Dialéticas Amazônicas Da Literatura

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Dialéticas

amazônicas
da literatura
Governo do Estado do Amazonas

Wilson Miranda Lima


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Universidade do Estado do Amazonas

Cleinaldo de Almeida Costa


Reitor

Cleto Cavalcante de Souza Leal


Vice-Reitor

editoraUEA

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Silvana Andrade Martins (UEA)
Comitê Científico
Juciane Cavalheiro
Gerson Albuquerque
(orgs.)

Dialéticas amazônicas da literatura


Silas Menezes Bianca Vieira
Projeto Gráfico Diana Farias
Wanessa Ramos
Giuliana Loureiro Revisão de prova
Raquel Ponce
Samara Nina Samara Nina
Conversão para eBook Finalização

Wesley Sá
Preparação e revisão de texto

Todos os direitos reservados © Universidade do Estado do Amazonas


Permitida a reprodução parcial desde que citada a fonte

Esta edição foi revisada conforme as regras do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade do Estado do Amazonas

D536
2021
Dialéticas amazônicas da literatura / Organizadores: Juciane Cavalheiro, Gerson
Albuquerque. – Manaus (AM): editoraUEA, 2021.

268 p.: il.; 21 cm.

ISBN 978-65-87214-51-1

Inclui bibliografia
1. Critica Literaria. 2.Literatura. I.Cavalheiro, Juciane, Org. II.
Albuquerque, Gerson, Org. III.Título.
CDU:1997 – 82.09

Editora afiliada:

editoraUEA

Av. Djalma Batista, 3578 – Flores | Manaus – AM – Brasil


CEP 69050-010 | +55 92 38784463
editora.uea.edu.br | [email protected]
Sumário

8 Apresentação

11 Dante, Cervantes e a musa idealizada: um estudo


comparativo entre A Divina Comédia e o Quixote
Anne Caroline do Nascimento Ribeiro
Juciane Cavalheiro

27 Passagens da geopoesia: etnoflâneries centroestinas


pelas ruas de Goiás
Augusto R. Silva Junior

38 Euclides da Cunha e suas metáforas amazônicas


Carlos Antônio Magalhães Guedelha
Iná Isabel de Almeida Rafael

54 Aspectos de retórica e ritmo no contexto


da Institutio Oratoria, de Quintiliano
Carlos Renato R. de Jesus

66 Arquivo, coleção, memória: um encadeamento de


imagens na poesia brasileira (Carlos Drummond de
Andrade, Luiz Bacellar e Astrid Cabral)
Fadul Moura

80 Bichos e visagens na literatura indígena amazonense


Francisco Bezerra dos Santos
Jackeline Mendes Brandão

92 Poéticas, éticas e estéticas de uma cidade entre o rio e a


floresta, na Amazônia acreana
Gerson Rodrigues de Albuquerque

119 Os bora e os uitoto do noroeste amazônico no relato


antropológico de Thomas Whiffen
Hélio Rodrigues da Rocha
João Carlos Pereira Coqueiro

132 D. Pedro Casaldáliga e José Craveirinha: pelo pão e pelo


carvão: poéticas em combustão
Isaac Ramos
142 O fantástico na literatura de expressão amazônica:
ensino e pesquisa
Jandir Silva dos Santos
Vinicius Milhomem Brasil

155 Dois caminhos aquém dos Pirineus: apontamentos sobre o


extraordinário nas literaturas ibéricas e ibero-americanas
Juciane Cavalheiro
Mauricio Matos

162 Ivan Serpa e a Fase Negra: a preocupação social na arte


em meados da década de 1960 e a pós-modernidade
Luciane Viana Barros Páscoa
Márcio Leonel Farias Reis Páscoa

180 Imagens da História


Marcos Frederico Krüger Aleixo

185 O Lustre, de Clarice Lispector: indícios de incesto


Maria de Fatima do Nascimento

201 História e memória: a poesia nua de Adília Lopes


Rayesley Ricarte Costa

217 A representação de personagens negros na ficção


amazonense do século XX: a presença na ausência e a
manutenção dos estereótipos
Renata Beatriz B. Rolon

231 O ensino da poesia afro-brasileira: cultura, memória e


identidade
Rosidelma Pereira Fraga

247 A viagem de Spix und Martius pela Amazônia, em


1819/1820
Willi Bolle

263 Sobre os autores


APRESENTAÇÃO

Dialéticas Amazônicas da Literatura surgiu da reunião de simpósios,


cursos e palestras realizados durante o II GELLNORTE, nosso tão almejado Grupo
de Estudos Linguísticos e Literários da região Norte, cujo tema foi “Linguística
e Literatura na Amazônia: políticas de pesquisa para as margens”. O encontro
realizou-se de 28 a 31 de maio, em Manaus, e foi sediado nas dependências da
Universidade do Estado do Amazonas.
Por um lado, temos na coletânea autores de diversas partes da Amazônia
brasileira e pertencentes, em sua grande maioria, aos Programas de Pós-graduação
da região (UEA, UFAM, UFPA, UFAC, UNIR, UERR). Temos, de certa forma, um
mapa das pesquisas na área da literatura nessa região. Foi esta, inicialmente, a
proposta, quando, a partir da análise das linhas e projetos de pesquisas dos docentes
vinculados aos dez Programas de Pós-graduação da área de Literatura e Linguística,
realizamos a chamada para submissões de propostas de simpósios e cursos em 22
áreas que, de certo modo, sintetizam as pesquisas realizadas na região. Por outro
lado, o livro, com 18 capítulos, abre o olhar para questões nacionais, não só pela
participação de pesquisadores de outras regiões (Centro-Oeste (UnB e UNEMAT) e
Sudeste (USP e UNICAMP)), mas também pela diversidade de temas.
No primeiro capítulo, Dante, Cervantes e a musa idealizada: um estudo
comparativo entre A Divina Comédia e o Quixote, as autoras realizam uma
releitura de duas das mais célebres obras da literatura canônica ocidental. Sob o
prisma da Literatura Comparada, analisam as personagens femininas das duas
obras, Beatrice e Dulcineia, evidenciando as recepções provenientes de A Divina
Comédia e do movimento literário do Dolce Stil Nuovo em o Quixote.
Augusto R. Silva Júnior, em Passagens da geopoesia: etnoflâneries
centroestinas pelas ruas de Goiás, discute, a partir da ideia de flânerie, o
etnoflâneur, aquele que, mas não apenas, “segue para o campo para entender
antigas e novas formas de trabalho”. Evidencia que a matéria da geopoesia –
“livros todos feitos de ignoranças e revelanças” – se deixa ver na palavra do outro,
entre o enunciável e o estilizável.
Apoiados, sobretudo em Lakoff e Johnson, Carlos Antônio Magalhães
Guedelha e Iná Isabel de Almeida Rafael, em Euclides da Cunha e suas metáforas
amazônicas, observam que as metáforas amazônicas de Euclides da Cunha
externam a visão dele sobre a terra e a gente da e na Amazônia, muito além de
serem “apenas” recursos retóricos.
Carlos Renato Rosário de Jesus, em Aspectos de retórica e ritmo no
contexto da “Institutio Oratoria”, de Quintiliano, apresenta as concepções

8
de Quintiliano sobre o ritmo, como recurso retórico, tal como nos aparece no
livro IX, cap. IV, de sua Institutio oratoria. Para tanto, serve-se do embasamento
oferecido por seus antecessores, particularmente Aristóteles e Cícero, nas partes
específicas da Ars rhetorica e do Orator, respectivamente. Procura mostrar
como Quintiliano desenvolveu os preceitos que lhe antecederam, bem como
as particularidades inerentes às suas próprias concepções sobre os aspectos
estilísticos que proporcionam o ornatus e a elegantia ao discurso oratório.
Em Arquivo, coleção, memória: um encadeamento de imagens na poesia
brasileira (Carlos Drummond de Andrade, Luiz Bacellar e Astrid Cabral),
Fadul Moura discute o trabalho crítico-criativo de possíveis sistemas mnemônicos
de organização do mundo, dos afetos e do saber por parte de poetas brasileiros.
Mediante o fio condutor arquivo-coleção-memória, perfaz um caminho possível por
imagens recorrentes na poesia brasileira da modernidade à contemporaneidade.
Em Bichos e visagens na literatura indígena amazonense, os autores
apresentam uma abordagem sobre o animal na literatura, considerações sobre
a relevância e função de bichos e seres sobrenaturais na literatura de autoria
indígena amazonense.
Gerson Rodrigues de Albuquerque, em Poéticas, éticas e estéticas de uma
cidade entre o rio e a floresta, na Amazônia acreana, acompanha e problematiza
diferentes narrativas sobre a cidade de Rio Branco, capital do Acre. Narrativas que
a inventaram e reinventaram de inúmeras formas, mas, no geral, sempre presas à
“estética amazonialista que é a estética do vazio – desértico, distante, dependente,
solitário, isolado, insalubre, vítima – que governa nossas subjetividades”.
Em Os bora e os uitoto do noroeste amazônico no relato antropológico
de Thomas Whiffen, os autores demonstram como o capitão britânico Thomas
Whiffen (1878-1922), que viajou pelas terras entre os rios Içá-Japurá, descreve a
cultura desses dois povos nativos do noroeste amazônico em seu relato etnográfico.
Isaac Ramos apresenta, em D. Pedro Casaldáliga e José Craveirinha: pelo
pão e pelo carvão: poéticas em combustão, dois importantes poetas. Observa
que o espanhol D. Pedro Casaldáliga e o moçambicano José Craveirinha abraçam
temáticas que se alimentam e dialogam com as lutas sociais nas quais se envolvem.
Destaca que não se trata do puro e simples engajamento, mas do uso e do empenho
da palavra poética como denúncia social, como revolução em busca de um devir.
O fantástico na literatura de expressão amazônica traz um didático
estudo, caracterizado pelos autores como “literatura fantástica manifestada no
Amazonas”, de textos que evocam o imaginário amazônico, seja pela expressão
mítica indígena, seja pela expressão folclórica cabocla.
Em Dois caminhos aquém dos pirineus: apontamentos sobre o
extraordinário nas literaturas ibéricas e ibero-americanas, os autores
abordam a questão da presença/ausência do elemento extraordinário nas histórias
das literaturas ibéricas e ibero-americanas. Partindo do princípio de uma origem
comum na Europa medieval, verificam a partir de que momento tais literaturas
passaram a tender mais para o ordinário ou para o extraordinário, bem como as
oscilações que estas tendências passaram a provocar, particularmente, em cada
literatura. Apontam, em suas conclusões, para um destino in fieri, como haverá
de ocorrer nas mais importantes literaturas.
Em Ivan Serpa e a Fase Negra: a preocupação social na arte em meados da
década de 1960 e a Pós-Modernidade, os autores trazem a pintura expressionista
de Ivan Serpa (1923-1973), artista plástico carioca de carreira internacional e um

9
dos ícones do construtivismo no Brasil. Destacam a relação do pintor com a Fase
Negra, uma arte de denúncia contundente e de testemunho de um período caótico
onde os fantasmas e monstros do medo, da repressão, da fome, da guerra e dos
mártires torturados imperavam.
Marcos Frederico Krüger Aleixo, em Imagens da História, acompanha as sete
partes de Imagem, de Elson Farias, nas quais se percorrem a História do Amazonas,
de seus primórdios pré-coloniais até a abolição da escravatura no estado.
No capítulo seguinte, Maria de Fatima do Nascimento, em O lustre, de
Clarice Lispector: indícios de incesto, acompanha a relação entre os irmãos
Daniel e Virgínia, personagens centrais do romance O lustre, com o propósito de
demonstrar indícios de incesto.
Rayesley Ricarte Costa, por sua vez, em História e memória: a poesia nua de
Adília Lopes, apresenta discussões acerca da literatura da autora contemporânea
portuguesa, com vistas a investigar em que medida sua produção atua como
instrumento de resistência e subversão, reconstruindo a identidade do sujeito
feminino, vítima das violências de gênero.
Renata Rolon analisa, em A representação de personagens negros na
ficção amazonense do século XX: a presença na ausência e a manutenção
dos estereótipos, as dimensões sociais e artísticas presentes nos textos literários
selecionados. Observa que a presença negra, materializada na literatura
produzida no Amazonas, ainda que reduzida, deve ser traduzida em matéria
para a elaboração de uma consciência crítica, questionadora.
Rosidelma Pereira Fraga, em O ensino da poesia afro-brasileira: cultura,
memória e identidade, traz conceitos sobre literatura afro-brasileira, literatura
negra, literatura negro-brasileira e literatura de minorias e discute sobre a
valorização da cultura e identidade afro-brasileira, por meio de um debate
histórico-crítico em torno de uma “literatura menor” dos pré-abolicionistas à
contemporaneidade.
O livro finaliza com o capítulo A viagem de Spix und Martius pela Amazônia,
em 1819/1820, de Willi Bolle. O pesquisador acompanha e relata a viagem que
os dois naturalistas fizeram pela Amazônia, de fins de julho de 1819 até meados
de junho de 1820. Para a realização da expedição de Spix e Martius, observa que
foi especialmente favorável o casamento, em 1817, da princesa Leopoldina de
Habsburgo com o futuro imperador D. Pedro I. Do séquito dela fazia parte um grupo
de cientistas e artistas, entre eles o zoólogo Spix e o botânico Martius.
A presente coletânea procurou trazer pesquisas desenvolvidas sobre estudos
literários, sobretudo na região Norte do Brasil. Objetiva, assim, contribuir para a
divulgação dos estudos na área.

Manaus, maio de 2019.

Juciane Cavalheiro
Gerson Albuquerque

10
Dante, Cervantes e a musa idealizada:
um estudo comparativo entre A Divina
Comédia e o Quixote

Anne Caroline do Nascimento Ribeiro


Juciane Cavalheiro
Considerações iniciais

Dante Alighieri (1265 -1321) e Miguel de Cervantes (1547-1616) constituem


dois nomes egrégios do cânone da literatura universal, reconhecidos amplamente
como autores de obras que transcendem fronteiras temporais e geográficas: Dante,
tanto por seus tratados de política e filosofia como pela sua Commedia (1321),
e Cervantes pela ilustre jornada do “cavaleiro da triste figura” em o Quixote
(1605) e (1615). Consideradas obras máximas das literaturas italiana e espanhola,
respectivamente, A Divina Comédia e o Quixote representam, de certa forma, as
primeiras obras literárias em língua europeia moderna1 e, mais do que no cânone
literário, encontram-se em lugar ínclito e célebre no seio cultural de seus países.
Tais criações são extensamente estudadas por várias vertentes dos estudos
literários e consubstanciam-se em diversas esferas artísticas, servindo de
inspirações para releituras, versões e interpretações sob diversos paradigmas
artísticos e humanísticos. Entretanto, mesmo com as diferentes formas de
abordagem já feitas a essas obras, pouco se falou em estabelecer uma relação
de comparação entre elas e, menos ainda, entre as personagens femininas2, pois
tanto no épico italiano quanto na paródia espanhola, duas figuras se destacam
nas tríades de protagonistas3: Na Commedia4, talvez nada seja tão simbólico e
misterioso quanto a musa Beatrice, e em o Quixote, nenhuma outra figura feminina
aguça tanto a curiosidade dos leitores quanto a donzela Dulcineia. A presente
investigação insere, no escopo da teoria literária e da Literatura Comparada,
um estudo voltado para o cortejo dessas duas obras canônicas, com enfoque
nas figuras femininas das tríades de protagonistas, representadas na Commedia
pela figura simbólica enigmática de Beatrice, e em o Quixote, como a curiosa e
incorpórea figura da donzela Dulcineia Del Toboso.
Através da análise comparativa, sobretudo no que concerne à figura da musa
idealizada, e em como a personagem de Dulcineia Del Toboso apresenta recepções
provenientes de Beatrice e da escola italiana do Dolce stil nuovo, buscamos também
atestar o pressuposto de que a literatura se constitui de um frequente diálogo
textual, pois “a literatura nasce da literatura. Cada obra nova é continuação, por
consentimento ou contestação, das obras anteriores. Escrever é, pois, dialogar
com a literatura anterior e com a contemporânea” (PERRONE-MOISÉS, 1990, p.
25). Quando Perrone-Moisés e os demais autores de Literatura Comparada fazem
tal afirmação, evidenciam a relação dialógica que os textos estabelecem uns com
os outros, transpondo questões temporais e espaciais, atribuindo-lhes a alcunha
de uma obra “universal” não por si só, mas também por serem capazes de, além
de se comunicar com outras culturas, relacionar-se também com outras obras de
distintas épocas. Foi nosso intento, pois, através de estudo comparado do Quixote
1
A Divina Comédia foi responsável pelo início da unificação da língua italiana, que antes
era constituída por 14 dialetos, segundo pesquisas do próprio Dante em seu tratado De
Vulgari Eloquentia.
2
Salvo pequeno comentário de Harold Bloom em O cânone ocidental, momento em que se vale
de Dulcineia Del Toboso para exemplificar a questão da falta de identidade real de Beatrice
(BLOOM, 1964, p. 86).
3
Na Divina Comédia representados por Dante, Virgílio e Beatrice, e em o Quixote, como don
Quixote, Sancho Pança e Dulcineia.
4
Nome originalmente dado por Dante. O adjetivo “divina” foi adicionado apenas posteriormente
por Boccaggio.

12
e de A Divina Comédia, asseverar como a literatura se encontra nesse frequente
diálogo e como, mesmo com mais de três séculos de diferença, a musa de Dante
influiu particularidades à musa quixotesca.
A metodologia da pesquisa é de cunho essencialmente bibliográfico. Na
primeira etapa, realizamos a leitura de autores como Nitrine (1997) e Remak
(1961) e suas concepções sobre Literatura Comparada, procedendo a uma leitura
reflexiva sobre os pontos de convergência e divergência entre os autores sobre a
definição, metodologia e objeto de estudo da Literatura Comparada. Em seguida,
procedemos à leitura de A Divina Comédia e do Quixote, sempre cotejando as
traduções com as versões originais em italiano e espanhol, centrando-nos nas
personagens femininas, nas características do Dolce Stil Nuovo presentes na
personagem de Beatriz, na Divina Comédia, e em como esta projeta atributos
à Dulcineia, no Quixote. Ao mesmo tempo, procedemos a leitura de obras que
abordem a história da escola poética do Dolce Stil Nuovo e suas principais
características, contidas nas obras de Sansone (1961) e Alva (1999). Após a leitura
das obras que se compreendem nos objetos de análise, iniciamos a etapa de
leitura de livros e artigos de pesquisadores que tratam especificamente da Divina
Comédia e do Quixote, sobretudo no que concerne às personagens femininas.
Para tanto, foram utilizados autores como Froés (2011) e Willians (2000), que
defendem Beatrice como figura importantíssima para Dante no desenvolvimento
da nova concepção sobre o amor que, “representada por Dante em Vita Nova,
encontrou sua expressão máxima apenas na gloriosa transfiguração da imagem
de Beatrice na Commedia, seu grande poema épico” (FROÉS, 2011, p. 1). Além
disso, contamos com a leitura de autores como Pinilla (2014) e Atlee (1978), que
trouxeram considerações teóricas relevantes sobre a personagem de Dulcineia
e suas características em relação ao aristotélico de Deus, premissa fortemente
relacionada ao Dolce Stil Nuovo (REALE, 1965). Por fim, selecionamos excertos
nas obras originais e realizaremos a análise, visando à investigação comparativa,
intentando comprovar as influências do Dolce Stil Nuovo e da criação Dantesca
na personagem Dulcineia, de Cervantes, atestando, assim, o diálogo textual entre
as duas obras.

Dante, Beatrice e o Dolce Stil Nuovo

Salvatore Viglio, em sua Introdução ao estudo de Dante, inicia o capítulo


biográfico do poeta com os seguintes dizeres: “Raramente se encontra, na história
das letras, uma figura que, como Dante, domine toda uma literatura desde
seus primórdios” (VIGLIO, 1970, p. 49). De fato, o poeta não apenas dominou a
escrita artística no que é considerado o início da literatura em língua italiana
moderna, como também dedicou-se a diversas outras áreas. De filosofia a filologia,
empenhou-se fielmente em cada um desses campos, sobressaindo-se na criação
de sua Commedia, a qual, segundo Viglio, fez o poeta “despertar nos italianos o
sentimento de unidade étnica” (1970, p. 49), necessária a uma Itália dividida tanto
por questões políticas como dialéticas.
Dante nasceu em Florença, no ano de 1265 (estimando-se que tenha sido
entre 20 de maio e 21 de junho), sendo batizado com o nome de Durante Alighieri.
Naqueles anos, Florença era reconhecida como uma das maiores cidades da
Europa e, embora as disputas entre facções políticas fossem vigentes, também

13
passava por uma época de grande riqueza monetária, com a elevação da classe
burguesa, que patrocinava a “erupção cultural” da literatura e de outras esferas
artísticas. Seus primeiros anos de estudos foram “de natureza laica junto a um
dos vários professores particulares (chamados então docti puerorum) de Florença”
(STERZI, 2008, p. 37), mas foi por conta própria que aprendeu a arte da rima5 e,
quando desejou aprimorar seus conhecimentos sobre poética e retórica, teve como
mentor Brunneto Latini6. Em 1292, concebe sua primeira criação, Vita Nuova, um
livreto onde o poeta narra sua história de amor juvenil e nos apresenta aquela
a qual seria sua musa e posteriormente sua inspiração para a composição da
Divina Comédia, Beatrice.
Vita Nuova foi uma obra de grande importância não apenas por ser o
primeiro livro do poeta e a antecipação da Divina Comédia, mas também por
ser inspiração para quem crescia entre os poetas toscanos na época: o Dolce
Stil Nuovo. Iniciada pela poesia de Guido Guinizelli7, nas últimas décadas do
século XIII, foi um movimento com raízes na Scuola Poetica Siciliana8. Por sua vez,
sabe-se que os literatos da Scuola Poetica Siciliana sofreram fortes influências da
poesia trovadoresca provençal e para que entendam-se melhor as propostas do
Dolce Stil Nuovo, se faz necessário uma breve introdução à lírica trovadoresca
– principalmente no que se refere ao papel da personagem feminina – e, por
conseguinte, sua influência nas escolas italianas “considerando que o efeito mais
profundo da espiritualidade medieval foi a nova atitude em face do amor terreno,
que surgiu primeiro na Provença” (ALVA, 1999, p. 71).
Durante o século XII, acontecia na Europa o que Feldkircher nos traz como
Renascimento Medieval.

O século de ouro da literatura medieval na França deu espaço para o


que se chamou de renascimento medieval, ali nasceu a primeira canção
de gesta, a primeira poesia lírica, o primeiro torneio cavaleiresco, o
primeiro vitral, o primeiro drama litúrgico, a primeira carta de liberdade
de uma comuna (FELDKIRCHER, 2006, p. 2).

Dessa era de ouro é que surge o trovadorismo. Ainda que predominasse


em toda a França, havia uma divergência de abordagem poética em diferentes
hemisférios: “Em língua d’oil [Norte e Centro da França], [a abordagem] foi
principalmente heroica, cavaleiresca, didática e alegórica, enquanto na Provença
a moda era a alta lírica do amor”9 (SANSONE, 1961, p. 14). Ou seja, no norte da
França dava-se destaque para a figura do herói e dos combates cavaleirescos,
enquanto no sul francês, priorizava-se o amor cortês e a exaltação da personagem
feminina, não representada apenas como um acessório a disposição do prazer
do herói, mas sendo alvo de exaltação. Chama-se atenção para o fato de que a
mulher do séc. XII e XII, nos âmbitos políticos, filosóficos e até religiosos, possuía

5
Vita Nuova, III, 11.
6
Importante escritor, poeta, político responsável por importantes obras em vulgar como Li livres
dou Tresor.
7
Poeta Italiano, nascido em Bolonha. Seu poema Al cor gentil rempaira sempre amore é considerado
o marco inicial do Dolce Stil Nuovo.
8
Primeiro movimento literário independente da Itália.
9
“in lingua d’oil, fu principalmente eroico-cavalleresca, didascalica ed allegorica; mentre nella
Provenza ebbe voga, l’alta lírica d’amore.” (SANSONE, 1961, p. 14. Tradução nossa).

14
uma autonomia intelectual muito maior que as mulheres no final da Idade Média.
Temos o exemplo de Heloisa, uma das grandes pensadoras do século XII, discípula
do filósofo Abelardo, párea em sapiência a muitos intelectuais e monges de sua
época. Na literatura trovadoresca do Norte, a imagem da mulher não possuía um
papel muito além de acessório, pois se encontrava na obra à mercê dos prazeres do
herói. Nesse sentido, o Trovadorismo Provençal propagava a exaltação à mulher,
pois “a canção lírica canta um novo ideal, profano, do cavaleiro, não mais a serviço
da cristandade, mas a serviço da dama” (ALVA, 1999, p. 73).
Quando na Itália surge um dos primeiros movimentos nacionais e a primeira
escola poética italiana, denominada Scuola Poetica Siciliana10, a principal fonte de
inspiração foi o Trovadorismo Provençal, persistindo no mesmo modelo e métrica,
o mesmo esquema psicológico e a mesma interação entre amante e amada, com
o mesmo requinte formal, mas escrita em vulgar siciliano.
O Dolce Stil Nuovo emerge em contrapartida às velhas formas de poesia
siciliana: a questão do amor também era central, mas sua principal concepção era
a nobreza e o amor sob uma abordagem mais científica e filosófica. Viglio (1970,
p. 58) afirma que se pode considerar o primeiro movimento poético independente
da língua italiana. A nova escola empolgou os novos poetas toscanos (entre eles
Dante), já irritados com os cantos às mulheres dos poderosos, em uma época de
mudanças, em que a antiga aristocracia era decadente, dando espaço à emersão
da classe burguesa, na qual reinavam cantos às mulheres dos novos burgueses.
O Dolce Stil Nuovo traz a proposta da elevação do homem sob a perfeição cristã
através do amor real e puro: um amor que, acima de tudo, redime. Através disso
a mulher não é mais o objeto de perturbação do poeta, mas a responsável por
purificá-lo. A mulher idealizada surge como um ser angelical, gentil e nobre, à qual
o poeta canta seu amor não de forma vulgar, mas com suavidade e beatificação.
Nas palavras de Sansone:

O amor não é um desejo terreno, mas um meio pelo qual o coração gentil,
ou seja, nobre se eleva à contemplação da perfeição divina, é a única
maneira pela qual a nobreza que a natureza nos coloca na alma, em
um estado potencial, se ativa e desdobra em todo o seu vigor. A mulher
não é um objeto do desejo sensual, mas uma criatura angélical: com a
soma da perfeição emanando de suas virtudes e da doçura harmônica
de sua beleza, eleva a alma a Deus, dissolvendo-a de toda a miséria e da
fealdade terrena (SANSONE, 1961, p. 23. Tradução nossa)11.

Com tais atributos, a personagem de Beatrice consiste numa das mais célebres
Donna Angelo,12: é a ela, casta e nobre, que o poeta se refere ao afirmar que irá
dedicar A Divina Comédia e dizer o que jamais se disse de nenhuma outra (Vita
Nuova, XLII), já um prévio aviso da composição da Commedia. Willians (2000), em
10
“É dita siciliana não porque todos os poetas foram sicilianos, mas apenas pelo fato que essa
iniciou na corte do rei da Sicília (Federico II)” (SANSONE, 1061, p. 20. Tradução nossa).
11
“L’amore non è brama terrena, ma il mezzo com cui il cuore gentile, cioè nobile, si leva ala
contemplazione della perfezione divina,è la sola via per cui quel tanto de nobilita che la natura
ci pone, in stato potenziale, nell’anima si attui e si dispieghi in tutto il suo vigore. La donna non
è oggeto de desiderio sensuale, ma una criatura angelica: essa, com la somma dele perfezione
che emanano dalle sue virtú e dalla soavitá harmoniosa della sua bellezza, leva l’anima a Dio,
sciogliendola da ogni miseria e bruttura terrena” (SANSONE, 1961, p. 23).
12
Nome dado às musas dos poetas do dolcestilnuovismo (ROBIN, 2010).

15
seu profundo estudo The Figure of Beatrice, defende a personagem de Beatrice como
a mais espetacular invenção do poeta e a legitimação da originalidade de Dante.
Em 1303, ainda sob influência do Dolce Stil Nuovo e já no exílio, Dante inicia
a composição da sua Commedia. Embora Beatrice não se faça presente durante
a jornada através do Inferno, é ela a responsável por fazer com que Virgílio
interceda em resgate ao poeta. Começa então a jornada de redenção, iniciada pela
ação misericordiosa da musa com a finalidade de, através de uma viagem pelo
mundo de Sofrimento e Castigo (Inferno) e Reflexão e Purificação (Purgatório),
tornar-se finalmente digno de entrar no Paraíso. A premissa da purificação
através do amor casto proposta pelo Dolce Stil Nuovo é seguida fielmente na
Divina Comédia, pois, além de apresentar a jornada do poeta em busca da elevação
espiritual, o que guia Dante em sua viagem é a convicção do encontro com Beatriz:
o amor virtuoso como ponte capaz de aproximar o homem de Deus e livrá-lo da
miséria terrena.

Dulcineia Del Toboso

Em um salto temporal de 300 anos, chegamos a 1547, ano de nascimento


de Miguel de Cervantes Saavedra. O cenário histórico – e geográfico – é
completamente outro: na época do reinado decadente de Felipe III (que seguiu o
governo absolutista de Felipe II), os grandes gastos com exportação e exploração
resultaram numa gravíssima crise social, afundando o país em dívidas e inflações
que se refletiram grandemente, por exemplo, em La Mancha, região em que havia
exacerbadamente desemprego e criminalidade, entrando em absoluto contraste
com os castelos opulentos, vilarejos e cavaleiros andantes que recheavam os
romances de cavalaria no “Renascimento Medieval”.
A obra máxima de Cervantes surge em meio a esse cenário social e é composta
por dois livros: o de 1605, O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha, e o de
1615, O Engenhoso Cavaleiro D. Quixote de la Mancha13, escrito para contestar
a versão apócrifa surgida em 1614, assinada por Avellaneda. O primeiro livro,
composto por quatro partes, soma 52 capítulos. Hansen e os outros cervantistas
observam que:

O texto do último capítulo do livro de 1605 afirma que dom Quixote


saiu pela terceira vez, foi a Saragoça, onde participou de justas e depois,
como os pergaminhos achados na caixa de chumbo supostamente
informariam, voltou, morreu e foi enterrado. Logo, as aventuras de dom
Quixote contadas no segundo livro, de 1915, ocorrem, no tempo da ficção,
antes do final do capítulo 52 do primeiro, que o dá por morto e sepultado.
Na cronologia interna da obra, o capítulo 52 do Dom Quixote de 1605 é
efetivamente o último. Ou seja: Dom Quixote é um livro com 2 partes (a
de 1605 e a de 1615) em que, logicamente, a segunda é decorrência da
primeira, mas se inclui ficcionalmente nela bem antes, entre o capítulo
51 e 52 (HANSEN, 2012, p. 23).

13
As citações das obras El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha (1605) e de sua continuação,
El ingenioso cavaleiro Don Quijote de la Mancha (1615) serão apresentadas a partir da edição
bilíngue de Sérgio Molina, edições de 2003 (Primeiro Livro) e 2007 (Segundo Livro). As citações
das obras serão identificadas pelas siglas remissivas DQ I, para o livro de 1605, e DQ II, para a
segunda parte da obra, bem como a indicação do capítulo.

16
Cervantes, através da sua obra, faz uma paródia aos romances de cavalaria que
ainda eram de notável popularidade na época e satiriza, por meio da personagem
de dom Quixote e da sua jornada, os princípios que conduziam as histórias dos
heróis de tais romances: o personagem principal, Alonso Quijano, é um homem
culto e que acaba por perder a sanidade após entregar-se à literatura de cavalaria
“Lendo de claro em claro e os dias de sol a sol; e, assim, do pouco dormir e muito
ler se lhe secaram os miolos, de modo que veio a perder o juízo” (DQ I, cap. I, 2003,
p. 57)14. Tomado por sua loucura cavaleiresca e convencido de que realmente é
um cavaleiro como os dos livros, parte em sua própria jornada, acompanhado de
Sancho Pança, a quem denomina como seu escudeiro, mas não sem antes idealizar
uma figura feminina a quem destinaria as honras de suas vitórias em campo.
Surge, na história, a enigmática figura de Dulcineia Del Toboso: “uma
invenção de terceira ordem, já que seu inventor Dom Quixote (invenção de
segunda ordem) foi criado pelo Fidalgo Alonso Quixada (invenção direta do
autor, de primeira ordem)” (PINILLA, 2014, p. 100). A personagem criada por
Alonso é completamente incorpórea: são as demais personagens que atribuem
características idealizadas a ela. Assim que dom Quixote se propõe a destinar
sua jornada e vitórias a uma mulher, a primeira coisa que cria é o nome15 da sua
donzela. No decorrer da narrativa, as demais características de Dulcineia são
metamórficas de pessoa para pessoa, cada qual lhe atribuindo uma identidade
imaginária, seja como aldeã Alonsa Lorenzo, como descrita pelo narrador, seja
como a lavadeira, imagem atribuída por Sancho Pança, e assim sucessivamente.
Por tal complexidade e falta de uma identidade unitária, a personagem de
Dulcineia recebeu várias estigmas e interpretações:

A interpretação mais popular é que Dulcineia e o amor que dom Quixote


tem por ela servem para fazer uma zombaria cômica do amor cortês.
Não há como rechaçar tal interpretação; no entanto, sob a superfície
da realidade, há outras possibilidades de interpretação. Casalduero diz
que Dulcineia é pura ideia. Madariaga declara que ela é a glória. Emilio
Goggio diz que Dulcineia é o principal motivo de todas as ações da dom
Quixote. Riley sugere que o problema para os filósofos contemporâneos é
se a identidade corporal é uma condição necessária para uma identidade
pessoal; que quando este problema filosófico for resolvido, poderemos
saber mais sobre Dulcineia (ATLEE, 1978, p. 1. Trad. nossa)16.

Após trazer algumas das diferentes interpretações sobre Dulcineia, Atlee


também apresenta sua própria concepção da personagem, considerando, mesmo
assim, que nenhuma das propostas anteriores deve ser descartada, pois essas

14
“leyendo de claro en claro, y los días de turbio en turbio; y así, del poco dormir y del mucho ler,
se le seco el celebro de manera que vino a perder el juicio” (DQ I, cap. I, p. 57).
15
DQ I, cap. I, 2003, p. 60.
16
“La interpretación más popular es que Dulcinea y el amor que don Quijote le tiene sirven para
hacer burla cómica del amor cortés. No se puede refutar tal interpretación; sin embargo, bajo la
superficie de la realidad hay otras posibilidades de interpretación. Casalduero dice que Dulcinea
es pura idea. Madariaga declara que ella es la gloria. Emilio Goggio dice que Dulcinea es el móvil
principal de todas las acciones de don Quijote. Riley sugiere que el problema para los filósofos
contemporáneos es saber si la identidad corporal es una condición necesaria para que haya
una identidad personal; que cuando se resuelva este problema filosófico quizá sepamos más de
Dulcinea (ATLEE, 1978, p. 1).

17
auxiliaram a elaborar uma interpretação de Del Toboso como “Uma metáfora
do conceito aristotélico de Deus que surgiu na idade média em forma do amor
cortês” (ATLEE, 1978, p. 1)17. O autor exemplifica posteriormente, a partir de
Aristóteles, que Deus é o intelecto ativo da alma racional, o que mobiliza todas as
demais emoções, movimentando o mundo como a amada move o amante. Sendo
assim, Dulcineia representaria essa força inspiradora que move a personagem
principal ao seu fim, como demonstrado nas palavras de seu admirador: “Pois
verá que tudo redunda em aumento da sua glória e fama, pois toda a que alcancei,
alcanço e alcançarei pelas armas nesta vida vem do favor que ela me dá e deu a
ela pertencer”18 (DQ I, cap. XXXI, p. 434).
Essa concepção aproxima a personagem das propostas medievais do amor
cortês iniciadas com o Trovadorismo Provençal e, mais ainda, com a escola
do Dolce Stil Nuovo, que apresentava fortes concepções aristotélicas sobre o
papel do amor na elevação divina. Para a personagem dom Quixote, Dulcineia
representa tudo aquilo que Beatrice representou para Dante: o amor platônico,
a musa inalcançável, o amor que o faz atravessar uma jornada que o redime e
o dignifica. Para Cervantes, sua criação representa, além da figura redentora, a
idealização da idealização: uma musa idealizada que, para tornar a proposta o
mais imaginativa possível, foi inspirada em uma das mulheres mais misteriosas
com relação a sua real existência. “Beatrice apresenta um caráter pouco realista
em sua personalidade, o que sugere sua existência mais evidente na mente de
Dante do que fora dela” (DE SANCTIS apud FROÉS, 2015, p. 4). Salienta-se que a real
existência de Beatrice e sua identidade como filha do banqueiro Falco Portinari
nunca foram completamente comprovadas. Uma elucubração, portanto. Mesmo
em Vita Nuova, o mais próximo que temos de sua biografia, em momento algum
é citado o sobrenome Portinari. Ainda que se tratasse de Beatrice Portinari, a
paixão platônica fez o poeta atribuir qualidades e características que não haveria
como comprovar sem uma real convivência, o que se sabe através do relato do
poeta que não havia de fato.

Recepções da personagem Beatrice em Dulcineia

Um dos maiores debates referentes ao cânone literário é a dúvida do que


torna uma obra, de fato, “canônica” e quais os critérios utilizados para que
determinada criação receba essa alcunha. O valor estético indubitavelmente se
encontra entre os critérios, mas não basta. Nosso objetivo nesse momento não
consiste em encontrar uma resposta para o que é denominado cânone, mas
relacionar possíveis características às obras aqui analisadas e uma questão de
grande pertinência ao cânone é a questão da imortalidade da obra e autor: “o
legado é uma noção que deve ser observada a partir de um vínculo intenso com
a vida e a morte do homem, pois é a da impossibilidade de driblar a morte que o
sujeito, angustiado diante da sua construção individual (seja intelectual ou não), se
volta para o legado, ou seja, para a herança que garantirá a memória do seu nome

17
“Una metáfora del concepto aristotélico de Dios que surgió durante la edad media en forma del
amor cortés” (ATLEE, 1978, p. 1).
18
“Pues verá que todo redunda en aumento de su gloria y fama, pues cuanta yo he alcanzado,
alcanzo e alcanzaré por las armas en esta vida, toda me viene del favor que ella me da y de ser
yo suyo” (DQ I, cap. XXXI, p. 434).

18
após o fim da sua vida” (BERETTA, 2014, p. 108). A arte, em especial a literatura,
é o vínculo que liga o homem ao vislumbre da imortalidade. Uma pintura, um
poema ou um romance apresentam os reflexos dos anseios humanos, dentre eles
a aversão e o temor da ideia da morte, culminando na própria busca por um
legado, que resulta no cânone. Sabemos que Dante, Cervantes e suas respectivas
obras suprem o princípio da “imortalidade” literária, já que até os dias de hoje são
vastamente estudadas por vários âmbitos dos estudos humanísticos, sempre sob
uma nova perspectiva. Um dos subsídios para a sustentação dessa imortalidade
encontrar-se-ia no próprio diálogo textual entre as obras, e é aqui que passamos a
utilizar da literatura comparada como mais uma abordagem de estudo de A divina
comédia como possível inspiração em outro cânone da cultura ocidental, o Quixote.
Para amparar a proposta que apresentamos aqui de realizar uma aproximação
comparativa entre as personagens femininas presentes na Divina Comédia e em o
Quixote, utilizaremos os postulados teóricos da Literatura comparada a partir de
Remak (1994), que preconiza a literatura como o diálogo não apenas da literatura
com outras literaturas num nível supranacional ou internacional, mas também
da literatura com diferentes âmbitos sociais, conforme se lê em sua definição
para a “escola americana”:

A literatura comparada é o estudo da literatura além das fronteiras de


um país específico e o estudo das relações entre, por um lado, a literatura,
e, por outro, diferentes áreas do conhecimento e da crença, tais como
as artes (por exemplo, a pintura, a escultura, a arquitetura, a música), a
filosofia, a história, as ciências sociais (por exemplo, a política, a economia,
a sociologia), as ciências, a religião etc. Em suma, é a comparação de uma
literatura com outra ou outras e a comparação da literatura com outras
esferas da expressão humana (REMAK, 1994, p. 175).

De fato, A divina Comédia e o Quixote possuem entre si séculos e quilômetros


de diferença, tornando suas comparações um tanto quanto laboriosas e de
complexa visualização, mas ainda assim podem apresentar similaridades
amparadas pelos seus próprios contextos históricos e sociais. Dante viveu na
época de exaltação ao amor cortês e ao amor stilnuovista, recebendo ainda as
ressonâncias do século de ouro da literatura medieval que se refletem no Dolce
Stil Nuovo, assim como na sua própria obra e na figura de Beatrice com a adoração
à personagem feminina. Quando Cervantes tece sua crítica aos romances de
cavalaria em seu romance sátirico, o faz através de uma personagem que deseja
com tanta intensidade o retorno da “era de ouro” que chega a se fazer cavaleiro.
Dom Quixote não simplesmente se imagina um cavaleiro. Em sua mente ele o é
e, como cavaleiro, necessita daquilo que move o cavaleiro em sua jornada, logo
cria Dulcineia: isto é, o desejo de retornar a um cenário histórico e social próximo
a Dante o faz criar a sua própria “Beatrice”.
A influência da literatura “in lingua d’oil” na composição do Quixote se faz
presente de forma perceptível no decorrer de toda a narrativa, pois, para a criação
de uma personagem que possui uma bagagem tão ampla sobre a literatura de
cavalaria, Cervantes fez uso de um conhecimento quase enciclopédico sobre tais
obras. Não obstante, para a construção da personagem de Dulcineia, o autor foi
um pouco além do Trovadorismo Provençal, buscando inspiração possivelmente
nos autores italianos, principalmente os do Dolce Stil Nuovo, que prezavam pela
figura da musa como elo com o divino e com a elevação espiritual.

19
Dante finaliza seu primeiro livro, Vita Nuova, revelando que espera
homenagear Beatrice da forma que nenhuma mulher foi homenageada, um anúncio
predecessor da Divina Comédia. Sendo assim, o poeta já havia, ao final da escrita de
seu primeiro livro, decido escrever seu poema sacro de forma que a personagem
feminina não fosse apenas glorificada, mas que também através de quem a
sua jornada de redenção se tornasse possível. Em o Quixote, como mencionado
anteriormente, Alonso, quando decide sair em busca de suas aventuras, não o faz
sem antes criar uma donzela a quem destinar sua jornada e suas vitórias. Sem
essa donzela, é inconcebível um cavaleiro permitir-se sair em suas aventuras, pois
não seria movido por um propósito. A musa era algo essencial entre os cavaleiros
andantes, sendo assim, essencial para a personagem de dom Quixote.
Um ponto relevante de contato entre as obras está em uma das essências do
romance Dantesco e mesmo do Dolce Stil Nuovo: a questão do amor platônico,
um distanciamento velado entre o poeta e sua musa, mas que não teria tornado
impossível os breves contatos entre os amantes. Enquanto Beatriz era viva, Dante
nunca trocou com a moça mais do que cumprimentos, reverências e olhares,
chegando a sofrer terrivelmente quando a mesma, em um momento de ciúme, se
nega a cumprimentá-lo19. Já no capítulo XXV do Quixote, o protagonista afirma essa
relação velada de contatos com a sua senhora, já que em determinado momento,
sua loucura cavaleiresca lhe permite recordar dos encontros com sua musa, com
quem nunca trocara mais do que cumprimentos: “uma vez que meus amores e
os dela foram sempre platônicos, sem irem além de um honesto olhar”20 (DQ I,
cap. XXV, p. 335).
Essa premissa do distanciamento é motivada justamente pelo lugar de
exaltação que as suas respectivas damas ocupam, onde o físico e os sentimentos
carnais não se lhe devem alcançar. Essa característica de servidão do amor cortês
também pode marcar o início do amor espiritualizado pregado pelo Dolce Stil
Nuovo, no qual a adoração pela senhora não encontrava fim no “amar e receber”,
mas no “amar e purificar-se” através desse amor.
Há outro momento que nos leva a ver Dulcineia e Beatrice claramente
elevadas à condição sagrada. No início da Divina Comédia (Inf., II), Dante
encontra-se perdido em uma selva escura, cercado por três feras, sem chance
alguma de salvação, quando, em seu auxílio, surge Virgílio21. Em seguida,
descobrimos que este se encontra ali por intercessão de Beatrice, a qual, vendo
Dante em perigo e não podendo ir à terra para salvá-lo, vai ao encontro do poeta
romano e solicita sua interveniência:

“Sendo, entre os mais suspensos, eu ali


Uma senhora tão beata e bela
Chamou-me e que mandasse lhe pedi.
Luzia o seu olhar mais do que estrela;
E logo de dizer suave e lhana,
Na voz angelical que se revela:
‘Ó alma tão cortês e mantuana,

19
Vita Nuova, capítulo X.
20
“Porque, mis amores y los suyos han sido siempre platónicos, sin entenderse a más que a um
honesto mirar” (DQ I, cap. XXV, p. 335).
21
Poeta romano clássico muito admirado por Dante e autor de grandes obras como as Bucólicas
e Eneida.

20
De quem o mundo a fama inda perdura
E de durar quanto ele já se ufana
O amigo meu, que o não é da ventura,
Nessa praia deserta ei-lo impedido,
E atrás volveu e o medo o desfigura;
E eu temo já se encontre tão perdido,
Que tarde a socorrê-lo va levada,
Por quanto cá no céu já tenho ouvido!
Ergue-te, pois e com a palavra ornada
E o mais que o for mister a se salvar,
O ajuda, a fim de que eu seja consolada.
Eu sou Beatriz, ora a fazer-te andar;
Do lugar venho a que voltar pretendo,
E o amor me move, que me faz falar.’”
(Inf. Canto II)22.

A única forma de salvar o poeta e fazê-lo encontrar com sua amada é a


travessia pelos três reinos espirituais. Beatrice, nesse momento, assume o papel
de salvadora, mesmo não aparecendo, apenas sendo citada. É através dela que o
poeta inicia sua jornada e é a ela que ele tem como a santa que viria em seu auxílio
em casos de desventura, como uma intercessora, evidenciando a espiritualização
do amor e da elevação da mulher ao divino. Foi após a morte Beatrice que Dante,
escritor, entregou-se intensamente ao estudo da filosofia. O sofrimento pela morte
de sua amada novamente como a ponte que o liga a sapienza, simbolizando a
própria teologia.
Equitativamente, quando dom Quixote encontra-se no que aparenta ser
uma situação de perigo, seu primeiro impulso é clamar por sua intercessora:
Dulcineia. No final do capítulo VIII, na peleja contra os frades, antes de avançar
visando dar um golpe mortal nos criados com quem lutava, o cavaleiro evoca o
nome de sua musa como em uma oração, pedindo seu auxílio e socorro para que
em seu nome vença aquela batalha:

“Oh, senhora da minha alma, Dulcineia, flor da formosura! Socorrei


este vosso cavaleiro que, por satisfazer a vossa muita bondade, neste
rigoroso transe se acha!”23 (DQ I, cap. VIII, p. 126).

Pinilla (2014) relaciona Dulcineia com a “necessidade de Dom Quixote


se transformar em um cavaleiro para posteriormente ser um produto de fé.”
(PINILLA, 2014, p. 110). Como já foi dito anteriormente, Dulcineia é o que move
dom Quixote em sua jornada, transpondo-se, assim, na representação do conceito

22
“Io era tra color, che son sospesi, / E donna mi chiamò beata e bella, / Tal che di comandare io
la richiesi./ Lucevan gli occhi suoi più che la Stella: / E cominciommi a dir soave e piana, / Con
angelica voce, in sua favella: / ‘O anima cortese Mantovana, / Di cui la fama ancor nel mondo
dura, / E durerà quanto il mondo lontana:/ L’amico mio, e non della ventura, / Nella diserta
piaggia è impedito / Sì nel cammin, che volto è per paura; / E temo, che non sia già sì smarrito,/
Ch’io mi sia tardi al soccorso levata, / Per quel ch’io ho di lui nel Cielo udito. / Or muovi, e con la
tua parola ornata,/ E con ciò, che ha mestieri al suo campare,/ L’aiuta sì, ch’io ne sia consolata. /
Io son Beatrice, che ti faccio andare: / Vegno di loco, ove tornar disio: / Amor mi mosse, che mi fa
parlare.’.”(Inf, Canto II, tradução Vasco Graça Moura).
23
“Oh, señora de mi alma, Dulcineia, flor de la fermosura, socorred a este vuestro caballero, que
satisfacer a la vuestra mucha bondade em este riguroso trance se halla (DQ I, cap. VIII, p. 126).

21
aristotélico do amor de Deus: é através dela e por ela que o cavaleiro encontra
seu valor, assim como Beatrice (a teologia) abre o caminho de Dante e o move
em detrimento da sua elevação espiritual.
Em determinado momento, no capítulo XXXI, dom Quixote e Sancho estão
conversando, quando Sancho questiona as honras e vitórias que o cavaleiro insiste
em destinar a Dulcineia. Dom Quixote explica como é de grande honra, no estilo
da cavalaria, que uma dama tenha muitos cavaleiros a seu serviço, mas que os
pensamentos deste não devem ir além do prazer de servi-la por ser ela quem é,
sem a espera de recompensa ou premiação, apenas que ela os aceite como seus
servos. Em sua resposta, Sancho compara o sentimento e adoração do sentimento
de dom Quixote por Dulcineia, ao amor que deve ser direcionado ao Deus cristão:

Com essa maneira de amor – disse Sancho – ouvi prédicas que se deve
amar Nosso Senhor, por si só, sem esperança de glória nem temor de
pena, embora eu preferisse amá-lo e servi-lo pelo seu poder24 (DQ I, cap.
XXXI p. 435).

Sendo assim, é perceptível também aos demais personagens da obra a


elevação a que dom Quixote submete a figura de sua donzela em um dos pontos
mais relevantes do amor servil e beato: o aprazimento de servir sem expectar
gratificação. Na jornada de dom Quixote, ele acredita que isso é indispensável
para um cavaleiro ser considerado digno e, por tal motivo destina todas as suas
pelejas a sua senhora sem espera de pagamento algum. Dulcineia representa a
conceituação do amor a Deus, pois dom Quixote crê, tem fé, luta em seu nome sem
nunca tê-la sequer visto, comtemplando a já anteriormente citada definição de
Atlee (1978) sobre Dulcineia e o conceito aristotélico do amor de Deus. A jornada
por Dulcineia, que o move em sua trajetória, o dignifica como cavaleiro.
Para De Sanctis (1996), há uma divisão entre a figura de Beatrice antes e depois
de sua morte: “Nesse texto [Vita Nuova], Beatrice morre, mas será representada
em algumas obras posteriores do poeta como a luz espiritual, a unidade ideal, o
amor que une o intelecto e a ação, a ciência e a vida, e, ao subir ao céu, se torna
a bella face da Sapienza.” (SANCTIS apud FROÉS, p. 4). Anteriormente à morte de
Beatrice, em Vita Nuova, o amor do poeta segue os parâmetros do amor cristão,
cultuando sua graça, beleza, beatitude e gentileza. Após sua morte, o culto à
Beatrice desliga-se da realidade terrena. O poeta debruça-se sobre suas diligências
espirituais e poéticas, adentrando na alegórica “selva escura”. É então que se inicia
o papel redentor de Beatrice, instigando seu amadurecimento espiritual através de
sua jornada e, consequentemente, sua elevação a Deus. Para Frachiolla, a morte
de Beatrice é o mártir que Dante necessitava para sua salvação:

Assim como Jesus subiu ao céu para salvar não somente seus discípulos,
mas a humanidade inteira, sendo a ressurreição a promoção final de
sua carreira salvífica na terra (ver ROMANOS, 4:25; 10:9), na Vida Nova
Beatrice sobe ao céu para confirmar seu poder salvífico após a morte e
ganhar uma existência poética ‘concreta’ (FRACCHIOLLA, 2011, p. 14).

24
“Com esa manera de amor – dijo Sancho – he oído io predicar que se a de amar a Nuestro Señor,
por sí solo, sin que nos mueva esperanza de gloria o temor de pena, aunque io le querría amary
servir por lo que pudiese” (DQ I, cap. XXXI p. 435).

22
A transfiguração da personagem começa a se completar na Divina Comédia,
com seu surgimento na cena de intercessão e então no Canto XXX de Purgatório,
quando a personagem aparece fisicamente pela primeira vez, cercada de anjos
e vestida de vermelho, a “nobilíssima cor” para Dante.

“Assim dentro de nuvens só de flores


Que lá das mãos angélicas deriva
E sobre e cai por dentro e fora as cores
Sobre cândido véu cingindo oliva
Senhora me surgiu, em verde manto,
Vestida com a cor da chama viva”
(Purg. Canto XXX).25

A sua transcendência iniciada com sua morte em Vida Nova é concluída


apenas na Comédia. Em seguida, é ela que leva Dante a um momento de grande
relevância na jornada de purificação do poeta: o banho no rio Letes26, onde
apagará suas memórias e se despirá de todos os seus pecados para adentrar ao
Paraíso27. Embora esse canto seja vultoso para a dignificação de Dante, sua jornada
de redenção ainda não termina, sendo guiado por Beatrice durante grande parte
dos círculos do Paraíso, orientado, censurado e sanando todas as suas dúvidas
com a sua guia, motivo pela qual Beatrice configura-se como a razão de Deus.
No canto I de Paraíso, Dante já foi “transumanado” por Beatrice. Trasumanare,
segundo Chiavacci, “é ultrapassar a condição humana e não se pode traduzir em
palavras, mas dar uma ideia a quem um dia possa experimentá-la” (CHIAVACCI,
2009, p. 26 apud ROBIN, 2010, p. 64). Beatrice exerceu função crucial na elevação
de Dante. Sem ela, a Commedia seria inconcebível e Dante não teria por quem
percorrer sua peregrinação, tal como a amada que move o amante, tal como
Deus é o intelecto ativo da alma racional que mobiliza todas as demais emoções,
a mesma definição de Atlee (1978) para Dulcineia.
Nem mesmo no segundo volume do Quixote, quando há uma reviravolta
nas personalidades das personagens, sobretudo na de dom Quixote, que já não se
encontra tão “empolgado” com suas aventuras, sua devoção para com Dulcineia
não cessa, nem diminui sua credulidade com relação a sua criação. Dulcineia
ainda é quem o move e o sustenta em sua jornada, é a quem ele busca em seus
momentos derradeiros, como visto no capítulo XXII:

“Oh, senhora de minhas ações e movimentos, claríssima e sem-par


Dulcineia d’ El Toboso! Se é possível que cheguem a teus ouvidos as
preces rogativas deste teu venturoso amante, por tua inaudita beleza
ter rogo eu as escute, pois não são outras senão rogar-te que me não
negues teu favor e amparo agora que tanto dele hei mister. Eu me vou

25
“Cosí dentro uma nuvola di Fiori
Che da le mani angeliche saliva
E ricadeva in giú dentro e di fori,
Sovra candido vel cinta d’uliva
Donna m’apparve, sotto verde manto
Vestita de color de fiamma viva,”
(Purg. Canto XXX).
26
Rio onde as almas devem banhar-se antes de adentrar o reino do Paraíso.
27
Purg. Canto XXXI.

23
despenhar, encovar e afundar no abismo que aqui se me apresenta, só
porque o mundo conheça que, se tu me favoreces, não há impossível
que eu não acometa e acabe”28 (DQ II, cap. XXII p. 284).

Todas as aventuras e pelejas enfrentadas por dom Quixote são inspiradas em


Dulcineia, porque são destinadas a ela e, assim, a musa quixotesca se aproxima
da figura de uma Donna Angeli ao ser vista como um ser transcendido por seu
criador, uma mulher a quem se deve destinar um amor beatificado sem a espera
do retorno. “Dom Quixote só é capaz de mostrar o seu poder diante das batalhas
e aventuras, a partir da presença oculta de Dulcineia, que lhe orienta os passos,
fomenta sua força, anima seu espírito e reforça o princípio de sua existência
e de suas ações” (MELLO, 2010, p. 87), da mesma forma que é a força oculta (e
posteriormente física) de Beatrice que guia e orienta Dante em sua travessia,
renovando seu ânimo e espírito, conduzindo e inspirando suas ações e reforçando
o princípio da existência do poeta.

Considerações finais

A figura da mulher na literatura atravessa os mais diferenciados cenários


e contextos históricos ao longo da tradição das Ciências Humanas, sendo
reinterpretada de diferentes formas pelas mais diversas escolas literárias. No
Dolce Stil Nuovo, que procedeu ao Trovadorismo e Escola Siciliana, ela encontra
seu lugar na forma do elo entre o homem e Deus, sendo elevada a uma condição
sagrada. É na figura da mulher, transformada em um ser angelical, que se encontra
a ponte que liga o homem a Deus e seu conhecimento.
Dante, ao conceber a personagem de Beatrice como aquilo que o movimenta
em sua jornada redentora, transcende qualquer criação stilnuovista até então,
motivo pelo qual seu nome e o de Beatrice são tão relevantes para o movimento.
Os anos em que viveu já haviam passado um pouco da era de ouro da literatura
medieval (tão cobiçada por dom Quixote), mas ainda assim recebia a reverberação
do século XII, sobretudo na literatura, mais precisamente no amor servil e na
ideia de adoração e dignificação da mulher.
É, portanto, notória como a escola do Dolce Stil Nuovo e sua concepção
sobre a figura feminina influenciou na criação mais simbólica e importante
de Dante, o que, consequentemente, séculos mais tarde, refletiu-se na obra de
Cervantes. Mesmo que o objetivo de Cervantes tenha sido realizar uma sátira aos
romances de cavalaria, nada anula a validade de pensar que, para a concepção
da personagem de Dulcineia, o autor tenha se inspirado na escola poética que
mais elevou a condição da mulher ao sagrado e em Beatrice, a personagem mais
significativa de tal movimento. Dulcineia é uma criação de dom Quixote, em quem
a personagem acredita fielmente, que o move e a quem ele destina suas andanças
e vitórias, a figura salvífica e o amor platônico, muito do que Beatrice representou
para o seu poeta, algo que procuramos contextualizar e demonstrar ao decorrer
28
“Oh, senõra de mis acciones y movimentos, clarísima y syn par Dulcinea Del Toboso! Si es posible
que llegan a tus oídos las plegarias y rogaciones deste tu venturoso amante, por tu inaudita beleza
te ruego las escuches, que no son otras que rogarte no me niegues tu favor y amparo, ahora que
tanto le he menester. Yo voy a despeñame, a empozarme y a hudirme em el abismo que aqui se
me representa, sólo porque conozca el mundo que si tú me favoreces no habrá imposible a quien
yo no acomenta y acabe” (DQ II, cap. XXII p. 483).

24
da pesquisa. Buscamos também, através de nossa abordagem, ressaltar como a
literatura comparada age sobre os cânones de tão diferentes épocas e cenários
sociais esclarecendo de que forma houve essa comunicação entre os textos e como
a literatura nasce da literatura.

Referências

ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Introdução, tradução, e notas de Vasco Graça


Moura. Edição bilíngue Italiano/Português. São Paulo: Editora Lamark, 2005.

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Editores, Lisboa, 1993.

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26
Passagens da geopoesia:
etnoflâneries centroestinas pelas ruas de Goiás

Augusto R. Silva Junior


A geopoesia é um modo de perscrutar possibilidades para a revitalização
da condição humana. Em um centro-periférico, não muito diverso de um mundo
sem afetos, mas dotado de forças narradoras que lutam contra a uniformidade,
com a mais latente experiência das intimidades, instaura-se esse pensamento do
deslocamento. Agrega-se a isso o estudo das palavras altiplanas que nos leva a
escrever sobre mapas imaginários e paisagens a serem rompidas por etnoflâneurs
e anotadores, andantes e viajantes – autores.
Com isso, traduz-se uma revisão do sentido da palavra-ideia sertão, no plano
cultural e cotidiano, no âmbito geográfico e político. Há sertões e há veredas que se
manifestam na ideia de movimentação dos grandes fluxos humanos. Da imagem
das transferências das capitais, Bahia, Rio de Janeiro e Brasília evocamos uma
confluência de localidades, facilmente encontráveis num conjunto de estados
atuais: Goiás, Minas Gerais, Bahia, Tocantins – e o Distrito Federal em sua mais
recente condição histórica de “zona de influência” (socioeconômica). A literatura
de campo, assim, irrompe como uma condição literária capaz de contar a história
dessa literatura que existe e não existe.
Partindo desse ponto cultural cerratense constitui-se uma busca pela
etnoflânerie num espaço, na história, nas palavras e nas passagens. Se para Walter
Benjamin as exposições universais foram “lugares de peregrinação ao fetiche
mercadoria” (2018, p. 59) e inauguraram “uma fantasmagoria a que o homem”
se entregava à diversão (2018, p. 60), as migrações capitais, por brasis liminares,
são territorialidades que geram lugares de peregrinação à condição humana. As
fundações dessas localidades em sua mais latente forma de enfronteiramento
inauguraram presentificações a que o ser humano se entregava para rexistir.
O primeiro ponto a ser entendido neste caso é que ao não separarmos
o exercício crítico do fazer literário ambos confluem no movimento da
etnoflanagem. Alguns modelos dessas andanças, apenas no século XX, foram
Euclides da Cunha e Mário de Andrade, Guimarães Rosa e Antonio Candido,
José Godoy Garcia e Willi Bolle. Pensadores que consolidaram o entendimento
de várias formas de vocalidades, diferentes materialidades e que captaram, na
experiência, corporalidades e passagens. Buscando na literatura de campo o mapa
desse literário, em extensas terceiras margens simbólicas, passagens dialógicas
movimentam uma produção artística demigrante que segue na travessia artística
e pensamental.
Esse extremo de dentro movimenta índices e expressões e aproximam
esteticamente os imaginários marítimos (colonizadores) e do sem-mar (cerrados),
sonhos ultramarinos e desejos sertanejos, encontros luso-católico-escravistas
e afro-brasileiro-escravizados, desencontros jesuítico-bélicos e indígena-
holocáusticos e, claro, movimentos amazônico-amazônidas entre pairagens de
selvas-cerradeiras. Uma imensa tradição de escritores peregrinaram por varedas e
niemares para comporem suas obras formando um grande tabuleiro de localidades
e variedades literárias. Nesse sentido, parafraseando a máxima de Antonio Vieira,
trabalhamos com aqueles que “saíram para escrever” em detrimento daqueles
que “escreveram sem sair”.
Para entender a origem desse pensamento, enquanto uma teoria da literatura
brasileira, é importante remontar a um editorial de periódico acadêmico – Revista
Cerrados – do Programa de Pós-Graduação em Literatura, UnB, v. 35, 2013. De modo
muito didático, buscando síntese dialógica, o introito se coloca numa abstração
sistêmica de ideias e territorialidades metaforicamente articuladas:

28
Entrar num texto como quem entra num terreiro, numa capela, numa
roda. Esta é a ideia primeva da literatura de campo: peregrinar e
voltar para contar. Com isto, esta literatura, em campos plurais, com
sua amplitude de temas e de significados, presenta-se e dissemina-se
no âmbito da transdisciplinaridade. Esta vertente, instaurada numa
dialógica da colonização, conjuga-se, neste novo milênio, com os estudos
da cultura popular, da oralidade e da performance. Esta base integra
o pilar de uma dinâmica intelectual que reverbera na prática de um
pensamento por escrito. (...) De modo muito geral a Literatura de Campo
é composta por vários autores: Padre Anchieta, Padre Vieira, Tomás
António Gonzaga, Euclydes da Cunha, Hugo de Carvalho Ramos, Mário
de Andrade, Erico Verissimo, José Godoy Garcia, Hermilo Borba Filho,
Guimarães Rosa, Darcy Ribeiro, Ariano Suassuna, Milton Hatoum, dentre
outros. Todos autores citados peregrinaram pelo país em busca da língua
certa do povo, da língua errada do povo, para macaqueá-la, estilizá-la,
imprimi-la (SILVA JR, 2013, p. 7-8).

Diante dos movimentos apresentados, encontramos matéria suficiente para


a discussão de aspectos conceituais importantes para o “lugar da travessia”.
Pensamento de uma poesia andante – de narradores demigrantes e vocalidades
liricizadas – que nos levam a arrazoar algumas facetas da busca cerratense pelos
rios do povo, em diálogo com o elemento teórico das passagens benjaminianas. Ao
tratarmos das relações entre a obra de arte e seu mundo próprio, sendo espelho
do mundo, sendo parte do mundo, precisamos buscar a voz do professor Antonio
Candido que nos leva a pensar a condição desse belo do fazer (artístico) que reflete
fenômenos de seu lugar histórico.
Principalmente para aqueles que vão a campo para escrever e comungar,
encontrando vazão intensa e intensiva no exercício de humanização da palavra.
Entre os mais empoeirados gabinetes e bibliotecas cheias de ácaros, diante de
redemunhos de terra vermelha e festejos entre vãos e pula-pulas o etnoflâneur
enseja o mesmo processo encontrado naqueles críticos literários que realizaram
Literatura de Campo – a exemplo de Candido:

A literatura aparece claramente como manifestação universal de todos


os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que
possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato
com alguma espécie de fabulação (...). E durante a vigília a criação
ficcional ou poética, que é a mola da literatura em todos os seus níveis
e modalidades, está presente em cada um de nós, analfabeto ou erudito,
como anedota, causo, história em quadrinhos, noticiário policial, canção
popular, moda de viola, samba carnavalesco (...). Ora, se ninguém pode
passar vinte e quatro horas sem mergulhar no universo da ficção e da
poesia, a literatura concebida no sentido amplo a que me referi parece
corresponder a uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita e
cuja satisfação constitui um direito (CANDIDO, 2004, p. 174-75).

Se pensarmos com Antonio Candido, em O discurso e a cidade, temos dois


tipos de posturas literárias: autores que partem da realidade para retratá-la e
aqueles que optam pela fantasia para fazer suas obras, ainda assim, realistas.
Nesse conluio dialético é que a geopoesia alimenta-se de livros e de vozes –
aproximando vertentes em narradores que vão da estilização escrita aos trejeitos

29
dos contadores de causos e raizeiros. Compactuando, na vigília, com o postulado
do sociólogo Antonio Candido, de que a literatura constitui bem imaterial de
necessidade comum, lançamos mão desta necessidade universal, seja na rua
ou na fazenda, nos sertões ou nas veredas. Enquanto material de pesquisa, a
fim de viabilizar seu provimento para as comunidades de um centro-periférico,
historicamente privado deste direito enquanto reconhecimento e circulação, é
que a literatura de campo constitui-se.
Dos demorados diálogos entre foliões e performances culturais, das variantes
populares aos antepassados que a cada manifestação demigram caminhamos
pelas “passagens” que nos levam ao labirinto da etnoflânerie:

Saber orientar-se numa cidade não significa muito. No entanto, perder-se


numa cidade como alguém se perde numa floresta, requer instrução. [...]
Essa arte aprendi tardiamente; ela tornou real o sonho cujos labirintos
nos mata-borrões de meus cadernos foram os primeiros vestígios. Não,
não os primeiros, pois houve antes um labirinto que sobrevive a eles
(BENJAMIN, 2011, p. 75).

Dosando o retratar da vida como ela realmente seria, e partindo de um


universo “absurdo”, traduziu-se de forma muito mais profunda as contingências
de cada época. Do labirinto antes, sentido, ao labirinto dos cadernos, a sensação
de deixar-se perder evoca o homem das multidões e o indivíduo nas florestas.
Estas, por sua vez, aparecem sempre filtradas pelo mata-borrão da memória
– instaurando, com as realidades conexões indispensáveis para construir a
inteligibilidade e a verossimilhança da geopoesia: “Sob forma de poeira, a
chuva consegue vingar-se das passagens” (BENJAMIN, 2018, p. 197). Entre
comportamentos e imagens envoltas em um halo irreal, os elementos vagam
livremente em paragens tão indefinidas e tão capazes de transmitir um sentimento
profundo da vida. Tributários dessa coerência interna a tradição dos etnoflâneurs
articulou na mesma organização poética marcas realistas e não realistas,
reordenando-as pela fatura difusa que nos leva à geopoesia.
Apresentam um itinerário do literário às voltas de uma certa compreensão do
espetáculo material e espiritual da máquina do mundo. Encontramos na geopoesia
um conjunto de traços para a composição de colchas de retalhos. A geopoesia é
exatamente isso: um conjunto de pedaços de tecidos, partes de vestes, restos de
panos, trapos de objetos-tecidos, memórias de rostos, cheiros de fumaças que exalam
cores, sentimentos do mundo que foram deixados, colhidos, colecionados, guardados.
Importa sentir que uma colcha de retalhos é feita exatamente dessas sobras.
Do encontro entre Walter Benjamin e Guimarães Rosa, confluentes no
trabalho de Willi Bolle, vislumbramos uma desembocadura teórico-criativa:

Extremo, no sentido geográfico: lugar nos ermos e, paradoxalmente,


centro geográfico do País; extremo, no sentido existencial: é o lugar
onde o ser humano é posto à prova, o lugar emblemático da travessia;
extremo, no sentido simbólico, na medida em que representa os limites
do conhecimento (BOLLE, 1998, p. 261).

Neste sentido, as ideias de flânerie e de etnoflânerie coadunam e a diegese


do pensamento de Walter Benjamin convida à reflexão. Subjacente aos conceitos
muito discutidos (mas não esgotados) como experiência, vivência, fantasmagoria

30
e aura, o espaço se impunha como elemento sensível nas interpretações
benjaminianas. Tendo em mente a pergunta motriz – o que mudou na forma
do homem sentir e dar sentido ao mundo com o advento da reprodutibilidade
técnica? –, nos esforçamos em tirar das entrelinhas aquilo que entendemos como
geopoesia e seu intercurso com a etnoflânerie. Passando por brasis liminares –
numa contínua era da reprodutibilidade humana – esse conluio não se afasta
das coisas do mundo visto, nem das pessoas que as veem. Valores, sentimentos
e estilos configuram os modos de ver e de agir (poiesis) e criam uma realidade a
partir da impressão sensível – sentidos (em significação) e sentidos (na sensação).
Esse mundo que faz parte do mundo e é o próprio mundo sofreu alterações
consubstanciais nas mais diversas modernidades, como constatou Benjamin:

talvez a visão diária de uma multidão em movimento representasse,


alguma vez, um espetáculo ao qual os olhos devessem primeiro se
adaptar. Se admitíssemos essa hipótese, então não seria impossível
supor que aos olhos teriam sido bem vindas oportunidades de, uma
vez dominada a tarefa, ratificarem a posse de suas novas faculdades
(BENJAMIN, 1989, p. 123).

Paralela e indissociável a essa reflexão, a definição de flânerie e sua


aproximação e distinção da poesia moderna se colocaram como condição para
a etnoflânerie. Se o flâneur existiu e desapareceu ao longo do século XIX é certo
que ele se reinventou nas crônicas de João do Rio e na abordagem do humano
realizada pelo próprio Benjamin. Se a figura, antes estava ligada ao ócio e às
andanças (flanagens), na etnoflânerie encontramos o artefato literário-etnográfico
como cerne de sua existência. Os tempos da relação com as paisagens geram as
“passagens anotadas”, de um “novo método historiográfico” entrelaçado ao “saber
historiográfico”, como coloca Bolle (2018, p. 1707).
Se os estudos de Benjamin podem significar profundamente na análise das
metrópoles da América Latina, ainda é possível pensar passagens de/por brasis
liminares ao aproximá-lo de narradores e etnoflanêurs da literatura de campo. À
medida em que se aprofunda nas “passagens” benjaminianas o olhar do poeta
aparece muito oscilante diante do olhar do flâneur. Em outras passagens, essas
duas figuras sobrepõem-se, constituindo, assim, um terceiro olhar... A pergunta
latente nesse percurso é: que modos de olhar são cambiados quando o etnoflâneur
anda por locais recônditos, buscando, em vazios demográficos e novas paisagens
humanas, aquilo que se configura como material e matéria de poesia.
A situação de tais problemas é bem diferente na Europa e no Brasil. Mas, da
constituição de narradores orais e seus gestos de alumbramento, do “painel com
milhares de lâmpadas” à “lâmpada sobre o alqueire” a geopoesia ilumina-se. Uma
vez que Benjamin reconheceu na multidão um dos aspectos fundamentais da
modernidade, que condição humana instaura-se nas largas escalas de terra diante
do escritor que demigra para fazer literatura de campo. Para o qual a condição
moderna independe de paradigmas consolidados e para o qual os intelectuais
prezam a renovação pensamental. Colhendo informações como etnógrafos,
flanando como catadores de linguagens, desbravando corporalidades e rompendo
liminaridades, o escritor da geopeosia encontra na dissolução de ritmos modos de
estar na paisagem. Na communitas, gerada pelo encontro com o outro, os tempos
de fala e de silêncio, nas relações liminares que só o campo e suas profusões

31
culturais oferecem a etnoflânerie realiza uma espécie de “colportagem do espaço
não urbano” numa memória de escrita que é, ao menos, citadina – posto que
letrada. Essa discussão se deu em vários níveis, por exemplo, numa escrita de
Hugo de Carvalho Ramos e Guimarães Rosa, José Godoy Garcia e Manoel de Barros.
Na modernidade, os olhos já não seriam mais “janelas da alma”, “espelhos do
mundo”. Então, o escritor brasileiro busca uma nova potencialidade e parte para
o campo. O poeta agredido pelo brilho da luz elétrica (BENJAMIN, 1989, p. 48),
que vê sua originalidade submetida à uniformidade da vida urbana (BENJAMIN,
1989, p. 48) e abandonado à multidão (BENJAMIN, 1989, p. 51) monta seu cavalo
andante, pega sua caderneta e busca passagens nos mais diversos brasis liminares.
Se o poeta francês, ser dotado de cabedal financeiro, com tempo dedicado ao ócio,
praticava a flânerie e refugiava-se no tumulto que cegava e que, paradoxalmente,
revelava, o etnoflâneur, por sua vez, segue para o campo para entender antigas e
novas formas de trabalho. Ao deixar sua realidade para compor suas narrativas, na
palavra do outro, entre o enunciável e o estilizável, reside a matéria da geopoesia:
livros todos feitos de ignoranças e revelanças.
Para pensar essas ignorâncias e revelações é necessário evocar Cora Coralina.
No palco do interior nacional, convidamos à cena uma artista e intelectual que
se consolidou com um pensamento ativo e responsivo ao outro, às alteridades
múltiplas incessantemente despontadas dos povos cerradeiros e sertanejos. No
diálogo com uma poética popular do cerrado (SILVA JUNIOR; MEDEIROS, 2018)
engendra-se poéticas do enfronteiramento. Em um conjunto plural e linguístico,
que reverbera em raízes e rizomas dos brasis liminares, um sertão-cerrado
presenta-se. De um país de culturas que se espraia por veredas, vales, vãos,
planaltos, altiplanos, rios, quilombos, aldeias indígenas e espaços de resistência,
tais como assentamentos, uma conjuntura é coadunada pela crítica polifônica.
Arranjam-se vozes de poetas, como os goianos/mineiros/brasiliários José Godoy
Garcia, Anderson Braga Horta e Cassiano Nunes; confluem prosadores das gentes
e tropas migrantes, a exemplo de Hugo de Carvalho Ramos e Bernardo Élis;
reverberam jaguncismos e retirantes de uma memória que passa por Graciliano
Ramos, Hermilo Borba Filho e Guimarães Rosa. Se buscarmos os palcos e telas
de cinema inda afloram dramaturgos e cineastas que fazem do Planalto Central
espaço para a geopoesia teatral e cinêmica: Dulcina de Moraes, Geraldo Lima, Hugo
Zorzetti e Vladimir Carvalho, dentre outros vão recriando diálogos centroestinos.
Além de cantores e versistas populares de nomes apagados pela histografia,
cujas obras perpetuam-se nas entoações das festas populares de santos, estações
e ações. Fazeres em verso, prosa, teatro, performance e canção que conferem
vitalidade à expressão popular consciente de um Brasil ainda deveras inconsciente
das vozes de seu centro-cerrado e que as propostas de trabalho certamente
abarcarão e revelarão. Conforme adverte Maria Zaira Turchi, esse literário não
aceita uma delimitação precisa de fronteiras. É do movimento oscilatório que
configura-se a linguagem literária. Deste modo, em diversos níveis a linguagem
é embebida de uma capacidade em que o literário apresenta-se universalizado a
partir de pequenos índices da cultura, que aparecem prodigiosamente no arranjo
dos diversos recursos literários e artísticos (TURCHI, 2003, p. 95).
Nesta perspectiva, apresentamos o poema-necrológio “Quem foi ela?”, de
Cora Coralina (1965). Percorremos ruas e becos da Cidade de Goiás. Essa cidade,
que precisou encarnar-se barroca ao deixar de ser a capital do imenso estado de
Goiás foi denominada Vila Boa (e fundada em 1826). Na geopoesia de Coralina

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uma poética profunda ressalta-se na movimentação de vozes femininas ecoando
em movimentações de forças biográficas – ao contrário da historiografia tão
calcada nos desbravadores, bandeirantes, “anhangueras” e outras variantes
de seres hegemônicos.
Esse poema-necrológio articula uma poética coralina com a imagem de
Idalina da Cruz Marques e seu importante papel social na cidade. Ao mesmo tempo
conjuga o destino de uma Professora Terezinha Vieira Maia que empenhou-se no
arquivamento desse poema por mais de cinquenta anos. Retirado de um jornal
de circulação em Goiânia, nos idos de 1965 – tendo a fonte ainda não identificada
por nós, nesse longo poema encontramos toda a extensão de destinos goianos.
Numa pedaço de folha de periódico temos o encontro entre a “rua da ponte”, onde
viveu Cora Coralina e a “rua do fogo” onde viveram Idalina Marques e Terezinha
Vieira Maia – nascida no 09 (SILVA JUNIOR, 2012, p. 209).
Além do próprio material impresso (em jornal) congrega-se o relato vivo
(memória oral) de Terezinha Vieira Maia que faculta detalhes encarnados da
figura da biografada e da poeta biografizante. Num exercício de geopoesia
nossa perspectiva busca renovar o conceito geral de Literatura de Campo que se
transforma com a etnoflânerie. Da sabedoria enformada pelos fusos discursivos,
pelas tramas formais e pelas linhas sociais que presentam experiências de uma
geopoesia coralina, nossa colcha de retalhos poética entrama-se:

Quem foi ela?


Toda a cidade a conhecia sem precisar do seu nome.
Sua porta da rua e sua porta do meio se abriam pela manhã e ficavam
de pedra encostada até as horas tardias do sono.
(...)
Gente grande, gente pequena, da cidade e das roças.
Gente recursada e gente pobrezinha, procurando ali suas migalhas.
Gente que saiu de Goiás, que passou a vida inteira noutras terras e que volta
um dia a rever parentes, matar saudades.
Um rosário todo de recordações, de novas e velhas amizades e
bem-querer
(CORALINA, 1965; em todas as citações do poema será mantida a grafia
original).

Na sustentabilidade da leveza de ser Idalina, também conhecida como


“Vodinha” era uma “fonte segura das informações das velhas coisas,/ pessoas
e costumes da cidade que vão se desgastando/ com a passagem do tempo”
(CORALINA, 1965). Percorrendo grupos anônimos, colhendo expressões nas ruas e
nos becos de Goiás, Cora Coralina realiza a etnoflânerie. Como se seguisse Vodinha
pela Rua da ponte e outros becos da Cidade de Goiás, e assim, vai revelando os
tipos, as relações humanas, a miséria material das paragens de um barroco pobre.
A pergunta que dá título ao poema-necrológio repetida ao longo do poema
evoca esse não precisar saber o nome, posto que a presença da pessoa em casa,
de porta aberta, na igreja, cuidando dos detalhes, nas ruas, entre maiores e
menores fez dela essa figura tão cuidada e tão cuidadosa. É dessa onipresença
na territorialidade que Cora Coralina maneja diversos personagens sem nome
diante dessa pessoa “explicada”.
Poesia plena de cotidiano, o discurso da “Boa Morte”, dissemina-se numa
tripla articulação polifônica do espaço, do momento e do memento:

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Morta... Morta parece ainda maior do que viva.
Morta parece ainda mais sábia do que o foi em vida porque penetrou
no grande e solene sentido da morte.
Tôda a sabedoria da vida que constituio seu maior cabedal ao longo dos
anos aliou se agora ao profundo e insondável da morte.
“A lâmpada sobre o alqueire”...
(CORALINA, 1965).

Momento do trespasse, memento poético e lugar identificável – a Igreja da


Boa Morte, que era “cuidada” por essa mulher conjugam uma memória viva e o
enterro celebrado numa escrita de morte. A tanatografia, em geopoesia, compõe
um retrato tão específico em paisagens tão plurais. A pergunta “Quem foi ela”
liga-se à uma segunda repetição: A lâmpada sobre o alqueire”. Essa variação das
repetições entoam o tom fúnebre do poema-necrológio, mas estruturam também
a geopoesia coralina que emana-se dialogicamente do diálogo bíblico ao tratar da
biografia de uma mulher que foi capaz de “trazer acesa a lâmpada de uma igreja
durante 50 anos...” O desfecho do poema pode representar bem essa sensação do
movimento e presença feminina na cidade de Goiás:

Na pedra do seu túmulo uma palavra pode ser gravada


definindo sua vida – Fidelidade.
(...)
Fidelidade – foi a marca de sua vida devotada a igreja.
Quem foi ela?
(CORALINA, 1965; grifos da autora).

Da Igreja da Boa Morte, situada na praça do coreto, passando por sua casinha
na rua do rua do fogo até a rua da ponte – de onde Cora Coralina compunha seus
versos de alfenim e puxa encontramos uma topografia memorialística da antiga
(e tão presente) capital goiana.
A geopoesia então, desponta como essa fonte segura das velhas coisas –
que de tão longe vem ecoando, das pessoas – que de tão longe foram migrando,
e dos costumes que de tão humanos vão se poetizando. Se a vida se desgasta
na passagem do tempo, por sua vez, nas passagens da poesia ela se encorpa,
faz-se verbo, unge-se de comunhão, mas de uma comunhão do feminino. Esse
mesmo feminino foi composto por Niemar. O poeta, neto da cidade, compôs um
conjunto de poemas da etnoflânerie. E, embora a geopoesia seja localizável nas
mais diversas manifestações trazidas nesse ensaio, seu livro intitulado Poemas da
rua do fogo inaugura, de modo autoconsciente e programático, essa vertente no
século XXI. Esse encontro de femininos no poema de Cora Coralina não é trazido
aqui ao acaso. Todo o percurso desse livro, cujo título é uma franca alusão ao
livro de 1977 de Cora, Poemas da rua da ponte e outros becos de Goiás assim é
interpretado pela filósofa Helena Nogueira:

Poemas da rua do fogo apresenta um poeta abraçado nas avós, tias


avós, vodinhas e outras que elas contaram. Mulheres fortes. A Cidade
de Goiás também surge avó. Avós de pedra de onde brotam as delicadas
caliandras! Ler esse livro é banhar no rio da Carioca, entrar nas casas
barrocas, enxergar através das janelas o olhar dessas mulheres... Depois
de caminhar pelos poemas e ruas do fogo, rebucei os meus pés e os do

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poeta – que escreve com eles... Andei pelos becos de Vila Boa catando
sombras. Vi com meus olhos a força da procissão e o medo inocente da
fúria injusta! Saibam, leitoras e leitores, que, ao abrirem esse livro, terão
seus sentimentos expostos – sentimentos do mundo que o poeta parece
conhecer mais do que nós mesmos! (NOGUEIRA, 2019, s.p.).

Poemas da rua da ponte também escolhe personagens de genealogias que


atravessam séculos. O livro, feito artesanalmente, é costurado pela geopoesia de
Coralina. O pseudônimo da poeta goiana ganha cargas semânticas que adjetivam
e definem, mais especificamente, uma memória de fez literário pela antiga capital
de Goiás – Vila Boa. Mas, como coloca Nogueira (2019), Niemar entende a cidade a
partir desse feminino que está disseminado pelas ruas, pelas casas, pelas procissões.
Ao mesmo tempo, pelo cruzamento de biografias, de bibliografia (guardada),
necrológio e buscas da geopoesia no literário é que o livro vai se compondo. Nos
“Poemas da rua da ponte”, por exemplo, saindo desse título encontramos: “e que
tudo que implique/ devaneio, core, corra/ rio vermelho que cursa”; (...) que tudo
que core implique/ saber e memoraria, demoras”; até a última estrofe que define a
força “coralinificada” dessa poética: (...) do rio vermelho/ que corre nos corpos tão/
coralinos e tudo cora:/ a terra a tarde e as laranja das hora (NIEMAR, 2019, p. 08-09).
Neste livro, porém Cora Coralina torna-se, como Idalina da Cruz Marques
personagem da geopoesia. O encontro com o poema (quase) inédito “Quem foi
Ela”, tendo sido apenas recitado no túmulo de Vodinha e saído apenas numa
página de jornal de 1965 é totalmente redescoberto:

QUEM FOI ELA

rua do carmo, n. 22
quem foi ela? quem foi aquela mulher?
tantos batizou, tantos batizara
tantos criou, tantos criara
mulher mãe e madrinha: vodinha

cuidava da igreja da boa morte e das almas


cuidava do espírito santo e dos corpos
com água benta, comida paraquemviesse
pão, água fresca e café coado na hora

na sua pobreza não faltava nada


quem foi ela? foi vodinha...
pergunte à cora, ou à vó terezinha
vodinha – avó e madrinha
(NIEMAR, 2019, p. 41).

São latentes a sabedoria e o encontro nesses versos. A localidade leva o leitor


a mais uma das ruas do livro-cidade. Nela se dá o encontro a poeta, tão conhecida,
a mulher que cuidou da igreja da Boa Morte por mais de cinquenta anos e a
professora (vó Terezinha – as letras minúsculas são marcas da poética de Niemar)
que guardou um poema (quase) enterrado na condição de necrológio e “notícia
de jornal”. Nesse encontro fica exposto o ponto de maturidade da geopoesia.
A consciência de um real que se institui na literatura de campo de um centro-
periférico é novamente visitada por um etnoflâneur. As mulheres, suas ações e

35
marcas deixadas no mundo, são adequadas para essa revelação. São imagens
também adequadas para o final desse ensaio. Imagens que apresentam, justamente,
o processo de constituição de uma poesia por brasis liminares. Liminaridade e
enfronteiramento daqueles que vislumbram e vislumbraram a consciência de uma
existência social e espiritual através de passagens, vocalidades e feminilidades.

Referências

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36
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37
Euclides da Cunha e suas metáforas amazônicas

Carlos Antônio Magalhães Guedelha


Iná Isabel de Almeida Rafael

38
Euclides da Cunha na Amazônia

Por volta de 1904, o clima dominante da política externa brasileira girava


em torno de questões diplomáticas na Amazônia, envolvendo acirrados conflitos
de fronteira entre o Brasil, a Bolívia e o Peru. Os conflitos com a Bolívia diziam
respeito à posse da região que hoje é o Estado do Acre. Sendo um território
boliviano, o Acre se encontrava ocupado por um grande contingente de brasileiros
– nordestinos que haviam migrado e continuavam migrando para a Amazônia a
fim de fugir da seca avassaladora do sertão.
O conflito contava com lances paralelos na região e na capital federal. Na
região, os enfrentamentos da luta armada entre brasileiros e acreanos ou entre
brasileiros e peruanos; na capital federal, as intrincadas batalhas diplomáticas
com o Peru e a Bolívia, tendo à frente, pelo Brasil, o Barão do Rio Branco, tido
como um grande negociador cuja capacidade de dialogar teria evitado conflitos
de proporções mais sérias entre os países em litígio (RABELLO, 1966). Euclides
teve sua atenção despertada para esse quadro e decidiu participar do debate.
E participou ativamente, escrevendo cinco artigos para o Estado de São Paulo,
tratando da questão por diferentes ângulos.
A situação conflituosa na Amazônia exigia medidas urgentes da
diplomacia brasileira. As fronteiras mal dimensionadas precisavam ser fixadas
definitivamente. Para proceder ao reconhecimento dos limites, foram criadas
duas comissões, uma do Juruá e outra do Purus. O Barão do Rio Branco nomeou
Euclides como chefe da comissão de reconhecimento do alto Purus. Como se
tratava de uma comissão mista, a chefia deveria ser dividida com Pedro Buenaño,
o representante do Peru. Euclides partiu para a missão, chegando a Manaus em
30 de dezembro de 1904. Teve que enfrentar uma exaustiva espera de mais de
três meses na capital amazonense, até que finalmente, em 5 de abril de 1905, a
comissão mista Brasil-Peru iniciou sua viagem de Manaus às cabeceiras do rio
Purus, chegando em 14 de agosto. Em outubro, a comissão regressaria a Manaus,
concluindo os trabalhos em 16 de dezembro.
O interesse de Euclides pela Amazônia vinha principalmente de suas leituras
a respeito da região, sobre a qual já havia inclusive escrito artigos no jornal. Quais
as razões para esse interesse em viajar para paragens tão distantes? Possivelmente
resolver seu problema de engenheiro desempregado, saciar a vontade de fugir
dos problemas que o atormentavam na cidade grande e dar vazão ao fascínio
que sentia pela região. Uma soma disso tudo, talvez. Depois da sua nomeação
para a viagem, em confissão a amigos (Oliveira Lima e José Veríssimo, por
exemplo), esclarecia com todas as letras que seu objetivo era “estudar a região
e o povoamento que ali se faz, para outra obra que, à semelhança de Os Sertões,
revele ao Brasil mais um pedaço de si mesmo” (MOTA, 2003, p. 159).
Ainda relativamente jovem, e motivado pelo êxito incomparável de Os
Sertões, Euclides sentia que precisava superar um novo desafio, o de não ficar
marcado para a posteridade como autor de um só livro, daqueles que brilharam
intensamente, mas o seu brilho sendo resultado de um lapso apenas momentâneo,
episódico, de talento e genialidade, quase ao acaso. Euclides não queria ter esse
estigma pesando sobre si, associado ao seu nome. E sabia que ali estava a sua
segunda grande oportunidade de produzir uma obra de grande significado. A
primeira fora quando da sua ida a Canudos, de onde resultou Os Sertões.

