Dialéticas Amazônicas Da Literatura
Dialéticas Amazônicas Da Literatura
Dialéticas Amazônicas Da Literatura
amazônicas
da literatura
Governo do Estado do Amazonas
editoraUEA
Sindia Siqueira
Editora Executiva
Samara Nina
Produtora Editorial
Wesley Sá
Preparação e revisão de texto
Esta edição foi revisada conforme as regras do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
D536
2021
Dialéticas amazônicas da literatura / Organizadores: Juciane Cavalheiro, Gerson
Albuquerque. – Manaus (AM): editoraUEA, 2021.
ISBN 978-65-87214-51-1
Inclui bibliografia
1. Critica Literaria. 2.Literatura. I.Cavalheiro, Juciane, Org. II.
Albuquerque, Gerson, Org. III.Título.
CDU:1997 – 82.09
Editora afiliada:
editoraUEA
8 Apresentação
8
de Quintiliano sobre o ritmo, como recurso retórico, tal como nos aparece no
livro IX, cap. IV, de sua Institutio oratoria. Para tanto, serve-se do embasamento
oferecido por seus antecessores, particularmente Aristóteles e Cícero, nas partes
específicas da Ars rhetorica e do Orator, respectivamente. Procura mostrar
como Quintiliano desenvolveu os preceitos que lhe antecederam, bem como
as particularidades inerentes às suas próprias concepções sobre os aspectos
estilísticos que proporcionam o ornatus e a elegantia ao discurso oratório.
Em Arquivo, coleção, memória: um encadeamento de imagens na poesia
brasileira (Carlos Drummond de Andrade, Luiz Bacellar e Astrid Cabral),
Fadul Moura discute o trabalho crítico-criativo de possíveis sistemas mnemônicos
de organização do mundo, dos afetos e do saber por parte de poetas brasileiros.
Mediante o fio condutor arquivo-coleção-memória, perfaz um caminho possível por
imagens recorrentes na poesia brasileira da modernidade à contemporaneidade.
Em Bichos e visagens na literatura indígena amazonense, os autores
apresentam uma abordagem sobre o animal na literatura, considerações sobre
a relevância e função de bichos e seres sobrenaturais na literatura de autoria
indígena amazonense.
Gerson Rodrigues de Albuquerque, em Poéticas, éticas e estéticas de uma
cidade entre o rio e a floresta, na Amazônia acreana, acompanha e problematiza
diferentes narrativas sobre a cidade de Rio Branco, capital do Acre. Narrativas que
a inventaram e reinventaram de inúmeras formas, mas, no geral, sempre presas à
“estética amazonialista que é a estética do vazio – desértico, distante, dependente,
solitário, isolado, insalubre, vítima – que governa nossas subjetividades”.
Em Os bora e os uitoto do noroeste amazônico no relato antropológico
de Thomas Whiffen, os autores demonstram como o capitão britânico Thomas
Whiffen (1878-1922), que viajou pelas terras entre os rios Içá-Japurá, descreve a
cultura desses dois povos nativos do noroeste amazônico em seu relato etnográfico.
Isaac Ramos apresenta, em D. Pedro Casaldáliga e José Craveirinha: pelo
pão e pelo carvão: poéticas em combustão, dois importantes poetas. Observa
que o espanhol D. Pedro Casaldáliga e o moçambicano José Craveirinha abraçam
temáticas que se alimentam e dialogam com as lutas sociais nas quais se envolvem.
Destaca que não se trata do puro e simples engajamento, mas do uso e do empenho
da palavra poética como denúncia social, como revolução em busca de um devir.
O fantástico na literatura de expressão amazônica traz um didático
estudo, caracterizado pelos autores como “literatura fantástica manifestada no
Amazonas”, de textos que evocam o imaginário amazônico, seja pela expressão
mítica indígena, seja pela expressão folclórica cabocla.
Em Dois caminhos aquém dos pirineus: apontamentos sobre o
extraordinário nas literaturas ibéricas e ibero-americanas, os autores
abordam a questão da presença/ausência do elemento extraordinário nas histórias
das literaturas ibéricas e ibero-americanas. Partindo do princípio de uma origem
comum na Europa medieval, verificam a partir de que momento tais literaturas
passaram a tender mais para o ordinário ou para o extraordinário, bem como as
oscilações que estas tendências passaram a provocar, particularmente, em cada
literatura. Apontam, em suas conclusões, para um destino in fieri, como haverá
de ocorrer nas mais importantes literaturas.
Em Ivan Serpa e a Fase Negra: a preocupação social na arte em meados da
década de 1960 e a Pós-Modernidade, os autores trazem a pintura expressionista
de Ivan Serpa (1923-1973), artista plástico carioca de carreira internacional e um
9
dos ícones do construtivismo no Brasil. Destacam a relação do pintor com a Fase
Negra, uma arte de denúncia contundente e de testemunho de um período caótico
onde os fantasmas e monstros do medo, da repressão, da fome, da guerra e dos
mártires torturados imperavam.
