e não expressam mais do que o sentimento das pessoas que os enunciam. O princípio
da utilidade, ao contrário, estaria fundamentado em fatos verificáveis na experiência, que são
as dores e os prazeres. O princípio da utilidade toma, portanto, as dores e os prazeres como
causa última da ação humana e como causa eficiente da felicidade.
Outro teórico do utilitarismo, John Stuart Mill (1806-1873) argumenta que, assim como há um
fundamento para o raciocínio teórico – o princípio da indução enumerativa –, há, também, um
fundamento para a razão prática (MILL, 2020).
O raciocínio teórico envolve o desvelamento de uma razão para acreditar, e a razão prática, de
uma razão para agir. Nas palavras de Mill (2020), não há apenas princípios fundamentais do
conhecimento, mas também princípios fundamentais da conduta. E é na utilidade que Mill
encontra esse princípio. Para ele, a felicidade é o único fim da ação humana, e sua busca é o
teste pelo qual se pode avaliar qualquer conduta.
Mill (2020) julga apresentar uma prova do princípio da utilidade ao caracterizar a felicidade da
forma a seguir.
A felicidade é desejável.
Não se trata de uma prova no sentido tradicional, ou seja, de uma dedução lógica do princípio
de utilidade. Em sentido estrito, os fins últimos não são passíveis de uma prova direta. O que
Mill procura mostrar, no entanto, é que o princípio da utilidade – isto é, a doutrina de que todas
as coisas são boas ou ruins em razão da dor ou do prazer que produzem – possui
fundamentos racionais.
AGORA, A DOUTORA RAQUEL AZEVEDO ESCLARECE
A IMPORTÂNCIA DO ILUMINISMO PARA A MUDANÇA
NA CONCEPÇÃO ACERCA DA POLÍTICA, E COMO
ISSO INFLUENCIOU TODA A IDADE
CONTEMPORÂNEA.
VERIFICANDO O APRENDIZADO
1. OS PENSADORES ILUMINISTAS SE RELACIONAM COM A ORDEM
EXISTENTE POR MEIO DO EXAME MINUCIOSO DA CRÍTICA. AS
FORMULAÇÕES DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU ENCARNAM O
IMPASSE DESSE PROCEDIMENTO, POIS:
A) A oposição crescente entre moral e política exigia que o conflito fosse transferido para o
próprio campo da política.
C) O filósofo julgava que o governante não deveria legislar sobre o foro privado dos cidadãos.
E) A atuação do governante sobre a opinião pública não é um meio adequado para estabelecer
uma identidade entre convicção e ação.
GABARITO
Com Rousseau, o campo da moral já havia crescido de tal forma que seria preciso que a
oposição entre moral e política fosse transferida para o próprio campo da política. Em outras
palavras, ao diagnóstico iluminista do progresso infinito parecia cada vez mais se impor uma
decisão política, considerando o crescente desacordo entre os juízos morais e a estrutura do
Estado.
2. Segundo Immanuel Kant, os princípios éticos não devem apenas reger as relações
entre indivíduos, mas também ser espelhados nas relações entre diferentes Estados-
nações. Entre pessoas, isso significaria que ninguém pode se utilizar do outro como
meio para um fim, ou seja, como caminho para atingir seus objetivos. Essa relação ética
espelhada no âmbito internacional implicaria que tipo de relação ideal entre países?
Apenas a paz perpétua pode ser tomada como ideal de relação internacional, pois é a única
situação em que nenhum Estado-nação procuraria se sobrepor aos outros e explorá-los para
seus benefícios, independentemente dos interesses do país explorado.
CONCLUSÃO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Revisitamos os principais conceitos construídos ao longo da modernidade a partir dos
inúmeros eventos que compõem esse período. A partir do Renascimento, é possível identificar
uma série de formas e valores políticos que ainda tem relevância na organização sociopolítica
atual.
Por fim, vimos como o pensamento iluminista, diante da democratização crescente da política
(de maior participação popular), acabou tendo de repensar o que se entendia por liberdade,
sociedade civil e até a finalidade dos governos. Foi possível investigar a formação histórica de
ideias tão importantes como individualidade, soberania e liberdade política. Isso significa
investigar não apenas a história do conceito, mas a relação do conceito com o contexto em que
surgiu.
AVALIAÇÃO DO TEMA:
REFERÊNCIAS
BENTHAM, J. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. São Paulo: Abril
Cultural, 1974.
LOCKE, J. Ensaio sobe o entendimento humano. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
EXPLORE+
Se quiser ampliar o seu conhecimento sobre este tema, sugerimos o acesso ao site
Artepensamento, em que é possível encontrar uma série de textos acessíveis e
introdutórios, mas que abdicam de uma reflexão aprofundada.
CONTEUDISTAS
Raquel de Azevedo
CURRÍCULO LATTES
Rafael Mófreita Saldanha
CURRÍCULO LATTES