39
Mota (2003, p. 164) comenta que

Da observação atenta e prolongada da geografia, do clima, das condições


de vida na Amazônia e da situação social de seus habitantes Euclides
projetava escrever - mesmo antes de partir para Manaus – um novo
livro, para o qual chegou a escolher o título de “Um Paraíso Perdido”.
Após a sua longa viagem pela Amazônia, o desejo transformou-se para
ele, como no caso de Canudos e de Os Sertões, numa obrigação moral.

Por que obrigação moral? Assim como acontecera no seu regresso de Canudos,
Euclides retornou da Amazônia desolado e revoltado com o que testemunhara:
populações relegadas ao abandono, vivendo em condições subumanas, na mais
absoluta miséria. Viu os seringueiros sendo explorados pelos seringalistas arrivistas,
submetidos a um regime de escravidão no meio da floresta, um lugar longínquo
demais onde a justiça não conseguia ou não tinha interesse em chegar. E assim como
fizera em Canudos, prometeu a si mesmo escrever um “segundo livro vingador”,
para trazer à luz aquele mundo estúpido que o Brasil desconhecia e “reclamar do
governo medidas em favor dos sertanejos que, transformados em seringueiros,
garantiam para o Brasil a posse de regiões riquíssimas, e ao mesmo tempo eram
relegados a mais extrema miséria e a mais cruel exploração” (MOTA, 2003, p. 164).
Mas o projeto da construção do segundo livro vingador não se realizaria. Nas
palavras de Mota (2003, p. 164), “seus afazeres, sua precária situação financeira
– que o obrigava a trabalhar sem folga para o sustento da família – sua vida
atormentada e sua morte prematura iriam impedi-lo de concretizar esse projeto”.
O que restou de sua intenção foi uma série de artigos, que seriam os primeiros
traços do esboço do livro, reunidos com o título À margem da história, uma
coletânea publicada em 1909. Esses escritos, no entendimento de Mota (2003, p.
164), “são suficientes para se ter uma ideia do plano grandioso de Euclides, da sua
veemente defesa do seringueiro. [...] Vê-se por esse esboço de livro que Euclides era
cada vez mais um sociólogo e escritor político do que propriamente um literato.”
Regressando ao Rio de Janeiro em fevereiro de 1906, Euclides entregou o
relatório ao Ministério do Exterior, que só foi publicado em junho. Tornou-se adido
ao Gabinete do Barão do Rio Branco, sem estabilidade, numa função não oficial
(RABELLO, 1966). No mesmo ano tomou posse na Academia Brasileira de Letras.
Em 1907, publicou Contrastes e Confrontos (artigos publicados entre 1901 e 1904 nos
jornais “O Estado de S. Paulo” e “O País”) e Peru versus Bolívia (oito artigos escritos
para o “Jornal do Comércio”). Em 2 de dezembro, proferiu a conferência “Castro
Alves e seu tempo”, no Centro Acadêmico XI de Agosto (Faculdade de Direito), de
São Paulo. Em 1908, prefaciou os livros Inferno Verde, de Alberto Rangel, e Poemas
e Canções, de Vicente de Carvalho (RABELLO, 1966; MOTA, 2003).
Em 1909, Euclides prestou concurso para a cadeira de Lógica do Colégio
Pedro II, prova escrita e oral, sendo classificado em segundo lugar (o primeiro
foi Farias Brito). Foi nomeado professor em 14 de julho. Ministrou sua primeira
aula dia 21 e a última em 13 de agosto, uma sexta-feira. No dia 15 de agosto, uma
manhã chuvosa de domingo, foi assassinado por Dilermando de Assis, amante de
sua esposa. A morte o colheu prematuramente, por meio desse crime passional,
aos 43 anos de idade.
As metáforas analisadas neste estudo foram colhidas dos textos deixados
por Euclides para a posteridade.

40
Sobre a teoria da metáfora conceptual: entre alvos e fontes

Os pesquisadores George Lakoff e Mark Johnson são considerados os


responsáveis pela “mudança paradigmática”, em que o pensamento assume o
locus da metáfora, passando a ocupar o lugar primário nos estudos metafóricos.
No ano de 1980, eles Metaphors we live by, que foi traduzido para o português em
2002, com o título Metáforas da vida cotidiana.
A teoria da metáfora conceptual originou-se no campo da linguística
cognitiva, a partir do momento em que Lakoff e Johnson, inseridos em um grupo
de pesquisa, debatiam a veracidade da afirmativa de que a linguagem, assim como
o pensamento, era inerentemente literal, ou seja, se conseguíamos nos comunicar
e entender uns aos outros, por meio da linguagem, era porque usávamos a
linguagem literal no nosso dia a dia (LENZ, 2013). A primazia da afirmação da
existência da linguagem literal sobre qualquer outro tipo de linguagem, por muito
tempo ocupou o ápice dos estudos na área da semântica, até que surgiu o grupo
acima citado, cujos pesquisadores discordaram dessa concepção de comunicação, a
qual reduzia a linguagem e o pensamento aos seus aspectos inerentemente literais,
engessada e pré-determinada pelos sentidos próprios dos signos linguísticos.
Martelotta e Palomanes (2012, p. 177) confirmam essa delimitação da análise
linguística de perspectiva gerativista, ao afirmar que “os gerativistas privilegiaram
em suas análises a busca de aspectos linguísticos universais, deixando de lado,
portanto, as questões sociais e interativas que caracterizam, de modo mais
localizado, o uso concreto da língua nas situações reais de comunicação”. É
importante ressaltar que o grupo em que Lakoff estava inserido rompeu com esse
postulado de perspectiva gerativista, originado com as teorias do linguista norte
americano Noam Chomsky, o qual preconiza, dentre outras proposições, a atuação
independente dos módulos da mente (cada módulo responde pela estrutura e
desenvolvimento de uma forma de conhecimento).
Essa perspectiva, pautada exclusivamente na Linguística Gerativa, exclui da
análise linguística todos os elementos externos ao homem, como, por exemplo, o
contexto, a situação, o próprio corpo humano (corpo e mente, aqui, são elementos
desassociados), etc., restando à análise a explicação dos padrões linguísticos por
meio de propriedades estruturais internas e específicas da língua. Na contramão
dessa corrente, emerge, na área denominada Linguística Cognitiva, o grupo de
estudiosos interessados na relação entre linguagem e pensamento, preocupados em
examinar a relação da estrutura da mente com áreas externas à linguagem, como por
exemplo, os princípios e mecanismos cognitivos não específicos à língua, incluindo
os princípios de categorização humana; princípios pragmáticos e interacionais; e
princípios funcionais em geral, tais como iconicidade e economia, o grupo buscará
na área da ciência cognitiva a justificativa para muitos ideais sugeridos.
É nesse grupo de estudiosos que vemos destacado o nome de George Lakoff,
entre os iniciadores da Linguística Cognitiva. Apresentam-se nessas pesquisas
novos conceitos como os de conhecimento (a partir das experiências no mundo),
sentido (como sendo entidades conceptuais), projeção (conexões entre domínios
cognitivos), mesclagem (conexão entre diferentes domínios conceptuais), etc. Lenz
(2013, p. 38) destaca que eclodem, nesse momento, “três dos grandes achados
das ciências cognitivas com grandes repercussões para os estudos linguísticos
e filosóficos”, que, segundo, Lakoff e Johnson, são: “a mente é inerentemente
corpórea, o pensamento é de modo geral inconsciente e os conceitos abstratos
são em grande parte metafóricos”.
41
Para Lakoff e Johnson (2002), a metáfora funciona como base do pensamento
humano. Dizendo de outra forma, para esses teóricos o pensamento humano tem
base metafórica. Assim sendo, a metáfora funciona como forma de expressão da
verdade que está contida na mente do falante, e posteriormente é revelada por
meio de expressões linguísticas.
As expressões linguísticas, segundo a teoria conceptual, são uma forma de
verbalizar o pensamento que se tem a respeito daquilo que se profere. O conceito
que essa abordagem traduz está expresso na compreensão do próprio nome da
teoria – conceptual –, que traduz a noção de concepção, porque conceitualiza alguma
coisa (SARDINHA, 2007). Nesse sentido, a metáfora sempre dá um conceito de algo.
É interessante observar que a metáfora, segundo essa visão, deixa de ser algo
individualizado, característico de um gênio, para possuir uma generalização mais
evidente e presente nos falantes, tendo uma natureza absolutamente mundana.
Esse conceito distancia-se sensivelmente da concepção retórica da metáfora,
cultivada desde Aristóteles, cujo locus é a linguagem. Na teoria conceptual, o
locus da metáfora deixa de ser a linguagem e passa a ser o pensamento. E, para
externar esse conceito contido no pensamento, o falante se vale de expressões
metafóricas, que têm a função de verbalizar tais conceitos.
Nesses termos, os autores da teoria conceptual explicam que a metáfora
não é somente uma questão de linguagem, de palavras, mas é também – e
principalmente – uma questão de pensamento e de ação, pois consideram que o
pensamento humano é de base metafórica e, além disso, as metáforas norteiam
nossas ações. Pensamos por meio de metáforas e agimos com base nelas.
Em Lakoff e Johnson (2002), a metáfora é vista como algo que está contido
em nosso pensamento, por estar enraizado em nossa cultura. E para se comunicar,
compreender, ser compreendido e entender o mundo, o indivíduo precisa dominar
essas metáforas, compartilhar tal conhecimento, caso contrário a comunicação é
afetada semanticamente, prejudicando a interação social nas situações mais triviais.
No entendimento de Lakoff e Johnson (2002), quando utilizamos uma
metáfora, o fazemos por ser ela o único recurso de que dispomos para externar
o conceito que está em nosso pensamento, e que queremos verbalizar. Assim,
toda metáfora é irrepetível, não podendo, portanto, ser parafraseada sem perda
de conteúdo cognitivo e semântico. Parafrasear uma metáfora implicaria dizer
uma coisa diferente do que ela diz em sua essência, daí o seu caráter de unicidade.
Para Lakoff e Johnson (2002, p. 45), não se usa a metáfora como uma forma
de ornamentação linguística, como queriam os estudiosos da concepção retórica
da metáfora, iniciada por Aristóteles. Ela está presente em nossa vida diária, desde
as atividades mais simples até as mais complexas:

A maioria das pessoas acha que pode viver perfeitamente sem a metáfora.
Nós descobrimos, ao contrário, que a metáfora está infiltrada na vida
cotidiana, não somente na linguagem, mas também no pensamento e na
ação (...). Os conceitos que governam nosso pensamento não são meras
questões do intelecto. Eles governam também a nossa atividade cotidiana
até nos detalhes mais triviais. Eles estruturam o que percebemos,
a maneira como nos comportamos no mundo e o modo como nos
relacionamos com outras pessoas.

A metáfora sempre relaciona dois domínios diferentes da realidade: o


domínio-fonte e o domínio-alvo. O termo “domínio” é utilizado para definir as

42
diferentes áreas do conhecimento ou experiência humana. Assim, a metáfora
conceptual pode ser sempre representada pela estrutura DOMÍNIO-ALVO
É DOMÍNIO-FONTE. O alvo é sempre algo mais abstrato com que temos de
lidar conceitualmente; já a fonte é algo mais concreto, com que lidamos mais
diretamente em termos de conceitos e de experiência. A junção desses dois
domínios em uma metáfora nos possibilita transferir as concepções, crenças,
experiências, e etc. da fonte para o alvo, para assim melhor compreender este
último. Vejamos a metáfora de Euclides: “[...] Abarrotavam-se, às carreiras, os
vapores, com aqueles fardos agitantes consignados à morte. Mandavam-nos para
a Amazônia” (CUNHA, 2003, p. 85 – grifo nosso).
a) O domínio-fonte é aquele a partir do qual conceitualizamos alguma coisa
metaforicamente. No caso da metáfora exemplificada acima, o comércio é o
domínio-fonte.
b) O domínio-alvo é aquele que desejamos conceitualizar. Esse é o domínio
mais abstrato. No exemplo que estamos analisando, o domínio-alvo é a situação
existencial e social dos sertanejos nordestinos.
c) E, por fim, as expressões metafóricas, que são as expressões linguísticas
através das quais a metáfora conceptual se concretiza na língua. Por exemplo:
em “abarrotavam”, “fardos agitantes”, “consignados à morte”, temos expressões
linguísticas que atualizam a metáfora dessas pessoas como sendo uma espécie
de mercadoria em trânsito.
Na teoria da metáfora conceptual, a metáfora é compreendida como um
fenômeno cognitivo. O conceito metafórico é visto como primordial e está contido
na mente do falante, por meio do pensamento. A partir desse pensamento, deriva-se
a expressão linguística através da fala ou da escrita. É importante compreender
que, nessa visão, a expressão linguística é subordinada à representação mental,
além de ela ser também corporificada, pois, de acordo com essa teoria, o corpo
humano é a base ou a fonte de muitas metáforas cognitivas. Logo, tanto o conceito
metafórico, contido na mente, quanto o corpo humano que é a base ou a fonte
das metáforas, são primordiais para o estudo das metáforas.

Euclides: um metaforista

Entendemos que Euclides foi um grande metaforista. Tomamos aqui o


termo “metaforista” com o sentido de aquele que cria metáforas ou metaforiza.
Metaforizar segundo Francisco (2001, p. 68), consiste em

reelaborar o Mundo. Mas reelaborá-lo orientado pelo conhecimento


existente do Mundo. Assim sendo, tanto a ciência, quanto a arte podem
ser vistas como linguagens que, apesar de diferentes, possuem a mesma
pertinência cognitiva. Tanto a ciência, quanto a arte reelaboram o Mundo.
Não são meras descrições do Mundo. São modos de criar Mundos.

Euclides se esmerou em criar metáforas, sem parcimônia, em praticamente


todos os textos que escreveu. Elas medram em Os Sertões e nos demais livros de
sua autoria, nos artigos que escreveu para jornais, nos ensaios e nas cartas que
endereçou a familiares e amigos. Foi essa constatação que ensejou a elaboração
desta pesquisa, na qual revisitamos as metáforas euclidianas mais expressivas
que, de alguma forma, se ligam ao universo amazônico. Analisamos as metáforas

43
do grande metaforista para descrever aspectos geográficos e paisagísticos da
Amazônia, assim como a gente, as relações sociais, os conflitos de fronteira e
outros flagrantes da região.
Escrevendo sobre a Amazônia, Euclides elaborou metáforas que veiculam
a sua visão sobre a região. E na literatura euclidiana as metáforas ostentam-se
a cada página, a cada parágrafo, formando um grande painel da sua concepção
sobre aquela porção do Brasil. Assim sendo, para atingir o objetivo de analisar
metáforas de Euclides, difícil foi operar o recorte necessário a um trabalho desta
natureza. O início do percurso se deu com a imersão nos textos de Euclides, com
o fim de detectar em quais deles a Amazônia se apresenta como assunto. E dessa
pesquisa resultou a descoberta de que: a primeira referência à Amazônia, ainda
que bem panorâmica, ocorre em Os Sertões, em que o autor faz referência à
terra e ao clima amazônico, além das condições de adaptabilidade do homem ali.
Depois, em suas “Impressões Gerais”, do livro À Margem da história, questiona a
“literatura científica” sobre a região, que, no seu entender, situa-se “bem pouco
além de um mundo maravilhoso”. Ele relembra o caso exemplar do pesquisador
Frederico Hartt, que estava estudando a geologia do Amazonas, “quando em
dado momento se encontrou tão despeado das concisas fórmulas científicas e
tão alcancorado no sonho, que teve de colher de súbito todas as velas à fantasia:
– Não sou poeta. Faço a prosa da minha ciência” (CUNHA, 2003, p. 36).
Parece haver uma similaridade entre a condição de Hartt e a de Euclides, no
sentido de tentar adentrar no universo da ciência abdicando do seu “lado poeta”.
Esforçando-se por se libertar da impertinente imaginação, Hartt mergulhou em
suas deduções rigorosas. No entanto, duas páginas adiante já se encontrava
novamente enredado em novos arrebatamentos e enlevos. Mas Euclides
explica que tal fato se deu porque a Amazônia tem a marcante peculiaridade
de impressionar a civilização distante, por seus múltiplos superlativos. “É que
o grande rio, malgrado a sua monotonia soberana, evoca em tanta maneira o
maravilhoso, que empolga por igual o cronista ingênuo, aventureiro romântico
e o sábio precavido” (CUNHA, 2003, p. 37).
Ali, segundo Euclides, “às induções avantajam-se demasiado os lances de
fantasia. As verdades desfecham em hipérboles”, emparceirando os sonhadores
e fantasistas aos sábios deslumbrados. E “os dizeres da ciência desfecham num
quase idealismo: as análises rematam-nas prodígios; as vistas abreviadas nos
microscópios desapertam-se no descortino de um passado muitas vezes milenário”
(CUNHA, 2003, p. 37-38).
Tanto no caso dos sertões baianos como no da Amazônia, foi a metáfora que
redimiu Euclides, dando vigor à sua escrita e oferecendo a chave de acesso a um
mundo inacabado para, de algum modo, compreendê-lo. Como demonstra Paiva
(2005, p. 163), “posto que o mundo é inacabado e jamais pode ser contemplado
em sua plenitude, a possibilidade da criação poética ou científica é infindável,
e o dinamismo do pensamento – que em último instância é propiciado pela
imaginação criadora –, na poética ou na ciência, não possui termo”. Assim, os
escritos de Euclides sobre a Amazônia são recheados de metáforas que elucidam
tanto o pensamento científico quanto os vislumbres poéticos do escritor.
Discorrendo sobre a metáfora, Coimbra (2012) aponta uma diferença
fundamental entre as metáforas da ciência e as metáforas da literatura: na ciência,
a metáfora surge, a priori, com a função de cobrir lacunas terminológicas, isto
é, ela não deriva de um “imperativo estético ou expressivo”, “mas destina-se

44
a um percurso de divulgação e convenção que culminará, eventualmente, na
perda da consciência do percurso conceptual efetuado”. Dessa forma, quando
um pesquisador propõe um paralelo metafórico para nominar uma determinada
descoberta, ele pretende introduzir esse termo na comunidade científica,
empenhando-se para que o mesmo venha a ser aceito e utilizado pelos seus
pares. Quando isso acontece, o uso acaba por fazer com que a consciência do
paralelo metafórico se dilua. Por exemplo, quando ouvimos falar, hoje, em vírus
informáticos, jamais estabelecemos conexões de sentido desse “vírus” com alguma
doença de natureza médica. “Não podemos, no entanto, segundo a Linguística
cognitiva, afirmar que a figura morre. Nesta perspectiva, pelo contrário,
considera-se que ela ganha uma nova vida, já que se generaliza, e se entrosa no
código linguístico” (COIMBRA, 2012, p. 3).
Por outro lado, a metáfora literária, ou poética, não nasce destinada à
vulgarização (embora isso possa eventualmente acontecer). A metáfora incrustada
em um poema, por exemplo, não responde por nenhum objetivo de propor
terminologia com vista à sua utilização geral.

Se o cientista espera, ao introduzir novos termos por uma analogia, que


esta seja considerada boa, aceite e utilizada pelos outros cientistas, o
poeta, ao criar uma nova expressão metafórica, não estará, à partida,
a pensar que ela virá a ser utilizada pelos outros poetas. A beleza da
metáfora poética prende-se, antes, com a sua originalidade, o seu caráter
único e irrepetível. Assim, enquanto uma analogia científica bem feita
e útil em termos terminológicos será, em pouco tempo, pertença da
comunidade e utilizada em textos subsequentes até se perder a noção
da projeção metafórica inicial, a linguagem figurada de um poema
será única e irrepetível. De fato, mesmo que ela seja retomada em
palimpsesto, por processos de intertextualidade, algo novo lhe será,
de cada vez, acrescentado e sobreposto, algo que só o gênio criador do
poeta será capaz de conquistar (COIMBRA, 2012, p. 3).

Além de tudo, resta o reconhecimento de que o cientista e o poeta têm em


comum, em seus escritos, a necessidade de ultrapassar os estreitos limites do
código linguístico estabelecido na linguagem cotidiana. “Os novos campos do
saber desbravados pela ciência, por um lado, e os mundos possíveis da realização
poética ficcional, por outro, exigem ambos um alargamento das potencialidades
semânticas da linguagem”. Consequentemente, a analogia se torna um recurso
valioso e imprescindível para que a ponte seja estendida sobre o desconhecido,
e isso vale para cientistas e poetas. Assim, “todas as diferenças que possamos
encontrar entre os dois tipos textuais não ultrapassam, no campo da expressão
metafórica da linguagem, um mesmo impulso criativo, uma mesma necessidade
de fantasia e de ir mais além” (COIMBRA, 2012, p. 4).
Rodrigues (2007, p. 20) confirma que metáforas e analogias “são utilizadas
de forma abundante na produção de conhecimento, em todas as áreas. A história
e a filosofia da ciência estão repletas de casos em que metáforas, analogias e
modelos foram utilizadas na física, na química, na biologia, etc.” E acrescenta
que o que é raro não é a utilização da metáfora na ciência, de forma explícita ou
implícita, mas a sua não utilização. O uso de analogias e metáforas é inevitável
na construção de modelos científicos. Rodrigues (2007) lembra que, aquilo que se
tornou objeto, isto é, recebeu dimensão “real” – construída ou coisificada – teve
a própria analogia como sustentação corpórea no mundo dos objetos.

45
Rodrigues (2007) assume que o pensamento metafórico

não é formalmente ensinado a ninguém, emergindo como uma propriedade


da própria intelecção (logos) humana. Isso nos leva a crer que a analogia
pode bem ser vista como um ato cognitivo, como uma faculdade da cognição
mesma, em que a razão busca comparações, correlações e similaridades
de modelos, linguagens, formas, funções, estruturas, estéticas, etc., entre
dois ou mais domínios distintos de objetos de conhecimento em que pelo
menos um desses domínios já seja conhecido, mapeado, compreendido,
modelado, aceito (RODRIGUES, 2007, p. 21).

Formado na atmosfera cultural do Brasil da segunda metade do século


XIX, era normal que Euclides defendesse a relevância social do conhecimento
científico de acordo com as noções do cientificismo. Perfilando-se entre os que
assim procediam, ele busca “compreender as expressões artísticas por meio dessa
crença no predomínio do saber científico sobre as outras manifestações do espírito
humano”, conforme assinala Nascimento (2011, p. 6) Mas, conforme adverte
Bachelard (1937; 1938), a ciência contemporânea é um conhecimento inacabado,
em construção, e não passa de uma ficção a ideia da objetividade total, absoluta.
Além disso, mesmo a razão atuando contra as imagens e contra as metáforas, está
fora do seu alcance pulverizá-las completamente (PAIVA, 2005).
Por essa razão, as metáforas são abundantes nos textos de Euclides, mesmo
aqueles pretensamente científicos, técnicos ou sem qualquer veleidade literária,
como bilhetes familiares. Certa vez, ele escreveu uma pequena carta ao filho (Euclides
da Cunha Filho), comentando as notas registradas no seu boletim escolar, na qual
dizia: “Recebi as notas pelas quais vejo que estás tenente em português e coronel
em latim. Ficaria mais contente se trocassem os títulos. Em todo caso, vejo que não
estás perdendo tempo. [...] E a nossa velha Aritmética? Nem um posto? Nem mesmo
o de alferes?” (In: GALVÃO; GALOTTI, 1997, p. 372). Quando nasceu o terceiro filho,
a quem deu o nome de João Luís, em 28 de novembro de 1907, escreveu ao amigo
Escobar: “Também por aqui me anda a praga dos filhos. Nasceu mais um. [...] Estou
ficando patriarca” (In: GALVÃO; GALOTTI, 1997, p. 342). Consta também que, em outra
ocasião, referindo-se ao quarto filho, de nome Luís, disse ao amigo Coelho Neto que
aquela criança era “um pé de milho num cafezal” (MOTA, 2003, p. 182). Referia-se ao
fato de o novo filho ter cabelos louros e olhos azuis, diferentemente dos demais, que
tinham tez morena (RABELLO, 1966). E assim era: em tudo que Euclides escrevia, lá
estavam às metáforas, tanto as literárias quanto as não literárias.
Nesse sentido, parece-nos interessante ver uma certa similaridade entre Euclides
e Shakespeare. Este, segundo Moura (2012), chegou bem perto do uso do “metaforês”,
que seria uma linguagem constituída apenas de metáforas, tal como acontece em
uma passagem de “Jornada nas Estrelas”. O fato de chegar perto já é um evento digno
de nota, uma vez que Moura (2012) julga ser impossível se praticar uma linguagem
dessa natureza, o metaforês. Assim sendo, há o destaque para o fato de Sahakespeare
ter a mania de metaforizar tudo. É o que acontece também com Euclides.

Metáforas amazônicas de Euclides

Com base nesse arrazoado, abstraímos, da leitura de textos de Euclides, as


dez metáforas conceptuais a seguir, cada uma exemplificada por duas expressões
linguísticas, entre as que a verbalizam:

46
A) Metáfora: A Amazônia é uma obra de arte

Exemplos de expressões linguísticas que a verbalizam:


- “É, sem dúvida, o maior quadro da terra; porém chatamente rebatido num
plano horizontal que mal alevantam de uma banda, à feição de restos de uma
enorme moldura que se quebrou, as serranias de arenito de Monte alegre e as
serras graníticas das Guianas (CUNHA, 2003, p. 34);
- “De seis em seis meses, cada enchente, que passa, é uma esponja molhada
sobre um desenho mal feito: apaga, modifica, ou transforma, os traços mais salientes
e firmes, como se no quadro de suas planuras desmedidas andasse o pincel irrequieto
de um sobre-humano artista incontentável...” (CUNHA, 2003, p. 355).
Comentário: na verbalização da Amazônia como obra de arte nos textos
de Euclides, geralmente a região é apresentada como um produto (ou processo)
de artes plásticas. Ora é um quadro pictórico, ora é uma obra de escultura.
Também é comum o rio Amazonas ser descrito, em metáforas personificadoras,
como um artista descontente que realiza a sua obra e, muitas vezes, a destrói
para recomeçar o trabalho. Uma das molas propulsoras dessa metáfora foi a
observação, por parte de Euclides, do fenômeno das “terras caídas”, muito comum
nos grandes rios amazônicos.

B) Metáfora: A Amazônia é um teatro

Exemplos de expressões linguísticas que a verbalizam:


- “Entre as magias daqueles cenários vivos, há um ator agonizante, o homem”
(CUNHA, 2003, p. 355);
- “O que sobremaneira o impressionou é o espetáculo da terra profundamente
trabalhada pelo indefinido e incomensurável esforço dos formadores do rio”
(CUNHA, 2003, p. 63).
Comentário: em Euclides é comum encontrarmos a hileia como um cenário
imponente, desmedido, onde pequeninos atores desenvolvem os seus dramas
e tramas, em variados roteiros. Ali é o palco onde se desdobra o espetáculo do
homem e da terra.

C) Metáfora: A Amazônia é um deserto

Exemplos de expressões linguísticas que a verbalizam:


- “O cearense, o paraibano, os sertanejos nortistas, em geral, ali estacionam,
cumprindo, sem o saberem, uma das maiores empresas destes tempos: estão
amansando o deserto” (CUNHA, 2003, p. 79);
- “[...] Daí a minha ânsia de partir – buscando a forte distração do meu duelo
com o deserto, nesta majestosa arena de quinhentas léguas que me oferece o
Purus” (em Carta a Afonso Arinos, dezembro de 1904).
Comentário: a imagem do deserto é recorrente em Euclides. Mas é claro
que, para conceber a região como um deserto, ele teve que ignorar a existência
dos muitos povos primitivos, indígenas de várias etnias, que habitavam a região
à época. Mas a “visão do deserto”, em relação a uma densidade geográfica tão
baixa, era sempre uma grande tentação, e era renitente: uma terra imensurável,
deserta de gente, desabitada.

47
D) Metáfora: A Amazônia é um livro

Exemplos de expressões linguísticas que a verbalizam:


- “A Amazônia é a última página, ainda a escrever-se, do Gênese” (CUNHA,
2003, p. 354);
- “A história, ali, parece um escandaloso plágio da natureza física” (CUNHA,
1975, p. 135).
Comentário: Euclides comumente apresenta a região como um livro, não
um livro acabado (produto), mas que está sendo escrito (processo). Dessa forma,
externa a sua visão da Amazônia como uma terra em formação, inacabada,
incompleta. Na face “edenista” de sua literatura, a região se mostra como uma
página do Gênesis que ainda não foi concluída, uma terra nova, onde tudo está
“em ser” e “por ser”. Curtius (1966) assinala que a metáfora da natureza e do
mundo como um livro é uma imagem bastante recorrente na literatura ocidental.
Está presente na literatura sagrada, nos escritos de filósofos como Diderot, Voltaire
e Rousseau, além dos escritores pré-românticos ingleses e românticos alemães.
Euclides dialoga com eles em seus escritos amazônicos.

E) Metáfora: A Amazônia é uma mulher

Exemplos de expressões linguísticas que a verbalizam:


- “O artista atinge-a de um salto; adivinha-a; contempla-a d’alto; tira-lhe,
de golpe, os véus, desvendando-no-la na esplêndida nudez da sua virgindade
portentosa” (CUNHA, 2003, p. 354);
- “É a terra moça, a terra infante, a terra em ser, a terra que ainda está
crescendo” (CUNHA, 2003, p. 355).
Comentário: a imagem da mulher nova, virgem, intocada, associa-se à ideia
da terra inexplorada, onde a penetração ainda não se deu de fato, apenas foi
ensaiada em momentos pontuais da história. A Amazônia está à espera de ser
“conhecida”.

F) Metáfora: A Amazônia é adversária do homem

Exemplos de expressões linguísticas que a verbalizam:


- “Aquela natureza soberana e brutal, em pleno expandir de suas energias,
é uma adversária do homem” (CUNHA, 2003, p. 48);
- “O deserto é um feitor perpetuamente vigilante. Guarda-lhe a escravatura
numerosa” (CUNHA, 2003, p. 108).
Comentário: ali, segundo Euclides, o homem chegou antes do tempo,
enquanto natureza ainda estava “arrumando o seu mais vasto e luxuoso salão”.
Tornou-se um “intruso impertinente”, que não era esperado e não é querido. Daí
os constantes “enfrentamentos” entre o homem e a terra inóspita. A natureza,
inclusive, ajuda a perpetuar a situação de escravidão do homem, porque o
aprisiona, estrangula e aniquila em seus círculos fechados e, ao mesmo tempo,
em seus “desmarcados” de distâncias intransponíveis. Assim, o homem a ataca e
ela se defende, agredindo-o também.

48
G) Metáfora: A Amazônia é um quadro nosológico

Exemplos de expressões linguísticas que a verbalizam:


- “Cada igarapé sem nome é um Ganges pestilento e lúgubre” (CUNHA, 2003,
p. 81);
- “Creio que faltam bem poucos dias para que se torne efetiva essa minha trágica
candidatura ao impaludismo, ao beribéri, à filária, e, talvez, à morte”. (em carta a
Plínio Barreto, em 22 de outubro de 1904, antes de embarcar para a Amazônia).
Comentário: Euclides vai para a Amazônia com um conhecimento prévio,
obtido nas leituras que fizera, a respeito das questões sanitárias da região. Em cartas
a amigos, antes de sua viagem, afirmava claramente a sua perspectiva negativa
em relação às doenças tropicais que possivelmente o esperavam. E, de fato, foi
acometido de algumas dessas doenças ao pisar em solo amazônico. Inicialmente,
não se deu bem com o clima, a que chamou de “perpétuo banho de vapor”.
O clima, segundo ele, favorecia o adoecimento. Para suportá-lo, era preciso
ter “nos músculos a elástica firmeza das fibras dos buritis e nas artérias o sangue
frio das sucuruiubas”. Euclides chega a fazer uma certa “chalaça” com o fato de
Bates o ter chamado de “glorious clime”: “não sei como traduzir o glorious clime
de Bates. Não há exemplo de um adjetivo desmoralizado (felizmente em inglês!)”
(In: GALVÃO e GALOTTI, 1997, p. 250-252). Em carta ao amigo Porchat, escreveu:
“Eu, firme na minha envergadura esmirrada e seca, faço neste clima canicular
prodígios de salamandra” (in: GALVÃO e GALOTTI, 1997, p. 257).
Logo que chegou a Manaus, Euclides foi assaltado pela febre que tanto
temia, e ficou receoso de ela ter sido “um lugubremente gentil cartão de visita
do impaludismo, pressuroso em atender o hóspede recém-chegado” (in: GALVÃO
e GALOTTI, 1997, p. 253). Pouco a pouco, no entanto, ele foi se adaptando ao
clima e “fazendo as pazes” com o sol do Equador. Chegou, inclusive, a dizer que
passou a entender perfeitamente o adjetivo “glorious” de Bates, o qual se ajustava
adequadamente à designação do clima tropical.
Mas a “reconciliação” com o clima não impediu a doença. O temido
impaludismo o alcançou de forma irreversível. Já em 1906, estando no Rio de
Janeiro às voltas com a elaboração do relatório da expedição, escrevia sob o
impacto do impaludismo. Ele descreve a situação em carta a Francisco Escobar,
datada de 18 de abril de 1906, dizendo que existe uma coisa pior que a tuberculose,
que é franca: “é o insidioso impaludismo larvado que a medicina não atinge
tão vário é ele e incaracterístico. Estou, por isto, aflito por terminar todas estas
coisas, a fim de limpar o meu organismo dessa ferrugem que ameaça devorá-lo”
(in: GALVÃO e GALOTTI, 1997, p. 302). O impaludismo contraído na Amazônia
haveria de acompanhá-lo pelo resto da vida.
Essa desagradável condição de doente, somada às leituras anteriormente
realizadas e às observações feitas durante sua expedição, levou Euclides a
generalizar a Amazônia como um espaço eminentemente nosológico e fatal.
Para ele, toda a gente que parte para a região “leva no próprio estado emotivo a
receptividade a todas as moléstias” (CUNHA, 2003, p. 77), porque está entrando
na “paragem clássica da miséria e da morte”. Essas afirmações surgem após a
observação experencial das condições insalubres e de higiene extremamente
precária de comunidades ribeirinhas, assim como dos seringais. Por isso, Euclides
entende que tanto a terra quanto o homem amazônico necessitam de um trabalho
cuidadoso de “saneamento”.

49
H) Metáfora: O seringueiro é um escravo

Exemplos de expressões linguísticas que a verbalizam:


- “O sertanejo emigrante realiza, ali, uma anomalia sobre a qual nunca é
demais insistir: é o homem que trabalha para escravizar-se” (CUNHA, 2003, p. 88);
- “Quatrocentos homens, às vezes, que ninguém vê, dispersos por aquelas
quebradas, e mal aparecendo de longe em longe no castelo de palha do acalcanhado
barão que os escraviza” (CUNHA, 2003, p. 108).
Comentário: escravidão parece ter sido a palavra mais adequada que Euclides
encontrou para definir a condição trabalhista dos seringueiros no interior da
hileia. Trato dessa questão com maior detalhamento no capítulo “Condensações
e deslocamentos”.

I) Metáfora: A seleção natural é uma eleição

Expressões linguísticas que a verbalizam:


- “Toda a aclimação é desse modo um plebiscito permanente em que o
estrangeiro se elege para a vida. Nos trópicos, é natural que o escrutínio biológico
tenha um caráter gravíssimo” (CUNHA, 2003, p. 87);
- “(o clima) elegeu e elege para a vida os mais dignos. Eliminou e elimina os
incapazes, pela fuga ou pela morte” (CUNHA, 2003, p. 95).
Comentário: depois das impressões iniciais completamente negativas sobre o
clima amazônico, Euclides reconcilia-se com ele e, em seguida, passa a defendê-lo.
Usa para isso um capítulo cujo título é “Um clima caluniado”. Nele, o escritor vê no
clima uma faculdade de “magistratura natural”, cujo magistrado, o clima, prepara
a terra para os mais fortes. Sugere que aqueles que chamaram a esse clima de
“insalubre” estavam caluniando-o, porque onde se fala de insalubridade, deveria
se falar de “apuramento”, ou seja, “a eliminação generalizada dos incompetentes”
(CUNHA, 2003, p. 88). Na verdade, entende Euclides, o clima elege para a vida
os mais competentes, assim como também forja a eliminação dos incapazes.
Assim é que, em diálogo com Darwin e Bates, Euclides lança ao leitor um desafio:
“Reconheçamos naquele clima uma função superior. [...] Ele exercitou uma
fiscalização incorruptível [...] policiou, saneou, moralizou. [...] prepara as paragens
novas para os fortes, para os perseverantes e para os bons” (CUNHA, 2003, p. 95).

J) Metáfora: O rio é uma pessoa

Expressões linguísticas que a verbalizam:


- “(o Purus) inclui-se entre os mais interessantes rios trabalhadores, construindo
os diques submersíveis que o aliviam nas enchentes” (CUNHA, 2003 p. 68);
- “O Purus é um enjeitado. Precisamos incorporá-lo ao nosso progresso”
(Cunha, 2003, p. 76).
Comentário: entre os grandes rios da Amazônia, merecem destaque em
Euclides o Amazonas e seus afluentes Purus e Juruá. Esses rios, de uma forma
geral, são personificados. No texto “Rios em abandono”, Euclides refere-se aos
rios amazônicos a partir da teoria do geógrafo americano Morris Davis, que foi
considerado o “biógrafo” dos rios da Pensilvânia. Na teoria de Davis, os rios têm
infância, adolescência, virilidade e velhice ou decrepitude. Na Amazônia, os rios

50
ainda não chegaram à fase de madureza, inclusive porque banham a provável “terra
mais nova do mundo”. Eles ainda estão em busca dos seus leitos definitivos e, por
isso mesmo, apesar de serem “rios trabalhadores”, o seu trabalho é estranhamente
paradoxal: destroem em segundos o que levaram séculos para construir.

Concluindo sem concluir

Procuramos investigar, nos limites da natureza desta pesquisa, as questões


relativas ao discurso metafórico de Euclides da Cunha sobre a Amazônia, lendo
as metáforas utilizadas por ele para descrever a região, dada a superabundância
de metáforas amazônicas em seus textos. E a primeira premissa que o estudo veio
a confirmar é a de que Euclides foi, de fato, um grande metaforista. Vimos que as
metáforas residem em praticamente todos os seus textos, não apenas os ficcionais,
mas igualmente os pretensamente não ficcionais, como as inúmeras cartas
endereçadas a amigos e familiares e os relatórios técnicos que frequentemente
escrevia, em razão do ofício de engenheiro.
Assumimos apoiados em Lakoff e Johnson (2002), que as metáforas amazônicas
de Euclides externam, de fato, a visão dele sobre a terra e a gente da e na Amazônia,
muito além de serem “apenas” recursos retóricos. Elas demonstram a evolução do
pensamento de Euclides a respeito da região amazônica: as primeiras metáforas, que
registram suas primeiras impressões, revelam um indisfarçável desapontamento
e decepção em relação às expectativas que alimentara a partir das “monografias”
que lera. Viu a região como um espaço entediante e monótono, porque homogêneo.
Mas dessa visão “aérea” homogeneizante, ele deriva para a denúncia da espoliação
dos seringueiros pelos patrões arrivistas, que os escravizavam.
Nesse sentido, evolui do geografismo para o enfoque sociocultural forjado
pelos flagrantes que vivenciou no decurso de sua expedição. Ou seja, da tendência
inicial à negativização do espaço e da gente amazônica, presente nas leituras que
absorveu, evolui para uma defesa dessa terra e dessa gente, principalmente os
sertanejos nordestinos que ali se encontravam. E, claro, há equívocos e acertos
na visão do escritor materializada nas metáforas. Por exemplo, ele se equivoca
ao conceber o rio Amazonas como destruidor da terra, quando, na verdade, o
fenômeno das “terras caídas” das suas margens está na ordem normal das coisas,
conforme assegura Braga (2002).
Euclides se equivoca também quando lança mão da metáfora do “deserto”
para descrever a região. Para conceber a região como deserta de gente, desabitada,
seria necessário ignorar os inúmeros povos nativos que a habitavam, tendo a
imensa floresta tropical como a sua “casa”. Além disso, havia grandes cidades na
Amazônia, no início do século XX, como Manaus e Belém, e tantas outras cidades
menores. Só que a tentação da generalização era sempre uma possibilidade nessa
Amazônia que “sempre teve o dom de impressionar a civilização distante”. E
Euclides generalizou – ou seria melhor dizer “exagerou”? – nesse ponto, como em
alguns outros. Chamou “deserto” à pequena densidade demográfica da região e,
nesse aspecto, prestou um desserviço às comunidades nativas amazônidas.
Ponto para ele quando corrige o tópico da insalubridade do clima. O clima
tropical úmido fora vítima da “calúnia” de alguns estudiosos consultados por
Euclides, como é o caso do médico italiano Luigi Buscalione, que o estimularam
a também caluniá-lo, responsabilizando-o pelo pretenso “rebaixamento moral”

51
e pelo “enfraquecimento de todas as faculdades” dos recém-chegados e dos
habitantes da região, além imputar-lhe a responsabilidade pela assustadora
incidência de doenças que faziam da região o reino das pestes e moléstias.
Não cabe razão a Euclides também quando ele olha para a gente amazônida
como preguiçosa e desregrada, ainda mais apontando o determinismo fatalista
do clima como fator de degenerescência humana, que torna aquela gente
indiferente a qualquer esforço civilizatório. Evidentemente, trata-se de um olhar
etnocêntrico oriundo das leituras que fizera, como é o caso dos textos de Bufon
e dos divulgadores de suas ideias (PINTO, 2006). Mas ele revisa o tópico depois,
no texto “Um clima caluniado”, redimindo o clima dessa predicação “caluniosa”.
Na retificação do tópico, atribui ao clima uma função “superior”, qual seja a de
realizar a seleção natural, preparando a terra para os mais aptos.
Euclides acerta quando mostra o seringueiro como um escravo. Escravidão
teria sido o melhor termo para descrever o regime de trabalho perpetrado nos
seringais amazônicos naqueles idos, quando os seringueiros, via de regra, eram
prisioneiros das dívidas insanáveis junto ao patrão e da prisão a céu aberto da
natureza circundante, que os aniquilava. Euclides fica tão abismado com os
flagrantes de escravidão dos seringueiros naquele “renascer de um feudalismo
acalcanhado e bronco”, (CUNHA, 2003, p. 53) que não se furta a tornar esse um dos
seus principais temas quando escreve sobre a Amazônia. Defende a instauração
de leis trabalhistas que redimam o homem abandonado nos rincões amazônicos
e a aplicação da justiça contra a vergonhosa e aterradora espoliação.
Se a Amazônia é intraduzível, como Euclides poderia traduzi-la? Como
decifraria um enigma indecifrável? Era imperativo escrever sobre a região. Como
resolver o impasse? Euclides achou a chave do enigma: a metáfora – só ela pode
dizer o indizível, traduzir o intraduzível, abarcar o inabarcável. Por isso, Euclides
dela se valeu sem parcimônia. A metáfora se apresenta aí como uma ponte sobre
o abismo do inefável. E ela ainda contribui para hachurar muitas incômodas
lacunas tanto da linguagem científica quanto da artística.

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52
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53
Aspectos de retórica e ritmo no contexto da
Institutio Oratoria, de Quintiliano

Carlos Renato R. de Jesus

54
Introdução

No primeiro século depois de Cristo, Marco Fábio Quintiliano (30?-96? d.C.),


eminente professor de retórica em Roma, traz a público seu grande tratado: a
Institutio oratoria, traduzida comumente como “Educação oratória”, e publicada,
talvez postumamente, em setembro de 96 d.C. A importância e o reconhecimento
de Quintiliano como grande mestre de sua época são comprovadas pelo fato de
que, durante o governo do imperador Vespasiano (9-79 d.C.), é fundada uma
escola pública de retórica, que teria sido a primeira da capital, e seu fundador,
Quintiliano, o primeiro rétor remunerado pelo Estado, tendo sido, posteriormente,
preceptor do próprio imperador Domiciano.
Sua magnífica obra consta de 12 livros e compreende, de forma didascálica
e indubitavelmente clara, todas as principais teses que assinalaram o sistema
e o desenvolvimento da retórica antiga (GARAVELLI, 2008, p. 38). Não se trata,
portanto, de uma nova teoria, mas de uma súmula das doutrinas precedentes,
sistematizadas e reelaboradas de modo crítico, aprofundado e rigoroso. A Institutio
trata fundamentalmente da educação do orador, desde as primeiras letras até
sua prática forense. Em certas edições, temos mais de mil páginas de texto latino,
cujo conteúdo, eruditíssimo, ocupou lugar de destaque na educação dos medievos
por muitos séculos.
O estudo do sistema da retórica, propriamente dito, encontra-se nos livros
III a XI, sendo que a parte concernente ao que aqui nos interessa de imediato, os
recursos estilísticos do discurso oratório, no conjunto de sua elaboração escrita,
a elocutio, reside nos livros VIII e IX. Neste trabalho, faremos uma abordagem a
respeito das concepções de Quintiliano sobre um dos fatores que, segundo o grande
mestre, é essencial para a qualidade artística, isto é, para a elegantia do discurso
a ser pronunciado pelo orador que deseja arrebatar não apenas a anuência do
auditório, pela persuasão de seus argumentos, mas também sua admiração (páthos)
causada pelo deleite e pela beleza de seu discurso. Estamos falando do numerus,
o ritmo proporcionado pelo emprego de elementos linguísticos que produzem
determinados efeitos estéticos no texto. Faremos um sucinto levantamento das
ideias de Quintiliano a esse respeito, presentes, especificamente, no capítulo IV
do livro XI de sua obra magna. Para tanto, servir-nos-emos do embasamento
oferecido por seus antecessores, particularmente Aristóteles (384-322 a.C.) e Cícero
(106-43 a.C.). O primeiro escreveu o principal livro da Antiguidade clássica que,
ainda hoje, define a disciplina Retórica: sua Techné rhetoriché (“Arte retórica”)
delineou de forma decisiva e sistemática o funcionamento dos elementos que a
compõem. O segundo, Marco Túlio Cícero, escreveu um vasto acervo teórico (além
de seus muitos discursos oratórios, que deram prática à teoria), sobre o tema.
Dessa forma, aceitando a sugestão de Barthes (1975), trilharemos o caminho
aberto por Aristóteles, com a teoria; por Cícero, com a prática; e por Quintiliano,
com a pedagogia. Tudo no que diz respeito, especificamente, ao problema
estilístico, acima citado, da utilização do ritmo no discurso.

Breve incursão a Aristóteles, Cícero e Quintiliano

Embora Platão tenha tratado diretamente da Retórica nas suas obras Górgias
e Fedro, será seu mais brilhante discípulo que irá elaborar, de forma completa, o

55
primeiro manual acerca da retórica antiga. Entre os textos de Aristóteles, encontra-se
a Arte Retórica. Nessa obra, dividida em três livros, Aristóteles elabora uma
conceitualização da disciplina, dividindo-a em categorias e atribuindo nomes às
diversas técnicas nela presentes e por ela utilizadas, a exemplo do que já fizera antes
em diversos outros campos do conhecimento. A retórica, então, é concebida como
uma ferramenta, uma disciplina puramente formal utilizável em diversos campos
do conhecimento. O projeto de Aristóteles consistia num trabalho que pudesse
contemplar a “argumentação”, o “estilo” e as “partes do discurso”, de modo que
podemos fazer um breve resumo esquemático da estrutura do livro como um todo.
No livro I, encontramos a introdução, definição e divisão da matéria, em
correlação com a Dialética. O autor censura seus predecessores por haverem
estudado principalmente as provas alheias à Ars (capítulos 1-3). Depois trata dos
argumentos da Retórica a partir da inferência do orador e da sua adaptação ao
público e classifica os diversos gêneros de discurso (capítulos 4-15), quais sejam:
deliberativo (na assembleia), epidítico (no teatro), judiciário (no fórum). Desse
modo, a retórica é classificada em gêneros, de acordo com o objetivo a que se
propõe: pode ser deliberativa, se o auditório tiver que julgar uma ação futura;
judicial, se o auditório tiver que julgar uma ação passada; e epidítica, se o auditório
não tiver que julgar ações passadas nem futuras.
No segundo livro, o autor se detém nos aspectos retóricos relativos ao
público. Primeiramente, trata do páthos (capítulo 1) e, em seguida, de como
suscitar emoções nos ouvintes (capítulos 2-11), de como se adaptar ao ouvinte
(capítulos 12-17) e das formas de argumentação lógica (capítulos 18-26). O livro
II é consagrado, ainda, aos sentimentos e às emoções com as quais o discurso irá
lidar e que o orador deve conhecer (cólera, amizade, temor, vergonha, cortesia,
piedade, indignação, etc.); depois, Aristóteles passa à forma de raciocínio peculiar
à retórica: não se trata do silogismo rígido da ciência da Dialética, mas de um
raciocínio que visa somente a uma probabilidade aceitável; Aristóteles o chama
entimema. Ele lhe classifica as diversas espécies antes de passar aos tópoi (“lugares-
comuns”) ou temas gerais de argumentação.
O terceiro livro diz respeito ao discurso, à composição e à forma. Trata da
teoria do estilo (elocutio); apresenta a diferença da prosa (oratio soluta, isto é, a
prosa comunicativa, do dia-a-dia, sem a intenção de convencer) com a retórica;
enfoca a ordem das partes do discurso (dispositio) e ainda aborda o léxico e as
figuras (schemmata). É nesse livro que Aristóteles faz menção ao ritmo como
elemento constitutivo da retórica. Sua preocupação é se “o ritmo deve ou não
condicionar a redação do estilo em prosa” (PLEBE, 1978, p. 86) e a solução
apontada por ele é de que a prosa deve ter ritmo, mas deve evitar a métrica, isto
é, as medidas próprias da poesia:

Τὸ δὲ σχῆμα τῆς λέξεως δεῖ μήτε ἔμμετρον εἶναι μήτε ἄρρυθμον: μὲν γὰρ
ἀπίθανον (πεπλάσθαι γὰρ δοκεῖ), καὶ ἅμα καὶ ἐξίστησι: προσέχειν γὰρ
ποιεῖ τῷ ὁμοίῳ, πότε πάλιν ἥξει.
A forma do estilo não deve ser nem métrica nem desprovida de ritmo.
De facto, a primeira não é persuasiva, pois parece artificial, e, ao mesmo
tempo, desvia a atenção do ouvinte, pois fá-lo prestar atenção a elemento
idêntico, quando a este regressar (Rhet., 3, 8, 1)29.
A partir do século II a.C., a Retórica chega a Roma. Diversas escolas são
29
Todas as traduções da Retórica, de Aristóteles, são de Manuel Alexandre Júnior (cf. referências).

56
fundadas, muitos oradores surgem. O maior expoente deles é, sem dúvida, Marco
Túlio Cícero. Sua prática oratória tem base aristotélica. Barthes (1975, p. 158),
assim distingue a retórica ciceroniana da de Aristóteles:

a) medo do “sistema”; Cícero deve tudo a Aristóteles, mas o


desintelectualiza. Quer penetrar-lhe a especulação de “gosto”, de
“natural” (...); b) a nacionalização da retórica: Cícero procura romaniza-la
(é o sentido do Brutus), a “romanidade” aparece; c) o concluio mítico
do empirismo profissional (Cícero é um advogado mergulhado na vida
política) e da vocação à grande cultura; esse concluio terá um brilhante
destino: a cultura se tornará o ornamento da política; d) a assunção do
estilo: a retórica ciceroniana anuncia um desenvolvimento da elocutio.

De fato, a “romanidade” inserida por Cícero à prática oratória, tem seu


principal mérito na valorização do debate filosófico (GARAVELLI, 1988). A
concepção ciceroniana acerca da preparação da arte oratória, segundo Senger
(1960), se encontra no De oratore, considerada a obra mestra de Cícero no que
concerne aos seus diversos livros sobre o assunto. Não obstante, no Orator, ele
dedica parte da obra a discutir a necessidade da formação integral do orador,
inclusive no que diz respeito aos conhecimentos de Filosofia:

Nec uero a dialecticis modo sit instructus et habeat omnis philosophiae


notos ac tractatos locos. Nihil enim de religione, nihil de morte, nihil de
pietate, nihil de caritate patriae, nihil de bonis rebus aut malis, nihil de
uirtutibus aut uitiis, nihil de officiis, nihil de dolore, nihil de uoluptate, nihil
de perturbationibus animi et erroribus, quae saepe cadunt in causas et
ieiunius aguntur, nihil, inquam, sine ea scientia quam dixi grauiter ample
copiose dici et explicari potest.

Mas não apenas este instruído na Dialética, mas também aquele que
possua todos os conhecimentos e o manejo de todas as questões da
filosofia. De fato, sem a disciplina que mencionei há pouco, ninguém
pode expressar e desenvolver com majestade, amplitude e elegância
nada sobre a religião, sobre a morte, sobre a piedade, sobre o amor à
pátria, sobre o bem e o mal, sobre as virtudes e o vício, sobre os deveres,
sobre a dor, sobre o prazer, sobre as paixões e extravios da alma –
assuntos que se apresentam amiúde nas demandas e que se tratam de
modo bastante seco (Orator, 118)30.

Numa época em que a Oratória estava em decadência, em que se optava


por uma retórica mais simples e sem as técnicas mais elaboradas empregadas
por Cícero, era preciso retomar os princípios do que o grande orador romano
acreditava ser a matriz do orador perfeito. O discurso eloquente e vibrante
constituía a elocutio, onde se localizam as aplicações das normas estabelecidas
por ele para uso do numerus como elemento imprescindível à constituição do
discurso oratório (oratio numerosa).
No entanto, o modelo que sobreviverá na Idade Média como representativo
da Retórica Clássica será a obra de Quintiliano. Os livros da Intitutio oratoria
apresentam o mais completo plano teórico a respeito da eloquência elaborado

30
Todas as traduções do Orator são de minha autoria.

57
na Antiguidade. Não traz, entretanto, nenhuma novidade ou nova teoria, nem o
autor adere a qualquer linha específica, mas oferece uma espécie de síntese das
doutrinas precedentes a respeito da disciplina. A obra trata desde os requisitos
atávicos do orador, passando pela educação e formação do berço, até a aquisição
acadêmica das técnicas linguísticas da matéria e a profunda índole moral e cívica
que permeia o verdadeiro orador (uir bonus dicendi peritus):

O livro I (...) trata justamente de como se deve preparar a criança para o


exercício da oratória desde a mais tenra idade (...). No livro II, Quintiliano
discute o caráter e o papel do mestre de Retórica e apresenta sua visão
sobre a disciplina, definindo a metodologia a ser seguida. À exposição,
propriamente, do sistema da Retórica, reservam-se os livros III a XI,
que tratam de sua origem, das partes que compõem a arte oratória, dos
diversos tipos de discurso, da exposição, do raciocínio e da argumentação
a ser seguidos pelo orador, bem como das figuras e tropos, da imitação, da
memória e da declamação. O livro XII, por último, trata especificamente
do papel do orador e de seus deveres, sobre os quais se situa o de primar
por sua honestidade (...) (PEREIRA, 2006, p. 27).

Eminentemente didática, a obra mantém posição análoga à de Cícero, no


tangente à relação entre retórica e filosofia:

Neque enim hoc concesserim, rationem rectae honestaeque uitae (ut


quidam putauerunt) ad philosophos relegandam, cum uir ille uere ciuilis
et publicarum priuatarumque rerum administrationi accommodatus, qui
regere consiliis urbes, fundare legibus, emendare iudiciis possit, non alius
sit profecto quam orator.

Pois não concederia que o interesse por uma vida correta e honesta
deva ser relegado aos filósofos, como alguns julgaram, quando o homem
realmente políticos, adaptado à administração dos assuntos públicos e
privados, que possa dirigir as cidades com deliberações, alicerçar com
leis e corrigir com julgamento, certamente não possa ser outro senão
orador (Institutio oratoria, I, 1, 10)31.

Apoiando-se em Cícero, a quem concebe como o grande modelo oratório a


ser seguido, Quintiliano retoma e enfatiza algumas ideias de seu predecessor,
especialmente aquelas relacionadas à necessidade de apontar os requisitos
indispensáveis para a formação do orador perfeito, cujos conhecimentos e
habilidades não se restringiriam apenas ao uso dos instrumentos persuasivos do
discurso oratório, ou ao domínio das leis e da própria argumentação. Mais do que
isso, o orador perfeito deveria ser capaz de, além de persuadir e maravilhar seu
auditório nas demandas forenses ou públicas, também de ser sensível à premência
de liderar a Vrbs no caminho de seu estabelecimento como sociedade igualmente
perfeita. Tudo isso sendo possibilitado pelo talento técnico do orador e pela sua
capacidade de despertar a confiança em sua audiência, cujos resultados só podem
ser alcançados pelo manejo das palavras do discurso. Compreender e interpretar
as estratégias que compõem o discurso elegante, habilmente construído e
esteticamente organizado que pretende resultar naquelas expectativas é o que

31
Todas as traduções da Institutio oratoria são de Bruno Basseto (cf. referências).

58
pretendemos fazer, de modo panorâmico, neste texto. Por isso, como recorte de
uma pesquisa mais ampla, o que interessa particularmente a nós, neste momento,
é o capítulo IV do livro IX, onde Quintiliano oferece sua visão acerca do ritmo na
prosa, como importante recurso retórico.

Quintiliano e sua proposta

Como vimos, a Institutio oratoria está longe de ser mais um manual de


retórica tradicional. Revela-se, antes, um projeto amplo e articulado de formação
cultural e moral do orador, acompanhando todas as fases de sua formação e de
suas atividades e deveres. Menos pessimista que o historiador Tácito (56 – 117
d.C.) no seu Dialogus de oratoribus, o qual concede espaço maior à discussão sobre
os motivos da decadência da oratória, o escopo declarado de Quintiliano foi o de
resgatar, adaptando-a a seu tempo, a herança ciceroniana, a cujo ideal oratório e
tipo de formação cultural e filosófica o autor da Institutio também almejava, embora
tendesse mais para sua formação pessoal e competência técnica do que para uma
liderança política e intelectual, como a que entrevia Cícero (BARCHIESI, 1991, p. 129).
Sua extensa e importantíssima obra constitui o último suspiro da complexa retórica
clássica latina, constituindo muito mais do que a síntese da ciência retórica entre
os latinos. Encontramos no mestre de retórica, uma “pedagogia original”, no dizer
de Citroni (2006, p. 843). Para o estudioso, o fato de dedicar uma inteira seção (o
livro I) à infância do orador, constitui, por si, grande originalidade sem precedentes.
Porém, a abordagem de Quintiliano é muito mais grandiosa. Seu livro não apenas
abarca o debate sobre o estilo das diversas correntes oratórias de seu tempo, mas
usa de sua autoriade de professor dedicado à matéria por tantos anos, no sentido
de tanto sedimentar um estilo “ideal”, que seria o ciceroniano, e, mais ainda, imbuir
seu orador de responsabilidade moral (ibid., p. 848), cujas ramificações encontram
corpo na própria vida pessoal do orador. Seu estilo é claramente inspirado no
de Cícero, porém, ainda segundo Citroni (ibid.), “Quintiliano sabe combinar a
precisão exacta e sóbria dos passos técnicos com a mais viva dinâmica expressiva
das argumentações que envolvem problemas gerais”. Seu estilo, enfim, mesmo
que vinculado à exposição doutrinal, é marcado daquela fluidez e elegância que
caracterizaria decisivamente a literatura clássica romana.

Ritmo, estilo e retórica

No último capítulo do livro IX, Quintiliano se dedica especificamente à


compositio: o tratamento a ser dado no tocante à união (composição) das palavras
e ao ritmo. Em constante diálogo com Cícero, Quintiliano vai construindo seu texto
defendendo a importância da composição para o orador, uma vez que esta não
serve apenas para deleitar, mas também para a excitação dos sentimentos (Inst. or.,
IX, 4, 9). Assim, atraídos que somos pela melodia e pela música, somos arrebatados
para emoções diversas. Citando o Orator32, de Cícero, o grande mestre enfatiza
a necessidade de o orador dispor as palavras harmoniosamente. Para tanto,
32
Quantum autem sit apte dicere, experiri licet, si aut compositi oratoris bene structam collocationem
dissoluas permutatione uerborum. (“Com efeito, é possível, por um lado, provar o quanto é
importante falar elegantemente se decompuseres um período bem estruturado de um orador
cuidadoso com uma alternância das palavras” – Or. 232).

59
Quintiliano distingue dois estilos fundamentais para composição harmoniosa
(recte componere): um estilo interligado e entrelaçado (uincta e contexta) e outro
livre (soluta). Este último convém à conversação e às cartas, por exemplo. Mesmo
assim, não está isento de certo ritmo, ainda que menos perceptível (Inst. or. IX,
4, 19-21). Ainda no que se refere à colocação das palavras, o mestre enumera os
componentes necessários à compositio: a ordenação (ordo), a união (iunctura) e
ritmo métrico (numerus) (cf. Inst. or. IX, 4, 22ss).
A ordo refere-se ao modo de unir as palavras. Deselegante seria, por exemplo,
em fratres gemini (“irmãos gêmeos”), manter a palavra fratres (“irmãos”), já que
seria reduntande e desnecessário. Além disso, sendo o verbo a força da linguagem
convém encerrar a frase com ele, a não ser que isso soe mal, por algum motivo.
A iunctura afeta as palavras individualmente, assim como os incisos (incisa),
os membros (membra) e os períodos (perihodi)33. Deve-se evitar palavras mal
sonantes, cacófatos, ecos e hiatos, embora, às vezes, no caso deste último, pode até
ser conveniente se usado adequadamente. É o caso da sequência pulchra oratione
ista acta te (“orgulha-te por esse belo discurso teu”), em que o hiato entre o final
de pulchra e ista e o início de oratione e ista, e ainda entre ista e acta, na elocução
da frase, torna-se necessário para evitar uma velocidade descabida. A supressão
de certas consoantes também deve ocorrer para o bem da agradabilidade, como
em post meridiem, que fica pomeridiem, por exemplo34. Há que se evitar também
o uso excessivo de palavras monossilábicas, verbos e nomes curtos ou muito
longos (a fim de a linguagem não ficar muito pesada) e a reunião de palavras
com igual ritmo métrico e com igual desinência, com igual forma de declinação.
Também não é bom que se sigam verbos a verbos, nem nomes a nomes. É preciso
variedade (Inst. or. IX, 4, 38-43).
Ao tratar do numerus, Quintiliano, assim como Aristóteles, diferencia ritmo
e metro. Ritmo é “espaço de tempo”; metro é “ordenação” (Inst. or. IX, 4, 45).
Aquele afeta a quantidade, tem preferência por pés35 de gênero igual, como o
dátilo (– ), de uma medida e meia, como o péon (– ), ou duplo, como o
iambo ( –) e o troqueu (– ) (cf. Or. 215). Para estabelecer uma estrutura rítmica,
seja no verso, seja na prosa métrica, interessa a mora, isto é, o menor tempo de
duração de uma sílaba, e não a sílaba propriamente dita. Dessa forma um pé
do tipo – , pode ser equivalente a  –36. Já o metro afeta a qualidade do pé. O
sistema de metros é fechado, pois, de fato, não é possível trocar um dátilo por
um espondeu, como na prosa. O ritmo não tem um limite fixo, somente arsis e
tesis, não ictus37 como na poesia. Além disso, inclui o movimento do corpo, já que
33
Trata-se das estruturas do estilo, mencionadas anteriormente por Quintiliano (IX, 4, 22), definidas
e sistematizadas por Cícero (Or. 224).
34
Essa questão é exaustivamente exemplificada por Cícero no Orator (153-162).
35
O “pé” é uma unidade de medida que constitui a base de um verso greco-romano, constituído
por uma combinação de sílabas longas e breves. Na prosa métrica também pode ser usado, quando
forma as chamadas “cláusulas métricas”.
36
O que interessa é a duração de tempo de um pé. Por isso, é possível fazer comutações de várias
espécies, desde que se mantenha a quantidade de moras, ou seja: – – é igual a  –, por exemplo.
O que significa dizer os espaços de tempo são bem livres, se comparados às sílabas, quando estas
forem bases do metro, na poesia, cuja limitação é devida a rigidez das estruturas de versificação.
37
A terminologia usada para nomear o tempo forte e o tempo fraco refere-se, assim como o
nosso “bater” e “alçar”, à prática de escandir a leitura do texto com o pé ou com o dedo: o tempo
forte se chamava thesis (θέσις, que significa precisamente “apoio”, a batida do pé ou do dedo),
enquanto o tempo fraco foi chamado arsis, (ἅρσις, que significa levantamento, do pé ou do dedo).

60
este possui cadências rítmicas, do mesmo modo que a voz e os gestos também
estão vinculados à natureza do conteúdo do discurso, o que torna a compositio
diretamente ligada à pronuntiatio (Inst. or. IX, 4, 138-139).
Portanto, a prosa (oratio numerosa) deve ter como base o ritmo, mas não deve
ser constituída exclusivamente de ritmos: quod Cicero optime uidet ac testatur
frequenter se quod numerosum sit quaerere ut magis non árrhythmon, quod esset
inscitum atque agreste, quam énrhythmon, quod poeticum est, esse compositionem
uelit (“o que Cícero vê muito bem e testa com frequência é aquilo que, para ele,
seria a busca do rítmico, não tanto o ‘árrhythmon’ [‘sem ritmo’], o que seria
grosseiro e rude, mas o ‘énrythmon’ [‘ritmado’], que é realmente poético: isso ele
quer como parte da estrutura da composição” – Inst. or. IX, 4, 56).
Enfatizando que está tratando especificamente do ritmo oratório (e não da
poesia), Quintiliano afirma que os pés métricos são mais difíceis de serem usados
na prosa oratória do que no verso, pois neste há poucas palavras, e o princípio
é único e igual. Já no discurso os períodos são longos e há muita variedade,
sem a qual ele pode desagradar (Inst. or. IX, 4, 60ss.). Daí porque a articulação
do período em incisos e membros são carregados de ritmo, cujos efeitos são
diversos dependendo da velocidade com que eles são articulados: Hae particulae
prout sunt graues acres, lentae, celeres, remissae exsultantes, proinde id quod
ex illis conficitur aut seuerum aut luxuriosum aut quadratum aut solutum erit
(“conforme essas partículas forem graves, agudas, lentas, rápidas, frouxas ou
vivazes, consequentemente o que se montar com elas será severo ou luxuriante,
bem arredondado ou solto” – Inst. or. IX, 4, 69).
Quintiliano retoma esse problema no parágrafo 122 (ainda no capítulo 4),
quando reafirma os conceitos-chave de Cícero (presentes em Or. 223-225) sobre
essa mesma questão. Diz Quintiliano:

Diximus igitur esse incisa membra circumitus. Incisum, quantum mea fert
opinio, erit sensus non expleto numero conclusus, plerisque pars membri.
Tale est enim quo Cicero utitur: “Domus tibi deerat? At habebas. Pecunia
superabat? At egebas”. Fiunt autem etiam singulis uerbis incisa: “diximus,
testes dare uolumus”: incisum est “diximus”. Membrum autem est sensus
numeris conclusus, sed a toto corpore abruptus et per se nihil efficiens. (...)
Itaque fere incisa et in membra mutila sunt et conclusionem utique desiderant.

Dissemos que existem os incisos, os membros e o período. O inciso, segundo


minha opinião, constará do significado fechados em que os pés métricos
estejam completos, enquanto muitos autores o consideram uma parte do
membro. Assim o exemplifica Cícero, com “Domus tibi deerat? At habebas.
Pecunia superabat? At egebas” 38. Todavia, montam-se incisos também com
cada uma das palavras: diximus, testes dar uolumus (Dissemos, queremos
apresentar a testemunha), em que diximus é um inciso. O membro, porém,
consta de expressão de um pensamento com os pés rítmicos completos,
mas separado do conjunto e por isso sem valor por si mesmo. (...) Por isso,
em geral, os incisos e membros são incompletos, e sem dúvida necessitam
de uma conclusão (Inst. or., IX, 4, 122-124).
Os gramáticos romanos, no entanto, rebatizaram os termos, atribuindo à arsis o tempo forte,
quando se levanta, e à thesis o tempo fraco, quando a voz se abaixa. São essas as acepções até
hoje usadas (STURTEVANT, 1975).
38
“Não tinhas habitação? Ao contrário, tinhas. Restava dinheiro? Pelo contrário, tu passavas
necessidade” (Cf. Or. 223).

61
O exemplo proposto por Quintiliano representa clara estruturação do
numerus orationis. Em primeiro lugar, as sílabas longas e breves agrupadas no
final da frase, formando a clausula péon-espondaica, depois os quatro incisos –
possíveis de terem sido formados por serem constituídos de duas palavras cada
um – que formam os membros do período (JESUS, 2013, p. 58):

Período
membro membro
inciso inciso inciso inciso
Domus tibi deerat; at habebas. Pecunia superābăt? Ăt ĕgēbās.

Concordando com as prescrições de Cícero, Quintiliano admite o período ser


formado por quatro membros (um par de membros constitui o inciso). O período
deve transmitir um pensamento completo. Nem demasiadamente curto, para que
não seja inconsistente; nem longo demais, para que seja pesado. Por exemplo:

Vbicumque acriter erit et instanter et pugnaciter dicendum membratim


caesimque dicemus: nam hoc in oratione plurimum ualet; adeoque rebus
accommodanda compositio ut asperis asperos etiam numeros adhiberi
oporteat et cum dicente aeque audientem inhorrescere.

Sempre que for indispensável falar com severidade, com insistência e com
agressividade, nos pronunciaremos por meio de membros e incisos; pois
isso tem um peso muito grande no discurso; para tanto a estrutura rítmica
deve ser adaptada aos assuntos, de tal modo que se consiga conciliar
ritmos mais duros com os assuntos desagradáveis e provocar nos ouvintes
aquela mesma aversão que o orador manifesta (Inst. or., IX, 4, 126).

E para cada parte do discurso há um ritmo adequado. É recomendável usar


o período nos proêmios dos discursos processuais, quando se quer suscitar a
compaixão, variando o ritmo se for elogio ou acusação ou conforme a intenção.
Assim, para o proêmio, deve haver variedade de composição:

Nam iudicis animus uarie praeparatur: tum miserabiles esse uolumus, tum
modesti, tum acres, tum graues, tum blandi, tum flectere, tum ad diligentiam
hortari. Haec ut sunt diuersa natura, ita dissimilem componendi quoque
rationem desiderant.

Portanto, a vontade dos juízes pode ser preparada de várias maneiras:


ora queremos parecer patéticos, ora modestos, ora ásperos, ora sisudos,
ora meigos; ora incitar, ora chamar atenção. Sendo tudo isso de natureza
diversa, obviamente requerem uma estrutura rítmica diferente (Inst.
or., IX, 4, 133).

Na narração, portanto, exigem-se pés métricos mais lentos, com membros


mais longos e pés mais breves. Os argumentos também se servem de pés métricos
conforme sua natureza rítmica. Para passagens mais elevadas, é aconselhável
o dátilo e o peônio. Já as passagens solenes, acomodam-se melhor ao iambo. Os
epílogos exigem ritmos lentos e menos sonoros (Inst. or., IX, 4, 132-137).

62
Quintiliano está se referindo às cláusulas métricas39, recurso precioso para
o alcance do ritmo no discurso. Para o rétor, as sílabas longas são mais elevadas
e graves, e as breves, são mais ligeiras. O ritmo passa a ser enérgico se as sílabas
passam de breves a longas; mas brando se passam de longas a breves: clausula
quoque e longis firmissima est, sed uenit et in breues, quamuis habeatur indifferens
ultima (“também a conclusão de uma sentença com sílabas longas se torna firme;
contudo, pode se encerrar também com breves, embora se considere a última
como indiferente” – Inst. or. IX, 4, 93). Na verdade, o mestre romano em pouco
difere do que prescreve Cícero sobre esse assunto. Quintiliano prefere os pés de
3 sílabas, e Cícero opta por 4 sílabas (como o péon – , com uma longa e três
breves) ou por 5 (como o dócmio  – –  –, com uma breve, duas longas, uma
breve e outra longa). Quintiliano considera que estes não são pés, mas ritmos
completos, pois são compostos de dois pés: o péon pode ser considerado a união
de um troqueu (– ) com um pirríquio (). Já o dócmio pode ser formado de
um anfíbraco ( – ) e de um iambo ( –). Os parágrafos 93 a 111 são dedicados
a dar exemplos de uso das cláusulas, mas sem diferenças significativas do que já
escrevera Cícero no Orator. Porém, a disposição do tema eminentemente didática
com que Quintiliano apresenta a questão do ritmo na sua obra consagra a elocutio
e cristaliza a maior preocupação de Cícero e razão última do ritmo como recurso
retórico. O fato de que a técnica faça tudo parecer sem técnica: dissimulatio curae
praecipua, ut numeri sponte fluxisse, non arcessiti et coacti esse uideantur (“o
importante é não demonstrar esforço despendido em sua montagem, para que
os ritmos deem a impressão de fluir espontaneamente e não ter sido buscados e
até forçados” – Inst. or. IX, 4, 147).

Considerações finais

A breve exposição acima demonstra a profunda preocupação que os rétores


antigos, particularmente Quintiliano, tinham com o aspecto estético, rítmico do
texto. Obviamente, esperamos que o termo rítmico, aqui empregado, seja sempre
lembrado como tradução do termo numerus, que indicaria o que hodiernamente
poderíamos expressar como “ritmo linguístico”, ou seja, aquela engenhosa maestria
em imputar elementos estilísticos eufonicamente agradáveis ao texto, de modo
que possibilitem ao orador, no caso, penetrar com mais facilidade nas disposições
do auditório. A descrição que Quintiliano faz desse recurso resume-se à franca
competência de o orador em elaborar o período oratório, unidade discursiva sobre
a qual recaem aqueles elementos rítmicos, de modo eficiente e sutil, pois, sendo seu
ritmo discreto, como numa corrida, o orador deve visualizar a “linha de chegada”
sem negligenciar o resto. Os efeitos rítmicos são, por isso, continuando na metáfora
da corrida, tanto pontos de apoio quanto pegadas deixadas no chão:

Nam ut initia clausulaeque plurimum momenti habent, quotiens incipit


sensus aut desinit, sic in mediis quoque sunt quidam conatus iique leuiter
insistunt, ut currentium pes, etiam si non moratur, tamen uestigium facit.
39
Já anteriormente citadas neste texto, as cláusulas métricas estão ligadas à parte final de um
período, e são dispostas segundo regras rítmicas. A retórica clássica disciplina atentamente as
sequências quantitativas colocadas no fechamento da frase ou de seus membros, de modo que
a cláusula constitui a união de dois ou três pés que concluem um período prosástico ou as suas
partes, nem sempre coincidentes com uma pausa lógico-sintática.

63
Portanto, do mesmo modo que os inícios e as conclusões possuem muita
importância, uma vez que começa e termina o sentido, assim também
no meio existem alguns efeitos que se imprimem suavemente, como
os pés dos corredores, que deixam uma certa impressão, embora não
permanente (Inst. or. IX, 4, 67).

Quintiliano, portanto, do mesmo modo que Aristóteles, defende que o período


deve ter uma “volta” completa e manter uma medida suficiente que lhe permita
fixar-se na memória e corresponder a uma unidade respiratória40. No entanto, o
rétor romano focaliza um pouco mais que o filósofo grego na unidade formal e
rítmica que deve caracterizar o período, de modo a chamar a atenção do orador
para a necessidade de conceder particular cuidado aos contornos rítmicos do
início e, sobretudo, do final do período, onde se utilizam as cláusulas métricas.
A depender da forma como são dispostas na sentença, essas partículas (incisos
e membros) são susceptíveis de constituir o nível hierárquico superior de um
segmento, conforme pudemos perceber no exemplo da seção anterior, se apenas
justapostas; ou então, apenas fazer parte da composição do período – o qual
seria considerado unidade superior – se concatenadas periodicamente, isto é,
hipotaticamente (hipotaxe). O mais importante é que, para Quintiliano, tanto as
unidades menores (incisos e membros) quanto sua disposição na estrutura mais
ampla do período estão conectadas a fatores de ritmo na prosa que ele denomina
oratio uincta atque contexta (em oposição à oratio soluta, a prosa livre), isto é, a
prosa “fechada”, periódica (Instit. orat. IX, 4, 19-22).
Em síntese, Quintiliano coloca em prática as recomendações do arpinate
e confere teoria à prática, de modo sistemático e profundo, o que explica sua
intermitente influência não apenas nas escolas de retórica medieval, mas na
recepção que ainda hoje se faz do legado estilístico que a Retórica ofertou ao
pensamento humanístico – e linguístico – vindouro.

40
Inst. or. 9, 4, 125. Cf. também De or. 3, 182; Brut. 34; Inst. or. 9, 4, 68. Obviamente, a noção
“unidade respiratória” ou de “fôlego”, como vimos acima, em Dionísio de Halicarnasso, é bastante
imprecisa e vaga. Mas a insistência dos antigos em utilizar esse “critério” – também usado por
Aristóteles (Rhet. 3, 9) – indica que existe nele alguma recorrência e importância. Em Cícero,
aliás, uma especificação desse problema oferece alguma diretriz diferenciada à abstração inicial.
Assim lemos no Orator, 228: “que o discurso não se arraste infinitamente como um rio – pois deve
parar, obrigado não pelo fôlego dos locutores, nem pela pontuação do copista, mas pelo ritmo.”
(Ne infinite feratur ut flumen oratio quae non aut spiritu pronuntiantis aut interductu librarii, sed
numero coacta debet insistere). Nesse sentido, existe um condicionamento que pode auxiliar a
entender a delimitação extensiva do período, nossa assim chamada working memory (WILLET,
2002, p. 7). A “memória operativa”, já discutida por nós em outro momento (JESUS, 2013), diz
respeito a “um sistema cognitivo que proporciona um armazenamento temporário de informações
necessárias ao desempenho de uma ampla série de tarefas, inclusive o uso natural da linguagem
(compreensão, produção e recordação do discurso)”. (A cognitive system that provides temporary
storage of information necessary to perform a wide range of tasks, including natural language
use (comprehension, production and discourse recall). Então, a percepção do ritmo poético, por
exemplo, é essencialmente um fenômeno auditivo, para o qual a sintaxe e a semântica fazem
uma contribuição auxiliar, uma vez que o ritmo só existe se nós ouvirmos um poema recitado
ou o lemos em voz alta (ou mesmo se fizermos uma subvocalização para nós mesmo). Portanto,
limitados que são pela memória operativa, os kóla, no seu conjunto articulado no período, devem
ter o tamanho razoável para serem escutados e compreendidos como totalidades rítmicas, algo
que a colometria helenística parece ter percebido bem (WILLET, 2002, p. 17).

64
Referências

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Alberto, Abel do Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da moeda, 2010.

BARCHIESI, Alessandro et al. La prosa latina: forme, autori, problemi. A cura di


Franco Montanari. Roma: La Nuova Italia Scientifica, 1991.

BARTHES, Roland. A retórica antiga. In: COHEN, Jean (et alii). Pesquisas de retórica.
Trad. de Leda Pinto Mafra Iruzun. Petrópolis: Vozes, 1975, p. 147-232.

CICERÓN. L’orateur: du meilleur genre d’orateurs. Texte établi et traduit par Albert
Yon. Paris: Belles Lettres, 1964.

CITRONI, M. et al. Literatura de Roma Antiga. Trad. de Margarida Miranda e Isaías


Hipólito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006.

GARAVELLI, Bice Mortara. Manuale di retorica. Milano: Tascabili Bompiani, 2008.

JESUS, Carlos Renato R. de. Introdução à prosa rítmica na antiguidade clássica:


estudo e tradução do Orator de Cícero. Campinas: Mercado de Letras, 2013.

PEREIRA, Marcos Aurélio. Quintiliano gramático: o papel do mestre de Gramática


na Institutio Oratoria. 2. ed. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006.

PLEBE, Armando. Breve história da retórica antiga. Tradução e notas de Gilda


Naécia Maciel de Barros. São Paulo: EPU Universidade de São Paulo, 1978.

QUINTILIANO. Instituição oratória. Tradução, apresentação e notas de Bruno


Fregni Basseto. Campinas: Ed. da Unicamp, vol. IV. 2016.

SENGER, Jules. A arte oratória. Trad. Carlos Ortiz. 2. ed. São Paulo: Difusão
Européia do Livro, 1960.

STURTEVANT, Edgar H. The pronunciation of Greek and Latin. 2. ed. Chicago: Ares
Publishers, 1975.

WILLETT, Steven J. Working memory and its constraints on colometry. Quaderni


Urbinati di Cultura Classica. Roma (nuova serie) 71, n. 2, p. 7-19. 2002.

65
Arquivo, coleção, memória:
um encadeamento de imagens na poesia brasileira
(Carlos Drummond de Andrade, Luiz Bacellar e
Astrid Cabral)

Fadul Moura

66
O presente texto propõe discutir o trabalho crítico-criativo de possíveis gestos
mnemônicos de organização do mundo e dos afetos por parte de poetas brasileiros.
Para este espaço foram selecionados três autores, a saber: Carlos Drummond de
Andrade, Luiz Bacellar e Astrid Cabral. Tal seleção adveio do exercício poético
em textos que trazem formas de apresentação da memória. Por esse caminho,
compreende-se que suas poéticas aludem a ideias de arquivo. A opção por ideias
de arquivo, destacando com o plural a amplitude semântica e teórica que essa
palavra acessa, diz respeito ao modo com que cada poeta trata aquilo que pode
ser elaborado com e pela memória. As relações que estabelecem com os alvos a
serem arquivados nem sempre buscam uma preservação acolhedora de objetos
do mundo nem procuram com eles expor uma narrativa ordenada da História.
Por vezes, eles tencionam ironicamente o que existe e se voltam ao que falta ou
ao que não está mais apresentado em sua totalidade, de sorte que seus poemas
sugiram um recolhimento afetivo do mundo por meio de seus fragmentos.
Michel Foucault, ao tratar sobre a ordem, aponta que ela é

[...] ao mesmo tempo aquilo que se oferece nas coisas como sua lei
interior, a rede secreta segundo a qual elas se olham de algum modo
umas às outras e aquilo que só existe através do crivo de um olhar; de
uma atenção, de uma linguagem; e é somente nas casas brancas desse
quadriculado que ela se manifesta em profundidade como já presente,
esperando em silêncio o momento de ser enunciada (1999, p. XVI).

É interessante pensar com o filósofo sobre uma possível intimidade entre


as coisas, a ponto de serem tecidos fios de raciocínio sub-reptícios. A existência
desses fios garante concatenamentos e formação de redes pelas quais será exibida
uma forma de pensamento daquele que olha, da subjetividade ordenadora. À sua
medida, tal subjetividade procura se esconder com a máscara da imparcialidade,
o que algumas vezes dificulta a percepção imediata e o alcance em único golpe do
princípio do método. Nesse contexto, “atenção” e “linguagem” são moduladoras
de um disfarce de normalidade (ou da aparência dele). A seleção do meio com
o qual a ordem será expressa antevê a apresentação das coisas. E o resultado é
o que está diante de quem vê ou sente tal ordenação. As palavras de Foucault
suscitam o caminho reverso, para que seja notado o que está atrás da ordem,
porém, não é possível esquecer que o filósofo parte das coisas para alcançar a
disciplina aplicada sobre elas.
Reinaldo Marques, ao tratar o que compreende como arquivo do escritor,
explicita:

[...] [n]a medida em que reúne livros, coleções de objetos pessoais e


obras de arte, documentos tanto pessoais quanto ligados ao seu trabalho
criativo [...], seu arquivo mostra-se bastante heterogêneo, revela uma
intencionalidade ordenadora, mas sem se submeter, de modo geral,
a princípios organizacionais preconizados por saberes especializados
(2015, p. 19).

O ponto de encontro entre a leitura de Reinaldo Marques e as palavras de Michel


Foucault está no que é intrínseco ao arquivo pessoal do escritor: a “intencionalidade
ordenadora”. Com a intenção, ele orienta mais que o processo de escrita diante do
papel, mas todo o espaço no qual compõe seu arquivo. O espaço, nesse caminho de

67
leitura, é participante do processo criativo, por ser indissociável. Com a ordenação,
o arquivo possuirá legibilidade para o escritor. Isso não quer dizer que esse arquivo
seguirá um parâmetro disciplinar, mas que irromperá o enquadramento fechado
de disciplinas específicas à medida que a recolha dos elementos que o formarem
já será um ato de rebeldia contra os campos ou grupos de onde tais elementos
inicialmente forem retirados, para, assim, serem transportados ao arquivo pessoal.
Destarte, esse transporte tenciona o ideal de ordem ao passo que modifica, parcial
ou completamente, o sentido das coisas. Na mesma direção, a própria ideia espacial
do arquivo pessoal é alargada, podendo ir além do espaço convencional de um
escritório em direção a outros espaços de vivência do autor, o que pode colaborar
com o processo criativo na medida em que o substrato para a composição da poesia
adquire natureza que extrapola a palavra.
Se for possível fazer um deslocamento dessa imagem de arquivo exposta
pelas palavras do crítico e encará-la como um motivo para a produção literária dos
poetas em tela, ficará mais evidente a proposta plural mencionada. Lê-la como uma
imagem poética abrirá um caminho que perpassará os três brasileiros com arquivos
diferentes através das épocas. Tendo como ponto de partida uma perspectiva de
caráter interdisciplinar e comparativista, procura-se investigar o modo como
eles se apropriam de categorias como arquivo, coleção e memória e realizam um
movimento delas para seus livros quando estão a tratar de objetos, de espaços e de
afetos. Com esse eixo, levanta-se esta hipótese de aproximação de tais poetas por
meio do procedimento de arquivamento pela palavra poética, além de um trajeto
que inicia na crítica aos modelos taxonômicos de registro, passa pela observação
do conceito de arquivo e alcança na coleção benjaminiana um modo criativo de
estruturação do mundo. Intenta-se, por fim, discutir como o trabalho com a palavra
poética mostra a relação entre sujeito lírico e memória afetiva, buscando evidenciar
que as estratégias de registro dessa memória repercutem na fatura textual.

Drummond e o arquivamento poético dos restos

Carlos Drummond de Andrade já foi reconhecido por Maria Esther Maciel


como um caso exemplar de “poeta afeito ao gesto inventariante” (2009, p. 26).
Ela o aponta como compositor de uma série de poemas que simulam listas,
catálogos e inventários, realizando um gesto irônico sobre as formas taxonômicas
tradicionais, o que coloca em evidência as limitações delas. A lista recebe destaque
em sua análise em virtude do caráter serial que pode ser encontrado em poemas
drummondianos. Lida como ponto de partida para uma configuração de uma
ordem que visa ao enciclopedismo, ela é um recurso classificatório de sociedades
alfabetizadas, pautada no jogo entre continuidade, em que se inscreve uma
ordem sequencial, e descontinuidade, na “falta de um fluxo discursivo, na falta
de conectivos entre os itens” (MACIEL, 2009, p. 29). Em seus poemas, a lista tem
estrutura e uso reconfigurados, o que acarreta uma flexibilização na própria ideia
de inventário. Isso leva Maciel a afirmar que a poesia drummondiana

[...] se presta tanto ao gesto taxonômico de inventariar coisas quanto


o de inventar formas poéticas alternativas, híbridas, a partir de suas
inúmeras listas, catálogos, recenseamentos e enumerações. E mais:
de reinventar ironicamente os dispositivos institucionalizados de
classificação, evidenciando que os sistemas de organização das coisas

68
e do conhecimento – não obstante atendam à necessidade humana
de dar sentido à multiplicidade e ao caos do mundo – são também
mecanismos legitimados pela lógica burocrática do mundo moderno
e contemporâneo, com a função de ordenar, controlar, hierarquizar e
rotular nossa vida cotidiana [...] (2009, p. 70-71).