Marcos Frederico Krüger Aleixo, em Imagens da História, acompanha as sete
partes de Imagem, de Elson Farias, nas quais se percorrem a História do Amazonas,
de seus primórdios pré-coloniais até a abolição da escravatura no estado.
No capítulo seguinte, Maria de Fatima do Nascimento, em O lustre, de
Clarice Lispector: indícios de incesto, acompanha a relação entre os irmãos
Daniel e Virgínia, personagens centrais do romance O lustre, com o propósito de
demonstrar indícios de incesto.
Rayesley Ricarte Costa, por sua vez, em História e memória: a poesia nua de
Adília Lopes, apresenta discussões acerca da literatura da autora contemporânea
portuguesa, com vistas a investigar em que medida sua produção atua como
instrumento de resistência e subversão, reconstruindo a identidade do sujeito
feminino, vítima das violências de gênero.
Renata Rolon analisa, em A representação de personagens negros na
ficção amazonense do século XX: a presença na ausência e a manutenção
dos estereótipos, as dimensões sociais e artísticas presentes nos textos literários
selecionados. Observa que a presença negra, materializada na literatura
produzida no Amazonas, ainda que reduzida, deve ser traduzida em matéria
para a elaboração de uma consciência crítica, questionadora.
Rosidelma Pereira Fraga, em O ensino da poesia afro-brasileira: cultura,
memória e identidade, traz conceitos sobre literatura afro-brasileira, literatura
negra, literatura negro-brasileira e literatura de minorias e discute sobre a
valorização da cultura e identidade afro-brasileira, por meio de um debate
histórico-crítico em torno de uma “literatura menor” dos pré-abolicionistas à
contemporaneidade.
O livro finaliza com o capítulo A viagem de Spix und Martius pela Amazônia,
em 1819/1820, de Willi Bolle. O pesquisador acompanha e relata a viagem que
os dois naturalistas fizeram pela Amazônia, de fins de julho de 1819 até meados
de junho de 1820. Para a realização da expedição de Spix e Martius, observa que
foi especialmente favorável o casamento, em 1817, da princesa Leopoldina de
Habsburgo com o futuro imperador D. Pedro I. Do séquito dela fazia parte um grupo
de cientistas e artistas, entre eles o zoólogo Spix e o botânico Martius.
A presente coletânea procurou trazer pesquisas desenvolvidas sobre estudos
literários, sobretudo na região Norte do Brasil. Objetiva, assim, contribuir para a
divulgação dos estudos na área.
Juciane Cavalheiro
Gerson Albuquerque
10
Dante, Cervantes e a musa idealizada:
um estudo comparativo entre A Divina
Comédia e o Quixote
12
e de A Divina Comédia, asseverar como a literatura se encontra nesse frequente
diálogo e como, mesmo com mais de três séculos de diferença, a musa de Dante
influiu particularidades à musa quixotesca.
A metodologia da pesquisa é de cunho essencialmente bibliográfico. Na
primeira etapa, realizamos a leitura de autores como Nitrine (1997) e Remak
(1961) e suas concepções sobre Literatura Comparada, procedendo a uma leitura
reflexiva sobre os pontos de convergência e divergência entre os autores sobre a
definição, metodologia e objeto de estudo da Literatura Comparada. Em seguida,
procedemos à leitura de A Divina Comédia e do Quixote, sempre cotejando as
traduções com as versões originais em italiano e espanhol, centrando-nos nas
personagens femininas, nas características do Dolce Stil Nuovo presentes na
personagem de Beatriz, na Divina Comédia, e em como esta projeta atributos
à Dulcineia, no Quixote. Ao mesmo tempo, procedemos a leitura de obras que
abordem a história da escola poética do Dolce Stil Nuovo e suas principais
características, contidas nas obras de Sansone (1961) e Alva (1999). Após a leitura
das obras que se compreendem nos objetos de análise, iniciamos a etapa de
leitura de livros e artigos de pesquisadores que tratam especificamente da Divina
Comédia e do Quixote, sobretudo no que concerne às personagens femininas.