O jogo semântico proposto entre “inventário” e “invenção” ressalta o caráter


lúdico da poesia. Não se trata de desqualificação do poeta, mas de reconhecimento
do trabalho formal como atitude inventiva no poema capaz de desestabilizar
instâncias. No percurso das coisas às formas, o poema seria portador de uma
potência de mobilização de categorias responsáveis pela fixação das coisas no
mundo também no conteúdo. Mover categorias exige um olhar agudo do poeta
sobre elas, a fim de aplicar um corte na ordem conhecida, o que afetaria maneiras
de apreensão não só delas, mas do conhecimento que as envolve, isto é, o modo
de olhar para e de pensar sobre elas. Os verbos selecionados por Maciel indicam
mais que atitudes imperativas, porque taxonômicas, mas um modus operandi
ilustrador da construção de arquivos. A lista, a enciclopédia, o inventário são, nesse
sentido, formas estruturantes encontradas por aquele que toma linguagem como
instrumento e enlaça com ela os elementos do mundo. Ironizar inventivamente
os dispositivos instauradores das bases de um arquivo é tarefa que Drummond
exercita para, assim, dar um lugar novo às coisas, principalmente àquelas que
são consideradas dispensáveis ou indignas de memória.
Nesse caso, ele oferece a elas um lugar – o poema. Como loci no qual as
coisas são reunidas, sobre ele é depositada a ideia de palavra como registro e
transmissão. Se, no primeiro caso, ele é feito suporte sobre o qual é calcado com
o código o que deve perdurar, no segundo, é utilizado como elo entre o que já
houve e o ato de leitura (sempre contemporâneo). A leitura do poema será o
acesso ao que foi registrado com a intenção de perenidade, logo, ela garantirá
a reverberação de uma memória. O poema “Resíduo”, de A rosa do povo (2002
[1945], p. 158-160), é um exemplo da poética do inventário de que fala Maciel
(2009) e da possibilidade de acesso ao que foi arquivado pelo poeta. Desde o
título, ele indica um jogo entre uma totalidade e um resquício. Sendo a totalidade
expressa pela marca da ausência, a palavra-título sobrevaloriza o resquício, a fim
de que ele não seja lido como algo pejorativamente incompleto. Ela é reforçada
no decorrer da leitura, posto que evoca a prática da memória arquivante dos
resíduos do mundo no presente.
Leia-se um excerto do poema:

De tudo ficou um pouco.


Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
Ficou um pouco.

[...]

Pouco deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

69
[...] Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.

De teu áspero silêncio


um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo


no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.
[...]

O argumento do poema traz o antagonismo entre as palavras “tudo” e “pouco”,


projetando do título a recusa à totalidade. A composição por sintagmas nominais
que predomina ressalta o valor dos fragmentos: o afeto, o nojo e a interrupção de
vozes inauditas são elementos que restam de um “tudo” indefinido. Tal indefinição
tem na especificidade do que é apresentado o seu polo oposto, conferindo a tais
unidades a precisão do resto que deve ser mantido em contraface à grandeza do
todo. É nesse sentido que a beleza e a utopia simbolizadas pela rosa – imagem com
significados recorrentes em Drummond – são cristalizadas no tempo, tal como
acontece com a particularidade associada ao “pó”. Nela, verifica-se que o “pouco”
é capaz de cobrir as coisas, tomando conta do espaço anteriormente habitado,
como se seu significado fosse maior que o estado anterior à fragmentação. Da
mesma forma, os pequenos haveres são maximizados, ao passo que a reiteração
constante da palavra “pouco” instala pausas nas quais recrudesce a ânsia pelo
que não se pode perder.
Pela leitura de Simone Rossinetti Rufinoni, o poema vai

[...] [a]o enlaço do insignificante invisível: pegada, memória, recalque.


O processo vai do escombro, ainda palpável, ao eco da experiência
inapreensível, só captada pela lírica [...] no afã de dar sentido ao mundo.
Se o poema lembra um catálogo, também pode ser lido como um bazar
no qual se amontoam os dejetos de uma era: objetos, sentimentos,
delírios, fatos, percepções. Nesse sentido, as ruínas da guerra emergem
como ápice disfórico da fantasia do progresso e o campo de batalha se
faz vitrine da modernidade (2018, p. 253).

Dizendo de outro modo: o poema assume seus elementos como índices


possíveis de uma leitura da destruição. A seleção para a apresentação prevê um
arquivo a ser construído pelo poeta, como quem faz um “retrato” com base nos
resíduos. Ele os remete não só ao plano físico, mas à esfera dos afetos e do trauma.
Cabe a lírica a responsabilidade de dizer a subjetividade retorcida. Nessa imagem
da destruição ecoa também um resquício de voz de um eu lírico que procura se
dizer pelas coisas que mostra em comunicabilidade quase inaudível. São esses
componentes também retratos da dor, mais sugerida que evidenciada às claras.
Ao considerar o poema como “catálogo” ou “bazar”, a leitura de Rufinoni vai ao

70
encontro das palavras de Maciel. Aqui se destaca: resultado de uma seleção prévia,
tais “objetivos, sentimentos, delírios, fatos, percepções” são listados de forma
relativamente ordenada em um arquivo do tempo, perfazendo um caminho pelo
diminuto até chegar ao alcance do que não mais se vê.
As sentenças do poema trazem cortes sintáticos que favorecem a
coerência interna à mensagem, pois são fechadas em uma estrutura igualmente
fragmentária. Concentrando, com isso, a atenção do leitor sobre os nomes, vê-se
um espólio deixado após a destruição. As coisas enleadas pelos resquícios da
subjetividade poética – a julgar pelas poucas vezes que o eu é enunciado – vão
ganhando matizes de dor. Destarte, o resto pode, ainda, ser algo que se herda.
Da genética ao comportamento, o poema enumera o que foi deixado do tempo
anterior, em um ato de “[...] registrar/catalogar as coisas e lembranças do passado,
conferindo-lhe o papel de ‘testemunhos’ (aqui, no sentido arqueológico do termo)
de um tempo irrecuperável, de modo a fazê-las durar [...]” (MACIEL, 2009, p. 71).
Evocando a memória como dispositivo de manutenção do amálgama feito de
coisas e sentimentos, o poema apresenta as “folhas” como índice de resistência:
uma vez retiradas delas a capacidade de comunição pela voz, a presença delas
deverá ser lida por quem as acessa. Elas conotam uma ação em lento crescimento,
alimentando a expectativa de sobrevivência. Apesar dos destroços de guerra,
a força vital do que é afeito à terra não foi extinta, logo, dentre imagens que
reportam a ruínas, a vontade de sobrevivência atravessa não só a terra solapada,
mas também os tempos. Reconhece-se, assim, a durabilidade do registro e a
potência de transmissão que o poema encena. Ser testemunho do mundo equivale
a dar sinais pelos quais possam nascer novas narrativas a partir das memórias
das coisas, do espaço e dos afetos.

Bacellar e a coleção que nasce do lixo

No início de sua argumentação sobre arquivo, Jacques Derrida (2001)


aponta que a palavra grega arkhê carrega dois princípios: começo e comando.
Se o primeiro princípio se refere à natureza ou à história, em um sentido físico
ou ontológico, o segundo carrega a lei, o âmbito onde os deuses comandam,
onde exercem sua autoridade. Por esse percurso, Derrida desdobra: no espaço
do arquivo haveria duas ordens – a primeira, sequencial e jussiva; a segunda,
nomológica. Com tais sentidos, arkhê remete à palavra arkheîon, isto é, ao princípio
da casa. Havendo coincidência entre o espaço de guarda e o de ordem, caberia
aos magistrados superiores, residentes nessa morada, a segurança física e a
competência hermenêutica sobre o arquivo. É por esse caminho que o nascimento
dos arquivos aponta para um cruzamento: a domiciliação do princípio nomológico,
que encaminha a uma topo-nomologia, a qual confere ao arconte um poder.
O pensamento de Derrida suscita a indagação a respeito do que ocorre
com papéis, objetos, obras de arte, dentre coisas de natureza diversa àquela
definida pelo arconte. O que vem a despertar o interesse para o arquivo pessoal
do poeta e a ser tratado como assunto no poema de Drummond, por exemplo,
seria desqualificado e posto à margem dos arquivos convencionais. Nesse sentido,
a arte pode ir na contramão de tal gesto arcôntico. Realizando outro gesto, ela
desencadeia linhas de força que encaminham o apreciador (no caso dos poemas,
o leitor) à reflexão sobre os aparatos que compõem os arquivos tradicionais; com

71
eles, ao reconhecimento de que o direito aos arquivos é antevisto por um direito
à memória, explicitando os entrelaçamentos da última à ação do esquecimento.
O que não é acolhido pelo sentido de arquivo definido por Derrida, portanto, é
excluído da possibilidade de interpretação do arconte, logo, não é transformado
em tema de uma narrativa possível de transmissão. Eis o caso dos motes dos três
autores aqui elencados e o que os incita ao canto poético. Isso exige deles uma
nova ideia de arquivo. No caso de Drummond, ele recupera o conceito de lista
para alterá-lo, enquanto Luiz Bacellar e Astrid Cabral colecionam lembranças e
coisas, além de cartografar os espaços da cidade.
Se Drummond é um poeta que realiza um inventário dos restos para, com eles,
compor o seu arquivo à sua maneira, Luiz Bacellar – próximo a essa atitude diante
dos fragmentos – considerará a memória como lixo do qual nascerão os motivos
de sua poesia. O eixo entre os autores é a tomada dos fragmentos de um tempo
pretérito como forma de acesso a ele. Seja de um espaço destruído pela guerra, seja
de um “monturo” dos restos da cidade, é certo que remontam a um tempo anterior
ao processo de transformação que levou os lugares à ruína. Seus textos, na medida
em que são inventivos, elaboram lembranças a serem filtradas; consequentemente,
elas poderão ser trabalhadas e novamente expostas. Ponderando sobre a separação
do que é ou não institucionalizado, a simples ação de “jogar fora” prevê a criação de
outro espaço. O lixo surge como reserva temporária do que não foi selecionado, do
que deve ser preparado para o descarte. Comparado ao arquivo institucionalizado,
o lixo é a desordem e está para o que há fora lógica operadora e, ao mesmo tempo,
nega o método de sistematização do mundo; ou, ainda, traduz um espaço segregado
pela ordem do mundo, sobre o qual ela não impele sua ação com a mesma força,
portanto, abre caminho para a criação.
Em Frauta de barro (2011 [1963]), a presença do lixo aparece no terceiro
poema da sessão de abertura, intitulada “Variações sobre um prólogo” (2011,
p. 21-23), além do poema “Balada da rua da Conceição” (2011, p. 41-50), sendo a
última parte de “Romanceiro suburbano”. Enquanto o primeiro poema apresenta
o ponto de partida do livro, a balada traz o espaço da cidade antiga em contraste
com situações do presente. Ressaltam-se esses textos com o objetivo de elucidar
o procedimento de seleção das coisas – e dos afetos –, pois ele tem como fonte o
que advém do descarte. Em seus versos, Bacellar ressignifica o valor adotado ao
lixo, tal como o faz Drummond com os destroços.
Leia-se o poema III de “Variações sobre um prólogo”:

Nos longes da infância paro;


há uma inscrição sobre o muro:
Frauta clara, arroio escuro,
frauta escura, arroio claro.

E esse cavalo capenga?


E esse espelho espedaçado?
E a cabra? E o velho soldado?
E essa casa solarenga?

Tudo volta do monturo


da memória em rebuliço.
Mas tudo volta tão puro!...

72
E, mais puro que tudo isso,
essa anárquica inscrição
feita no muro a carvão.

São temas recomeçados


na minha vária canção.

O poema é aberto pelo adjunto adverbial que topicaliza a infância como


tempo espacializado: um recorte do passado é convertido em lugar habitado, onde
momentaneamente o poeta pode parar o seu percurso. Nesse espaço, o encontro
com a inscrição desperta as lembranças do eu lírico. Há um contraste entre a
rigidez do muro, suporte onde é inscrita a palavra, e o arroio, alusão à fluidez
no par imagético água-lembrança. O princípio da fixação é extrapolado pelo
símbolo aquático, sobrepondo memória ao registro. Isso significa que o suporte
é limitado, porque incapaz de apreender tudo o que advém das lembranças.
Em contrapartida, o jogo entre claro e escuro auxilia a composição de um efeito
visual para a memória, indicando que a visualização imprecisa está para a
impossibilidade de ela de ser totalizante.
O procedimento de enumeração não segue o mesmo parâmetro de lista do
poema Drummondiano. Bacellar concentra a enumeração na segunda estrofe do
poema, seguindo não só o impulso da imagem do “arroio”, mas também jorrando
caoticamente novos termos, ao passo que abre ramificações com os temas que
serão reencontrados em poemas posteriores no livro. Eles são lançados em
forma de indagações, as quais expõem os alvos do canto do poeta. A aparência
de desordem na apresentação das imagens contrasta com a regularidade do verso,
de tal modo que reforça o mecanismo da memória como constructo informe
que vai sendo modulado paulatinamente em virtualidade. Na terceira estrofe, o
dêitico recolhe os sentidos dos vocábulos anteriores. Nesse momento, é indicada
a origem do “Tudo” que retorna. A expressão “monturo da memória” traz à baila
o ponto de partida que coincide com o processo de seleção em ato: segregação e
reunião, tais atitudes do poeta são etapas da conduta que ele toma diante do lixo
como matéria para escrever o poema.
Walter Benjamin, ao escrever sobre a figura do colecionador, encontrará no
gesto dele identidade com a arte: na arte de colecionar, ele oferece a possibilidade
de desligamento do objeto de “todas as suas funções primitivas, a fim de travar a
relação mais íntima que se pode imaginar com aquilo que lhe é semelhante. Esta
relação é diametralmente oposta à utilidade e situa-se sob a categoria singular
da completude” (2007, p. 239). Livres de qualquer funcionalidade referencial, os
objetos a serem colecionados serão reterritorializados. No poema de Bacellar,
tal situação é pré-concebida pelo lixo. O que dele é retirado já não corresponde
mais à função primeira, mas à perda de significação. O poeta reconfigurará as
coisas ao passo que as enlear com a palavra poética. A procura pela intimidade
entre elas, isto é, pela semelhança, resultará em novo sentido, próprio à coleção.
Sabe-se que a reunião exercida pelo arconte é distinta em natureza daquela
operada pelo colecionador. Enquanto o primeiro está a serviço do nómos, o
segundo assume uma postura considerada por Walter Benjamin anárquica ou,
ainda, profana. Para ele, “[u]ma espécie de desordem produtiva é o cânone da
‘memória involuntária’ assim como do colecionador” (BENJAMIN, 2007, 246).
Logo, muito embora o poder arcôntico pareça semelhante à arte de colecionar,

73
ambos são discordantes por possuírem razões e finalidades particulares. Com
base nessa diferença, a atitude colecionadora do poeta em Frauta de barro, a
qual foi detalhada em outro espaço,41 pode ser lida como uma formação de uma
modalidade de arquivo que também escapa ao conceito nomológico. O diminuto é
elevado à condição de “tema” por ser contíguo à inscrição anárquica no muro, ou
seja, porque fundamenta a atitude que impele arbitrariamente a ordem e contra
ela se rebela por meio da arte. A proximidade do ato de colecionar com a memória
aponta para o mundo desordenado. Esse, entretanto, é o espaço necessário para
a criatividade. No caso do livro de Bacellar, é na identidade entre lixo e memória
que a coleção se torna significativa: com o manuseio das lembranças e com o
uso da palavra poética, ele estará retrocedendo no tempo à revelia da força do
presente (momento em que avança geograficamente pelo espaço da cidade).
Assim, o poeta, como o colecionador, salva os fragmentos do mundo.
Mirian de Carvalho, ao escrever sobre Frauta de barro, declara:

Em meio a demolições, ao lixo, aos ratos e urubus, em meio ao lirismo


que resta para referendar sua cidade e poetizar os objetos, com afinado
instrumento musical o poeta vai soprando a cor cinza da poeira que
atinge as coisas do dia a dia. Épica e lírica, barro e melodia, essa frauta
vem rastreando o pensar poético: um pensamento dinâmico que vai ao
fundo das coisas e da linguagem, refletindo-se no fazer poético (2011,
p. 140).

O lirismo envolve os animais, que rondam o lixo, e o espaço demolido,


exaltando não a beleza, mas figura da destruição. O canto é responsável por
alterar o status das coisas, intercalando entre alto e baixo e invertendo valores.
No gesto da subjetividade lírica de rastrear as coisas está um exercício de uma
sensibilidade. Ela conduz a dinâmica do pensamento ao que não seria sequer
foco de observação. O demolido, o que apresenta fedor ou que não atende ao
convencional de beleza é apresentado em “Balada da rua da Conceição” para ser
salvo pela palavra poética. Leia-se o excerto do poema:

[...]
(Onde irão morar os ratos
Os Ratos e o lixo
de ventre gordo e pelado?
e a saparia canora
da rua da Conceição?
Onde irão os jornais velhos?
Onde? E as garrafas quebradas?
Pra onde os cacos de vidro?
Pra onde os cacos de telha?
Pra onde as latas de conserva
vazias e enferrujadas?)
[...]

A reiteração constante do adjunto adverbial dramatiza a preocupação com


o destino do que é enumerado e explicita a afinação do verso em tom grave nesse
41
Cf. MOURA, Fadul. A cartografia do tempo: forma colecionadora e traços do canto em Frauta de
barro, de Luiz Bacellar. In: MOURA, Fadul; SERAFIM, Yasmin; OLIVEIRA, Rita Barbosa de. (Orgs.).
Amazônia em perspectiva: cultura, poesia, arte. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2017.

74
momento do livro. Em atitude semelhante ao poema terceiro de “Variações sobre
um prólogo”, a enumeração dos cacos recupera a imagem do lixo. Os termos
possuem qualificadores que indiciam a matéria de que são feitos ou a ação do
tempo sobre ela. Palavras como “velhos”, “quebradas”, “vazias” e “enferrujadas”
são desígnios que combinam o tempo e o substrato das coisas, sempre descritas
por um campo semântico que joga com o valor do tempo para empurrá-las à ideia
do monturo. A isso se soma o cruzamento entre guarda e morada. A destruição
que transforma o espaço em escombros indistintos do lixo põe em causa a perda
do abrigo. O eu lírico, portanto, utiliza dos animais como símbolos da perda das
referências não só geográficas, mas também afetivas. As alterações no espaço
cortam os laços de afeto que foram construídos pela história dos que habitavam
aquele lugar. Agora, uma vez que a ruína é o que resulta também da cisão no
plano dos afetos, ela simboliza o estado de espírito do eu lírico, o qual se confunde
com o espaço para extrair dos restos de ambos fragmentos que promovam uma
reestruturação que só é possível pela virtualidade da memória. Assim, o poeta,
em atitude colecionadora, arrola tais imagens para amalgamá-las aos animais que
provocariam nojo, perfazendo um movimento diferente quando informa o canto
dos sapos. Essa diferença diz respeito à outra música, suscitando a percepção do
leitor para outra cadência a ser contemplada, porque também bela.
Nesses jogos de imagens, Bacellar apresenta uma nova exigência: sua coleção
não se limita a coisas, mas se apreende, por vezes, os fragmentos da cidade,
associando a eles algumas histórias da comunidade. Isso significa que a coleção
do poeta extrapola o caráter convencional da coleção de objetos para servir-se do
poder mais amplo da memória. Ele registra causos que fizeram parte da história
da cidade, unindo-os à própria história, a qual se desenha na medida em que ele
caminha pelo espaço urbano. O canto em Frauta de barro encontra no poeta o
laço possível entre subjetividade e mundo. E é por meio do canto dele que esses
dois últimos termos se tornam indissociáveis. A coleção de Luiz Bacellar, desse
modo, é uma coleção de afetos por ele vividos no passado e revividos no presente
por meio da memória.

Astrid Cabral e a memória da dor

Astrid Cabral, assim como Carlos Drummond de Andrade e Luiz Bacellar,


também é uma autora afeita à composição de um arquivo pessoal com base no
que o mundo a ela oferece. Mais próxima à atitude colecionadora do segundo
poeta aqui analisado, ela recobra em seu mais recente livro, Íntima fuligem (2017),
a manutenção das coisas por meio das lembranças. Em seu caso particular, isso
não traduz uma ideia de que as lembranças sejam um motivo de alegria, mas de
sofrimento, pois com elas o sujeito poético revive as dores do passado.
Não é exclusivo a Íntima fuligem, todavia, o modo de escritura adotado pela
poetisa. Em Infância em franjas (2014), ela ensaia a configuração da memória
pela própria divisão estrutural do livro: sendo aberto com um poema chamado
“Casemiro, Casemiro”, o livro é repartido, em seguida, em três sessões: “Cabeça de
menina”, “Armário de lembranças” e “Meu pai em mim”. Transversalizando-as,
está o significado da anotação inicial do livro: “[a] infância não passou de todo.
Recolheu-se a um armário de lembranças-fantasmas, de onde às vezes escapam
e me visitam” (CABRAL, 2014, p. 2). Com essas palavras, a lembrança torna-se
uma forma de acesso não à beleza, mas à dor. Os afetos por meio dela mais uma

75
vez sentidos não trazem sensações boas; ao contrário, são fantasmagóricas. E sua
visitação não corresponde a uma divindade, mas a uma assombração. Desse modo,
já em Infância em franjas Astrid Cabral afasta-se da ambivalência da recordação
romântica. O leitor não mais estará diante da “arma que provoca a mazela do
tempo e o medicamento com que se trata a mazela” (ASSMANN, 2011, p. 118) em
elemento uno. Acredita-se, portanto, que tal caminho afaste-a da poesia também
de Bacellar, em virtude de os afetos em seus textos serem outros.
Retomando as palavras de Walter Benjamin e a ideia de coleção, destaca-se
que “o mais profundo encantamento do colecionador consiste em inscrever a coisa
particular em um círculo mágico no qual ela se imobiliza, enquanto a percorre
um último estremecimento (o estremecimento de ser adquirida)” (2007, p. 239).
Dizendo de outro modo: a circunscrição das coisas que se dá anteriormente a
serem transladadas ao âmbito da coleção encontra paralelo com um encantamento
desestabilizador, como se o colecionador transformasse o estado das coisas,
purificando-as da condição mundana para, enfim, transportá-las ao mundo da
coleção. No poema “Coleção de fantasmas”, retirado de Íntima fuligem (2017, p.
36), observa-se novamente a estratégia enumerativa na estrutura sintática dos
versos, porém, agora a apresentação dos eventos retoma a atitude do colecionador
benjaminiano de estremecimento paulatino, para, apenas ao final do poema,
arrematá-los:

Eram criaturas bem amadas.


Algumas acendiam brasas
outras acumulavam cinzas.
Havia aquelas de sorrisos
a criar aurora em noite plena
outras lábios cofre fechado.
Algumas inquietas sôfregas
disparando mais que as horas
outras a demorarem tardas
em espreguiço bem monótono.
Umas só previam farelos
seduzidas por miudezas.
Outras se moviam em ímpetos
com argumentos e grandeza.
Hoje todas seguem em desfile
secreto assombrado e estranho
– fantasmas que eu abarco.

O poema distribui as imagens em seus versos, simulando uma composição


que resiste à dispersão e coincidindo, em certa medida, com o dispositivo
da memória e o ato do colecionador. Nesse sentido, ele pode ser alinhado às
palavras de Maria Esther Maciel sobre a relação intrínseca da coleção com a
memória, possibilitando “a reconstituição (ainda que precária e arbitrária) de um
passado disperso, em cacos, como um dos recursos plausíveis para salvar coisas
do esquecimento” (2014, p. 77) – atitude essa que enlaça ambos os conceitos.
Assumindo o caráter simbolizável do passado trazido à tona, a distribuição das
imagens poéticas figura uma ausência, de sorte que o leitor seja orientado pelo
tempo verbal no imperfeito e, por esse motivo, deslocado às ações do texto como
se elas perdurassem até o momento da leitura.

76
Para Jeanne Marie Gagnebin, “a memória vive essa tensão entre a presença
e a ausência, presença do presente que se lembra do passado desaparecido, mas
também presença do passado desaparecido que faz sua irrupção em um presente
evanescente” (2002, p. 44). Desdobrando essas palavras para o poema, encontra-se
a tensão entre presença e ausência nos termos que remetem ao fogo, símbolo de
transformação sinalizado pela “brasa” e pela “cinza”. Se a primeira se aproxima
do presente pelo calor que aquece, a segunda alude a “cinza” pelo arrefecimento,
marca da inexistência da potência antiga. É necessário observar que o fogo não é
uma palavra que esteja escrita no poema, mas que, pelo jogo de associações criado
pela palavra poética, é inerente à ideia do amor. Se foram “criaturas bem amadas”,
foram-no com intensidade e em tempos não necessariamente coincidentes. É na
ação de recolher o passado que o eu lírico transporta as duas ideias do fogo para
o agora e as expõe para a contemplação do leitor.
A declaração da antiga existência dos “sorrisos” confere relevância ao
sentimento de alegria, contrabalançado pelos “lábios” em forma de “cofre”,
sugerindo um aprisionamento ou, ainda, a opacidade das expressões. Essa recusa
apontada pelo semblante das pessoas foi calcada na memória do eu lírico. Agora,
ela aparece “plena”, sobrepondo a escuridão à luminosidade.
O lirismo de Astrid Cabral é acentuado no momento em que as inquietações
são menos nítidas. As imagens selecionadas ficam mais abstratas, como se o leitor
escavasse as lembranças e não conseguisse mais as definir com precisão. Isso não
se trata de uma medida que retome a mnemotécnica antiga, mas algo próximo
à meditação. Tal característica lembra a associação que Aleida Assmann aponta
entre meditação e a metáfora da escavação, colocando em evidência a ideia de
profundidade. A escavação pela memória é associada ao exercício meditativo
por esse permitir a descida ao que é recalcado. Para Assmann, “[...] [c]om
profundidade associa-se um modelo espacial de memória, que vincula o espaço
não com a capacidade de armazenamento e ordenação, mas com inacessibilidade
e indisponibilidade [...]” (2011, p. 175). Isso auxilia a interpretação do poema
ao passo que permite pensá-lo em camadas. A cada experiência vivida – agora
em forma virtual – o leitor acompanha jogos associativos que o afundam na
interioridade dolorida.
Escrevendo sobre a composição do texto poético, Octavio Paz ainda declara:
“[o] poema [...] será a revelação daquilo que a exclamação assinala sem nomear.
Digo revelação e não explicação. Se o desenvolvimento é uma explicação, a
realidade não será revelada, mas elucidada, e a linguagem sofrerá uma mutilação:
teremos deixado de ver e ouvir para somente entender” (1982, p. 57). Colocar
a revelação em primeiro plano diz respeito à observação do mundo no poema
como fenômeno que se abre. O caráter fenomênico do evento é anterior ao
apanhamento pela compreensão. Entender, segundo esse pensamento, estaria
mais próximo ao racionalizar, isto é, àquilo que a razão prepara para fechar em
um conceito. A explicação, portanto, é distante da revelação porque ela prevê a
razão sobreposta ao evento.
Com o esclarecimento de Octavio Paz, nota-se que, a cada camada do poema
de Astrid Cabral, as palavras aparecem como fenômenos: “inquietas” e “sôfregas”
denotam estados de espírito que desestabilizam o eu lírico. Os disparos sugerem o
ferimento e, com isso, corroboram as memórias das dores. Lentas, elas se alongam,
estendendo suas novas vivências no presente lírico como traumas. A imagem
da assombração que migra de um livro da autora para outro transforma-se em

77
fantasma já prenunciado pelo título do poema. Da “grandeza” à “miudeza”, as
ações das “criaturas” perturbam o eu lírico, fazendo do passado um presente que
também não acaba. Essa dilatação dos tempos ilustra que “ao ato do recalque
segue inapelavelmente o retorno do que foi recalcado” (ASSMANN, 2011, p.
188). Destarte, a ideia espacial evocada pela proposta da profundidade, por mais
impreciso que possa ser o reino da memória, ratifica a imagem final do poema:
o desfile dos fantasmas explicita que o espaço reservado para a construção da
coleção é a própria subjetividade. Em razão dela, as imagens de todo o texto são
turvas ou retorcidas; e por esse motivo, no “Hoje” revela-se o Unheimlich freudiano
em “desfile / secreto” e “estranho”. O armário de Infância em franjas aparece em
Ínfima fuligem reconfigurado: agora, o que abarca os “fantasmas” é duplamente
colecionadora e coleção. Como um jogo de espelhos, ela se volta a si mesma para
do mais interno nascer o seu arquivo de afetos e de imagens.
Por fim, Astrid Cabral elabora uma coleção de ordem diversa da que foi
erigida por Luiz Bacellar. Enquanto ele se volta para a exterioridade dos objetos e
do espaço e mistura-a a seus afetos no gesto da palavra poética, a poetisa, em um
trabalho quase arqueológico, mergulha nas camadas da subjetividade. Com essa
comparação, busca-se mostrar que a estratégia da coleção não se limita a uma
única forma de apresentação de sua rebeldia contra a classificação do mundo.
Apesar dos alvos distintos, ambas as coleções desestabilizam a ordem conhecida
fora dos poemas.

A pesquisa aqui apresentada procurou na ideia de “encadeamento”


apontada pelo subtítulo um percurso por perspectivas teóricas que auxiliassem
a interpretação do tema arquivo no âmbito da poesia. Mediante o fio condutor
arquivo-coleção-memória, acreditou-se perfazer um caminho possível por
imagens recorrentes na poesia brasileira da modernidade à contemporaneidade.
Conferindo espaço a poetas que ainda carecem de estudos, um dos objetivos deste
texto foi/é produção de arquivo acadêmico que promova acesso às obras, pois
ainda é necessário, ainda, produzir arquivos – para acessá-los e questioná-los.
Dentro e fora da poesia, nota-se que o trabalho com os arquivos exige
o reconhecimento da natureza do que é arquivado. Sabendo disso, não seria
possível considerar um único método para livros e pinturas, por exemplo. Em
desdobramento, não poderia ser aceito uma única abordagem para todos os poetas
do Brasil. É inerente ao arquivo do escritor a crítica aos modelos taxonômicos de
registro. E a isso se soma a compreensão que cada poeta tem do que deve fazer
parte de seu arquivo pessoal e, em seguida, do que deve ser levado ao campo da
escritura. Nesse sentido, buscou-se nessas três imagens os seus modos inventivos
de estruturação dos mundos poéticos e, ao mesmo tempo, a observação dos afetos
que impulsionam pessoas à salvaguarda da vida.

Referências

ANDRADE, Carlos Drummond de. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova


Aguilar, 2002.

78
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória
cultural. Trad. coordenada por Paulo Soethe. Campinas: Editora da UNICAMP, 2011.

BACELLAR, Luiz. Frauta de barro. 9. ed. Editora Valer: Manaus, 2011.

BENJAMIN, Walter. Passagens. Trad. de Irene Aron e Cleonice Paes Barreto


Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado
de São Paulo, 2007.

CABRAL, Astrid. Infância em franjas. Editora KD: Rio de Janeiro, 2014.

______. Íntima fuligem: caverna e clareira. Manaus: Editora Valer, 2017.

CARVALLHO, Mirian de. Crônica de leitura de imagens ritmadas em barro e sopro.


In: BACELLAR, Luiz. Frauta de barro. 9. ed. Editora Valer: Manaus, 2011.

DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro:


Relume Dumará, 2001.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas.


Tradução Salma Tannus Muchail. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2002.

MACIEL, Maria Esther. As ironias da ordem: coleções, inventários e enciclopédias


ficcionais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.

PAZ, Octávio. O arco e a lira. Trad. de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1982.

MARQUES, Reinaldo. Arquivos literários: teorias, histórias, desafios. Belo Horizonte:


Editora UFMG, 2015.

RUFINONI, Simone Rossinetti. De “Resíduo” a “Caso do vestido”: formas da


memória entre o contemporâneo e o arcaico. Estud. Avançados. [online], v. 32, n.
92, p. 249-268, 2018.

79
Bichos e visagens na literatura indígena amazonense

Francisco Bezerra dos Santos


Jackeline Mendes Brandão

80
Considerações iniciais

A literatura indígena produzida no Amazonas é um espaço fértil para muitas


possibilidades de pesquisa. Como produção marginalizada, essa literatura ainda
não é reconhecida pela crítica literária como as literaturas produzidas nos
grandes centros urbanos. Produzida no entrelaçamento da oralidade e escrita,
essa literatura apresenta personagens, formas e enredos que fogem de modelos
da literatura ocidental. O que nos chamou atenção para a produção desse trabalho
foi a relação do homem amazônico com bichos e criaturas não humanas nas
narrativas indígenas.
Diante disso, nosso objeto de estudo para a feitura dessa pesquisa foram
duas narrativas presentes no livro Contos da floresta (2012), de Yaguarê Yamã.
Na primeira narrativa, intitulada “O pescador e a onça” temos a história de um
pescador que cria uma relação afetiva com um animal selvagem. Ainda nessa
narrativa, é perceptível a relação de igualdade que os povos indígenas mantêm
com os animais. A segunda narrativa, “História de Kãwéra”, é um relato mítico
dos indígenas Maraguá sobre um demônio com características vampirescas que
habita as matas da Amazônia. No conto, podemos nos deparar com variados
elementos pertencentes ao fantástico e ao maravilhoso, bem como os elementos
do medo na figura horrenda do Kãwéra.
Assim, o trabalho ficou estruturado da seguinte maneira: de início, fez-se
necessário uma abordagem sucinta sobre a representação do animal na literatura.
Em seguida, de forma abrangente, discutimos a presença do animal e de seres
visagentos na literatura de autoria indígena. Nesse último tópico foi necessário
situarmos as características dessa literatura emergente e pouco debatida. Paralelo
a isso, analisamos as duas narrativas supracitadas para demonstrarmos como se
desenvolvem as histórias com a presença desses seres e a importância deles para
os desfechos das narrativas.

O animal na literatura

Os animais são seres que sempre estiveram presentes na história da


humanidade. Embora pertencentes a outro universo, sua presença é fundamental
para compreendermos até mesmo a nossa própria existência, uma vez que
protagonizam diversas narrativas orais e escritas ao longo dos séculos, que
comumente versam sobre inúmeros acontecimentos relativos ao homem. Há
registros dessa relação entre animalidade e humanidade na literatura ainda em
tempos remotos, quando os homens sequer dominavam a escrita. Os animais
estavam intimamente relacionados à experiência humana por meio da caça para
a própria sobrevivência. Assim, eram retratados através de pinturas nas cavernas
e, posteriormente, nos contos orais que eram repassados às futuras gerações.
Durante o período da Grécia Antiga propagaram-se os mitos e lendas, que
eram narrativas usadas pelos gregos para explicar o mundo em que viviam, isto
é, relatavam os costumes, as relações sociais e até mesmo os acontecimentos
sem explicações científicas. Essas narrativas costumavam apresentar animais
em posições divinas, heroicas, colocando-os em posições privilegiadas. Esses
animais, muitas vezes seres antropomórficos, representavam deuses, por isso
eram cultuados e venerados como criaturas sagradas.

81
Na mitologia é possível encontrarmos animais com características
sobrenaturais, como o Deus Anúbis, com corpo humano e cabeça de um chacal,
ou as Sirenes, seres marítimos que possuíam cabeças humanas e corpo de sereias.
Criaturas como estas eram munidas de autoridade e muita sapiência. Mais adiante,
essas criaturas assumiram dois papéis distintos e significativos para aqueles povos,
uma vez que muitos continuaram acreditando que eram seres dignos de respeito
e devoção, entretanto, outros passaram a encará-los como criaturas demonizadas.
Quanto a essa demonização do animal, a escritora Maria Maciel (2016), em
Literatura e Animalidade, explica que:

(...) basta uma menção, por exemplo, à demonização porque animalidade


passou sob o peso do cristianismo ao longo da Idade Média, quando a
parte animal que constitui a existência humana foi instituída como o
lugar de todos os perigos. Ou seja, deslocada para fora do humano, ela foi
confinada aos territórios do mal, da violência, da luxúria e da loucura,
sob a designação da bestialidade. Tanto que a palavra “besta”, como já foi
dito, passou a ser o designativo por excelência do animal nesse período
e posteriormente a ele (MACIEL, 2016, p. 16-17).

Antes visto como um ser sagrado, representante dos deuses, dotado de


poder, emerge então a rejeição do animal, que passa a ser compreendido como
um ser diferente, desalmado, caliginoso. Desse modo, colocado à margem, como
um adversário ou até mesmo, um inimigo. É possível observarmos por meio
dessas histórias que os mitos possuíam grande influência nos primeiros povos,
pois era a partir deles que os homens encontravam explicações para aquilo
que não compreendiam, numa tentativa de justificar a própria existência do
mundo e da humanidade.
Outra forma de narrativa que ganhou notoriedade pela sua propagação foi
a lenda. Contadas com o intuito de elucidar fatos misteriosos ou sobrenaturais, as
lendas associavam episódios reais e imaginários. Essas narrativas, inicialmente,
contavam os grandes feitos dos santos e mártires, mas ao longo do tempo,
procuraram expressar a cultura e tradição de um determinado povo. Também
faziam o uso irrestrito do animal nesses relatos, pois de modo similar aos mitos,
as lendas existiam por meio das crenças e imaginação popular.
Destacamos, aqui, o surgimento das manifestações vampirescas, cuja
inspiração partiu das mitologias primitivas de criaturas com características
parecidas, tal qual a figura do lobisomem. Trata-se de uma crença popular que
surgiu nas mais diversas culturas, sobretudo na Europa. O vampiro, criatura
similar a um morcego, noturna e sobrenatural, costumava atacar os homens para
alimentar-se de sangue humano. A lenda do vampiro, assim como outras lendas
e mitos similares surgidos na época medieval, também estava ligado diretamente
à demonização das entidades sobrenaturais, já que estas criaturas eram temidas
e abominadas pelos homens naquelas circunstâncias.
Inúmeras lendas surgiram ao decorrer dos anos, e muitas ainda permanecem
vivas na memória comum de determinados povos, como no povo brasileiro. As
Lendas folclóricas brasileiras reúnem contos como a lenda do Saci, do Curupira,
Mula sem cabeça, contos estes que perduram de geração em geração. A tradição,
a linguagem cultural, os costumes inerentes a um povo, resistem por meio dos
mitos e lendas, que permitem a alguns povos conhecerem sua própria história.

82
Essas narrativas propagam e valorizam as diversidades culturais e linguísticas
presentes na formação de uma nação.
Eram nos mitos e lendas, portanto, que os povos antigos, encontravam um modo
de contar e recontar o modo como viviam, cultura e crenças a outros povos. Logo,
essas narrativas sofreram alterações no decorrer dos séculos, pois, inicialmente, eram
repassadas, principalmente, por meio da oralidade, passíveis a variações.

Literatura indígena amazonense e animalidade

A literatura indígena vive hoje o ápice de sua produção, os escritores


representantes das mais variadas etnias, veem na escrita uma forma de
propagação das identidades. Produzir literatura para esses escritores se configura
como um ato político de resistência e de revisão da história oficial contada. Esse
movimento literário nasce nos bancos escolares das aldeias por iniciativa de
professores indígenas, que registram seus mitos, cantos e lendas e usam a favor da
manutenção de suas comunidades. Atualmente, cerca de quarenta povos indígenas
já publicaram seus livros, seus escritores representam uma população de mais
ou menos 350.000 pessoas, falantes de 180 línguas (ALMEIDA E QUEIROZ, 2004).
No Amazonas, essa produção é grande e desconhecida. Entretanto, esses
escritores publicam em grande escala. A região Norte, segundo Almeida e Queiroz
(2004), detém a supremacia da produção literária indígena do país. De temáticas
variadas, essa literatura aborda temas que vão desde os costumes indígenas, até
críticas ao preconceito vivido pelos povos indígenas. Desse modo, o entretenimento
vem acompanhado de temas importantes sobre as lutas e ativismo dos povos
indígenas amazônidas.
Os cânticos, as lendas e os mitos começam a serem registrados pelos
indígenas por meio de suportes físicos, como o livro, instrumento de propagação
das tradições e identidades. Os autores indígenas amazonenses apresentam textos
escritos nos idiomas de suas comunidades nativas e nos idiomas hegemônicos:
em português, inglês, espanhol, por exemplo. As produções textuais indígenas
transitam entre tradições, discursos, modos de produção e recepção no que tange
a sua expressão estético-literária. Desse modo, não há uma textualidade indígena,
mas textualidades (THIÉL, 2012).
Pensar na especificidade da literatura indígena produzida no Amazonas
é pensar na ancestralidade. Os escritores indígenas têm na ancestralidade, na
tradição e nos costumes de suas etnias a matéria poética para suas produções.
As tradições indígenas influência diretamente a produção literária indígena
contemporânea. O que acaba comprovando a relação do escritor indígena com
suas origens. E a escrita funciona como uma possibilidade de promover novos
olhares sobre sua cultura. Na contemporaneidade, as vozes ancestrais que ecoam
das narrativas sugerem um mundo de pessoas que foram impossibilitadas de
expressar suas ideias ao longo de cinco séculos. Deste modo, a leitura da literatura
indígena pode ser realizada a partir da compreensão cultural e criativa que os
escritores indígenas têm apresentado.
Olhar a literatura indígena produzida no Amazonas em busca de figuras
animalescas e de assombrações é algo novo, mas que é comumente encontrado
nessas narrativas. O indígena amazônico tem a natureza como algo que é fora
da nossa capacidade de compreensão, portanto, tudo que habita nela contém

83
representação. As árvores, os animais, os seres visagentos, os rios, a terra, etc. De
tal modo, é muito comum que todos esses elementos citados sejam representados
na ficção indígena. A começar pela estreita relação do escritor indígena com a mãe
natureza que está relacionada diretamente com o fazer literário. Os indígenas
amazonenses Roní Wasiry Guará, Lia Minapoty, Yaguarê Yamã, Jaime Diakara,
Márcia Kambeba e Tiago Haiki são grandes exemplos de escritores que utilizam
como matéria artística a vida na floresta, as lendas, os mitos e os costumes de
suas nações tribais.
No que diz respeito à relação do índio com o animal, podemos inferir que
não há distinção entre eles, pois o índio compreende o animal como um ser da
mesma espécie, já que experimentam os mesmos hábitos. Para Castro (2002),
o índio não vê o animal como um ser diferente, porque acredita que o bicho e
outros seres, como a natureza e os espíritos, também se veem como humanos:

Em suma, os animais são gente, ou se vêem como pessoas. Tal concepção


está quase sempre associada à ideia de que a forma manifesta de cada
espécie é um envoltório (uma ‘roupa’) a esconder uma forma interna
humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie (...)
(CASTRO, 2002, p. 351).

Castro (2002) parte, sobretudo, de seus estudos com os povos ameríndios,


para explicar essa intensa relação do índio com outro ser, principalmente o
animal. Para isso, ele ressalta que as narrativas míticas são repletas de seres
dotados de características humanas e não humanas, assim, compreende-se que
nos mitos, o índio não encontra uma diferenciação dos seres, já que convivem
nos mesmos espaços da floresta.
Na obra indígena Contos da floresta (2012), que será tema desse estudo,
é possível perceber a relação do homem com a floresta e com os bichos. Na
entrevista intitulada “Perto dos espíritos, dos bichos e dos ancestrais” o autor
Yaguarê Yamã faz a seguinte ressalva: “Moro na floresta porque é a minha casa,
de onde retiro minhas inspirações, como ativista indígena, como escritor e como
ilustrador” (YAMÃ, 2012, p. 62). Sobre a igualdade entre homens e bichos, ele diz:
“Faz parte da cultura do meu povo a igualdade entre os seres e o respeito mútuo.
É uma das dádivas do criador darmos tanto valor aos animais quanto ao nosso
irmão” (YAMÃ, 2012, p. 63).
Diante das declarações do escritor é possível imaginar como se dá essa
relação. Além dos animais, as visagens – termo usado por indígenas e ribeirinhos
para designar seres sobrenaturais – também são comumente encontrados nas
narrativas. Os seres visagentos, assim como os animais, têm funções importantes
dentro da narrativa, seja como instrumento de alerta para os perigos da natureza,
seja como punição para aqueles que teimam em desafiar o desconhecido. As
narrativas que selecionamos abordam essas características. Na primeira, trazemos
um olhar atento sobre a relação do homem com o animal, na figura do pescador
e da onça. Já na segunda, o olhar é mais voltado para a monstruosidade de um
animal conhecido pelos índios Maraguá como Kãwéra.

84
“O caçador e a onça”

A narrativa “O caçador e a onça” é uma das lendas presentes no livro Contos


da floresta (2012). Essa história faz parte do repertório de narrativas que o autor
ouvia quando criança. Trata-se de uma lenda que comprova a relação afetiva que
o homem amazônida mantém com os seres da floresta.
A narrativa inicia com o relato do narrador em primeira pessoa descrevendo
o perfil de uma família ribeirinha, que sobrevive do que a natureza disponibiliza.
De início já são descritas as características do pescador a quem o narrador
identifica apenas como “homem”. Este é incumbido de pescar mesmo estando
doente. “Certo homem estava doente de malária e, como se não bastasse, vivendo
numa região muito distante, não tinha comida para seus filhos. Vendo a família
passar fome, resolveu sair para pescar” (YAMÃ, 2012, p. 37).
Na pescaria, o homem tenta várias artimanhas para pegar os peixes. Até que
encontra um jeito, tirar a roupa, descer da canoa e começar a bater com um galho
na água chamando os peixes. Nesse momento da narrativa o leitor é surpreendido,
com a presença de um animal um tanto comum na Amazônia, a onça. Representada
na história junto com o homem como os personagens principais.

O homem, convicto de que pegaria alguns peixes, concentrou-se na


pescaria, quando sentiu algo por trás, mexendo em seus testículos. De
pronto, teve medo de olhar. Mas, juntando coragem, virou a cabeça
vagarosamente e se deparou com uma imensa onça, brincando numa
parte do corpo tão essencial. Consciente do risco que corria, começou
a chorar.
Olhou tristemente para a onça e pediu:
- Onça, por favor, tenha pena de mim, estou doente e meus filhos não
tem nada pra comer. Sou um pobre coitado, onça, não me coma (YAMÃ,
2012, p. 37).

A cena descrita pelo narrador é um apelo que sensibiliza o leitor, a situação é


triste, mas ao mesmo tempo engraçada, pelo diálogo que acontece entre o homem
e a onça. Eis o momento em que é selado o pacto ficcional, descrito por Eco (1994).
Segundo o autor, a norma básica para lidar com uma obra de ficção é o leitor
aceitar tacitamente um acordo ficcional, o leitor tem que saber que a narração
é uma história imaginária, mas nem por isso deve pensar que o escritor está
contando mentiras.
De acordo com Alba Feldmam (2015), que estudou os animais na literatura
indígena norte-americana, nos contos tradicionais é comum vermos os animais
permeando a vida do indígena, de diversas formas, auxiliando, atrapalhando
sendo mensageiros, etc. Essas ideias transcorrem em diversas tribos, com poucas
modificações, porém sempre trazem os animais em interação com os nativos,
desde as lendas de origem mais remotas até a atualidade, “como participes
ativos da construção da vida do indígena, seja nas artes, seja na religiosidade, na
educação por meio de histórias, ou ainda pelas lições aprendidas pela observação
atenta de cada grupo de animais” (FELDMAM, 2015, p. 32).
O que a autora percebeu nas narrativas norte-americanas é possível observar
nos contos indígenas amazonenses, os animais também estão sempre presentes, já
que habitam os mesmos espaços da floresta e convivem em relação de igualdade.

85
A humanização da personagem animal corresponde ao momento em que a onça
se sensibiliza com a história do pescador e decide não lhe fazer mal, de tão
emocionada que ficou. O que vai de embate com as características selvagens
desse animal.
Dando sequência à narrativa, depois do ocorrido o homem fez boa pescaria
e voltou pra casa feliz. Passado o susto, sua mulher cuidou dos peixes. Antes da
refeição o homem fez sua oração para agradecer pelo alimento. Nesse momento,
considerado como o clímax da narrativa, somos surpreendidos novamente com
a presença da onça. Ela também agradecia pelo alimento, que seria ele. Mas o
lamento e a esperteza do pescador o livram novamente de ser comido pelo animal
selvagem, como se observa no excerto abaixo:

Mais uma vez, o homem pediu à onça que tivesse pena dele, e ofereceu
um de seus peixes a ela. A onça, muito compreensiva e faminta, aceitou.
Sentou ao seu lado e juntos saborearam as matrinxãs assadas.
A onça foi para a toca contente. Ela e o homem se tornaram muito amigos.
A partir de então, só pescavam juntos (YAMÃ, 2012, p. 59).

O elemento surpresa da narrativa é a amizade firmada entre o pescador e a


onça, que a partir desse momento passam a pescar sempre juntos. O autor com
esse final tenta demonstrar para seus leitores que os animais mais selvagens da
floresta podem viver em harmonia com o homem. Basta que exista o respeito
mútuo. Sendo uma narrativa infanto-juvenil, entende-se que o autor queira
transmitir uma mensagem de preservação e igualdade entre os seres.
Na narrativa em análise, há ainda um elemento que nos chama atenção, a
ilustração. Os desenhos coloridos completam o sentido do texto. São elementos
sempre encontrados. Conforme Janice Thiél (2012), o estudo da textualidade
indígena deve levar em conta o entrelugar cultural dessa produção. A textualidade
indígena composta entre a letra e o desenho, entre o olhar e a voz, altera a
construção da linguagem poética e imprime estilos particulares à criação literária.
Nesse viés, podemos considerar a literatura indígena como uma composição
multimoldal, ou seja, ao lado da escrita alfabética, existem outros elementos que
compõem o texto, tais como elementos visuais/grafismos, que não são simples
ilustração. Ainda segundo a autora, o enredo presente nos desenhos que lança “o
leitor para uma rede de significados forjados pela interação de palavra e imagem.
Muitas vezes, a palavra escrita, tão privilegiada pela literatura canônica, passa a
ser um complemento de elemento visual” (THIÉL, 2012, p. 88). Na visão de Maria
Inês de Almeida (2009), os livros dos índios, cuja autoria é impessoal, marcada na
maioria das vezes por uma identidade visual étnica, cuidadosamente construída
sobre escombros, não passam (e não querem passar), antes e depois de publicados,
de projetos gráficos.
Nas imagens da narrativa “O caçador e a onça” é possível perceber essas
características citadas pelas autoras. As ilustrações têm um amplo espaço na
narrativa, o que corrobora a ideia de que o aspecto da visualidade da narrativa
surge como elemento essencial a ser lido como marca de autoria na textualidade
indígena brasileira. Os perfis dos personagens são bem condizentes com o contexto
amazônico. Nas ilustrações, o autor mostra as particularidades do caboclo que
sobrevive da pesca e a representação da onça de forma um tanto engraçada com
características humanas.

86
Ilustração de Yamã reproduzida de Contos da floresta. Peirópolis. 2012. p. 38.

Ilustração de Yamã reproduzida de Contos da floresta. Peirópolis. 2012. p. 39.

A representação visual e gráfica da narrativa é uma possibilidade para


a ampliação da imaginação dos possíveis leitores. Yaguarê Yamã também é
ilustrador, e a junção desses dois ofícios é uma tentativa de manifestar sua arte,
independentemente de privilegiar o elemento gráfico, oral, visual ou performático.
Na escrita indígena o autor encontra um espaço para manifestar o seu fazer de
si e de comunidade étnica. Em suma, ler a textualidade indígena é permitir a
abertura para outras trações literárias, segundo Thiél (2012), já que a literatura
indígena é a representação da relação do homem com os saberes tradicionais de
sua comunidade.

87
“História de Kãwéra”

A priori, vale enfatizar que a língua, a cultura e os costumes indígenas estão


fortemente assinalados ao longo dessa narrativa, bem como o contato direto
do índio com a natureza, elemento indispensável em narrativas indígenas. É
sabido que os povos indígenas sempre tiveram um convívio muito significativo
com a natureza, a terra, os animais, considerando-os como elementos sagrados,
principalmente porque oferecem o sustento para que esses povos existam e
resistam ao longo dos anos.
Nestas circunstâncias, analisemos outro conto da obra Contos da floresta
(2012), intitulado “História de Kãwéra”, narrativa que conta a aventura de um
índio chamado Yaguajê, que saiu para caçar num lago conhecido como Kayawé.
Assim que avistou uma paca, preparou-se para atacá-la e, inesperadamente,
sentiu um grande vulto em seu corpo, o que lhe deixara bastante arrepiado. Ao
ser tocado por esse vulto misterioso, Yaguajê, que era considerado um caçador
famoso, demonstra sentir medo por não saber do que se tratava e também por
conhecer as lendas daquele lugar.
O medo que Yaguajê sentira está intimamente ligado à literatura do medo,
um recurso utilizado pelo escritor. Surgida ainda na Grécia Antiga, quando se
propagaram os mitos e lendas, de modo a explicarem o que desconheciam ou
não podiam explicar cientificamente. Posteriormente, o medo presente nas obras
literárias ganhou notoriedade ao longo dos anos, principalmente porque faz parte
do imaginário popular, sobretudo do imaginário sobrenatural.
Assim surgiram as histórias fantásticas, narrativas construídas a partir do
imaginário, onde apresentam uma realidade fora do comum, com seres e fatos que
fogem dos padrões convencionais. Criaturas como bruxas, fantasmas e monstros,
conhecidos como personagens fantásticos, passaram a fazer parte e a protagonizar
inúmeras narrativas. Os mitos, as histórias folclóricas e contos fantásticos são,
portanto, narrativas que dialogam quanto aos fatos contestáveis e fantasiosos
presentes em seus enredos. Por meio dessas narrativas o medo ganhou um espaço
propício para desenvolver-se.
Para compreendermos melhor a presença do medo na literatura, tomaremos
por base os estudos de dois escritores que se propuseram a escrever sobre a
temática do medo a partir de uma perspectiva estética, Edgar Allan Poe e Howard
Phillips Lovecraft, ambos críticos ficcionistas desse gênero. De acordo com o crítico
literário Lovecraft (1978, p. 03), “A emoção mais forte e mais antiga do homem é
o medo, e a espécie mais forte e mais antiga de medo é o medo do desconhecido”,
portanto, podemos inferir que o medo está relacionado diretamente ao exterior,
ao desconhecido, logo, é preciso que haja um outro para que o medo possa ser
instaurado dentro de uma narrativa:

Dado que a dor e o perigo de morte são mais vividamente lembrados


que o prazer, e que nossos sentimentos relativos aos aspectos favoráveis
do desconhecido foram captados e formalizados pelos ritos religiosos
consagrados, coube ao lado mais negro e malfazejo do mistério cósmico
figurar de preferência em nosso folclore popular do sobrenatural. Essa
tendência é reforçada pelo fato de que incerteza e perigo sempre são
estreitamente associados, de forma que o mundo do desconhecido será
sempre um mundo de ameaças e funestas possibilidades (LOVECRAFT,
1978, p. 03).

88
Na passagem que relata a reação de Yaguajé ao sentir um grande vulto às
suas costas, se conta ainda que ele tinha consciência dos perigos daquele lugar,
mesmo assim ele conteve o medo, afirmando para si próprio “Não é nada”. O índio
conhecia os perigos por meio das lendas que ouvira através de seu povo. Para
Yaguajé e seu povo, o lago Kayawé era esse universo desconhecido e assustador.
Edgar Allan Poe, grande estudioso da temática do medo na literatura, foi
um dos precursores do uso extensivo do medo em narrativas românticas. Poe
costumava, intencionalmente, abordar em suas obras elementos negativos,
sombrios e macabros, como o gato preto, o corvo, que em algumas culturas
simbolizam algo negativo, ruim. O uso desses elementos excêntricos causa o
medo e a repulsa, justamente por se tratar de seres incomuns.
Na passagem que relata quando o índio Yaguajé tenta novamente capturar a
anta e sente um vulto ainda mais forte, o autor nos revela do que se trata aquele
vulto misterioso: “Mas, rapidamente viu descer à sua frente um terrível monstro
alado, de asas de morcego. Ao pousar, deixou à mostra dentes enormes e garra,
com as quais arranhou o homem nas costas” (YAMÃ, 2012, p. 13). Portanto, aqui
nos é apresentada mais uma história recontada tradicionalmente pelos indígenas,
o mito do vampiro, narrativa mitológica que ainda hoje gera muito medo nas mais
distintas comunidades, o que ocasionou a criação de diversas lendas similares,
como a “Lenda dos Kupen-Dyêb, os índios vampiros da Amazônia” e a “Lenda
dos Caraybaquera”, ambas criadas sob grande influência do mito do vampiro.
Sem sucesso, Yaguajé retorna para casa e conta para a esposa e cunhados
o que havia acontecido no Lago, e estes o acompanham até lá para verem o que
acontecia. Eles clamam para o que o monstro apareça e furiosamente ele surge e
diz: “Esses animais são meus, ninguém pode matá-los. Se um de vocês voltarem
aqui, eu o devorarei” (YAMÃ, 2012, p. 13). Os homens retornaram assustados para
a aldeia e prometeram nunca mais retornar ao lago, no entanto, dias depois, um
dos cunhados de Yaguajê, o índio Dizoáp, resolve voltar lá e enfrentar o monstro.
O monstro o recorda do aviso que dera da última vez e Dizoáp insiste em dizer
que o mostro não existe e que se tratava apenas de um fruto de sua imaginação,
então o mostro enfurecido o ataca:

O bicho desceu, atracou o homem com suas garras firmes e o levou para cima.
- Não falei que eu existo? Agora você vai ser um dos meus.
O rapaz finalmente reconheceu o poder do bicho:
- Largue-me, por favor! Prometo não voltar mais aqui
- Não! Você me desafiou, agora não tem perdão. Eu lhe dei uma última
chance e você não aceitou. Aguente as consequências. Por ter desafiado
um Kãwéra, você será castigado (YAMÃ, 2012, p. 15-16).

Na passagem acima, percebemos a similaridade do conto do Kãwéra com


o do vampiro, principalmente quando o monstro afirma que a partir daquele
momento o índio iria também tornar-se um monstro, pois segundo as narrativas
vampirescas surgidas na Europa, ao atacar um humano, o vampiro o transforma
em um dos seus. Somente ali o índio passa a acreditar na existência e no poder
daquela criatura. O monstro o castiga, transformando-o em uma criatura como
ele, conforme a lei dos Kãwéras. Assim, o rapaz passa a ser o guardião daquele
lugar sagrado, agora chamado de lugar do Kãwéra, onde alguns caçadores dizem
vê-lo sobrevoando.

89
Assim como outras lendas contadas pelos indígenas, a lenda do Kãwéra é uma
história fantástica, permeada de mistérios sobrenaturais, que esses povos transmitem
aos mais novos na tentativa de manutenção e preservação dessas narrativas.

Considerações finais

Por meio das análises dos contos “O caçador e a onça” e a “História de


Kãwéra”, ambos pertencentes à obra Contos da floresta (2012), do escritor indígena
Yaguarê Yamã, podemos, inicialmente, inferir que o fascinante universo dos mitos
e lendas, ainda tão vivo e presente no imaginário de um povo, carregado de
expressões e simbologias relativas a uma determinada comunidade popular,
é imprescindível para compreendermos um pouco mais sobre a formação de
inúmeros povos, sobretudo os povos indígenas.
A predileção por esses contos deu-se também pelo fato de eles apresentarem
similaridades quanto à escolha dos elementos que constroem as narrativas,
principalmente na presença marcante dos bichos e visagens, seres inerentes às
tradições e à cultura de muitas sociedades indígenas. Tanto os bichos quanto as
visagens são comumente empregados em narrativas indígenas, fazem parte de
sua origem, por isso a importância de registrá-las, de modo a se manterem vivas
para as próximas gerações.
Yaguarê Yamã escreve de modo singular as tradições de seu povo, as histórias
que ouvira quando criança, dos seres fantásticos e divinos. Em “O caçador e a
onça” o autor nos apresenta a história de um ribeirinho que possui um contato
íntimo com a natureza, lugar onde o mesmo habita e extrai alimento para sua
subsistência. Ele encontra uma onça e no decorrer da narrativa é possível perceber
o vínculo afetuoso que surge entre eles, os dois passam a conviver diariamente
e exercem juntos algumas atividades comuns na vida daquele pescador, como a
pesca. Neste conto, o animal selvagem é humanizado a tal ponto de se sensibilizar
com o drama do pescador, por isso resolve não atacá-lo, passando então a
familiarizar-se com ele. Homem e animal são vistos numa mesma perspectiva,
como seres semelhantes, que vivem num mesmo espaço, sem distinções físicas e
terrenas entre eles. Ainda neste conto ressaltamos a importância das ilustrações e
grafismos registrados para ilustrar a relação do homem com a floresta e o convívio
com os animais que ali vivem.
No conto “História de Kãwéra” identificamos o predomínio de criaturas
fantásticas, como a visagem (termo utilizado pelos indígenas para descrever seres
sobrenaturais), e a grande influência dos mitos nessas narrativas orais contadas
e recontadas desde tempos remotos. A narrativa do Kãwéra, na qual um índio
é castigado por uma criatura com características semelhantes a um morcego e
transformado em monstro, apresenta similaridades quanto ao mito do vampiro,
um dos mais conhecidos. Essas histórias tradicionais também são contadas nas
comunidades indígenas com o intuito de provocarem o medo, principalmente
naqueles que não respeitam a natureza e os ritos sagrados.
Tomando por base as análises dos contos apresentados, podemos concluir
que a existência dos bichos e visagens em narrativas indígenas é primordial
para compreendermos um pouco mais sobre a acentuada relação na qual estão
inseridos. Esses elementos são partes essenciais da vida indígena, pois estão
imbricados em sua história como componentes constituintes do seu ser.

90
Quanto à relevância dessas narrativas indígenas, entendemos que
preservar por meio das letras registradas no papel é também uma forma da
perpetuação desses saberes. Embora não se restrinja somente ao livro impresso.
Ler obras indígenas é permitir a abertura do próprio sentido de texto, que
não se limita unicamente à leitura ficcional, é preciso ler culturalmente as
tradições e as ancestralidades.

Referências

ALMEIDA, Maria Inês de; QUEIROZ, Sônia. Na captura da voz: as edições da


narrativa oral no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica: FALE/UFMG, 2004.

ALMEIDA, Maria Inês. Desocidentada: experiência literária em terra indígena.


Belo Horizonte: Editora UFMAG, 2009.

CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios


de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

ECO, Humberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.

FELDMAM, Alba Krishna Topan. Animais na poética indígena norte-americana:


duas perspectiva. In: BRAGA, Elda Firmo, LIBANORI, Vânia Evely, DIOGO, Rita
de Cássia Miranda. Representação animal na literatura. Rio de Janeiro. Oficina
da leitura, 2015.

LOVECRAFT, Howard Phillips. O horror sobrenatural na literatura. Rio de Janeiro:


Francisco Alves, 1978.

MACIEL, Maria Esther. Literatura e animalidade. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 2016.

THIÉL, Janice. Pele silenciosa, pele sonora: a literatura indígena em destaque. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

YAMÃ, Yaguarê. Contos da floresta. São Paulo: Peirópolis, 2012.

91
Poéticas, éticas e estéticas de uma cidade
entre o rio e a floresta, na Amazônia acreana

Gerson Rodrigues de Albuquerque


Em certa tradição historiográfica e mesmo em obras literárias – ditas de
“expressão amazônica” – é comum a presença de determinados enunciados
definindo espaços/tempos amazônicos, especialmente, da Amazônia acreana,
seus rios, florestas, gentes e cidades. São enunciados que exerceram e exercem
forte apelo na subjetivação de certos sentidos, certas noções dos seres e
lugares no mundo, como se as palavras e as coisas, as identificações e os seres
identificados e catalogados por esses enunciados e simbologias não estivessem
apartados. A rigor, são práticas discursivas e não simples narrativas históricas
ou comprometidas com um hierarquizado valor estético, pois “as palavras não
são a mera representação da realidade”. Sua repetição segue um padrão que
tende a normalizar e naturalizar os sentidos aí produzidos, ou seja, aquilo que
pleiteia nomear/definir/conceituar a “natureza” de um lugar e a mentalidade e
comportamentos de suas gentes. “As práticas discursivas têm suas próprias regras
e essas regras desfazem laços aparentemente inquebráveis entre as palavras e as
coisas”, como é possível afirmar com Michel Foucault, destacando que tais práticas
“definem não a existência muda de uma realidade, não o uso canônico de um
vocabulário” e o “regime dos objetos”. Nessa perspectiva, os discursos não podem
ser tratados como “conjuntos de signos (elementos significantes que remetem a
conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente
os objetos de que falam”42.
Procurando manter o foco no amplo campo de abrangência e nas significativas
possibilidades inerentes a esse tipo de abordagem, no presente capítulo procuro
acompanhar e problematizar diferentes narrativas sobre a cidade de Rio Branco,
capital do Acre. Narrativas que a inventaram e reinventaram de inúmeras formas,
mas, no geral, sempre presas à “estética amazonialista que é a estética do vazio
– desértico, distante, dependente, solitário, isolado, insalubre, vítima – que
governa nossas subjetividades”. Minha leitura e os destaques que faço a partir
de tais narrativas também não têm nada de inocente, considerando que parto da
convicção de que Rio Branco não é um dado objetivo, algo acabado e pronto em
meio à “natureza bruta” das coisas, estaticamente disposta e acessível à produção
de narrativas com a prerrogativa de descrevê-la, representá-la ou apresentá-la no
mundo a parte das palavras. Assim como o Acre, estado da federação brasileira,
e o próprio rio Acre, a cidade de Rio Branco “é algo que não encontra referente
em espaço/tempo algum, em coisa alguma: é somente um enunciado”, ou seja,
“algo que foi naturalizado pelas estratégias e acervos de imagens e palavras
que o inventaram e reinventaram, decantando-o e repetindo-o inúmeras vezes,
objetificando suas características, cores e identidades como partes indissociáveis
dessa invenção”43.

Narrativas de uma cidade de “duas caras”

Na Amazônia acreana, a cidade, a floresta e o rio têm sido objetos de práticas


discursivas, desde as primeiras décadas do século XX. Práticas marcadas por
enunciados que se repetem inclusive quando seus autores partem de posições
diferenciadas e mesmo antagônicas no chão de barro de suas experiências
históricas ou quando em suas criações literárias os autores tratam de lapidar
42
Foucault, A arqueologia do saber, 2000, p. 56.
43
Albuquerque, Acre, 2016, p. 28.

93
seus escritos e inventar mundos, procurando se distanciar de certas preocupações
com similitudes, como é o caso de Miguel Ferrante e a cidade de seu romance
O silêncio, Santa Efigênia, com seu “casario de madeira, debruçado sobre as
águas barrentas do rio. As alteadas torres da Igreja Matriz. O longo rosário das
mangueiras acolhedoras. Ao fundo, fechando os campos estreitos, a muralha
da floresta”44. Nessa ficção do mundo secular do autor, “as ruas e as praças”,
a exemplo das mangueiras, são conjugadas com o “rio de águas barrentas”,
um rio que separa a cidade em duas partes, duas metades. Uma cidade fictícia,
mas fundada nos mesmos preceitos sedentários da narrativa historiográfica – e
sua pretensão em registrar os “fatos tais quais” –, ou seja, uma cidade produto
originado de um sujeito errante, o coronel Alexandre de Almeida Argolo, Barão de
Santa Efigênia, que ali chegara ainda menino, “entre flagelados, no porão de um
navio”, mas destinado a “construir aquele mundo” e fundar aquela cidade “nas
lonjuras dos tempos”, erguendo suas casas com madeiras retiradas da floresta,
em meio aos “charcos”, em luta de vida e morte contra “índios, feras, piuns” e
“doenças” que ia vencendo e “impondo a ordem” naquela “terra de ninguém”,
mesmo quando teve que enfrentar o “estrangeiro” que ultrapassara a fronteira
boliviana nas confluências dos rios Bêni e Abunã 45.
Aos olhos do emblemático Barão, criado pela narrativa de Miguel Ferrante,
mas, especialmente, acompanhando a descrição do narrador em seu desvelar
das lembranças, pensamentos e andanças do anônimo personagem que, a partir
do segundo capítulo, surge de modo intrigante no enredo de O silêncio, Santa
Efigênia aparece sob o signo da ruína, das trevas, da solidão, do silêncio, do
provinciano cotidiano de uma espécie de “cidadezinha qualquer”, de “vida besta”
e sem passado ou de um passado para ser esquecido, para não ser dito, para
ser silenciado. Uma cidade caracterizada por um clima sórdido, propenso aos
fungos e parasitas inimigos dos seres humanos; clima insalubre, simbolizado na
dualidade entre o mormaço de um sol escaldante e as chuvas copiosas, com suas
águas diluviais escorrendo “pela terra em fúria” e lavando as “impurezas” de seres
condenados pelo silêncio e pelo silenciamento. Uma cidade de casas “caquéticas,
envelhecidas, timidamente amparadas umas às outras, ao longo dos calçamentos”,
com suas “janelas, como olhos sem vida, ressumando decadência e tristeza”46;
cidade de sombras, de ruas silenciosas e casas tortas, como tortas são as pessoas
e suas ambições; casas e prédios com assoalhos rangendo comprimidos pelas
pisadas dos que passam sobre seus pisos e chãos de “tábuas desjuntadas”. Uma
cidade de cenas repetidas, separada dos seringais onde estariam os trabalhadores
extrativistas e as “muralhas da floresta prisão”; cidade onde mesmo pessoas
poderosas, como o Barão e seus protegidos ou os funcionários públicos de carreira,
juízes, delegados, promotores, jornalistas, poetas juristas ou médicos se revezam
em repetidos rituais entre a rua, a repartição pública, a casa de jogos, o bar, o
beco e as beiras de rio e suas embarcações de inverno ou suas friagens de verão;
cidade de pares de namorados passeando pela tranquilidade da praça, enquanto
agrupamentos de pessoas “conversam ao longo das calçadas” ou “caminham,
sem pressa, pelas ruas” e outras pessoas, cujos “rostos se debruçam nas janelas”,
ouvem o badalar dos sinos ou os sons do primeiro e único automóvel que transita
44
Ferrante, O silêncio, 1979, p. 62.
45
Ferrante, O silêncio, 1979, p. 62-63.
46
Ferrante, O silêncio, 1979, p. 30-31.

94
nos fins de tardes e nas manhãs de domingos em passeios “indo e vindo de uma
ponta a outra da Rua da Frente, da Praça da Matriz ao Largo dos Aflitos”47.
A cidade de Miguel Ferrante é marcada pelo paradoxo entre a vida
pachorrenta e as paixões exacerbadas a incendiar os espíritos e acirrar os ânimos
de seus habitantes. Cidade de vozes reprimidas e povo paciente, recalcado e
pusilânime frente às violências de governantes “pau-mandados” dos grandes
proprietários de terras. Cidade caótica e anômala, de pandemônio e comícios
ruidosos, seguidos de festas e bebedeiras particulares; de imprensa amordaçada,
de intervenções e perseguições políticas ou supressão de créditos, demissões,
suspensão do fornecimento de luz elétrica ou violação de correspondências dos
opositores e “inimigos políticos”48. Cidade de mulheres presas aos limites do lar
patriarcal e homens livres para pular a cerca do beco dos amores profanos; de
pretos adjetivos, sem sobrenomes, calados, indiferentes, casmurros, derreados,
serviçais, obedientes e, ao mesmo tempo, preguiçosos e perigosos. Cidade de
transeuntes indiferentes e de escuridão crescente, de abandono e trevas; cidade
de poucas vozes a ser erguer contra o silêncio da omissão e da covardia; cidade
de intervenções ruidosas, de inaugurações e reinaugurações de praças e ruas
com nomes de “coronéis-seringalistas, comerciantes, doutores, vereadores ou
imperadores” do Brasil e presidentes ou ministros da república desse mesmo
país; de pequenos jornais e colunas sociais anunciando casamentos, aniversários,
mortes, nascimentos ou festas com cardápios e shows afrancesados. Cidade
devastada por um “sol de rachar” sobre as cabeças de seres fantasmagóricos,
vazios, áridos, solitários, sepultados em paredes silenciosas e indiferentes em
uma terra distante e sem esperanças49.
Escrito desde a cidade de São Paulo, O silêncio foi concluído em 1973,
mas a publicação de sua primeira edição se deu em 1979, com o autor fazendo
questão de avisar aos leitores que suas personagens “são fictícias, com exceção
do poeta Juvenal Antunes”, que ele conheceu nos tempos de juventude e tratou
de homenagear em seu texto literário. Esse dado é interessante, pois, no contexto
da publicação dessa obra de Miguel Ferrante, já não era hegemônica a forma do
romance realista – e suas matizes regionalistas –, caracterizado pela “representação
do social presa aos limites impostos pela situação do vivido e conhecido pelo
receptor”. Uma mimese em que a palavra era “bloqueada em sua potência de
criação de mundos pela obediência a uma visibilidade e dizibilidade da realidade
já cristalizada, sob pena de não ser a obra considerada fiel ao real”50. Porém, não só
pela notada influência de Juan Rulfo, em passagens que são claramente inspiradas
na face do realismo mágico encontrado em Pedro Páramo, essa narrativa literária
de Ferrante apresenta muitas marcas do realismo e do viés regionalista, que
procura disfarçar preocupando-se com a linguagem esteticamente lapidada na
trama do romance e no psicológico dos habitantes da Santa Efigênia de O silêncio.
Empenhado em se distanciar dos ambientes dos seringais, Ferrante inventa
uma cidade cujas paisagens humanas ou naturais são pouco descritas e, quando
aparecem, vêm à tona de modo subjacente “à vida e conduta das personagens”,
como destacou Caio Porfírio Carneiro, em apresentação à primeira edição, escrita
no ano de 1975.
47
Ferrante, O silêncio, 1979, p. 62.
48
Ferrante, O silêncio, 1979, p. 38.
49
Ferrante, O silêncio, 1979.
50
Albuquerque Júnior, A invenção do nordeste e outras artes, 2009, p. 235.

95
Em interessante estudo, intitulado As dobras do silêncio: uma leitura de
um romance de Miguel Jeronymo Ferrante, Edmara Alves de Andrade destaca
diversas passagens em que Santa Efigênia se confunde com a cidade de Rio Branco,
local de nascimento de Miguel Ferrante e de sua conhecida filha, Glória Perez.
Partindo de uma perspectiva bakhtiniana, Andrade enfatiza que, nesse romance,
os “elementos extraliterários” são tomados por empréstimo à “realidade histórica
da cidade de Rio Branco”, remetendo os leitores a “personalidades, lugares e
espaços geográficos pertencentes ao Acre de meados do século XX”51. Embora
parta da ilusória ideia de que determinadas “realidades históricas” possam ser
coladas às narrativas que buscam representar, Edmara Andrade faz interessante
descrição sobre as passagens em que certas faces da capital acreana surgem na
imaginária cidade de Ferrante, ressaltando ainda o esforço desse escritor em
captar distintos modos de falar, supostamente capazes de refletir o caráter do
comportamento, da identidade e da condição social de seus habitantes. Esforço
esse que indica um autor preocupado não apenas com certas similitudes, mas
com uma rearticulação entre as palavras e as coisas, entre a palavra dita e o
corpo social e psicológico daquele que fala, que precisa denotar certo real, mesmo
quando esse real é de signos, papel e tinta.
Outra leitura sobre a cidade que Ferrante imagina em O silêncio tem assento
no texto de Iris Célia Cabanellas Zannini, para quem Santa Efigênia é a própria
Rio Branco no “alvorecer [de seu] desenvolvimento sócio-econômico e cultural”.
Em breve análise, essa autora afirma que, com sua “ânsia de registrar tradições
da terra querida”, Ferrante “eterniza, num cenário de palavras, a fotografia
de um mundo fantástico tão folclórico quão real”. Antes de Ferrante, ainda na
década de 30, esse “mundo fantástico tão folclórico quão real”52, já brotava nas
páginas de Certos caminhos do mundo (romance do Acre), de Abguar Bastos, que
(re)desenhou a tese da floresta como um deserto vazio a “polir os homens” e
seus corpos “cobertos de pó e feridas, roídos pelos mosquitos e descarnados pela
febre...”53. Em meio a essa floresta de “febres ardentes”, numa clareira às margens
de um pequeno rio amazônico, a Rio Branco de Bastos surge “afogueada, interdita
na fisionomia da terra, como um beiço amarelo”. Uma cidade com duas metades:
“Empresa à margem direita e Penápolis à margem esquerda do rio Acre”54.
Nas palavras desse literato, Empresa era o lado comercial, a face desenvolvida
de um antigo seringal que foi “elevado ao poderio de parte oriental da cidade”.
Mais que um pedaço de terra, Bastos fala de uma metade da cidade, livre de
preconceitos e libertina em sua “excitante vida noturna” marcando a face
transviada da mesmice cotidiana de um lugar aberto numa clareira, às margens
de um pequeno rio, no meio da grande floresta. A construção literária desse
escritor paraense, imersa em metáforas que impressionam o leitor, lança mão
de uma narrativa ficcional preenchida por certa “realidade histórica” por ele
vivida, lida ou imaginada sobre a capital de um território federal nascido como
anomalia na estrutura administrativa e organizacional da república dos estados
unidos do Brasil. Lugar estratégico, portanto, para abrigar os interesses pelas
terras disputadas não em razão do valor de seus hectares, mas de suas árvores

51
Andrade, As dobras do silêncio, 2012, p. 45-46.
52
Zannini, Fragmentos da cultura acreana, 1989, p. 124-125.
53
Bastos, Certos caminhos do mundo, s/d [1936], p. 45.
54
Bastos, Certos caminhos do mundo, s/d [1936], p. 65.

96
ou madeiras produtoras de látex. Em Bastos, nessa cidade os seres humanos são
destinados a cumprir uma sina previamente demarcada pela geografia do alto e
do baixo. Na parte baixa situa-se Empresa, símbolo de um passado que precisava
ser esquecido para abrir espaço ao moderno, suporte da civilização nos postos
avançados do sudoeste amazônico, a última fronteira da pátria mãe gentil. Nessa
zona baixa, as mulheres são emblematizadas como bonecas de trapos a estremecer
os pedestais das “mulheres honestas”, habitantes da parte alta da cidade, que são
afrontadas por aquelas enchapeladas marafonas, enquanto a rua é atravessada
pelos indesejáveis, “o rebanho e a mátula, profissionais de jogo, “camelots”,
ganadeiros, maritimos, contratadores de seringa, contrabandistas, vendedores de
cóca” que se encontram com “marinheiros, soldados, cafagestes, oficiais, viajantes,
vendedores de cavalos” em sôfregas pelejas noturnas na travessia de suas ponte
de madeira, desaparecendo “nos cortiços” enquanto um “cheiro acre de mijo sobe
das calçadas e do tronco rasteiro das árvores” e as mulheres, “muito pintadas,
“esfregam extráto no corpo” para dissimular o mau cheiro e atrair os parceiros
na devassidão das noites55.
A parte alta é Penápolis, outra cidade, acanhada, pacata, centro da
administração e da justiça naquele território da União, lugar onde se concentra
o poder dos homens e o poder de Deus. Cidade homenagem ao então presidente
da república, Afonso Pena, e constituída nas linhas do real ficcional como “zona
essencialmente morigerada”, que “rescende a jesuitismo e a burguesia”, com seus
sóbrios divertimentos e urbano recolhimento na domesticidade cerimoniosa e
familiar: sem cabarés, sem jogatinas, sem bebedeiras, sem prostitutas, sem a malta
de ociosos, frívolos e desordeiros. Essa é a parte alta, como quis a topografia da
capital acreana, como seus jardins que “parecem pateos de colégio” e, mesmo
quando surgem as inevitáveis “ovelhas desgarradas”, elas somente encontram
guarida em uma maledicência cheia de cautela “porque, em Penápolis, tudo é
gente de sociedade”56.
“Penápolis é o terror branco” da gente torpe que habita Empresa: “Empresa
e Penápolis recriminam-se, exíbem queixas reciprocas. Retaliam-se. Lutam na
mais imprevista das lutas psicológicas”, segue o narrador de Certos caminhos do
mundo, descrevendo que o lado baixo é todo clamor, pois,

é de Penápolis que lhe vêm os decretos dos impostos, os mandados


de penhora, as ordens de prisão. A cadeia está em Penápolis. A igreja
também. É de lá que vem a excomunhão. Penápolis é o panico do
comerciante, do caloteiro, do criminoso e do atêu. Penápolis não devia
existir. Empresa, por sua vez, é o inferno de Penápolis. É o tumôr da terra,
o velhacouto dos assassinos, dos sedutores, dos crápulas, dos sátiros, dos
alcóolatras, dos ladrões, das prostitutas – excrescencias sociais, que e
misturam arbitrariamente, ombro a ombro com cidadãos pacíficos das
duas cidades57.

Na narrativa de Bastos, o rio é mediador entre as duas cidades. Seu regime de


cheias e vazantes definem relações sazonais de proximidade e distância. Quando
as águas sobem, em repiquetes que separam violentamente as duas cidades,
55
Bastos, Certos caminhos do mundo, s/d [1936], p. 67.
56
Bastos, Certos caminhos do mundo, s/d [1936], p. 69.
57
Bastos, Certos caminhos do mundo, s/d [1936], p. 71-72.

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dificultando a travessia de um lado ao outro, “Penápolis se alegra, se enfestôa, se
benze. (...) Empresa está mais longe e mais longe o pecado e a tentação. Empresa
também respira, pois, em Penápolis não se ouvirão as tropelias das suas esbórnias,
o estardalhaço das suas brigas, o éco dos seus sambas canalhas”. Entretanto,
quando as águas baixam, aproximando o alto e o baixo da paisagem física e das
relações sociais, as duas cidades “tateiam-se, medem-se. A água escorre em filete,
marulhando nos cascalhos. Ha um estremecimento, uma sincope: são as duas
cidades que se beijam, no mais hediondo e feroz beijo do mundo. Renasce a agonia
duma visinhança incomoda, porém irremediável e imperecível. Xipófagas”58.
Na Rio Branco de Abguar de Bastos e de seu implacável narrador ou no destino
irremediável de suas personagens femininas e masculinas, o vício é inseparável da
virtude, a cidade do baixo e a cidade do alto, em sua conflituosa e promíscua relação,
são espécies de irmãs siamesas em um Acre onde tudo arde em febres incuráveis,
um lugar em que o “inferno desafia o homem”, um inferno indisfarçável na própria
forma do nome “Acre”, com o qual esse lugar foi o batizado, ou seja, na forma da
aridez, do amargor e da acidez desse nome, dando consistência a uma Amazônia
em que, frente às “forças da natureza, o homem adaptava-se, era moldado para não
sucumbir e também para viver em eterno conflito pela sobrevivência, pelo ‘direito’
de explorar aquela terra que o talhava pela ‘experimentação”59. Experimentação
com gosto de sal porque, em Bastos e seu narrador onipresente, o Acre também
é “resumo de pedra, labor, sofrimento”60. Aí, a natureza, feito um “sujeito dotado
de vontade”, se vinga incessantemente daquele que a explora: é o “inferno verde”
“engolindo os homens”, “devorando suas almas”61.
Menos de uma década após a publicação de Certos caminhos do mundo,
outro romance aparecia ao público, nas letras de Océlio de Medeiros, A represa.
Se o romance de Bastos era “do Acre”, o de Medeiros é “da Amazônia”, espécie de
contra-senha para repetir os velhos signos do “amansamento dos sertões” ao Norte
do país, com seus “rios correndo”, atoleiros “sêcos, esverdeados”, suas nuvens de
“mosquitos negros, zumbindo”, atormentando62. Não por acaso, a Rio Branco de
Medeiros surge como um “igapó de homens, numa região onde ninguém nunca
pensou em edificar uma cidade” e o próprio rio não é de águas, mas de seres
humanos que perderam “seu destino”. Daí a noção que confere centralidade
a essa cidade imaginada como uma grande “represa humana onde se agitam,
num drama de isolamento, os recalques e as paixões”. Um lugar no qual a maior
parte da sociedade, síntese das “piores remanescências”, vive contida, sofrida,
“buscando uma saída, buscando um fim que nunca chega”.
Não chega porque, assim como outras cidades plantadas ao longo do rio Acre e
seus afluentes, a exemplo de Xapuri – também represa de homens que perderam seu
destino, como quer Medeiros e seu narrador –, não existe saída para os que vivem
nessa Rio Branco, enquadrada no rol de um universo que é fruto da decadência
e não da opulência dos seringais, como faz crer o narrador de A represa. Mesmo
para os filhos da terra que regressam, após “vencer na vida” vivendo e estudando
em outro lugar, o resultado é sempre uma espécie de “silêncio de lago, pesado e

58
Bastos, Certos caminhos do mundo, s/d [1936], p. 72-73.
59
Albuquerque e Ishii, A Amazônia acreana de Abguar Bastos, 2013, p. 122.
60
Bastos, Certos caminhos do mundo, s/d [1936], p. 229.
61
Albuquerque e Ishii, A Amazônia acreana de Abguar Bastos, 2013, p. 122.
62
Bastos, Certos caminhos do mundo, s/d [1936], p. 48.

98
evocativo”, seguindo noite adentro. Um “silêncio profundo, de natureza morta”,
como o de Antonico, personagem que, na parte final da obra, retorna à cidade
após os anos de formação em Belém do Pará e reencontra Santinha, filha de seu
padrinho, o Coronel Belarmino e seu amor platônico dos tempos em que vivia
no Seringal Iracema. Reencontro marcado pelo desencontro, pois a mocinha que
virara mulher feita era filha de um importante “desbravador do Acre” e herói da
“Revolução Acreana, portanto, “moça de família e da “sociedade” que vivia em
Penápolis, estava agora comprometida e de casamento marcado com outro homem,
também residente na “indeflorável” Penápolis. Desencontro esse que faz parte do
determinismo da trama que enlaça os destinos de quem nasce na Amazônia de
A represa, pois, logo em seguida ao seu reencontro com Santinha, em estado de
perplexidade e resignação, Antonico a vê desaparecer, sumindo feito um fantasma,
um “vulto que se perdia na dobra da rua, mergulhado na sombra das mangueiras e
no escuro da noite”, deixando-o para trás, com suas lembranças e ilusões, em meio
a uma “onda verde, de limo e de lodo” que refletiam a tipificada natureza da “alma
da superfície da cidade, em cujas profundezas dormiam as glórias de um passado
de lutas”. Enquanto jazia no ocaso de suas lembranças, as águas do inverno se
aproximavam e com ela “a força renovadora de uma geração” de outros imigrantes,
os rios humanos de que fala Medeiros e seu narrador: “Até aí, entretanto, a represa
haverá de ficar, acrescida de mais gota de sofrimento, no seu marasmo e no seu
cenário, com os homens, as paixões e os sentimentos estagnados, numa paisagem
de sacrifício e de renúncia”63.
Em Medeiros, seguindo a senda de Bastos, a sintaxe amazonialista governa
corpos, olhares e falas de narradores e personagens, arrebanhados pela estética
de intérpretes como Euclides da Cunha e Alberto Rangel, com destaque para o
primeiro que, em “Judas-Ahsverus”, inserido como um dos capítulos de A margem
da história, projeto de seu “segundo livro vingador”, produziu uma narrativa em
que “mergulha” nas entranhas psicológicas dos trabalhadores extrativistas do rio
Purus, com a pretensão de analisar suas pulsões, recalques, “instintos primitivos”.
Essa narrativa se tornou célebre não pela capacidade desse intelectual em atingir
seus intentos, mas pela mitificação e continuada repetição de suas interpretações
em diversos outros escritos literários e acadêmicos que tomaram a Amazônia
acreana e seus seres humanos e não humanos de modo superficial ou como
simples objetos. Em Euclides da Cunha, o corpo do seringueiro é transfigurado
como reflexo ou imagem e semelhança de um espantalho, produzido por ele e
sua família, para ser malhado no sábado de aleluia, após a sexta-feira santa, em
consonância com o calendário cristão. O trabalhador dos seringais, que surge
na narrativa euclidiana, é um ser de “existência imóvel”, vivendo ao sabor ou
dissabor das estações de chuvas e secas em “seus repetidos ‘dias de penúrias’,
suas ‘tristezas’ e ‘pesares’ intermináveis, suas ‘fatalidades’ e ‘desditas”64, com “sua
‘figura desengonçada e sinistra’” se metamorfoseando à condição de um monstro
grotesco, imagem do traidor que precisa ser apedrejada e alvejada repetidas vezes,
rio abaixo, para ser lembrada/esquecida como parte da dualidade maniqueísta do
bem e do mal. Na escrita de Euclides, os homens e as mulheres dessa Amazonia
narrada são eternas vítimas de suas ambições e fraquezas; seres submetidos a
uma “seleção telúrica”, seres/coisa; seres que levam uma vida de “cachorro que
63
Medeiros, A represa, 1942, p. 209-210.
64
Albuquerque, Leituras de Stuart Hall em cenários amazônicos, 2016, p. 155.

99
busca morder o próprio rabo”, em sua repetitiva faina cotidiana, regida pelos
ciclos naturais; seres que vegetam encarcerados em uma vida “monótona, obscura,
dolorosa”; seres que, pela análise do ensaio/crônica de Euclides da Cunha, mesmo
quando lutam “contra a ordem da dominação e da miséria social”, o fazem “se
destruindo: homem sem amor próprio, diria mesmo masoquista”65.
Retorno à represa do “rio de homens sem destino”, na ênfase do narrador
do “romance da Amazônia”, para encontrar as referências desse amazonialismo
euclidiano em um Antonico olhando o rio feito os “seringueiros tristes”, nas
enluaradas noites dos tempos em que residia no Seringal Iracema, sentindo um
vácuo, um vazio que o sintonizava com a luz da lua resvalando “na correnteza
mansa”. Um vazio que lhe perseguiria de múltiplas maneiras até do dia em que,
movido pelas intrigas de Araripe, o caixeiro com quem dividia o quarto de dormir
e que também sonhava com Santinha, fora “despachado” para a capital paraense,
onde deveria estudar e trabalhar, antes que fosse tarde e, nas palavras do Coronel
Belarmino, passasse a viver feito uma “fera enjaulada, sem poder libertar-se
das grades” daquela terra onde tudo era “prisão” e os “próprios horizontes” se
fechavam sobre as pessoas e demais seres.66 Ali, naquelas paragens descritas de
forma abundante ao longo das mais de duzentas páginas da narrativa literária
de Medeiros, nos rios ou nas florestas demarcadas pelas correntes desses rios e
seus paranãs ou nas cidades represa de Xapuri e Rio Branco, vivia-se o “drama dos
esquecidos, dos segregados”, dos que ressentidos pela ausência da “civilização” e
suas cidades litorâneas; drama de seres condenados e governados pelo rio, com
suas águas repletas de indiferença, descendo rumo ao Purus.
Em seu romance, Océlio de Medeiros situa Xapuri e Rio Branco, mas não
poupa esforços na definição das cidades amazônicas como “obra da decadência”.
Cidades formadas pelos “rios humanos” dos primeiros tempos da borracha. “Rios
humanos correndo Amazônia adentro, divididos em centenas de braços. Rios
malucos, sem rumo certo, que vieram do Atlântico, em sentido contrário aos rios
de água, como que para desaguar no Pacífico, cavando na sua corrida pela mata,
o próprio leito”67. Rios de uma gente que vinha não do Nordeste, como assinala
o autor inserindo em sua ficção os bordões de senso comum da historiografia
amazonialista, para se referir a uma região que sequer existia no século XIX, como
mostrou de forma incisiva, sensível e inteligente o historiador Durval Muniz de
Albuquerque Júnior68.
Um desses rios, “pororocante” e formado por “cearenses brabos, chegou
até o Território do Acre, nos domínios da Bolívia e do Perú”, e “só não foi mais
longe porque esbarraria na muralha dos Andes”, segue a narrativa de A represa.
Porém, o mercado, movido por relações humanas, conflitos de interesses e
tensões diversas, ficou tenso, nervoso, rancoroso e o preço da “borracha caiu” em
súbita e inacreditável desvalorização, provocando grande vazante e “secando de
homens a planície”. Entretanto, arremata Medeiros, nem todos “puderam voltar
às vertentes” e “alguns ficaram, como os lagos, sumidos na mata, formando as
cidades. São os rios que perderam seu destino”69.

65
Albuquerque, Leituras de Stuart Hall em cenários amazônicos, 2016, p. 159.
66
Medeiros, A represa, 1942, p. 67.
67
Medeiros, A represa, 1942, p. 108.
68
Ver Albuquerque Júnior, A invenção do Nordeste e outras artes, 2009.
69
Medeiros, A represa, 1942, p. 108.

100
A Rio Branco de Océlio de Medeiros é a síntese do represamento desse “rio
de homens que perderam seu destino”, vitimados pela decadência que atingiu e
fez ruir o mundo dos seringais e do “ouro negro”. Síntese espelhada pela Xapuri,
a “princesinha do Acre”, do início de seu romance, sobre a qual recairia a “mesma
tristeza” que reinava nos luxuosos barracões abandonados nas margens do rio. Uma
tristeza de sol escaldante, de terras quentes e caminhos suados; tristeza de mãos
trêmulas e passado a flor da pele, bamboleando como as cadeiras nas varandas ou
com a dilatação provocada por um o sol que fazia estalar as telhas de zinco sobre
as cumeeiras das casas dos proprietários falidos. “A monotonia da tarde” enchendo
as “ruas com um ar de cemitério”. As “mangueiras imóveis como em uma prece”,
petrificadas pela ausência dos ventos e pelo ar pesado enquanto o rio corria manso
e a cidade digeria o drama de sua decadência70. A pena de Medeiros desliza em
torno da retórica de um passado que lhe oprime um presente de descendente
órfão dos grandes proprietários de seringais, amargurado com a derrocada de seu
mundo, aquele “gigante de pés de barro” que fez de Xapuri – sua cidade natal – um
imponente entreposto de trânsito de mercadorias, palavras e pessoas de diversas
partes do mundo; um lugar símbolo do fausto no girar da “roda da fortuna” que
incendiava o alto Acre do início do século XX e fazia ecoar suas riquezas em imagens
e notícias publicadas em periódicos de circulação na capital da república.
Mas, a represa principal, sobre a qual recai a forte carga de subjetividade de
Océlio de Medeiros é uma Rio Branco com características semelhantes à que foi
narrada nas páginas de Certos caminhos do mundo. Uma cidade também fraturada
em sua dupla face, sob a intermediação do rio Acre, o mesmo rio que chegava a
Xapuri e conectava suas florestas e gentes às grandes casas aviadoras de Manaus
e Belém e ao mercado internacional da goma elástica. Também em Medeiros, essa
cidade represa mantinha velhas peculiaridades:

No lado esquerdo estão o Palácio do Governo, a Matriz, a Polícia, o


Obelisco e o busto de João Pessoa. Aí moram as principais famílias. Esse
lado lembra o menino de colégio de padre, cheio de bons costumes,
religioso e moralista. No lado direito, em verdadeira contradição, estão
as lojas dos sírios gananciosos ocupando quase toda a rua da frente, com
fazenda de amostra nas fachadas de madeira das casas baixas, o Pavilhão,
as pensões, as casas de jogo, o beco do meretrício, o Hotel Madrí e o
poeta Juvêncio. Faz lembrar, nos contrastes da terra, o menino perdido,
o menino de rua. O rio, separando os dois temperamentos, parece uma
permanente censura, um velho experiente, de barbas compridas, que
gosta de dar conselhos às crianças. (...) A própria topografia da cidade
localizou os sentimentos dos dois lados: o lado esquerdo da cidade, o
do menino bom, é alto, e o direito, o do menino mau, é baixo. Uma
luz mortiça vela o sono tranqüilo de Rio Branco. No lado esquerdo,
quando não há uma festinha ou não faz luar, as famílias se retiram
antes das nove horas. No lado direito, ao contrário, a insônia vai pela
madrugada, com os dançarás no Rodovaldo e as bagunças na pensão da
Nega Deltrudes, com as jogatinas, as bebedeiras, as farras e as brigas por
questões de ciume. Na Pavilhão do Bachir, todo iluminado a carbureto,
os funcionários públicos, nas mesas de café, discutem tudo o que não
entendem, ao som de um rádio mal sintonizado. Há os que disputam
partidas de bosó, os que jogam gamão, os que esperam encontros com
as amantes e os que simplesmente se embriagam...71.
70
Medeiros, A represa, 1942, p. 16-17.
71
Medeiros, A represa, 1942, p. 108-111.

101
Não por mera coincidência, Océlio de Medeiros acompanha a divisão da
cidade projetada por Abguar de Bastos, mas suas motivações e envolvimento com
tal escrita da cidade são outras. Seu realismo traz as marcas de uma narrativa
documental, uma narrativa de quem tem contas a ajustar com Rio Branco e
sua gente ou com seus governantes interventores do passado e do presente
em que teceu seu “romance da Amazônia”. As personagens que habitam essa
Rio Branco transitam em um mundo de signos, um mundo de seres narrados,
de espaços/tempos narrados, seja na história, seja na ficção. As características,
comportamentos, virtudes ou vícios de tal mundo vão sendo arrematados como
em um leilão no qual vence que der o menor lance, sempre na dependência da
forma como o autor historiciza o passado no âmago de seu nada inocente romance
histórico. Por isso, mesmo quando ganha “foros de Metrópole”, a Rio Branco de
Medeiros é essencialmente provinciana e espaço de eterna expiação pública,
submergida em “rituais ridículos” e instituídos por certa forma de governo e suas
intervenções “modernizantes”, inaugurando “mentalidades urbanas” em meio a
seres talhados por uma “natural decadência”. Em Medeiros, ironicamente, nessa
“metrópole”, represa de homens com destino incerto, não existia calçamento e
apenas um “velho automóvel” transitava por suas ruas e vielas: “não havia água
encanada, nem tão pouco serviço de esgotos, pois as latadas eram transportadas
da Fonte da Independência no costado de jumentos e as águas podres tinham saída
através das valas das ruas. Mas via-se um belo palácio de alvenaria, o Palácio Rio
Branco, onde se instalam os serviços da administração pública”72. A cidade é signo
de uma prisão a céu aberto, onde as pessoas vivem encarceradas por horizontes
“encadeados de distâncias”, angústias, rancores, ódios. Um lugar em que, ao cair
da noite, os “grilos trinavam nos capins das ruas descalças”, fazendo coro com
os sapos e “seus coaxos nas valas cheias de lama” e as ruas desertas ganhavam
rima no piar agourento de uma coruja73.
Conhecendo as condições em que viveu, as causas em que se envolveu, ou
foi envolvido e as razões que o levaram a ser “saído” do Acre, no final dos anos
30, é possível apreender que Océlio de Medeiros escreveu um “texto vingança”,
traçando caminhos e pintando com as cores e o ardor de suas paixões as aventuras
e desventuras das experiências vividas, aqui inseridas aquilo ouviu ou leu em
diferentes fontes. Nessa narrativa suas palavras ou as palavras de seu narrador
e personagens são setas rígidas contra alvo móveis, assumindo o protagonismo
de um combate no terreno do discurso, manuseando as palavras na crença da
inseparabilidade entre significantes e significados ou entre signos e referentes
num jogo irônico, jocoso, malicioso que envolvia autoridades civis, militares e
religiosas da “cena pública” riobranquense, tratados com adjetivos precisos pela
pena de quem conhecia as regras do “jogo sujo” jogado por certas autoridades da
província e não tinha medo de enfrentar a “besta” e travar o bom combate. Ao
deslocar o jogo para o terreno de uma linguagem que conhecia, sabia que colocava
a disputa em outros patamares, pois essa disputa era a do acerto de contas com
seus detratores do passado e do presente, inseridos de múltiplas maneiras em
uma narrativa ideologicamente marcada pelos signos e sua capacidade de ferir
e mutilar feito “navalha na carne”. Desse modo, não deixou nada por menos e,
de Neutel Maia, passando por João Donato, Mário de Oliveira a Epaminondas
72
Medeiros, A represa, 1942, p. 125-126.
73
Medeiros, A represa, 1942, p. 206.

102
Martins, entre outras figuras de expressão no esquizofrênico panteão da história
regional, todos foram passados no fio dessa navalha.
Océlio de Medeiros não desconhecia o debate sobre a autonomia do Território
Federal do Acre, que ganhara espaço na imprensa de Manaus, Belém e Rio de
Janeiro, assim como não desconhecia as querelas mal resolvidas em torno do
“esbulho” de uma nesga de terras do Seringal Empresa, bem como os detalhes
da batalha judicial movida por Maria Juvenil Parente e sua filha Isaura Parente
contra o estado brasileiro, referente ao violento processo que culminou com a
construção da cidade de Penápolis, a partir de 1909. Sobre tudo isso, Medeiros
toma posição e seu romance literário, longe de ser reflexo da realidade, tece
representações sobre as tramas que envolviam questões dessa natureza, às quais
o autor não estava imune, pois, como a personagem Epaminondas Martins, cujo
“nariz de curica, bem curvado para beliscar os lábios finos, denunciava as suas
espertezas”, tinha consciência que ninguém que tivesse “sofrido o Acre” podia
esquecer suas mágoas ou mitigar seus rancores, nem deixaria de ter “sempre
presente” as aporrinhações aí vividas, todas as vezes que ouvisse seu nome, “nos
pesadelos da noite”74.
Em outras narrativas de sua lavra, a exemplo das “Onze odes em
metalinguagem a Rio Branco”, concluídas em dezembro de 1974 e inseridas em
Jamaxí: a poesia do Acre em três tempos, Océlio de Medeiros reedita velhas imagens
sobre a capital do Acre e acrescenta outras no “livre artesanato da poesia”,
brincando com palavras transformadas em “escórias de consumo na lixeira do
mundo”, em metalinguagem de uma estética buliçosa, arruaceira, descontente,
inquieta, infeliz; estética imersa na saudade e na tristeza de se saber de um lugar
que nunca foi, de uma cidade que não é; estética dos poemas dissolutos, dos
versos livres, versos de beira de rio e barrancos, versos contrários às formas e
métricas prontas, longe das “quadras, estrofes, ditirambos, sonetos ou endechas”75:
somente odes a uma Rio Branco primitiva, nascida da ganância antipatriótica de
um traidor. Cidade

despudorada, cínica, atrasada, sem modos, vagabunda, Rio Branco


messalínica. (...) Rio Branco, amor do Quinze, do Papouco, da Floresta,
do Bosque, da Base e que ainda tem Beco do Mijo, e o último Quiosque.
(...) Rio Branco onde a mulher é bem comum, que faz sempre o que quer,
que nunca se negou, que é fácil, Rio Branco sempre mulher. Rio Branco
prostituta, corrompida da fronteira quartel, que tem ruas, Palácio, Igreja,
pontes, mas que ainda é bordel. Rio Branco da Iuasca do Irineu, de
festas toda semana, que vai à Igreja, à missa e à novena, que reza e que
é sacana. Rio Branco viciada, maconheira, galinha, prostituta, meretriz,
vagabunda, sem vergonha, cadela, vaca, puta! Sempre te quis imune das
desgraças do desenvolvimento, da segurança, da ordem e do progresso
com endividamento76.

Em sua paixão sádica, soturna pela cidade, Medeiros não economiza nos
adjetivos desqualificadores, mesclando-os aos repetidos enunciados amazonialistas e
mantendo, em plenos anos 1970, a mesma face dual com a qual lhe narrou nos anos
74
Medeiros, A represa, 1942, p. 148 e p. 163.
75
Medeiros, Jamaxí, 1979, p. 180-182
76
Medeiros, Jamaxí, 1979, p. 191-193.

103
40: de um lado a virtude e do outro o pecado; de um lado a sede do governo, o quartel,
a igreja, o hospício, a família, o fisco, os padres e um “podre tribunal”; do outro lado
o comércio e o baixo meretrício ou o “livre amor de uma urbes conturbada”77. Nas
odes de Medeiros, Rio Branco jaz em fronteiras sombrias, com suas sagas sangrentas,
seu “passado de páginas nojentas”. Uma cidade de silêncio sobre sua origem num
berço sem grandeza. Origem torpe, repleta de intrigas e sedições, mergulhada na
simbologia da traição, com os vultos sombrios e tristes de sua história saindo do
fundo das matas feito almas penadas, vagando por crimes impunes; manchas de um
passado que não se apaga; manchas que o rio Acre vai levando correnteza abaixo,
com suas águas tristes, desiludidas. Rio lamacento, carregando a lama dos homens/
balseiros em seus repiquetes, “devorando árvores, pensamentos”, derretendo
mata, vegetação, casas, troncos, canaranas e desencantos em terras caídas; rio que
escancara a podridão das margens, dos homens e de seus fundos de quintais; rio que
vomita o lixo e míngua barrenta no cenário de uma floresta deserta, uma floresta
inferno verde, transformada em pasto de bois e vacas a devorarem as famílias de
extrativistas. Rio testemunha de uma cidade pisada pela boiada e pelos boiadeiros
dos anos 70, e de suas florestas transformadas em fazendas de gado, “saharizadas”
pelo capim e pela campina regada pelo sangue dos que dizem não e são silenciados
física e socialmente. Rio de saudade dos “velhos casarões e dos seus seringais... Dos
derradeiros coronéis da terra, da lama do barranco”78.
É interessante destacar que os mesmos tons e cores da decadência, ruína,
abandono e toda a retórica amazonialista do vazio, silencio e deserto amazônico
norteadores dos cenários e o cotidiano das personagens de Certos caminhos do
mundo, não por coincidência, são encontrados em A represa e nas odes à Rio
Branco. No caso dos romances, o contexto histórico das narrativas, com suas
específicas nuances entre a opulência e a crise dos seringais e da produção
de borracha, assim como certos personagens da história – Plácido de Castro e
Juvenal Antunes, por exemplo – também sinalizam para outras referências do
tipo de similitude presente em Bastos e Medeiros. Na condição de textos datados
e publicados na segunda metade dos anos 30 e inícios dos 40, essas narrativas
literárias não estavam imunes aos confrontos ideológicos ou interesses políticos
e econômicos, ao projeto de colonização dos “sertões amazônicos”, às disputas
regionais e nacionais, pois “o romance e suas formas estéticas e culturais – seu
poder de produzir percepções de mundo e de julgamento do “outro” e de si pelos
leitores –, acompanhando a perspectiva cunhada por Edward Said (1995), para
quem a literatura – e qualquer forma de manifestação artística ou de obra de
arte – está prenhe das subjetividades, valores, contradições, anseios e projetos
do mundo em que vivem seus autores”79.
Os enunciados do amazonialismo, acompanhados do ideário de “modernidade”
e “civilização”, voltam à cena pública em opúsculo publicado no ano 1950, pelas
Oficinas Gráficas da Imprensa Oficial do Território do Acre, com o título Mozaicos
da cidade nascente – crónicas, de autoria do jornalista, poeta e artista plástico
Garibaldi Carneiro Brasil – o Gari. A obra traz crônicas sobre a cidade de Rio
Branco e possibilita acompanhar a forma como esse homem de letras tecia aos
seus leitores a imagem de uma pequena cidade amazônica, edificada em meio à
77
Medeiros, Jamaxí, 1979, p. 183.
78
Medeiros, Jamaxí, 1979, p. 204.
79
Albuquerque e Ishii, A Amazônia acreana de Abguar Bastos, 2013, p. 120.

104
grande floresta tropical, onde ele teria vivido parte significativa de sua vida. Logo
na página de abertura, o autor procura expressar seu lugar de fala, ao dedicar
suas crônicas impressas “a Neutel Maia, o pioneiro; a Gabino Besouro, o fundador;
a Hugo Carneiro, o delineador; a Guiomard Santos, o construtor; a Raimundo
Pinheiro Filho, o urbanista”80. Em seguida, ao longo de 60 páginas, Gari procura
“descrever” de modo objetivo o cotidiano de sua Rio Branco. Um cotidiano em
que salta aos olhos seus compromissos com as elites locais, notadamente, com os
homens de poder, indicando a senha para o leitor atento apreender as cores com
que pinta essa cidade que precisa ser escrita, precisa ser dita, precisa se tornar
visível, precisa encontrar existência no corpo das palavras daquele que a narra.
Em Gari, que o jornalista e poeta Antonio Alves classificou como um “generoso
buon vivant”81, a “cidade de Rio Branco é tecida pelo filtro das lentes de um homem
das artes e das letras, mas das artes e das letras comprometidas com o establishment
do momento. Evidenciando uma dupla face evidenciada em outras narrativas,
como as de Abguar de Bastos, Océlio de Medeiros e Miguel Ferrante, a realidade
histórica da cidade produzida por sua narrativa, no contexto dos anos 1940-50,
também é fraturada em duas metades separadas por um “riosinho teimoso e ‘amigo
da onça’”. Essa Rio Branco, objeto da escrita do cronista, é um lugar pacífico, com
seu “casarío novo” e “belos edifícios” a se “perder de vista”. Cidade inscrita no
paradoxal cruzamento do “moderno” com o provinciano, com suas “famílias de
sociedade” dormindo cedo enquanto a boemia corria solta pelas ruas da Seis de
Agosto e do Bairro Quinze, despertando cães, gatos e putas nas proximidades
do “velho Pavilhão, onde nas tardes quentes”, expiando o rio, os pachorrentos
sírios jogavam gamão à sombra das mangueiras82. O que surge nas crônicas que
constituem Mozaicos da cidade nascente, é uma capital do Acre para a qual Gari
retorna após alguns anos fora, a reencontrando “moderna e progressista”, com
avenidas largas, fonte luminosa, um “lindo aeroporto” e um “magestoso palacio
néo-romano”83. Tal cidade, narrada como “moderna e progressista”, é símbolo da
expansão de um urbano que avança floresta adentro, “emergindo da mata verde”,
enchendo seu escriba de nostalgia e saudades dos pioneiros – “amansadores do
deserto” – aos quais expressa profunda empatia e identificação social. Narra um
Neutel Maia com seu barracão de mercadorias e campos de gado, testemunhando
“a luta diária dos bravos nordestinos que plantaram, na ponta noroeste do Brasil, a
jovem capital acreana”. Essa cidade que, imaginada por Gari, aparece “febricitante,
nos barrancos do rio, nas embarcações que chegam, carregam e descarregam, no
mercado farto, no vai-e-vem do povo, na alegria pictorica das canôas que cruzam
p’ra lá e p’ra cá, nos estaleiros do Governo, e sóbe e se alonga pelas terras da
‘Empresa’ á dentro, delimitando a selva para além do Bosque, muito p’ra lá do bairro
da Floresta”84. Nessa linha, nostálgico e ufanista, o cronista rumina o passado que
foi evidenciado pela narrativa da história oficial como suporte para reafirmar o
que considera “a conquista da terra” ou o erguimento de uma “urbs” que invade
as estradas de seringa e alarga os varadouros em “arrancada de progresso que não
parou, que não deve parar nunca!”85.
80
Carneiro Brasil, Mozaicos da cidade nascente, 1993 [1950].
81
Alves, “A cidade renascente”, 1993.
82
Carneiro Brasil, Mozaicos da cidade nascente, 1993 [1950], p. 1-2.
83
Carneiro Brasil, Mozaicos da cidade nascente, 1993 [1950], p. 3.
84
Carneiro Brasil, Mozaicos da cidade nascente, 1993 [1950], p. 5.
85
Carneiro Brasil, Mozaicos da cidade nascente, 1993 [1950], p. 5.

105
Suas crônicas são marcadas pelo desencontro no bojo das próprias linhas
que tecem a cidade que vai sendo, obsessivamente, inventada na condição de
“moderna e progressista”. Nela, pois reina o bucólico em meio ao discurso do
progresso e do moderno. Bucólico que ocupa lugar aos olhos do leitor a partir das
imagens criadas por Gari, notadamente, ao imaginar/representar a “silhueta da
cidade” a partir de um rio Acre também narrado. Silhueta das “grandes torres da
luz” que atravessam o “leito do rio como uma imensa pauta musical”, em “tardes
frescas” marcadas pela presença de andorinhas se equilibrando na chaminé
da usina de luz. Tal paradoxo se amplia quando a Rio Branco de “fartura” cede
lugar para uma cidade carente de produtos essenciais para o consumo diário, a
exemplo de um “genero de 1ª necessidade, alimento numero um e mais accessivel
para a minguada bolsa do povo, a carne vai rareando, cada vez mais, nos nossos
açougues, obrigando o pobre diabo a sair de casa ás 2 horas da madrugada para
chegar ao Mercado e encontrar os talhos... vazios!”86. Essa cidade “moderna e
progressista”, mas “sem carne, sem xarque e sem pirarucu”, também é atravessada
pela intensa “poeira das ruas que os caminhões, os jeeps, as camionetes, os tratores
e agora até o novo ônibus levantam, parece até com certa volúpia”87.
Mais que meros paradoxos ou construções textuais que fabricam sentidos e
ordenamentos, as crônicas de Gari são produtos de alguém que tece narrativas
sobre um espaço/tempo na condição de habitante desse específico espaço/tempo,
ou seja, de alguém que, embora produza narrativas de progresso, desenvolvimento
e urbanidade sob o manto de governantes mecenas, que bancam seus trânsitos
palacianos e suas boemias, esse buon vivant das margens do Aquiry o faz
em meio a contradições que se manifestam nessas mesmas narrativas. Seus
escritos são mediados pelas coisas, conceitos e possibilidades de seu tempo; suas
crônicas sobre certo cotidiano histórico são produzidas no interior desse próprio
cotidiano e, como tal, movidas pela carga de subjetividades, jogos de interesses e
paixões vividas e refletidas – ou produzidas – naquilo que narra, nomeia, atribui
sentidos. Em suas narrativas, Rio Branco vive dias de tranquilidade e construção
do progresso, urbanizando-se sob a guia de seus governantes. Progresso que
atravessa a área urbana e chega às colônias agrícolas do entorno dessa “urbs”
narrada. Aí, nas raras e breves referências à multidão de trabalhadores anônimos
que compunham mais de setenta por cento da população do município de Rio
Branco, Gari indica que o “deserto verde” vai sendo habitado e transformado em
“hectares e mais hectares de milho, feijão, arrôs, cana de assucar e bananas”88. Um
“progresso” somente possível graças às mãos firmes dos “homens que governam”.
Porém, a insistência das crônicas de Gari é com a narrativa de uma cidade
prenhe de “progresso” e “civilisação”, mesmo nos melancólicos e provincianos
feriados, embaixo de um céu cinzento e carregado de “nuvens gordas”, com
ameaças de chuvas ou friagens ou mesmo em plenos domingos aperreantes,
maçantes, enfastiantes, a cidade é de “progresso e civilisação”; mesmo quando
esse “progresso e civilisação” é simploriamente plasmado pela construção de um
“Grande Hotel”, o Chuí, que ostenta uma luz “feerica” e projeta sua “interessante
fachada” para “embelezar” a Praça Rodrigues Alves, o ponto mais “modernisado
da cidade”, com sua iluminação pública montada em “postes de concréto armado”
86
Carneiro Brasil, Mozaicos da cidade nascente, 1993 [1950], p. 9.
87
Carneiro Brasil, Mozaicos da cidade nascente, 1993 [1950], p. 33.
88
Carneiro Brasil, Mozaicos da cidade nascente, 1993 [1950], p. 55.

106
e “energía subterranea, em profusão quasi exagerada”89; ou mesmo quando “os
melhores instantes de uma capitalzinha, perdida na clareira da selva amazonica”,
são marcados pelo silvo do apito da usina de luz – a “Central Eletrica” – da cidade,
“reboando seu éco estridente, através da mataria, para além dos campos verdes
da Fazenda Nemaia, muito além do estirão da ‘Judia’, pra lá da volta do ‘Quinze’”,
em uma distante saudação que anuncia as horas, “como uma mensagem de
civilisação e de progresso”90.
No ano de 1964, quando Mário Maia concluiu a escrita de seu Rio e barrancos
do Acre (romance)91, colocou em evidência uma Rio Branco que guarda grandes
semelhanças com a Rio Branco de Garibaldi Brasil, embora sem o ufanismo deste
e tendo muito presente uma imbricada relação com a floresta e os trabalhadores
extrativistas em diferentes cidades e rios dos vales do Acre, Purus e Juruá. Rios,
florestas e cidades, com seus trabalhadores e demais habitantes são arquitetados
pelo olhar do narrador e de seu personagem central, Ary Damasceno Barral do
Monte Mello ou “doutor Melinho”, por intermédio dos quais apresenta “fatos reais
ou muito próximos da realidade estilizados pela pena do autor”, como afirma
em nota de “esclarecimento” na abertura do livro. Ao longo de toda a obra, sua
narrativa é marcada por toda uma subjetividade amazonialista, tomando as
casas e localidades habitadas pelas populações extrativistas como “salpicos de
civilização [que] mostram a presença obstinada do homem branco na selva, em
sua grande maioria nordestinos”, que se deslocaram para a região “em busca
de riqueza” para superar “sua miserável vida no sertão seco das caatingas”.
Homens que, “com sua coragem indômita, plantaram-se à beira [dos] rios e daí
para dentro da selva”92. É curioso perceber que Mario Maia tenha escolhido a
forma romance para apresentar seus “fatos reais” e o tenha feito com base em
uma “tal realidade histórica”, que assumia o Nordeste como um “simples recorte
geográfico naturalizado” e o nordestino, que a historiografia e a “tradição dos
vencedores” produziu enquanto identidade étnica, uma essência remontada aos
meados do século XIX quando sequer o tal recorte “Nordeste” existia, posto que
inventado nas primeiras décadas do século XX, como resultado de “certos temas,
imagens, falas”, sistematicamente repetidas “em diferentes discursos”93.
As personagens de Rios e barrancos do Acre são marcadas do início ao fim pela
presença da floresta, com suas gentes e afazeres. O contraste entre a civilização e a
barbárie do sertão vazio se faz presente a partir selva, que inscreve suas marcas não
apenas no caráter e nos modos de agir e falar das mulheres e homens que para aí se
deslocaram, mas seus próprios destinos na condição de “principais protagonistas”
em um “cenário verde e úmido”, vivendo, amando e morrendo internados no mato,
“cortando seringa” em um tempo “limitado e ocioso” mesmo quando o mercado da
borracha entrava em crise. Uma vida para a qual foram empurrados não apenas por
sua condição de “seres flagelados e miseráveis”, mas por sua ganância e ambição,
condenando-os a viver na “inércia, apatia e indolência”, perdendo a maior parte do

89
Carneiro Brasil, Mozaicos da cidade nascente, 1993 [1950], p. 30.
90
Carneiro Brasil, Mozaicos da cidade nascente, 1993 [1950], p. 35-36.
91
A primeira edição desse livro data do ano de 1978, com segunda edição datada de 1980 pelo
Centro Gráfico do Senado Federal.
92
Maia, Rios e barrancos do Acre, 1980, p. 23-25.
93
Albuquerque Júnior, A invenção do Nordeste, 2009, p. 344.

107
tempo no “ócio” e na “solidão”, feito “sombras humanas no degredo da floresta”94.
Um tipo de “degredo” que poderia ser compensado pela riqueza que brotava não
de seu trabalho, mas da “seiva de uma árvore”, a seringueira, que Maia transforma
em algoz dos trabalhadores extrativistas, cobrando-lhes um alto preço para sair
dali e “voltar à civilização”, pois,

em sua nudez erecta, silenciosamente, a seringueira vinga-se de quem


a fere, amaldiçoando-o com seu leite. Dir-se-ia que, na transformação
da alvura láctea da seiva líquida da seringueira em blocos ovalados,
sólidos e elásticos de matéria enegrecida e bruta, encerra-se o ritual
místico de toda uma maldição, que é o extrativismo da borracha na
região amazônica: – o homem, por menos livre que seja, torna-se um
escravo ao transformar-se em seringueiro95.

Em Mário Maia – e seu narrador – ecoa a análise sociológica/psicológica


a partir da qual Euclides da Cunha classificou o homem do Vale do Purus, na
Amazônia acreana, como um “‘solitário’, ‘abandonado’ como o próprio rio Purus,
condenado a nada produzir e não ter cultura, isolado na imensidão do deserto,
‘vítima’ de sua própria ganância e de uma faina repetitiva que o condena ao não
pensamento, à ‘incapacidade’ e ‘imobilidade’ sob a terra, um ‘farrapo humano’,
um ‘Judas ahsverus’ ‘fantasmagórico’ à mercê do rio e da natureza”96. Porém, ao
contrário do autor de Os sertões, que procurou denunciar não apenas a “criminosa
organização do trabalho” a escravizar o seringueiro, mas os patrões inflexíveis
com seus “brutescos” regulamentos, amparados em normas de “expressão imbecil
e feroz”97, na narrativa de Maia o trabalhador extrativista aparece como um
“solitário” e “resignado” que se escravizava por si próprio em obstinada fantasia
de enriquecimento, sem se dar conta ou, quando muito, somente tardiamente se
apercebendo que a riqueza que brotava da seiva da seringueira implicava em
tributo a ser pago com a própria vida, na “estática indiferença da paisagem da
selva” que o soterrava

no anonimato e no silêncio dos gemidos, das lágrimas, da ansiedade, das


aflições, dos soluços, dos gritos de desespero ou de cólera, das esperanças,
das frustrações, do conformismo e da ambição febril de riqueza do nada,
enfim dos dramas e tragédias que envolvem aqueles que ousam desafiar
com a vida, a natureza tropical desse Setentrião. E emoldurando tudo,
a paisagem sonolenta e indômita da Amazônia sem fim...98.

Nascido no Acre, Mario Maia não oculta sua empatia com os velhos coronéis
dos rios e barrancos da Amazônia acreana, em narrativa literária que exala uma
romântica visão sobre a empresa seringalista, “complexo sócio-econômico”
em “torno do barracão”, a sede do seringal que define como “uma dentada da
civilização na mata virgem”, uma imagem metaforizada em estreita sintonia com o
despreendimento e persistência dos grandes patrões seringalistas, homenageados

94
Maia, Rios e barrancos do Acre, 1980, p. 35.
95
Maia, Rios e barrancos do Acre, 1980, p. 108-109.
96
Albuquerque, História e historiografia do Acre, 2015, p. 9-10.
97
Euclides da Cunha, Terra sem história, 1986, p. 37-38.
98
Maia, Rios e barrancos do Acre, 1980, p. 45.

108
em seu romance na humanizada figura do coronel Fermiro Fernandes Farias que
o doutor Melinho ouve “com atenção, respeito e quase veneração”99. Na narrativa
de Maia, o trabalho e a exploração do trabalhador como parte da exploração da
natureza brotam da terra, naturalizadas como sinônimos da “Amazônia indômita”
e da “maldição” que recai sobre seres “ambiciosos e decadentes”. Nesse mesmo
diapasão, com “persistência, tenacidade e trabalho”, os grandes proprietários
avançavam “pelas terras de ninguém”, floresta adentro, dilatando seus “direitos
lindeiros”100 na condição de “senhores dos rios”101.
Assim como outras cidades acreanas que surgem no romance de Mário Maia,
Rio Branco é reflexo dessa percepção romântica em torno da empresa seringalista
e das relações sociais aí inseridas: sem conflitos de classes, sem indígenas, sem
exploração do trabalho, mas repleta de mulheres, homens e crianças que, embora
tratados com uma mistura de humanidade e condescendência, estão condenados
às vicissitudes da natureza e à conduta moral do grande proprietário ou de
governantes sempre dispostos a promover o “progresso”, o “desenvolvimento” e
a “civilização” capazes de sanar os “males da selva” e da cidade. Na narrativa de
Rios e barrancos do Acre quem chegava a Rio Branco, desde a “Curva da Judia”, ao
longe avistava a silhueta da capital acreana, “espiando o vão do rio pelo mercado,
a Mesa de Rendas e algumas casas de madeira que se alinhavam ao longo do
barranco pela margem esquerda”102. A imagem não é nova, posto que marcada
pela presença de enunciados que se repetem em outros textos e discursos, assim
como não é nova a divisão da cidade “em duas porções”, tendo de um lado,
as repartições públicas, “o Palácio do Governo, a Intendência, a Capitânia dos
Portos, a Mesa de Rendas, a Usina Elétrica, a Igreja dos Padres”, a maior parte das
residências e as áreas de fixação de colonos para a produção agrícola, parte dos
esforços oficiais para o desenvolvimento regional; e do outro lado, a Fábrica de
Castanha, “lúgubre casarão” localizado no Rabo da Besta, que servia de hospedaria
aos arigós “soldados da borracha”, amontoados em dolorosa promiscuidade,
fazendo suas necessidades fisiológicas em “penicos, latas e bacias”, utensílios
precários, “velhos, enferrujados, furados, vazando, emprestando ao ar um odor
característico de fezes e urina em decomposição de mistura com cheiro de restos
alimentares azedados”103; era também desse lado que ficava o Beco do Mijo, o
Quinze e a Seis de Agosto com seus tradicionais cabaré, a exemplo do Chico
Aurélio, que rivalizava com a Bagunça da Anália, no Papouco, um raro ponto de
boemia e prostituição do lado de Penápolis.
Rios e barrancos do Acre é marcado por uma escrita que transita entre a
narrativa ficcional e a narrativa histórica, evidenciando não apenas a tênue
fronteira que as separa, mas a extrema dificuldade de localização do lugar exato
onde elas se bifurcam. Nessa direção, ganha importância destacar que o próprio
autor julga sua obra como “uma pálida expressão da verdadeira realidade” das
vidas e dos sofrimentos das mulheres e homens que viveram o “resignado e
anônimo esforço de integração política, social e econômica do Acre”104. Mario
99
Maia, Rios e barrancos do Acre, 1980, p. 27.
100
Maia, Rios e barrancos do Acre, 1980, p. 32.
101
Termo emprestado a Mary del Priore e Flávio Gomes (Orgs.), Os senhores dos rios: Amazônia,
margens e histórias, 2003.
102
Maia, Rios e barrancos do Acre, 1980, p. 77.
103
Maia, Rios e barrancos do Acre, 1980, p. 95.
104
Maia, Rios e barrancos do Acre, 1980, p. 15.

109
Maia enfatiza que escreveu um documento memorialístico sobre suas próprias
experiências e sobre as experiências de outras pessoas e localidades diversas, que
tenta transpor para as páginas de seu livro sob a mediação de uma linguagem
que deseja a mais fiel, a mais objetiva, a mais verdadeira possível, como afirma
no prefácio à primeira edição e na nota de “esclarecimento” à segunda edição.
Em suas palavras, considerando a “natureza dos assuntos tratados”, o interesse
pelo livro continua atual, “talvez mais do que na época de quando foi escrito.
Isto porque nos dias de hoje (1980), alguns dos lugares referidos já não mais
existem, levados que foram pelos desbarrancamentos. Outros apresentam-se
profundamente desfigurados pelo tempo e pelo progresso”105.
Mário Maia acredita firmemente na inseparabilidade entre a linguagem
e o acontecimento ou a coisa narrada e, com base nessa crença, apresenta os
trabalhadores da floresta – e da cidade – como falantes de uma língua portuguesa
que denuncia sua condição de subalternos e carentes de civilização ou carentes
de um falar que supõe correto e fluente. Um “falar correto” que, em seu romance,
é atributo do narrador e de personagens como o doutor Melinho (seu alter ego)
e o coronel Fermiro, “dono do rio Macuã”. Porém, a “verdadeira realidade dos
fatos” narrados por Maia é tecida como parte da mesma trama de tudo aquilo que,
em meio à sua narrativa do real, foi ficcionalizado. Mesmo que seja considerada
“um misto de realidade e de romance”, como assinalou Adalberto Sena106, sua
narrativa não deixa de ser trama, aqui apreendida no sentido atribuído por Paul
Veyne, ou seja, como “uma mistura muito humana e muito pouco ‘científica’ de
causas materiais, de fins, de acasos”. Trama porque a realidade vivida/passada
ou rememorada por Mário Maia é completamente humana, assim como o objeto
de estudo de qualquer “historiador é tão humano quanto um drama ou um
romance”. Em qualquer que seja a situação, a “trama pode se apresentar como
um corte transversal dos diferentes ritmos temporais, como uma análise espectral:
ela será sempre trama porque será humana, porque não será um fragmento
de determinismo”. Os fios que tecem os acontecimentos narrados por Maia são
tramas ficcionais e históricas, tramas humanas, pois “os acontecimentos não
são coisas, objetos consistentes, substâncias; eles são um corte que realizamos
livremente na realidade, um aglomerado de procedimentos em que agem e
produzem substâncias em interação, homem e coisas”107.
Assim como Mário Maia, a escritora Florentina Esteves, também nascida no
Acre, assume a empreitada de produzir uma narrativa memorialística em seu
Enredos da memória, cujo sugestivo título já indica algumas interessantes pistas
em torno dessa criação escrita. Atento a essas pistas, Ivan Cavalcante Proença, em
prefácio ao livro, destaca que “enredo é trama” e “é rede”. Trama e rede tecidas
pela memória que “também tece tramas e enreda” em um “universo ficcional”
em que realidade e fantasia se “harmonizam e, por vezes, se acomodam”.
Acomodamento que Proença antevê ao sinalizar que Esteves “transita por campos
e meandros múltiplos”, marcados por tecituras de tempos, “espaços e gentes
acreanos”, com a história, enquanto “fio narrativo literário ou histórico mesmo”,
sendo explicitada em parte do livro na condição de “fatos e versões oficiais”108,
fatos que surgem, como no saber popular, do ato de enredar, ou seja, do ato de
105
Maia, Rios e barrancos do Acre, 1980, p. 19.
106
Sena, Apresentação, 1980, p. 18.
107
Veyne, Como se escreve a história, 1998, p. 42 e 46.
108
Proença, Memória dos enredos, 1990, p. 9.

110
contar o ocorrido com as cores, sentimentos, entonações recriadoras de quem
conta, delata ou denuncia algo, um mal feito, uma desobediência doméstica ou
escolar, uma intriga de rua, um beijo ou um namoro às escondidas. Nesse caso,
enfatiza Proença, fatos e versões aparecem enredados na lógica do “quem conta
um conto aumenta um ponto”.
Florentina Esteves introduz seu livro com uma “autobiografia estilística”
e algumas “ressalvas” aos leitores. Nelas lembra que sua trajetória vem de um
“tempo em que Governador era Interventor, e a brisa do rio tangia poeira fina
das ruas sombreadas de mangueiras”, um tempo em que “não havia asfalto nem
estradas, só o ‘Ford de Bigode’ do Eduardo Pinho”. Um tempo de catraias fazendo a
travessia do rio Acre, entre os dois distritos da cidade e os “gaiolas ou chatinhas”,
apitando na curva da “Judia”, era sinônimo de “alegria da mesa renovada e farta”.
Tempo de bailes na Tentamen, de idas ao Cine Theatro Eden e de descobertas
“que os limites do quintal continuavam na rua”, brincando de “manja, macaca e
peteca, de boneca e de roda”. Tempo de friagens com suas nuvens baixas ou de
“rio cheio, balseiro passando sempre, sinal de alagação. Mundo de água na rua e
nos quintais, sem cercas e sem fronteiras”. Seus enredos são por ela traduzidos
como uma viagem de “regressão no tempo”, de “inversão do curso da vida”, em
“ritmo de alívio e de alegrias” para que, nesse “refluir do tempo, a expressão
antecedesse o pensamento; o acontecer, antes do gesto, e o nascer se antecipasse
à gênese”. Uma viagem de criação e criaturas humanizadas no “útero fecundo
da palavra”. Viagem em que as lembranças vêm à tona, invocadas no “tempo de
agora”, “vestidas com as roupas mais vistosas; as melodias, com as notas mais
sonoras, sem pudor e sem recato o coração-criança”109.
Nessa direção, sem receio de aparecer melancólica, Florentina Esteves tece
uma Rio Branco de palavras, de lembranças selecionadas para fazer sentido
às tramas que enreda contra um presente em que a Rio Branco e o Acre “como
antigamente” foram reduzidos a velhas fantasias de carnaval e fantasmagóricas
fachadas no Calçadão da Gameleira. Suas lembranças são as lembranças de um
mundo que ruiu e que somente pode retornar pelos fios da trama, da palavra escrita,
da narrativa histórico-literária de quem busca enfrentar os perigos dos tempos
presentes na idealizada segurança de tempos passados, agora materializados em um
mundo de linguagem. Nesse mundo ela enquadra distintos personagens seguindo
os papéis que seus enredos lhes confere: Juvenal Antunes, poeta “pequeno, magro,
desdentado, o cabelo avermelhado. (...) Alegre, bem-humorado, irreverente, mordaz,
gesticular farto, novidadeiro”, povoando de “solidão o vazio, fantasias, desfastio
daquele Rio Branco anos vinte-trinta”; Epaminondas Martins, interventor “que
passou o cargo e a pobreza do ‘impávido torrão pátrio’ a Fontenelle, que o repassou
a Meninéa Pereira”; Capitão e governador Oscar Passos e sua esposa Yolanda,
brindando a “distinta sociedade acreana” com seus bailes no Palácio ao som da
Orquestra da Guarda Territorial repetindo incansável o “Danúbio azul” que tanto
agradava ao governante; Coronel e governador Luiz Sylvestre Gomes Coelho, o “bom
velhinho”, e sua esposa, dona Izollete, promovendo a caridade cristã e obras da
Legião Brasileira de Assistência; Major e governador Guiomard Santos e sua esposa
Lydia Hames, “divisor de águas” que instituiu a “modernidade na cidade” e marcou
o Acre com “educação renovada, agricultura, ‘Processo Arantes’, saúde, transporte,
estradas, escolas, obras, mini-reforma agrária, jornal, rádio”, transformando o
Território Federal em Estado; dona Yayá, que morava na Seis de Agosto, ensinava
109
Esteves, Enredos da memória, 1990, p. 11-13.

111
bordado e envelheceu num “tempo de deslembrada memória”, feito uma moldura
na janela, com um “louro desmaiado” nos cabelos que foram embraquecendo,
“alta, descarnada”, prendada com “mãos de fada”, comprometida com um amor
irrealizável, um noivado, um casamento com aquele que nunca chegou, mesmo que
fosse o Amadeu, arigó letrado que residia no Seringal Sericóia e, de vez em quando,
aparecia em Rio Branco onde “espairecia o fastio (...), no Beco do Mijo, Papouco ou
no fim da Seis de Agosto” até o dia em que lhe prometeu casamento e nunca mais
voltou; Raimundo Doido, com “seus quarenta anos, baixo, parco em carnes”, calçado
com “sapatos de seringa e as calças, que trazia amarradas com uma tira de pano”,
arregaçadas “até o meio da perna”, uma espécie de arauto da cidade que “fazia
mandados, pequenos carretos, capinava quintal, baldeava casa” e anunciava os
acontecimentos, as inaugurações, as chegadas e saídas de autoridades, os eventos
artístico-culturais e outras efemérides de modo performático pública: “três passos
pra frente, três passos pra trás, batia o tambor. Caminhava mais um pouco até onde
as pessoas pudessem vê-lo. Parava. Três passos pra frente, três passos pra trás, um
gingado, batia o tambor” e, estufando o peito, retirava do “bolso da camisa suja
amarrada na cintura puxava um papel amassado” que virava e revirava várias
para encenar seus anúncios desde o Hotel Madrid, parando na “esquina do Beco-
do-Mijo”, depois em frente ao “Pavilhão”, seguido da “farmácia do Lopes, depois
no Demétrio Fecury, ganhava a rua África, voltava pela Seis de Agosto, rumava
pro outro lado, rataplã, rataplã”; Bito, com suas botas, seu colete franjado, lenço
em volta do pescoço, chapéu de caubói, dois revólveres de plástico enfiados nos
coldres à cintura, todos os dias e nos mesmos horários, sentava-se em frente ao
Bar municipal para contar as histórias de suas imaginárias aventuras, povoando
sonhos, criando fantasias, enfeitando a vida das crianças que lhe ouviam; Diva,
caminhando pelas ruas, “riso berrante, aberto, travava e tropeçava nos agudos,
subia o tom, fugia-lhe a voz de todo, tornava ao grave, grunhia, recomeçava. Chutava
no chão lixos imaginários, xingava. Rua acima, rua abaixo. Sulcada a terra do
repetido trajeto, pára e boceja”, convive com os animais da rua, cachorros, gatos, e
amamenta seus filhotes; Garibaldi Brasil, um “artista” que ao dedicar seu “Mosaicos
da Cidade Nascente” ao casal Guiomard Santos e Lydia Hames, angariou gratidão
e “benfazejas benemerências” que lhe ajudaram a continuar enfrentando com
irreverência, inquietude e brincadeiras a “apatia da vida modorrenta da cidade”;
professora Sizínia Costa Feitosa, dona Mozinha, com sua “voz estridente, gesticular
brusco”, olhar forte e palmatória ao alcance das mãos, era capaz de “amansar
qualquer menino”; Padre José, “médico, Juiz-da-Paz, herborista, metereologista,
amigo e conselheiro, parteiro”, ouvidor de confissões de patrões e espoliados110.
Transitando entre as inúmeras mulheres com seus específicos afazeres, os
homens de poder e os “doidos” – de plantão em inúmeros escritos sobre a cidade
e, em grande parte, caricaturas de olhares estereotipados – as personagens de
Esteves são tecidas com afeto e ecoam a Rio Branco que planta em sua narrativa.
Afetividade que não a livra de tentar ocultar as tensões sociais ou suavizar
estereótipos comuns no que se refere à questão étnica, como evidencia em “Receita
para ‘brabo’” ao “descrever” a tacacazeira, Donana, uma “preta velha, gorda”, que
tinha residia no “térreo do ‘Pombal”, um lugar com “chão de terra batida, escuro e...
fedia”111; ou quando procura romantizar o caráter trágico e violento do cotidiano
110
Essas personagens – e trechos transcritos – constituem praticamente todo o capítulo três da
obra de Florentina Esteves. Ver Enredos da memória, 1990, p. 48-88.
111
Esteves, Enredos da memória, 1990, p. 119.

112
das “mulheres do Beco do Mijo”, em uma dos mais impactantes e significativos
textos de seu Enredos da memória. Imersa em paradoxos, mesmo a partir de uma
memória seletiva, Florentina Esteves percorre sinuosos caminhos na tecitura de
sua cidade. Cidade de um “tempo deslembrado”, que irrompe em seus escritos,
feito ciranda, peneirando, filtrando lembranças que se enredam na composição
das relações sociais de uma filha de proprietários e comerciantes que vivia no
cerne da “sociedade riobranquense” e não no entorno, nos diferentes mundos e
“comunidades de destino” que viviam fora dos traçados dos limites dessa cidade,
separadas como áreas de “desterro”, ou seja, seringais, colônias e outras pequenas
comunidades distribuídas ao longo das terras do antigo Seringal Empresa.
Em tom nostálgico, parte substancial de sua narrativa é contextualizada
no interior de um “tempo sem data”, tempo em que bucólicas “manhãs irisadas
por entre o verde da folhagem da mata escandeciam o ar parado” e, “quando
a tarde caía por sobre o rio, se ouviam grilos, sapos, pios, arrepios na noite”,
iluminada pelos candeeiros.112 Governando sua narrativa, é possível surpreender
as metáforas do amazonialismo, que separa cultura e natureza, vinculando esta
última ao primitivo e atrasado, e abre espaço no texto de Esteves que segue
enredando e presentificando uma “Maria Ferrante, a florista”, que “fazia flores
enquanto escutava a própria voz entoando ladainhas ou mal lembradas canções
italianas” ou as bordadeiras, Marina e as irmãs Julieta e Luzia, que bordavam
com “mãos velozes”, matizando “nas cores em harmonia o bailado dos cetins,
lamês, linhos”. Nessa cidade platônica, cuja geografia ocupa uma pequena faixa
de terra com ruas, praças, becos, casas, palácio do governo, igreja, mercado,
quartel, escolas e outras edificações distribuídas nas duas margens do rio Acre
e suas beiras de barrancos, os papéis sociais não se confundem e obedecem aos
compassos das tramas da autora em verdadeiras ladainhas: “faziam doces as
doceiras”, Palmyra e Ida Rodrigues, com seus “beijo-de-moça, queijadinhas, bom-
bocado e o monumental bolo confeitado”; “costuravam as costureiras Carmelita,
Almira e Candinha”, no diuturno pedalar na cadência do ritmo da máquina e na
feitura de “vestidos, saias e enxovais de noivado”; “ensinavam as professoras”
Mozinha, Hilda, irmãs Fecury, Vilarouca, as Baymas, Yayá, dona Benvinda e Selva
Leite; tocavam piano as pianistas Jandyra, Elza Bayma, Helena Leal, Clarice, todas
hábeis na execução dos “mesmos tangos e valsas que lhes ensinara Hilda Leite”;
ajoelhadas na igreja, “cantavam bendito as beatas”; no meio das tardes, “as moças
se arrumavam e, da janela, ou cadeiras na calçada, espiavam os rapazes que
de longe as namoravam”; as crianças brincavam de gente grande: “as mamães
amamentavam, taberneiros tabernavam, cozinheiras cozinhavam, doceiras faziam
doces, costureiras costuravam e bordadeiras bordavam o enxoval do bebê que
esperavam. E por entre catraias de toldo azul, sem pressa passava o rio. Naquele
tempo sem data”113. Tempo em que a cidade girava em torno do movimento do rio,
que espelhava o verde “no apito dos navios que partiam ecos de anseios, miragens
de arco-íris”; rio “indolente, em estios, por igapós”, deixando-se “ficar a esperar
novas enchentes, na esperança renovada da partida. Balseiros encalhados nos
barrancos. Barrocos os meneios do rio, redemoinha, e em torno de si mesmo faz
remanso. Míngua, não porfia. Silencia”114.
112
Esteves, Enredos da memória, 1990, p. 85.
113
Esteves, Enredos da memória, 1990, p. 85-86.
114
Esteves, Enredos da memória, 1990, p. 29.

113
Nessa Rio Branco, de florentina Esteves, a vida girava em torno de certo Hotel
Madrid, que pertenceu aos seus pais. Um hotel em que afirma ter vivido a infância,
agora revivida na forma dos signos que também conformam a cidade com seu
“casario informe debruçado nos barrancos, preferindo ver-se refletido nas águas
viageiras”, vigiando o rio Acre que “corria lento” e “vadio para além da Curva da
Judia”115. Cidade de dois lados ou distritos conectados pelo rio, mas, diferente do
que escreveram outros autores que a precederam, marcada pelo encontro de uma
sociedade em duas margens e não pelo maniqueísmo da luta entre a “virtude”
e o “vício” ou entre o bem e o mal. Cidade que foi sendo expandida sobre a
floresta, ritmada pelo “progresso que contagiava o povo”. Cidade de Usina Elétrica,
Cine Theatro Eden e, depois, Cine Recreio; pouso dos primeiros aviões, blocos de
carnaval na Tentamem e Rio Branco Futebol Clube, Mercado Municipal, Palácio
do Governo, Quartel da Polícia, casarões avarandados, Gabinete Árabe de Leitura,
Grêmio de Professores, Instituto Histórico e Geográfico do Acre, Ginásio Acreano,
Escola Normal e jornais de circulação local116 que, em conjunto, referenciam a
capital acreana autora entre as décadas de 1920-1950. Uma cidade que, embora
seja “modorrenta” e “parva”, não é caracterizada pela decadência com a qual
foi urdida por Abguar de Bastos, Océlio de Medeiros, Miguel Ferrante e Mário
Maia, mas pelo sonho do “castelo azul de cristal”, pelos cenários e personagens
lúdicos, pelas brincadeiras inocentes e pueris, pelos saraus e serenatas, pelo
cinema e teatro em uma clareira de “civilização na selva”, por eletrodomésticos
e mercadorias importadas da Europa, por telhas, vitrais, roupas, discos, pianos,
livros e frutas que atravessavam o Atlântico e adentravam o Amazonas e seus
afluentes até o Acre, em navios que abasteciam a cidade para as festas e bailes
de natal e ano novo.
Uma cidade notadamente distante dos “pobres diabos” que viviam no
“desterro dos seringais” ou nas matas, colônias e bairros que iam surgindo no
entorno da “rua”. “Pobres diabos” que Esteves não deixou de enredar, mantendo-os
no interior do bordão da origem “nordestina”, que foi trocada pela busca do
eldorado no “inferno verde” enquanto o “Nordeste”, anacronicamente presente
em narrativas históricas e literárias, ficou no banzo da saudade, obscurecido pela
floresta tentacular, com sua “mata hostil e agressiva”, repleta de “cipós retorcidos,
emaranhados, enroscados a troncos frondosos”, um labirinto viscoso de galhos
e folhas com cobras “zunindo nos ouvidos ou atropelando-se nas pernas” e as
onças esturrando em simbiose com a correria das pacas, tatus, cutias, macacos
e coelhos em um éden infernal completado pela presença de enormes aranhas
saindo de suas tocas em troncos de árvores e pedaços de paus secos e apodrecidos,
enquanto os pés de mulheres e homens – mansos ou bravos – afundavam na
lama e na folhagem para serem tomados pelas jiquitaias no mesmo instante em
que milhares de piuns, meruins e mucuins sedentos e vorazes penetravam pelos
“ouvidos, nariz, olhos, alojando-se nos cabelos” e deixando o “corpo todo um só
repasto”. Enfim, um lugar de “solidão úmida, abafada, pegajosa”, que sugava as
energias dos homens e os empurrava para a cachaça, crentes de nela encontrar
a panaceia para todos os seus males: “pra cortar sezão, tirar verme, espantar
fome, levantar forças, dar coragem pra enfrentar essa vida de degredado, nesta
miséria de fim-de-mundo”117.
115
Esteves, Enredos da memória, 1990, p. 26-28.
116
Esteves, Enredos da memória, 1990.
117
Esteves, Enredos da memória, 1990, p. 105-106.

114
Florentina Esteves lembra e relembra o passado que lhe convém lembrar/
tecer como expressão de um real que se esmera em dar forma numa batalha
incansável e inócua. Suas lembranças são lembranças voluntárias e também
transitam sob o peso opressor da fossilizada narrativa oficial e hegemônica de um
Acre ocupado por nordestinos, mesmo que não existisse uma região Nordeste no
Brasil de meados do século XIX e inícios do XX. O fato é que, em sua narrativa – e
nas narrativas de uma grande legião de historiadores e literatos – seringueiro é
sinônimo de nordestino ou seu descendente. Um nordestino transformado em
categoria étnica, racializado no âmbito do “seringalismo” e da “seringalidade”,
como analisou João Veras de Souza118. Um nordestino tangido pela seca, pela fome,
pela miséria, que também fazem parte do repertório identitário dessa fantástica
invenção. Um nordestino “massa”, estatística da fome e da morte, passageiro
de terceira classe em imundos navios gaiolas, coletivo indistinto, anônimo, sem
rosto e sem voz, um corpo desmaterializado de milhares de seres fantasmáticos
que, oriundo de certo sertão árido, seco e violento, adentrou outro sertão, isolado
e desértico ou vazio de humanidade e de civilização. E, nesse “abismoso reino
de solidão”, foi protagonista de um épico, uma luta titânica contra o deserto e a
solidão, contra as feras humanas e não humanas, contra as “as febres loucas e
breves que mancham o silêncio e o cais”119. Épico que serviu de marco fundador
para a extraordinária invenção do Acre brasileiro, um Acre que virou parte da
narrativa da nação, disputado e arrancado à Bolívia e Peru em batalhas travadas
a ferro, fogo e palavras. Batalhas em que a diplomacia das armas e da desigual
correlação de forças bélicas foi dissimulada por tratados em que aos mais fracos –
“audaz estrangeiro” – a única alternativa era subscrever ou fenecer120. Em síntese,
no seu exercício rememorativo, impregnado de fantasias lúdicas e de certo modo
de conceituar a realidade, Florentina Esteves adentra o pantanoso terreno da
memória histórica da cidade, base de sustentação da cristalizada história oficial,
a história una, indivisa, triunfante e marcada por uma “racionalidade totalitária
que define vectores lineares de tempo”121. Um tempo que avança insustentável,
vago e inchado de retóricas repetitivas, de fantasmagorias, de sangue e destruição
ocultos pelo dissimulado bordão da “ordem” e do “progresso”. Tempo de uma
perspectiva sedentária, mesmo que fundado numa errância que foi soterrada
pela “maquinaria discursiva” que a isolou e neutralizou no além-mítico da saga
indolor e incolor dos pioneiros ou desbravadores e sua obsessão por lugares,
florestas e mulheres virgens; tempo que segue impassível desde o ato inaugural
da narrativa que o funda na condição de mito de origem ou marco civilizatório –
em eterna “evolução” e “desenvolvimento” – até chegar ao presente. Um presente
redimido pela escrita/reescrita do mesmo, incessantemente pintado com as cores
nauseabundas da propaganda estatal, que inventa e reinventa um tipo acreano
ou essência acreana, certa acreanidade que “atravessou e venceu” o deserto
“inferno verde”, mesmo que sob o signo da barbárie, da violência e da cobiça
sem medida, justificada pelo discurso da integração e defesa da nação e suas
fronteiras, amansando a “selva” e os “selvagens”.

118
Souza, Seringalidade, 2017.
119
Em alusão a um trecho de “Corsário”, canção e música de João Bosco e Aldir Blanc, 1975.
120
Referência ao Tratado de Petrópolis, entre o Brasil e a Bolívia, 1903; e Tratado do Rio de Janeiro,
entre o Brasil e o Peru, 1909.
121
Vilela, Corpos inabitáveis. Errância, Filosofia e memória, 2001, p. 233.

115
Para concluir devo salientar que, nessas narrativas da “literatura de expressão
amazônica”, o Acre, seus rios, florestas, gentes e cidades são sempre marcados
pelo emblema da distância e da solidão, do vazio, solitário e isolado, do deserto
e da inundação, das pragas de mosquitos e das doenças, das inundações e das
estiagens. Envoltos nesses signos o homem é a imagem do sertanejo, mas também do
aventureiro nacional a domar os sertões, a amansar a terra e a disputá-la com outros
tipos humanos, sejam eles “selvagens primitivos” ou “estrangeiros” de inúmeras
nacionalidades. Intocável nessa literatura é a ética da conquista, do triunfalismo, do
“heroísmo dos que lutaram pela terra”, que deram seu sangue por uma causa e “essa
causa era a causa do Brasil”. De um Brasil que também hostiliza e abandona e suga
e explora esses homens, que “lutam pela liberdade e pela autonomia” em torno da
imaculada imagem de Plácido de Castro, “nosso” caudilho laureado no panteão dos
heróis da pátria. Nessa literatura ganha espaço uma ética não do silêncio, mas do
silenciamento, pois os indígenas que viviam/vivem nas terras em que está encravada a
capital acreana nunca são mencionados. Foram silenciados, ignorados, invisibilizados
para serem esquecidos e os escribas esqueceram que esqueceram. Na ética e estética
do heroísmo, nossos heróis são movidos pelo altruísmo do desinteresse econômico
e do interesse da defesa da pátria, mesmo quando essa pátria sequer existia. São
nordestinos oriundos de um Nordeste que também sequer existia, mas continua
sendo cantado em verso e prosa de modo paradoxal, mas como eficiente sustentáculo
da dominação e dos dominantes do passado e do presente.

Referências

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117
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ZANNINI, Iris Célia Cabanellas. Fragmentos da cultura acreana. São Luís: Corsup/
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118
Os Bora e os Uitoto do noroeste amazônico no
relato antropológico de Thomas Whiffen

Hélio Rodrigues da Rocha


João Carlos Pereira Coqueiro
Como inúmeros outros viajantes estrangeiros 122 que estiveram na
Amazônia, Thomas Whiffen, aventureiro e explorador britânico – autoditada
em Antropologia – desejava viver uma “experiência autêntica” e, de preferência,
em lugares geograficamente distantes de seu mundo metropolitano ou, muito
comumente, nas margens dos mapas da ‘civilização’ e, portanto, em um lugar
ainda a ser investigado e apresentado ao mundo das ‘letras’, em contrabalanço
com um mundo dito ‘iletrado’, ou seja, um mundo sem escrita. Nesse fito, imbuído
de um espírito de aventura e coragem, e após a leitura do relato Viagens pelos
rios Amazonas e Negro, [entre outros], do naturalista, geógrafo, antropólogo
e biólogo britânico Alfred Russel Wallace (1823 - 1913), Thomas Whiffen, que
carregava consigo o manual Notes and queries on Anthropology [Guia Prático de
Antropologia], afirma que “na primavera de 1908, encontrando-me há quase dois
anos na lista de desempregados por conta do meu estado de saúde, enfastiado
não só de uma inatividade forçada, mas também do mundo civilizado, decidi
que viajaria e veria algo relativamente desconhecido e ainda sem registro em
algum canto do mundo”123.
Escolhida a região ‘periférica’, o noroeste amazônico, especificamente as
terras entre os rios Japurá/Caquetá e Içá/Putumayo, ao mesmo tempo território
fronteiriço do Brasil, Peru e Colômbia, Whiffen chega a Manaus no fim do mês
de maio de 1908 e dali, após diversas inquirições sobre as viagens pelos rios
amazônicos, segue para Iquitos, situada à margem direita no Alto Amazonas, no
Peru. Como esclarece o próprio viajante, “embarquei rumo a Iquitos num navio a
vapor da Companhia de Navegação, e cheguei a essa cidade peruana na segunda
semana de junho”124. É dessa ‘cidade-empresa’ de Julio Cesar Araña que parte o
entusiasmado viajante londrino, com seu olhar classificatório, rumo aos territórios
dos Bora, Uitoto, Muinane, Resigaro, Okaina, Maku, Taikena, Yuri, Menimehe,
Muinane, Roucouyennes, Andoke, Tukana, Miranha, Makuina, Carijona, Kuretu,
Nonuya, e outros grupos indígenas. De fato, foi “por meio dos bons serviços do
Consulado Britânico que parti de Iquitos pelo rio principal, o Amazonas, e adentrei
o Içá ou Putumayo, até El Encanto, na boca do Cara-Paraná, aonde cheguei em
meados de agosto”125. É a partir desse ponto que começa a fazer os registros
etnógraficos whiffenianos sobre os modos de vida e os costumes de dois grupos
linguísticos de indígenas – Bora e Uitoto.

122
Há inúmeros viajantes que viveram ou passaram algum tempo na região amazônica. Ver, por
exemplo, Gaspar de Carvajal (1542), Lope de Aguirre (1561), Walter Raleigh (1595); Cristóbal de
Acuña (1640); Pe. João Daniel (1750), Pe. Samuel Fritz (1689), La Condamine (1735), Alexandre
Rodrigues Ferreira (1783), Charles Waterton (1812), Spix & Martius (1817), Henry Lister Maw
(1819), Robert Schomburg (1834), Paul Marcoy (1846), Richard Spruce (1849), William Chandless
(1861), Luís e Elizabeth Agassiz (1865), James Orton (1865), Henry Bates (1848), Alfred Wallace
(1848), Lewis Herndon e Lardner Gibbon (1851), Charles Hart (1867), Pereira Labre (1872), Edward
Mathews (1873), Jules Crevaux (1876), Henri Coudreau e Olímpia Coudreau (1882), Ermano
Stradelli (1889), Theodor Koch-Grünberg (1903), Walter Hardenburg (1907), Henry Tomlinson
(1910), Hamilton Rice (1924) e muitos outros viajantes-cronistas. Na verdade, há uma miríade de
escritores-viajantes que têm a região amazônica como palco de suas escritas, de exploradores a
repórteres investigativos.
123
The North-west Amazons: notes of some months spent among cannibal tribes (2009), de Thomas
Whiffen. Todas as traduções das citações referentes ao relato de Whiffen são do autor deste texto.
124
Whiffen, 2009, p. 02.
125
Ibidem, p. 03.

120
No entanto, dentre todos esses nomes extratribais registrados, conforme
citados anteriormente, Whiffen estava consciente de que esses nomes de grupos
indígenas eram “meros apelidos dados por tribos vizinhas”126. Assim, os Bora
eram tidos por seus vizinhos Uitoto como “caras de porco” e, em contrapartida,
os últimos eram chamados pelos Bora de Uitoto, o que siginificava “mosquitos”127.
Todos esses nomes de grupos linguísticos indígenas faziam parte de uma
nomenclatura exotérica e, portanto, aos viajantes, era praticamente impossível
saber, verdadeiramente, como os indígenas se autodenominavam, considerando-se
que eram seus vizinhos quem os nomeiavam dessa ou daquela forma, como pontua
Whiffen em suas reflexões antropológicas. Ou seja, ao usar o termo exotérico,
Whiffen se refere aos nomes indígenas extratribais. A palavra uitoto, por exemplo,
quer dizer inseto, numa forma depreciativa de nominar o Outro. Assim, Whiffen
se apoia em Jules Crevaux, viajante que o antecedeu, para afirmar que os Carijona
e os Roucouyennes usam o termo uitoto com o sentido de “inimigo”. O que fica
claro é que os próprios indígenas nem sempre se autedonominam como o viajante
ouviu o nome de tal grupo pela primeira vez, posto que são sempre nomes dados
por outros grupos indígenas e nem sempre esses nomes são reconhecidos pelos
nomeados. O termo Menimehe, por exemplo, diz Whiffen significar “cara de
porco” na língua dos Bora; e assim sucessivamente.
Adentrando um mundo indígena em agonia, já que essa região estava
submetida a uma prática colonialista predatória executada por funcionários
de La Casa Arana, com venda das ações da Peruvian Amazon Company na Bolsa
de Valores de Londres, Whiffen – apesar de seu relato não deixar claro como
conseguiu adentrar esse território que estava sob o dominio do terror128, nem de
descrevê-lo e muito menos denunciá-lo ao mundo metropolitano – “estava ansioso
para descer esse rio e descobrir, se possível, o destino de Eugene Robuchon, o
explorador francês que tinha desaparecido há cerca de dois anos”129 e que estava
na região sob um contrato assinado com o governo do Peru e a empresa caucheira
mencionada. Ao contrário de Thomas Whiffen que, afastado do seu ofício no
exército britânico, decidiu visitar a Amazônia indígena por contra própria e,
dessa maneira, contribuir com os estudos antropológicos sobre povos nativos da
região visitada, em especial, apresentar os resultados de sua pesquisa de campos
ao Real Instituto de Antropologia da Grã-Bretanha, de cuja sociedade era membro.
Assim, depois de várias conversas com alguns dos sobreviventes da última
expedição de Robuchon, pois “Interroguei cuidadosamente todos os sobreviventes
que encontrei da expedição de Robuchon130“ – Whiffen, desanimado e ciente de que
jamais encontraria o viajante francês, afirma: “Presumo que ele foi surpreendido
por um bando de indígenas, capturado e assassinado ou levado em cativeiro para
seus covis na banda norte do Japurá” (...). “É sobre um desses grupos de indígenas
126
Ibid, p. 243.
127
De acordo com Julio Quiñones, em seu romance etnográfico En el corazón de la América virgen,
“Uitoto é uma palavra de origem Karib, dos Carijona do norte do Caquetá. Provém do lexema
“itoto”, que quer dizer inimigo. Esta designação também serve para se referir a outros grupos
nativos da parte sul do Caquetá, contra os quais faziam guerra com o objetivo de fazer prisioneiros
e comercializá-los como escravos. A grafia reconhecida para Uitoto diferem e apaecem também
como Huitoto, Witoto ou Güitoto.
128
Ver a obra O paraíso do diabo: relato de viagem e testemunho das atrocidades do colonialismo
na Amazônia.
129
Whiffen, p. 05.
130
Whiffen, 2009, p. 06.

121
que, relutantemente, me vejo obrigado a colocar a responsabilidade pela morte
de Eugene Robuchon em março ou abril de 1906”131. A partir desse veredicto, o
viajante britânico informa a seu leitor que

No dia 18 de agosto [1908] partimos para o rio Igara-Paraná, depois de


ter conseguido oito indígenas que serviriam como carregadores, dois
mestiços e oito “racionales”, ou indígenas semicivilizados, armados com
rifles Winchesters, juntamente com três mulheres indígenas, esposas de
três dos racionales.
Devo esclarecer que consegui esses indígenas armados no Cinturão
da Borracha por meio de acordos com seus patrões. Os seringalistas
costumam treinar indígenas jovens para usá-los como batedores e, dessa
forma, obter borracha das tribos hostis àquelas a que pertencem132.

Apesar do objetivo principal do presente texto não ser demonstrar as formas


de controle exercidas sobre os nativos da região pela Peruvian Amazon Company,
percebe-se que o uso de rifles pelos indígenas – algo destoante das demais partes
do relato de Whiffen referente ao arsenal de guerra dos Bora e Uitoto, pois “o
armamento do indígena constitui-se, em sua maior parte, de armas projetadas para
luta corpo a corpo com homem ou animal”133 – tinha como objetivo as famigeradas
correrias [aprisionamento de indígenas] contra grupos de indígenas indefesos.
De fato, os capatazes e chefes das ‘estações caucheras’ os obrigavam a colher,
produzir e entregar a cota de borracha exigida pelos empregados da empresa,
criando, assim, um verdadeiro reino do terror que Whiffen, estrategicamente,
evita mencionar em seu relato de cunho científico. O seu objetivo, além de
investigar o desaparecimento de Robuchon, era ‘textualizar’ as culturas Bora e
Uitoto da região dos rios Içá e Japurá, mas em território colombiano/peruano,
considerando-se que as fronteiras dessses dois países estavam em litígio à época.
Assim, o rio Içá, quando em território não brasileiro, chama-se Putumayo e o
Japurá passa a ser o Caquetá. É nesse entremeio de línguas, terras e povos que
Whiffen faz suas andanças em suas investigações dessas culturas “primitivas” e
ainda não estudadas pela Antropologia à época dos registros whiffenianos. “Grosso
modo”, esclarece Whiffen, “interessam-me as terras fronteiriças do Brasil, do
Peru, da Colômbia e talvez do Equador, uma região reivindicada em parte pelos
três últimos, porém não administrada por nenhum deles”134.
Como dito anteriormente, os registros dos modos e costumes dos indígenas
Bora e Uitoto começam depois que Whiffen chega à primera maloca. Como o
próprio viajante pondera:

Depois do silêncio e da semiescuridão da mata, o viajante emergirá


numa clareira. E embora seja o local de uma maloca, não há um vilarejo,
nem um aglomerado de cabanas, exceto entre algumas tribos do baixo
Apaporis. Há apenas uma casa grande, coberta de palha, que se parece
com um enorme monte de feno, construída ao ar livre. É o lar de cerca
de sessenta indígenas135.
131
Ibidem, p. 12.
132
Ibidem, p. 03.
133
Ver o capítulo VIII do relato de Whiffen.
134
Whiffen, p. 17-18.
135
Ibidem, p. 40.

122
É à moda de um náufrago que vem à tona num mar revolto que as descrições
etnográficas whiffenianas têm início, mas não sem muitas comparações e críticas
ao mundo ‘civilizado’ britânico. Aos seus leitores, portanto, urge descrever o que
é uma maloca, ou seja, uma casa tribal dos Bora e Uitoto. Sob o olhar atento de
Whiffen, não há muitos sinais de que nessa clareira residem humanos, porque
“não há lixos nos arredores da casa”, posto que “qualquer resíduo é mais
rapidamente retirado pelas formigas do que seria pelo serviço de coleta de lixo
mais eficiente de Londres”136. Entretanto, para o viajante, “o silêncio e a solidão
parecem muito menos intensos do que na mata”. E os sentidos inquiridores do
etnógrafo, que não sabe a língua dos indígenas, mas tinha contratado John Brow,
um cidadão norte-americano nascido em Chicago137, para ser guia e intérprete,
começam as observações, inquirições e – mesmo que, provavlemente inconsciente
– o processo de tradução cultural, posto que “o processo de tradução tem lugar no
exato momento em que o etnógrafo se envolve com um modo específico de vida
– assim como faz uma criança ao aprender a crescer em uma cultura específica”
(ASAD, 2014, p. 229).
Vale salientar que Whiffen não esteve entre os Bora ou entre os Uitoto com
a intenção de viver como um membro do grupo, mas tão somente de textualizar
sobre um modo de vida completamente diferente e, implicitamente [mas não
tanto], inferior aos seus modos europeus. Portanto, na travessia operada por
Whiffen em sua textualização das culturas indígenas Bora e Uitoto, ele se vale tanto
dos registros de inúmeros outros viajantes estrangeiros à Amazônia – Wallace,
Hardenburg, Bates, Spruce, Martius, Charles Waterton, Sant’anna Nery, Crevaux, in
Thurn, Koch-Grünberg, Hamilton Rice, Alexander Humboldt, Clements Markham,
Robert Schomberg, Silva Coutinho e muitos outros – quanto das traduções feitas
por seu guia-intérprete e, ainda, do manual antropológico Notes and queries on
Anthropology [Guia Prático de Antropologia138] que, de acordo com Whiffen, para
simplificar a transliteração, embora em sacrifício às distinções mais refinadas
da língua, “o sistema ortográfico da Sociedade Real de Geografia, usado neste
trabalho, e a explicação do sistema dado nos apêndices [do relato de Whiffen]
com os vocabulários Uitoto e Bora – foram retiradas das regras estabelecidas por
essa sociedade e adotadas pelo Instituto Real de Antropologia”139. Além do mais,
como assevera Asad (2016),

o objeto da tradução etnográfica não é a fala historicamente situada


(esta seria a tarefa do folclorista ou do linguista), mas a “cultura”, e
para traduzir a cultura, o antropólogo precisa primeiro ler e, então,
reinscrever os significados implícitos que residem aquém/ dentro/além
da fala situada (ASAD, 2016, p. 231).

Durante os sete meses em que esteve nos territórios indígenas dos rios Içá e
Japurá – na verdade nos rios Putumayo e Caquetá colombianos – Whiffen tanto
fotografou grupos, casais, pajés, dançarinos, crianças, mulheres e homens indígenas,
136
Ibidem.
137
Ver o texto “John Brown: um personaje de leyenda y testigo de excepción”, de Ramiro Rojas
Brown. In El paraíso del diablo: Roger Casemen y el informe del Putumayo, um siglo después.
Sampedro, Bonilla e Camacho (organizadores). Bogotá: Editorial Kimpress SAS, 2014.
138
Guia Prático de Antropologia. Trad. Octavio Mendes. São Paulo: Cultrix, 1973.
139
Whiffen, 2009, p. 249.

123
quanto fez desenhos de plantas, palhas, instrumentos musicais, utensílios de
cozinha, objetos do vestuário, implementos agrícolas, adornos plumários indígenas
e, obviamente, como não poderia de deixar de fazer, como prova o subítulo de seu
relato [notas de alguns meses que passei entre tribos canibais], descrever as razões
da prática de canibalismo, assunto discutido mais adiante.
Todos esses registros iconográficos servem como comprovação de que o
viajante explorador esteve entre esses povos e lhe garantem a validação de
seu trabalho etnográfico, além de servirem [essas ilustrações] como inspiração
para as suas ponderações acerca dos hábitos e costumes desses ‘filhos da mata’,
como escreveu em seu relato. Whiffen procurou textualizar tudo que estivesse
relacionado aos Bora e Uitoto, que foram os dois grupos com os quais se preocupou
e os únicos com os quais foi possível tratar no seu relato, apesar de várias menções
a outros grupos, simplesmente como categorias de comparação.
Assim, Whiffen começa a sua etnografia pela descrição da maloca, dos
utensílios de cozinha, rotina diária dos indígenas, dos insetos, animais de estimação,
contendas intertribais, tribos amistosas e inimigas, o interminável estado de guerra,
comércio e comunicação intertribais, parentesco, o cacique [xamã], sua posição
e poder, leis, conselho tribal, consumo de tabaco e de álcool, sistema e regras de
casamento, posição social das mulheres, indumentárias usadas nas festas, os
cuidados com os cabelos, as marcas tribais, as pinturas corporais, os venenos, os
tabus, as crenças e o sistema mágico-religioso, os escravos, até chegar aos mitos e
divindades desses dois grupos linguísticos e, ao final do relato, ponderar que

essas tribos adentraram a floresta em uma condição muito primitiva. A


floresta os deteve, atrofiou-lhes o crescimento, mas não os mergulhou de
volta à Idade da Pedra. As próprias pedras negam, porque a pedra não é
o substituto natural do ferro nessas regiões. De onde as tribos vieram, e
quando, em qualquer época longínqua da nossa história da Terra, eram
um povo neolítico – dificilmente isso, um povo emergindo das condições
instáveis de caçadores paleolíticos, agrícolas, mas ainda não pastoris, e
dessa forma eles permaneceram ao longo dos séculos140.

Como se pode deduzir, Whiffen não apenas se preocupou com a documentação


sobre os modos de vida e costumes indígenas amazônicos, mas também textualizou
culturas ameaçadas de extinção, ora com imagens românticas, ora selvagens em
relação ao nativo Sob essa perspectiva, Whiffen possibilitou aos estudiosos das
culturas ‘ditas periféricas do mundo’, tanto um conhecimento dessas ‘formas
de vida relativas e históricas’, (cf. SAHLINS, 1990), quanto elaborou um juízo de
valor estereotípico, característico de muitos outros viajantes do início do século
XX. O subtítulo de seu relato antropológico comprova, para além dos objetivos
esclarecidos na introdução, por que ele esteve entre os Bora e os Uitoto da região
noroeste da Amazônia: para comprovar que os indígenas “são, indiscutivelmente,
canibais, especialmente os Bora, Andoke e Resigaro141”. Todavia, o viajante não
compartilha, como muitos outros viajantes da época, da teoria da decadência
racial e cultural, embora apresente os Uitoto e os Bora como ingratos, traiçoeiros e
guerreiros violentos; um povo neolítico. Assim, afirma Whiffen: “De onde as tribos
vieram, e quando, em qualquer época longínqua da nossa história da Terra, eram
140
Ibidem, p. 266.
141
Ver capítulo VIII do relato de Whiffen.

124
um povo neolítico – dificilmente outra coisa; um povo emergindo das condições
instáveis de caçadores paleolíticos, agrícolas, mas ainda não pastoris, e dessa
forma permaneceram ao longo dos séculos”142.
Sobre a questão musical desses grupos linguísticos etnografados por Whiffen,
o viajante dedicou dois capítulos de seu relato, o XV e o XVI. Assim, cabe ainda
pontuar que o viajante registrou algumas canções indígenas que, sob um viés
pós-colonialista – ou seja, contrária a qualquer prática colonialista – comprovam
que esses grupos linguísticos de nativos do Putumayo e adjacências não eram
‘crianças crescidas’, mas pessoas capazes de reflexões políticas quando da
presença do estrangeiro em suas terras, porque, perguntam os Uitoto: “O que quer
o forasteiro?” Para ilustrar esta afirmativa, apresento uma canção registrada por
Whiffen no capítulo XVI, quando de uma dança realizada por algumas mulheres
Uitoto, que questionavam a presença do viajante na região.

À nossa tribo chegou um estranho,


Seja bem-vindo, honrado estrangeiro.
E de onde vem este forasteiro?
De que país distante e desconhecido?
Por que esse amigo está entre nós?
Que missão o traz aqui?
Não há em sua terra natal
Campos férteis e mulheres amáveis
Para que venha buscar entre nós,
Portanto, a satisfação de seus desejos?

Como se chama esse desconhecido?


Contem-nos como o seu povo o chama.
O chamam de Whiffena, Ri-e-i;
Chamam ele de Whiffena, o homem branco.
Em parte, também, seu nome é Itoma.
Mas – seus conhecidos e amigos do peito –
Digam-nos, como se dirigem a ele?
Ele é apelidado por seus amigos do peito
Ei-fo-ke, o mjutum-de-bico-vermelho.

Ei-fo-ke, o mutum-de-bico-vermelho.
É este, então, o nome cativante
Que suas amantes lhe sussurram
Quando dele querem se enamorar?
Não, isso não é bom!, o mutum-de-bico-vermelho
É um pássaro com bico vermelho.
Sim, um longo e afiado bico vermelho.
E uma cauda longa e pendente.
Não, o nome dele não é Ei-fo-ke.
Que o seu nome de amante seja Okaina!

É digno de nota que, de acordo com Whiffen, os indígenas não tinhiam coesão
nas suas produções e a reiteração era a característica marcante de todas as suas
canções. Assim, para o viajante, o som e o ritmo da canção cantada durante a dança

142
Whiffen, 2009, p. 266.

125
pelas mulheres Uitoto lhe sugeriram a métrica da canção de Hiawatha, poema épico
baseado em lendas dos povos nativos da América do Norte, que foram compiladas
pelo poeta norte-americano Henry Wadsworth Longfellow (1807-1882).
Ao fazer a compilação e a tradução desse poema-canção dos Uitoto, Whiffen
foi um tanto quanto inocente por não perceber que, de fato, a canção era um ato
de questionamento em relação à sua presença ali. Além de ter sido comparado
ao mutum-de-bico-vermelho, o viajante é chamado de Okaina, que na língua
Uitoto significava ‘cara de cutia’. De fato, todas as questões levantadas na canção
demonstram que as mulheres Uitoto não estavam contentes com a presença do
viajante, apesar dele não levar em consideração quando de seus comentários sobre
as possibilidades de interpretação da canção, que para ele “o verdadeiro objetivo
em todas essas canções era introduzir e discutir assuntos sexuais, e nenhuma
canção [indígena] ultrapassava esse assunto antes de se tornar essencialmente
carnal em ideia e completamente licenciosa em expressão143”.
Ao que se pode inferir, há uma continuidade da ideia de “marketing
primitivista”144, considerando-se que o nativo é apresentado, em Whiffen, ora
como ‘selvagem’ vingativo e também como um ocioso, que gasta a maior parte
do tempo em ‘passeios”, ora como um ser ‘inocente’, por haver demostrado
grande interesse em minhas botas e ficar intrigado para saber como eu
entrava nelas. Uma bengala era-lhes um enigma sem resposta e nunca
ocorreu-lhes que eu poderia usá-la como apoio na caminhada. Meus
óculos e minha câmera fotográfica eram demônios misteriosos para
ler seus corações e roubar suas almas, como já relatei. Meu relógio,
com um alarme, causou-lhes consternação em suas mentes simples.
Meu fonógrafo, que reproduzia e repetia as danças, levantou gritos de
surpresa (WHIFFEN, 2009, p. 264).

Todas essas representações etnográficas sobre os Bora e os Uitoto confirmam


a visão primitivista a qual Whiffen estava engessado, repetindo, inúmeras vezes,
construções discursivas estereotipadas que fazem parte do olhar antropológico
de seus predecessores. Não é sem motivo que ele usa inúmeras outras narrativas
de viagem para confirmar ou, de quando em vez, refutar algumas afirmativas
sobre os nativos. No geral, Thomas Whiffen também se mantém apoiado em pelo
menos dois componentes da visão de seus antecessores: a) civilização – pois “Ele
[o viajante] atravessou a ponte da era da civilização e voltou para a barbárie
no recanto degradado do barranco do rio”145; b) – comércio (para Whiffen o
comércio existente entre os indígenas era bastante desorganizado e, portanto, se
deduz que precisava de organização). Entretanto, no que diz respeito à religião,
terceiro componente da tríade colonialista, o antropólogo aprendiz pondera que,
a religião, no sentido vulgarmente aceito pelos europeus, não existe entre os
Bora e os Uitoto. No entanto, ele mesmo se contradiz quando registra o sistema
mágico-religioso dos nativos.

143
Whiffen, 2009, p. 209-210.
144
Ver Jean-Pierre Chaumeil, “Entre teorias raciales y exhibitiones: em torno al informe
de Casement sobre el Putumayo”. In El paraíso del diablo: Roger Casemen y el informe del
Putumayo, um siglo después. Sampedro, Bonilla e Camacho (organizadores). Bogotá: Editorial
Kimpress SAS, 2014.
145
Whiffen, 2009, p. 205.

126
Os nativos acreditam em muitas coisas, eles acreditam na existência de
espíritos superiores do bem e espíritos superiores do mal; mas as suas
crenças são sempre imprecisas, um tanto quanto incompreendidas até
mesmo por eles. Em certa medida, cabe ao pajé, o principal sacerdote
do sistema mágico-religioso indígena, modificar, ou até mesmo
desconsiderar qualquer crença em curso146.

Sobre a capacidade intelectual do indígena, Whiffen afirma que ele “é


individualmente sábio, mas racialmente tolo, individualmente inteligente,
racialmente inepto”147. No entanto, não se deve esquecer que Whiffen passou
apenas sete meses entre os indígenas e, além disso, não falava a língua geral, nem
a dos Bora nem a dos Uitoto. Seu guia e intérprete foi o chicaguense John Brown,
como já mencionado. Portanto, pode-se deduzir que a sua fonte de informação era,
primeiramente, esse empregado da Casa Arana e, provavelmente, como Brown
vivia amasiado com uma indígena Uitoto148, recorria a ela, pode-se presumir,
diante das dificuldades de compreensão e interpretação das línguas indígenas,
o que, discursivamente, poderia ter levado o viajante-etnógrafo a correr vários
riscos interpretativos em sua textualização de ambas as culturas: Bora e Uitoto.
Retornando à questão da prática canibalística entre os indígenas, ressalto
as três razões prováveis de Whiffen para a antropofagia entre os indígenas
etnografados. Na opinião do viajante-antropólogo, existiam três motivos pelos
quais os indigenas praticavam a antropofagia.

Em primeiro lugar, a antropofagia é vista como uma forma de vingança,


um método de infligir o insulto máximo a um inimigo... (...). A principal
causa, portanto, é insulto”. Em segundo lugar, há um desejo de fazer
uso daquilo que, de outra forma, seria desperdiçado. A carne animal é
escassa na mata. (...) Essas tribos não fazem guerra simplesmente com
vistas à obtenção da provisão de carne humana. A antropofagia é o
efeito, não a causa da guerra. (...) Finalmente, e num nível ainda mais
secundário, há a razão comumente mais efetiva, que é a crença de que
as características do indivíduo comido serão absorvidas pelo devorador;
uma crença que deve dar um impulso sardônico ao principal motivo, o
desejo de aviltar o morto149.

Whiffen explica ao leitor que, embora o terceiro motivo tenha menos peso
do que os demais, não pode ficar de fora quando o tabu alimentar relacionado
ao parto é lembrado. Todavia, pondera o observador, “eu não sei se tais razões
realmente levam a banquetes antropofágicos em outros lugares, como entre os
Aro, que supostamente, comem a carne de sacrifícios humanos, porque “aqueles
que comeram a carne, comeram deuses e assimilaram algo dos atributos e do
poder divinos”150. Nessa parte Whiffen cita um viajante, algo muito comum em
seu relato, posto que há 61 autores ciados como forma de garantir a “verdade”
ou não dos hábitos e costumes observados por ele. Entretanto, ele mesmo jamais
assistiu a algum banquete desse tipo. Seus registros, em grande parte, são de “ouvi
dizer” ou “eles me contaram” sobre isso ou aquilo.
146
Ibidem, p. 218.
147
Ibidem, p. 235.
148
Ver O paraíso do diabo, de Walter Hardenburg.
149
Whiffen, 2009, p. 120-121.
150
Ibidem.

127
Nesse aspecto, pode-se presumir que se trata mais de uma invenção de
viajantes europeus do que comprovação de fatos. Como o sueco Algot Lange151,
Whiffen se esforça para impigir essa infâmia sobre os Bora e os Uitoto, já que não
viu nem participou de nenhum banquete antropofágico. Muitas de suas incursões
sobre esses dois grupos indígenas são assustadoramente indignas de crença.
Mesmo assim, ele afirma que “Ao contrário das tribos mais conhecidas da Guiana,
se não todos os indígenas dos rios superiores, são, indiscutivelmente, canibais,
especialmente os Bora, Andoke e Resigaro”152. Esse tipo de assertiva whiffeniana
deve ser questionada pelo leitor, ao se levar em conta que esse “Outro” foi
inventado dessa forma como a antítese da Europa. Assim, em muitos relatos,
esse “Outro” é representado, ora como “bom selvagem”, ora como “demônio”.
Muitos cronistas não conseguem refletir sobre o mundo de trabalho desses nativos
que, forçados pelo governo desde os primórdios coloniais, construíram estradas
reais, prédios, portos, cidades. Subjugados a tal regime de trabalho, inúmeros
homens nativos foram arrancados de seus familiares e postos a serviço tanto de
administradores coloniais, quanto de viajantes. Aqueles roubando-lhes a maior
parte da produção indígena, fosse o resultado das suas lavouras, fosse a produção
de borracha e de outras “drogas do sertão”, estes transformando os nativos em
remeiros, mateiros, caçadores, pescadores, enfim, “burros de carga”.
Mary Pratt, em seu estudo da situação dos nativos da América do Sul a partir
de alguns viajantes estrangeiros 153, esclarece que grande parte do conhecimento
espraiado nos relatos de viagem advém do nativo. Diria que sem o indígena, sequer
o viajante cruzaria um rio, muito menos transporia uma região encachoeirada.
Para ver um boto, ele precisa que o nativo o mostre. Assim, do grupo expedicionário
desses outsiders, inúmeros indígenas são “contratados” para realizar as proesas
mais mirabolantes possíveis e impossíveis aos olhos europeus. Subir em árvores
para colher flores ou frutos, carregar os fardos mais pesados da bagagem viajante,
prover o viajante de carne e de peixe, abrir trilhas na mata fechada e guiá-lo no
percurso, montar acampamento, colher raízes e ervas medicinais, em suma, é ao
nativo que deveria ser posta a fortuna da viagem aos trópicos.
Fugir, prática comum dos nativos quando de uma jornada estrangeira pelos
rios e matas amazônicos, é tão somente uma questão de liberdade. Na mentalidade
indígena, o acúmulo – entre muitas outras práticas do mundo “civilizado”
– perseguido pelo capitalismo é algo insano. Whiffen, apesar de depender
completamente dos homens e principalmente das três mulheres indígenas que
faziam parte de seu grupo expedicionário, reclama que, apesar de ele ter deixado
de comer para dar o alimento aos indígenas – muito mais em busca de afeiçoamento
por parte dos nativos do que por bondade natural – fugiram quando tiveram a
primeira oportunidade. Como é dito alhures, “liberdade não tem preço”.
Chegando ao último ponto que merece atenção, a escravidão, também registrada
por Whiffen, é necessário esclarecer que os Maku dos distritos do rio Japurá eram
discriminados por seus “irmãos nativos” de pele mais clara. “As tribos de pele
clara” – afirma Whiffen –“invariavelmente desprezam as de pele mais escura e
consideram-nas inferiores, pois esse é realmente o caso. Os Maku, também um tipo

151
As aventuras de um sueco nos confins do Alto Amazonas, incluindo uma temporada entre índios
canibais. São Carlos: Editora Scienza, 2017.
152
Whiffen, 2009, p. 120.
153
Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999.

128
de pessoas pequenas e de pele escura, são universalmente considerados e tratados
como escravos”154. O termo Maku, de acordo com a literatura etnográfica, é uma
denominação dada por membros de outros povos indígenas e que significa “servo”,
“escravo”, “selvagem”, numa clara distinção entre outros povos que se julgavam
superiores aos Maku, que rejeitavam a denominação devido à conotação pejorativa.
De acordo com Whiffen, entre os membros de seu grupo expedicionário
havia alguns indígenas que já tinham sido escravos, mas o explorador não
esclarece de quem esses homens tinham sido escravos. Porém, ao elaborar as
suas conclusões, se apressa em afirmar categoricamente que eles, os indígenas,
“não conhecem gratidão”155.
Ainda sobre a questão da escravidão na região etnografada por Whiffen,
sabe-se que desde a chegada dos caucheiros, inúmeros indígenas foram caçados
nas matas e forçados à produção de determinada cota de borracha, sendo
escravizados não somente os homens, mas as mulheres e crianças, que eram
obrigadas ao trabalho forçado no que ficou conhecido na historiografia como “o
paraíso do diabo”, numa alusão ao maior barão da borracha no Putumayo e seus
afluentes, Julio Cesar Araña156.
Mesmo entre os indígenas, Whiffen afirma que a escravidão era tão somente
um nome, porque o escravo pertence ao cacique e logo é visto como um membro
da família e geralmente são tratados com gentileza e, provavelmente, sintiam-se tão
bem na casa de seus conquistadores como na de seu povo. Esclarece também que

cativos de ambos os sexos com menos de sete anos de idade, ou mais


ou menos nessa idade, são mantidos como escravos pela tribo que os
capturou; acima dessa idade, são mortos, porque, presumidamente,
possuem inteligência suficiente para trair a nova tribo em favor da
sua. Entretanto, quando o escravo atinge a maioridade, permitem-lhe
identificar-se com os guerreiros como seria com qualquer outro garoto
da tribo; e depois disso é visto como livre; entretanto, o cacique julga que
possui uma espécie de garantia sobre tal homem, e isso é comutado pelo
pagamento de, talvez, metade da caça abatida, provavelmente até que
ele se case. Se o cacique morrer, os escravos se tornam propriedade do
novo cacique; todavia, um homem, se já for um guerreiro, não se sentirá
escravo de um novo cacique, exceto na medida em que uma disciplina
tribal lhe seja imposta por todos os guerreiros. Uma escrava pode ser
comprada do cacique como forma de presentear a esposa dele. Depois
da compra a moça está livre157.

O que não fica claro no relato de Whiffen é se ele observou essa prática
entre os Bora e os Uitoto. No geral, parece que esses escravos eram cativos de
guerras intertribais. Durante o período de 1876 a 1912, aproximadamente, muitos
membros de tribos inimigas passaram para o lado dos caucheiros peruanos e
foram armados e treinados por seus “patrões” para as odiadas correrias em busca
da captura, muitas vezes, de famílias inteiras, ou do cacique da tribo e do pajé,
154
Whiffen, 2009, p. 60.
155
Whiffen, 2009, p. 263.
156
Sobre esse assunto, ver as obras O paraíso do diabo, de Walter Hardenburg; Diário da Amazônia
de Roger Casement, de Roger David Casement; Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem: um
estudo sobre o terror e a cura, de Michael Taussig; Arana, rey del caucho, de Ovídio Lagos.
157
Whiffen, 2009, p. 69.

129
numa forma demoníaca de forçar todos os membros daquele povo escravizado
a produzir borracha e transportá-la para as diversas sedes das empresas.
A prática de escravizar os nativos da Amazônia, de fato, começou muito antes
da chegada dos europeus, como registra Walter Raleigh158. John Hemming, ao
comentar tal prática, afirma que em Tabatinga, no Alto Solimões, o comandante
da guarnição de fronteira tratava os indígenas como seus escravos. Henry Bates,
quando esteve em Egas (Tefé – Amazonas) percebeu que tanto os seus criados
quanto boa parte da população tinha sido trazida à força dos rios vizinhos. Jules
Crevaux também comentou sobre essa prática tanto pelos próprios indígenas
quanto pelo dito ‘homem branco”.
Para finalizar, informo que, numa viagem ao município de Japurá, no
Amazonas, em janeiro de 2018, tive a satisfação de encontrar e conversar com
um casal de indígenas, o homem era Maku Nadëb e a mulher era membro do
povo Kanamari. Estavam hospedados, com quatro filhos, num hotelzinho da
cidade. A família morava na Aldeia Jeremias, na Terra Indígena Paraná do
Boá-Boá, no município de Japurá. Ali tinham as suas roças e fabricavam seus
artesanatos e ornamentos e vendiam na cidade. Durante a semena que estive na
cidade, conversamos algumas vezes, tanto ao amanhecer, como ao entardecer,
enquanto fazíamos as nossas refeições ou lanches. Seus filhos, muito alegres e
comunicativos, causaram em mim uma grande satisfação, sabendo que viviam
com os pais e demais familiares, frequentavam a escola na aldeia e aprendiam
a língua de seus avós, e, agora que a Terra Indígena estava demarcada, gozavam
de certa paz, disseram-me os seus pais.
Esses filhos nativos dos rios e das matas amazônicas pareceram cientes
de que não estavam vivendo sob o jugo de um barão da borracha que, entre
inúmeras outras ações predatórias contra o seu povo, destribalizou inúmeros
membros indígenas. Muitos de seus parentes viviam agora em outras terras nos
rios Guaviari, Papuri, Tiquié e Negro. De quando em vez, reuniam-se para as
festas da pupunha, da abiurana e do açaí, manifestações culturais que ainda estão
presentes nessas comunidades amazônicas.

Referências

ASAD, Talal. “O conceito de tradução cultural na antropologia social britânica”.


In CLIFFORD, James & MARCUS, Georg. E. A escrita da cultura: poética e política
da etnografia. Trad. Maria Cláudia Coelho. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2016.

CASEMENT, Roger. Diário da Amazônia de Roger Casement. Trad. Mariana


Bolfarine, Mail Marques de Azevedo e Maria Rita Drumond. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 2016.

CHAMUEIL, Jean-Pierre. “Entre teorias raciales y exhibitiones: em torno al


informe de Casement sobre el Putumayo”. In: El paraíso del diablo: Roger Casemen
y el informe del Putumayo, um siglo después. Sampedro, Bonilla e Camacho
(organizadores). Bogotá: Editorial Kimpress SAS, 2014.

158
A descoberta do grande, belo e rico império da Guiana. Trad. Hélio Rocha. São Carlos: Editora
Scienza, 2017.

130
CLIFFORD, James & MARCUS, Georg. E. A escrita da cultura: poética e política da
etnografia. Trad. Maria Cláudia Coelho. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2016.

HARDENBURG, Walter. O paraíso do diabo: relato de viagem e testemunho das


atrocidades do colonialismo na Amazônia. Trad. Hélio Rocha. São Carlos: Editora
Scienza, 2016.

INSTITUTO DE ANTROPOLOGIA BRITÂNICO. Guia Prático de Antropologia. Trad.


Octavio Mendes. São Paulo: Cultrix, 1973.

LAGOS, Ovidio. Arana, rey del caucho. Buenos Aires: Emecé Editores, 2005.

PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação.


Tradução de Jézio Hernani Bonfim Gutierre. Bauru: EDUSC, 1999

SAHLINS, Marshall. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1990.

WHIFFEN, Thomas. The north-west Amazons: notes of some months spent among
cannibal indians. London: Cambridge University Press, 2009.

131
D. Pedro Casaldáliga e José Craveirinha: pelo pão
e pelo carvão: poéticas em combustão

Isaac Ramos
A literatura social e engajada é um veio forte e intenso nas literaturas de
língua portuguesa, é matéria quase sempre presente. No Brasil, por exemplo,
nos tempos da ditadura militar, essa literatura foi uma das vozes firmes da
resistência, no final dos anos 60 e toda a década de 70. Em pleno século XXI, devido
a retrocessos históricos marcantes e recentes, essa literatura poderá voltar com
força total. Além-mar, as vozes dos poetas africanos, que um dia foram colônias de
Portugal, Inglaterra ou França, em meio às lutas pela independência, fizeram-se
ouvir cantos armados de combate e afirmação da nacionalidade. Foram tempos
difíceis lá e cá.
Macedo & Maquêa (2007, p. 148) destacam que muitos leitores foram
surpreendidos pelo fato de que literaturas engajadas em grau tão elevado venham
vincadas por uma forte sensibilidade artística, tendo sido tecidas não apenas com
os fios do engajamento político, mas também da radicalidade estética ancorada
na modernidade.
Abdala Junior alerta para o perigo que o escritor militante corre, para que
não caia em uma cilada da redução artística. “Quando se pretende implantar
um regime revolucionário em luta com grandes adversidades, podem ocorrer
momentos de redução” (ABDALA JUNIOR, 2007, p. 99). Ao pensar na qualidade
do texto literário, vem-me à memória o formalista russo Boris Eichenbaum, em
“A teoria do ‘método formal’”, que se vale do termo cunhado por Jakobson: “O
objeto da ciência literária não é a literatura, mas a ‘literariedade’ [literaturnost],
isto é, o que faz de uma dada obra uma obra literária” (apud TODOROV, 2013, p.
38). É com essa literariedade que o crítico literário deve se preocupar, para não
cair na cilada da semiótica das paixões políticas.
Outra preocupação que gostaria de demonstrar é quanto a objetividade e
ao papel do crítico. Nesse sentido, Roland Barthes, ao falar sobre a objetividade
em Crítica e verdade, questiona: “Que é pois a objetividade em matéria de crítica
literária? Qual é a qualidade da obra que ‘existe fora de nós’”? (BARTHES, 1982,
p. 192). Em outra passagem, no item “Clareza”, afirma ser um grave problema
para o escritor o dos limites de sua acolhida. Segundo ele, “é precisamente porque
escrever não é engajar uma relação fácil com uma média de todos os leitores
possíveis, mas engajar uma relação difícil com nossa própria linguagem: um
escritor tem maiores obrigações para com a palavra (...)” (BARTHES, 1982, p. 202).
A maioria dos escritores africanos, que produziu antes da independência dos
seus países, traz uma marca forte do social. Nesse momento penso no conceito
de tragédia aristotélica, como imitação de uma ação completa, com princípio,
meio e fim, ação que deve comportar certa extensão. O período de ditadura aqui
e os países africanos como colônias lá são prova disso. Nesse sentido, vislumbro
o objetivo da catarse, com o intuito de provocar a purgação de suas paixões para
chegar à purificação da emoção teatral. O problema é que tudo que ocorreu foi
real, infinitamente e cruelmente real. Lá e cá.
Como parte da introdução desse texto, abordo a formação da continuidade
literária. Na Introdução de Formação da Literatura Brasileira, no item “Literatura
como sistema”, Candido afirma que: “É uma tradição no sentido completo do
termo, isto é, transmissão de algo entre os homens, e o conjunto de elementos
transmitidos, formando padrões que se impõem ao pensamento ou ao
comportamento” (CANDIDO, 1993, p. 24). Pondera que sem esta tradição não há
literatura, como fenômeno de civilização. Remeto a outros conceitos aristotélicos:
“A Arte tem seu fim numa obra exterior ao artista, pela qual este realiza sua

133
vontade” (ARISTÓTELES, s ̸ d; p. 233). O poeta dá a voz ao sofrimento de um
povo, no caso da literatura social e engajada. Porém, “não compete a ele narrar
exatamente o que aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, o possível,
segundo a verossimilhança ou a necessidade” (ARISTÓTELES, s ̸ d; p. 252).
Após breves discussões dos conceitos apresentados, é chegada a hora de
apresentar os dois poetas que serão objeto de estudo neste texto: o espanhol D.
Pedro Casaldáliga e o moçambicano José Craveirinha.
D. Pedro Casaldáliga possui poemas engajados e religiosos. Bispo Emérito
da Prelazia de São Félix do Araguaia. Nascido em Balsareny, na província de
Barcelona, que pertence à comunidade autônoma da Catalunha, Espanha, em
16 de fevereiro de 1928. Veio para o Brasil em 1968 e, a partir daí, engajou-se em
muitas lutas sociais, nas causas dos desvalidos. Tanto sua missão religiosa quanto
sua vocação literária estão imbuídas de seu empenho social, em busca de mais
justiça e mais respeito aos direitos das minorias. No conjunto de seus escritos,
abordarei trechos de alguns poemas do livro Antologia Retirante, com o intuito
de verificar as manifestações literárias de sua postura combativa e observar
analiticamente como os elementos estéticos aparecem.
Em “Uma palavra de explicação”, que introduz a Antologia Retirante,
Casaldáliga assim se expressou: “Fiz do Brasil a última nova pátria, ainda ‘em
terra estranha’. Faço do Araguaia o meu último Mar Vermelho. Nunca o Brasil
seria expulso da geografia viva de minha alma” (CASALDÁLIGA, 1978, p. 15). Como
Moisés, o poeta religioso espera abrir as águas do rio Araguaia para que o povo
descalço o cruze e faça seu próprio destino.
Quanto a José João Craveirinha, foi o primeiro autor africano a receber o
prêmio Camões, mais importante prêmio literário da língua portuguesa. Nascido
em 28 de maio em Maputo, começou a carreira de jornalista no O Brado Africano.
Oficialmente, foi o primeiro jornalista sindicalizado em seu país. Atuou em
diversos órgãos de imprensa em Moçambique e teve um papel importante na
vida da Associação Africana, a partir dos anos 50. Publicou cinco livros em
vida, duas coletâneas póstumas, isso sem contar dezenas de poemas espalhados
em periódicos e antologia. Deixou um espólio inédito de centenas de poemas.
Dentre seus livros, destaques para Xigubo (1964), Karingana ua karingana (1974)
e Maria (1998).
Para se ter uma ideia da dimensão política e da trajetória desse poeta
moçambicano, apresento trechos de “Carta da cela 1”. É um lampejo da poesia
interior, que não se encontra presa, “da manhã exterior ̸ repartida de cela em
cela”, como um sinal de resistência, e a expectativa da espera por um novo
amanhã de liberdade e amplidão. Enquanto isso “a cidade (...) dorme o seu sono
porreiramente” e “nas suas entranhas amadurece ̸ o feto que se gera insone ̸
aqui nestas mandíbulas ̸ paredes adentro”. A cela é o próprio feto, sem afeto, que
vive dias de comiseração. Nessa engrenagem carcerária as paredes mandíbulas,
metonimicamente, devoram a liberdade pretendida. Só a poesia é livre.

Uma
nostalgia da manhã exterior
repartida de cela em cela
e quantos corações a bater
a bater uníssonos com os nossos.

134
[...]
E a cidade
com seus cornos de celulite
dorme o seu sono porreiramente
enquanto nas suas entranhas amadurece
o feto que se gera insone
aqui nestas mandíbulas
paredes adentro
(AP159, 2010, p. 161).

Feitas as devidas apresentações biográficas e literárias, começo a discutir


comparativamente os dois autores com os quais trabalharei. Partes selecionadas
de duas antologias servirão de referência para os devidos comentários críticos
deste capítulo. A primeira é Antologia Retirante do espanhol D. Pedro Casaldáliga,
em edição bilíngue. Está dividida em seis partes, a saber: I – Memória e Travessia;
II – Presenças; III – Criaturas Irmãs; IV – Maria, Outra; V – Clamor da Terra Nova; VI
– O Canto do Galo. O poema que abre o livro dá uma ideia do teor religioso, poético
e político desse autor que adotou o Brasil como sua morada, mais especificamente
a região do Araguaia, lugar de confrontos e conflitos no tempo da ditadura militar:

AUTO-RETRATO

Instinto de solidão.
Vocação de companhia.
Mercadores e marchantes.
Pastores e aldeania.

A palavra de minha mãe,


Nervosamente incisiva.
Os silêncios de meu pai
e suas esperas tolhidas.

A guerra, porque “é a guerra”.


A paz, porque é paz vencida.
E o chamado de Deus
tão precoce como a vida
(AR160, 1978, p. 19).

Nesse poema inaugural, temos uma interessante dicotomia: solidão X


companhia. Reflete bem a situação da vida de um religioso e como ela se ergue.
Na segunda estrofe, a reação da família diante da mãe “nervosamente incisiva”
e “os silêncios de meu pai ̸ e suas esperas tolhidas”. Na terceira estrofe, continua
a dicotomia em estado de quase paradoxo: “A guerra, porque ‘é a guerra’. ̸ A paz,
porque é paz vencida”. E os versos finais lapidam a comparação e atentam para
“o chamado de Deus ̸ tão precoce como a vida”. Ainda não se pode assegurar que
seja a celebração do religioso.
Em “Memória e véspera, 14 de agosto” a metáfora se anuncia quando “o sol
carimba a força ao meio-dia”. Ou quando a personificação aparece, com qualidade

159
Neste capítulo, para abordar a obra Antologia Poética: José Craveirinha, será utilizada a sigla AP.
160
Neste capítulo, para abordar a Antologia Retirante: poemas, será utilizada a sigla AR.

135
de metáfora, como nos versos iniciais: “Enquanto o rio Araguaia espreguiça ̸ seu
coro de jacaré, incandescente ̸ salpicado de crianças e de pássaros”. (Este último
faz-me lembrar de Manoel de Barros). Temos uma dimensão da força poética do
rio e sua liturgia na obra de Casaldáliga. E de quando o religioso se amalgama ao
poeta, ao dizer: “Eu recordo e espero. ̸ Rezo os salmos já sem vê-los, tíbios”. Alguns
versos depois, o eu-lírico parece ter plena consciência de sua função: “E me sinto
repleto de sentido, ̸ creio de mil razões para encontrar-me aqui, ̸ aconchegado na
paz desta Vigília” (AR, 1978, p. 25).
Em “Nossas vidas são os rios...”, o título carrega uma singela metáfora.
Temos a memória e a história, a força dos retirantes e a reverência do estrangeiro
à natureza que domina e encanta, e (n)o (de)curso da poética de Casaldáliga
apresenta a metáfora do sol: “E eu, pela manhã, lavando-me do sono ̸ com o
espelho incandescente ao sol da outra margem”. (Naturalmente pensei no conto
“A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa).

“NOSSAS VIDAS SÃO OS RIOS...”

(....)
As famílias que chegam, retirantes;
os enfermos que vão à deriva;
as cargas, e as cartas trêmulas;
as mulheres batendo a trouxa indiscreta;
os homens na popa, os homens no remo;
e os meninos banhando-se,
somando-se às águas, como peixes.
E eu, pela manhã, lavando-me do sono
com o espelho incandescente ao sol da outra margem;
eu, pela tarde, entrando,
reverente, estrangeiro,
vestido pela luz poente e pura,
na liturgia destas grandes águas...
(AR, 1978, p. 29).

O poeta religioso estrangeiro se mistura aos retirantes, ele próprio “retirante


da Poesia hermética, da Palavra narcisista, da Ópera aristocrática dos que se
negam a profanar-em-serviço-fraterno os impolutos braços de sua lira” (AR, 1978,
p. 15), conforme anuncia em “Uma palavra de explicação”. O eu-lírico se apresenta
“vestido pela luz poente e pura, ̸ na liturgia destas grandes águas...”. Estas últimas
são sacralizadas no poema como um ritual de missa, como o pão e o vinho servido
aos fiéis, como a vida amalgamando-se às aguas dos rios, como uma epifania da
natureza. Pura celebração da poesia. Eterno devir.
A segunda obra, Antologia poética: José Craveirinha, organizada por Ana
Mafalda Leite, está dividida em sete partes: Xigubo [1964]; Karingana ua Karingana
[1974]; Cela I [1980]; Babalaze das hienas [1997]; Maria [1998]; Poemas da prisão
[2003]; Poemas eróticos [2004].
Desde o primeiro poema, “Xigubo”, que remete à dança “das velhas tribos
das margens do rio”, do sul de Moçambique, fica bem evidente o tom social: “E as
vozes rasgam o silêncio da terra ̸ enquanto os pés batem ̸ enquanto os tambores
batem ̸ e enquanto a planície vibra os ecos milenários ̸ aqui outra vez os homens
desta terra ̸ dançam as danças do tempo da guerra ̸ das velhas tribos juntas na

136
margem do rio” (AP, 2010, p. 14). O poema possui um componente sonoro bem
evidenciado, seja no início pela assonância dos sons nasais, [ã], [ĕ], [ŭ], seja através
das aliterações do [t], [d], [r], ora onomatopeicos ora marcando a sua cadência
rítmica. Esse poema é um (en)canto de resistência tribal. Os tambores marcam o
ritmo sincopado do verso. Bruto e impoluto como deve ser um canto de resistência.
Profundamente emblemático é o poema “Grito negro”, que é erguido em
cima de um dobre: “Eu sou carvão”. Como um silogismo poético, o verso vai se
desdobrando e à medida que a palavra “patrão!” aparece a poesia reverbera.
Chama a atenção o recurso da gradação verbal: “arrancaste-me”, “acendes-me”,
“arder”, “queimar”. Estes vocábulos ligados ao sintagma “Eu sou carvão” preparam
as estrofes finais com os seguintes versos: “Até não ser mais tua mina ̸ Patrão!”.
Há uma dupla conotação no emprego da palavra “mina”. Ambas se misturam,
seja como objeto de desejo ou ostentação de riqueza. E no pavio ardente do verso
a poesia fica incandescente. É a resistência à dor que move o ritmo poético.
Pura combustão da linguagem. Um grito negro poético. Um estrondo imenso.
Um inteiro descontentamento. Um carvão grafite in verso que queima, risca e
marca incisivamente a ganância do patrão. A dor pungida, transida, trazida pela
literatura amadurece o protesto e o carvão embrutecido, em átomos de carbono
canônico, um dia tornar-se-á diamante.

Eu sou carvão!
Tenho que arder
E queimar tudo com o fogo da minha combustão.

Sim!
Eu serei o teu carvão
Patrão!
(2010, p. 15).

O terceiro poema “África” apresenta o universo da tradição, a


moçambicanidade. É um poema em prosa, em que se evidencia os traços africanos.
Apresenta um diálogo conflituoso entre a cultura africana e a ocidental. Chama
a atenção o pertencimento, através do uso ostensivo dos pronomes possessivos:
“Em meus lábios grossos fermenta ̸ a farinha do sarcasmo que coloniza minha
Mãe África ̸ e meus ouvidos não levam ao coração seco ̸ misturada com o sal dos
pensamentos ̸ a sintaxe anglo-latina de novas palavras (grifos meus).
O deslugar ou o não-lugar, como símbolo de resistência, evidencia na segunda
estrofe. O eu-lírico se sente estrangeiro:

Amam-me com a única verdade dos seus evangelhos


a mística das suas missangas e da sua pólvora
a lógica das suas rajadas de metralhadora
e enchem-me de sons que não sinto
das canções das suas terras
que não conheço.
(AP, 2010, p. 16).

Aproveito o verso de Craveirinha: “Em meus lábios grossos fermenta ̸ a


farinha do sarcasmo que coloniza minha Mãe África” para dialogar com trechos
do poema “Deus na farinheira” de Casaldáliga. Aqui “Ele” representa o sagrado.

137
“Por Ele um homem fala ̸ e caminha e espera”. Ele, ao mesmo tempo, “estrangeiro
e nativo como o próprio Evangelho”. No poema de Craveirinha era a farinha
do sarcasmo. No de Casaldáliga “Ele está aqui na farinheira, chata, ̸ levedura
do Reino, ̸ fermentando Luciara” (AR, 1978, p.35). A farinha é uma metonímia
da luta e da tradição do negro. A farinheira é uma metonímia da fé e da luta do
homem do povo.
Em “Estrada de sertão”, o eu-lírico indaga: “De quem é o Brasil? ̸ Que esperam
esses homens? ̸ Por que esperam?”. (In)vestido de uma ironia, diz: (“ – Deus já não
voltará. Veio em seu dia! ̸ Só restam os gritos destas armas!”) ̸ Cada dor humana tem
um limite”. E nas duas últimas estrofes do poema faz uma crítica à própria igreja:

(...)
Depois, enquanto relincham,
fora, como uma tropa,
dúzias de cavalos impacientes,
partilhamos a coalhada, bebemos o café, como uma droga;
e celebramos Missa...

Sangue. Suor. E lágrimas


(AR, 1978, p. 33).

Um dos arquissemas (Manoel de Barros costumava dizer que eram as


palavras que habitavam nele, segundo concepção de Iúri Lótman) preferidos
de Casaldáliga é o rio, que enquanto “Barreira amarela”, na sua cheia vaza
sentimentos vocativos: “(Ó Deus, escuta! ̸ Volta-te a teus pobres! ̸ Liberta-nos do
jugo! ̸ Salva-nos das águas que nos chegam ̸ crescentes, poderosas, conjugadas!)”
(AR, 1978, p. 39). É o mesmo rio que celebra a “Beleza perfeita”: “Quero escrever
a alma desta hora, ̸ como quem prega na lapela da festa ̸ a borboleta última ̸ [...]
Ronca o motor de novo. A menina ̸ de mil sangues cruzados (...) me sorri, com
dentes espaçados ̸ e umas tranças minúsculas, ̸ emoldurada na luz pela janela ̸
aberta à flor do rio” (AR, 1978, p. 43).
De forma pungente, a luta pela paz aparece personificada em “Lembra-te de
Jesus Cristo”: “NEle, nossa Paz...” ̸ (A Paz pedida sempre. ̸ A Paz nunca atingida.
̸ A estranha Paz divina que me leva ̸ como um barco rangente e jubiloso. ̸ A Paz
que dou, dessangrando-me dela ̸ como um leite denso. ̸ A violenta Paz de seu
Evangelho!)” (AR, 1978, p. 47). Não é muito diferente a luta pela esperança, sob
a forma de uma comparação com poder de metáfora, no poema “Travessia”: “E
sempre o sol. ̸ O sol e a memória. ̸ E a esperança aberta para diante ̸ como um
pássaro impune!” (AR, 1978, p. 49). Chama ainda atenção de forma metonímica,
“o sol e a memória”, como sinal do tempo que passa e a memória aquecida pelas
lembranças da luta por uma esperança.
Essa esperança anterior é uma “Prova” de fogo: “Será que me batizam em
águas de pobreza ̸ os amigos chamados outrora, tantas vezes? ̸ Me espera, na
manhã, ̸ algum caminho novo? ̸ Deixai-me o pão cozido sobre as cinzas!” (AR, 1978,
p. 57). E o que dizer dessa metonímia encorpada em uma audaz ave amazônica?:
“Diante de nós ia a garça branca ̸ como uma bandeira de Natal, ̸ andando ̸ com
a chuva e o vento ̸ desatados. (...) Diante de nós ̸ ia a garça branca, ̸ como uma
Boa Nova rente à erva e aos cascos...” (AR, 1978, p. 59). Reparo o mesmo recurso
estilístico: a metonímia (poderia ser a pomba do Espírito Santo?) encadeada a
uma comparação com carga metafórica.

138
A grande festa da igreja católica, que celebra o nascimento de Jesus, é
questionada no poema “Natal?” (o título vem assim mesmo com a interrogação):
“A Noite de Natal – que é Noite de Alegria – “ ̸ ... para tanta Maria ̸ que é mãe no
telheiro ̸ é noite de agonia ̸ a noite de Natal. [...] Homem Novo, onde estás ̸ Onde
está a Alegria? ̸ Que fizemos do Natal ̸ do Filho de Maria ̸ que nasceu do telheiro?”
(AR, 1978, p. 61). Temos a dessacralização da personagem Maria, mãe de Jesus, e a
sacralização do nome Maria como texto literário. É de se notar a personificação de
palavras como: “Alegria”, ‘Homem”, “Paz”, “Direitos”, “Terra”, “Homem Novo”, que
dão uma presentificação à ausência de um Natal verdadeiro. A festa tradicional
fica em segundo plano, pois “é noite de agonia ̸ a noite de Natal”. E o Filho de
Maria é um personagem esquecido pelo Homem Novo, que está sumido, diga-se
de passagem. Afinal, “Proclamamos os Direitos ̸ de uns bonecos de barro”.

NATAL

(...)
Ah, João:
em África há meninos
proprietários do seu Natal
nos galhos de um pinheiro
ou no seu sapato de verniz.

Mas meu irmãozinho, não


ele vai de loja em loja
e descalço em Natal de nada
brinca a sofrer os outros a brincar.
(AP, 2010, p. 69)

A fé é motivo da segunda parte do pequeno poema “Suelto”, de Craveirinha:


“Na igreja ̸ pequenos esqueletos juntam ̸ no catecismo os metacarpos ̸ e rezam”
(AP, 2010, p. 33). Não é o mesmo tom utilizado pelo poeta religioso espanhol.
Porém, há uma poética da constatação religiosa. Seguramente é pior a situação
colocada no “Poema do futuro cidadão”. Os primeiros versos anunciam: “Vim de
qualquer parte ̸ de uma nação que ainda não existe. ̸ Vim e estou aqui!”. É um
grito individual que se apresenta coletivo. “E ̸ tenho no coração ̸ gritos que não
são meus somente ̸ porque venho de um País que ainda não existe” (AP, 2010,
p. 19). Talvez seja melhor ser “– Karingana ua Karingana – é que faz o poeta
sentir-se ̸ gente” (AP, 2010, p. 31). Triste é a situação apresentada em “Ninguém”:
“Andaimes ̸ até ao décimo quinto andar ̸ do moderno edifício de betão armado̸
[...] e um transeunte curioso ̸ que pergunta:̸ – Já caiu alguém dos andaimes? ̸ ̸ O
pausado ronronar ̸ dos motores a óleos pesados ̸ e a tranquila resposta do senhor
empreiteiro: ̸ – Ninguém. Só dois pretos” (AP, 2010, p. 35). Mas Deus nem sempre
consegue resolver os problemas do homem. Isso fica evidente em “Quero ser
tambor”. O som poético evoca em ritmo tribal: “Ó velho deus dos homens ̸ eu quero
ser tambor..̸ E nem rio ̸ e nem flor ̸ e nem zagaia por enquanto ̸ e nem mesmo
poesia. ̸ ̸ Só tambor ecoando a canção da força e da vida ̸ só tambor noite e dia ̸
dia e noite só tambor ̸ até à consumação da grande festa do batuque!”. E encerra
o poema com uma incisiva apóstrofe: “Oh, velho Deus dos homens ̸ deixa-me ser
tambor ̸ só tambor!” (AP, 2010, p. 62-63).

139
Um último tema que quero abordar neste texto é a “ausência”, a partir de
um breve dialogismo. Em Casaldáliga ele se apresenta em “Presenças”:

“Encontro-me sempre falando


com amigos ausentes.

Encontro-me sempre
entre o instante e a morte.
[...]

E Deus persistentemente presente”....


(AR, 1978, p. 69).

Em Craveirinha, em um livro todo dedicado a sua esposa morta, denominado


Maria, a ausência se materializa em um outro eu do próprio eu-lírico:

OS DOIS EUS E A SOLIDÃO

Em mim
a solidão é já uma pessoa.
Onde
a um eu que não chora
um meu outro eu
chora tudo
pelos três.

(2010, p. 146)

Temos duas poéticas que conversam silenciosamente entre si. A do religioso


D. Pedro Casaldáliga vai da liturgia poética ao sagrado universal. A do militante
José Craveirinha vai da luta (con)sagrada ao poético universal. Essas poéticas
erguidas em trincheiras do verso se encontram em um espaço imagético, no qual a
voz da resistência ecoa pelas páginas em branco, que vão sendo preenchidas pela
literatura social e engajada. Sempre bom lembrar o ensinamento de Mallarmé,
quando afirma que poesia não se faz com ideias, mas com palavras.
Esses dois poetas, na ponta da pena, lutam e desejam ver o mundo
transformado. A partir de uma realização estética, defendem uma sociedade mais
justa, desde que com arte. É normal em um texto de escrita acadêmica utilizar-se
de epígrafes. Desta feita farei ao contrário, terminarei com elas.

ISOLAMENTO

[...]
E pela janela
o sol gelado penetra esquartejado
e tatua de cruzes o isolamento”
(AP, 2010, p. 88).

NEGRA

[...]

140
Deixa-me deitar em teus ombros
esta criança africana, de três meses de fogo,
que cresceu comigo, poderosa,
como um clamor de mar, como um deserto, como a noite viva...

Trago a dor da África nascente em minhas pobres mãos.


[...]
Embalada em teu regaço, onde Deus deita com nosso sono,
África toda palpita com um ritmo de berço...
(AR, 1978, p. 121;123).

Referências

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portuguesa no século XX. 2. ed. Cotia-SP: Ateliê Editorial, 2007.

ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. (Trad. Antônio Pinto de Carvalho). Rio
de Janeiro: Ediouro, s ̸d. (Col. Universidade de Bolso).

BARTHES, Roland. Crítica e verdade. (Trad. Leyla Perrone-Moisés). São Paulo:


Perspectiva, 1982.

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira (momentos decisivos). 7.


ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2 vol. 1993.

CASALDÁLIGA, D. Pedro. Antologia retirante: poemas. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1978.

CRAVEIRINHA, José. Antologia poética: José Craveirinha (Org. Ana Mafalda Leite).
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. (Poetas de Moçambique)

MACEDO, Tania & MAQUÊA, Vera. Literaturas de língua portuguesa: marcos e


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TODOROV, Tzvetan. Teoria da literatura: texto dos formalistas russos. Trad. Roberto
Leal Ferreira. 1. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2013.

141
O fantástico na literatura de expressão amazônica:
ensino e pesquisa

Jandir Silva dos Santos


Vinicius Milhomem Brasil
Introdução

Expressão artística do imaginário da humanidade, o Fantástico abrange


várias possibilidades de criação literária, uma vez que não é plenamente
limitado pelas convenções do real, embora a verossimilhança seja indispensável
no estabelecimento de um universo alternativo em que o leitor possa encontrar
ali familiaridades com seu próprio universo. Uma veia literária tão fértil
naturalmente instiga um número considerável de teorias a tentarem contemplar
cada uma de suas possibilidades de realização, o que se mostra um trabalho de
Sísifo, uma vez que há tantos imaginários no mundo quantos grupos étnicos
a construi-los. É imperativo destacar que, quando falamos de imaginário, nos
referimos ao “modo como um grupo social enxerga ou pensa o mundo em que
vive; o modo como (re)age a algo, como sente (no sentido mais amplo da palavra
sentir) e como percebe tudo aquilo que lhe afeta”. (TORRES, 2011, p. 70), e é por
meio dessa forma de percepção que o Fantástico se manifesta na literatura.
John R.R. Tolkien (2010) e Tzvetan Todorov (2013) figuram entre os nomes mais
populares dedicados ao estudo teórico do Fantástico, de fato oferecendo recursos
metodológicos indispensáveis a todo pesquisador interessado em enveredar por
estas sendas assombradas e maravilhosas, contudo, o fazem da perspectiva do
teórico europeu se debruçando sobre imaginários europeus, o que por vezes
não contempla a produção literária fantástica fora do eixo eurocêntrico. Neste
trabalho, pensaremos o Fantástico não da perspectiva de autores como Todorov
ou Tolkien, mas dos escritos de pesquisadores nacionais que se debruçam sobre
a produção nacional – a exemplo de Roas (2001), Krüger (2011), e Matangrano e
Tavares (2018) –, em particular sobre a produção contemporânea de expressão
amazônica, que bebe primariamente do imaginário indígena dos povos do Norte
do Brasil a fim de adquirir dimensões fantásticas, de modo bem mais diversos
do que os povos europeus. Além disso, discutiremos formas de aplicação de tais
perspectivas nacionais do Fantástico e dos textos em que se manifesta enquanto
recurso didático, a fim de utilizá-los como ferramenta de fruição literária em
sala de aula.

O que é o Fantástico? De Todorov a Matangrano

É com Todorov (2013) que o uso do termo “fantástico”, ao se designar


narrativas que transcendem determinadas categorias do real, tornou-se tão
popular entre os estudiosos dessas histórias. Tal popularidade deve-se talvez
ao fato de que Todorov não simplesmente teorizou a narrativa fantástica, mas
ofereceu também um método de investigação para a mesma:

Ou o diabo é um ser imaginário, uma ilusão, ou existe realmente, como os


outros seres vivos, só que o encontramos raramente. O fantástico ocupa
o tempo dessa incerteza; assim que escolhemos uma ou outra resposta,
saímos do fantástico para entrar num gênero vizinho, o estranho ou o
maravilhoso. O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que
não conhece as leis naturais, diante de um acontecimento aparentemente
sobrenatural (TODOROV, 2013, p. 148).

143
O método todoroviano consiste, assim, de determinar se uma narrativa
se mantinha dentro da hesitação – tanto por parte das personagens quanto da
nossa, enquanto leitores – em compreender um acontecimento aparentemente
sobrenatural. Se essa hesitação for rompida, temos duas escolhas: ou entramos
no território do estranho, no qual o sobrenatural não passou de uma ilusão aos
nossos sentidos, ou do maravilhoso, no qual concluímos que estamos diante de
um mundo cujo funcionamento não compreendemos em totalidade. Situar a
narrativa entre uma dessas três categorias torna-se, assim, um dos métodos mais
práticos de se estudar o Fantástico.
Tolkien (2010) não pensa exatamente o Fantástico, mas a fantasia, enquanto
um dos efeitos que todo conto de fadas precisa oferecer para ter sua existência
plenamente realizada. Acreditava que a fantasia era a criação de um mundo
secundário com suas próprias leis, no qual o ser humano do mundo primário só
poderia adentrar sob o efeito de um encantamento, seja a posse de algum objeto
mágico ou a ingestão de substâncias do mundo secundário. Assim o leu Raposeira
(2006, p.27): “A fantasia é a capacidade humana que conduz à criação de outros
mundos, que espoleta o poder da imaginação, que permite vislumbrar o que não
está visível. A fantasia é uma Arte e encontra-se no âmago do processo criativo”.
Não distante da concepção de mimese aristotélica, o conceito que Tolkien faz
de fantasia enquanto espaço secundário torna-a uma categoria tópica de análise
das narrativas fantásticas, noção que aparece no famoso A psicanálise dos contos
de fadas, de Bruno Bettelheim, e que refletiu até mesmo na produção criativa do
próprio Tolkien, como em suas obras mais famosas: O Hobbit e O senhor dos anéis.
Felipe Furtado em A construção do fantástico na narrativa (1980) demonstra
as diversas formas de construção e análise das temáticas trabalhadas na literatura
fantástica. Utilizando-se de exemplos da cultura pop como H.P Lovecraft detalha com
cuidado elementos sobrenaturais e já começa a caracterizar os primeiros elementos
do que viria a ser o insólito, pois o autor utiliza veemente os conceitos todorovianos
de modo a individualizar os elementos sobrenaturais apenas como elemento do
maravilhoso. Para isso, os caracteriza em sobrenatural positivo e negativo. Ambos
teriam ligação com o religioso e o segundo pertenceria ao fantástico por ajudar
“no ordenamento e no equilíbrio do real” (FURTADO, 1980, p. 24). Essas teorias
serão retomadas nas análises dos contos posteriormente, entretanto, precisamos
entender o que os últimos estudos caracterizam como insólito.
Desse modo, recorremos aos estudos de Bruno Anselmi Matangrano
& Enéias Tavares (2018), nos quais os pesquisadores se propõem a resgatar
autores esquecidos pela crítica e buscam mostrar a importância estética e
comercial da literatura fantástica como um todo. Em várias passagens da obra,
os autores ressaltam que a crítica acadêmica e a crítica jornalística brasileira
são extremamente preconceituosas com o movimento, taxando-o apenas como
literatura de entretenimento, basicamente como se não houvesse nenhuma
relevância acadêmica. Entretanto, durante vários capítulos de Fantástico
Brasileiro, é possível perceber a senioridade do movimento no Brasil, tendo como
ponto de partida o Romantismo.
Durante o período, nomes como o de Álvaro de Azevedo dão forças ao
movimento fantástico com alguns elementos nacionais “com sua atmosfera gótica
de terror, mistério e sonho [...] permeada por elementos sobrenaturais, como se
vê em alguns de seus poemas” (MATANGRANO; TAVARES, 2018, p. 29). No próximo
capítulo, destinado ao naturalismo, Machado de Assis e o paraense Inglês de Sousa

144
são mencionados, reforçando o argumento de que o movimento não é algo novo,
mas já existia há tempos e não deve ser desprezado e muito menos esquecido pela
crítica, visto que o mercado edital aposta muito no fantástico devido ao grande
consumo do gênero pelo público brasileiro.
No epílogo do livro, os autores propõem o Fantasismo como um novo
movimento literário, sendo assim, é a última estância até a escritura desse texto
sobre as vertentes do fantástico. “O fantasismo é um novo movimento literário
cuja origem parece coincidir com o novo século, mas, sobretudo, a partir de 2010,
quando o mercado de literatura fantástica brasileira começa a se estruturar de
fato.” (MATANGRANO; TAVARES, 2018, p. 262). Logo, dentro desse novo movimento
estaria contido tudo o que era intitulado como insólito, ou seja, tudo o que desviava
das características do fantástico todoroviano.

Ferramentas para análise do fantástico brasileiro

Vimos que as ferramentas de compreensão teórica do fantástico costumam


orbitar entre Todorov – cuja hesitação em perceber o insólito ou nos colocaria no
campo da ilusão sensorial ou da entrada em um mundo maravilhoso – e Tolkien
– que acreditava na fantasia como a criação de mundos secundários –, e não
poderiam ser mais eficazes na percepção do imaginário folclórico europeu, que
via suas criaturas sobrenaturais, suas fadas, transitando entre o mundo real e
seu próprio espaço encantado, ao qual Tolkien chama de Fäerie.
Após feita a retrospectiva de autores que trabalham o fantástico,
continuaremos com base nos escritos de Matangrano e Tavares (2018), para isso,
precisamos entender melhor o que se pode intitular como “movimento fantasista”.
Sempre que visitamos uma livraria podemos ver uma estante dedicada à fantasia
e outra com ficção cientifica ao lado, mas, considerando as características do
fantástico todoroviano, a FC foge das características estabelecidas por ele. O
Fantasismo vem com a intenção de abranger o próprio conceito para incluir

Suas inúmeras subcategorias, pode se aproximar de diversos outros


modos narrativos, como a ficção científica (Science fantasy), o terror (dark
fantasy), o realismo maravilhoso (fantasia urbana), o romance histórico
(fantasia histórica), o steampunk (steam fantasy), a distopia (fantasia
distópica) e assim por diante (MATANGRANO; TAVARES, 2018, p. 263).

A contradição do Fantástico Brasileiro com a teoria todoroviana começa


a partir da publicação de Cem anos de solidão (1967), mostrando que Todorov
não conseguia cobrir a vertente que futuramente viria a se chamar realismo
maravilhoso ou realismo mágico, defendidos desde o século XX por teóricos
da América do Sul como um todo, por isso Gabriel García Marques torna-se
marco “no qual, grosso modo, o elemento insólito é introduzido de maneira
naturalizada no cotidiano, causando ao leitor certa sensação de absurdo ou no
sense” (MATANGRANO, 2018, p. 303).
Entretanto, o realismo mágico ainda não é suficiente para dar conta de
questões referentes ao imaginário amazônico, existindo elementos nessa cultura
que transcendem os limites do realismo maravilhoso. E se o imaginário de um
povo não entende tais criaturas sobrenaturais e eventos insólitos como oriundos
de outra realidade, de outro espaço, mas de nosso próprio mundo, tão reais

145
quanto nós? E tão determinantes para nosso estilo de vida quanto as forças da
natureza? Eis a distância que tais teorias criam entre seus conceitos de fantasia e a
compreensão plena da experiência do imaginário amazônico, não o contemplando.
Ao observar os imaginários que surgem da expressão latina, não mais
europeia, Roas (2014) considera a ideia de um mundo secundário como não
condizente com a realidade literária a partir do século XIX, no qual a produção
literária se descentraliza do eixo europeu:

[...] o mundo da narrativa fantástica (seja no século XIX ou nestes tempos


pós-modernos) sempre é o nosso mundo. Nossa ideia de realidade atua
como contraponto, como contraste para fenômenos cuja presença
impossível problematiza a ordem precária em que fingimos viver mais
ou menos tranquilos (ROAS, 2014, p. 187).

Roas (2011) identifica certas ocorrências do Fantástico livres da hesitação


limítrofe de Todorov, nas quais o fantástico e o maravilhoso coexistem, não
havendo a necessidade do rompimento de um para a realização do outro (como
o Realismo Maravilhoso na América Latina e o Realismo Animista em território
africano). A realidade já não é violada pelo fator insólito, mas engloba-o,
tornando-se um espaço no qual o real e a mirabilia – palavra que pode muito
bem ser lida de modo análogo às visagens amazônicas – tornam-se partes mútuas.
A experiência do imaginário amazônico não se trata da invasão do
sobrenatural na esfera do real, mas elemento integrante do estilo de vida indígena
e ribeirinho, por vezes assumindo dimensões míticas, no sentido que Rodrigues
(2018, p. 41) faz de mito, ao passo que o distingue de folclore: “os mitos constituem
a expressão narrativa das sociedades indígenas, ao passo que o folclore expressa
o conhecimento de outro segmento populacional: o dos caboclos que vivem à
margem dos rios e dos lagos”.

Do lendário ao fantástico

Veremos agora alguns textos que evocam o imaginário amazônico, seja


pela expressão mítica indígena, seja pela expressão folclórica cabocla, em sua
confecção. É importante destacar a representatividade que tais produções
afirmam, uma vez que são fruto da criatividade de autores que ativamente
participam da esfera imaginária na qual tais narrativas se mantêm vivas. São
tão fruto da terra quanto os autores que as escreveram.

O roubo das flautas sagradas pelas mulheres

Umusî Pãrõkomu (Firmiano Arantes Lana) e Tõrãmû Kêhíri (Luiz Gomes


Lana) (1995), pai e filho, são membros de um dos grupos da tribo Dessana, os
Kêhíripõrã, e juntaram o conhecimento narrativo de seu imaginário em uma
coleção que, segundo Krüger (2011, p. 231), “apresenta, na perspectiva racionalista
da civilização ocidental, o conjunto de mitos (corpus mythorum) dos dessanas,
habitantes do alto rio Negro”, entre eles “os mitos de origem, em que se incluem
os heróis-civilizadores e dos quais deriva a organização social da tribo”.
Quando Krüger designa as narrativas dos dessanas como mitos, ele o faz
com a mesma compreensão de Eliade (1992), que entende o mito como a história

146
de um tempo primeiro, no qual se origina algo ou alguma coisa, ao qual sempre
voltam os que nele creem por meio de práticas ritualísticas. Para Kêhíri (1995.
p.11), a transcrição dessas narrativas assumiu a função de reafirmação identitária:

A princípio, não pensei em escrever essas histórias. Foi quando vi


que até rapazinhos de dezesseis anos, com o gravador, começaram
a escrevê-las. Meu primo-irmão, Feliciano Lana, começou a fazer
desenhos pegando a nossa tribo mesmo, mas misturando com outras.
Aí falei com meu pai: ‘todo mundo vai pensar que a nossa história está
errada, vai sair tudo atrapalhado’. Aí ele também pensou... Mas meu
pai não queria dizer nada, nem para o padre Casemiro, que tentou
várias vezes perguntar, mas ele dizia só umas besteiras assim por alto.
Só a mim é que ele ditou essas casas transformadoras. Ele ditava e
eu escrevia, não tinha gravador, só tinha um caderno que eu mesmo
comprei. Lápis, caderno, era todo meu.

Uma dessas histórias narra a ascensão do patriarcado como dinâmica social


dessana, “O roubo das flautas sagradas pelas mulheres”, na qual Abe, um dos
primeiros homens, encarregou seu filho de buscar as flautas sagradas feitas de
paxiúba, mas como este dormira, suas filhas se ofereceram para cumprir a tarefa
que normalmente caberia a um filho do sexo masculino. De posse das flautas e
ensinadas pelo peixe aracu de cabeça vermelha, perceberam suas propriedades
encantadas e dominaram-nas:

Quanto às filhas, não voltaram para casa. Ficaram no porto tocando as


flautas. Seu som foi ouvido em todo o universo. Gente de toda parte se
reuniu para comemorar, de novo, o dia do açoite, como fazia Guramûye.
Ao chegarem, viram as mulheres donas das flautas. Afastaram-se
aterrorizados, enquanto outras mulheres se aproximavam. Todas
reunidas, decidiram entrar na casa de Abe. [...] Só então os homens se
deram conta de que as mulheres se apoderaram de suas flautas e ficaram
irados (PÃRÕKOMU; KÊHÍRI, 1995, p. 103).

Como o sopro das flautas – que, não à toa, têm forma fálica – era uma
atividade que assegurava o poder dos homens sobre a dinâmica social, estes se
viram obrigados a recorrer a Gõãmû, o herói-civilizador161, para lhes devolver
o que havia sido roubado, uma vez que sozinhos eram incapazes de fazê-lo: [...]
Gõãmû levantou a flauta até a altura do peito da mulher e soprou ele mesmo. O
som da flauta barisêrõbugu desarvorou as mulheres, que caíram desacordadas
e acabaram abandonando a maloca, em fuga, aí deixando as flautas sagradas
(PÃRÕKOMU; KÊHÍRI, 1995, p. 105).
Na tradição indígena, assim, podemos ver que já há o embate de estruturas
dominadas unicamente pelo privilégio masculino com instituições de poder
feminino e com a sororidade. Quão rica seria a discussão se utilizássemos tais
tópicos em projetos didáticos para a região Norte do Brasil, quando percebemos
que tais debates sempre fizeram parte de nossa realidade fundamental?

161
Krüger (2011) comenta que Engels entendia civilização como a etapa do desenvolvimento
humano marcada pela ascensão do patriarcado, pela descoberta do metal e do uso de
ferramentas fálicas, que sucedeu a barbárie, etapa marcada pelo domínio do matriarcado e
de ferramentas de barro.

147
Singular passeio na barriga da Boiúna

Tenório Telles e Marcos Frederico Krüger são dois importantes nomes do


cenário da literatura amazonense e da crítica teórica local. Em Antologia do Conto
do Amazonas, os autores se propõem a reunir alguns dos contos mais populares
dos autores a partir do Clube da Madrugada. Movimento que, segundo os autores,
“representa, para o Amazonas, mutatis mutandis, o que a Semana de Arte Moderna
significou para o Brasil” (TELLES e KRÜGER, 2009, p. 13), criando assim um
marco para a literatura no Amazonas. Embora a maioria dos representantes do
movimento fossem poetas, um contista se sobressai: Arthur Engrácio.
Nascido em Manicoré, Engrácio é autor de várias obras, na antologia em
questão, seus contos estão na sessão de “literatura”162. Em “Singular passeio na
barriga da Boiúna”, temos uma espécie de relato oral de um pescador sobre suas
desventuras durante uma pescaria no Lago da Piranha em Manacapuru, município
da região metropolitana de Manaus. A construção do elemento fantástico na
narrativa se dá pela presença do ente sobrenatural:

Qualquer narrativa fantástica encena invariavelmente fenómenos


sobrenaturais. Por outro lado, tais manifestações não irrompem de
forma arbitrária num mundo já de si completamente transfigurado.
Ao contrário, surgem a dado momento no contexto de uma acção
e de um enquadramento especial até então supostamente normais
(FURTADO, 1980, p. 19).

E é a partir do sonho que o personagem entra no universo fantástico que


se passa dentro da barriga da cobra-grande. “Peguei o remo e saí deslizando de
mansinho, na canoa pelas entranhas da bicha. Remava e espiava com espanto
aquele enorme entrançado de tripas, umas grossonas, outras mais finas, que
formavam seu intestino” (ENGRÁCIO, 2009, p.134). A partir desse momento, o herói
entra em conflito com suas crenças pois crê tanto em santos da religião católica
quanto na cobra-grande, esta, completamente ligado à figura profana desdenhada
pela bíblia. Em Dicionário do Folclore Brasileiro, Câmara Cascudo menciona sobre
a fama da cobra na região amazônica: “O prestígio da Boiúna se limita ao pavor
determinado por sua voracidade e multiplicidade das transformações para fazer
o mal” (CASCUDO, 2012, p. 121).
Desse modo, o fantástico amazônico, por meio das lendas e mitos, se
manifesta em diversos textos da literatura local. Engrácio, utilizando-se dessas
manifestações, também possui textos de caráter fantástico envolvendo o boto
(presente também na Antologia do Conto no Amazonas).

A casa 26

A jovem Viviane se muda para uma casa nova com sua avó, até que coisas
sinistras acontecem na vizinhança logo após adotarem um gato preto em um dia
de chuva, e tudo indica que uma assombração paira sobre o lugar. Eis a premissa
de “A casa 26”, conto integrante da antologia Quando a selva sussurra (2015),
publicação que reuniu autores dispostos a reimaginar elementos do folclore

162
O livro é divido em 3 partes: “Mitologia e Folclore”, “Literatura” e “Memória Iconográfica”.

148
amazônico em narrativas próprias, que trazem em si o mestiçamento tão comum
aos textos brasileiros do gênero fantástico163.
A desventura de Viviane, de autoria de Rossemberg Freitas, não é exceção:
reconfigura a atmosfera gótica de Edgar Allan Poe ao se basear na lenda da
Matinta Pereira para criar uma narrativa impactante, permeada por um horror
gráfico que não se preocupa com sutilezas. Quanto à criatura lendária, trata-se do

Nome de uma pequena coruja, que se considera agourenta. Quando


a horas mortas da noite, ouvem cantar a mati-taperê, quem a ouve e
está dentro de casa, diz logo: Matinta, amanhã podes vir buscar tabaco.
“Desgraçado – deixou escrito Max J. Roberto, profundo conhecedor das
coisas indígenas – quem na manhã seguinte chega primeiro àquela
casa, porque será ele considerado como mati. [...] Outros acreditam que
a mati é uma maaiua, e então o que vai à noite gritando agoureiramente
é um velho ou uma velha de uma só perna, que anda aos pulos”.
(CASCUDO, 2012, p. 442).

O mistério que paira ao redor de Viviane na forma das estranhas circunstâncias


em que suas vizinhas mais idosas morrem, dão uma forma estrangeira ao conto de
Freitas, mas apropria-se de elementos vindos diretamente do folclore caboclo das
margens amazônidas, tornando-os uma peça de ficção fantástica:

O odor do cigarro aumentou e ela viu que vinha do quarto da avó. Foi ao
quarto soluçando e viu uma silhueta em pé com um cigarro entre os dedos.
Uma voz ecoou no quarto, sutil e um pouco rouca, e disse apenas: “quer?”.
Os dedos esquálidos saíram das sombras com o cigarro. Viviane balançou
a cabeça num “sim”, sem raciocinar, e pegou o cigarro, levando-o aos
lábios. O braço encolheu-se nas sombras e a voz disse sorrindo:
- Eu não tive filha. Agora essa maldição é tua. Tu és minha filha, Viviane.
Vá agourar pelas madrugadas, vá ser rasga-mortalha cortando as noites
escuras com suas asas e esfaqueando o vento e os sonhos com tua voz.
Vá ser Matinta-Perera (FREITAS, 2015, p. 160).

Contudo, Freitas não reimagina a história da assombração como uma


narrativa gótica apenas com finalidades estéticas. Ao descobrirmos o motivo de
a casa de Viviane ser assombrada, nos deparamos com um engajamento do autor
em uma pertinente questão social:

Marta Pereira era uma mulher negra de cabelos curtos e rosto fino
que viveu naquela casa durante anos. Em uma vizinhança onde a
pele branca reinava, Marta sofria preconceito e não era aceita entre
as outras mulheres. [...] Ela era estranha e recebeu o apelido de Preta
Velha. Odiavam-na mais por estar sempre com um cigarro entre os
lábios amarronzados. Aquela fumaça era desagradável e a aparência
dela também. Causava repulsa nas pessoas (FREITAS, 2015, p. 158).

163
“Para Machado de Assis, não haveria dúvida de que uma literatura, sobretudo uma “literatura
nascente” (como a brasileira), deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhes oferece
a sua região, mas não se deve fazer disto uma doutrina absoluta, sob risco de empobrecê-la”
(JOBIM, 2013, p. 110).

149
O conto, apesar de enfatizar o gore ao se referir ao assassinato das
personagens e ao comportamento vingativo da entidade, adiciona aos elementos
góticos a violência do racismo para criar um subtexto poderoso.

A Rainha de Maio

Das obras escolhidas para análise do elemento fantástico, esse é o único


romance. A rainha de maio (2016) é de autoria do amazonense Jan Santos. A
obra possui como intuito resgatar toda a mitologia amazônica que se encontra
em esquecimento pelos habitantes da região e mostrá-la em uma ficção rápida e
cheia de críticas e metáforas sociais.
O livro conta sobre o jovem herói Anga, que em sua adolescência tenta a
todo custo se libertar da sombra da fama da mãe, Caraúna, uma poderosa xamã
que faleceu durante o parto. Ao redor de sua tribo, está situada a Floresta Baixa,
um lugar encantado onde mora a temida Maria-Fogo, uma espécie de espírito
maligno que foi banido há anos por sua mãe. Durante o enredo, nos deparamos
com muitos encontros do que é melhor definido como insólito, atualmente contido
no Fantasismo, pois os elementos sobrenaturais não fazem parte da realidade os
próprios personagens. Para uma melhor análise desse elemento, recorreremos
a Furtado (1980, p. 24):

Pelo seu carácter predominantemente negativo, bem como pela sua


influência determinante no desfecho da acção, o sobrenatural encenado
no fantástico e no estranho contribui para estabelecer uma linha
divisória entre o maravilhoso e estes dois géneros. Neles, para além de
negativa, a manifestação insólita é ainda frequentemente irreversível
e de consequências inelutáveis, conduzindo a um desenlace nefasto às
forças positivas integradas na natureza conhecida.

A partir do exposto, compreendemos melhor como a influência da Maria-


Fogo interfere no desfecho do enredo, toda a carga negativa colocada sobre a
personagem contribui para as consequências recorrentes durante o enredo da
narrativa, como a morte de Icaã, pai do protagonista.

O princípio do mundo

Único autor descrito aqui que não atende ao quesito representatividade,


ainda assim a contribuição do botânico mineiro João Rodrigues Barbosa para
a literatura de expressão amazônica merece destaque. Sua obra, Poranduba
amazonense (2018), não apenas enriqueceu o conhecimento nacional acerca da
biodiversidade da floresta, mas também reconhece a participação das narrativas
míticas e folclóricas para a formação e compreensão cultural da Amazônia,
coletando-as de modo exemplar em um compêndio que se ocupa também em
registrá-las em suas manifestações linguísticas de origem.
Dos Mundurucus do rio Tapajós, Barbosa nos apresenta um curioso mito
cosmogônico, no qual as duas primeiras criaturas a emergir da escuridão
primordial eram pai e filho, fundadores dos povos da região, Cáru e Rairu,
respectivamente. Enquanto se empenhavam na compreensão do espaço em

150
crescimento envolta e na criação de alguns de seus elementos, tais como a abóbada
celeste e o sol, um desdém forte cresce em Cáru por Rairu, pois “Cáru era inimigo
do filho porque sabia mais que ele. Um dia Cáru flechou a folha de um tucumã e
mandou o filho subir no tucumanzeiro para tirar a flecha para ver se o matava”
(BARBOSA, 2018, p. 451).
Em uma das muitas tentativas de assassinar o filho, Cáru obrigou-o a carregar
uma pedra enorme nas costas, que não parava de crescer: “Mais crescia a pedra
e já Rairu não podia andar. A pedra continuou a crescer. Cresceu tanto a pedra
em forma de panela que formou o céu” (BARBOSA, 2018, p. 451).
As possibilidades de traçar paralelos intertextuais com narrativas como “O
princípio do mundo” são vastas: o surgimento de um par de humanos em meio a
um lugar em formação pode nos remeter ao Éden bíblico e aos seus moradores
primeiros, Adão e Eva, assim como a relação familiar antagônica entre os pais das
tribos mundurucus pode ser associada à desventura dos herdeiros do Éden, Caim e
Abel. A imagem de um homem carregando a abóbada celeste nas costas nos lembra
do Atlas grego, e estas são apenas algumas considerações intertextuais imediatas.
O diálogo entre textos tão diversos quanto as narrativas indígenas, os
episódios da mitologia grega e as passagens bíblicas são parte de uma leitura de
natureza complexa, na qual o aluno capaz de realizar tais paralelos desenvolve a
prática da fruição literária. Tal atividade também abre possibilidades de discussão
acerca da diversidade cultural, um dos temas transdisciplinares que compõem os
paradigmas de ensino da Base Nacional Curricular (2018), o que torna a leitura
de narrativas do tipo uma ferramenta essencial nas salas de aula brasileira.

Da pesquisa ao ensino: procedimentos didáticos

A formação do profissional em Letras encontra-se ainda muito defasada


nos quesitos de procedimentos didáticos a serem seguidos. Seja por conta de
uma formação muito teórica das disciplinas, especificamente de literatura se
se debruçam somente ao que diz respeito à crítica literária voltada a pesquisa
ou até mesmo pela matriz curricular desatualizada dos cursos de graduação. O
documento que norteia o ensino de Língua Portuguesa e Literatura no ensino
básico é a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a qual concentra a disciplina
na grande área de Linguagens e suas Tecnologias.
A BNCC do Ensino Médio foi aprovada no dia 04 de Dezembro de 2018 e
a do Ensino Básico (Anos iniciais e finais) foi no ano de 2017. A previsão é que
entre em vigor em 2020. A partir do texto consultado, o qual não é a versão final,
elencamos diversos pontos aos quais poderíamos compreender melhor como
funcionaria o ensino de literatura fantástica nas escolas, para isso recorreremos
aos estudos de Rildo Cosson em sua obra Letramento Literário (2018), que trata
sobre a formação do leitor literário.
Para Cosson (2018) a literatura é essencial na formação cultural do indivíduo,
visto que muitos professores só a enxergam como pressuposto para ensinar a
ler ou a escrever. No tocante à formação cultural, a BNCC do Ensino Médio diz:

a ampliação de repertório, considerando a diversidade cultural,


de maneira a abranger produções e formas de expressão diversas –
literatura juvenil, literatura periférico-marginal, o culto, o clássico, o

151
popular, cultura de massa, cultura das mídias, culturas juvenis etc. –
e em suas múltiplas repercussões e possibilidades de apreciação, em
processos que envolvem adaptações, remidiações, estilizações, paródias,
HQs, minisséries, filmes, videominutos, games etc.; (MEC, 2018, p. 492).

Os exemplos mencionados pelo Ministério da Educação flertam em sua


maioria com o fantástico, pois faz parte de uma parcela da cultura juvenil,
incluindo exemplos mais famosos como Harry Potter, Jogos Vorazes e Percy Jackson,
quanto às séries televisivas, tão presentes nas vidas dos jovens e popularizadas
pelo serviço de streaming Netflix, temos Black Mirror com futuros distópicos e
pontuais para a discussão sobre a crescente dependência abusiva da tecnologia.
E por meio da literatura fantástica manifestada no Amazonas, é possível
propor aos educadores de outras regiões propostas de trabalho sobre a diversidade
cultural em sala de aula. Cosson (2018) diz que “Ler implica troca de sentidos não
só entre o escritor e o leitor, mas também com a sociedade onde ambos estão
localizados, pois os sentidos são resultados de compartilhamento de visões de
mundo entre os homens no tempo e no espaço” (COSSON, 2018, p. 27). Essa visão
de mundo é passível de ser reforçada nos grandes centros urbanos por meio da
crença nos seres fantásticos (mitos) e como eles se manifestam na vida do caboclo
amazônico.
Antonio Candido (1995) discorre sobre um equilíbrio social estabelecido
pela própria literatura:

Alterando um conceito de Otto Ranke sobre o mito, podemos dizer que


a literatura é o sonho acordado das civilizações. Portanto, assim como
não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono,
talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é fator
indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua
humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente
e no inconsciente (CANDIDO, 1995, p. 242-243).

Dessa forma, a importância da humanização do leitor em fase escolar é


essencial para o educador, visto que, segundo Cosson (2018), ele é o intermediário
entre o livro e o aluno. Portanto, faz-se necessária a utilização de textos fantásticos
em salas de aulas do ensino básico, podendo ser trabalhado os aspectos e
diversidades sociais propostos pela BNCC.

Considerações finais

Mesmo com trabalhos referenciais como são os de Tolkien e Todorov, o


Fantástico ainda se mostra como um território extenso e promissor, e desbravá-lo
é descobrir e compreender as mentalidades de outras etnias, os imaginários de
outras realidades. O interesse pelo Fantástico é o interesse pelo diferente, e uma
busca incessante por entendê-lo em sua especificidade, em sua singularidade.
Visto dessa forma, o Fantástico também é ferramenta poderosa enquanto
recurso didático, uma vez que perceber o quão plurais são suas manifestações é
também perceber o quão plural a humanidade é, percepção essa que é também
o objetivo final de todo ensino que preze pelo exercício pleno da cidadania.

152
Referências

CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 5. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2011.

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 12. ed. São Paulo:
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TORRES, José William Craveiro. Além da cruz e da espada: acerca dos resíduos
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154
Dois caminhos aquém dos pirineus:
apontamentos sobre o extraordinário nas literaturas
ibéricas e ibero-americanas

Juciane Cavalheiro
Mauricio Matos
Para Luiza Pipow

Para ser um (sujeito), é preciso ser dois, mas quando se é dois, já se é três. Um é igual a dois, mas dois é
igual a três [sic].

Dany-Robert Dufour (2000, p. 92)

O presente texto aborda a questão da presença/ausência do elemento


extraordinário nas histórias das literaturas ibéricas e ibero-americanas, desde
sua origem com as cantigas medievais até ao surrealismo e ao boom das literaturas
hispano-americanas. Partindo do princípio de uma origem comum na Europa
medieval, verifica-se a partir de que momento tais literaturas passaram a tender
mais para o ordinário ou para o extraordinário, bem como as oscilações que
estas tendências passaram a provocar, particularmente, em cada literatura. Sua
conclusão aponta para um destino in fieri, como haverá de ocorrer nas mais
importantes literaturas.
Debruça-se, assim, o presente texto sobre dois caminhos para os quais
convergem as mais expressivas literaturas do Ocidente: o caminho do ordinário
e o do extraordinário, donde se percebem, naquele, marcas mais significativas do
realismo; enquanto, neste, elementos que extrapolam a realidade e alcançam a
fantasia, seja através do surrealismo (super-realismo), do realismo fantástico, do
maravilhoso, categorizados ou não. Se pensarmos, por exemplo, em um autor da
envergadura de um Machado de Assis, teremos que, como estilo de época, funda
o realismo na literatura brasileira, mas o faz com o livro de um autor defunto, ou
seja, que pertence ao caminho do extraordinário. Assim, entre os mais expressivos
autores de cada literatura, ordinário e extraordinário coexistirão harmonicamente,
sobressaindo-se ora um, ora outro.
A coexistência de elementos ordinários e extraordinários em uma
determinada literatura não haverá de ser inusitada; todavia, perscrutar a origem
desta mesma coexistência, bem como seu desenvolvimento, haverá sim de ser
questão pertinente. As literaturas ibéricas e ibero-americanas – sobre as quais
se debruça o presente texto – têm uma origem comum nos alicerces das letras de
música compostas em meados da Idade Média peninsular. Herdada da Provença,
a tradição de se compor em versos em vernáculo projeta as literaturas ibéricas ao
primeiro plano, em termos de importância, dentre as europeias, ou seja, aquele
que viria a ser chamado de velho mundo, até então, o único mundo culturalmente
conhecido e relevante. O caminho de Santiago de Compostela, formado segundo o
curso da Via Láctea, para os peregrinos que, no mês de maio de cada ano, partiam
da Provença à Galiza, a um só tempo, consagrou o galaico-português como língua
oficial da composição literária e a convivência entre os temas profanos, herdados
de sua origem, com os sagrados, que apontavam para seu termo.
Considere-se que, para um medieval europeu, entre Deus e o homem, estava
Deus, para o sublime, assim como o homem, para o pecaminoso. Logo, quanto
mais distante do homem, mais próximo de Deus. Assim, em uma Europa que
desconhecia terras para além do mar, quanto mais perto do Atlântico, quanto mais
longe do homem, mais perto de Deus. E foi por este motivo que as peregrinações
vieram a desembocar no limite Ocidental da Europa geograficamente conhecida
e mapeada, mais precisamente, a Galiza, entre Portugal e Castela, cuja língua
era o galaico-português. Considere-se, pois, que era na Galiza onde se dava o
mais forte intercâmbio de composições em verso, escritas em galaico-português,

156
ou seja, as chamadas cantigas. Não terá sido por acaso, portanto, que Afonso
X, o sábio, de Castela, tenha preservado mais de quatro centenas de cantigas
de Santa Maria, escritas exclusivamente em galaico-português, e não em latim
ou em castelhano-arcaico. Uma cantiga em galaico-português tinha circulação
garantida, ao menos, durante as concorridas festividades marianas de Santiago
de Compostela e arredores. Desta forma, é a literatura quem confere grau de
relevância à língua – processo semelhante se dá hoje e, desde há algum tempo,
com autores não anglófonos que compõem em língua inglesa, o que lhes confere
maiores possibilidades de popularidade.
É de responsabilidade de Afonso X a manutenção de um dos mais importantes
cancioneiros que a Idade Média europeia conheceu. Viria a ser seu neto, Dom
Diniz, rei de Portugal, o mais profícuo trovador em galaico-português, contando
com um repertório de 138 cantigas profanas, no que se singularizava em relação
ao avô castelhano. Foi um de seus filhos bastardos, Dom Pedro, o conde de
Barcelos, quem reuniu as cantigas que vieram a compor o Cancioneiro da Ajuda,
que, embora não trouxesse composições do pai, porque seu corpus o antecedesse,
era exclusivamente profano. Epigrafava-o, contudo, um livro de linhagens, ou
nobiliário, no qual, entre muitas histórias, vinha registrada, de modo narrativo
e pera dar certidom da verdade – como talvez dissesse Fernão Lopes –, a história
da origem da família Lopes, de Biscaia, situada ao norte da Espanha. Segundo
antigas escrituras, teria Dom Diego Lopes se casado com uma mulher-demônio,
alcunhada como Dama-pé-de-cabra, sobre a qual Alexandre Herculano viria a
compor uma das mais célebres narrativas do Romantismo português. Está claro,
portanto, que, em língua portuguesa, ao menos, da Idade Média ao Romantismo,
o caminho do extraordinário se fez literariamente presente.
Desta forma, fica patente que, mesmo elementos semanticamente opostos,
como a Santa Maria das cantigas de Afonso X e a Dama-pé-de-cabra do Nobiliário
de seu bisneto, gravitam em torno do extraordinário por excelência. Todavia, se se
retirar o antropónimo Maria das cantigas da Santa e se o inserir em uma cantiga
de amor, ambas trocarão de lugar em sua classificação, tal era a proximidade
de que os homens podiam gozar da Santa e a inatingibilidade, a que estavam
sujeitos, em relação às mulheres amadas, conforme o código de cavalaria. É desta
forma que, a Dom Diego Lopes, como homem, é conferido casar-se com uma
extraordinária mulher, do mesmo quilate da Santa.

A virada do século XV para o XVI, na Península Ibérica, configura-se como


o momento de transição da Idade Média para o Renascimento e, daí, com a era
das Grandes Navegações, para a Idade (historicamente) Moderna. É natural que,
neste momento, a cultura ibérica estivesse pendendo, tanto para àquilo que
estava deixado de ser, quanto para àquilo que, então, estava passando a ser. Desta
forma, ouviam-se ainda os ecos do sobrenatural, tão caracteristicamente medievo,
enquanto, longinquamente, outros ecos, os do classicismo, já se faziam prenunciar.
Haverá de ter sido muito rico o momento da coexistência entre ambos, talvez –
ariscar-se-ia aqui – tão ricos quanto mal compreendidos, ao menos, no Brasil.
Exemplo, na literatura, disso são as novelas Menina e Moça, de Bernandin Ribeiro,
e Lazarillo de Tormes, de autor anônimo, a primeira apontando para a tradição, a
segunda, para a inovação. Não haverá de ser novidade dizer que, no peito de Luís

157
de Camões – fundador da língua portuguesa – tem sido posto o primeiro fôlego de
novos ventos, “das naus as velas côncavas inchando” (Lus, I, 19, v. 4). Assim, em
sua ficção, via de regra, o extraordinário se desfaz em ordinário, o sobrenatural
se reduz à natureza, quando vistos através da lente do poeta renascentista. Sua
epopeia, matematicamente planejada, não cede espaço para a intervenção do
que não fora cientificamente calculado. É assim que o meio do livro coincide,
exatamente, com o meio da viagem que, por sua vez, coincide com o meio do
mundo. É neste espaço literário que Vasco da Gama, através da linguagem, faz
com que o gigante Adamastor se transforme em rocha, sua matéria original, o
Cabo das Tormentas. É literal sem deixar de ser literário, assim é o Renascimento
ibérico, mas nem todo.
Leitor de Camões e fundador da língua espanhola, Miguel de Cervantes
opera um procedimento não rigorosamente inverso, mas de resultados invertidos:
tome-se, como exemplo, o momento em que dom Quixote se depara com os
moinhos de ventos, que vê como gigantes, contra os quais avança heroicamente
e ultrapassa sem passar a ver moinhos. Em Cervantes, portanto, ao contrário de
Camões, o extraordinário não passa a ordinário quando da passagem do herói.
Pode-se dizer que, da dialética Camões X Cervantes surja uma tendência maior, na
literatura portuguesa e nos países lusófonos, para o ordinário ficcionalizado, assim
como na Espanha e nos países hispânicos, para a literatura do extraordinário,
não excludentes um em relação ao outro, esteja claro. Houve, ainda assim – e é
natural que tenham havido –, momentos em que a literatura espanhola pendeu
para o ordinário, assim como a portuguesa, para o extraordinário, mas esta não
foi a tônica destas literaturas.
Difícil dizer se Fernando Pessoa terá tido consciência deste processo quando
afirmou, aos 24 anos, que estaria para vir um “super-Camões”, mas o fato é o
que fez e, praticamente, reivindicou, a si mesmo, este lugar. Mirando de outro
paradigma espaço-temporal, poder-se-á afirmar que Pessoa buscava, antes, um
pré-Camões, que seria já, segundo sua perspectiva, um super-Camões, antes mesmo
de ser, a julgar pelos poemas de sua Mensagem, uma releitura extraordinária dos
Lusíadas, bem como por sua produção ortonímica. O Portugal pré-camoniano
é o Portugal medieval, ou seja, ibérico, o mesmo onde foi Cervantes colher os
frutos para produção de seu Quixote, um cavaleiro andante. Se, por um lado,
Camões pôs nas mãos dos deuses da Antiguidade Clássica o leme de sua epopeia,
Cervantes delegou a Cide Hamete Benegueli a rédea de suas andanças, donde
haverá de se notar a substancial diferença no resultado de um em relação à
outra. Enquanto Camões direciona sua ficção por passos medidos, Cervantes o
faz com a luneta nas estrelas. Fecundo choque seria o encontro entre Vasco da
Gama e dom Quixote. Poder-se-ia dizer que resumiria as literaturas ibéricas e
ibero-americanas, equalizando-as.

Mas o que é a história da América toda senão uma crônica do real maravilhoso?
Alejo Carpentier

Até fins do século XX, não havia dúvidas de que Camões era o maior entre
todos os poetas de língua portuguesa. Hoje, por outro lado, não há dúvidas de que
este poeta maior já não é Luís de Camões, mas Fernando Pessoa. Do lado hispânico,

158
a contenda se demonstra, de algum modo, menos precisa: se, por um lado, sempre
se soube que o Quixote era a maior obra literária do Ocidente, por outro, vieram os
Cem anos de solidão de Garcia Marques a serem considerados, igualmente, como a
maior obra da literatura ocidental, o que levou a uma cisão hispânico-literária de
Ocidentes, por assim dizer, um posto mais a ocidente do que o anterior, ou seja,
nas Américas, onde está situada Macondo, cidade onde até a chuva – de pétalas
de rosas amarelas – é extraordinária. Todavia, não terá sido o colombiano García
Márquez um paralelo hispânico exato para Fernando Pessoa, muito embora o
fosse em representatividade. Em par com Pessoa, inquestionavelmente, estará
o argentino Jorge Luis Borges: somente nele a cisão do sujeito – de tão remota
herança portuguesa e importância no advento da modernidade literária – haverá
de ter ombreado com o patamar a que se alçou a heteronímia pessoana.
Talvez a mais forte expressão do extraordinário, antes do fantástico e do
maravilhoso, seja o surreal. Pode-se dizer que o surrealismo tenha tido sua
origem num eixo que, insuspeitadamente re-uniu, tantos séculos depois da Idade
Média, a França à Espanha, em um novo caminho, dos inícios do novecentos. Se
se restringir o foco de verificação ao âmbito do estritamente literário, ter-se-á,
em Breton e Lorca, os expoentes desta geração – isto, se não forem considerados,
como literários, os diversos escritos de Salvador Dalí.
Brevemente, os textos de André Breton viriam a dar em terras ibero-
americanas e, na Argentina, conheceriam suas primeiras traduções para o
castelhano, saídas do punho de um insigne, ainda que atrasado, Aldo Pellegrine.
Para a língua portuguesa, as traduções demorariam mais, o que acarretaria num
surrealismo tardio, mesmo em Portugal. A cultura portuguesa inegavelmente
deverá a Mário Cesariny de Vasconcelos o mergulho incontornável de sua poesia
no surrealizante – donde se compreenda como surrealista aquele que participou
do movimento homônimo e surrealizante aquele que, não tendo participado do
movimento, cultive o estilo e o espírito em sua arte. Pode-se dizer que, à exceção
do Brasil, praticamente todos os países ibero-americanos viveram intensamente o
surrealismo, em contrapartida ao nosso concretismo, como se sabe, mais realista
do que o realismo, ainda que de inspiração mallarmaica.
Da mesma raiz de onde nasceu o surrealismo, viriam a nascer as literaturas
de Pessoa e de Borges, uma de cada lado do Atlântico. Pela porta aberta por
Pessoa, passaria Cesariny, para uma legião de poetas portugueses, conscientes ou
não da natureza de sua arte; por aquela aberta por Borges, passaria Pellegrine e,
logo depois, Cortázar e Pizarnik, todos adeptos do extraordinário como forma de
expressão. Para além da Argentina, na América Ibérica, em par com Julio Cortázar, o
mundo veria nascer o boom das literaturas hispano-americanas, mais notadamente
compreendido por García Márquez, ao menos, para a finalidade deste artigo.
Entre os exemplos que poderiam ser extraídos das literaturas hispano-
americanas, onde privilégio é, de modo contundente, conferido ao extraordinário,
como modo de ver, ler e escrever o mundo, talvez seja justo assegurar a autores
como Alejo Carpentier e Arturo Uslar Pietri o lugar de pioneirismo consciente
sobre a opção que fizeram em seu momento. A figura de um Bolívar sobrenatural
que se ergue para além da bruma do ordinário, devemo-la a Uslar Pietri, no
clássico Las Lanzas coloradas, que viria a ser utilizado inclusive em escolas de
ensino médio. Não por acaso, ainda hoje, tal como o nosso Machado, embora na
contramão dele, seja Uslar Pietri o maior autor venezuelano da história desta
literatura. É de se notar – ainda que entre parênteses – a tendência de autores

159
hispânicos, com o García Márquez e Uslar Pietri, para utilizarem a prosa em
suas opções narrativas, ainda que, contra esta afirmação se avolume um outro
igualmente sobrenatural Simão Bolívar, evocado no pai-nosso poético de autoria
de um dos nobéis hispano-americanos: Pablo Neruda. Anterior, todavia, terá sido
o do credo de Miguel Angel Astúrias; assim como posterior será o do General e seu
labirinto, em que García Márquez, Nobel também, narra o coma de Bolívar, às
vésperas da morte. Note-se que, em nenhum destes casos, o Libertador desponta
de forma ordinária; seja através da bruma, seja no coma ou no fantasma de
entre a vida e a morte, Bolívar se nos está presente extraordinariamente, como
extraordinário o foi, tanto na vida quanto na morte.
Todo este fluxo de produção literária vai desaguar no fantástico e/ou no
maravilhoso. Foi, todavia, o cubano Alejo Carpentier quem, antes dele, talvez
prevendo o quão ibérico era aquele fluxo, quem teve a lucidez de delegar ao
surrealismo a responsabilidade por este fenômeno latino americano. Afinal, não
há de se esquecer que um dos maiores surrealistas argentinos, Enrique Molina,
tenha tomado pé do movimento em terras venezuelanas para, depois, de retorno
a Argentina, ir somar às investidas de Aldo Pellegrine.

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Pizarnik. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 1972.

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Hispánicas, 2003.

161
Ivan Serpa e a Fase Negra: a preocupação social na arte
em meados da década de 1960 e a pós-modernidade

Luciane Viana Barros Páscoa


Márcio Leonel Farias Reis Páscoa
Lyotard escrevia já ao início do seu La condition postmoderne (1979) que esse
tempo, desde o final da Segunda Grande Guerra, equivalia a uma época de crise
dos relatos (LYOTARD, 1988, p. XV). Se a ciência conservara em si um estatuto
de verdade e se legitimava pelos fins nobres, como o bem comum e a difusão do
progresso e do saber, esbarrou no fato de que ela mesma é um discurso e este
para se legitimar precisava somente de que enunciador e receptor concordassem
com o que era a verdade da narrativa. O metarrelato, que deveria ser legitimado
por valores universais, agora se acumulava em variedade e dissensão, de modo a
esvaziar o que Vattimo veio a chamar de pensamento sólido, ou seja, evidenciando
a primazia de um pensamento débil, enfraquecido (pensiero debole) e que já não
é mais capaz de sustentar as premissas da modernidade, de que construímos
juntos um caminho para a emancipação humana, através de valores comuns que
se sobreponham a agendas particulares (VATTIMO e ROVATTI, 1983).
Se é, como assim parece, uma forma de niilismo, e tanto Nietzsche quanto
Heidegger já apontavam essa tendência, então o sujeito passa a ter forte papel
sobre o que se chama ética e conhecimento, valores até então regulados pelo
entendimento coletivo. Afinal, as múltiplas narrativas individuais surgem como
reação ao fracasso da sociedade industrial e da comunicação, portanto filha da
modernidade, em cumprir com as promessas de emancipação do Homem, tais
como justiça social, segurança jurídica, isonomia de direitos, ética baseada em
valores nobres, difusão do conhecimento como vida melhor, dentre outros.
A constatação de uma sociedade pós-industrial - ou seja, quando o
desenvolvimentismo já não responde às inquietações sociais e individuais, porque
existenciais - se combinou com uma forte reação de autocracia, onde posturas de
homologação violenta como o fascismo, surgidas como estertores de uma época
vencida, ficou ainda mais claro o descompasso da noção de história unitária,
narrativa sólida e unívoca, com a realidade dos fatos e dos agentes.
Uma das reações imediatas, ainda hoje característica da pós-modernidade,
é que, com a dissolução da ideia de história linear e do conceito aí embutido
de evolução como progresso, múltiplas tendências de pensamento, expressão
e estilo artístico, narrativas várias e de outra (des)ordem metafísica, ocuparam
lugar. Estas retomadas apareceram como decisão pessoal ou comunitária de
agentes sociais e artísticos que desacreditando da vanguarda - ainda um conceito
relativo à linearidade histórica e à ideia de progresso evolutivo, portanto vazado
na modernidade – buscaram a melhor forma de comunicar o que viviam e resolver
o seu cotidiano, o seu metarrelato.
No panorama mundial das artes, o início da década de 60 caracterizou-se pela
extrema velocidade dos movimentos artísticos (os ismos) associada à multiplicação
dos meios expressivos e das formas de suporte da arte, além do retorno à figuração
e abandono do Abstracionismo (geométrico e informal).
Neste período turbulento, a vanguarda construtiva entrou em declínio e
deu espaço para novos experimentos. Ivan Serpa (1923-1973), artista plástico
carioca de carreira internacional premiada e um dos ícones do construtivismo no
Brasil, rompeu decisivamente com seu passado concretista e após o curto período
informalista, retornou à figuração. Falando da evolução de sua pintura, Serpa disse
que o Informalismo surgiu-lhe como o caminho natural contra o rigor concretista
a que se entregara desde 1951, e depois da experiência do Informalismo revelou:
“Cansei-me e decidi buscar outro rumo. Voltar à figura que fiz em 1947/48 não

163
me interessava, e assim parti para uma pesquisa da figura humana, trabalhos
ligados à realidade social” (GULLAR, 1964).
Os acontecimentos políticos e sociais que culminaram no Golpe Militar de
1964 - movimento de caráter autocrático, censório e conservador - atingiram
profundamente a vida brasileira, provocando após um primeiro momento de
perplexidade, uma onda de protestos, explícitos ou implícitos, em todas as formas
de expressão artística. Neste momento, Serpa retratou o medo e a angústia que
pairava sobre a sociedade ameaçada pela instabilidade política.
A estratégia da ação golpista previa a repressão dos movimentos populares
e uma intensa propaganda anticomunista, o que levou a população a temer a
presidência de João Goulart. Esta propaganda envolvia jornais (a única exceção foi
o jornal Última Hora), rádio e televisão. Eram diárias as denúncias de corrupção,
de incompetência na condução da economia e de infiltração comunista no
governo. A ameaça à continuidade do crescimento econômico, aliada a inflação
alta e dívidas volumosas já eram fatos constatados desde o final do governo de
Juscelino Kubitschek, o que também afetava condições para investimentos. Além
disso, o governo debatia-se em suas próprias contradições, pois ao mesmo tempo
em que propunha reformas adiava medidas populares, criticava a esquerda e
fazia concessões à direita.
Em 13 de março de 1964, a assessoria sindical do presidente brasileiro reuniu
em um comício cerca de duzentas mil pessoas no Rio de Janeiro, contando com
a presença de ministros, governadores, parlamentares, lideranças sindicais
e estudantis. Anunciando dois decretos sobre desapropriação de terras e
nacionalização de refinarias de petróleo, além de prometer realizar as reformas de
base para o que chamava de justiça social, João Goulart denunciou a mistificação
do anticomunismo, atacou monopólios nacionais e internacionais, convocando
a ampla participação da população.
Mas então intensificou-se a ofensiva golpista, por parte de forças
conservadoras que temiam um estado socialista e, num ambiente marcado pela
Guerra Fria, uma vinculação ao bloco soviético. Assim, a partir de 19 de março, se
estendendo até 8 de junho, aconteceram em São Paulo as manifestações públicas
identificadas como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade (após o golpe
foram chamadas de Marcha da Vitória), que em alguns momentos chegou a reunir
centenas de milhares de pessoas. A ação foi organizada pela CAMDE (Campanha
da Mulher em Defesa da Democracia), uma das instituições financiadas pelo
IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais) em colaboração com o governo do
Estado de São Paulo, a FIESP (Federação da Indústria e Comércio do Estado de
São Paulo) e a Sociedade Rural Brasileira. Manifestações semelhantes ocorreram
em várias capitais, muitas delas pedindo o impeachment de Goulart. Ao saber
que não contava com o apoio militar, o presidente João Goulart preferiu o exílio,
saindo do país em 4 de abril de 1964.
Dias antes, o Congresso Nacional consumara o golpe declarando vacância
da Presidência, que foi assumida pelo presidente da Câmara Federal. Interessado
diretamente na manutenção do Brasil sob sua esfera de influência, o governo
dos Estados Unidos reconheceu imediatamente o novo governo brasileiro.
Anunciando os novos tempos, os militares editaram o Primeiro Ato Institucional.
Este Ato permitiu o fortalecimento do Poder Executivo, outorgando amplos
poderes ao presidente da República que poderia, dentre outras medidas,

164
cassar mandatos políticos. Houve também a consequente retirada do Poder
Legislativo, ficando o Congresso Nacional e os partidos políticos sem função. O
Ato estabelecia eleições presidenciais em 1965, dando a entender que em breve
os militares retornariam aos quartéis.
Em 11 de abril de 1964, o general Castelo Branco, ex-chefe do Estado Maior
foi escolhido Presidente da República. Contudo, o IPES-ESG não conseguiu a
hegemonia no governo que se formou, precisando aliar-se a outra facção militar
- a chamada linha dura - representada pelo general Costa e Silva que nos primeiro
dias de abril autonomeou-se Ministro do Exército. Apesar disso, a liderança
civil-militar conseguiu em parte impor suas diretrizes ao destino do país. Outra
tendência dos novos tempos desde logo se anunciou: em nome da “paz e honra
nacionais”, antes mesmo de dispor de qualquer instrumento legal, o Exército
e os contingentes militares desencadearam a operação limpeza com prisões e
torturas de cidadãos considerados comunistas ou subversivos ao regime militar.
Era o início da repressão, com a imprensa e as manifestações culturais censuradas
e a cidadania rechaçada.
Tais acontecimentos levaram diversos artistas a aproximarem seu fazer
artístico dos anseios da resistência civil. Neste momento, Ivan Serpa percebeu a
necessidade de expressar a angústia e o medo, imprimindo mudanças formais e
estéticas em sua obra. A Fase Negra de Ivan Serpa, que abrange o período de 1963
a 1965, tem a nítida preocupação de denunciar os problemas locais e mundiais.
Neste período Serpa criou concomitantemente à Fase Negra, as séries Bichos e
Mulheres e Bichos, de tendência expressionista. Num depoimento contundente,
Ivan Serpa justificou sua opção artística deste momento:

Numa época dessas pode o pintor fechar os olhos aos problemas do


mundo? Vai ele pintar por pintar? Só vejo dois caminhos para o artista:
contribuir para o desenvolvimento técnico, trabalhando na indústria,
ou denunciar as contradições sociais, as injustiças, fazendo os outros
homens refletirem (COUTINHO, 1983).

Ivan Serpa estava com quarenta anos quando efetuou a mudança para o
Expressionismo. Neste período Serpa atingiu a maturidade artística, refletindo sobre
sua carreira e o Concretismo, afirmando que esta fase foi fruto de um equívoco:

Não tinha sentido tentarmos fazer uma arte altamente técnica e


sofisticada num país subdesenvolvido. Deveríamos ter seguido nossa
arte botocuda e estaríamos hoje em melhor situação. Mas faltaram
orientadores, faltou lucidez (Idem).

O contexto histórico sempre influenciou Ivan Serpa. Ele pensava que a arte
deveria ser participante do processo social, que todas as pessoas deveriam ter
consciência dos problemas do mundo em que viviam. Desse modo, ele determinou
seu caminho pelo desvio, que para Frederico Moraes “deveria ser entendido
como um grito, um protesto”(COUTINHO, 1983). Procurando revelar a tensão
deste período, Serpa refletiu sobre a posição do artista em seu meio, utilizando os
elementos do objeto figurativo empregados no Expressionismo para comunicar
sua experiência pessoal. Elaborou então uma arte carregada de dramaticidade,
buscando uma forma particular de protesto.

165
Cabe lembrar que Ivan Serpa não gostava de ser definido como um artista
engajado, justamente por não concordar com o autoritarismo de esquerda
exercido pelo CPC-UNE, que direcionava e exigia uma arte popular, tolhendo
a liberdade de criação. Serpa detestava rótulos, devido ao seu próprio caráter
contestador. Não obstante esta divergência entre o artista e a instituição, Serpa
considerava sua arte consciente e participante, tão combativa quanto as entidades
que lutavam contra a Ditadura Militar.
Desse modo, as imagens da Fase Negra comunicam o momento histórico
muito melhor do que se estivessem presas a modelos direcionados a um
destinatário específico. Depois de concluída, a obra de arte adquire autonomia
em relação ao seu autor, perdendo ou ganhando significados em função dos
acontecimentos e das mudanças de mentalidades. Para Pierre Francastel (2011),
os elementos do objeto figurativo não existem apenas na memória do criador,
mas em todos aqueles que presentes ou afastados no tempo e no espaço conferem
sua realidade única.
Na Fase Negra, Ivan Serpa está no extremo oposto ao da pintura concretista.
Devido ao vigor do efeito de claro-escuro, Serpa revelou a profundidade da
visão humana, que tornam as imagens inquietantes, cheias de medo e revolta.
O artista submeteu a figura humana a uma análise implacável, mostrando em
vários dos seus desenhos de cabeças, o aspecto pungente, tormentoso, irracional
e soturno da condição humana. Para o crítico Antônio Bento (1964) não havia,
nesta época, equivalentes a Ivan Serpa na pintura brasileira. Para Bento, esta fase
era nitidamente expressionista e remetia ao imaginário fantástico dos mestres
antigos, “sugerindo o mundo estranho de certas gravuras de Rembrandt ou
algumas imagens da série dos “Caprichos” de Goya”.
Um exemplo significativo da Fase Negra é a obra Cabeça (Figura 1), de 1964.
Esta obra remete à posição do artista em seu ambiente. Pode-se aqui desenvolver
uma análise iconológica, segundo a teoria de níveis de significado de Erwin
Panofsky (2014), que define a função simbólica como mediadora que informa
diferentes modalidades de apreensão do real, quer opere por meio de signos
linguísticos, figuras mitológicas ou conceitos do conhecimento científico.
A teoria dos níveis de significado inicia-se com a análise pré-iconográfica, em
que se reconhece na obra de arte os motivos ou figuras de fácil identificação. Em
seguida a análise iconográfica mostra que a combinação de motivos deve conduzir
ao reconhecimentos dos temas. Por último, a análise iconológica remonta-se ao
conteúdo simbólico e à atitude da obra num determinado ambiente. A análise
iconológica é um método capaz de colocar a obra de arte como centro de sua
preocupação, sem deixar de referenciá-la em seu contexto histórico e cultural.
Desse modo, o artista é o manipulador de um instrumento capaz de testemunhar
e interpretar determinada época.

166
1. Ivan Serpa, Cabeça, 1964. (Óleo sobre tela, 100 x 115 cm;Por Coleção do Museu de Arte
Contemporânea da Universidade de São Paulo, MAC-USP).

A figura humana em Cabeça está deformada e possui o sentido visual através


das massas e volumes proporcionados pelo contraste de claro e escuro. A deformação
é a intervenção do sentimento na imagem da realidade. É a adaptação da imagem da
realidade exterior à imagem da realidade interior. Esta figura humana representada
em Cabeça, está repleta de tensão emocional e pictórica que remete à imagem de
um esqueleto humano que grita e sofre. Na análise iconográfica, esta obra sugere
uma temática introspectiva devido ao uso de cores escuras e sóbrias que estão
distribuídas na tela através de pinceladas fortes e livres.
A posição fococentral da tela é relativamente diagonal, pois a figura humana
está levemente inclinada, com seu ponto de tensão e convergência do olhar do
espectador na cabeça. Apesar da imagem ser intimista e contida, a figura parece
extrapolar os limites do quadro. A temática de dor e angústia remete ao ambiente
no qual a obra foi executada: momento de grande repressão no Brasil, a Guerra do
Vietnã, a miséria de Biafra. Todos estes temas compunham a preocupação social
de Ivan Serpa, que não se limitava apenas aos problemas locais, mas também
mundiais. Esta afirmação está presente num depoimento de Serpa em 1964:

A fase atual de minha pintura é um reflexo não só de nosso ambiente mas


do que se escuta falar, dos acontecimentos mundiais. Hoje não vivemos
mais independentes e sim em relação ao todo. Antigamente tínhamos
quase que um isolamento em relação aos problemas do mundo. Hoje ele
tornou-se muito pequeno. Somos uma parte de uma comunidade cujos
problemas não são mais de um só país, mas de todos. Dependemos um do
outro e isso nos torna obrigatoriamente comunicativos. Há atualmente
um intercâmbio muito grande entre os artistas, trocas de idéias e mesmo
esse sentido de arte nacional começa a perder aos poucos o seu sentido164.

164
IVAN SERPA e Domênico Lazzarini. Revista Menorah, n. 63, Rio de Janeiro, 1964.

167
Desse modo, existem duas preocupações na arte de Ivan Serpa, a busca de
uma arte total e abrangente e a necessidade interior de denunciar as injustiças
sociais. Na análise iconológica faz-se necessário desnudar o conteúdo estético
e formal da obra. Os caracteres estéticos e formais da obra Cabeça seguem os
parâmetros estilísticos do Expressionismo.
O Expressionismo surgiu em Dresden, Alemanha, (1904-1905) organizado
pelo grupo denominado Die Brücke (A Ponte). Entre os membros mais ilustres do
grupo estavam Ernest Ludwig-Kirchner (1880-1938), Karl Schimidt-Rottluf(1884),
Max Pechstein (1881-1955), Erich Heckel (1883-1970), Emile Nolde (1867-1956)
dentre outros. Die Brücke era uma denominação simbólica: a ponte entre o visível
e o invisível. Este grupo recebeu a denominação de “expressionistas” pelo poeta
e editor da revista Der Stürmer (A Tempestade), Herwarth Walden (DUBE, 1976).
Estes artistas jovens e rebeldes reagiram ao convencionalismo acadêmico e ao
excesso de realismo visual dos Impressionistas. O amor pela escultura da Arte Negra,
pelas máscaras da Oceania e pelos mestres primitivos alemães, levou-os a representar
os sentimentos puros, numa linguagem imediata, de violência primitivista, repudiando
os ideais acadêmicos de beleza. Procuravam exprimir a angústia e os dilemas do
homem moderno. Existiu no Expressionismo resíduos do Romantismo e do Gótico,
entendidos como condição profundamente existencial do ser humano, pois o artista
expressionista desejava dominar a realidade que o agredia.
Mais tarde os artistas do Die Brücke aliaram-se ao grupo Blaue Reiter
(Cavaleiro Azul), o segundo pólo do Expressionismo que existiu em Munique.
Com a orientação de Vassily Kandinsky (1866-1944) e Alexei von Jawlensky (1867-
1941), este segmento apresentou aspectos rebeldes menos aparentes. Buscando
uma composição plástica e musical, as pesquisas de Kandinsky levaram-no à
pintura abstrata. Outros membros do Blaue Reiter permaneceram figurativos,
como Jawlensky, August Macke (1887-1914), Franz Marc (1880-1916) e Oscar
Kokoschka (1886) (DUBE, 1976).
Tendência permanente da história da arte, o expressionismo manifesta-se em
épocas de crise: religiosa, econômica, cultural ou política. Surgiu no período que
antecedeu à Primeira Guerra Mundial e com o advento do regime nazista, estas
manifestações artísticas foram sufocadas, pois Hitler considerava os artistas deste
movimento degenerados e decadentes. Terminada a Segunda Guerra Mundial,
as tendências expressionistas reaparecem com caracteres nitidamente barrocos,
pela inquietante recusa ao equilíbrio e à imparcialidade clássica.
O primeiro parâmetro dos expressionistas é a deformação sistemática
da figura. A imagem pictórica é carregada de dramaticidade, o que modifica e
altera a realidade. O conhecimento e a interpretação do mundo é feita a partir de
sentimentos: a dúvida, a crise espiritual, o pessimismo em relação aos propósitos
éticos, sociais e políticos. A representação das imagens interiores é privilegiada.
Em virtude das deformações, criam uma pintura alheia às regras convencionais
de equilíbrio na composição, regularidade nas formas e harmonia nas cores.
Sendo assim, uma arte de manifestações veementes, carregada de
subjetividade e dramaticidade, torna-se compreensível que o artista sinta-se
limitado em suas necessidades expressivas pela realidade visual das formas e das
cores, que não podem corresponder à intensidade de seus sentimentos. Na obra
Cabeça, Ivan Serpa procurou transmitir os sentimentos contraditórios da época,
a angústia e o medo, realçando a deformação da figura. Nesta obra não existe a
busca da beleza convencional. Segundo Ivan Serpa, “havia apenas a busca pura

168
e simples de um estado de alma. Era a agonia, a frustração e a tragédia de todo
um povo, ao qual eu pertencia”(SANTARRITA, 1966).
O segundo parâmetro consiste na originalidade técnica. Em virtude da
predominância de sentimentos intensos que deviam exprimir espontaneidade
e autenticidade, o artista criou uma técnica própria, individual e inconfundível.
Esta técnica não está submetida a preceitos teóricos tradicionais. As pinceladas
bruscas utilizadas em Cabeça são impetuosas e convulsivas. Se Ivan Serpa fosse
refletir sobre o modo de dar a pincelada, talvez ela perdesse a impulsividade e
o dramático vigor expressivo. Segundo Lygia Serpa, na “Fase Negra” Ivan Serpa
chegava a produzir um quadro por dia, sob efeito da emoção165. Em outros
momentos demorava mais, como na fase Op-Erótica (1967-1971) em que desenhava
e terminava a execução em três meses.
O terceiro parâmetro é a sensibilidade aos fatos sociais. Os artistas
expressionistas preocuparam-se com ideais humanitários, fizeram críticas
ao regime capitalista, à exploração do homem pelo homem, à prostituição, à
infância e velhice desamparadas, hipocrisias e injustiças sociais. Para Cavalcanti,
o expressionismo é considerado uma arte de “denúncias contra a sociedade
moderna” e desse modo o artista torna-se “o intérprete do mal do nosso século:
a angústia” (1970, p.312).
No Expressionismo existiu a predominância de valores emocionais sobre os
valores intelectuais. Por ser uma tendência permanente, pode manifestar-se em
diversas épocas, escolas ou movimentos artísticos através de suas características
básicas: liberdade técnica, deformação da imagem, exasperação da cor, recusa
do realismo visual, natureza simbólica e dramaticidade. O que importava aos
expressionistas não era a beleza ou harmonia da obra e sim a força expressiva e
dramática que mostrasse a decadência da sociedade.
Para Anatol Rosenfeld (2017), o Expressionismo foi um movimento de
tendência idealista, dirigido contra o positivismo e as concepções naturalistas
decorrentes do cientificismo da segunda metade do século XIX. Através de uma
visão subjetiva, o artista expressionista projetou suas intuições e visões íntimas,
sem mediação de impressões exteriores. Manipularam fortemente os elementos
da realidade, às vezes distorcidos, conforme as necessidades expressivas de uma
imaginação que opera sob forte pressão emocional.
Estas visões oníricas são procedentes de uma consciência em situação
extrema, em estado de angústia, desespero ou exaltação profética que são
projetadas e propostas como realidade essencial. Esta realidade foi reduzida às
estruturas básicas do ser humano, representadas através de arquétipos, portadores
de visões apocalípticas ou utópicas, num contexto histórico que é julgado o ponto
terminal de uma época de corrupção e ocaso. Assim, este movimento almejava a
reconstrução do mundo a partir da intimidade individual. Além da valorização da
intuição e do inconsciente em detrimento dos momentos de organização racional,
existe também no expressionismo a saudade romântica do primitivo e elementar
em oposição à mecanização e à tecnica do mundo industrial.
Na obra Cabeça a visão onírica manifesta-se através de profunda melancolia
presente na composição do espectro. As tonalidades baixas e ardentes, o contorno
sombrio e impreciso permite que a forma submeta-se à emoção com o cuidado

Depoimento escrito de Lygia Serpa. Rio de Janeiro, 19 de novembro de 1995. Entrevistadora:


165

Luciane Páscoa.

169
artesanal que impede a desordem pictórica. Os problemas de vida e morte, a solidão,
as relações entre o irreal de um pesadelo e o real de uma natureza ameaçadora,
reações éticas e políticas, fazem parte das motivações desagregadoras de Serpa.
Estas motivações são expressas numa harmonia lúgubre e beleza soturna.
Em Cabeça, pode-se perceber os caracteres barrocos que estão presentes em
toda a Fase Negra. A evolução do estilo linear para o pictórico acontece na medida
em que a linha é diluída na composição sem estabelecer o contorno definido da
figura. A imagem é oscilante por não apresentar limites definidos. A visão em
massas ocorre quando a atenção deixa de se concentrar nas margens, no momento
em que a linha é desvalorizada como elemento delimitador. Neste quadro, luzes e
sombras transformam-se em elementos independentes que buscam uma unidade
através do movimento que ultrapassa o conjunto. O efeito pictórico verifica-se
quando a iluminação não está mais a serviço da nitidez dos objetos, quando as
sombras não mais aderem às formas.
A silhueta da figura humana aqui representada não coincide com a forma
real, devido à deformação. O estilo pictórico libertou-se da representação do objeto
tal qual ele é. As manchas se justapõem sem qualquer relação. A figura do quadro
permanece indeterminada e não se cristaliza em linhas e superfícies. Percebe-se
aqui a justaposição de tons claros e escuros que proporcionam o contraste e a
ideia de volume. No estilo linear observado nas obras do período concretista de
Ivan Serpa, os objetos apresentavam-se de maneira clara, sólida e palpável. Na
obra Cabeça a aparência é alternante, relaciona-se com o contexto e apresenta
texturas variadas. O efeito ilusório é intensificado através das pinceladas livres
que convidam à contemplação. A simples presença de linhas não define o caráter
do estilo linear, porém a força expressiva destas linhas produz o efeito pictórico.
Nesta pintura, a figura humana assume grande dimensão, de caráter fantástico,
inquisitorial. A figura divide-se nas seguintes partes: cabeça, tronco superior,
membros superiores. Na cabeça convergem os pontos de tensão, que depois são
direcionados para o tronco. Segmentos isolados de linhas definem a forma dos olhos,
da boca, do nariz e dos braços. Por vezes, o traço é completamente interrompido,
sendo que o contorno da fronte permite que da forma possa emergir uma silhueta.
As sombras são exploradas em contraste com a luz. No primeiro quadrante superior
a sombra é total, desvanecendo na periferia do quadro e desaparecendo em algumas
partes centrais, como em áreas da face, dos braços e do tórax.
A desvalorização dos contornos traz consigo a desvalorização do plano e
os olhos relacionam os objetos conforme sejam eles anteriores ou posteriores.
Outra categoria de análise presente é a ênfase na profundidade, que é sugerida
pelos efeitos de iluminação e pinceladas livres, que proporcionam a autonomia
da figura mesmo que deformada. A figura emerge de um fundo negro, com o
qual se relaciona através dos efeitos de linhas expressivas e texturas distribuídas
entre figura (primeiro plano) e fundo (segundo plano), causando a ilusão
de profundidade. A beleza da superfície plana é substituída pela beleza da
profundidade que está sempre vinculada a uma impressão de movimento.
A profundidade também é sugerida através da disposição da figura no
quadro, cujo eixo fococentral é diagonal. A representação da profundidade através
da composição em diagonal produz movimento, pois esta disposição evita que o
quadro seja observado de uma vista frontal rígida como se a figura fosse orientada
numa só direção. O efeito barroco de profundidade está aliado à multiplicidade
de ângulos de visão, criando a ilusão de espaço. Encontra-se nesta obra o estilo

170
da forma aberta ou atectônica. Aqui, a figura pretende extrapolar os limites do
quadro, mesmo que subsista uma limitação velada.
Neste quadro, Serpa procurou evitar que a composição fosse concebida
para um plano determinado. Pretende-se que o conjunto sugira a impressão de
representar algo mais que um fragmento extraído da realidade. O efeito diagonal
da figura (direção principal do barroco) representa um abalo para o aspecto
tectônico do quadro. A intenção de buscar o ilimitado abandonou os aspectos puros
da frontalidade e do perfil. A figura humana não segue os aspectos tradicionais
da frontalidade pois a composição diagonal permite a ilusão de que o elemento
principal não obedece os limites do quadro.
A forma aberta de representação permite que o quadro seja visto como um
espetáculo efêmero, numa realidade intensional. Existe uma simetria instável
no quadro, pois as duas metades não são iguais e as formas são irregulares. É
perfeitamente possível a ocorrência de ordenações simétricas, mas o quadro
em si não está estruturado simetricamente. Há um equílíbrio oscilante, pois na
categoria atectônica as cores e os efeitos de luz e sombra são distribuídos de modo
a ressaltar a tensão.
Em Cabeça, a iluminação recai apenas sobre algumas partes da figura,
no intuito de sugerir uma tensão vibrante. Os detalhes do quadro apresentam
diferentes aspectos de saturação. O conteúdo do quadro não está adaptado aos
seus limites, pois a figura está recortada na parte inferior da tela, excedendo à
moldura. No estilo atectônico decresce o interesse pelo que é construído e fechado
em si mesmo. O elemento formal significativo não está na estrutura, mas no
impulso que movimenta e faz fluir a rigidez das formas.
No sistema da representação clássica, cada uma das partes mantém
autonomia, como foi visto na análise da obra Formas. Na composição barroca, a
unidade é obtida pela união das partes em um único motivo, ou pela subordinação
de todos os elementos a um só elemento. Na obra Cabeça as partes pertencem
ao conjunto formal, não estão dissociadas da composição. A unidade múltipla
pertence a este sistema, pois cada detalhe não pode ser observado isoladamente.
A ênfase nos detalhes deve ser percebida dentro do conjunto. A figura principal
mescla-se indissoluvelmente ao movimento do fundo do quadro, mesmo que
seja apenas através do jogo de tons claros e escuros. A figura completa-se através
dos demais elementos da composição e quanto mais necessária parecer esta
complementação, tanto mais perfeita será a unidade desta obra. A iluminação e
as cores também são responsáveis pela unidade.
A oposição entre a clareza relativa e absoluta da obra trata-se da representação
dos objetos tal como se apresentam, vistos como um todo. Composição, luz e cor
já não se encontram a serviço da forma, mas possuem autonomia. Nesta obra, a
clareza absoluta foi parcialmente abandonada somente para aumentar o efeito
da visão. A clareza absoluta torna-se relativa, pois a imagem não coincide com o
grau máximo de nitidez. O interesse pela forma claramente moldada cede lugar
ao interesse pela imagem ilimitada e dinâmica.
Por esta razão, Serpa buscou o caráter expressivo da imagem procurando
evitar que a silhueta de formas claras fosse o elemento transmissor da impressão.
O estilo obscuro do barroco procura dificultar a tarefa a ser realizada pelo olhar,
propondo ao espectador o prazer de solucionar a obra. A imagem é obscurecida
como recurso de intensificação do prazer, ao estimular o espectador através da
percepção. Os elementos podem ser apreciados através da iluminação relativa da

171
figura, pois a obscuridade convida o espectador a refletir. A luz não é empregada
exclusivamente para delimitar a forma: há pontos em que ela passa sobre as
formas, realçando também elementos secundários (o fundo).
O efeito de clareza relativa pode ser notado no emprego das cores no
quadro. As cores utilizadas em Cabeça são o preto, o verde escuro, o ocre e o
branco. Aqui, Serpa utilizou a mistura das cores, de modo diferente das obras
do período concretista, no qual utilizava as cores puras. O verde é misturado ao
preto para obter a sombra. A verdadeira sombra deveria ser obtida através da
mistura do preto com a cor desejada. O ocre também é misturado ao verde e ao
preto, apenas o branco permanece puro nas áreas mais iluminadas. Na figura
central, o branco é distribuído em algumas partes da face e em outras partes do
corpo, sempre com a intenção de obter os efeitos de contraste. O preto também
é utilizado separadamente, principalmente nas pinceladas livres, característica
formal do Expressionismo.
As cores estabelecem uma relação com o conjunto, num movimento unificante
que se altera em vários pontos do quadro. Serpa sentiu-se atraído pela eliminação
da cor. No lugar da coloração uniforme ele introduziu a indeterminação parcial
da cor, que não se apresenta definida em todos os pontos, mais vai se formando
aos poucos. Desse modo, as cores passam a integrar um sistema de relações que
transcendem os objetos. A indeterminação parcial das cores foi fundamental
para transmitir o sentimento de terror e angústia. A preferência por tonalidades
baixas também confirma esta intenção.
A supremacia do preto é uma constante nas obras desta fase. O preto e o branco
são considerados “não -cores” por Kandinsky e por Goethe. O preto é desprovido de
ressonância, simboliza o silêncio eterno sem esperança num futuro. Para Kandinsky
(2015), o preto “na música corresponde à pausa que marca um fim completo”. O
preto é como uma fogueira extinta, consumida, como o silêncio de um corpo após
a morte. O branco também simboliza o silêncio absoluto, só que este silêncio não
significa o fim, significa o começo. O branco é o adereço da alegria e da pureza e
o preto é o do luto, da aflição profunda, o símbolo da morte. O verde é uma cor
fria, o ponto ideal do equilíbrio. Por resultar da mistura do amarelo e do azul, os
movimentos concêntricos e excêntricos se anulam proporcionando o repouso.
A passividade é a característica dominante do verde absoluto. Esta
passividade é envolvida pela autossatisfação, pelo contentamento. Nos tons mais
baixos, quando o azul ou o preto predominam, o verde torna-se sério e solene,
convidando à reflexão. Seja claro ou escuro, o verde nunca perde seu caráter
primordial de indiferença e imobilidade. O ocre é uma cor terrosa, derivada do
laranja, que é o elemento ativo da mistura do amarelo e do vermelho. O ocre é
uma cor obscurecida, mas contém energia, força e contentamento. O emprego
desta cor produz a moderação e seriedade.
A utilização destas cores produz sensações contraditórias e reflexivas:
relações entre vida e morte, pureza e mácula, equilíbrio e instabilidade,
moderação e revolta, passividade e movimento. Estas cores e sentimentos são
representados em telas de grandes dimensões que apresentam as mesmas
figuras com expressões diversas, quase sempre isoladas e deformadas pelo
desespero. Nesta fase, Ivan Serpa pintou movido pelos sentimentos, deixando
que a imagem psíquica superasse a imagem ótica e visual, abandonando-se a
violentos impulsos do instinto.

172
As motivações exteriores que levaram Serpa a produzir a Fase Negra
encontram-se no contexto obscuro daquele período. Pode-se notar tal atitude de
preocupação social num depoimento contundente sobre um acontecimento do
cotidiano de Serpa:

Na vida todos temos uma fase negra, ninguém escapa. Aqueles momentos
de angústia e sufocação, de não acreditar mais na vida. Mesmo assim
a gente tem esperança, pois mesmo quando a gente está na fossa,
imagina um dia poder sair dela. Quando pensei em fazer minha fase
negra, havia visto muita coisa sobre campos de concentração, lido muito,
tinha milhares de fotografias. Uma noite, voltando para casa, encontrei
um amigo que trabalhava na polícia e que estava fazendo uma ronda
num desses carrões. Então, tive a idéia de pedir para ir junto e ver o
que estavam fazendo. Fui. -Estamos pegando malandro - ele havia me
dito. Então eu vi a coisa, a batida: pegar o sujeito, jogar lá prá dentro, o
sujeito xinga, diz que não tem culpa, aquela coisa toda. Eu vi a reação
do indivíduo, na briga, às vezes tem que se dar uma bolacha na cara e
tal. Então aquilo me serviu para tirar conclusões, para fazer as figuras
horrorosas que fiz e que as pessoas diziam: - mas tem a cara torta assim?-
Se você levar um soco na cara, como é que fica seu rosto? A fase negra
foi isso. Era para dar um soco na cara de quem não quer ver a realidade
das coisas e não para ficar perguntando se está certo ou errado. Este era
meu pensamento” (GULLAR, 1972).

Outra obra da Fase Negra que merece ser analisada é A Grande Cabeça (Figura
2), de 1964. Esta pintura de grandes dimensões (200x180 cm) foi executada na
técnica de óleo sobre tela. Pode-se notar nesta obra as características formais do
expressionismo, além das características gerais da Fase Negra: dramaticidade,
deformação da figura, tonalidades baixas. A particularidade desta obra consiste
na monumentalidade da figura humana. Na obra Cabeça, a figura humana foi
representada com cabeça e corpo, numa proporção equilibrada. Já em A Grande
Cabeça, Serpa privilegiou apenas a cabeça que adquiriu grandes proporções, que
exprime dor e contrição.
Cabe lembrar, que Serpa executou este quadro numa sessão, exatamente
no dia 20 de setembro de 1964. Isto confere à obra grande espontaneidade e
habilidade. O impacto provocado por esta pintura monumental é muito maior
quando a tela é observada presencialmente. A categoria pictórica está presente
através das massas de cores terrosas, sóbrias, além de pinceladas soltas.
A perspectiva pictórica reúne os elementos formais, através de volumes e
contornos indefinidos. Pode-se perceber nitidamente um rosto, com olhos, nariz,
boca e delimitações do queixo. A linha é descontínua e reforça o contraste de
claro e escuro. A autonomia da figura é realçada pela sensação de profundidade
sugerida pelos efeitos luminosos.
A cabeça toma quase todo o espaço do quadro, e dilui-se com o fundo no
quadrante inferior direito. A mistura de figura e fundo faz parte do jogo de
obscurecimento barroco. O estilo atêctonico permite que a figura ultrapasse os
limites do quadro. A ênfase é conferida à face da figura, que foi concebida na
direção diagonal. O eixo fococentral é diagonal e passa pelo olho direito da figura.
Existe também a intenção de movimento, de dinâmica ilimitada, que
abala a estrutura da frontalidade pura. Os detalhes do quadro não podem ser

173
dissociados do conjunto formal, pois a união das partes confere unidade à obra.
Esta pintura não pode ser observada por partes isoladas, pois parecerá incompleta.
A obscuridade apresenta a possibilidade de observação da cabeça por vários
ângulos. A imagem não coincide com seu grau máximo de nitidez, fato que instiga
a percepção visual do espectador.
Há uma estrutura básica nesta pintura de Serpa. As cores e as formas
encontram-se em equilíbrio assimétrico, o ritmo é obtido com o auxílio de linhas
que se alternam. As cores utilizadas são: o preto, o verde, o ocre, o marrom e o
branco. Novamente as mesmas tonalidades aplicadas na obra Cabeça. O preto
domina a região periférica do quadro, mas surge em pinceladas no decorrer da
composição. O ocre domina a região da face e parte do quadrante inferior direito.

2. Ivan Serpa, A grande cabeça, 1964. (Óleo sobre tela, 200 x 180cm; Por Coleção do Museu de
Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, MAC-USP).

O branco é distribuído em algumas pinceladas nas maçãs do rosto, nos dentes,


na boca e no queixo, para produzir contraste e iluminação, manifestando-se como
acento isolado. O verde e o marron estão misturados ao preto, proporcionando
sobriedade e melancolia ao quadro. Serpa distribuiu as cores com irregularidade,
intensificando os pontos de iluminação, concedendo determinada função a cada
uma dentro do conjunto.
A ênfase na deformação, na monstruosidade da figura, na disformidade,
permite efetuar uma relação entre o barroco e outras épocas produtoras de
monstros: Baixa Idade Média, Romantismo e Expressionismo. Nestes períodos,
os monstros representaram além do sobrenatural e do fantástico, o maravilhoso.
Para Calabrese (1999, p.106), a etimologia da palavra monstro esclarece dois
significados: Monstrum - a espetacularidade, proveniente do fato de que o monstro
apresenta-se para além de uma regra; Monitum - o mistério, causado pelo fato de
sua existência fazer pensar numa advertência oculta da natureza.
Todos os protótipos de monstros são concomitantemente maravilhas e
princípios enigmáticos, que desafiam dois campos de especulação que constituem

174
a experiência humana: o domínio da objetividade (o mundo exterior) e da
subjetividade (o mundo espiritual, interior). Os monstros desafiam a regularidade
da natureza e a inteligência humana.
O princípio fundador da teratologia, ou ciência dos monstros, é o estudo da
irregularidade, da desmesura. Os monstros são sempre excedentes ou excessivos
em grandeza ou pequenez. Imperfeito e monstruoso é aquilo que ultrapassa os
valores medianos de uma sociedade. A conformidade pode ser representada
através da simetria, de cores puras, linhas contínuas, ordem e clareza. A
irregularidade é a oposição da conformidade, e pode ser representada através
da assimetria, da obscuridade, da deformação. Nas obras da Fase Negra, Ivan
Serpa expressou a monstruosidade e as contradições de uma época de crise.
Estas manifestações de revolta caracterizaram a década de 60 como um
momento de crise política e cultural. Ivan Serpa estava sempre em contato com
os acontecimentos e deixou-se influenciar por todos estes problemas, procurando
representar a realidade da época em que estava vivendo. Num depoimento sobre a
Fase Negra, Serpa diz que procurou dar sentido à tragédia humana: “com a ameaça
da bomba atômica, achei que os homens estavam realmente ameaçados de serem
transformados em monstros com pernas saindo da cabeça e braços do pescoço”166.
As obras da Fase Negra causaram grande polêmica no meio-artístico. Os
críticos de arte foram surpreendidos pela mudança estética de Serpa, que na
Fase Negra desenvolveu um trabalho oposto ao do período concretista que foi
marcado pelo intelecto, ordem e clareza dos valores formais e culturais. A exibição
provocou impacto na crítica e descontentamento entre os que tinham nos seus
quadros abstracionistas uma excelente mercadoria.
Ao visitar a primeira exposição de obras figurativas da Fase Negra na Galeria
Joaquim Tenreiro no Rio de Janeiro, Ferreira Gullar fez este comentário acerca
da mudança radical de Serpa:

Fiquei me lembrando do Serpa concretista de 1951, 52, concretista


ortodoxo. Quem diria que, por baixo daqueles quadradinhos dormissem
tantos monstros e tantos sentimentos? De fato confirmo uma tese: os
artistas têm nada ou tudo para dizer. A arte pode dizer qualquer coisa,
porque o artista, homem sujeito a contradições, traz em si os extremos
e o que fica entre eles. Eis porque é bobagem julgá-los pela coerência
da obra (GULLAR, 1963).

Os quadros expostos na Galeria Tenreiro não se prestaram aos padrões


decorativos da época, nem pelo tema, nem pelas dimensões. Isto foi interpretado
como um ato de coragem de Serpa, que se mostrou independente e indiferente
às exigências do mercado de arte, que não ofereceu possibilidades de venda. A
respeito disto, Serpa apresentou seus argumentos:

Essa pintura que se faz hoje no Brasil para agradar supostos compradores
não é mais pintura, é confeito. Estou saturado de “bonito”, de quadro
confeitado, que não fala da realidade em que todos vivemos. O Brasil é
um vulcão e não adianta querer ignorar isso167.
166
IVAN SERPA no MIS: de Bernanos e Graciliano Ramos guardo recordações. Correio da Manhã.
Rio de Janeiro, 24 de setembro de 1971.
167
IVAN SERPA Expõe as Razões de sua Fase Figurativista. O Estado de São Paulo, São Paulo, 27
de dezembro de 1963, p. 7.

175
Este depoimento mostra que Serpa não estava disposto a fazer concessões
nem ao mercado de arte nem aos colecionadores, além da preocupação em
retratar o período conturbado em que a sociedade vivia e que muitos não queriam
ver. Para Serpa, o artista deveria estar ligado ao presente, deveria trabalhar
como um carpinteiro ou um pedreiro para obter o sustento. Para ele, a visão do
artista boêmio e isolado do mundo era velha, ultrapassada e a arte deveria ser
considerada ofício.
Neste período, Ivan Serpa mostrou-se decepcionado com as instituições
patrocinadoras da arte, como o Salão Nacional de Arte Moderna, e os respectivos
prêmios:

Na arte não cabem oportunismos, de que estão cheios os Salões e as


Galerias. Pessoas que nem sabem pintar, mal dominam o métier
já disputam prêmios e vendem quadros a preços astronômicos. A
irresponsabilidade grassa em todo o ambiente artístico hoje, envolvendo
mesmo artistas de talento. Outro dia num leilão beneficente, os quadros
de artistas profissionais foram superados nos preços pelas improvisações
dos mocinhos filhos de ministros. Ouvi depois, um dos arrematadores
ao retirar os quadros que comprara, exclamar: - Que vou fazer com essa
droga? - É que ele comprou o quadro apenas para agradar ao pai do
pintor ilustre. Por isso é que para mim, os Salões e os prêmios perderam,
hoje, qualquer significado168.

Nesta ocasião, Ivan Serpa declarou estar ciente de que em comparação


com suas exposições do período concretista e informalista, a nova tendência
expressionista apresentou um resultado negativo em relação às vendas:

Mas não esperava outra coisa. Soube que certos compradores,


decepcionados, comentaram minha exposição dizendo: - Isso que
ele está pintando não vende. Ninguém vai botar monstros em suas
salas de visita. Quando ele vir que ninguém compra, passará a pintar
coisas mais agradáveis...- Mas estão enganados. Não quero ficar rico.
Viverei de meu emprego e continuarei a pintar o que considero certo,
gostem ou não. E mais: não pinto para salas de visita. Agora trabalho
em quadros grandes visando expô-los em Museus, para o público ver,
não para alguns colecionadores169.

É certo que no decorrer de sua carreira, Ivan Serpa nunca abriu concessões
ao mercado de arte, que para ele estava cheio de conchavos. Sempre viveu do
seu trabalho como professor no Museu de Arte Moderna e como Restaurador
na Biblioteca Nacional, contando também com a ajuda financeira de sua esposa
Lygia Serpa, que sempre trabalhou como bibliotecária em várias instituições170.
A exposição na Galeria Tenreiro foi significativa para a reflexão do meio
artístico sobre a crise da vanguarda e sobre a hegemonia da arte de Serpa, que
indicou os novos rumos da pintura através do retorno à figuração. O crítico de
168
IVAN SERPA Expõe as Razões de sua Fase Figurativista. O Estado de São Paulo, São Paulo, 27
de dezembro de 1963, p. 7.
169
Idem.
170
Lygia Serpa trabalhou como bibliotecária na Biblioteca Nacional, na Biblioteca Castro Alves e
na Biblioteca Infantil Carlos Alberto, onde organizou a parte técnica e criou um curso de arte e
teatro infantil.. In: Depoimento escrito de Lygia Serpa. Op. Cit, 1995.

176
arte Jayme Maurício (1964), refletiu sobre o impacto da Fase Negra, enfatizando
que era uma pintura de poucos consumidores, pois além de ser desprovida de
possibilidades decorativistas, seria avessa à própria convivência cotidiana tal a
sua intensidade e o apelo que provocaria nas consciências sobre o lado sombrio
da condição humana.
Entre o público que esteve presente na noite de inauguração desta exposição,
houve quem achasse a temática de Serpa discutível, quem dissesse que “seus
monstros eram capitalistas, burgueses”(MENEZES, 1963), houve quem lembrasse
de Picasso e do humor de Marc Chagall. Segundo Lygia Serpa, uma moça que
observava um dos quadros da Fase Negra disse à Serpa: “este quadro é uma
bofetada na sociedade burguesa”171. Só não houve quem colocasse em discussão
o valor do artista e quem permanecesse indiferente à sua arte.
A excelente qualidade destes quadros foram percebidas depois do impacto
inicial, tanto que posteriormente muitas destas obras foram adquiridas por
Museus e colecionadores, além de que dois destes quadros foram adquiridos
pelo diretor artístico do Museu Guggenheim de Nova York (BENTO, 1964), que
estava de passagem pelo Rio de Janeiro. Devido à originalidade, à força emocional
e plástica é que uma imagem da Fase Negra foi incluída no livro A Chamber of
Horrors de John Hadfield (1965). A pintura Figura IV, de 1964, da coleção da família
do artista, ilustra a poesia Meeting with a Double de George D. Painter. Esta obra
apresenta-se ao lado de obras de artistas como Magritte, Dali, Klee, Munch e Bosch,
confirmando o prestígio e o reconhecimento internacional de Serpa.
Para Clarival Valladares, a fase expressionista de Serpa efetuou o retorno
à figuração, mas com crítica e julgamento. Não poderia ser o modelo de ateliê, a
figura exterior:

Teria de ser a criatura sob julgamento, com todo o pejo da história e da


destinação. Dessa reflexão da imagem do homem assim como é vista
e julgada no mundo interior do artista, no seu quadro psíquico, até
a tela sob a carga do claro-escuro e de mais uma tinta de toque, em
toda veemência do diálogo com a adversidade, chega-se à pintura de
fantasmas de Serpa (VALLADARES, 1965).

A Fase Negra contém excepcional carga histórica que para o crítico pode ser
“remota e recente, desgraçadamente eternizada” (VALLADARES, 1965).
A pintura expressionista de Ivan Serpa teve um caráter participante, pois
naquele momento a arte não teria razão de ser se não expressasse a realidade. A
Fase Negra foi uma arte de denúncia contundente e de testemunho de um período
caótico onde os fantasmas e monstros do medo, da repressão, da fome, da guerra
e dos mártires torturados imperavam.

Referências

BENTO, Antônio. Desenhos expressionistas de Ivan Serpa. D.C., s.l., 30 de setembro


de 1964.

CALABRESE, Omar. A idade neobarroca. 2. ed. Lisboa: Edições 70, 1999.


171
Depoimento escrito de Lygia Serpa. Op. Cit. 1995.

177
CAVALCANTI, Carlos. História das artes. v. 2. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1970.

COUTINHO, Eduardo. Dez Anos sem Ivan Serpa: o experimentador das cores e das
fomas. O Globo, Rio de Janeiro, 28 de Abril de 1983.

DUBE, Wolf Dieter. O expressionismo. Trad. Ana Isabel Mendoza y Arruda. São
Paulo: Verbo/EDUSP, 1976.

FRANCASTEL, Pierre. A realidade figurativa. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011.

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Janeiro, setembro de 1963.

GULLAR, Ferreira. Entrevista com Ivan Serpa. Revista civilização brasileira, Rio
de Janeiro, n. 2, setembro de 1972.

GULLAR, Ferreira. Conversa com Ivan Serpa. Arquitetura, n. 19. Rio de Janeiro, 1964.

HADFIELD, John. A chamber of horrors. Lodon: Studio Vista, 1965.

KANDINSKY,Wassily. Do espiritual na arte. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2015.

LYOTARD, Jean-François. La condition postmoderne. Paris: Les Editions de Minuit, 1979.

LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. (Tradução de Ricardo Corrêa Barbosa)


Rio de Janeiro: José Olympio ed., 1988.

MAURÍCIO, Jayme. Serpa - 64: Neoexpressionismo ou Nova Figuração? Correio da


manhã, Rio de Janeiro, 19 de setembro de 1964.

MENEZES, W. Gente da cidade. O jornal. Rio de Janeiro, 18 de agosto de 1963, 3o.


Caderno.

PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014.

ROSENFELD, Anatol. Teatro Alemão. São Paulo: Perspectiva, 2017.

SANTARRITA, M. Ivan Serpa. Jornal da Bahia. Salvador, 31 de julho e 1 de agosto


de 1966.

SERPA, Ivan e LAZZARINI, Domênico. Revista Menorah, n. 63, Rio de Janeiro, 1964.

SERPA, Ivan. Expõe as razões de sua fase figurativista. O estado de São Paulo, São
Paulo, 27 de dezembro de 1963.

SERPA, Ivan. No MIS: de Bernanos e Graciliano Ramos guardo recordações. Correio


da manhã. Rio de Janeiro, 24 de setembro de 1971.

178
SERPA, Lygia. Depoimento escrito de Lygia Serpa. Rio de Janeiro, 19 de novembro
de 1995.

VALLADARES, Clarival P. Fantasmas de Ivan Serpa. Exposição Comemorativa do


IV Centenário, MAM-RJ, Rio de Janeiro, 1965. (Catálogo de exposição).

VATTIMO, Gianni; ROVATTI, Pier Aldo. Il pensiero debole. Milano: Feltrinelli, 1983.

179
Imagens da História

Marcos Frederico Krüger Aleixo


Publicado em 1976, quinze anos após a estreia de seu autor na poesia, o livro
Imagem, de Elson Farias, apresenta aspectos relevantes para a literatura regional e, de
forma mais abrangente, para a história amazônica. Tais aspectos, tanto os estéticos,
quanto os culturais, valem a pena ser considerados, o que procederemos neste estudo.
Antes de adentrarmos o lirismo de Imagem, convém considerar a posição
de Elson Farias no quadro da literatura produzida no Amazonas. Nesse aspecto,
registramos sua participação no Clube da Madrugada, do qual foi um dos poetas
mais prolíficos e de qualidade. Sua contribuição deu-se principalmente numa
produção telúrica, o que lhe poderia valer a pecha de “regionalista”, termo que em
si mesmo traz uma conotação negativa. Mas tal não é o caso do poeta de Imagem,
que transcende esse valor, que, no nosso entendimento, só se torna pejorativo
se apresentar os aspectos de um determinado locus com exotismo. Mas tal não é
o caso, repetimos.
Na verdade, Elson Farias é, como o definiu outro membro do Clube da
Madrugada, Alencar e Silva, “um poeta das águas e da humanidade ribeirinha”172.
Como precisou ainda Tenório Telles, “seu imaginário, bem como sua representação
do mundo, sua consciência, foram permeados por esse universo regional, vívido
e silencioso, sem que isso signifique alheamento do autor”173. Isso, no conjunto
de sua obra, pois em Imagem a paisagem natural e cabocla cede lugar à História
de uma região periférica e, por isso mesmo, desconhecida.

Divide-se Imagem em sete partes e nelas se percorre a História do Amazonas,


de seus primórdios pré-coloniais até a abolição da escravatura no Estado, o que
ocorreu antes mesmo do 13 de maio brasileiro.
A primeira parte (“Inaugural”) compõe-se de um só poema, que se intitula
“Louvação do Rio-Livre”, em que o eu lírico começa expondo a “intenção e motivo
do canto”. Nessa parte, situam-se o espaço e o tempo em que se realizam as
imagens (a Imagem) da terra. No início, “o rio negro tranquilo / existia lento e
liso”174; mas veio o homem, que escreve “sua história / nas tintas do mito, / nos
timbres do grito”175. O mito se referencia às populações indígenas, primitivas
povoadoras do vale; o grito se traduz nas lutas desenroladas ao longo da História.
Esse canto “inaugural” sintetiza os motivos que serão desenvolvidos ao longo
do livro. Registremos, ainda, que Imagem, embora desenvolva assuntos antes
poetizados, antecipa outros de semelhante teor, desenvolvidos principalmente
em Romanceiro, livro de 1985.
A segunda parte se intitula “Entrada” e nela o eu lírico poetiza o início da
colonização em dois textos: “América” e “Os espanhóis/portugueses”. Argutamente,
o poeta dividiu a responsabilidade pela colonização entre as duas nações, entre
homens “originários do mesmo ramo / como dois rios de águas iguais”176. Bastante
lírica, sem furores, é essa imagem, que insere os povos que colonizaram a região
numa imagem telúrica.
172
ALENCAR E SILVA, Quadros da moderna poesia amazonense. A definição do poeta dá título ao
estudo procedido sobre a sua poesia.
173
TELLES, Tenório. A poesia como expressão do telúrico, p. 110.
174
FARIAS, E. Imagem, “Louvação do rio-livre, 5”, p. 23.
175
Idem, p. 21.
176
Idem, p. 35.

181
Segue-se, como terceiro segmento, a “Primeira imagem”, composta por um
único poema: o “Vilancete dos três rios”. Também aqui, a percepção do poeta foi
capaz de criar um texto admirável, se considerado em si mesmo ou na totalidade
do livro. É que a colonização começou no século XVI, época em que o vilancete
era forma fixa bastante praticada, haja vista os inúmeros exemplos encontráveis
na lírica de Luís de Camões. E a sua execução, tendo como motivo os três rios
principais – o Negro, o Solimões e o Amazonas –, simboliza, em termos históricos,
o percurso feito pelos colonizadores para tomar posse da região.
Partindo do mote “Um remanso de panema / poesia nada pequena”, o poeta
desenvolve a premissa de que a poesia só se plenifica mediante o sofrimento. Ou
melhor, a poesia exige a negatividade, tal como a ficção precisa ter um conflito
que quebre a estabilidade inicial e dê origem à narrativa.
Um motivo paralelo aos rios é o da música. Assim, o rio Negro “desce deserto
de pássaros”; o Solimões se vê “de pássaros sempre novo”; já o Amazonas se
debruça “sobre o mar, canção suprema”177. É o momento em que o eu lírico realiza
a “poesia nada pequena”.
Na última estrofe, o poeta fala em “mar dulce”, referência a uma denominação
dada ao grande rio pelos espanhóis. Nesse ponto, observa-se a seguinte antítese:
“mar dulce em delta de amargo” – união da doce poesia com o amargo sofrimento
necessário para atingi-la.
A métrica do texto é em redondilhas maiores, tal como os poetas clássicos
portugueses costumavam escrever – era a chamada “medida velha”. Entretanto,
se os heptassílabos dão musicalidade ao vilancete, as rimas se mantêm numa
posição contrária, pois há muitos versos brancos. Novamente, estamos diante da
“poesia nada pequena” (a musicalidade) e do “remanso de panema” (a retirada
parcial da musicalidade), simbolizando a negatividade, húmus necessário ao
desabrochar lírico.
Na quarta parte (“A Descoberta”), temos os eventos históricos iniciais. Em
quatro poemas, “disserta” o eu lírico sobre o sonho do Eldorado, os primeiros
núcleos populacionais, os tratados de fronteira entre Portugal e Castela e,
finalmente, a criação da Vila de São José da Barra, embrião da cidade de Manaus.
Aliás, o livro é também uma homenagem à capital do Amazonas.
Sobre o poema “Vila da Barra”, devem-se destacar os belos e simples
enunciados sobre a cidade recém-fundada. No poema, existe também o
isomorfismo, que é a disposição da forma em função do conteúdo. Em forma de
ode, as estrofes, por tal motivo, são simétricas, possuindo quatro versos, com
esquema rímico em abcb e métrico em 7-7-7-2. É como se o último verso não
chegasse sequer à naturalidade popular das redondilhas, permanecendo em forma
de embrião, tal como a cidade que se formava. Como muitos dos heptassílabos
apresentam cesura na segunda sílaba,178 podemos dizer que o dissílabo funciona
como uma “redondilha quebrada”.
A gente da futura Manaus “vestia-se com antigas / vestes adornos miçangas
/ indígenas”. Constituía-se em “silêncio de gente” ou “simples traço de vida”. Com
esses exemplos, demonstramos que a simplicidade não necessariamente exclui a
“poesia nada pequena”. Como registra Zemaria Pinto, em estudo sobre o poeta, “a

177
Idem, p. 41-2.
178
São exemplos desse fenômeno sempre os primeiros versos de cada estrofe: “As casas de São
José”, “O porto de São José” etc. Idem, p. 53.

182
primeira leitura é apenas a superfície vislumbrada, a água cristalina, soprada pela
brisa matinal. Para saber o que há dentro da água espessa do poema, é preciso
cultivar a paciência necessária, e mergulhar no perau”179.
Depois, vem a “Segunda imagem”, que constitui a quinta parte do livro.
Como o título sugere, há apenas uma “visão” (ou “imagem”). Desta vez não sobre
motivos geográficos, como o vilancete da primeira imagem, mas sobre motivo
exclusivamente histórico. No único poema, louva-se a atuação dos “dois Bonifácios
/ e Pedro Primeiro”180. Trata-se, no caso, de exaltar, tal como Camões o fez em Os
Lusíadas, os “barões assinalados”, aqueles que, “por obras valerosas, / Se vão da
lei da morte libertando”. No poema, relacionam-se figuras que importaram no
percurso temporal do Amazonas.
Novas figuras históricas são louvadas em “Galeria” (a sexta parte), aquelas
que, na percepção do eu lírico, se constituíram, pelo bem ou pelo mal, em pilares
de nosso caminho ao longo dos séculos: Pedro Teixeira, Lobo d´Almada, Marquês
de Pombal e Ajuricaba, símbolo de nossa resistência.
O poema dedicado a Pombal não é de mera louvação. Pelo contrário, o poeta
critica a atuação do “temível marquês” e expressa, em momento de bela construção
lírica, o dilema das organizações sociais humanas: “Mudam-se as formas de rota,
/ mudam os modos de agir, / mas dominar permanece”181. Antes, no poema sobre
Pedro Teixeira, a quem louva no início, refere-se àquele explorador como tendo
vivido “sob o signo das antigas / serpentes / a sedução de um mundo maior”.
Ajuricaba é visto como herói de existência histórica não comprovada –
isso porque, no tempo da feitura e publicação do livro, ainda não haviam sido
encontrados os autos do processo movido pela Coroa lusitana contra o líder
manau: “Se não existiu o homem / ficou inscrito o seu nome”182.
Finalmente, a “Terceira imagem”, da qual consta a “Relação dos últimos
eventos”. Nesse último texto, a antiga Vila de São José da Barra aparece como a
capital da Província do Amazonas e nele o poeta se referencia também ao seu
primeiro governador: João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha. Termina o eu
lírico seu grande livro com um enunciado exemplar: “Os eventos não se inventam,
/ constroem-se sobre o tempo”.

Sendo Imagem uma obra em que predominam os aspectos históricos, ela nos
remete ao Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. No livro de Elson Farias
existem igualmente os mesmos anseios de liberdade: “Pela esperada esperança, /
Pelo poder do porvir, / louve-se a aurora do dia / com o que há de vir”183.
Também é impossível, em sua leitura, não nos lembrarmos de Mensagem,
de Fernando Pessoa. Sem o tônus épico do livro português, possui Imagem,
contudo, concepções semelhantes: a par das figuras históricas postas em destaque,
poetiza-se sobre a formação de uma “nacionalidade”. No caso de Pessoa, há ainda
que observar o destaque dado a um determinado tipo de espaço: o mar; em

179
PINTO, Zemaria. Lira da madrugada, p. 147.
180
Idem, p. 59.
181
Idem, p. 69.
182
Idem, p. 67.
183
Idem, p. 59. Poema “Louvação do 9 de novembro”.

183
Farias, o espaço sobre o qual se desenrolam os temas não poderia ser outro: os
rios, mares de água doce.
Uma última conjectura se faz necessária e ela diz respeito à razão do título:
por que Imagem se são várias as imagens? O próprio poeta, aliás, relaciona três
delas. Convenhamos, porém, que as imagens sobre o passado são sempre diluídas
ou deformadas pelo percurso do tempo ou por interpretações não seguras. O que
temos sobre a formação de nossa “identidade”, sobre nosso percurso no tempo,
é algo que se funde numa percepção única. Todas as imagens – a Imagem.

Referências

FARIAS, Elson. Imagem. [Rio de Janeiro] Conquista, 1976.

PINTO, Zemaria. Elson Farias. In: PINTO, Zemaria & MRQ, Mauri. Lira da
madrugada. Manaus: Coreli & Jiquitaia, p. 141-7, 2014.

SANTIAGO, Socorro. Uma poética das águas. Manaus: Puxirum, 1986.

SILVA, Alencar e. Quadros da moderna poesia amazonense. Manaus: Valer, 2011.

SOUZA, Márcio. A expressão amazonense: do colonialismo ao neocolonialismo. 2.


ed. rev. Manaus: Valer, 2003.

TELLES, Tenório. A poesia como expressão do telúrico. In: ___. Clube da madrugada:
presença modernista no Amazonas. Manaus: Valer, p. 107-11, 2014.

184
O Lustre, de Clarice Lispector: indícios de incesto

Maria de Fatima do Nascimento


Introdução

O romance de Clarice Lispector O lustre (1946), pouco recepcionado pelos


críticos literários, aborda relações familiares entre seis personagens: pai, mãe, avó
paterna e três filhos. A primogênita chama-se Esmeralda; o segundo filho, Daniel
e a caçula, Virgínia. A avó paterna, doente, embora não tenha grandes ações na
obra, é uma presença forte na vida dessa família, cujos membros habitam um
casarão da localidade Granja Quieta, afastada do centro comercial do município
Brejo Alto, casarão esse pertencente à aludida avó. Anteriormente luxuoso, no
tempo da narrativa, tal residência encontra-se arruinada, com quartos vazios,
janelas sem cortinas e poucos móveis, tendo por remanescentes da riqueza de
outrora e por resquícios do casamento da avó, um tapete de veludo púrpura e o
lustre que deu título ao livro.
Os moradores do casarão são ensimesmados. Consoante informações do
narrador, a mãe dialoga com a filha Esmeralda, mas as conversas entre elas
ocorrem dentro de um quarto e pouco se sabe desse colóquio. Já os encontros de
todos os familiares se dão às refeições, especialmente no café da manhã, regado
à repressão do pai.
Assim sendo, no presente trabalho, tem-se por objetivo demonstrar, entre os
dois irmãos Daniel e Virgínia, indícios de incesto, tema que remonta às tragédias
antigas, à Bíblia, manifestando-se também em romances de Língua Portuguesa
nos Oitocentos, como em Os Maias (1888), do lusitano Eça de Queirós (1845-1900),
e em Hortência (1888), do brasileiro paraense Marques de Carvalho (1866-1910).
Toma-se por referencial teórico O drama da linguagem: uma leitura de Clarice
Lispector (1989), de Benedito Nunes; Clarice: uma história que se conta (1995), de
Nádia Battella Gottlieb; Totem e tabu (1913), de Sigmund Freud.

Indícios de incesto no romance O lustre

Benedito Nunes, também crítico literário, é um dos principais estudiosos da


produção de Clarice Lispector, a partir da década de 1960, com publicações de
artigos no periódico O Estado de São Paulo e, posteriormente, em livro.
Em 1973, Benedito Nunes publica o livro Leitura de Clarice, cujo primeiro
capítulo é intitulado “A narrativa monocêntrica” e apresenta-se dividido em
duas partes: na primeira discute o romance Perto do coração selvagem (1944)
e, na segunda, analisa O lustre (1946), segundo romance da escritora brasileira.
O mencionado capítulo de Benedito Nunes foi republicado, sem alteração,
no seu livro O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector (1989),
trazendo importante crítica para entendimento das obras da escritora brasileira.
Isso é demonstrado já no início, quando se tem o reconhecimento do “[...]
aprofundamento introspectivo, a alternância temporal e o caráter inacabado”,
em referência a Perto do coração selvagem. A partir desses aspectos, Benedito
Nunes discute, de forma esclarecedora, o primeiro romance clariciano, bem como
O lustre, mediante afirmações a exemplo das seguintes:

O lustre começa expondo o fato exterior determinante da vida de seus


personagens. Virgínia e seu irmão Daniel, que se debruçam numa ponte
pênsil, veem um afogado boiando no rio. A morte que lhes é então

186
revelada, e acerca da qual silenciam, vai refletir-se nos jogos sombrios
das duas crianças. Essa recordação secreta sela a mútua dependência
afetiva, cimentada num liame de domínio e servidão, em que elas vivem
(NUNES, 1989, p. 24).
Virgínia aceita o senhoril de Daniel, “... um menino estranho, sensível
e orgulhoso, difícil de se amar (L. 31). Em nome de uma Sociedade das
Sombras por ele inventada, Daniel dita ordens à irmã e impõe-lhe a
execução de seus caprichos. Estão ambos voluntariamente segregados
dentro de Granja Quieta – mundo noturno e denso, que abriga a velha
casa de família, guardando ainda, dentre os restos de antiga abastança,
um lustre que pende do teto da sala (NUNES, 1989, p. 24).

Realmente, o romance O lustre começa com os dois irmãos, ainda crianças,


juntos em uma “ponte frágil”, quando veem um chapéu que eles supõem ser um
afogado boiando no rio e essa visão, transformada em segredo, sela “a mútua
dependência afetiva” de ambos os garotos. Outro importante aspecto logo
observado por Benedito Nunes é a da “Sociedade das Sombras”, que é discutida
aqui mais adiante e serve para Daniel executar seus propósitos incestuosos,
questão não contemplada nas análises nunianas.
Igualmente, grande estudiosa da obra de Clarice Lispector, a pesquisadora
brasileira Nádia Gottlieb percebeu a existência do incesto na obra O lustre.
Segundo reflexões suas:

Tal como Joana, de Perto do Coração Selvagem, Virgínia, a personagem


principal deste romance, O Lustre, tem sua história narrada desde a
sua infância e também aparece sob o signo do Mal. Agora, a partir de
um relacionamento de caráter incestuosa com o irmão, Daniel, com
quem mantém um pacto: reuniões secretas em que experimentam certas
verdades, na condição de iniciados especiais (GOTLIEB, 1995, p. 255).

Nessa análise publicada em 1995, Gottlieb chega a admitir, de passagem,


que há a presença de um envolvimento incestuoso entre os dois irmãos para
centrar-se nas experiências de Virgínia, sem abordar os discursos do narrador
que poderiam explicitar semelhante fato na narrativa.
Para enfocar a questão do incesto em O lustre, recorre-se a Totem e tabu, de
Sigmund Freud (2013, p. 8-30), discutindo somente aquilo que ajuda a entender tal
relação na narrativa clariciana nos limites deste estudo, optando por demonstrar
partes do romance que remeteram a faceta em causa ao livro. Freud, nos capítulos
“O horror ao incesto” e “O tabu e a ambivalência dos sentimentos”, discutiu o tema
do “tabu ao incesto”, relacionando-o aos transtornos psíquicos. Para isso, o médico
neurologista e criador da psicanálise estudou a cultura dos povos tradicionais
australianos e verificou que, nessa sociedade, vigora “o sistema de totemismo”,
isto é: “[...] Suas tribos dividem-se em clãs ou estirpes menores, cada qual nomeado
sob o seu totem”, e o significado de “totem”, segundo o psicanalista, “[...] Via de
regra é um animal, comestível, inofensivo ou perigoso, temido, e mais raramente
uma planta ou força da natureza (chuva, água), que tem uma relação especial
com todo o clã” (FREUD, 2013, p. 8-9). Ainda segundo Freud: “[...] O totem é, em
primeiro lugar, o ancestral comum do clã, mas também seu espírito protetor e
auxiliar, que lhe envia oráculos, e, mesmo quando é perigoso para outros, conhece
e poupa seus filhos” (FREUD, 2013, p. 8). Por esse motivo:

187
Os membros do clã, por sua vez, acham-se na obrigação, sagrada e
portadora de punição automática, de não matar (destruir) seu totem e
abster-se de sua carne (ou dele usufruir de outro modo), O caráter do
totem não é inerente a um só animal ou um ser individual, mas a todos
da espécie (FREUD, 2013, p. 8-9).

O estudioso observou ainda que: “[...] em quase toda parte em que perdura o
totem há também a lei de que membros do mesmo totem não podem ter relações
sexuais entre si, ou seja, também não podem se casar. É a instituição da exogamia,
ligada ao totem” (FREUD, 2013, p. 10).
Ao estudar “O tabu do incesto” a partir de uma bibliografia relevante de
autores, como Wundt, J. Long, Jung, J. G. Frazer, J. Fergusson McLennan, Otto
Rank, entre outros, ele pesquisa os vários aspectos do “tabu”, a exemplo da
origem da palavra, que parece ter se perdido no tempo, conseguindo apontar a
“ambivalência” de seu significado, o qual, segundo Freud, “se divide, para nós,
em duas direções opostas. Por um lado, quer dizer “santo, consagrado”; por outro,
inquietante, perigoso, proibido, imputo [...]” (FREUD, 2013, p. 12).
Ainda a respeito dessa questão, Freud observa algo importante, isto é:
“As restrições do tabu são algo diverso das proibições religiosas e morais. Não
procedem do mandamento de um deus. Valem por si mesmas. [...] As proibições
do tabu prescindem de qualquer fundamentação” (FREUD, 2013, p. 10-11).
Freud, ao pesquisar vários tipos de tabus, as suas restrições, seus objetos,
as suas violações, os seus castigos, a transmissibilidade nos costumes dos povos
tradicionais australianos, com toda a complexidade da questão, chega à conclusão
de que: “As mais antigas e importantes proibições do tabu são as duas leis
fundamentais do totemismo: não liquidar o animal totêmico e evitar relações
sexuais com indivíduos do mesmo totem que são do sexo oposto”; acrescentando
ainda que: “Esses devem ser, então, os mais antigos e poderosos apetites humanos
[...]” (FREUD, 2013, p. 27).
Desse modo, retoma-se o primeiro capítulo do romance em estudo para nele
discutir os indícios de incesto, tendo em vista que, da ótica de tal narrativa, nas
palavras cifradas do narrador de O lustre, existe um outro segredo que os dois
irmãos não querem que ninguém saiba, particularmente Virgínia. Senão, veja-se:
no primeiro capítulo, quando ficam conhecidas as duas personagens, essas estão
em cima de uma ponte, conforme fragmento abaixo, o que não constitui ato
gratuito, como é demostrado mais à frente:

Ela seria fluída durante toda a sua vida. Porém o que dominara seus
contornos e os atraíra a um centro, o que a iluminara contra o mundo
e lhe dera íntimo poder fora o segredo184. Nunca saberia pensar nele
em termos claros temendo invadir e dissolver a sua imagem. No entanto
ele formara no seu interior um núcleo longínquo e vivo e jamais perdera
a magia – sustentava-a na sua vaguidão insolúvel como a única realidade
que para ela sempre deveria ser a perdida (LISPECTOR, 1998, p. 9).

Observa-se na citação acima que Virgínia, embora seja mais nova que Daniel,
é mais perspicaz do que o irmão, percebendo que aquilo que eles fazem é proibido
naquela sociedade em que vivem. Entretanto, ela se sente bem com o irmão,
184
Grifos nossos.

188
fazendo com que ele jure não contar para ninguém o que praticam juntos, o que,
de certo modo, lhe traz poder sobre o irmão.
Na continuação do primeiro parágrafo, o narrador declara que os dois jovens
se encontram sobre uma ponte, estando especialmente a figura feminina em
situação de perigo:
[...] Os dois se debruçavam sobre a ponte frágil e Virgínia sentia
os pés nus vacilarem de insegurança como se estivessem soltos
sobre o redemoinho calmo das águas. Era um dia violento e seco em
largas cores fixas; as árvores rangiam sob o vento morno crispado de
céleres friagens. O vestido ralo e rasgado da menina era atravessado por
estremecimentos de frescura. A boca séria premida contra o galho
morto da ponte. Virgínia mergulhava os olhos distraídos nas águas.
De súbito imobilizara-se tensa e leve: Olhe!185 (LISPECTOR, 1998, p. 9).

A propósito, Chevalier e Gheerbrant, em seu Dicionário de Símbolo,


reconhecem que:

O simbolismo de ponte, como aquilo que permite passar de uma margem


à outra, é um dos mais difundidos universalmente. Essa passagem é a
passagem da terra ao céu, do estado humano aos estados supra-humanos,
da contingência para à imortalidade, do mundo sensível ao mundo supra
sensível (Guénon) etc. (CHEVALIER e GHEERBRANT, p. 728).

Pode-se notar que, no momento em que os dois estão “debruçados” na ponte,


é Virgínia quem vê um chapéu que desce o rio e mostra ao irmão Daniel, que olha
e vê que “preso a uma pedra estava um chapéu molhado, pesado e escuro de água”
(LISPECTOR, 1998, p. 9). Logo em seguida, o chapéu é levado com brutalidade pela
correnteza. Após o seu desaparecimento rio abaixo, é Virgínia quem “sussurra” e
propõe a Daniel não contar nada a ninguém do que viram. Conforme as palavras
dela: “- Não podemos contar a ninguém, sussurrou finalmente Virgínia, a voz
distante e vertiginosa” (LISPECTOR, 1998, p. 9). Ao que Daniel responde “[...] –
Nem que nos perguntem sobre o afog...” (LISPECTOR, 1998, p. 10). Pela resposta de
Daniel, depreende-se que há um outro segredo entre os dois irmãos. Isto porque,
após o episódio do chapéu, ocorre um longo discurso do narrador, que remete aos
sentimentos de Virgínia sobre o momento vivido com o irmão na ponte, quando
se vê brotar o sentimento de amor erótico, até poético da parte dela, pelo irmão:

Ele falava tão grave, ele falava tão belo, o rio rolava. As folhas cobertas
de poeira, as folhas espessas e úmidas das margens, o rio rolava, quis
responder e dizer que sim, que sim! Ardentemente, quase feliz, rindo
com os lábios secos, mas não podia falar, não sabia respirar, como
perturbava. Com os olhos dilatados, o rosto de súbito pequeno e sem
cor, ela assentiu cautelosamente com a cabeça (LISPECTOR, 1998, p. 10).

Para Chevalier e Gheerbrant: “[...] A ponte coloca o homem sobre uma


via estreita, onde ele encontra inexoravelmente a obrigação de escolher. E sua
escolha o dana ou o salva” (CHEVALIER e GHEERBRANT, p. 730). Os dois estudiosos
acrescentam ainda que: “Notam-se, portanto, dois elementos: o simbolismo da
185
Grifos nossos.

189
passagem, o caráter frequentemente perigoso dessa passagem, que é de toda
viagem iniciatória. [...]” (CHEVALIER e GHEERBRANT, p. 729).
A ponte, enquanto passagem, revela uma intimidade entre Virgínia e Daniel,
o que pode ser visto no primeiro parágrafo do livro e nos subsequentes, em que
a irmã insiste para que Daniel jure não contar nada para ninguém, ao que ele
responde: “- Por exemplo... que tudo o que a gente é... vire nada... se a gente falar
disso a alguém (LISPECTOR, 1998, p. 9).
A resposta de Daniel sobre a visão do chapéu pode sugerir apenas um homem
morto por afogamento descendo o rio, o que parece ser o único segredo das duas
personagens. Contudo, quando se observa a narrativa fragmentada de O lustre,
surge outro segredo, qual seja o incesto que vem acontecendo entre os dois irmãos,
conforme sugestão da continuidade do parágrafo anterior:

Daniel afastou-se, Daniel afastava-se. Não! Queria gritar e dizer que


esperasse, que não a deixasse sozinha sobre o rio; mas ele continuava.
O coração batendo num corpo subitamente vazio de sangue, o coração
jogando, caindo furiosamente, as águas correndo, ela tentou entreabrir
os lábios, soprar uma palavra pálida que fosse. Como o grito impossível
num pesadelo, nenhum som se ouviu e as nuvens deslizavam rápidas no
céu para um destino. Sob seus pés rumorejavam as águas - numa clara
alucinação ela pensava: ah sim, então ia cair e afogar-se, ah sim. Alguma
coisa intensa e lívida como o terror mas triunfante, e certa alegria doida
e atenta enchia-lhe agora o corpo e ela esperava para morrer, a mão
cerrada como para sempre no galho da ponte. Daniel voltou-se então
(LISPECTOR, 1998, p. 10).

Esse fato vai se exacerbando na continuidade dos capítulos, momento em


que o narrador continua mostrando o relacionamento amoroso de Virgínia e
Daniel. Veja-se, então, como Daniel trata a irmã: “– Vem, disse ele surpreendido”
(LISPECTOR, 1998, p. 10). Ao que o narrador do romance se interpõe e tem-se uma
visão de Virginia: “Ela olhou-o do fundo de seu silêncio” (LISPECTOR, 1998, p. 10).
Porém, o irmão a trata grosseiramente, atitude suspeita que se repete em várias
passagens do romance em causa, como no seguinte excerto, a partir da resposta
de Daniel: “- Venha, sua idiota, repetiu colérico”(LISPECTOR, 1998, p. 10).
Outro fato que chama a atenção para o relacionamento do casal de irmãos
acontece na ocasião em que eles retornam para casa, depois do momento no qual
estiveram juntos na ponte. Eles vêm com certo temor, conforme a conversa que os
dois têm antes de chegar ao lar. Virgínia pergunta ao irmão: “Daniel... murmurou
Virgínia, nem com você eu posso falar?”(LISPECTOR, 1998, p. 11). Ele responde:
“Não, disse ele surpreendido com a própria resposta”(LISPECTOR, 1998, p. 11).
A partir do simbolismo da ponte, na condição de meio transitivo, pode-se
dizer que os primeiros parágrafos do romance O lustre sugerem que os dois irmãos
mantêm um relacionamento que eles próprios sabem ser proibido, haja vista
que, no retorno para casa, eles como que revelam, por suas atitudes suspeitas,
que estiveram fazendo algo proibido fora de casa, ou seja, nos rios ou matas de
Granja Quieta, de acordo com o que sugere o trecho abaixo:

Hesitaram um instante, delicados, quietos. Não, não¹... negava ela o medo


que se aproximava, como para ganhar tempo antes de se precipitar. Não,
não, dizia evitando olhar ao redor. A noite descera, a noite descera. Não

190
se precipitar, mas de repente algo não se conteve e principiou a suceder...
Sim, ali mesmo iam-se erguer os vapores da madrugada doentia pálida,
como um fim de dor – enxergava Virgínia de súbito calma, submissa e
absorta (LISPECTOR, 1998, p. 11).

O mesmo se pode verificar nos demais capítulos do romance em questão,


mormente no segundo, um dos mais longos do livro, que trata da infância do
casal de irmãos, período em que Virgínia é muito infantil e é cuidada por Daniel.
Vale ressaltar que, no segundo capítulo, o narrador o inicia descrevendo
Granja Quieta, na sequência, os quartos de dormir, a sala de jantar e a sala.
Percebe-se que o narrador confere atenção especial aos quartos do casarão para
relacioná-los também ao abandono de Virgínia. Isto porque os quartos do casarão
são frios e sombrios, como as pessoas que ali vivem, o que demostra uma relação
com a vida da garota, que, no quarto de dormir, já pré-adolescente, demonstra
não ter sido ensinada a ter higiene pessoal, haja vista que dorme com os “pés
sujos de terra”, sem os cuidados básicos, revelando que não só a casa, mas a filha
também vive o abandono por parte dos pais, ainda que possuindo doméstica:

Aos poucos os móveis desertavam, vendidos, quebrados ou envelhecidos


e os quartos se esvaziavam pálidos. O de Virgínia, frio, leve e quadrado,
possuía apenas a cama. No espaldar ela depositava o vestido antes de
dormir metida na rala combinação, os pés sujos de terra, escondia-se sob
os enormes lençóis de casal com enorme prazer (LISPECTOR, 1998, p. 14).

Chevaliier e Gherbrant ao discutirem a simbologia do “sapato”, estudam o


autor Jean Servier, o qual afirma que: “Andar de sapato é tomar posse da terra”.
Segundos os dois estudiosos “Jean Servier também observa que Hermes, protetor
dos limites e dos viajantes que ultrapassam limites, é um deus calçado, pois tem a
posse legítima da terra em que se encontra” (CHEVALIER e GHEERBRANT, p. 801).
Porém, não só Virgínia é descrita com os pés descalços em vários momentos
da obra em estudo, pois essa referência aparece também no tocante a sua
irmã chamada Esmeralda: “- Seria preferível mais móveis e menos quartos,
Esmeralda com os olhos baixos de raiva e aborrecimentos, os grandes pés
descalços”(LISPECTOR, 1998, p. 14).
Pode-se captar pelo romance que Esmeralda tem sapatos, que calça em
momentos especiais, como em visita a amigas ou quando vai a alguma festa.
Todavia, no caso de Virgínia, essa informação demonstra a condição da menina
que não tem ninguém para ensinar-lhe questões básicas da vida. Estar sem sapatos
é como se ela não tivesse proteção nenhuma naquele ambiente em que vivia.
A própria mãe da menina pensa - revelação dada pelo narrador - a respeito
do que se passa em relação à criação de sua filha caçula: “[...] E a menina, como
um galho, crescia sem ela ter decorado suas feições anteriores, sempre nova,
estranha e séria, coçando a cabeça suja, tendo sono, pouco apetite, desenhando
tolices em folha de papel”(LISPECTOR, 1998, p. 14). É dessa forma que a mãe vê
a filha mais nova.
Assim sendo, no romance em apreciação, narrado em terceira pessoa e
constituído de oito capítulos não intitulados, mas reconhecidos pela entrada mais
longa dos parágrafos, os dois irmãos guardam o aludido outro segredo, qual seja, a
relação amorosa existente entre eles, aquilo que se está considerando o indício de

191
incesto. Isto porque, no primeiro parágrafo do primeiro capítulo do romance, Daniel
e Virgínia já não são tão crianças, vivem sozinhos pelos matos e rios da Granja
Quieta, fazendo tudo que desejam, longe dos cuidados de familiares. E a história
dos dois irmãos passa a ser contada mais amiúde a partir do segundo capítulo.
Noutras palavras, os dois pré-adolescentes desenvolvem um afeto desde
cedo que destoa de um relacionamento fraterno consanguíneo, como se pode
constatar no excerto a seguir:

[...] Naquele tempo Daniel lhe dissera pela primeira vez, quase sem
propósito: - Por Deus e pelo Demônio. Ela estacara. Um grande silêncio
seguira-se. Olhara-o e descobrira na sua trêmula vitória a mesma
perturbação. Ele lhe trouxera timidamente um grito. Fitaram-se um
instante e tudo era indeciso, frágil, tão novo e nascente. E tudo era
tão perigoso e revolvido que ambos desviaram quase bruscamente os
olhos. Mas havia alguma coisa encantada entre eles nesse momento.
Embora ela jamais se ocupasse verdadeiramente de Deus e raramente
rezasse. Diante da ideia dele, permanecia surpreendentemente calma
e inocente, sem um pensamento sequer. Daniel afastava-se. Naquele
tempo ele começava a pensar e a dizer coisas difíceis com gosto e amor
(LISPECTOR, 1998, p. 54-55).

Não obstante, a história desse afeto entre os dois irmãos tem início com o
nascimento de Virgínia, momento em que a mãe dela, personagem sem nome,
se encontra bastante desiludida pelo casamento mal sucedido com um homem
que vai morar com a esposa na casa da mãe dele e a mulher não se sente bem na
casa da sogra, conforme a passagem infracitada:

Apegava-se a Esmeralda como ao resto de sua última existência [...].


[...]. Do tempo de solteira guardaria com amor uma camisola fina pelo
uso como se a época sem homem e sem filhos fosse gloriosa. Assim
defendia-se do marido, de Virgínia e de Daniel – os olhos piscando186.
O marido aos poucos impusera certa espécie de silêncio com seu corpo
astuto e quieta. E aos poucos, depois do auge das proibições de compras
e gastos, ela soubera numa alegria remoída, num dos maiores motivos
de sua vida, que não vivia no seu próprio lar, mas no do marido, no da
velha sogra [...] (LISPECTOR, 1998, p. 19).

Verifica-se no parágrafo transcrito que a mãe das três crianças se apega à


filha mais velha, Esmeralda, e deixa os dois filhos mais novos, Daniel e Virgínia,
meio que abandonados, enquanto o pai, homem que trabalha numa papelaria,
passa o dia fora de casa em Brejo Alto. A mãe, muito triste por toda a situação
vivida no casamento, permite que Daniel cuide da filha caçula sem nenhuma
orientação ou conselhos, consoante o trecho seguinte:

Daniel era um menino estranho, sensível e orgulhoso, difícil de se amar.


Ele não sabia dar um pretexto para esconder. Mesmo quando caia em
fantasias estas eram precavidas, familiares; ele não tinha coragem de
inventar e era sempre ela quem numa facilidade surpreendente mentia
pelos dois; ele era sincero e duro, detestava o que não via. Com seus

186
Grifos nossos.

192
olhos limpos e secos vivia como só com Virgínia dentro da Granja
Quieta. Desde que a irmã nascera ele a tomara e secretamente ela
era apenas sua. Ainda muito pequena, os cabelos compridos e sujos nos
olhos, as pernas curtas hesitando sobre os pés descalços, ela agarrava
com uma das mãos os fundos das calças de Daniel e o irmão, o rosto
queimado e sem doçura, os olhos seguros, subia pelas encostas da
montanha com movimentos obstinados como se não sentisse o peso de
Virgínia, a inclinação resistente dos morros, o vento que soprava firme
e frio no seu corpo. Não a amava sequer mas ela era doce e tola, fácil
de se conduzir a qualquer ideia187 (LISPECTOR, 1998, p. 28).

Pela descrição que o narrador faz de Daniel e Virgínia, pode-se deduzir a


diferença entre os dois irmãos. Ele é descrito como uma personagem “estranha”,
“dura”, “sem doçura”, quando se apodera da irmã ainda muito criança, que nem
sabia subir direito nas montanhas de Granja Quieta, onde iam brincar. Mas
Virgínia se apega ao irmão, atendendo os seus chamados. Ela, por sua vez, é
descrita uma criança muito menor e doce.
A personagem Daniel vai se comportar sempre da maneira como é descrita,
ou seja, a atormentar a irmã, que, mesmo assim, desenvolve um afeto pelo irmão:

[...] E mesmo nas épocas em ele se fechava severo e bruto dando-lhe


ordens, ela obedecia porque sentia-o perto de si, ocupando-se dela – ele
era a criatura mais perfeita que ela conhecia. Passava então os dias numa
estranha euforia, como o vento, alta, calma e silenciosa (LISPECTOR,
1998, p. 28).

Cuidando de Virgínia durante toda a infância da menina, Daniel não perde


sua postura bastante severa para com ela, impondo seus desejos. No entanto, só
a garota desenvolve um afeto por ele, única companhia que Virgínia conhece na
infância, já que é “abandonada” afetiva e materialmente pelos pais:

Nas tardes em que o vento rodava pela Granja – as mulheres nos


aposentos, o pai no trabalho, Daniel no mato – nas tardes lisas em que um
vento cheio de sol soprava como sobre ruínas, desnudando as paredes
comidas nas caliças, Virgínia vagava na limpidez abandonada. Caminhava
olhando numa distração séria. Era dia, os campos se estendiam claros
sem manchas e ela se movia insone, Sentia uma difusa náusea nos nervos
calmos – pequena e magra, as pernas marcadas de mosquitos e quedas,
ela parava junto a escadaria olhando [...] (LISPECTOR, 1998, p. 15).

Virgínia vê no irmão a figura de alguém que está presente na vida dela. Isto
porque a mãe vive meio que sem voz ativa diante do marido e não consegue
impedir a violência dele, que é muito bruto com as filhas mulheres, notadamente
com Virgínia, chegando a bater no seu rosto no momento em que todos estão à
mesa do café da manhã:

[...] Eles sentavam à mesa para tomar café e se Virgínia não comia
bastante apanhava no mesmo momento – como era bom, a mão
espalmada voava rápido e estalava com um ruído alegre numa das

187
Grifos nossos.

193
faces resfriando a sala sombria com a delicadeza de um espirro. O rosto
acordava como um formigueiro ao sol e então ela pedia mais pão de
milho, cheia de uma mentira de fome. O pai continuava a mastigar, os
lábios úmidos de leite, enquanto com o vento uma certa alegria hesitava
no ar [...] (LISPECTOR, 1998, p. 17).

O romance em causa apresenta uma farta história de violência, especialmente


da parte das personagens masculinas, o pai e o filho Daniel, contra as femininas,
a mãe, Esmeralda e Virgínia. Esta, ainda criança, ia observando o que se passava
naquela família. No dia em que ela apanha na mesa do café, Virgínia sofre muito com
o tratamento que recebe em casa, percebendo que a mãe gosta mais de Esmeralda
e Daniel, haja vista que não há intervenção diante do que o pai faz com ela:

[...] Mas Esmeralda sempre escapava, as costas eretas, o busto alto.


Porque a mãe se erguia pálida e gaga e dizia – enquanto um pouco de frio
penetrava pelo vazio claro da janela e olhando o rosto duro e amado de
Daniel uma vontade de fugir com ele e correr fazia o coração de Virgínia
inchar tonto e leve num impulso adiante – enquanto a mãe dizia:
- Não tenho direito nem mesmo a um filho?
- A uma filha, deveria dizer – pensava Virgínia sem levantar os olhos da
xícara porque nesses momentos mesmo o relinchar de algum cavalo no
pasto feria como uma audácia triste e pensativa (LISPECTOR, 1998, p. 17).

A mãe, nessas horas, segundo o narrador, até gagueja diante do marido


violento. Virgínia constata qual a condição da genitora naquela casa e que a
pronúncia da palavra “filho”, ao invés de “filha”, faz a menina sofrer. Em
várias passagens do romance, o narrador demonstra essa situação da mãe no
casarão: “[...] A mãe suspirava com olhos pensativos – Sei lá, meu Deus. Mas ela
passaria os dias como uma visita na própria casa, não daria ordens, de nada
cuidaria[...]”(LISPECTOR, 1998, p. 19).
Nesse sentido, pode-se compreender a ligação afetiva de Virgínia com seu
irmão Daniel, pois ele é a única companhia com quem ela conversa todos os dias,
sempre juntos nos matos da Granja Quieta, apesar da violência, das palavras
ofensivas que a diminuem e de tudo aquilo que ele a obriga fazer.
Na passagem da criancice para a pré-adolescência, Daniel agride Virgínia
não só verbalmente. Ele toma várias atitudes agressivas com relação a Virgínia,
como o narrador afirma: “Daniel também sabia de uma brincadeira”, qual seja:
cavar uma vala funda na terra e mandar Virginia entrar e dizer: “- Você está
fechada, dizia-lhe Daniel com brutalidade. Ela ria baixinho sem se amedrontar.
Aos poucos porém, se assustava [...] (LISPECTOR, 1998, p. 17).
Daniel possuía uma coleção “aranhas penugentas e grisalhas” numa caixa
escondidas do pai e obrigava a menina Virgínia a olhar para elas. Mesmo com
medo, a menina teve de olhar, botando um dos olhos bem perto de um buraco
da caixa, o que causou doença no olho da irmã, que sofreu a agressão calada sem
contar para os pais. Daniel era insensível para com a Virgínia:

Ameaçava-a de abrir a caixa de aranha a qualquer desobediência de


sua parte. E de repente, sem que ela soubesse por que, ele chamou-a, os
olhos intensos, mostrando-lhe a caixinha:
Espie só...

194
Ela recusou enojada. Mas terminou colando um olho no buraco da caixinha
e nada vendo senão movimentos vagarosos na escuridão. Ela dizia:
Vi, já vi, vi tudo!
Ele ria.
- Você seria até menos idiota se não fosse tão idiota (LISPECTOR, 1998,
p. 134).

Essa violência de Daniel contra Virgínia resultou na perda de visão de um


dos olhos da menina, que, durante muitos dias, sofreu dores, desenvolvendo uma
doença crônica, conforme excerto abaixo:

O olho com que ela espiara a aranha doía. Durante dias lacrimejara
torto, caído e de manhã ela não podia abri-lo até que o calor do sol e
de seus próprios movimentos acordava-o. Inchou depois, insensível
e sem sangue. Quando tudo passou, já não era o mesmo, tornara-se
imperceptivelmente vesgo e menos vivo, mais lento e úmido, mais
amortecido que o outro. E se escondia com uma mão o olha são, via as
coisas separadas dos lugares onde pousavam, soltas no espaço como
numa assombração (LISPECTOR, 1998, p. 134).

Observa-se que Daniel sente prazer no sofrimento de Virgínia, numa conduta


abominável. Porém, antes de ele obrigar a irmã a olhar as aranhas, o narrador
faz a seguinte apreciação do menino, demonstrando que ele tinha apoio do pai,
que maltratava a esposa e as filhas mulheres:

[...] jamais ele pedira desculpas, ele sabia que isto era a marca de
um poder. Entre o filho e o pai vagava uma sinceridade cuidadosa e
perturbada. E ele era tão obstinado que ainda pequeno, não dava mais
uma palavra depois que o sol se punha, interrompendo mesmo uma frase
ou um riso. Sentava-se a um canto, os olhos opacos de raiva e tristeza.
Só amansava no dia seguinte (LISPECTOR, 1998, p. 33).

Contudo, os dois irmãos cresceram. O narrador, ainda no segundo capítulo


informa que Daniel, antes da ida para a cidade grande, onde vai continuar seus
estudos, já tinha quase 15 anos, sempre tomado de uma grande vontade como
de ironia. Portanto, mesmo com essa idade, ainda sentia prazer de atormentar
Virgínia, que aceitava tudo para não contrariá-lo.
Na chegada da adolescência dos dois irmãos, há uma passagem bem longa
do livro em que eles se afastam um pouco, ocasião em que Virgínia se sente muito
só. É o período em que ela passa a produzir bonecos de barro, como se fosse uma
escultora. Virgínia vai sozinha ao rio pegar barro para o seu trabalho. O narrador
comenta sobre o afastamento dos dois irmãos da seguinte forma: “Depois o tempo
perdido – ele distanciando-se, avançando em brumas e regressando mais comprido
mais bruto mais triste e mais inocente porém intransponível[...]”. Já Virgínia, de
acordo com o narrador “ Ela também isolara-se em cansaços, um pouco de insônia
mas em breve mostrara-se lisa e quieta[...]” (Lispector, 1998, p. 54).
Quando os dois irmãos se reaproximam, após uma pausa, no retorno do
convívio, nota-se que Daniel mostra-se impaciente com esse distanciamento, a
ponto de ambos não conseguirem nem se olhar direito, porque já são adolescentes
e sabem que o incesto é proibido, conforme o fragmento seguinte:

195
[...] Naquele tempo Daniel lhe dissera pela primeira vez, quase sem
propósito: por Deus e pelo Demônio.
Ela estacara. Um grande silêncio seguira-se. Olhara-o e descobrira na
sua tímida vitória a mesma perturbação. Ele lhe trouxera timidamente
um grito. Fitaram-se um instante e tudo era indeciso, frágil, tão novo
e nascente. E tudo era tão perigoso e revolvido que ambos desviaram
quase bruscamente os olhos. Mas havia alguma coisa encantada entre
eles nesse momento (LISPECTOR, 1998, p. 54).

A atitude de Daniel e Virgínia, na passagem acima transcrita, chama a


atenção para o que Freud pertinentemente observou em seu estudo, ou seja:
“[...] o fundamento do tabu é uma ação proibida, para a qual há um forte pendor
no inconsciente” (FREUD, 2013, p. 27).
Assim é que na sequência do convívio dos dois irmãos, vê-se que existia
algo diferente de um relacionamento convencional entre ambos. Mesmo porque,
Virgínia sentia ciúme não fraterno do irmão, o que não é comum:

[...] Daniel afastava-se. Naquele tempo ele começara a pensar e a dizer


coisas difíceis com gosto e amor. Ela ouvia inquieta. Ele passeava de
ida e de volta pelos corredores penumbrosos do casarão com os braços
cruzados, abstraído. Virgínia perscrutava-lhe inutilmente o rosto de
boca serrada, os olhos escuros e indecisos, aquela quase feiura que se
agravava com a idade, o sofrimento e o orgulho.
- Que é que você está pensando, não se continha ela adoçando a voz,
apagando-se com humildade.
- Nada respondia ele.
E se ousava insistir recebia uma resposta que ainda mais a intranquilizava
pelo seu mistério e pelo ciúme que nela despertava (LISPECTOR, 1998,
p. 54-55).

É nessa sequência do romance, ainda no capítulo dois, que Daniel torna


a se encontrar com a irmã, a qual o narrador esclarece que “[...] ficava pálida e
vertiginosa entre os instantes ofensivos. E amando-o tanto quanto jamais poderia
amar” (LISPECTOR, 1998, p. 54-55). Na ocasião, Daniel convida Virgínia para criarem a
“Sociedade das Sombras”, espécie de flagelo para ela, uma vez que, nos mandamentos
dessa sociedade, só consta tortura para a garota, que obedece cegamente o irmão.
Daniel vai se tornado uma espécie de personagem sádica, cruel. Embora ele tenha
convidado Virgínia para criarem juntos tal sociedade, era ele quem mandava em
tudo. A “Sociedade das Sombras” é criada para satisfazer o prazer dele em torturar a
irmã. É ele quem cria os mandamentos, verbaliza o que ela deve fazer na Sociedade.
Na Sociedade, Virgínia passa por várias situações e muitos medos, porque
uma das primeiras atividades é “explorar a mata”, ir à pior “clareira” de Granja
Quieta para viver a “Solidão”, lema da tal sociedade. Desse local tétrico, onde a
terra era molhada e havia árvores altas, pardais grandes voando e poças de água,
eles retornavam à noite ao casarão e sentiam mais terror. Todavia, essas idas ao
mato a aproximam muito de Daniel, já que ali eles sempre ficavam muito juntos,
sozinhos, quase todos os dias no escuro da mata.
Virgínia tem que ficar à noite sozinha no porão do casarão, onde são colocados
objetos antigos e questões para ela pensar, questões essas que são as que possam
torná-la livre dos costumes impostos pela família e pela sociedade na qual viviam.
No porão, que nos sugere as regiões abissais da mente humana, Virgínia pensa

196
melhor a respeito de sua vida. Depois, mais uma vez, retornam juntos à clareira
da mata, onde Daniel incentiva a irmã a contar ao pai que sua filha “Esmeralda”
se encontra às escondidas com um rapaz no jardim da residência deles.
Com a vivência dentro do porão para pensar, no terceiro capítulo da obra
em apreciação, precisamente no quarto de hóspede, local em que ela se encontra
anteriormente por duas vezes com Daniel, Virgínia, ao olhar-se no espelho,
um símbolo de autoconhecimento, reconhece que é outra. De acordo com as
palavras do narrador: “Parecia-lhe ter mergulhado na vileza com a Sociedade
das Sombras”(LISPECTOR, 1998, p. 65).
Após essa experiência na “Sociedade das Sombras”, Virgínia chega a pensar
que: “[...]Um novo elemento até agora estranho penetrava em seu corpo desde
que existia a Sociedade das Sombras. Agora ela sabia que era boa mas que sua
bondade não impedia sua maldade”(LISPECTOR, 1998, p. 65). É ainda no terceiro
capítulo que Virgínia delata a irmã, incentivada por Daniel, tudo arquitetado
anteriormente como se fosse a mando da “Sociedade das Sombras”, e o pai
encolerizado bate no rosto de Esmeralda, desclassificando-a. De acordo com as
palavras do narrador: “O pai olhou para todos vitorioso, velho, sombrio. Nesses
momentos de raiva ele parecia mais gordo e menor. Mandou chamar Virgínia e
perguntou: - Pois ouça e confirme: essa vagabunda aí se encontra no jardim com
um macho”(LISPECTOR, 1998, p. 69). Quando Virgínia vê a fúria do pai, Esmeralda
aos prantos e a presença da mãe, essa pergunta “– Foi ela quem contou!? Gritou
a mãe”(LISPECTOR, 1998, p. 69). Virgínia nega e desmaia.
A partir desse episódio, os dois irmãos vão embora do casarão para continuar
os estudos na cidade grande. Na obra se percebe que o pai não gosta da filha
Esmeralda, mas tinha o propósito de custear os estudos dos dois filhos menores.
Eis os termos do narrador:

[...] o pai não olhava para Esmeralda como se ela fosse morta. A última
vez em que a tocara fora exatamente quando falara de novo na viagem
que Daniel e Virgínia fariam um dia para à cidade para estudar língua,
comércio e piano [...] com a outra, dissera ele, não faria o mesmo porque:
‘animal só se solta de casa sem dente’ (LISPECTOR, 1998, p. 18).

Após denunciar a irmã para o pai, Virgínia e Daniel foram continuar os


estudos em outra cidade, mas ambos não estudaram. E a história da vida dos
dois é contada no quinto capítulo, tendo em vista que no quarto capítulo Virgínia
já está vivendo sozinha, namorando Vicente. Entretanto, nas lembranças da
garota, a presença do irmão Daniel é ainda constante, dado que revela todo o
amor carnal desenvolvido entre os dois, especialmente por Virgínia, que, após
o relacionamento amoroso com Vicente, não deixa de pensar no irmão: “E de
Daniel agora, como recordá-lo? Estava turvado nele a maneira dela espiá-lo.
Lembrava-se dos dias decorridos no pequeno apartamento, daquela sensação
de familiar miséria cansada e expectante que ela num fim de degradação chegava
a amar comovendo-se” (LISPECTOR, 1998, p. 18).
Nota-se no fragmento acima que Virgínia, embora esteja se relacionando com
outro homem, não se esquece do irmão com quem passou grande parte de sua vida,
tendo um relacionamento incestuoso, que por suas palavras e pensamentos remetem
ao amor canal, isto é, ao indício que houve o incesto entre eles. Contudo Virginia
reconhece que a vida que leva é degradante. Pertinentemente, Freud constata que

197
[...] A mesma rejeição encontram, por exemplo, os trabalhos de Otto
Rank, que evidenciam cada vez mais como o tema do incesto está
no âmago do interesse dos escritores, fornecendo material à poesia
em incontáveis variações e distorções. Somos levados a crer que tal
rejeição é, antes de tudo, um produto da forte aversão do homem a
seus antigos desejos incestuosos, desde então submetidos à repressão
(FREUD, 2013, p. 11-12).

É no quinto capítulo, o maior, do romance em estudo, que o narrador conta


a maior parte da história de Virgínia, vivendo na cidade grande, longe de seus
pais, primeiramente com Daniel, com quem aprende muitas coisas, inclusive a
mentir, conforme as cartas que ele escreve ao pai, dizendo que estão estudando,
mas na verdade, eles não estudam e enganam o pai, que manda mesada e eles
gastam o dinheiro com festas e passeios. Conforme o narrador:

Na primeira carta para a Granja ele escrevera que estavam matriculados


num curso de línguas e que ele próprio arranja um piano vizinho em
que praticar. Na verdade não sabiam sequer como se mover, achar
cursos ou vizinhos. Pretendiam antes de tudo tranquilizar o pai e depois,
como o pai estava tranquilo, eles próprios acalmaram-se e esqueceram
qualquer curso e apenas viviam na cidade. E assim o dinheiro aumentava
de poder – Daniel gastava-o quase todo, aos poucos arranjara amigos
e encontrava-se com eles fora de casa, Virgínia passeava, passeava
(LISPECTOR, 1998, p. 116).

Ainda no quinto capítulo, os irmãos passam a viver juntos num apartamento


longe da família e fazem o que bem desejam, gastam o dinheiro com festas e
passeios e, nessa vida que levam, Daniel arruma uma namorada que apresenta a
Virgínia como noiva, o que é um choque para a irmã, segundo palavras de Daniel:
“Virgínia, esta é minha noiva Rute”. A irmã não sabe o que responder e o narrador
assim se pronuncia: “Durante minutos longos e ocos o quarto parecia vazio, a
casa silenciosa e cheia de vento. Mas Daniel, Daniel, como pudeste... Sobretudo
ela apenas conhecia Vicente e o amor parecia-lhe infamiliar, significava então
um brusco rompimento com o passado” (LISPECTOR, 1998, p. 117-118).
Pelas palavras do narrador, depreende-se que havia um relacionamento
incestuoso entre os dois irmãos. Até porque Virgínia reclama da postura do irmão
Daniel, que, após chegar à cidade grande, passou a conhecer várias jovens e
resolveu afastar-se da irmã.
Nesse momento da narrativa, Virgínia já conheceu Vicente numa das festas que
o irmão dela frequentava e vai se tornar amante do mesmo Vicente. Até então, não
havia nada sério entre eles e ela firma relacionamento após o casamento do irmão.
Pelo discurso do narrador, fica-se sabendo que, na nova cidade Virgínia percebia
Daniel a viver uma vida diferente daquela que levavam em Granja Quieta: “Era
finalmente o natural viver sozinha. Mal haviam alugado um apartamento, Daniel
possuíra uma vida onde ela já não cabia” (LISPECTOR, 1998, p. 115).
Até que um dia ele apresenta-lhe Rute com quem fica noivo e vai se casar
e viver em Brejo Alto. Nesse momento vê-se o sofrimento de Virgínia, que não
vai ao casamento. “Daniel levara Rute para Brejo Alto e lá se casaram. Virgínia
não foi assistir ao casamento. [...]. Fora então que atravessara um período, sim,
podia-se com certeza chamar de muito triste” (LISPECTOR, 1998, p. 120). Embora

198
posteriormente comece um relacionamento conjugal com Vicente, a presença
de Daniel em suas lembranças passa a ser um fantasma, porque ao lembrar de
Vicente, a imagem de Daniel vem à tona.
Após a mudança de Daniel para Granja Quieta, Virgínia vai morar com umas
primas, depois numa pensão e, por último, num apartamento. Quando a avó
falece, ela retorna à sua casa, onde Daniel está morando. Eles chegam a conversar,
mas Virgínia percebe que tudo mudou e retorna para a cidade onde reside o
amante Vicente.
Nos últimos capítulos do livro, Virgínia perambula na Granja Quieta,
convivendo novamente com o pai, a mãe, a irmã Esmeralda e o irmão Daniel,
lembrando-se da sua vida do passado ao lado do irmão. Contudo, observa que
tudo mudou. No entanto, o mito da infância permanece em sua memória e por isso
sofre, quando conversa com Daniel a respeito desse passado doloroso. Contando-
lhe que Vicente é seu amante, Daniel parece querer continuar a convivência com
a irmã, todavia ela compreende que pode também refazer sua vida com Vicente.
Desse modo, vai embora deixando Granja Quieta e Daniel, que passam a figurar
apenas como lembranças dolorosas de tudo que viveu no Casarão e arredores.
No retorno para a cidade grande, ao sentar no trem, ela pensa em Vicente, seu
amante. Em seguida, lembra-se de que não viu o Lustre, peça importante da sala
do casarão, que remetia a um passado glorioso da sua família e, na nova visão de
Virgínia, tinha se deteriorado. Insiste que não viu o Lustre, “pensou que o perdeu
para sempre. E sem se entender, sentindo um certo vazio no coração. Pareceu-
lhe ainda que na verdade, perdera suas coisas. Que pena, disse surpreendida”
(LISPECTOR, 1998, p. 263). Essas “suas coisas”, podem ser também a perda de
Daniel, visto que ela colocou um ponto final em tal relacionamento.
Agora, Virgínia parece ter se recuperado dos antigos sofrimentos causados
pelo irmão, e volta para uma vida nova na cidade grande, possivelmente para viver
com Vicente. Ao descer do trem, passa mal e, ao atravessar a rua, é atropelada
por um carro e morreu, longe de seus familiares.

Conclusão

Diante do exposto, vê-se que foram detectados fartos exemplos de passagens


em que podem ser observados os indícios de incesto praticados pelos irmãos
Daniel e Virgínia, os quais conviveram numa relação bem estreita desde criança
e em parte da adolescência, numa prática proibida pelos costumes da sociedade
deles. Nessa esfera, tais protagonistas do romance clariciano O lustre sabiam o que
estavam fazendo, mesmo cientes de estarem num relacionamento socialmente
interdito, não aceito. De onde os dois personagens em causa fazerem tudo
escondido e terem medo de serem descobertos num segredo que o irmão guarda
e que configura, de acordo com Freud, o tabu do incesto.

Referências

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos (mitos, sonhos,


costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Rio de Janeiro: José
Olympio, 2002.

199
FREUD, Sigmund. Totem e tabu: algumas concordâncias entre a vida psíquica dos
homens primitivos e a dos neuróticos. São Paulo: Penguin Classics - Companhia
das Letras, 2013.

GOTLIEB, Nádia Battella. Clarice: uma história que se conta. São Paulo: Edusp, 1995.

LISPECTOR, Clarice. O lustre. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

MARQUES, de Carvalho. Hortência. Belém: CEJUP, 1997.

NUNES, de Benedito. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector.


São Paulo: Ática, 1989.

______Leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Quíron, 1973.

QUEIRÓS, Eça de. Os Maias: episódios da vida romântica. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2014.

200
História e memória: a poesia nua de Adília Lopes188

Rayesley Ricarte Costa

188
Este texto é uma adaptação dos relatórios finais dos projetos de iniciação científica,
desenvolvidos no âmbito da Universidade Federal do Amazonas – UFAM, quais sejam: A
condição feminina em Adília Lopes, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico – CNPq, e Adília Lopes: uma literatura para reconstituir uma identidade
ferida, financiado pela UFAM.
Introdução

Neste texto são apresentadas discussões acerca da literatura de Adília, com


vistas a investigar em que medida sua produção atua como instrumento de
resistência e subversão, reconstruindo a identidade do sujeito feminino, vítima
das violências de gênero.
Dobra, poesia reunida de Adília Lopes, é objeto central deste estudo e nele
buscamos as formas de representação do feminino na sociedade a partir da
literatura. Para tanto, identificamos que a produção poética de Adília versa em
torno de questões corriqueiras do cotidiano, de modo que leva o leitor a refletir
criticamente a partir dela.
Adília, no texto “Sobre o meu novo livro de poemas”, afirma que

[...] cada verso, cada palavra é uma peça. Pela disposição na página e
pela feitura cada poema é um trança ou uma tripa. Não me contento com
pouco, só me contento com tudo, com o todo. Ou como dizia S. Francisco
de Assis (cito de cor), preciso de pouco, e desse pouco, preciso de muito
pouco. [...] os meus textos são políticos, de intervenção, cerzidos com a
minha vida (LOPES, 2014, p. 443).

A partir dessas palavras verificamos seu comprometimento com questões


sociais, sobretudo humanas, pois é dessa forma que denuncia, a partir de seus eu
líricos quase sempre femininos, o tratamento dado às mulheres em torno do que
se convencionou como padrão de comportamento ou de beleza. Desta forma, as
vozes dos poemas de Adília vão contra a ideia arraigada de que a mulher tem de
ser a que possui a fala “em tom professoral”.
Logo, a obra de Adília se apresenta como um mecanismo de subversão e
intervenção, postas as circunstâncias em que são representados os femininos – a
pluralidade do feminino. Em torno do poema, Octavio Paz aduz que

Todo poema, seja qual for a sua índole, lírica, épica ou dramática, manifesta
uma maneira peculiar de ser histórico; mas para captar realmente essa
singularidade não basta enuncia-la de forma abstrata [...] mas abordar o
poema em sua realidade histórica e ver de maneira mais concreta qual é
a sua função dentro de uma sociedade (PAZ, 2014, p. 200).

Ainda na perspectiva de Octavio Paz, reconhecemos, deste modo, que os


poemas carregam memórias e histórias, por serem eles mediadores dos tempos,
uma vez que o tempo original – o primeiro – se encarna num instante – o agora.
Logo, o poeta cria imagens e poemas; e o poema faz do leitor imagem e poesia.
Este estudo justificou-se por configurar-se em torno da produção literária
contemporânea de Adília Lopes, autora portuguesa, que está inclusa num grupo
social – o feminino – que merece destaque e reconhecimento por sua atuação
frente às questões de gênero, poder e violência, a partir das Letras.
Ao nos voltarmos à condição feminina, compreendemos que investigá-la, à
luz da Literatura, é pensar de que modo as personagens femininas são construídas
e representadas na sociedade a partir dessa literatura. Além disso, há de ser
pensada a autoria, se masculina ou feminina. Queiramos nós ou não, esse fato
– o da autoria - diz respeito às múltiplas formas de representação de um grupo
social que por muito tempo foi colocado à margem da sociedade.

202
Por estar à margem, a esse grupo sempre foram destinadas as tarefas mais
sensíveis e menos “mentais” (STEARNS, 2007), pois, deste modo, a sociedade
machista e patriarcal se organizaria para deixar a mulher longe do espaço público,
uma vez que é um espaço de saber e autonomia, de acordo com Patrícia Rocha
(2014) em Mulheres sob todas as luzes: a emancipação feminina e os últimos dias
do patriarcado. Essa perspectiva, infelizmente, ainda se faz presente neste século,
embora as mulheres tenham conquistado um espaço significativo na sociedade.
Em A Liga Republicana das Mulheres Portuguesas: uma organização política e
feminista, João Gomes Esteves traz à luz, por meio de epígrafe, Geraldine Scanlon.
Ela, por sua vez, aduz que “La educación es probablemente la condicion previa
más importante para la emancipación, pues la ignorância es un medio tanto para
mantener sometida a la mujer como para justificar ese sometimiento” (SCANLON,
1986, p. 15 apud ESTEVES, 1991, p. 74). Noutras palavras, a ignorância, a falta
de instrução é o principal meio para manter a mulher subalternizada. Por esse
mesmo viés, mais a frente, Esteves (1991) elucidará que a Liga assume a máxima
de que educar é lutar, haja vista que “é a educação que pode transformar os
costumes, aperfeiçoar os caracteres e preparar um futuro melhor” (p. 75).
Nesse sentido, movimentos feministas lutaram para que tivessem ascensão
por meio da instrução, pois dessa forma poderiam estar em igualdade e partir
para o espaço público. Destarte, Ana de Castro Osório propõe que enquanto as
reacionárias189 “levantarão igrejas, nós abriremos escolas” (OSÓRIO, 1909, p. 2
apud ESTEVES, 1991, p. 75). Essa assertiva nos leva a refletir acerca da influência da
Igreja no comportamento feminino, já que sempre buscou pregar a desigualdade,
submissão ao homem, em vez de pregar a equidade.
As questões aqui colocadas se fazem indispensáveis para pensarmos o
espaço feminino conquistado na literatura. As obras trabalhadas no ensino básico
e superior quase sempre são de autoria masculina – não há o que contestar,
talvez, quanto à qualidade das obras escolhidas; o que deve ser contestada é
a pouca inserção de obras de autoria feminina, perpetrando assim a falta de
reconhecimento pelo cânone; vez ou outra uma feminina é levada à luz por
pertencer ao cânone literário. Outras não têm suas obras reconhecidas, embora
sejam produções que merecem destaque quanto à qualidade da autoria.
Fazem-se, pois, necessários estudos que versem em torno da produção literária
feminina, para que, assim, a História possa ser contada a partir de um outro olhar, o
do feminino. É a isto que nos propomos, com a análise da produção de Adília Lopes.

Perspectivas históricas: mulheres de/em luta

Por meio da História é possível identificar movimentos feministas que


ocorreram em torno das últimas décadas do século XIX e disseminaram por todo
o mundo uma reflexão crítica acerca da condição da mulher na sociedade; eles
são reconhecidos como fundamentais na luta pela igualdade entre gêneros, uma
vez que discutiram e elaboraram teorias para a Sociologia, Psicologia e Ciências
Humanas em geral.
O termo “reacionárias” é usado por João Gomes Esteves para introduzir a citação de Ana
189

de Castro Osório. Talvez, Esteves não tenha pensado a respeito das imposições da igreja e da
sociedade de modo geral, e as tenha classificado, as que estavam para cumprir as doutrinas
da igreja, de modo equivocado, pois não é uma questão tão simples quanto parece; envolve,
sobretudo, questões estruturais. As que estavam a “abrir igrejas”, sempre estiveram cercadas de
ensinamentos religiosos e não científicos, possivelmente.

203
A mulher por muito tempo foi considerada à margem da sociedade e a ela eram
designadas as tarefas domésticas que se restringiam aos cuidados com a família e,
sobretudo, à submissão ao marido. O feminino foi silenciado durante séculos, haja
vista que o poder é centrado no patriarcado e se o feminino expressasse desejos
que fossem discrepantes à sua condição, à época, era taxado como o que fere os
direitos do homem. Rocha (2009) afirma que “para impedir o avanço feminino
[...] a sociedade se organizou para manter a mulher no espaço privado longe da
‘tentação’ do espaço público, fonte de saber e autonomia” (p. 147-148).
A ideia de subalternidade é sustentada por antropólogos, sociólogos e
historiadores quando se voltam ao tipo de organização social das sociedades
primeiras e ao modo de subsistência. Peter N Stearns em História das relações de
gênero aduz que: “a maior parte das sociedades agrícolas tinha desenvolvido novas
formas de desigualdades entre homens e mulheres, num sistema geralmente
chamado de patriarcal – com o domínio de maridos e pais”(STEARNS, 2007).
Exemplifica pela vivência em grupo, na qual o homem percorria o campo em
busca de animais para a sua alimentação enquanto que as mulheres estavam
entregues às atividades de reprodução e à colheita da plantação nas imediações
do habitat. Considerava-se então, a caça como atividade nobre e a agricultura
sem qualquer valoração. A partir dessas diferenças iniciais é que se deram as
desigualdades.
Karl Marx e Friedrich Engels, ao discorrerem em A Ideologia Alemã sobre
as relações que intervém no processo de desenvolvimento histórico, afirmam
que a subordinação ou inferioridade a outro, em graduação ou autoridade, está
ligada ao fato de que o homem, entendido como plural, renova a própria vida e
cria outros homens a fim de estabelecer que

a relação entre o homem e a mulher, os pais e os filhos, é a família.


Esta família, que é inicialmente a única relação social, torna-se em
seguida uma relação subalterna [...] quando as necessidades acrescidas
geram novas relações sociais e o aumento da população gera novas
necessidades; por conseguinte deve-se tratar e desenvolver o tema da
família segundo os fatos empíricos existentes [...] (MARX e ENGELS,
1998, p. 36).

Durante séculos foi dado ao homem o poder da intelectualidade, da força,


destreza na realização de atividades e, à mulher, foram dados “os traços mais
emotivos e menos mentais” (STEARNS, 2007). O reforço à inferioridade e a seus
papéis altamente domésticos é sustentado pelo discurso da década de 60, mas que é
reflexo das décadas anteriores: “saber em mulher é o mesmo que marcha em égua”.
A égua, à época da enunciação, não tinha outro prestígio aos donos senão o
de procriar embora tivesse as mesmas aptidões e condições dos cavalos. Mas para
ostentar um “poder”, o homem nunca selava uma égua para ir à cidade mesmo
sabendo que podia levá-lo ao mesmo destino que o cavalo. Ao estabelecer esses
extremos: conhecimento vs mulher e marcha vs égua, verificamos que para o
pensamento retrógado, machista e misógino são dicotomias impossíveis de se
realizarem e a mulher continua não tendo reconhecimento e qualquer valorização
social e perguntamos: Para que instruir o que se tem como inferior? Quem vai
querer igualar a égua ao cavalo e quem vai querer mostrar a égua à sociedade
e perder o poder?

204
A mordaça, ainda que simbólica ou invisível, era colocada na mulher
quando saía do privado ao público na companhia do pai ou do marido na ideia
de adestrar, manipular, assim como o cabresto é fundamental para marcha na
égua. Stearns diz que:

[...] A desigualdade das mulheres tendeu, além do mais, a aumentar,


com o passar do tempo, à medida que as civilizações agrícolas se
tornavam mais bem-sucedidas. A lei judaica, surgida um pouco depois
do Código de Hamurabi, era mais severa no tratamento da sexualidade
das mulheres ou de seu papel público. Em outras partes do Oriente
Médio, surgiu o uso do véu quando as mulheres estivessem em público,
como sinal de sua inferioridade e de seu pertencimento a pais e maridos
[...] (STEARNS, 2007, p. 33).

É perceptível que o homem desses tempos reconhecia que a mulher podia


ocupar uma posição de poder igual a dele e por isso temia que o conhecimento
chegasse ao feminino e tivesse visibilidade e oportunidades de instrução para tal.
Em se tratando do problema estrutural, criado pela sociedade, Pierre
Bourdieu, em A dominação masculina, apresentará o modo como a sociedade
determinou às mulheres papéis subalternos. Nas palavras dele:

As regularidades da ordem física e da ordem social impõem e inculcam


as medidas que excluem as mulheres das tarefas mais nobres (conduzir
a charrua, por exemplo), assinalando-lhes lugares inferiores (a parte
mais baixa da estrada ou do talude), ensinando-lhes a postura correta
do corpo (por exemplo, curvadas, com os braços fechados sobre o
peito, diante de homens respeitáveis), atribuindo-lhes tarefas penosas,
baixas e mesquinhas (são elas que carregam o estrume, e na colheita
das azeitonas, são elas que as juntam no chão, com crianças, enquanto
os homens manejam a vara para fazê-las cais das árvores), enfim [...]
(BOURDIEU, 2012, p. 34).

Deste modo, são estabelecidas as relações de poder, considerando o gênero


como fator determinante para tais. A submissão feminina, para Bourdieu, “parece
encontrar sua tradução natural no fato de se inclinar, abaixar-se, curvar-se”(p.
38), ou mais, reconhecer-se inferior. Por outro lado, em se tratando da figura
masculina, “a honra masculina pode ser traduzida como enfrentar, olhar de
frente e com a postura erecta (que corresponde à de um militar perfilado entre
nós)”(p. 38). Percebe-se, a partir das ideias apresentadas por Bourdieu, que há
uma necessidade da sociedade machista em determinar os papéis de gênero,
dando ao homem o direito e às mulheres o dever.
Patrícia Rocha, ao resgatar a história de mulheres revolucionárias, traz à luz
Mary Wollstonecraft com a obra Vindication of the rights of woman (Reivindicação
dos direitos da mulher), publicada em 1792:

[...] Mary Wollstonecraft contestou o pai da Revolução Francesa,


Jean Jacques Rousseau, ao argumentar que as mulheres não eram
naturalmente inferiores aos homens, elas apenas não recebiam condições
necessárias de educação para manifestar e desenvolver potenciais.
Por séculos, as restrições educacionais sofridas pelo sexo feminino
mantiveram-no em “estado de ignorância e dependência escrava”.

205
Ressaltou a importância da formação escolar para as mulheres se
lançaram no mercado de trabalho e conquistar a tão desejada autonomia
financeira [...] (ROCHA, 2009, p. 128).

Em caráter de estudo destaca-se agora uma mulher portuguesa que,


dependente da tradição e das leis, encontrava-se, em pleno século XIX, em
condições subalternas e, tal como suas semelhantes, lutou a fim de melhorar as
relações sociais e entre gêneros.
O Código Civil de 1867, em vigor até 1967, obrigava a mulher casada a
residir no domicílio do marido, prestar-lhe submissão e não dava autonomia
para administrar ou adquirir bens. Consoantes ao homem e à mulher o Código
apresentava cláusulas que os diferenciavam e, toma-se como exemplo o fato do
masculino requerer o divórcio sempre que a esposa praticasse adultério, enquanto
que o feminino, por sua vez, só poderia solicitar se o homem tivesse praticado
com escândalo público.
Em 1909 surgiu a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, no comando
da médica Adelaide Cabete e a escritora Ana de Castro Osório, mulheres instruídas,
para promover uma reflexão contra o juízo de inferioridade perpetrado ao longo
dos anos e difundir os ideais de emancipação feminina. Com a atuação dessas
mulheres, em 1910, com a proclamação da primeira República, houve mudanças
na Lei do Divórcio e da Família. Estabeleceu-se a igualdade entre os cônjuges no
que diz respeito às causas da separação. Além disso, fundaram uma biblioteca
e publicaram estudos destinados a instruir mulheres, que por muito tempo
estagnaram diante do desenvolvimento da sociedade, para melhor desempenhar
as funções de educadora e protagonista da coletividade futura.
Juntas ao homem competiam no mercado de trabalho e na administração
de bens e fundos, depois de conquistarem a emancipação.
Salazar, empossado em 1932, ao ser perguntado sobre o papel da mulher
no novo governo, diz que a mulher, assim como homem, é o esteio da estrutura
familiar – o homem deve lutar com a vida, na rua, pela garantia da estrutura
enquanto que a mulher deve defendê-la no interior da casa – o que, em um
primeiro momento, nos leva a crer em uma igualdade, mas em sua análise,
identificamos um discurso anacrônico disfarçado de equidade para perpetrar
ainda mais a dessemelhança, uma vez que faz com que a mulher retorne ao lar.
Salazar valoriza o papel de mãe e de esposa. Resta saber o que se deve entender
por valorização, postas as circunstâncias.
O casamento, em 1940, em decorrência da celebração da Concordata entre
Santa Sé e o governo português, foi considerado indissolúvel e por consequência,
todos os casados pela Igreja – consiste na maioria – não podiam voltar a constituir
matrimônio uma vez separado. Um terrível golpe à lei da república de 1910.
Condição que vigorou até 1974.
A Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974, depôs o governo ditatorial
do Estado Novo que detinha o poder desde 1933. Passou-se então a viver um clima
de liberdade e propiciou a implantação de um regime democrático de direitos.
Na transição da ditadura à democracia, Irene Vaquinha aduz “que a história das
mulheres foi um dos campos de investigação que então emergiu, beneficiando de
uma série de circunstâncias favoráveis que proporcionaram o seu acolhimento
no seio da disciplina histórica” (VAQUINHAS, 2002, p. 203).

206
Com a renovação da docência nos centros universitários, introduziram-se
correntes inovadoras influenciadas pela escola francesa dos Annales, que se
destacou por incorporar as Ciências Sociais à História, e pela “nova história”
de caráter antropológico a partir dos estudos da vida cotidiana e privada e
vocacionada também para a investigação das “alterações na própria sociedade
portuguesa, em particular a entrada massiva de mulheres no ensino superior”
(VAQUINHAS, 2002, p. 203) e, este fato, foi importante para divulgação de
novidades temáticas e incorporação nos grupos de estudo das universidades.
Em 1967 houve um ciclo de conferências, iniciativa da Associação Acadêmica da
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, intitulado A mulher na sociedade
contemporânea que tinha como ideal as perspectivas feministas. Eventos desse
tipo só tiveram continuidade depois do 25 de abril de 1974 e compreende-se desde
então que estes movimentos feministas é que colocaram a mulher na cena da
história antes gerida pelo masculino.
Nos anos 80, época em que Adília Lopes estreia na literatura, é que os
intelectuais se voltam a investigar as mulheres no anonimato, das quais quase
nada se sabia. Nesta era, a história das mulheres, acompanhadas da “sensibilidade
de investigadores para os temas relacionados com o feminino e o seu acolhimento
por parte do público discente” (VAQUINHAS, 2002, p. 204), espalha-se no ambiente
universitário.
Dos anos 90 para cá, houve a institucionalização, como campo particular
do conhecimento acadêmico, dos Estudos das Mulheres. A Universidade Aberta
(Lisboa) foi precursora neste assunto, “ao criar, em 1995, o primeiro Mestrado
em Estudos das Mulheres, de caráter interdisciplinar, com particular incidência
nas áreas de história, literatura e sociologia” (VAQUINHAS, 2002, p. 207).
Hoje, em pleno século XXI, mulheres ainda sofrem com o reflexo de tempos
em que ser mulher era considerado um problema; ser mulher e não ser casada,
outro, e, ser mulher casada e não ter filhos constituía problema ainda maior.
Muito se conquistou e muito precisa conquistar-se através da luta incessante
por igualdade e visibilidade social, pois MUITAS ainda continuam no anonimato,
talvez por repressão e medo.

Adília desnuda: a poesia nua

Os escritos muito têm que dizer sobre seus autores. As palavras tratam do
que há e do que pode vir a ser. Sob esta ótica os textos são analisados, quando
entendidos como ficcionais e, embora ficcionais, carregam aspectos da relação
entre o autor e o mundo, o universal, e o mundo particular, subjetivo, que lhe
permite existir e criar existências.
Não diferentemente, Adília Lopes apresenta-se ao leitor, revelando-se dona
de uma voz que, aos poucos, torna-se audível para os estudos literários. Mais
que isso. Adília dá voz, nos seus poemas, às mulheres que ainda precisam lutar
duplamente para voltar aos espaços que lhes foram tirados. “Ao próximo” dá
sustentação a nossa ideia: “Ao próximo /dou a mão / ou a lira / é em vão / Escrevo
/ este poema / para os / e as / que não têm / mãos”190 (LOPES, 2014, p. 545).

Apresentamos os poemas desta forma por pura economia de espaço, para que mais poemas
190

possam ser apresentados e discutidos. O uso de uma barra indica o verso, enquanto que o uso de
duas barras indica linha em branco, marcando as estrofes.

207
A escrita, não só em Adília, mas em todas as que são citadas por ela (e para
além delas), como Florbela Espanca, As três Marias das Novas Cartas Portuguesa,
Mariana Alcoforado das Cartas Portuguesa, Clarice Lispector, dentre outras, atua
como mecanismo resistência, desde a luta travada para terem acesso à educação até
serem consideradas, por meio de suas produções, passíveis de estudos por outros.
Nesse sentido, dispensamos, nessa sessão, análises sobre os poemas de Adília
Lopes, de modo a verificarmos como se dá o processo de escrita, revelando a arte
poética da escritora, como se vê no primeiro poema da seleção que fizemos:

Escrever um poema / é como apanhar um peixe / com as mãos / nunca


pesquei assim um peixe / mas posso falar assim / sei que nem tudo que
vem às mãos / é peixe / o peixe debate-se / tenta escapar-se / eu persisto /
luto corpo a corpo / com o peixe / ou morremos os dois /ou nos salvamos
os dois /tenho de estar atenta / tenho medo de não chegar ao fim / é
uma questão de vida ou de morte / quando chego ao fim / descubro que
precisei de apanhar o peixe / para me livrar do peixe / livro-me do peixe
com o alívio que não sei dizer (LOPES, 2014, p. 12-13).

O poema “Arte Poética” apresenta, alegoricamente, a fusão da vida à arte,


apresentando-se esta última como resultado dos processos de criação. Pescar
peixes com as mãos, embora não improvável, requer habilidades e destreza,
sobretudo quando este peixe representa o que não está inteiramente sob o
controle do pescador/escritor.
Escrever um poema é, antes de qualquer coisa, entregar-se à luta, sabendo
que nem tudo que vem às mãos é peixe, como dito pelo eu lírico, questionando
a máxima “tudo o que vem à rede é peixe”; logo, nem tudo que vem às mãos é
poema, é necessário moldar, pois as palavras debatem-se e escapam-se, para,
enfim, devolver em forma de arte ao livro.
Embora encontre resistência no processo de criação, a voz lírica demonstra-se
persistente, lutando, de modo a sobreviver por e com as palavras ou morrer com
elas e por as palavras. A luta, pois, nos moldes apresentados pela “Arte Poética”,
é uma questão de vida ou de morte, vida ou morte das palavras ou de quem as
quer como instrumento para a sobrevivência.
Faz-se necessário observar também o modo como é finalizada a arte poética.
Para que ela aconteça é preciso apanhar as palavras que pintarão a cena; depois
de pintada, as palavras são devolvidas à normalidade de seus significados, ficando,
entretanto, a ressignificação das mesmas nos quadros que compõem os livros.
Ademais, pode-se dizer que a luta travada consiste na necessidade de exteriorizar
os sentimentos que, há muito, afligem a existência de quem os possui.
Tratemos agora de outro poema de Adília, intitulado de “Os poemas que
escrevo”: Os poemas que escrevo / são moinhos / que andam ao contrário / as
águas que moem / os moinhos / que andam ao contrário / são as águas passadas
(LOPES, 2014, p. 25).
Há que se dizer que uma das características de Adília em seus poemas é a
ressignificação do que já foi dito antes dela. Verifica-se que a autora, no poema acima,
se utiliza de um dito popular (águas passadas não movem moinho) para discorrer
sobre sua escritura, mas vai além, discorre sobre o resultado da sua produção.
Sendo seus poemas moinhos que andam ao contrário, pode-se aduzir que
seus poemas não se adequam às normatividades e não seguem a ordem “natural”

208
das coisas. Vê-se ainda que em vez de se utilizar de “as águas que movem os
moinhos [...] são as águas passadas”, utiliza-se de “as águas que moem moinhos
[...] são as águas passadas”, marcando talvez que as águas passadas são ponto de
partida para a escrita de seus poemas. Isto pode significar dizer que seus escritos
também são resultados de um passado que se faz presente.
“Um figo” é o título do terceiro poema que selecionamos para análise. É o
que segue:

Deixou cair a fotografia / um desconhecido correu atrás dela / para lha


entregar / ela recusou-se a pegar na fotografia / mas a senhora deixou
cair isto / eu não posso ter deixado cair isto / porque isto não é meu /
não queria que ninguém / e sobretudo um desconhecido / suspeitasse
que havia uma relação / entre ela e a fotografia / era como se tivesse
deixado cair / um lenço cheio de sangue / porque era ela quem estava na
fotografia / e nada nos pertence tanto como o sangue / por isso quando
uma pessoa se pica num dedo / leva logo o dedo à boca para chupar o
sangue / o desconhecido apercebeu-se disso / é um retrato da senhora /
pode ser o retrato de alguém / muito parecido comigo / mas não sou eu
/ o desconhecido por ser muito bondoso/ não insistiu / e como sabia que
os mendigos / não têm dinheiro para tirar fotografias / deu a fotografia
a um mendigo / que lhe chamou um figo (LOPES, 2014, p. 124).

Cremos ser este poema de Adília um enigma, para o qual não há resolução
precisa, mas possibilidades de se chegar a uma leitura minimamente possível.
Dado o objetivo de desvelar Adília e sua poesia, podemos inferir que no poema
em questão há uma aproximação da artista com sua obra, o quadro pintado por
suas palavras, ou melhor, a fotografia tirada sob sua ótima. Dizemos deste modo
porque consideramos a fotografia como o poema de Adília, tendo nele, certamente,
a presença das ideias da autora, pois: A poetisa / não é / uma fingidora // Mas /A
linguagem-máscara / mascara (LOPES, 2014, p. 572).
Ao dizer isto, consideramos também o problema teórico de por vezes lermos
a produção literária da autora, buscando encontrar estrita ligação com sua vida
particular, como se a sua obra fosse uma extensão dela. Embora seja possível
essa análise, muito pouco tem a contribuir para nosso estudo, por isso buscamos
o distanciamento da figura autoral.
A voz lírica, construída por Adília, é resistente à interpelação do desconhecido,
tentando convencê-lo de que a fotografia nada tinha que ver com ela, mesmo
que as características das duas pudessem se fundir, tornando-se indissociáveis.
A narração do poema busca associar a presença da personagem do poema com
a personagem da fotografia, ao tratar do sangue como propriedade humana,
devolvendo-o a si depois de uma picada no dedo. Nesse sentido, a fotografia seria
como sangue, pois nela havia marcas de quem a deixara cair.
Talvez sejam assim os poemas de Adília, uma parte de si fora de si. Estando, pois,
do lado de fora, deixa de pertencer a ela, representando talvez apenas um recorte,
tal qual a fotografia, de sua experiência, simulado por outra voz que não a dela.
Há de notar ainda que, depois de estabelecida a comparação da fotografia
com o sangue, volta-se à fala das personagens, a do desconhecido “é um retrato
da senhora” e a da mulher “pode ser o retrato de alguém muito parecido comigo
/ mas não sou eu”, o que nos permite dizer, alegoricamente, que, embora haja
semelhança entre autora e obra, não é a autora a personagem de suas produções.

209
Podemos aduzir, ainda, que os poemas de Adília tornam-se populares, porém
não acessíveis como deve ser, à medida que os estudos literários se voltam a
investigá-los, fazendo menção ao fechamento de “Um figo”, no qual há entrega
da fotografia a quem pouco tem acesso, e vamos além: resgatamos Adília para a
apresentação de suas fotografias poéticas.
Finalizamos esta sessão com discussão breve sobre o poema “Textos”, que
segue:

Textos / ensanguentados / com feridas // Gralhas / ensanguentadas //


Textos / gelados / como árvores / no Inverno // Textos / como árvores
/ cortadas / aos bocados // Textos / como lenha// Textos /como linho /
Textos / brancos / como a noite // Textos / brancos // como a neve // Textos
/ sagrados // Textos / bifurcados / como ramos // Textos / unos / como
troncos (LOPES, 2014, p. 553).

Voltamo-nos à metalinguagem para discorrermos acerca do poema. Longe


de explicar como se constitui, a estruturação do poema e os adjetivos atrelados
à palavra “texto”, pode-se dizer, fazem referência a toda produção de Adília, de
modo a caracterizar o teor dos escritos da autora. São, desta feita, textos que vão
do inverno ao verão, da ferida à cicatrização, do sangue à ausência dele, do cinza
ao colorido, tornando-os únicos, à medida que a eles são dispensadas reflexões;
textos que denunciam a violência; que, embora curtos, propagam-se, tão logo
transposto ao papel (gralhas191 ensanguentadas).
Resgatando os títulos de nossos projetos, os poemas adilianos funcionam
como mecanismo de reconstituição da identidade dos sujeitos que estão à margem
da sociedade, na medida em que critica e denuncia as injustiças a que estão
submetidos, e que, em muitos, casos tornam as vítimas ensanguentadas, restando
a elas grito de dor que ecoa através dos textos de Adília Lopes.

Violência, violências: um cotidiano em Adília Lopes

As obras literárias, se analisadas a partir das relações sociais, por meio da


sociocrítica, permitem reflexões para além do próprio texto, isto porque se busca
a compreensão dos fatos nele estabelecidos e sua relação com o real, observando
que este último é relativo e apresenta-se a partir das múltiplas perspectivas.
Em torno dessa afirmativa, reitera-se a possibilidade de a literatura
representar a vida comum dos que estão à margem, sujeitos à violência em suas
variadas formas192.
Em se tratando da representação, tem de ser levado em consideração o
local de fala, bem como o local de onde se ouve a fala, tal qual propõe Regina
Dalcastagnè (2008) no texto “Vozes nas sombras: representação e legitimidade
na narrativa contemporânea”. Desta forma, compreenderemos “quem fala e em
nome de quem”, considerando o discurso, a partir de uma análise, autêntico,
legítimo ou não.

Pássaros de pequeno porte, de sons estridentes.


191

192
Tem de se pensar aqui se há uma compreensão por parte da sociedade em relação às variadas
formas que a violência pode se apresentar, posto que pode ser verificada a banalização tanto das
mais sutis, quanto das mais explícitas.

210
Estudos, há muito, voltam-se a investigar a condição do feminino na literatura
à luz das relações na sociedade contemporânea, momento em que se verifica a
permanência de uma mentalidade patriarcal, machista e misógina, que se articula
para manter as vozes femininas silenciadas.
O silenciamento pode ser verificado em torno das personagens femininas
que, como personagens, poderiam ter direito à voz, mas não têm, sendo
apresentada apenas uma versão dos fatos, a do masculino, como acontece em
Dom Casmurro, de Machado de Assis. Explícito em “A língua do P”, de Clarice
Lispector, quando, para desmoralizar Cidinha, dizem que ela está doida, dada a
sua postura para se livrar de ser violentada sexualmente pelos dois homens que
falavam incansavelmente a língua do p, a qual, para Cidinha, era difícil demais
de ser explicada; subentende-se que a dificuldade consistia em ser ouvida pelos
policiais. O assédio sexual, infelizmente, assume protagonismo em se tratando das
violências sofridas por mulheres, por isso, há movimentos que visam a incentivar
as vítimas a denunciar os casos de que fizeram parte. À medida que avançarmos
esse estudo, apresentaremos poemas que versem sobre a temática.
Pensa-se também o silenciamento para além do plano literário, quando se
identifica que a autoridade entende que “não houve constrangimento, tampouco
violência ou grave ameaça”, ao discorrer sobre um caso de violência não só sexual,
mas também psicológica, ocorrido em São Paulo, no transporte público.
Pode ser notado também dentro da academia, quando elencam para os
estudos literários obras de autoria predominantemente masculina, bem como
a partir dos Editais – vale ressaltar que são atuais, correspondentes às provas
aplicadas em 2018 – do Processo de Seletivo Contínuo193, quando, para os dois
primeiros anos do Ensino Médio, em se tratando do conteúdo programático, não
são indicadas obras de autoria feminina.
Sobre isto, poder-se-ia dizer que mulheres não escreveram (quando
na verdade há registro de autoria feminina em todos os momentos literários
demarcados na historiografia literária), no campo das literaturas, no período
“origens”, barroco e árcade; conteúdos indicados para a Primeira Fase. Mulheres
não escreveram também no período d”O homem romântico”, do Realismo,
Naturalismo e Parnasianismo, tampouco do Simbolismo e Pré-modernismo;
conteúdos indicados para a Segunda Fase. Para a Terceira Fase, três escritoras
tiveram seus nomes citados. Cecília Meireles: geração de 30; Clarice Lispector:
geração de 45; e, Lygia Fagundes Telles: a literatura na pós-modernidade.
Esses são, seguramente, assuntos que permeiam a representação do feminino
no espaço não só da literatura, mas também no espaço social, isso porque é a
partir dele que se estabelecem as relações de gênero. Nesse sentido, este texto
pretende apresentar algumas das muitas violências (noticiadas) sofridas por
mulheres, enfatizando o abuso sexual, a partir de uma simples busca em sítios
de internet – sem se esquecer, certamente, dos casos que não são exibidos pela
mídia. Além disso, serão apresentados poemas de Adília Lopes, analisados a partir
da transposição do real para a ficção.

(PSC) Vestibular, realizado em três etapas, uma a cada série do Ensino Médio, para ingresso
193

na Universidade Federal do Amazonas.

211
Os poemas

O cotidiano permeia boa parte da obra de Adília Lopes. Como já dissemos, o


lugar comum na poesia de Adília é o corriqueiro e, por meio dele, suas construções
poéticas atuam como questionadoras da ordem, pautada na construção social.
Tomemos como ponto de partida desta seção os poemas “Body art?” e
“O 38 vai cheio”, publicados em 1999, no livro Sete Rios entre Campos, ambos
tendo o transporte público como cenário. Sobre o primeiro, há uma discussão
de nossa autoria no relatório final do projeto “A condição feminina em Adília
Lopes”, finalizado em 2017, no entanto, não nos voltamos à violência “comum”
nos transportes públicos, abordagem que pretendemos neste ponto do trabalho.
Para fins de ilustração e nova abordagem, apresentamo-lo:

BODY ART? / Com os remédios / engordo 30 Kg / o carteiro pergunta-me


/ para quando / é o menino / nos transportes públicos / as pessoas
levantam-se / para me dar o lugar / sento-me sempre / Emagreço 21
Kg / as colegas / da faculdade de letras / perguntam-me / se é menino /
ou menina // No metro / um rapaz / e um velho / discutem / se eu estou
grávida / o rapaz quer-me / dar o lugar // Detesto / o sofrimento (LOPES,
2014, p. 338-339).

Do poema depreende-se uma voz lírica a relatar uma situação constrangedora


e recorrente no transporte público. Trata-se de um olhar sobre o corpo feminino
que não se enquadra nos moldes estabelecidos e difundidos amplamente pelos
veículos midiáticos, por exemplo. Logo, parece-nos que há uma tentativa de
justificar a aparência física do feminino que está fora dos estereótipos. Nesse
sentido, “gordo” não pode estar.
Além disso, vale atentar-se ao título do poema, que pode significar mudanças
contínuas, em decorrência de problemas de saúde, que podem ser inferidos pelo
início da composição, o que nos leva a inferir que a preocupação está em relação
ao externo, sem reflexões mais amplas. Porém, verifica-se também que o dilema
estende-se até ao emagrecimento de 21 quilos do eu lírico, evidenciando o não
contentamento da sociedade em relação ao corpo feminina.
Há, desta feita, uma exposição ao público em relação a um sujeito. Poder-se-ia
aduzir que, neste contexto, o corpo feminino atrela-se ao sintagma “transporte
público”, uma vez que carrega sobre si o ódio gratuito, a incompreensão de outrem.
Analisemos o segundo poema: O 38 vai cheio / um homem / dá-me beliscões
/ no rabo / entre o Campo Pequeno / e o Saldanha / que hei-de eu fazer? / se digo
alguma coisa / ainda fazem troça / de mim /deixo de poder / rêssaver / fico mais
pobre (LOPES, 2014, p. 339).
Neste poema a violência é mais latente, dadas as circunstâncias em que
ocorre, bem como o sentimento de impotência da vítima. Trata-se, explicitamente,
de uma voz lírica a relatar o constrangimento em meio ao assédio sofrido em um
transporte público. Esta, infelizmente, é uma realidade da condição feminina, de
modo que mulheres têm seu espaço invadido, como se os que invadem tivesse o
“direito”, sendo este inerente a sua condição de homem, no contexto do poema.
O espaço feminino é facilmente invadido e esta invasão provoca danos, às
vezes irreversíveis, isto se pensadas as diversas violências. No sétimo, oitavo e
nono versos, o sujeito lírico declara ser impotente, não tendo sua voz legítima, num

212
meio em que consideram as vítimas culpadas: “se digo alguma coisa / ainda fazem
troça / de mim”. Desta forma, o feminino é silenciado, deixando de denunciar os
casos de assédio, por considerar, baseado em experiências próprias, que sua voz
não será ouvida.
Ademias, “a troça”, o riso, desqualifica o discurso de quem está a proferi-lo. O
riso, desta feita, declara o que não é passível de credibilidade, podendo a mesma
violência ser repetida, justamente porque encontra em quem se amparar, fazendo
com que seja tido como menor o fato ocorrido.
Importante notar o trauma que fica nas vítimas de violência (não só nestas,
mas também nas que são submetidas às condições de gênero, construídas
socialmente) deixando, por exemplo, de frequentar espaços públicos por
se sentirem inseguras durante o trajeto. Em suma, A sociedade faz troça, o
representante, que nada representa, da sociedade faz troça, o juiz, com a justiça
injustiçada, faz troça... Desta feita, mulheres vivem reféns. A elas não são dados
os direitos e delas são tirados os poucos que conquistaram. Em meio aos direitos,
suprimem-lhes o “poder rêssaver”, o poder caminhar, transitar. Que hão de fazer?
Resistir, tal qual propôs o eu lírico em epígrafe deste texto, afirmando, certamente,
que é uma luta diária e necessária, mesmo que tenha de arriscar a pele; além
disso, por meio da literatura, as vozes femininas tornam-se atuantes na luta por
ter o direito ao espaço de seus corpos, sem intervenção de outrem.

Adormecer e absolver: a (in)transitividade em dois poemas de Adília

Discorreremos aqui sobre os poemas “Adormecer” e “Absolver”, apresentados


em Dobra, seguidamente. A escolha dos dois poemas se deu porque apresentam
estruturas semelhantes e fazem referência a dois escritores portugueses: Maria
Teresa Horta, em Adormecer, e Herberto Helder, em Absolver, no entanto, não
nos ocupamos em investigar a intertextualidade, mas compreendê-los em linhas
gerais, aproximando-os quanto aos temas, observando em que medida um é
extensão do outro. Observemos o primeiro:

ADORMECER
(com algumas coisas de Maria Teresa Horta)
Preciso de te tocar / caule / gato / corda / mão / abraço-te / a tua roupa / tu
/ não te divulgo / o teu nome / os teus olhos azuis / a tua gentileza /espero
que os partilhes / com alguém querido / como os partilhaste / comigo /
amante querido / que não perco / que não deito fora / os meus amantes /
não são Gillettes / (não são de usar / e deitar fora) / gosto de adormecer / a
lembrar-me de ti / de como me sorrias / de como me olhavas / se os meus
poemas / contribuíram para isso / são excelentes (LOPES, 2014, p. 189).

Depreende-se do poema a entrega do eu lírico, supostamente feminino, ao


amante, com quem tem relações não formalizadas por namoro ou casamento. A
entrega, porém, não se restringe ao sexo, mas ao convívio, mesmo que efêmero,
como percebido no poema, a partir da necessidade de tocar o amante, desfazendo-o
e refazendo-o, quando da pormenorização dos primeiros versos curtos, apontando
para uma espécie de ritual.
Verifica-se também que as relações ficam enclausuradas, sem que a nós fique
claro o motivo; vê-se, certamente que o “não te divulgo” expressa a necessidade do

213
anonimato. Ao avançarmos a leitura do poema, percebemos que há a lembrança
dos encontros com o amante, de como estes fizeram bem a voz lírica, e continuam
a fazer mesmo que pelo resgate da memória.
Não podemos afirmar, necessariamente, que o poema seguinte, Absolver, é
extensão do “Adormecer”, mas é possível que seja, sobretudo a partir das análises
que dispensamos a eles. Absolver é o que segue:

ABSOLVER
(com algumas coisas de Herberto Helder)

“Mas Maria guardava todas estas coisas, conferindo-as em seu coração”.

Lc 2, 19

Chama-se sexo / a uma parte do corpo / como se todo o corpo / as mãos os


pés a cabeça / não fossem também sexo / o pénis a vagina / os testículos
as maminhas / são frágeis / vulneráveis / estão expostos / à crueldade / são
flores / ou musgos / posso estar nua e ser casta / não tenho nada de freira
viciosa / e devassa / com toda a minha atenção / toco-te / dou-te os meus
sentidos / os meus sentimentos / sinto muito / ter estado muito contigo / é
uma coisa boa / que melhora o mundo / que o embeleza / agradeço ter-te
encontrado / e ter feito o que fiz contigo / com a cabeça nas mãos / e os
olhos cheios de lágrimas / sonho contigo comigo (LOPES, 2014, p. 190).

Em comum os poemas têm o tema. Aduzimos isso porque em ambos há a


presença do amante e a consequente relação que estabelece com a voz lírica.
Enquanto no primeiro poema não estamos situados quanto ao local em que se
passam os encontros dos amantes, no segundo, concluímos que se passam no
convento, quando dito “não tenho nada de freira viciosa / e devassa”, o que nos
leva a crer que, embora freira, seus comportamentos não são de vício e devassos.
Sobre o poema, pode-se dizer que ele questiona alguns conceitos estabelecidos
sobre o sexo. Longe de ser apenas o contato entre a vagina e o pênis, voltando-se
restritamente a uma relação hétero, o sexo é, sob a perspectiva do eu lírico,
expressão do corpo, inteiro, quando se funde a outro.
Posterior a essa redefinição do sexo, destacamos os versos que seguem:
“posso estar nua e ser casta / não tenho nada de freira viciosa e devassa”. Damos
destaque a eles porque os compreendemos como versos-chave para desvelar os
sujeitos líricos do poema.
Antes de tratar especificamente deles, há de se dizer que as mulheres,
no século XVII e XVIII, em sua maioria, não compunham os conventos por
vontade própria, mas por imposição do pai ou, também, por não terem direito
a herança, já que só o filho (sim, masculino) mais velho poderia herdar. Logo,
para sobreviverem, uma vez que não tinham casado, voltavam-se aos conventos,
tornando-se freiras. Por estas questões desiguais, muitas mulheres estiveram à
mercê das condições religiosas, no entanto, muitas delas transgrediam a ordem,
pois não estavam ali porque queriam, mas porque era a única alternativa. Por
isso mesmo, mantinham encontros amorosos, que não seriam possíveis, caso
fossem solteiras, fato não concebível à época, fora do convento.
Diante disso, a voz lírica discute que o fato de estar nua, possivelmente
entregue ao amante, não a torna depravada, desprovida de caráter, tão pouco

214
destituída de valores morais, talvez porque a sua entrega seja em decorrência
não só do prazer, mas do sentimento amoroso despertado em meio a proibição.
Nota-se ainda que nos dois poemas as vozes são gratas aos amantes, que partem
tão logo, deixando-as sós; daí, rememoramos também Mariana Alcoforado,
nome máximo dos encontros proibidos com o soldado francês e que por ele sofre
demasiadamente depois da partida.

Considerações finais
Escrever teve para mim um papel instrumental: serviu-me para encontrar pessoas [...] Não pretendo
mostrar erudição, mas imaginação, isto é, imagens.
Adília Lopes

Considere-se árduo o ato de escrever. A tessitura requer emaranhar-se sem


se perder em meio aos fios, requer um produto final que seja compreensível e
proporcione reflexões sobre o objeto de estudo.
Esta pesquisa, longe de ser conclusiva, deixa possibilidades a outras
investigações, que queiram compreender a obra de Adília à luz dos estudos
de gênero.
Por meio do estudo, objetivamos trazer reflexões sobre a obra de Adília
Lopes, autora portuguesa contemporânea, que ainda se encontra periférica,
se lavada em consideração a atual constituição do cânone. A obra adiliana nos
permitiu desenvolver reflexões sobre a condição feminina na sociedade em geral,
compreendendo-a como mecanismo de resistência em meio a uma conjuntura
patriarcal, machista e misógina, que se organiza para manter a mulher longe dos
espaços públicos.
Ao discutirmos a obra de Adília, estamos fazendo com que a autoria feminina
seja protagonista da investigação científica e alcance espaço no cenário acadêmico,
que ainda é direcionado pelo status quo, fechando-se à produção autoral do
feminino. No entanto, acreditamos que o cânone pode ser ampliado com a inserção
de autoras que têm escritos tão bons, ou melhores, quanto os que já o constitui.
Consideramos, nessa perspectiva, o estudo desenvolvido pertinente aos
estudos literários, constituindo-se como mecanismo para a promoção das
discussões sobre violências em literaturas, propiciando a escrita de artigos e sua
consequente publicação, fazendo com que o conhecimento esteja além dos muros
da universidade.

Referências

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina/Pierre Kühner. - 11. ed. - Rio de Janeiro.


Bourdieu tradução Maria Helena Bertrand Brasil, 2012, 160 p.

DALCASTANGÈ, Regina. Vozes nas sombras: representação e legitimidade na


narrativa contemporânea. In: DALCASTANGÈ, Regina. Ver e imaginar o outro –
Alteridade, Desigualdade, Violência na Literatura Brasileira Contemporânea [org].
São Paulo: Editora Horizonte, 2008.

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216
A representação de personagens negros na
ficção amazonense do século XX: a presença na
ausência e a manutenção dos estereótipos

Renata Beatriz B. Rolon


A presença de personagens negros na narrativa ficcional produzida no
Amazonas, no século XX é escassa. As investigações sobre a literatura local
centram-se, sobretudo, na representação do caboclo e do índio. Também ocorre
uma escassez, no âmbito da pesquisa, da representação do negro, assim como
sobre os aspectos da sua condição social.
Através da procura e posterior análise, verificamos os motivos que
contribuíram para o silenciamento sobre a representação dos personagens
negros, por parte da crítica especializada. A importância de adentrar em
questões “esquecidas”, “deixadas de lado” em detrimento de outras, sobretudo
questões de âmbito social, pode levar a perspectivas inesperadas, que divergem
de esquemas estabelecidos. Por isso, compreender sobre como personagens
negros estão representados na literatura produzida no Amazonas revela-se
de grande importância, pois abre caminho para o diálogo com outras áreas do
conhecimento, confirmando que há muito a ser reformulado e explorado. A
presença negra na região amazônica, especificamente no estado do Amazonas, nos
conduz a refletirmos sobre práticas culturais, sobre as experiências de africanos
escravizados ou mesmo livres e libertos, representadas na produção literária
local. A releitura dos textos permite-nos recuperar vestígios de um modo de vida
a que o homem negro era submetido. Ratificamos que esse exercício de análise
pode vencer o esquecimento, o ocultamento e o silêncio.

Revisitando a história

No século XIX, a região amazônica era composta, predominantemente, por


indivíduos miscigenados (índios, brancos e negros). No decorrer desse século, o
trabalho na coleta de produtos naturais e na agricultura deram lugar ao trabalho
que girava, exclusivamente, em função do grande ciclo econômico da borracha,
atividade econômica que fomentou o desenvolvimento arquitetônico e cultural
das duas principais cidades da região: Manaus e Belém.
Após a crise do ciclo da borracha, a Amazônia entrou num período de
estagnação e, assim, na primeira metade do século XX, ficou distante e esquecida
do restante do Brasil. Somente a partir de 1960, com os planos de integração
nacional, descoberta de minérios e grandes projetos de desenvolvimento, a
região voltou a crescer e a receber novos migrantes de todo o país, sobretudo
do Sul do país.
Mas, ao analisarmos a configuração do sistema econômico da região
amazônica, encontramos que o uso da mão de obra escrava foi pouco significativa
para a economia, devido a outras mãos, como a dos indígenas, para as mais
diversas formas de trabalho. Cumpre-nos dizer que um maior impacto da mão
de obra de escravos africanos é percebido a partir da segunda metade do século
XVIII, na Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, mesmo que
as primeiras referências a africanos escravizados, na Amazônia, datam de 1692.
Nesse sentido, as distorções encontradas na historiografia resultaram no
ocultamento da presença negra, prejudicando o recontar da história que garante
a importância do trabalho de homens e mulheres vindos do continente africano,
ou que já estavam no Brasil, principalmente no nordeste brasileiro, para o
desenvolvimento da antiga província.

218
No decorrer da nossa pesquisa, através de fontes secundárias194, deparamo-
nos com registros, encontrados no Arquivo Público do Pará, informando o número
de africanos escravizados embarcados para o Grão-Pará. Os navios negreiros,
com carregamentos de Benguela - Angola, eram maioria, pois traziam “peças”
mais resistentes.
As informações contidas em relatórios e correspondências entre as
autoridades locais e os administradores da Companhia de Comércio revelam que
o declínio do monopólio comercial de Portugal no Oriente e a ocupação holandesa
em Pernambuco (1630-1654) trouxeram a necessidade de novos solos para a cana-
de-açúcar e a procura de especiarias na floresta. “Neste ambiente ingressará o
negro africano. Marcará profundamente a sua presença na Amazônia” (SALLES,
2004, p. 17).
Objetivando relatar acerca da presença do negro africano no Amazonas, no
período de sua formação, chegamos pesquisa de Cavalcante (2011). O historiador
informa que encontrou 48 anúncios em jornais sobre escravos fugitivos: “Estrella
do Amazonas (1854-1863), O Catechista (1862-1871), A Voz do Amazonas (1870-1878),
Jornal do Rio Negro (1867-1868), Comércio do Amazonas (1870-1878), Itacoatiara
(1874), A província (1879), Rio Madeira (1881-1882), Jornal do Amazonas (1877-1884)
(2011, p. 44)”. As fugas apresentadas permitem compreender a movimentação e
as vivências que fomentaram o processo de construção da cidade de Manaus e
do Amazonas, de modo geral, posto que foi inevitável o deslocamento para outras
localidades existentes ao longo do rio Negro. Os vários dados reforçam a dinâmica
da vida do africano escravizado, confirmando a significativa presença de homens
e mulheres que fizeram desta região seu espaço de luta e sobrevivência.
Os registros históricos provam que a presença negra no Amazonas dinamizou
os saberes e modos das populações indígena, portuguesa ou mestiça, instaladas na
província. Os novos estudos, quer sejam no âmbito da história ou da sociologia,
comprovam essa presença, assim como as suas influências na formação cultural.
Nesses termos, importa revisar a historiografia. É necessário recontarmos
a história, de forma a mostrar que a presença de africanos escravizados no
Amazonas não foi insignificante, como os historiadores tradicionais fizeram crer.
Importa, agora, destacar as manifestações grupais, as condições de trabalho,
os rituais religiosos etc., caracterizando toda e qualquer prática cultural que
mobilizou e fortaleceu a identidade negra no local.
A contestação da história oficial, por parte da população negra, ativará a
revisão das políticas de ação afirmativa como as cotas raciais nas universidades,
a legalização dos quilombos e o Estatuto da Igualdade Racial no estado. Os novos
mapeamentos no Amazonas apontam para uma nova cartografia social. Assim,
a partir de novos olhares, como o deste texto, poderemos fortalecer as lutas
contemporâneas dos movimentos sociais de negritude e as suas reivindicações
de políticas afirmativas e combate ao racismo.

194
Consulta feita a pesquisa pela historiadora Patrícia Melo Sampaio, publicada no livro O fim do
silêncio – Presença negra na Amazônia, (2011).

219
O Silêncio que está no texto literário

A relação entre a história, como processo social, e a literatura, como uma


forma de expressão artística da sociedade, segue uma linha muito tênue. Tanto
a História quanto a Literatura são modos de explicar o presente, inventar o
passado, pensar o futuro. Utilizam-se de estratégias retóricas para colocar em
forma de narrativa os fatos sobre os quais se propõem a abordar. Contudo, ocorre
que a literatura, em muitos casos, narra eventos que não são contemplados
pela historiografia, pela história oficial, ou pela história dos vencedores. Ela, a
literatura, deixa de ser um simples contar. Ao narrar sentimentos, percepções e
manifestações do homem em sociedade contempla diferentes lados de uma mesma
história. A literatura possui uma vertente crítica que se faz notar. Alcança o leitor,
promovendo a inquietação necessária para a revisão dos eventos narrados.
A relação entre literatura e sociedade é evidente. O contexto sociológico
é, certamente, uma das estruturas internas que condicionam o texto ficcional.
Segundo Candido (2000) o social importa, não como causa, nem como significado,
mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura
da obra, tornando-se, portanto, interno. O elemento social, além da referência
temática ou do enquadramento contextual, importa-nos como “fator da própria
construção artística”. Nesse prisma, compreendemos que as dimensões sociais
e artísticas presentes nos textos literários produzidos no Amazonas, em que
os personagens negros se fazem presentes, são importantes dados sociais que
condicionam o recontar da história oficial. A presença negra, materializada
nessa literatura, ainda que reduzida, deve ser compreendida como matéria para
a elaboração de uma consciência crítica, questionadora, assim como para um
aprendizado da observação da obra enquanto arte, enquanto representação.
A quase inexistência de personagens negros na ficção local traduz o
pensamento de uma sociedade que marginalizou o homem escravizado e,
posteriormente, o homem de cor em todas as instâncias. A não presença revela
o modo de relação entre senhores e escravos, após o fim da escravidão, revela
a relação entre patrão-seringalista e ex-escravo-empregado. Revela, sobretudo,
os discursos proferidos pelos autores que condenam o negro africano à dupla
exclusão, posto que para Chartier (1990, p. 280) “as percepções do social não são
neutras; produzem e revelam estratégias e práticas que tendem a impor uma
autoridade, uma hierarquia, um projeto, uma escolha”.

Representação de personagens negros na literatura brasileira

No processo que mobiliza valores identitários, muito da produção literária


brasileira ressoa as interferências da tripla mestiçagem ocorrida em terras
brasilis. Um importante material ilustra as estórias violentas e ameaçadoras em
que personagens negros são representados como seres maléficos, preguiçosos e
ignorantes. Na contextualização sócio-política e ideológica sobre a representação
do negro na literatura, consideramos pertinente compreender a origem do
discurso da inferioridade das raças que formaram o Brasil. Na Europa, estava
formulado o discurso estereotipado, no tocante ao negro, fazendo crescer o
desejo de branqueamento dos povos latino-americanos. Essas teorias raciais
influenciaram o pensamento da chamada inteligência brasileira.

220
Hernandez (2008) observa que era recorrente no século XVIII, nos compêndios
que apresentavam a história da civilização ocidental, o desconhecimento, o
equívoco, sobre o continente africano e a sua gente. De modo geral, o africano
estava enquadrado em grau inferior de uma escala evolutiva. A pesquisadora,
citando o livro Systema naturae (1778), de Charles Linné, mostra a classificação
do homem em cinco variedades. A saber:

a)Homem selvagem. Quadrúpede peludo.


b)Americano. Cor de cobre, colérico, ereto. Cabelo negro, liso, espesso;
narinas largas; semblante rude, alegre, livre. Pinta-se com finas linhas
vermelhas
c)Europeu. Claro, sanguíneo, musculoso; cabelo louro, castanho,
ondulados; olhos azuis; delicado, perspicaz, inventivo. Coberto por vestes
justas. Governado por leis.
d)Asiático. Escuro, melancólico, rígido; cabelos negros; olhos escuros,
severo, orgulhoso, cobiçoso. Coberto por vestimentas soltas. Governado
por opiniões.
e)Africano. Negro, fleumático, relaxado. Cabelos negros, crespos; pele
acetinada; nariz achatado, lábios túmidos; engenhoso, indolente,
negligente. Unta-se com gordura. Governado pelo capricho (HERNANDEZ,
2008, p. 19).

Assim dimensionada, a caracterização do homem negro, africano, se estabelece


e se espalha. Na crença em raça superior e raça inferior, a presença do negro na
literatura brasileira não escapa ao tratamento marginalizador. Evidencia-se, no
discurso literário nacional, a imagem do negro que amedronta e ameaça. A história
da literatura brasileira confirma ainda outra vertente para a esteriotipação do
negro: o negro fiel, passivo, bom, serviçal, subalterno e supersticioso. A existência
dos estereótipos evidencia o pensamento de muitos autores que não consideravam
o negro como um “tema poético”, fator que funciona como justificativa para o
processo de marginalização dos povos vindos de África.
Contribuindo com esse cenário de formação de estereótipos negativos
do negro, a literatura direcionada a crianças também deixou a sua marca. O
personagem Mirigido, da obra de Viriato Corrêa (1938), é um velho negro que
tem as suas características físicas reveladas: “– corpo curvado, boca sem dente e
muito vermelha”. A aparência e o comportamento do personagem são motivos
para assustar e incomodar as crianças do local. Mirigido é o velho que encarna
a figura do comedor de criancinhas.
A representação do preto velho solitário, estranho e dado a práticas
monstruosas se estende até mesmo a literatura infantil de Monteiro Lobato.
O conto “Bocatorta”, de Urupês (a primeira edição, lançada em 1918 foi toda
ilustrada pelo próprio Lobato), traz a estória de um negro, de horrível aparência,
considerado por muitos um “bicho”, que pegava animais da fazenda.
Em situação semelhante estão os personagens negros representados em
romances do século XIX como O cortiço (1890) e O bom crioulo (1895). De modo
geral, a prevalência da visão estereotipada permanece dominante na literatura
brasileira direcionada para adultos, pelo menos até os anos de 1960. A partir
dessa década, começam a surgir, paralelamente, textos comprometidos com a
real dimensão do negro africano ou mestiço.

221
Esse quadro negativo, mantido graças a construção dos personagens, reforça
teorias raciais do século XIX, reforça a visão distorcida que coloca a África como um
continente desafortunado, abandonado pela civilização. Essa descrição, pautada
apenas nas teorias das chamadas culturas superiores, exposta na literatura, reflete
as posturas ideológicas dos autores de várias épocas. Com isso, a inserção do
negro na literatura infantil mantém as mesmas dimensões estereotipadas e se
estendem até as décadas de 40/50, do século XX.
O posicionamento dos escritores constrói, no imaginário nacional, um
conceito desfavorável, negativo, em relação ao outro. Nas reflexões de Bernd
(1988, p. 11), o termo estereótipo deve ser entendido como uma “generalização
apressada” de uma característica individual. Sua formulação pode estar tanto na
ignorância do formulador como na tentativa consciente de “dar como verdadeiro
algo que é falso, com a finalidade de tirar proveito da situação”. Ainda, na
perspectiva de outro crítico, ao enfocar o conceito de estereótipo define-o: “como
sendo tanto a causa como o efeito de um pré-julgamento de um indivíduo em
relação ao outro devido à categoria a que ele ou ela pertence. Geralmente esta
categoria é étnica” (BROOKSHAW, 1983, p. 09).
Num ato contínuo o imaginário movimenta imagens, saberes e desejos. Mas,
também movimenta conflitos, distorce ideias e cria mundos paralelos. Nessa linha
de raciocínio, a construção de estereótipos desfavoráveis nutre o imaginário do
brasileiro com uma imagem deturpada da nossa raiz mestiça.

Análise do corpus selecionado

Dentre as muitas possibilidades analíticas para o estudo da literatura


produzida no Amazonas, optamos por enfocar a posição dos personagens
marginalizados, estereotipados, nas narrativas ficcionais. Dentre as nossas
leituras, através de um vasto corpus195 selecionado, percebemos a ausência desses
personagens, mas quando o encontramos notamos que eles acompanhavam a
mesma caraterização de outros personagens negros presentes na ficção brasileira.
Nas análises, observamos os recursos literários utilizados pelos autores
selecionados, a saber: Ferreira de Castro em A Selva (1930)196, Carlos Gomes, no
conto “Bumbá” (1966)197 e Márcio Souza em Lealdade (1997)198, para representar
o homem negro, mestiço e as contingências de sua existência. A tessitura da
pesquisa objetivou comprovar a ausência e ̸ ou a presença, sempre através da
esteriotipização dos personagens, sobretudo quando há referências à condição
negra ou mulata. Objetivou, igualmente, comprovar a necessidade de revisar e
reescrever a historiografia local. O homem negro esteve presente nas variadas
circunstâncias que marcaram o modus operandi na antiga província, todavia,
devido a um constante processo de desqualificação dessa população, a história
local ignorou o seu contributo nas vivências, fazeres e experiências locais, fator
que corrobora para uma conjuntura problemática, no que tange à elaboração de
memórias e de identidades.
195
Realizamos um levantamento na contística de Arthur Engrácio, mas constatamos que a caraterização
dada aos personagens refere-se ao caboclo, a homens e mulheres ribeirinhos e as suas vidas nos
rincões amazônicos. Não localizamos o registro de personagens negros e o̸ u mulatos na obra do autor.
196
Utilizamos a edição 37ª, de 1989.
197
Trabalhamos com a edição organizada por Tenório Telles (2005).
198
Utilizamos a 4ª edição do romance, de 2001.

222
A selva, de Ferreira de Castro

O romance A selva, publicado em 1930199, do autor português Ferreira de


Castro200, tem como cenário a vida do seringueiro na floresta amazônica. A
narrativa registra o cotidiano de homens em um locus infernal. Eles são vítimas
de um processo desumano e cruel. Nesse espaço está o personagem Alberto,
português, estudante de direito, de família modesta, que deixa a sua terra em
busca de ascensão social na Amazônia, o eldorado brasileiro.

Era, então, o Amazonas um imã líquido na terra brasileira e para ele


convergiam todas as ambições dos quatro pontos cardeais, porque a
riqueza se apresentava de fácil posse, desde que a audácia se antepusesse
aos escrúpulos. Com rebanhos, idos do sertão do Noroeste, demandavam
a selva exuberante todos os aventureiros que buscam pepitas de oiro
ao longo dos caminhos do Mundo. E como não era na brenha espessa
que se encontrava, para os ligeiros de consciência, a aurífera jazida,
quedavam-se os ladinos em Belém e Manaus, a traficar com o esforço
mitológico dos que, entre todos os perigos, se entregavam à extração da
borracha (p. 25).

Contudo, no romance de Ferreira de Castro, evidenciam-se os problemas


relacionados às classes trabalhadoras. O autor, utilizando o texto ficcional,
carregado de referências pessoais, procura “exprimir o drama de seres humanos
causado tanto pelo sistema econômico – que os explora – quanto pelo político –
que os ignora, além da própria natureza, que lhe é adversa” (FRAGA, 2010, p. 56).
A relação entre os trabalhadores do seringal Paraiso e o patrão é o motivo
que dá a narrativa o tom de forte denúncia social. Ao descrever a tensão e os
conflitos vividos pelos personagens, o narrador revela a presença significativa
de homens de cor nos seringais. Os seringueiros Firmino, Tiago, Balbino, Caetano
e Binda são descritos a partir da cor da pele, assim como o patrão, o seringalista
Juca Tristão, que tem a sua ascendência revelada no momento que o narrador
conta o modo diferenciado que o patrão tratava alguns seringueiros de cor:

Corpos modelados no mesmo barro, veias dando curso ao mesmo


sangue, Juca Tristão compreendia-os totalmente. Imperava, sorridoso, e
deixava-se adular. Podia beber em liberdade, dizer o que lhe aprouvesse,
ser completamente ele, sem a enervante noção duma vaga inferioridade,
como lhe sucedia quando estava ao lado de Guerreiro (p. 255).

A presença dos personagens nas várias situações relatadas na narrativa


evidencia a importância da cultura negra na formação social-cultural dos povos
no Amazonas. Derruba as afirmações sobre a insignificante presença do homem
de cor na sociedade local e assegura visibilidade aos povos oriundos do continente
africano. Nesse sentido, a literatura cumpre o seu papel. Ela [...] “pode ser um
instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de
restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação
espiritual” (CANDIDO, 2004, p. 186).
A partir de agora citaremos apenas o número das páginas ao utilizarmos o romance.
199

O autor, português de nascimento, viveu na Amazônia (Pará e Amazonas). A sua principal


200

obra compõe o cânone local, posto que a crítica especializada considera o fato de que A Selva é
um romance amazônico porque se insere na tradição de representação da natureza selvática.

223
Atuando como outra forma de captar o real (PESAVENTO, 1995), a literatura
atinge sua máxima eficácia “ao tomar posição face às iniquidades sociais”,
assegura Candido (2004, p. 182). Nesse sentido, o estudo do romance de Ferreira
de Castro rompe o silêncio e revela a presença da mão trabalhadora do negro,
diferentemente do que a tradição da historiografia afirma.

O vapor diminuíra a marcha e aproximava-se vagarosamente. O portaló


fora aberto, a prancha assomava já. Distinguia-se agora a cor dos que
estavam em terra, os pretos e os mulatos, as suas blusas de riscado, as
calças brim azul, o largo chapeirão de carnaúba e os pés descalços ou
enfiados nuns sapatos estranhos — uns sapatos como Alberto nunca vira.
Entre eles andava, inquieto, um cão branco que ladrava não se sabia
para onde e logo vinha refugiar-se atrás dumas pernas despreocupadas.
(p. 68. Grifo nosso).

Os personagens negros, habitantes do seringal Paraíso, são construídos


a partir da caracterização dada a outros personagens da literatura canônica
brasileira. Permanece a figura estereotipada do negro fiel, passivo, bom, serviçal
e subalterno. Os personagens Firmino, mulato cearense e Tiago, um ex-escravo,
representam a servidão diante da cruel situação a que eram submetidos. O caso
de Tiago merece destaque, pois mesmo sendo um personagem secundário terá
participação determinante no final do romance. O tratamento que ele recebia do
patrão Juca Tristão, mulato claro cujo “sangue negro insinuando já com muita
dificuldade a sua desvanecida existência, graças a sucessivos cruzamentos” [...].
(p. 84), é repugnante e desumano.

- Que é que você quer, patrão?


- Traze a laranja.
Então, o despojo humano, com gesto condescendente de quem se submete
a leviandade infantil, pousou o terçado no rebordo da mangedoura e
avançou ao encontro do amo. Nunca se habituara, mas já conhecia o
ritual. Deteve-se e pousou a laranja sobre a carapinha branca, de estrada
ao meio, aberta por uma bala que lhe levara o couro
cabeludo, numa tarde em que Juca Tristão não fora feliz na pontaria.
Assim parado, de alvo na cabeça e pernas abertas para diminuir a
estatura, era como pim-pam-pum de feira, exposto à irrisão do público.
Tinha um sorriso alvar sobre a negridão da boca sem dentes e os seus
olhos muito brancos, todas as linhas do seu rosto, dir-se-iam pintados
em pano que vestisse um fantoche de palha.
Juca Tristão juntou os dois calcanhares, meteu o rifle à cara e apontou.
Só então Alberto compreendeu. E num impulso se levantou, disposto
a intervir. Já era demasiado tarde. O tiro havia soado e a laranja
desaparecido de sobre a carapinha branca. Juca Tristão baixava o rifle
fumegante, em atitude de triunfo, e o negro mostrava agora, na sua cara
de espantalho, a dúvida atroz de quem não sabe ao certo se está vivo ou
se está morto (p. 193-194).

No decorrer do romance está a constante preocupação em enfocar a vida


dos miseráveis homens subordinados a violência, dor e as mais diversas formas
de privação. Vários episódios que comprovam a exploração submetida aos
seringueiros, tem a sua máxima quando, após uma frustrada tentativa de fuga,

224
os trabalhadores são capturados e castigados severamente a mando do patrão.
Nesse contexto, a denúncia feita por Ferreira de Castro, da situação social dos
seringueiros, é acentuada ao final da narrativa e a ação do ex-escravo Tiago,
conhecedor da força da chibata de um feitor, é decisiva. Em um único momento
de revolta ele coloca fogo no barracão, deixando o patrão preso para morrer
queimado. O motivo para essa tomada de posição está nas suas palavras: “Foi
porque seu Juca te fez escravo e aos outros safados que te acompanham. Se
estivesse no tronco, como tu, o feitor que me batia lá, no Maranhão, eu também
matava a seu Juca. Negro é livre! O homem é livre!”(p. 287).
Na leitura da obra fica comprovado o engajamento do autor, a força do
seu projeto estético em construir um romance que descortinou a face brutal do
trabalho de homens e mulheres na selva amazônica. O espaço do seringal escolhido
para o desenvolvimento da narrativa é lugar de aflição, de luta, mas sobretudo de
revelação. As constantes referências aos personagens negros comprovam o lugar
desses, em meio a sociedade que se formava no Amazonas do início do século XX.
Outras vozes, outros discursos, outras referências étnico-racial, além da indígena,
tomam corpo na ficção local, e revelam mais um componente da construção
humana amazônica. É chegada a hora de registar outras memórias, que vinculadas
a presença do homem negro, possibilita o recontar de outra história através da
voz de outros locutores.

“Bumbá”, de Carlos Gomes

O conto “Bumbá”, de Carlos Gomes, compõe o livro Mundo mundo vasto


mundo. Publicado em 1966, a obra é composta por 14 narrativas curtas com
temáticas variadas, como observa Tenório Telles (2014). O crítico aponta que
relativo à temática pode-se classificá-las em: i) os folclóricos: “Bumbá” e “Rebolo”;
ii) os pesadelos: “Preto e Branco”, “Presságios”, “Reconstrução”, “Pio ofício ou
a estranha velha que enforcava cachorro”; iii) os sociais: “Vó Hermengarda”,
“Rosa de carne”; iv) os que tratam da incomunicabilidade entre os seres: “Assunto
perdido”, “Madalena” e “Flor de cacto” e v) os que descrevem a vida provinciana:
“Antes da nomenclatura”, “Figa, pé de pato, bangalô três vezes...” e “A homenagem”.
Da obra citada selecionamos o conto “Bumbá”, narrativa que conta a história
de Severino, um amo de boi apaixonado pelo seu ofício. Deixando de abordar
questões predominantes mais debatidas, o autor opta por construir uma narrativa
curta carregada de lirismo. Trata-se de uma estória que remonta a festa de carácter
popular mais tradicional do Amazonas. Na Amazônia, admite-se que o boi-bumbá
foi trazido pelos migrantes nordestinos durante o ciclo da borracha, em que pese
o registro anterior de Robert Avé-Lallemant, no livro No Rio Amazonas [1859],
confirma Aleixo (2002).
Com um tom despretensioso, o narrador revela toda a alegria e exaltação do
amo diante do Boi estrela. Revela ainda a vida simples das pessoas do interior,
seus modos e costumes e, sobretudo, o ritual festivo mais importante do lugar.

Tanta alegria, tanta, quando estava o bumbá em seu curral, quanta


alegria! Gente em volta, o encantamento possuindo-os. A preta Bárbara,
no vulgar D. Barba, faturava: pingues faturas de tacacá e mungunzá,
bolo podre e de macaxeira, tapiocas em retalhos de folha de bananeira,
poeira de coco por cima. Até aluá e café havia em sua banca, que era

225
a mais gostosa do arraial. No curral, a batucada fazia hora, ensaiando
refrões, dançados em passos nervosos pelos brincantes. E cantados:
Oi levanta poeira...

Na movimentação da narrativa, são apresentados fatos do cotidiano do


personagem Severino “preto velho maranhense, corpo esbelto, espáduas largas,
altura de monumento”. A sua paixão pelo boi é realçada. Ele, além de ser o
ensaiador, cuidava dos acessórios do Boi estrela, o que dava ao bumbá mais
beleza e fama. Mas todo esse capricho e diferencial fazia inveja ao contrário e
a partir dessa revelação a ação conflituosa predomina. O encontro entre o Boi
Estrela e o boi Malhado, o maior rival, provoca o desafio entre os simpatizantes
dos bois: “Era preciso suplantar o vozerio do grupo contrário, lançando o mesmo
desafio: Ê ferro, ê aço!/ Estou procurando / E não acho...”.
O desfecho é a proclamação da tragédia que envolve a narrativa. Preto velho
Severino não conseguiu acalmar os ânimos dos seguidores do seu boi. A confusão
generalizada tomou a rua e o encontro fatídico foi finalizado com a morte do amo
do boi mais querido.

Preto velho Severino ajudava os seus que fraquejavam, mas pedia paz.
Em dado momento, gritou:
– Meu boizinho você não acutila, seu...
Soltou um palavrão e logo libertava do peito o último gemido, fundo
e pungente tão como as toadas que inda agorinha puxava. Fundo e
pungente e eloqüente tanto que a todos parou. Do coração rompido,
brotava o sangue vivo que lhe empapava a vestimenta de lamê tão
caprichada, debruns de arminho, cheia toda de espelhos e lantejoulas.

Assim, na revelação e nos detalhes do enredo um tópico de ordem sociológica


se evidencia. Mais uma vez a ficção é espaço privilegiado para o registro da
memória, registro que confirma a presença do homem de origem africana, do
negro, na sociedade amazonense. A representação do personagem Severino,
sobretudo a sua presença no texto literário, assinala a formação de um contingente
populacional marginalizado que, expulso do trabalho nos seringais devido ao fim
do ciclo da borracha, passa a viver na cidade. Por esses e por outros motivos é
que ratificamos o nosso pensar: a arte se torna social na medida em que delimita
o lugar social de cada um. Nesse sentido, revela-se o poder da palavra, do texto
literário, causando a ação de um e a reação do outro. Nesse momento, ainda que
reconheçamos os valores estéticos presentes no material analisado, importa-nos,
sobretudo, apreender os aspectos e valores sociais e históricos.
No vasto mundo amazônico, como advertia Carlos Gomes no título da sua obra,
realiza-se uma ficção que elucida o que a memória quis apagar. Por isso, a leitura ou
releitura da produção ficcional produzida no Amazonas é o caminho para verificar a
presença e a forma como personagens negros estão representados, exercício crítico
que possibilitará uma genuína descontaminação e correção do presente.
É dessa forma que a literatura está ligada à sociedade e ao seu
desenvolvimento. Sua função contempla proporcionar ao homem uma melhor
compreensão de sua existência. Ela, a literatura, expressa visões de mundo que
são coletivas de determinados grupos sociais. Essas visões compõem a prática
social e material dos indivíduos e dos grupos sociais aos quais eles pertencem ou
com os quais se relacionam.

226
Lealdade, de Márcio Souza

O romance de Márcio Souza, publicado em 1997 e classificado pela crítica


como romance histórico, compõe a tetralogia201 Crônicas do Grão-Pará e Rio
Negro, obra em que o autor, a partir de pesquisas históricas sobre a incorporação
deste território ao Império do Brasil, apresenta personagens, elucida fatos e
acontecimentos históricos que marcaram a região amazônica, mas não receberam
destaque na historiografia.
Em Lealdade202 são reveladas as histórias de pessoas comuns, que viveram
na região do Grão-Pará do final do século XVIII a meados do XIX. Nesse contexto,
o enfoque do autor dá-se, sobretudo, aos acontecimentos históricos que levaram
à Guerra dos Cabanos203, ocorrida entre 1835 e 1840.
O protagonista-herói Fernando Simões Correia, militar, filho de português,
nascido no Grão-Pará, em uma narrativa que mistura ficcionalização e fatos
históricos, luta pela independência do Estado do Grão-Pará e Rio Negro, então
colônia de Portugal.

Com o Brasil independente, era chegada a hora de assegurar o mesmo


destino para o Grão-Pará. Batista Campos consegue uma cópia do
manifesto em que já o então imperador Pedro I exorta os brasileiros
a se unirem em torno da Independência, e publica-o na íntegra no
Paraense. Lembro que não foi sem emoção que li e reli esse exemplar
do jornal (p. 173).

Nesse liame entre ficção e história, encontramos não somente o registro dos
fatos ou interpretação deles como faz a historiografia. Há, no discurso ficcional,
uma releitura da pretensa realidade exposta pela historiografia, dando-lhe
novos significados. “Há uma reavaliação assim, do fato descrito pela história
como realmente ocorrido, produzindo uma oposição entre a linguagem (fatos) e a
realidade (acontecimentos)”, compreende Mesquita (2009, p. 24). Nesse prisma, os
fatos narrados pelo personagem Fernando revelam um contingente de homens de
camadas inferiores da população que participaram desse importante movimento
revolucionário ocorrido no período regencial, revelam e confirmam a importante
participação dos povos oriundos de África e dos afrodescendentes no cotidiano
das cidades do norte do país: “Enormes fogueiras crepitavam nas margens da baía
de Guajará, e grupos de tapuias e negros passavam a cantar, bebendo aguardente
e batendo em pedaços de ferro para espantar o ano velho.” (SOUZA, 2001, p.164).
A presença de negros libertos e escravos da província do Grão-Pará também
revela algo que a história não registrou: as suas participações nos episódios
sangrentos da Cabanagem. O conflito, que durou 5 anos e alterou a ordem
econômica e social vigente na Amazônia, contou com a participação ativa de
negros, índios e mestiços, fato que reconhecido, modificaria o status quo dessa
população esquecida pela história assim como pela literatura, como no caso da
população negra. O sacrifício das classes populacionais, de trabalhadores, contra os
abusos de poder cometidos pelos governantes no século XIX, na região do Grão-Pará
201
Os romances Lealdade (1997), Desordem (2001) e Revolta (2005) revisitam a Cabanagem.
202
Ao citarmos o romance, utilizaremos somente o número de página.
203
Revolta popular sangrenta que objetivava a independência da colônia portuguesa do Grão-
Pará, tanto de Portugal quanto do reino Unido do Brasil.

227
e Rio Negro, não lhes confere a classificação de herói, segundo a história. Os registros
da sua presença, dos seus nomes, são escassos nos documentos oficiais, assim como
na memória coletiva. Ao comentar sobre a participação do negro na Cabanagem
Salles (2004) confirma a participação ativa desses, mas registrados apenas como
negro Cristóvão, “que comandou uma força de perto de 150 homens e era escravo
do engenho de Carapuru”, ou negro Félix, que esteve à frente de mais ou menos
400 “mocambeiros”.
São nos relatos do narrador-personagem que essas gentes, em meio a tão
importante acontecimento histórico, serão visualizadas, ainda que a partir do
preconceito do narrador em relação aos costumes e hábitos dos indígenas e dos
africanos. A narração em Lealdade revela que a divisão social em Belém era étnica.
Para Barros (20015, p. 163):

Se lembrarmos que o movimento cabano surge do povo miserável e que


tem no seu exército e mesmo como líderes representantes de negros e
índios, parece-nos que este cotidiano narrado no romance aponta para
essa fissura social que será marcante no momento da Cabanagem.

Assim, ao construir o seu romance, Márcio Souza recorre a acontecimentos do


passado e que foram “selecionados de acordo com interesses sociais, ideológicos,
políticos e documentados a partir do ponto de vista oficial, do poder estabelecido”
(MESQUITA, 2009). A revisão dos fatos possibilita que importantes questões
venham à tona, o que geralmente revela as vozes daqueles que foram excluídos da
versão oficial. A decisão do autor em escrever o romance demonstra a necessidade
de retirar do esquecimento o violento episódio ocorrido. O recontar ficcional
possibilita o não apagamento da memória, dos fatos e das gentes que ajudaram
a escrever a história do Brasil.

Considerações finais

O enfoque na representação de personagens negros na ficção produzida


no Amazonas, no século XX, ratifica o nosso entendimento de que a obra de
arte literária registra e expressa aspectos múltiplos do complexo, diversificado e
conflituoso campo social no qual se insere e sobre o qual se refere.
Segundo Candido (2000, p. 06) o social importa, não como causa, nem como
significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição
da estrutura da obra, tornando-se, portanto, interno. O elemento social, além da
referência temática ou do enquadramento contextual, importa-nos como “fator
da própria construção artística”. As dimensões sociais e artísticas presentes nos
textos literários, em que os personagens negros se fazem presentes ou mesmo a
ausência desses personagens na literatura produzida no Amazonas precisam ser
(re)examinadas. Esse importante dado social fornecerá matéria para a elaboração
de uma consciência crítica, questionadora, assim como para um aprendizado da
observação da obra enquanto arte, enquanto representação. Mas sobretudo fica
evidente, a partir das nossas leituras, que o Norte é fruto de três cores, entretanto
os registros históricos partiram do princípio de que a escravidão não teve grande
importância na região, posto que o trabalho indígena deu-se em maior escala que
o africano. Por isso, ao utilizarmos a literatura como ferramenta para revelar as

228
experiências de negros escravos, livres e libertos, de suas representações culturais
e identitárias, recuperamos vestígios que podem vencer o esquecimento, o silêncio
e, sobretudo, temos a possiblidade de reativar a memória cultural.
Na diversidade temática das narrativas apresentadas constatamos que a
presença negra e ̸ ou de mulatos não ficou reduzida ao trabalho forçado. Homens
e mulheres realizaram as mais diferentes tarefas na região. Não há como negar as
suas experiências históricas. Impossível negar a sua contribuição para a formação
da sociedade amazonense. A herança africana ainda pode ser percebida em um
dos festejos mais populares: o Boi-Bumbá amazônico, um elemento que compõe
o patrimônio da cultura negra. Desse modo, quer seja nas articulações entre a
literatura e a história, na literatura de denúncia social ou mesmo na aparente falta
de pretensão da narrativa de ficção, o mergulho nesse universo elucida questões
que ajudam a fortalecer as lutas contemporâneas dos movimentos sociais de
negritude porque iluminam trajetórias de indivíduos e comunidades.
Tomados os três textos apresentados como legados do patrimônio cultural,
como prova dos discursos e ideologias presentes em determinadas épocas, podemos
construir relações e romper fronteiras mais rígidas. Além disso, pretendemos que
a nossa investigação contribua com a (re)visão da História da Literatura Produzida
no Amazonas. É preciso revelar outras vozes, outros discursos, outras referências
étnico-racial, além da indígena. Outros corpos tomam forma na ficção local e
revelam mais um componente da construção humana amazônica. É chegada a
hora de registar novas memórias, de ouvir uma nova história, agora relatada
pela voz de outros locutores.

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230
O ensino da poesia afro-brasileira: cultura,
memória e identidade

Rosidelma Pereira Fraga


Considerações preliminares

Este capítulo surge como uma proposta de minicurso do Gellnorte e tem como
foco explicitar a análise literária de obras escritas por autores negros no Brasil
ou que a tessitura da lírica seja construída a partir de um eu-enunciador que-
se-quer-negro em constante resistência. A proposta visa discutir conceitos sobre
literatura afro-brasileira, literatura negra, literatura negro-brasileira e literatura
de minorias, com base em Zilá Bernd (2007), Assis Duarte (2013), Domício Proença
Filho (2008), Benedita Damasceno (2012) e Félix e Guatarri (2007).
Propõe-se assim um estudo sobre a identidade na cultura negra a partir
de Stuart Hall (2009), memória e subjetividade na poesia lírica. A rigor, elege-se
como objetivo fulcral apresentar o ensino por meio de pesquisas no âmbito da
Pós-Graduação realizadas na disciplina Análise da poesia afro-brasileira e do conto
africano e no grupo de pesquisa África e Roraima: cultura, memória e identidade.
Assume-se a meta de disseminar obras escritas por mulheres negras nos diversos
espaços literários, a saber: livro impresso, blogs, saraus, vídeos em redes sociais
e outros espaços em que a mulher negra assume a voz em defesa de combate ao
machismo, racismo, misoginia e outros temas. Em suma, esta proposta contribuirá
para reflexões acerca dos temas em questão, além de proporcionar a valorização
da cultura, identidade, memória e africanidade.
Neste sentido, consideram-se as vozes femininas contemporâneas, tais como:
Conceição Evaristo (2014), Ana Cruz (2008), Esmeralda Ribeiro (2012), Jussara
Santos (2005), Elisa Lucinda (2017), Oliveira Silveira (1998), Cuti (1978), bem como
a Antologia de poesia afro-brasileira, de Zilá Bernd (2013). A proposta visa discutir
sobre a luta de mulheres negras frente ao preconceito instaurado pela cor da pele,
pelas diferenças sociais e pela imposição da invisibilidade arraigada no discurso
da sociedade e da literatura das minorias.
A proposta de discutir em primeira instância o ensino da literatura afro-
brasileira na graduação se deve à formação docente no que diz respeito à lei
10.639/2003, além de ser o momento profícuo para discutir temas atuais e
polêmicos na sociedade brasileira, tais como misoginia, empoderamento da
mulher negra, racismo, preconceito, exclusão de minorias, entre outros.
Conforme mencionado alhures, a discussão analítica acerca da poesia
negra parte do projeto Literatura negra e minorias sociais, o qual tem permitido
direcionar as investigações de ensino e pesquisa por meio de um exame teórico e
analítico de obras de escritores negros e, sobretudo da poesia escrita por mulheres
negras que delineiam as escritas individuais e coletivas com base em temas
recorrentes: memória, identidade, resistência, luta contra o racismo, machismo,
sexismo e desigualdade social, buscando discutir sobre a valorização da cultura
e identidade afro-brasileira, por meio de um debate histórico-crítico em torno de
uma “literatura menor” dos pré-abolicionistas à contemporaneidade.

Do ensino à pesquisa: uma reflexão sobre literatura afro-brasileira

O ensino e a pesquisa a partir do projeto Literatura negra e minorias partem


do eixo-temático, a saber: literatura afro-brasileira, identidade, resistência e minorias.
Sob esse prisma, abre-se inicialmente um questionamento: Por que falar da mulher
negra como minorias ou literatura menor e até mesmo vozes silenciadas e resistência?

232
Pode-se asseverar que em uma escala social, a mulher negra é a que mais sente as
consequências de racismo, machismo, desigualdade e relações de misoginia e toda
série de violência, não deixando de pensar no negro como um todo.
Resistir e combater são dois verbos que descortinam um ritmo forte em
relação à poesia negra feminina contemporânea. Em vários textos há vozes que
não querem ser mais silenciadas. Combater tal silenciamento, eis a arma da poesia
negra. Resistir, eis a chama da poesia que não se apagará. É neste contexto de
resistência que podemos ler poemas negros e ouvir o grito da mulher negra,
ouvir o canto do pássaro oprimido, ouvir as várias vozes diante de uma sociedade
machista, misógina, desigual, preconceituosa e ainda racista. Em outras palavras,
esta conferência se trata de vozes de minorias, lembrando o conceito de Deleuze
e Guatarri (1997)204 no que concerne às vozes que faltaram, vozes que hoje já não
ficam recônditas no discurso da história escravagista, mas que ao falar de tal tema
emitem barulho, incomoda, tira o leitor do chão e do lugar comum.
Basta abrir uma página nos jornais para ver que a diferença social ainda
está acentuada pela cor da pele. Nesta perspectiva, nota-se que o número de
mulheres negras como empregada doméstica é bem maior e não diminuiu muito
em 10 anos. No que tange à violência contra a mulher negra, podemos nos basear
no Mapa de Violência de 2015, onde consta que em dez anos, os assassinatos de
brasileiras negras crescem 54% e as mortes de mulheres brancas caíram 9,8%.
Curiosamente, das seiscentas mulheres que sofrem feminicídio205, sessenta por
cento tem a cor da pele negra. E se quisermos ampliar o mapa das diferenças
entre brancos e negros, entramos nos dados da Infopen206 com o seguinte registro:
das 693.145 pessoas presas, 64% são negras. Outro questionamento, se mais da
metade da população brasileira é negra, por que o número de negros com ensino
superior é discrepante em relação a brancos e por que ainda em muitos anos de
políticas públicas, o número de presos recai sob a raça negra?
Em termos da relação entre literatura e sociedade, a literatura negra brasileira
versa sobre temas que procuram denunciar e combater essas diferenças existentes,
procura abrir o olhar do leitor para a invisibilidade da mulher negra que já não se
conforma com os cargos impostos pela cor da pele. A literatura negra abre o leque
para o grito de liberdade que foi apenas uma metáfora silenciosa e fingida para
dizer que negros foram libertos. Não diferente dos dados acima, podemos asseverar
que na própria cultura e história da literatura brasileira a arte literária do cânone
brasileiro é uma supervalorização do branco em detrimento do negro. Este quando
evocado, em várias obras, ou é visto como escravo, como serviçal ou, no caso da
mulher negra, aquela que se nota pela beleza do corpo e do prazer instaurando
outros problemas: a violência e a condição da mulher em desigualdade.
Como contributo na área de Literatura e Ensino, este minicurso além de
ter o objetivo de analisar a poesia negra, surge como abertura para divulgar o
ensino nesta linha de atuação, do qual se originaram várias pesquisas. Inicia-se
pelo relato da pesquisa “A representação do negro na poesia afro-brasileira
contemporânea de Cuti” defendida pela professora Simone de Castro Assumpção
que teve como norteamento investigar a poesia afro-brasileira que, por sua vez,
surge no momento em que o afrodescendente assume a posição de sujeito da
204
Conforme Kafka: por uma literatura menor.
205
Ver: <blogueirasnegras.org/2018/01/10/cor-da-violencia-feminicidio-de-mulheres-negras-no-brasil/>.
206
Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias).

233
enunciação. Em seu estudo, a autora revela que, ao tomar posse da palavra, o
descendente de africano revela um existir negro no seu modo de ver e sentir
o mundo, por meio de um eu-enunciador-que-se-quer-negro e que contesta os
valores representados pela cultura dominante. A autora destaca um estudo de
contraliteratura por promover a ruptura com a escrita ditada pelos brancos, sendo
que o poeta doravante falará apenas em seu nome.
Sob o prisma de alguns estereótipos enraizados na história sobre a mulher
negra, menciona-se a pesquisa de Alcimar Falcão “Mulheres negras na história
e na literatura brasileira”. Este trabalho teve como objetivo primordial provocar
reflexões acerca processo histórico de luta contra os estereótipos em relação à
mulher negra que são marcados pela cor da pele, condição social, subjugadas à
invisibilidade e a elementos negativos, chegando ao sexismo e ao trabalho escravo.
Diante disso, a autora procura por meio de textos literários desconstruir esses
estereótipos. Na mesma linha de pensamento, ocorreu o exame temático sobre
racismo na pesquisa de Maria Lima intitulada “Racismo, gênero e sexualidade
em Clara dos Anjos” que descortina algumas abordagens sobre tais aspectos na
literatura afro-brasileira.
Sob a ancoragem de minorias e diferenças sociais entre homens e mulheres,
enfoca-se o estudo de Elisângela Castro de Jesus intitulado “Mulher e a construção
social do casamento na obra de Mia Couto”, com o corpus de análise voltado para
o conto “Rosalinda, a nenhuma” e o romance “Um rio chamado tempo, uma
casa chamada terra”. A espinha dorsal desta pesquisa foi discutir a partir das
concepções de Simone de Beauvoir sobre a história do casamento permeada pela
submissão, procriação chegando ao empoderamento da mulher que não quer
mais viver no silenciamento provocado pela opressão machista e do casamento
que não é libertação.
E sobre a literatura moçambicana em que o negro figura como ser inferior
pela cor da pele, cita-se a pesquisa de Soraia Nascimento “Identidade, diferença
e preconceito racial em O embondeiro que sonhava pássaros, de Mia Couto”. Um
estudo pautado na discussão sobre injúria racial e preconceito racial permeadas
no discurso dos brancos em detrimento do negro que embondeiro que distribuía
sonhos e narrativas para as crianças estabelecendo dois eixos pela metáfora
do pássaro e passarinheiro: a liberdade e a opressão, diferença entre negros e
brancos ocasionada pela injúria racial.
Na sequência, convém elucidar sobre as discussões em sala de aula para
se pensar nos projetos sobre literatura afro-brasileira na formação docente. O
estudo se pauta em diversas produções dos 150 anos de consciência negra no
Brasil. Neste contexto de produção de poesia, contos e romances na literatura
brasileira, delimitou-se o foco para as concepções da crítica literária brasileira
a respeito de literatura afro-brasileira, literatura negra, identidade e minorias.

Concepções da crítica sobre literatura afro-brasileira/literatura negra,


identidade e minorias

Este trabalho segue a premissa crucial de explicitar as poéticas periféricas no


âmbito da linha da identidade, resistência e representação cultural em contexto
de minorias. E para iniciar a discussão crítico-teórica, convoca-se o crítico Alfredo
Bosi em sua Dialética da colonização, o qual permite ao leitor pensar que as

234
culturas são plurais assim como a identidade movente como assevera Stuart Hall
(2006). Bosi (1992) assevera que a tradição da nossa Antropologia Cultural já via
uma divisão do Brasil em culturas atribuindo-lhes um critério racial: cultura
indígena, cultura negra, cultura branca, culturas mestiças, ou melhor, cultura
brasileira e culturas brasileiras, ou ainda mesmo como culturas não europeias
(as indígenas, negras, etc) e culturas europeias.
Nesta perspectiva, pode-se pensar a construção da identidade cultural na
imagística dos textos negros ou afro-brasileiros. Para análise deste trabalho,
concentra-se na dialética da representação do ser negro e de sua valorização
durante muito tempo negada a uma tradição de cultura de branqueamento. A
mulher negra celebrada nas poéticas negras contemporâneas abre um leque
temático de leituras. Sob esse prisma, ganha voz para denunciar as mazelas sociais
da diferença acentuada pela cor da pele, pelo lugar que o negro ocupa na sociedade.
Percebe-se uma formulação de um discurso lírico que agrega elementos culturais
e estabelece a diferenciação entre o eu e o outro, isto é, a identidade e a alteridade
e, sobretudo, as identidades em construção, de acordo com o que constatamos na
obra Da diáspora: identidades e mediações culturais, de Stuart Hall (2013).
Neste viés, a identidade, por sua vez, pode ser compreendida como um
conjunto de representações e características culturais de um povo, as quais
permitem reconhecer um e outro ao diferenciá-lo dos demais. Em outras palavras,
não importam as diferenças em termos de classe, gênero ou raça, mas sim a cultura
nacional que unifica as pessoas dentro de uma identidade plural na diversidade207
como bem asseverou Bosi, ao utilizar o termo culturas brasileiras no plural.
Sob esse prisma, prefere-se muito mais utilizar literatura afro-brasileira que
literatura negra em virtude de não excluir ao incluir. Literatura é literatura e não se
avalia a qualidade de um texto literário pelo discurso de branco ou negro. Contudo,
o termo literatura negra surge por uma longa discussão de silenciamento de vozes
que não foram valorizadas pela crítica hegemônica brasileira e não cabe aqui
realizar toda a trajetória dos escritores negros no Brasil e sim voltar o olhar para o
texto literário e suas feições artísticas que entram para uma literatura de resistência
e combate ao preconceito e ao racismo, sobretudo no que tange à representação
da mulher tanto no olhar do eu - lírico masculino como no eu - lírico feminino.
Destarte, a identidade é questionada a partir da existência de diversas
culturas e da ancestralidade e a cor da pele muito ressaltada na poesia negra
não simboliza necessariamente o constructo das diferenças de relações que vão
além da cor da pele, pois o sujeito pode viver na indecidibilidade de sua raça,
cor ou etnia. Kathryn Woodward (2002), ao introduzir o seu capítulo Identidade
e diferença: uma discussão teórica e conceitual assevera que os homens tendem
a posições-de-sujeito para as mulheres tomando a si próprios como ponto de
referência. Sendo assim, as mulheres são as significantes de uma identidade
masculina partilhada.
Em consequência, a identidade é marcada pela diferença das relações, mas
“parece que algumas diferenças – neste caso entre grupos sociais e étnicos – são
vistas como mais importantes que outras, especialmente em lugares particulares e

Utilizamos o conceito de diferença cultural e não o de diversidade cultural, que conforme


207

Bhabha há diferença. Para ele, a diversidade cultural contempla um universo de coisas, ao passo
que “a diferença cultural representa mais adequadamente como enunciados são criados para
promover a legitimação de determinadas culturas em relação a outras” (MADALENA, 2017, p. 2).

235
em momentos particulares” (p. 10-11), em muitos casos, a diferença entre negros e
brancos não só na valorização de uma literatura como também nos lugares sociais
ocupados por negros e brancos. Em poemas escritos por mulheres negras percebe-se
que a mulher negra ou é a margarida que varre o asfalto ou é a negra fulô das
curvas eróticas e belas que deita com o feitor na condição de escrava sexual.
Sob esse prisma, não basta discutir a identidade negra exaltando a
afrodescendência ou se assumindo como negro em uma sociedade desigual. Não
basta dizer que a identidade negra deve ser pensada, pela mistura cultural e não
pela linha de diferença acentuada pela cor da pele. Essas diferenças “só fazem
sentido se compreendidas uma em relação à outra”, isto é, “a identidade depende
da diferença, a diferença depende da identidade. Sendo ambas inseparáveis”
(WOODWARD, 2002, apud SILVA, 2002).
Cumpre assim examinar como a literatura negra ganha corpo e voz no limiar
de uma lírica individual e coletiva, que surge como vozes silenciadas e que não
podem mais se calar diante do machismo, do preconceito, da desigualdade social,
da valorização do outro pela cor da pele. A literatura negra, neste sentido, alavanca
para um rio em chamas, um rio de lágrimas e dores longe de uma romantização
da arte. Literatura é antes de tudo uma arma de combate, como enfatiza Bosi:
‘literatura é resistência e combate ao racismo’.
No tocante a uma literatura de luta contra o racismo, combate à desigualdade
social, pode-se afirmar que se assiste, a rigor, a uma literatura no limiar de
protestos. Sobre isso, Bernd (1998) aponta que:

Ingressados para o curso de História, esses negros [da literatura] têm


neste estudo as suas vozes audíveis, na reivindicação e protesto da
sua poesia contra os sistemas hegemônicos e majoritários (...) do seu
discurso consciente, uma história que se quer também universal...
(BERND, 1988, p. 11).

Frente a essas discussões, cumpre discorrer sobre literatura negra e literatura


afro-brasileira. Conforme o professor e crítico Assis Duarte (2016), considera-se
como literatura negra o conjunto de obras publicadas por escritores negros, ao
passo que a literatura afro-brasileira pode ser compreendida a partir de um falar
sobre o negro. Já para Zilá Bernd (1998) em Introdução à literatura negra, pode-se
asseverar que a literatura negra se instaura quando se tem um Eu - enunciador
que se quer negro.
Benedita Damasceno (2003), em sua obra Poesia negra no modernismo
brasileiro, ressalta que a cor da pele não pode ser o requisito para conceituar uma
literatura como negra. E para resolver esta questão ainda em devir, elegem-se os
textos de autoria de escritores negros como literatura periférica contemporânea
que se tem como literatura brasileira das minorias. O que denotaria outro
problema e abre espaço para questionamentos, tais como: 1) Literatura de minoria
seria uma literatura aquém do valor literário? 2) Em que consiste então o conceito
de literatura menor?
A literatura menor, termo emprestado de Deleuze e Guatarri, se refere a
uma literatura negra que vai se construindo em condições revolucionárias e nada
tem de pejorativo e, por excelência, se refere à literatura marginal. A literatura
menor tem como premissa fulcral situar-se no nível do discurso e não da forma.
Ela “trafega na contracorrente” (BERND, 1998, p. 43).

236
Em outras palavras, a literatura negra é aquela situada à margem do
cânone e se trata das vozes de minoria, das vozes que faltavam para dizer o
não dito. Abrem espaços na academia para denunciar o racismo, para combater
o autorracismo, as desigualdades sociais e as injúrias provocadas contra negros
por meio do verso e da prosa.
Desse modo, a literatura menor é uma literatura de resistência, pode-se
pensar em outro texto primordial. Trata-se do capítulo “A literatura e os excluídos”,
do crítico Alfredo Bosi (2002), na obra Literatura e resistência. Por excelência, há
duas formas de considerar a relação entre a escrita e os excluídos. A primeira
praticada pelos historiadores de literatura e que se refere ao ato de ver o excluído
e marginalizado como objeto da escrita: personagens, temas, etc. e é preciso
amenizar os modos de figuração das camadas mais pobres na poesia, na prosa
narrativa e no repertório da literatura (BOSI, 2010, p. 257).
A literatura negra pode ser explicada a partir de um depoimento do estudioso
Ironides Rodrigues concedido a Luiza Lobo. Para ele, literatura negra constitui-se
como aquela produzida “por autor negro ou mulato que escreva sobre sua raça
dentro do significado do que é ser negro, da cor negra, de forma assumida,
discutindo os problemas que a concernem: religião, sociedade, racismo. Ele tem
que se assumir como negro”(RODDRIGUES, apud LOBO, 2007, p. 266, grifos nossos).
Neste contexto, podemos ainda ressaltar que independente dos conceitos,
cabe ao pesquisador averiguar como ocorre a representação do negro na literatura
brasileira. Vale a indicação do ensaio de Domício Proença Filho (2004) O negro
na literatura brasileira. Tem-se um direcionamento da literatura em que o
negro aparece como objeto marginalizador, distanciado, e em segunda instância
como sujeito do discurso. Entretanto, não foge muito da invisibilidade desde a
colonização ao século XIX.
Diante de muitos estereótipos, com base em Domício Proença Filho (2004) em
A trajetória do negro na literatura brasileira, percebe-se o negro como mercadoria
denunciado na lírica de Gregório de Matos e esta representação poderia ser uma
das primeiras aparições. Surge o negro como estereótipo da nobreza de caráter
ligada à cor da pele (aqui menciona-se A escrava Isaura de alma branca, Firmo,
o mulato de olhos claros criados por Aluísio de Azevedo). Encontra-se o negro
serviçal vindo da senzala em diversas obras. Tem-se o negro animalizado como
em O cortiço, em uma tessitura de zoomorfização.
Verifica-se o negro demonizado como em O demônio familiar, de José de
Alencar, além do negro como mau agouro aparece em Inocência de Visconde de
Taunay, o negro miúdo, fofoqueiro e empregado de Pereira. O negro pervertido
e sensual aparecerá em obras como A carne, de Júlio Ribeiro representado pela
figura de Lenita, personagem branca e nobre que sai à madrugada para os prazeres
sexuais com os escravos. O negro ladrão reaparece no modernismo com Jorge de
Lima, mas a partir de 1980 surge o revide com Oliveira Silveira e outros autores.
No conto a representação do negro como malfeitor, bandido e ladrão é mais
recorrente como em Fábrica de fazer vilão, de Ferrez e Eu, um homem correto,
de Murilo Carvalho. Estas referências apenas servem para guiar o leitor sobre
as diferenças entre negros e brancos seguindo estereótipos208 na cultura literária
brasileira, porém retornar-se-á ao foco principal desta conferência.

208
Conferir na íntegra o ensaio de Proença Filho A trajetória do negro na literatura brasileira (2004).

237
Análise da poesia escrita por autores negros no contexto de memória,
identidade, racismo e outros temas

Torna-se pertinente alargar a discussão acima sobre algumas mulheres


marcantes na literatura negra. Destaca-se Carolina Maria de Jesus, uma mulher
à frente de seu tempo. Uma mulher negra que em seu Quarto de despejo revela
a imagística do sonho, de não querer ficar na invisibilidade, uma mulher de
consciência política, mulher de luta e resistência, sobretudo de sonho em seu
Quarto de despejo: “Meu sonho é andar bem limpinha. Preta é a minha pele. Preto
é o lugar onde eu moro” (1960, p. 160).
Muitas fugiam ao me ver…

Muitas fugiam ao me ver


Pensando que eu não percebia
Outras pediam pra ler
Os versos que eu escrevia
Era papel que eu catava
Para custear o meu viver
E no lixo eu encontrava livros para ler
Quantas coisas eu quiz fazer
Fui tolhida pelo preconceito
Se eu extinguir quero renascer
Num país que predomina o preto
Adeus! Adeus, eu vou morrer!
E deixo esses versos ao meu país
Se é que temos o direito de renascer
Quero um lugar, onde o preto é feliz
(JESUS, 1960, p. 160).

Em se tratando de Guardados da memória e outras obras, a autora Ana Cruz


(2008) inscreve-se como uma escritora que provoca o amor pela cultura e costumes
africanos em linguagem simples, mas não simplória. A memória individual e
coletiva banha sua poesia, pois a identidade e as escritas de si se mesclam à
memória do povo africano e da identidade que nos define em corpo, voz e alma.
Em sua lírica também não se pode negar a resistência e a luta pela igualdade e a
recusa da condição da mulher negra instaurada pela desigualdade social. Leia-se
o poema “Retinta”:

Mãe preta, bonita, sorriso largo, completo


Nem parece que passou por tantas.
Deu um duro danado entre a roça e os bordados.
Virou ao avesso para não desbotar.
Dizia, não com soberba: não esfrego chão dessas Senhoras.
Essa gente coloniza... (CRUZ, 2008, p. 184).

Pode-se elucidar que a poesia de Ana Cruz descortina a memória de um


passado de exploração do negro como escravo, mas também de resistência. A
mulher não aceita ser colonizada e passar pela mão de obra barata e esfregar o
chão, engomar as roupas da mulher branca como ocorre no poema “Nega Fulô”
citado alhures. Os versos de Ana Cruz caminham na contramão. Ela apodera-se da

238
voz de todas as mulheres negras que deveriam ter o mesmo patamar de orgulho
de ser e existir. E assim encerra o poema com uma subjetividade ultrajante: “Se
a pessoa não tiver orgulho de ser assim Zulu/fica domesticada. Sem opinião. Se
autodeprecia, adoece” (p. 194, grifos nossos).
Outra voz no limiar da identidade e da memória se refere à escritora negra
Jussara Santos. A autora integra um dos primeiros grupos de poesia contemporânea
que traçam um lirismo discursivo-poético sobre a memória da etnicidade negra
assim como o poeta Edmilson Pereira. Jussara Santos canta a ancestralidade negra
e denuncia o preconceito e o racismo ainda existente na sociedade. Aliás, Jussara
Santos, por meio do recurso da recifração da imagem intertextual, produz um
lirismo discordante de A procura da poesia, de Drummond em seus versos “Ao
pé do ouvido”, na obra Minas de mim (SANTOS, 2005):

Se pudesse silenciar-me
frente a acontecimentos
silenciaria
mas todos os dias melancolicamente aconteço.
[...] mas todos os dias absurdamente amanheço.
Digo não à cidade,
Mas todos os dias revelo-me equívoco
Diante de seus ecos.
“... não tires poesia das coisas
elide sujeito e objeto...”
grita Drummond,
mas todos os dias dramatizo,
Invoco
indago
aborreço,
e minto
minto muito
ouvinte no reino silencioso da palavra
que não quer Surda.
(p. 188).

Enquanto a poesia de Drummond instaura a metalinguagem na busca pela


poesia, os versos de Jussara Santos invocam, dramatizam e aborrecem uma
encenação diante do silêncio surdo como na palavra drummondiana. A voz
lírica quer ser ouvida, dramatizada, invocada diante das desigualdades sociais,
pois todos os dias amanhecem o racismo e suas consequências; todos os dias o
preconceito grita e a poesia nasce assim para dizer o não dito, dizer o inaudível
como propõe Octavio Paz em O arco e a lira, e assim também se traduz a poética
de Jussara Santos.
Em se tratando da escritora negra Esmeralda Ribeiro evidencia essa tônica
da permanência do racismo e opressão na sociedade brasileira. A diferença entre
ela e outras autoras é que há um viés de pessimismo. Em vários textos líricos da
autora o leitor poderá conferir uma forte luta pela inclusão da mulher, sobretudo
presencia-se uma busca pela identidade feminina especificamente negra. Em seu
ponto de vista, para escrever a literatura negra, o autor deve antes de tudo ser
negro elevando a afirmação da identidade e memória individual e coletiva e por
muitas vezes se questiona a alteridade dentro da própria existência:

239
Quem em sã rebeldia
tira a máscara esculpida na
ilusão de ser outro
e não ser ninguém...
(RIBEIRO, 2002, 180).

A poética de Esmeralda Ribeiro, conforme se nota, demonstra que o sujeito


lírico usa máscaras da ficção e da autobiografia para professar uma identidade
na alteridade, ou seja, ocorre que o eu-lírico canta o poema a partir do discurso
sobre o outro que se iguala ao não ser nada. Esse pessimismo aparece, muitas
vezes, em questionamento que joga com as palavras nos versos, a saber: “Se a
margarida flor é branca de fato qual a cor da Margarida que varre o asfalto?”
(RIBEIRO, 1998, p. 181).
Conceição Evaristo com seu poema “Vozes mulheres” reivindica, no limiar da
recorrência da memória do passado e tortura, uma liberdade que se metaforiza
pelo grito ecoado ao final do poema que não mais cantará a escravidão retida na
voz de sua avó, mas que simboliza o sangue e a fome cujo tempo não conseguiu
apagar. Essa temporalidade é recolhida pelo ato poético que encena a dor, o
sangue e o grito abafado, porém não mais em uma fala amordaçada:

A minha voz ainda


ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recorre todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem - o hoje - o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.
(EVARISTO, 2008, p. 16).

Outra voz que não pode faltar na leitura de minorias sociais negras e
denúncia de racismo é o texto “Mulata exportação”, de Elisa Lucinda, da série
“Brasil, meu espartilho”:

Mas que nega linda


E de olho verde ainda
Olho de veneno e açúcar!
Vem nega, vem ser minha desculpa
Vem que aqui dentro ainda te cabe
Vem ser meu álibi, minha bela conduta
Vem, nega exportação, vem meu pão de açúcar!
(Monto casa procê mas ninguém pode saber, entendeu meu dendê?)

240
Minha tonteira minha história contundida
Minha memória confundida, meu futebol, entendeu meu gelol?
Rebola bem meu bem-querer, sou seu improviso, seu karaoquê;
Vem nega, sem eu ter que fazer nada. Vem sem ter que me mexer
Em mim tu esqueces tarefas, favelas, senzalas, nada mais vai doer.
Sinto cheiro docê, meu maculelê, vem nega, me ama, me colore
Vem ser meu folclore, vem ser minha tese sobre nego malê.
Vem, nega, vem me arrasar, depois te levo pra gente sambar.”
Imaginem: Ouvi tudo isso sem calma e sem dor.
Já preso esse ex-feitor, eu disse: “Seu delegado…”
E o delegado piscou.
Falei com o juiz, o juiz se insinuou e decretou pequena pena
com cela especial por ser esse branco intelectual…
Eu disse: “Seu Juiz, não adianta! Opressão, Barbaridade, Genocídio
nada disso se cura trepando com uma escura!”
Ó minha máxima lei, deixai de asneira
Não vai ser um branco mal resolvido
que vai libertar uma negra:
Esse branco ardido está fadado
porque não é com lábia de pseudo-oprimido
que vai aliviar seu passado.
Olha aqui meu senhor:
Eu me lembro da senzala
e tu te lembras da Casa-Grande
e vamos juntos escrever sinceramente outra história
Digo, repito e não minto:
Vamos passar essa verdade a limpo
porque não é dançando samba
que eu te redimo ou te acredito:
Vê se te afasta, não invista, não insista!
Meu nojo!
Meu engodo cultural!
Minha lavagem de lata!
Porque deixar de ser racista, meu amor,
não é comer uma mulata!
(LUCINDA, da série “Brasil, meu espartilho”).

O poema de Elisa Lucinda representa momentos de assédio e recorte


com a história de mulheres negras que eram compradas ou tidas como objetos
sexuais pelos senhores brancos camuflados como nobres, não distante do Brasil
Colonização. Por trás dos versos: “mais que negra linda (...) de olhos verdes
ainda” há explicitamente outro discurso enraizado da mulata que não servia para
escrava de trabalho propriamente dito, mas para manter as relações sexuais com
o explorador e ainda tinha que manter o silêncio: “Monto casa procê mas ninguém
pode saber, entendeu meu dendê?”. Sem vestir a hipocrisia de muitos brancos
racistas, o poema denuncia as atitudes abusivas de senhores que mantinham a
aparência social e relações sexuais com mulheres negras.
Ademais, havia duas opções para a mulher negra: ou aceitar a condição
de escrava ou aceitar a condição de explorada sexualmente, pois dizia o feitor:
“Em mim tu esqueces tarefas, favelas, senzalas, nada mais vai doer”. Entretanto,
na voz do eu-lírico de Lucinda a mulher negra não mais aceita a hipocrisia e os

241
abusos da lei que favorece o branco intelectual no presídio. A mulher está frente
a frente com o delegado e o juiz quando surge outra voz de combate e revide
ao dizer que o opressor “branco ardido” lembra da Casa Grande e não mais na
senzala. Momento em que a mulher negra vem para passar a história a limpo e
escrever outra história de combate ao machismo e racismo: “Porque deixar de
ser racista, meu amor, não é comer uma mulata!”. O poema de Lucinda cai muito
bem ao que Bosi escreveu em Poesia e racismo. Chega-se o tempo de resistência
em que a literatura sacraliza a voz de resistência. Para fechar as reflexões acerca
de mulheres negras e combate ao preconceito e racismo, não podemos deixar de
ler a artista contemporânea, jovem negra empoderada, Thata Alves, do Sarau das
pretas, autora de Em reticências e da obra Troca, com seu poema “Levanta preta”:

Levanta Preta
Levanta a cabeça
Porque não dá tempo pra lamentar
(...)
Levanta a cabeça preta
Porque o turbante fica melhor
enaltecido
E saiba que o que aconteceu contigo
(...)
Levanta a cabeça preta!
Porque a coroa com teus cachos
Eu não só acho,
mas tenho certeza
Que toda sua realeza
Não combina com essa tristeza
e que você só mereça
Os raios de sol
que tem o teu sorriso
E que amar é preciso
Se não for machucar
Preta
Há uma continuação de teu reinado
que do seu ventre fora gerado
Então joga no chão esse fardo
E sorria!!!
Porque de novo se fez dia
e tens a chance de recomeçar
(THATA ALVES).

Levanta a cabeça é um texto que serve como arquétipo de empoderamento


e coragem além de ser um chamado para evitar lamentações porque o tempo
agora é de combate, é de enaltecimento e de recomeço. Na voz instaurada pelo
eu-lírico para um tu-enunciador no poema (todas as pretas), a mulher negra deve
estar de cabeça erguida e ser motivo de orgulho pela realeza dos cachos e pelo
uso do turbante. Eles revelam também, por trás desse empoderamento, as marcas
da história do que aconteceu.
Não obstante, o sujeito lírico enuncia que o fardo de ser preta e triste
para continuar sendo escrava no silêncio do passado não tem mais espaço na
contemporaneidade, “porque de novo se fez dia/e tens a chance de recomeçar”.

242
Assim como na poesia de Conceição Evaristo e Elisa Lucinda, a voz de Thata
Alves eclode para deixar as amarras do passado e das mazelas de exploração. O
que a mulher negra tem agora é a oportunidade de gritar, cantar e recomeçar
ao ganhar espaço em movimentos de luta contra tudo que o passado impôs e a
sociedade ainda fecha os olhos para as diferenças demarcadas pela cor da pele.
Passando para uma leitura da poesia negra com o enunciador que se quer
masculino, a poesia de Cuti está dentro desta categorização explicada por Ironides
Rodrigues. Cuti, um dos membros fundadores do grupo Quilombhoje Literatura
permite uma leitura crítica da cultura negra no que tange ao resgate da memória
do movimento negro. Não obstante, ressalta-se que sua produção carrega traços
de um lirismo de exaltação e do orgulho de ser e existir como negro. É neste
contexto de valorização e aceitação da cor da pele que a poesia ganha voz de
proclamação da memória lírica e coletiva. Publicado em 1978, a obra Poemas da
carapinha retrata a valorização de ser negro e da intitulação da identidade negra
que não pode ser negada a partir da cor ou do branqueamento ou da negação de
pertencer ou ser afrodescendente:

SOU NEGRO
Sou negro
Negro sou sem mas ou reticências
Negro e pronto!
Negro pronto contra o preconceito branco
O relacionamento manco
Negro no ódio com que retranco
Negro no meu riso branco
Negro no meu pranto
Negro e pronto!
Beiço
Pixaim
Abas largas meu nariz
Tudo isso sim
Negro e pronto!
Batuca em mim
Meu rosto
Belo novo contra o velho belo imposto
E não me prego em seu preto
Negro e pronto
Contra tudo que costuma me pintar de sujo
Ou que tenta me pintar de branco
Sim
Negro dentro e fora
Ritmo – sangue sem regra feita
Grito- negro – força
Contra grades contra forças
Negro pronto
Negro e pronto.
(CUTI, 1978, p. 145).

Como se pode perceber, o eu - enunciador que reina no limiar da voz poética


não nega jamais a sua cor e seus traços de negritude, o que denota a valorização de
sua ancestralidade ao dizer que é negro de pixaim, beiços largos, negro dentro e fora.

243
Na poesia de Oliveira Silveira há a recifração da imagem da negra Fulô na
tradição do modernismo de Jorge de Lima. Em outra vertente, Silveira apresenta
ao leitor contemporâneo “Outra nega Fulô”:

OUTRA NEGA FULÔ


O sinhô foi açoitar
a outra nega Fulô
- ou será que era a mesma?
A nega tirou a saia
A blusa e se pelou,
O sinhô ficou tarado,
Largou o relho e se engraçou.
A nega em vez de deitar
Pegou um pau e sampou
Nas guampas do sinhô.
- Essa nega Fulô!
Esta nossa Fulô!
Dizia intimamente satisfeito
O velho pai João
Pra escândalo do bom Jorge de Lima,
Seminegro e cristão.
E a mãe-preta chegou bem cretina
Fingindo uma dor no coração.
_ Fulô! Fulô! Fulô!
A sinhá burra e besta perguntou
Onde é que tava o sinhô
Que o diabo lhe mandou.
_ Ah, foi você que matou!
Disse bem longe a Fulô
pro seu nego, que levou
ela pro mato, e com ele
aí sim ela deitou.
Essa nega Fulô!
Esta nossa Fulô!
(OLIVEIRA SILVEIRA, 1998, p. 133).

As vozes poéticas cujo Eu - enunciador se declara feminino tanto pelo discurso


quanto pela própria autoria diferem da voz enunciativa masculina. Há no caso
das mulheres negras uma luta constante para combater muitos estereótipos, tais
como: da mulher negra como símbolo sexual e por muito tempo objeto, a mulher
negra como empregada doméstica, cuja única condição dada é a de trabalho
para engomar, passar, cozinhar, entre outras indesejadas imposições. O poema
de Silveira explicita uma denúncia sobre a condição da mulher objeto sexual
que intertextualiza com o poema Negra Fulô, de Jorge de Lima do modernismo
brasileiro. A diferença do dizer sobre a mulher negra no poema de Lima está
na enunciação. Enquanto Jorge de Lima o eu-lírico diz “essa negra Fulô quem
roubou”, o poema de Oliveira Silveira se refere a outra nega Fulô:

...seu nego, que levou


ela pro mato, e com ele
aí sim ela deitou.

244
Essa nega Fulô!
Esta nossa Fulô!

Em ambos os poemas há um poetizar que coloca a negra distante do eu que


demarcaria a identidade. Muito mais que isso. A poesia não faz rodeios para
explicitar a mulher como objeto de desejo e posse e com uma tessitura sexista.

Considerações finais

A guisa de inferências, as obras examinadas permitiram discutir sobre


identidade e memória pelo viés da tessitura de combate ao racismo e ao
preconceito. Vê-se que a mulher negra e sua luta pelo não silenciamento frente ao
preconceito instaurado pela cor da pele, pelas diferenças sociais e pela imposição
da invisibilidade arraigada no discurso da sociedade, da história e da literatura
ressurgem como vozes gritantes e vozes moventes.
Não há somente uma preocupação em cantar versos de uma escravidão
passada, mas uma escravidão ainda no presente, de um racismo disfarçado pelo
discurso, de uma desigualdade estampada na cor da pele e no tocante ao lugar
que o negro ocupa na sociedade. Seria como uma senzala camuflada, pois o negro
ainda é o suspeito na hora de um roubo, a mulher negra ainda é diferenciada da
mulher branca pelo corpo esbelto e não pela inteligência e igualdade. Por trás de
tudo isso, aparece ainda a figura da mulher negra como objeto de desejo.
Por conseguinte, tornou-se possível comprovar que em vários poemas a mulher
é diferenciada da mulher branca quando “lava e engoma” a roupa dos grandes
senhores, não mais nas senzalas, mas exploradas como empregadas domésticas,
como negras do prazer sexual. A poesia nasce como resistência. A poesia negra
é a voz periférica e marginal que faltava na literatura brasileira, a qual aparece
agora para denunciar uma sociedade hipócrita que insiste em defender que existe
o princípio da isonomia no Brasil, pois ser negro infelizmente ainda é motivo de
diferença da cor da pele e exclusão e como críticos literários não podemos também
emudecer na academia dos esquecidos na quebra desse silenciamento de vozes de
minorias na literatura afro-brasileira ou literatura negra.

Referências

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245
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culturais/ Tomaz Tadeu da Silva (org.) Stuart Hall, Kathryn Woodward. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2000.

246
A viagem de Spix und Martius pela Amazônia, em
1819/18201

Willi Bolle

1
Uma primeira versão deste artigo foi publicada no Martius-Staden-Jahrbuch, São Paulo, n. 62, 2018,
p. 128-158, em alemão e em português. Na presente versão, várias passagens foram reformuladas,
as referências bibliográficas foram atualizadas, e foi inserida uma nova série de ilustrações.

247
O relato de Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, 1817-1820 (publicado em
três volumes entre 1823 e 1831), pode ser considerado como a mais importante
publicação em língua alemã sobre este país. A viagem que os dois naturalistas
fizeram pela Amazônia, de fins de julho de 1819 até meados de junho de 1820,
é apresentada nas 484 páginas do volume 3 da edição brasileira. Quanto ao
contexto histórico, deve ser lembrado que pesquisadores estrangeiros receberam
a permissão para visitar a colônia Brasil somente a partir do ano de 1808, quando
o governo português, diante da ameaça de uma invasão do seu país pelas tropas
de Napoleão, transferiu sua sede de Lisboa para o Rio de Janeiro, autorizando
em seguida a abertura dos portos brasileiros. Para a realização da expedição de
Spix e Martius foi especialmente favorável o casamento, em 1817, da princesa
Leopoldina de Habsburgo com o futuro imperador D. Pedro I. Do séquito dela
fazia parte um grupo de cientistas e artistas, entre eles o zoólogo Spix e o botânico
Martius (Gomes, 2013). Ambos tinham sido escolhidos pelo avô de Leopoldina, o
rei da Baviera, e, nesse sentido, as suas pesquisas foram realizadas sobretudo a
serviço da Academia de Ciências da Baviera.
Apoiando-nos no resumo dado pelos dois pesquisadores (Spix/Martius,
2017, v. 3, p. 91-94)209 sobre os viajantes que tinham sido seus predecessores na
exploração da região amazônica, vamos relembrar aqui os principais nomes,
datas e obras – com alguns complementos atualizados, porque Spix e Martius
não tiveram todos esses documentos à sua disposição, uma vez que alguns ainda
não tinham sido publicados.
A travessia pioneira da Amazônia por uma expedição de europeus foi
realizada em 1541/1542 por uma tropa de 57 espanhóis sob o comando de
Francisco de Orellana. Como relata o cronista Gaspar de Carvajal, ocorreu durante
esse empreendimento um combate contra uma tribo de índios comandada por
mulheres. O nome de “Amazonas”, com o qual elas foram designadas pelos
europeus, nome emprestado da mitologia grega, acabou sendo transferido em
seguida para o rio e toda a região.
A colonização da Amazônia pelos portugueses começou em 1616, com a
fundação da fortaleza de Belém como ponto de apoio estratégico e acesso para o
interior. Uma expedição exploratória de Belém até Quito, no Equador, ida e volta,
foi realizada de 1637 a 1639 sob o comando do governador Pedro de Teixeira, e
narrada por Cristóbal de Acuña (1641). Para a colonização e exploração da região
amazônica foi decisiva a participação das ordens religiosas. O padre jesuíta Samuel
Fritz elaborou em 1691 o primeiro mapa de concepção científica da Amazônia
(Pinto, 2006). Esse mapa foi aperfeiçoado em 1743 pelo astrônomo francês La
Condamine (1993), o qual recebera para esse fim, do governo português, uma
autorização especial para atravessar a Amazônia.
Na sequência dessa primeira expedição inteiramente científica, devem ser
mencionados ainda os seguintes textos, escritos durante a segunda metade do
século XVIII e que são fundamentais para o conhecimento da Amazônia: as cartas
do governador Mendonça Furtado sobre as províncias do Pará e do Rio Negro,
sobre as negociações de demarcação dos limites entre Portugal e Espanha, e sobre
os jesuítas, que foram expulsos em 1757, sob o governo do Marquês de Pombal
(Mendonça, 2005); a obra Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas (1757-1776),

Nas subsequentes citações do volume 3 da Viagem pelo Brasil é indicado somente o número
209

da página.

248
redigida pelo jesuíta João Daniel (2004) durante a sua detenção num presídio em
Lisboa; os relatos de viagem do bispo do Pará, D. Caetano Brandão, referentes aos
anos 1784, 1787 e 1788 (p. 93); e finalmente, a Viagem filosófica (1783-1792), de
Alexandre Rodrigues Ferreira (1970 e 2007). Quanto às pesquisas de Alexander
von Humboldt, cujos escritos sobre a América do Sul foram considerados por Spix
e Martius como modelo para o seu relato de viagem, ele tinha sido proibido em
1800 de entrar na Amazônia brasileira.
Em que consistem a novidade e o caráter exemplar da contribuição de Spix e
Martius para o conhecimento da Amazônia? 1) Na utilização do relato de viagem
como um gênero que relaciona a apresentação de conhecimentos científicos com
informações de interesse público geral, estabelecendo ao mesmo tempo conexões
interdisciplinares entre os fatos da natureza e da cultura. 2) Na inclusão de uma
dimensão estética do saber, que é transmitida sobretudo pelas numerosas imagens
contidas no volume de estampas (Atlas), que complementa os três volumes de
textos,210 e no qual se encontram também alguns exemplos de cantigas populares
brasileiras e melodias indígenas. 3) Na coleta de dados etnográficos e linguísticos,
o que representa o início de um diálogo entre as culturas – só até certo ponto,
porém, uma vez que a apresentação de Spix e Martius ainda está fortemente presa
a um eurocentrismo, o que se expressa também em sua postura de considerar os
indígenas sobretudo como objetos de pesquisa, e não como parceiros.
A viagem dos dois naturalistas pela Amazônia (ver Imagem 1: Mapa dos
lugares que eles visitaram) é apresentada aqui em quatro segmentos.

1. Mapa dos lugares visitados por Spix e Martius na Amazônia.

Na edição brasileira da Viagem pelo Brasil foram incluídas as mais importantes das imagens
210

do Atlas; essas inclusões são mencionadas neste artigo.

249
Belém

Eles começaram a sua viagem pela região em Belém, capital da província do


Pará e principal porta de entrada para o interior. Chegaram ali em 25 de julho de
1819, e partiram de lá, quase um ano depois, em 14 de junho de 1820, regressando
para a Europa. Fundada num local estratégico no delta do rio Amazonas, a cidade
é situada no sudeste do arquipélago de Marajó, na confluência dos rios Tocantins,
Pará e Guamá, que aqui se alargam, formando a Baía do Guajará.
“Como me sinto feliz aqui!”. Com estas palavras Martius inicia a sua descrição
de um período de 24 horas num sítio nos arredores dessa cidade localizada na
proximidade da linha do equador (p. 18-22). Ele desfruta a harmonia das condições
climáticas e a exuberância da natureza tropical: a flora (com sebes de paullínias,
mangueiras, castanheiras, bacurizeiros e loureiros) e a fauna (com borboletas,
cigarras, besouros, beija-flores, roedores, sapos, lagartos, tartarugas, serpentes
e jacarés). Um modelo importante para os registros sensoriais de Martius como
“historiador da natureza” foram os Quadros da natureza (Ansichten der Natur,
1808) de Alexander von Humboldt (1987), especialmente o texto “A vida noturna
dos animais na floresta”211.
A descrição topográfica de Belém, em 1820, no texto, é complementada por
um prospecto da cidade (Imagem 2; no Atlas, estampa 19). São destacados o Forte
do Castelo como local da fundação de Belém, a Catedral da Sé e o Palácio do
Governo. Outras referências importantes são a Praça do Comércio, a Alfândega na
frente da Igreja das Mercês, a Igreja de Santa Ana e o Convento de Santo Antônio,
dos capuchinhos. Com casas sólidas, ruas largas e praças extensas, a disposição
urbana é considerada pelos viajantes como “uma das mais saudáveis entre as
cidades costeiras do Brasil” (p. 27). Isso não impediu, contudo, que a população
de Belém sofresse várias epidemias de bexiga.

2. Prospecto da cidade de Belém.

A população de Belém em 1820 era avaliada em 24.500 habitantes; e a da


vizinha Ilha de Marajó, “a dispensa da capital” (p. 28), que a abastecia sobretudo
com carne bovina, em 10.500. O número total da população da província do
Pará, incluindo os escravos, era estimado em 68.000 pessoas. A isso acrescenta-se
ainda o número de índios, civilizados e selvagens, avaliado em aproximadamente
160.000 (p. 51). Quanto à estrutura da população, os viajantes observaram
significativas diferenças de classes. A camada superior era formada por uma
Um detalhado comentário da descrição da natureza por Martius encontra-se em BOLLE, 2010,
211

“Amanhecer no Amazonas”.

250
burguesa relativamente grande e quase integralmente de sangue europeu, os
assim chamados brancos. À camada intermediária pertenciam as famílias de
mestiços, que viviam sobretudo nos arredores da cidade e nas pequenas vilas
próximas. A classe mais baixa e mais numerosa da população era constituída
por negros e índios mansos. Os dois últimos grupos desta população são descritos
como vivendo numa “semicivilização, sem conhecimentos, nem instrução, nem
ambição” (p. 29-30).
A economia no interior da província do Pará encontrava se, em torno de
1820, numa fase crítica, devido sobretudo à incompetência e corrupção dos
diretores das aldeias indígenas, que tinham sido designados pelo governo a
partir de meados do século XVIII para substituir os padres jesuítas (p. 56-57).
Na capital Belém, no entanto, a situação era positiva. Em termos da quantidade
de produtos de exportação, a cidade ocupava o primeiro lugar entre todas as
cidades brasileiras (p. 38). Dentre os produtos mais importantes, provenientes
do interior, constavam açúcar, cacau, café, algodão, óleo de copaíba, canela de
cravo, castanhas e guaraná, além de couros de boi, cordas de palmeiras e diversas
espécies de madeira. Quanto à produção e demanda da borracha, embora tenham
sido ainda incipientes, Martius descreve a seringueira e o preparo da borracha
pelos seringueiros, realçando a utilidade de aplicar uma fina camada do produto
nas capas e nos sobretudos – sendo que ele e Spix, seguindo o exemplo de soldados
da polícia, passaram a usar dali em diante esse tipo de vestimenta (p. 44-45).

Uma visão geral da Região Amazônica

Em termos geográficos, a Amazônia – um território que é “apenas um sexto


menor que a área de toda a Europa” – é apresentada por Spix und Martius como
um complexo “sistema fluvial” (p. 430), com o rio principal, seus poderosos
afluentes e inúmeros canais naturais (furos), lagos e ilhas. Nas margens ocorrem
anualmente inundações de áreas extensas, essas partes alagadas da floresta são
chamadas de igapós.
Partindo de Belém numa canoa à vela, com remadores indígenas, os dois
pesquisadores passaram pelo arquipélago de Marajó e em seguida subiram pelo
rio Amazonas até Fortaleza da Barra (Manaus). Nessa viagem que durou três
meses, os principais pontos foram: a vila de Gurupá (posto de controle dos barcos
que navegam pelo Amazonas); Porto de Moz (na boca do rio Xingu); Santarém,
na embocadura do Tapajós (com cerca de 2.000 habitantes, era então “a vila
mais importante às margens do Amazonas”); Óbidos (no lugar mais estreito
do rio); os rios Trombetas e Nhamundá (na foz do primeiro ocorreu, segundo
o cronista Gaspar de Carvajal, a luta contra a tribo das Amazonas); o posto de
fronteira Parintins, entre as províncias do Pará e do Rio Negro; e a foz do Rio
Madeira, o maior afluente do Amazonas e via de comunicação com a província
de Mato Grosso.
A floresta amazônica, que é o maior bioma do Brasil, se caracteriza por
uma vegetação exuberante e uma grande diversidade de espécies. Quanto à
economia da região, as principais fontes de renda eram os produtos da floresta,
especialmente o pau-cravo, a salsaparrilha, o guaraná, castanhas, frutos das
palmeiras e madeiras (p. 122). Plantações existiam apenas em forma dispersa;
nelas cultivava-se mandioca, milho, arroz, cacau, café, cana-de-açúcar e bananas.

251
Durante todo o percurso os viajantes sofreram com a praga dos insetos:
enxames de carapanãs, piuns, borrachudos e mutucas. O Amazonas é
extremamente rico em peixes, sendo que os nomes das espécies são quase todos
compostos com a palavra pirá (“peixe”, em tupi). Spix und Martius destacaram a
grande habilidade dos índios na pesca (p. 133-135). Dentre as espécies da fauna
fluvial chamaram a sua atenção os “peixes elétricos” (poraquês) e as cobras
gigantescas. Estas motivaram os índios a criarem lendas, como a da “mãe-do-rio”
(p. 131-132). Em relação às míticas amazonas, a declaração de Martius é categórica:
“Não acredito na existência delas, nem no passado, nem no presente” (p. 158).
O número de índios era maior na Amazônia que nas demais regiões do Brasil.
Mesmo assim, Spix e Martius encontraram poucas tribos indígenas, que viviam
esparsas; de muitas das tribos citadas por Acuña, não encontraram vestígio algum.
As principais causas desse despovoamento, que começou com a colonização, foram
as guerras de extermínio contra os índios, as doenças trazidas pelos europeus,
e a permanente caça a escravos (p. 53-56 e 137-139). Mesmo no início do século
XIX praticava-se ainda, no interior do Pará, a caça a escravos indígenas (p. 61).
Quando se compara o número dos habitantes originais da Amazônia – estimado
no mínimo em um milhão, ou até em vários milhões de índios (Porro, 1992, p.
14; Slater, 2002, p. 225-226) – com os dados demográficos registrados por Spix e
Martius em 1820, obtém-se uma ideia da redução drástica da população. Os dois
pesquisadores estavam inclinados a compartilhar a crença geral de que “a raça
indígena iria desaparecer aos poucos” (p. 64) – um prognóstico que, felizmente,
não se confirmou.
Da história da colonização faz parte também a conversão dos índios ao
cristianismo, pela ação das ordens religiosas. O ajuntamento de tribos diversas
resultou numa fusão de suas línguas em forma de uma língua geral (p. 141-142).
Com a organização das aldeias, os religiosos, sobretudo os jesuítas, visavam
também o lucro econômico. Depois de sua expulsão, em 1757, a direção das aldeias
foi transferida para diretores leigos, os quais, no entanto, usaram o seu cargo
frequentemente apenas para seus interesses pessoais. Havia uma grande demanda
geral por índios mansos; eles foram empregados, sobretudo como remadores,
como trabalhadores nas plantações, em obras de construção, e como servidores
domésticos. Os remadores a serviço de Spix e Martius são descritos por estes como
rudes, porém de boa disposição e fácil convívio (p. 168).
Dentre as tribos indígenas às margens do Amazonas, os dois pesquisadores
visitaram, na viagem de ida e de volta, aldeias dos Mura (p. 171-174), dos Mundurucu
(p. 396-403) e dos Maué (p. 404-407), na região da ilha de Tupinambarana, na foz
do rio Madeira. As fisionomias desses índios estão representadas em diversos
desenhos (Imagem 3: “Visita na maloca do Mura”; p. 408, “Visita na aldeia dos
Mundurucus”; p. 349, retratos de índios de várias tribos; p. 399, “Mundurucu com
a cabeça de um inimigo”; no Atlas, estampas 28, 32 e 34). Por meio de desenhos
são documentados também os utensílios e as armas dos índios (p. 175 e 199; no
Atlas, estampas 29 e 30), inclusive os que foram coletados nos demais trechos da
expedição. Toda essa coletânea etnográfica encontra-se atualmente no Museu de
Etnologia (Museum Fünf Kontinente), em Munique.

252
3. Visita na maloca do Mura.

Fortaleza da Barra (Manaus) e a Província do Rio Negro

Spix e Martius chegaram ao centro geográfico da Amazônia, em Fortaleza da


Barra (Manaus), no dia 22 de outubro de 1819, logo depois de terem subido pelo
rio Negro a partir de sua foz, onde as águas escuras deste afluente misturam-se
com as águas barrentas do Amazonas. Em razão de sua localização estratégica,
esta vila tinha se tornado o centro do comércio e a capital da província de Rio
Negro, além de servir como quartel-general para as tropas das três fortalezas de
fronteira: São José dos Marabitanas, no curso superior do rio Negro; São Joaquim;
no rio Branco; e Tabatinga, no rio Solimões.
O maior problema era então o número extremamente reduzido de habitantes;
havia apenas cerca de 3.000 nessa vila, e somente em torno de 15.000 nas demais
povoações da província (p. 196 e 52). Hoje em dia, Manaus é uma metrópole com
mais de 2 milhões de habitantes, e o Estado do Amazonas tem uma população de
cerca de 4 milhões de pessoas. Naquela época não tinha em Fortaleza da Barra nem
médico, nem farmacêutico, nem professor (p. 197). Os produtos comerciais mais
importantes, provenientes das plantações e das florestas, eram algodão, cacau,
cana-de-açúcar, salsaparrilha, castanhas, óleo de copaíba e cordas de piaçaba.
De Fortaleza da Barra os viajantes subiram pelo rio Solimões (este é o nome
do Amazonas acima da foz do rio Negro), passando pela embocadura do rio Purus
e pelo lago de Coari, até a vila de Ega (hoje, Tefé), sempre beirando uma exuberante
floresta, com inúmeros bandos de araras e macacos. Nas ilhas arenosas no meio
do rio, centenas de homens estavam ocupados com a coleta de ovos de tartaruga
e a preparação da manteiga (p. 239; Imagem 4; no Atlas, estampa 22). Quanto à
pesca, as espécies mais procuradas eram o pirarucu e o peixe-boi.

253
4. Escavação e preparo dos ovos de tartaruga.

Em Ega, os dois viajantes combinaram uma divisão de tarefas: enquanto


Martius se preparou para uma expedição pelo rio Japurá, Spix continuou subindo
pelo Solimões até Tabatinga, o posto de fronteira. Nessa viagem, em dezembro
de 1819 e janeiro de 1820, Spix passou pelas embocaduras dos rios Juruá, Jutaí
e Içá, e pelos povoados de Fonte Boa, Tonantins e São Paulo de Olivença. Em
Tabatinga ele documentou um préstito festivo dos índios Tecuna (p. 283; Imagem
5; no Atlas, estampa 22), uma tribo que mais tarde, nos anos 1940, foi pesquisada
detalhadamente pelo etnólogo Curt Nimuendajú (1952). Os desfiles com máscaras
de animais continuam até hoje nas festas juninas celebradas na Amazônia,
especialmente nos pássaros juninos (Moura, 1997, p. 52-148). Spix foi conhecer
também uma tribo dos Omágua ou Campeva, que tinham sido descritos por Acuña
como “os índios mais civilizados e inteligentes”. Foi com eles que os outros índios
aprenderam “o preparo da borracha, com a qual sabem fazer seringas, sapatos,
botas e chapéus”. Os Campeva, cujo nome significa “cabeças-chatas”, tinham o
costume de dar à cabeça das crianças a forma de mitra, mediante compressão
num berço destinado para esse fim (p. 288-289). Um berço desse tipo (p. 175-176,
n. 37; no Atlas, estampa p. 29, n. 37) foi levado por Spix para Munique.

5. Préstito festivo dos índios Tecuna.

254
Tendo voltado a Fortaleza da Barra, Spix realizou ainda, durante duas
semanas, uma viagem de ida e volta pelo rio Negro, subindo até Barcelos, a antiga
capital da província (p. 377-392). A paisagem ao longo desse rio, de águas escuras
e margens arenosas e secas, é muito diferente da do Solimões, e relativamente
livre da praga dos insetos. Por outro lado, essa região é menos fértil, e não existe
a mesma abundância de peixes e animais para caçar.
Das tribos que ali habitavam – Manao, Baré, Baniba, Uaupé, Aroaqui –
alguns índios costumavam atacar as povoações dos colonos, enquanto outros
se integraram e se misturavam com eles. Esses casamentos mistos tinham sido
expressamente apoiados pelo governador Mendonça Furtado, na época das
negociações sobre as fronteiras, a fim de tornar a província mais segura contra
a cobiça de potências estrangeiras. Em 1820, a população dessa parte da província
estava muito dispersa e em número extremamente reduzido, como mostra o
“Sumário dos índios que habitavam nas povoações do Rio Negro” (p. 391). As tribos
marcadas ali com + pareciam ter sido “totalmente extintas”. Uma das principais
causas de morte foram as epidemias de malária.

A Expedição pelo Rio Japurá

O objetivo de Martius, na expedição pelo rio Japurá, que ele realizou de 12 de


dezembro 1819 a 02 de março de 1820, em companhia do capitão Ricardo Zani e
do tuxaua Gregório, dos índios Coeruna, era conhecer várias tribos indígenas “em
seu estado primitivo” (p. 295). É bastante difícil retraçar com exatidão topográfica
o percurso dessa viagem, porque quase todas as aldeias de índios visitadas pelos
viajantes não existem mais. Já em 1864, ou seja, menos de meio século depois
daquela expedição, o então presidente da província do Amazonas constatou que,
“lamentavelmente”, a região às margens do Japurá estava “despovoada”. Entre a foz
do Japurá e a do afluente Apapóris ele encontrou apenas doze malocas com um total
de 70 índios, dos quais a maioria eram Miranha. Não existiam mais índios da tribo
dos Passé e apenas alguns poucos Juri e Coretu (IBGE, Enciclopédia dos Municípios
Brasileiros, vol. 14, p. 174). Na apresentação detalhada dos Povos indígenas no Brasil:
2001-2005, editada pelo Instituto Socioambiental (Ricardo e Ricardo, 2006), quatro
das cinco principais tribos que Martius chegou a conhecer no Japurá – os Coeruna,
Coretu, Iuri e Passé – nem são mencionadas, ou seja, elas estão extintas. É confirmada
apenas a continuação da existência dos Miranha, com 836 pessoas; eles habitam a
reserva de Cuiú-Cuiú, no município de Maraã, no curso inferior do Japurá.
Para localizarmos pelos menos aproximadamente os pontos de parada da
expedição de Martius, vamos esboçar um esquema de orientação baseado nos
locais que continuam existindo até hoje. O percurso de uma viagem fluvial desde a
embocadura do Japurá até a cachoeira de Araracoara é de aproximadamente 1.150
km. Destes, o trecho inicial e maior são os 750 km em território brasileiro, até a foz
do Apapóris, onde se encontra atualmente o posto de fronteira Vila Bittencourt;
os restantes 400 km localizam-se em terras colombianas. Na época de Martius,
as fronteiras entre Brasil e Colômbia ainda não tinham sido definitivamente
demarcadas (p. 348). Até o rio Apapóris estende-se a bacia inferior do Japurá,
com uma paisagem semelhante à do Solimões.
Neste segmento inicial do percurso, Martius fez uma parada na aldeia Santo
Antonio de Mapiri, fundada em 1770 e habitada por índios Iuri, Passé e Coeruna

255
(p. 296-297). Por meio de trocas, adquiriu deles diversos utensílios; ele documentou
também a sua fisionomia (Imagem 6; no Atlas, estampa 31). Os Passé eram considerados
“os mais belos índios” da província do Rio Negro; confirmando isso, Martius observa
que a mulher do tuxaua Albano “causaria sensação até na Europa” (p. 300).

6. Índios Iuri, Passé, Coeruna e Coretu.

Depois da passagem por Maraã (p. 307), a próxima parada foi a aldeia São
João do Príncipe, “a extrema colônia dos portugueses no Japurá”, fundada em 1808
(p. 311). Os Iuri e Coretu ali residentes tinham que executar trabalhos forçados
em proveito do juiz. Nesse local, os viajantes encontraram Pachicu, o principal
dos Coretu (p. 313-314; retrato: Imagem 6; no Atlas, estampa 31), que fazia guerra
contra os índios vizinhos, a fim de negociar os prisioneiros com os europeus.
Um outro ponto de parada, rio acima, foi o sítio Uarivaú, habitado pelos Iuri,
cujo tuxaua, Miguel, os cedia aos brancos, mediante pagamento (p. 315-316). De
noite, Martius assistiu a uma dança guerreira dos Iuri, que ele descreve como
“bacântica” e “doida” (p. 318; imagem: p. 279; no Atlas, estampa 28).
Após terem alcançado a foz do rio Apapóris, os viajantes passaram pelas
cataratas e a Serra de Cupati (p. 322). No segundo segmento da expedição, já em
território atual da Colômbia, Martius visitou mais uma tribo dos Iuri, na aldeia
de Manacurú, onde observou também a preparação do veneno de flecha urari
ou curare, utilizado pelos índios na caça (p. 327). Em seguida, o grupo chegou
ao Porto dos Miranhas, onde se encontra atualmente a aldeia Los Miranas. É do
convívio com os Miranha – os quais, com cerca de 6.000 pessoas, eram naquela
época a tribo mais numerosa e mais poderosa ao longo do Japurá –, que Martius
esperava “obter a maior quantidade de informações etnográficas” (p. 329).
Nessa altura, Martius, o capitão Zani e vários dos índios remadores
apresentavam sintomas de malária. Como a saúde de Zani estava fortemente
abalada, ele ficou de repouso naquela aldeia, enquanto Martius resolveu, conforme
o seu plano original, continuar subindo pelo rio até a cachoeira de Araracoara,
onde chegou em 28 de janeiro de 1820 (p. 343; no Atlas, estampa 25). Este local
constitui a fronteira entre o bioma da selva amazônica e o altiplano. Num dos
rochedos ali, como também na Serra de Cupati, estavam gravados petróglifos dos
índios, representando sobretudo figuras humanas (p. 335; Atlas, estampa 26).

256
De regresso ao Porto dos Miranhas, Martius encontrou “toda a equipe atacada
de violenta febre, e o capitão Zani quase a morrer” (p. 350). Além de exercer
as tarefas de enfermeiro, ele sobrevigiou a construção de uma canoa, prevista
para o transporte dos utensílios que ele tinha adquirido (Imagem 7: “Porto dos
Miranhas”; no Atlas, estampa 24). Durante as mais de duas semanas que Martius
passou nessa aldeia, ele chegou a conhecer melhor os índios que ali habitavam.
Eram “verdadeiros antropófagos”. Como lhe explicou o tuxaua, era “melhor
comer o inimigo, depois de morto, do que deixá-lo apodrecer”. Não obstante,
a inata boa índole daqueles índios pareceu a Martius ser uma certa garantia
para a sua segurança (p. 339). As mulheres cuidavam do cultivo de mandioca e
preparavam farinha e beijus. As redes confeccionadas por elas eram vendidas
em toda a província do Rio Negro e até no Pará. O tuxaua João Manoel vivia da
venda de escravos para os brancos. Enquanto Martius foi viajar até Araracoara,
João Manoel fez uma incursão pelas matas, regressando de lá com um grupo de
prisioneiros. Sem dúvida, ele imaginou que o motivo da visita dos forasteiros
teria sido o de “negociar prisioneiros” (p. 352). Martius lhe explicou, então, que
a sua intenção era apenas adquirir utensílios e armas por meio de trocas. Ele
acabou recebendo de presente complementar “cinco jovens índios, duas raparigas
e três meninos”. A mais velha dessas moças da tribo dos Miranhas e um jovem
da tribo dos Iuri (p. 408; Atlas, estampa 36), foram levados por Spix e Martius a
Munique, onde aqueles dois morreram, porque não suportaram a mudança de
clima e as demais circunstâncias (p. 362). O procedimento dos dois naturalistas
de incluírem seres humanos, no caso, indígenas, em suas coleções, é hoje em dia
unanimemente reprovado.

7. Porto dos Miranhas.

O balanço que Martius fez do seu contato com os índios em seu estado
primitivo era altamente negativo:

O laço do amor é frouxo; em vez de ternura, cio; em vez de afeição,


necessidade [...] a mulher, escrava nua; [...] o casamento, um concubinato
que se desfaz segundo o capricho; a preocupação do pai de família é seu
estômago; [...] seu passatempo, glutonaria e ócio apático; [...] o trabalho

257
das mulheres, cego e sem finalidade; [...] a educação, tola brincadeira da
mãe e cega despreocupação do pai; [...] em vez de um senso de justiça, a
voz do egoísmo [...] – Eis como vive o aborígene destas selvas! No mais
primitivo grau da humanidade [...] (p. 355).

Martius chegou a fazer uma revisão autocrítica desta sua visão, fortemente
preconceituosa, da cultura dos indígenas, num romance que redigiu em 1831,
mas não publicou. O manuscrito foi redescoberto apenas mais de um século e
meio depois, por Erwin Theodor Rosenthal, que o publicou em 1992, inclusive
em tradução para o português, com o título Frey Apollonio: um romance do Brasil
(Martius, 1992; 2005). A apresentação dos índios e da relação entre as culturas,
nesse romance, merece um estudo à parte212.

Um balanço final da viagem de Spix e Martius pela amazônia

O caráter detalhado e a vivacidade da apresentação da Amazônia pelos dois


naturalistas fazem parte dos méritos do seu relato de viagem, o qual continua
podendo servir como um dos textos básicos para o conhecimento da região.
Com suas pesquisas sobre os indígenas, apesar dos preconceitos aqui apontados,
Spix e, sobretudo, Martius tornaram-se precursores de importantes etnólogos,
como Karl von den Steinen (1886 e 1894), Theodor Koch-Grünberg (1909) e Curt
Nimuendajú (1952). Para podermos avaliar ainda outros aspectos do relato
de viagem, é útil considerarmos alguns acontecimentos e fatos da história da
Amazônia ocorridos desde 1820.
Quanto à atuação histórica das diferentes partes da população da Amazônia,
é preciso destacar a importância crescente dos caboclos (os mestiços de índios,
negros e brancos). Em conexão com as lutas pela independência e pela justiça social
ocorreu, entre 1835 e 1840, a tentativa de revolução dos cabanos (“moradores de
cabanas”), que foi brutalmente reprimida pelas tropas do governo (Di Paolo, 1990).
Martius refere-se à atmosfera política e social que precedeu a esse levante, quando
ele fala dos “distúrbios” que irromperam na província do Pará pouco depois de
sua viagem, e que “partiram de alguns bandos do populacho mal orientado” (p.
34). O seu comentário é uma amostra da postura política conservadora dos dois
pesquisadores, que quase omitiram a existência das lutas pela independência
nas colônias da América do Sul.
A época na qual a Amazônia se projetou no cenário global foi a do boom da
borracha, entre 1850 e 1912 (Weinstein, 1983). Os inícios da produção de borracha
tinham sido observados por Spix e Martius, como vimos. Embora, naquele
momento, eles não pudessem prever nem a explosiva dimensão econômica e
social que o fenômeno iria atingir algumas décadas depois, nem o declínio de
1913 até os anos 1950, eles deixaram registrado a respeito disso uma observação
premonitória, que será citada no final deste artigo. Ela está relacionada com a sua
avaliação geral da conduta da economia na Amazônia: várias vezes eles criticaram
o fato de ela não ser baseada num cultivo sistemático das plantas mais úteis, mas
na exploração de uma natureza selvagem considerada como ilimitada.
No que concerne a ameaça de uma destruição da floresta amazônica, os
dois naturalistas não viam motivo para isso em torno de 1820, pois a selva estava

212 Cf. BOLLE, 2018, que analisa o romance de Martius como uma autocrítica do seu relato de viagem.

258
intacta e a população da Amazônia tinha atingido o seu nível mais baixo. A
situação era muito diferente no bioma do cerrado, no planalto central do Brasil,
que Spix e Martius tinham atravessado antes, em 1818. Ali, eles observaram graves
transformações do ambiente natural pela “mão destruidora do homem” e, num
aviso premonitório, alertaram que “no futuro, os pesquisadores não mais obterão
os fatos puros das mãos da natureza” (Viagem pelo Brasil, v. 2, p. 140).
O retrato geral que Spix e Martius desenharam do Brasil como um país
“com esplêndidas disposições naturais” e “em vigoroso progresso” (v. 3, p. 467;
e v. 2, p. 140) confirmou-se, grosso modo, no início do nosso século XXI. Houve
um enorme aumento da população: as duas metrópoles regionais Belém e
Manaus atingiram, cada uma, mais de dois milhões de habitantes, e o conjunto
da Amazônia Legal é povoada por aproximadamente 25 milhões de pessoas.
Desde os anos 1960 iniciou-se na região um processo de modernização que se
prolonga até hoje, com aspectos positivos e negativos (Souza, 2009). Persistem
vários problemas fundamentais que precisam ser solucionados: a alta taxa de
criminalidade em todos os estratos sociais, especialmente também a corrupção,
a extrema desigualdade social e o sistema insuficiente da educação pública.
O progresso econômico e tecnológico tem também o seu preço. O extenso
desmatamento em favor do agronegócio (cultivo de soja e criação de gado), o corte
ilegal de madeiras de lei, a exploração maciça dos minerais e a construção de
barragens trazem consigo uma transformação radical do bioma da floresta, e até
uma ameaça à sua continuidade, sobretudo nos Estados do Pará e do Mato Grosso.
Essas atividades limitam e ameaçam também as reservas dos povos indígenas.
As transformações ocorridas durante os últimos 200 anos despertam o desejo
e a necessidade de novas propostas de viagens e reflexões sobre a Amazônia, que
levem em conta, prioritariamente, as necessidades dos pobres, que constituem a
grande maioria da população. Nesse sentido, Meirelles e Martins (2018) realçam
as contribuições de viajantes do século XX: o médico Oswaldo Cruz e o sertanista
Cândido Rondon; os escritores Euclides da Cunha, Mário de Andrade e Antonio
Callado; os etnólogos Curt Nimuendajú, Claude Lévi-Strauss e os irmãos Villas-
Bôas; os cineastas Silvino Santos e Jacques Cousteau, a fotógrafa Claudia Andujar
e o artista plástico Frans Krajcberg.
Em dois itens fundamentais, Spix e Martius, viajantes naturalistas do século
XIX, não ficam atrás desses seus sucessores no século XX: 1) com a observação de
que o progresso da civilização e a ameaça ao meio ambiente estão estreitamente
interligados; e 2) com a sua proposta lúcida de como organizar a produção
econômica. Vejamos esta observação, publicada em 1831:

Considera-se o Pará, com razão, como o jardim do Brasil, e procura-se


transplantar para cá as preciosas plantas que fazem a opulência do
arquipélago equatorial asiático. Se fossem realizadas essas plantações
com afinco, poderia já agora o Pará exportar [esses produtos] em grande
quantidade, o que causaria detrimento ao mercado dos holandeses e
ingleses (p. 43).

Ora, quem agiu seguindo esses parâmetros foram justamente os concorrentes


ingleses, que plantaram de maneira sistemática a hevea brasiliensis na Ásia
equatorial e, com isso, causaram o declínio da produção de borracha na Amazônia.

259
Referências

ACUÑA, Cristóbal de. Novo descobrimento do Grande Rio das Amazonas. Rio de
Janeiro: Agir, 1994 (1. ed.: 1641).

BOLLE, Willi. Amanhecer no Amazonas: cultura e natureza à luz da Teorias das


Cores de Goethe. In: CAVALHEIRO, Juciane (org.). Literatura, interfaces, fronteiras.
Manaus: UEA Edições, 2010, p. 339-363.

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262
Sobre os autores

263
Anne Caroline do Nascimento Ribeiro é Graduada em Letras pela Universidade
do Estado do Amazonas e discente do Programa de Pós-Graduação em Letras e
Artes da mesma instituição.

Augusto R. Silva Junior é Doutor em Literatura Comparada pela Universidade


Federal Fluminense (UFF). Mestrado e Graduação pela Universidade Federal de Goiás
(UFG). Atualmente, é professor Adjunto IV de Literatura Brasileira da Universidade
de Brasília (UnB). Estágio Pós-Doutoral (Bolsista CAPES) na Universidade do Minho
- Departamento de Estudos Portugueses e Lusófonos - Braga/Portugal.

Carlos Antônio Magalhães Guedelha é Doutor em Linguística pela Universidade


Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia
Graduado em Letras pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). É, desde
2005, Professor da Universidade Federal do Amazonas. É também docente do
Programa de Pós-Graduação em Letras da instituição.

Carlos Renato Rosário de Jesus possui Graduação em Letras pela Universidade


Federal do Amazonas (UFAM), com Pós-graduação lato sensu em “Literatura
Brasileira Moderna e Pós-Moderna” e “Língua e Literatura Latina” pela mesma
instituição. É Mestre e Doutor em Linguística-Estudos Clássicos pela Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP). Fez estágio sanduíche em 2012 na Università
degli Studi di Siena, Itália. É professor efetivo, desde 2008, da Universidade do
Estado do Amazonas. Ainda na UEA, atua no Mestrado em Letras e Artes.

Fábio Fadul Moura é Mestre em Letras e Artes pela Universidade do Estado do


Amazonas (UEA) e Graduado em Letras pela Universidade Federal do Amazonas
(UFAM). Atualmente, é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Teoria e
História Literárias da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) com bolsa
concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Francisco Bezerra dos Santos possui Graduação em Letras pela Universidade do


Estado do Amazonas (UEA), Especialização em Língua Portuguesa e Literatura pela
Faculdade de Ciências de Wenceslau Braz-FACIBRA, Especialização em Docência
no Ensino Superior pela Universidade Cândido Mendes- UCAM. Atualmente é
Mestrando em Letras e Artes pela Universidade do Estado do Amazonas-UEA.

Gerson Albuquerque (org.) é Graduado em História pela Universidade Federal


do Acre. Mestre em História do Brasil e Doutor em História Social pela PUC-SP.
Professor Associado da Universidade Federal do Acre, Centro de Educação, Letras
e Artes. Atualmente, é docente e coordenador do Programa de Pós-Graduação em
Letras: Linguagem e Identidade.

Hélio Rodrigues da Rocha é Graduado em Letras-Português pela Universidade


Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho e em Letras-Inglês pela Universidade
Federal de Rondônia. É Mestre em Letras pela Universidade Federal do Acre e
Doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas.
Fez Pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
É docente e pesquisador na Universidade Federal de Rondônia.

264
Iná Isabel de Almeida Rafael é Mestre em Letras pela Universidade Federal
do Amazonas (UFAM). Especialista em Leitura e produção textual pelo Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (IFAM). Graduada
em Licenciatura em Letras pelo Centro Universitário do Norte (UNINORTE).
Atualmente, é professora substituta na Universidade Federal do Amazonas.
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia,
da Universidade Federal do Amazonas.

Isaac Newton Almeida Ramos tem Graduação em Letras pela Universidade


Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). Mestre em Letras e Doutor em Estudos
Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo
(USP). Atualmente, é Professor Adjunto da Universidade do Estado de Mato Grosso
e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (PPGEL - UNEMAT).

Jackeline Mendes Brandão possui Graduação em Letras pela Universidade Nilton


Lins e Especialização em Língua Portuguesa e suas Literaturas pela Faculdade
Montenegro. É professora estatutária na Secretaria de Estado de Educação e
Qualidade de Ensino do Amazonas (SEDUC). Atualmente, é discente do Programa
de Pós-Graduação em Letras e Artes da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).

Jandir Silva dos Santos é Graduado em Letras e Mestrando em Estudos Literários


pela Universidade Federal do Amazonas.

João Carlos Pereira Coqueiro possui graduação em Letras pela Universidade


Federal do Pará, Direito e Ciências Econômicas pela Universidade Federal de
Rondônia. É Mestre em Ciências da Educação pela Universidade de Trás-os-Montes
e Alto Douro (UTAD, Portugal).

Juciane Cavalheiro (org.) é Graduada em Letras e Mestre em Linguística


Aplicada pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS-RS. Doutora
em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba. Professora Associada da
Universidade do Estado do Amazonas. Docente dos programas de Pós-Graduação
em Letras e Artes da UEA (Mestrado) e do Programa de Pós-Graduação em Letras
da UFAC (Doutorado).

Luciane Viana Barros Páscoa possui Graduação em Artes Plásticas e Música


pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Mestrado em
História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Doutorado em
História Cultural pela Universidade do Porto. Atualmente, é professora Adjunta
da Universidade do Estado do Amazonas e coordenadora do Programa de Pós-
graduação em Letras e Artes.

Márcio Leonel Farias Reis Páscoa é Doutor em Ciências Musicais Históricas pela
Universidade de Coimbra, fez Mestrado em Musicologia no Instituto de Artes da
UNESP, mesmo lugar onde se graduou em Instrumentos Antigos. Possui ainda
graduação em Direito pela Universidade Federal do Amazonas. Atualmente, é
professor do Curso de Música da Universidade do Estado do Amazonas, onde
coordena o Laboratório de Musicologia e História Cultural.

265
Marcos Frederico Krüger Aleixo possui Mestrado em Letras pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Doutorado em Letras pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). É professor aposentado da Universidade
Federal do Amazonas. Atualmente, é docente no curso de Letras e do Programa de
Pós-Graduação em Letras e Artes da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).

Maria de Fatima do Nascimento possui Graduação em Letras pela Universidade


Federal do Pará (UFPA), Mestrado e Doutorado em Teoria e História Literária
pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). É professora Adjunto IV
da Universidade Federal do Pará (UFPA). Atua no programa de Pós-Graduação
em Letras (Mestrado e Doutorado) e no Programa de Pós-Graduação Mestrado
Profissional em Letras em Rede Nacional (PROFLETRAS/UFPA). Atualmente,
faz Pós-Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada (DTLLC) da
Universidade de São Paulo (USP).

Mauricio Matos é Bacharel em Comunicação Social - Jornalismo, FACHA-RJ. Mestre


e Doutor em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-
Rio), Professor Adjunto no Curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em
Letras e Artes da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Pesquisador de Pós-
Doutorado do CNPq (2006-2007 e 2007-2008) e da Fundação Calouste Gulbenkian
(2009-2010) na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(FL-UFRJ, 2006 a 2010).

Rayesley Ricarte Costa é Graduado em Letras, pela Universidade Federal do


Amazonas, e discente do Programa de Pós-Graduação em Letras na mesma
instituição.

Renata Beatriz B. Rolon é professora Adjunta da Universidade do Estado do


Amazonas. Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Mato
Grosso (UFMT) e Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). É
docente do Programa de Pós-Graduação em Letras e Artes da UEA.

Rosidelma Pereira Fraga é Doutora e Mestre em Letras e Linguística, na área


de Estudos Literários, pela Universidade Federal de Goiás, com apoio do CNPq.
Graduada em Letras pela UNEMAT. Pesquisadora de Pós-Doutorado em Cultura
Contemporânea, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente, é
professora efetiva na área de Teoria Literária e Literaturas de Língua Portuguesa
na Universidade Estadual de Roraima.

Vinicius Milhomem Brasil é Graduando em Letras pela Universidade Federal do


Amazonas. Atuou como professor/monitor do programa Mais Educação.

Willi Bolle é professor titular de Literatura na Universidade de São Paulo. Fez


o doutorado em Literatura Brasileira (na Universidade de Bochum/Alemanha)
com uma tese sobre a técnica narrativa de Guimarães Rosa, e a livre-docência
em Literatura Alemã (na USP) com uma tese sobre Walter Benjamin e a cultura
da República de Weimar. Pesquisador (nível 1A) do CNPq.

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Maio de dois mil e vinte e um, quatrocentos e setenta e nove anos da
chegada de Francisco Orellana ao Rio Amazonas

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