Para tanto, foram utilizados autores como Froés (2011) e Willians (2000), que
defendem Beatrice como figura importantíssima para Dante no desenvolvimento
da nova concepção sobre o amor que, “representada por Dante em Vita Nova,
encontrou sua expressão máxima apenas na gloriosa transfiguração da imagem
de Beatrice na Commedia, seu grande poema épico” (FROÉS, 2011, p. 1). Além
disso, contamos com a leitura de autores como Pinilla (2014) e Atlee (1978), que
trouxeram considerações teóricas relevantes sobre a personagem de Dulcineia
e suas características em relação ao aristotélico de Deus, premissa fortemente
relacionada ao Dolce Stil Nuovo (REALE, 1965). Por fim, selecionamos excertos
nas obras originais e realizaremos a análise, visando à investigação comparativa,
intentando comprovar as influências do Dolce Stil Nuovo e da criação Dantesca
na personagem Dulcineia, de Cervantes, atestando, assim, o diálogo textual entre
as duas obras.
13
passava por uma época de grande riqueza monetária, com a elevação da classe
burguesa, que patrocinava a “erupção cultural” da literatura e de outras esferas
artísticas. Seus primeiros anos de estudos foram “de natureza laica junto a um
dos vários professores particulares (chamados então docti puerorum) de Florença”
(STERZI, 2008, p. 37), mas foi por conta própria que aprendeu a arte da rima5 e,
quando desejou aprimorar seus conhecimentos sobre poética e retórica, teve como
mentor Brunneto Latini6. Em 1292, concebe sua primeira criação, Vita Nuova, um
livreto onde o poeta narra sua história de amor juvenil e nos apresenta aquela
a qual seria sua musa e posteriormente sua inspiração para a composição da
Divina Comédia, Beatrice.
Vita Nuova foi uma obra de grande importância não apenas por ser o
primeiro livro do poeta e a antecipação da Divina Comédia, mas também por
ser inspiração para quem crescia entre os poetas toscanos na época: o Dolce
Stil Nuovo. Iniciada pela poesia de Guido Guinizelli7, nas últimas décadas do
século XIII, foi um movimento com raízes na Scuola Poetica Siciliana8. Por sua vez,
sabe-se que os literatos da Scuola Poetica Siciliana sofreram fortes influências da
poesia trovadoresca provençal e para que entendam-se melhor as propostas do
Dolce Stil Nuovo, se faz necessário uma breve introdução à lírica trovadoresca
– principalmente no que se refere ao papel da personagem feminina – e, por
conseguinte, sua influência nas escolas italianas “considerando que o efeito mais
profundo da espiritualidade medieval foi a nova atitude em face do amor terreno,
que surgiu primeiro na Provença” (ALVA, 1999, p. 71).
Durante o século XII, acontecia na Europa o que Feldkircher nos traz como
Renascimento Medieval.
5
Vita Nuova, III, 11.
6
Importante escritor, poeta, político responsável por importantes obras em vulgar como Li livres
dou Tresor.
7
Poeta Italiano, nascido em Bolonha. Seu poema Al cor gentil rempaira sempre amore é considerado
o marco inicial do Dolce Stil Nuovo.
8
Primeiro movimento literário independente da Itália.
9
“in lingua d’oil, fu principalmente eroico-cavalleresca, didascalica ed allegorica; mentre nella
Provenza ebbe voga, l’alta lírica d’amore.” (SANSONE, 1961, p. 14. Tradução nossa).
14
uma autonomia intelectual muito maior que as mulheres no final da Idade Média.
Temos o exemplo de Heloisa, uma das grandes pensadoras do século XII, discípula
do filósofo Abelardo, párea em sapiência a muitos intelectuais e monges de sua
época. Na literatura trovadoresca do Norte, a imagem da mulher não possuía um
papel muito além de acessório, pois se encontrava na obra à mercê dos prazeres do
herói. Nesse sentido, o Trovadorismo Provençal propagava a exaltação à mulher,
pois “a canção lírica canta um novo ideal, profano, do cavaleiro, não mais a serviço
da cristandade, mas a serviço da dama” (ALVA, 1999, p. 73).
Quando na Itália surge um dos primeiros movimentos nacionais e a primeira
escola poética italiana, denominada Scuola Poetica Siciliana10, a principal fonte de
inspiração foi o Trovadorismo Provençal, persistindo no mesmo modelo e métrica,
o mesmo esquema psicológico e a mesma interação entre amante e amada, com
o mesmo requinte formal, mas escrita em vulgar siciliano.
O Dolce Stil Nuovo emerge em contrapartida às velhas formas de poesia
siciliana: a questão do amor também era central, mas sua principal concepção era
a nobreza e o amor sob uma abordagem mais científica e filosófica. Viglio (1970,
p. 58) afirma que se pode considerar o primeiro movimento poético independente
da língua italiana. A nova escola empolgou os novos poetas toscanos (entre eles
Dante), já irritados com os cantos às mulheres dos poderosos, em uma época de
mudanças, em que a antiga aristocracia era decadente, dando espaço à emersão
da classe burguesa, na qual reinavam cantos às mulheres dos novos burgueses.
O Dolce Stil Nuovo traz a proposta da elevação do homem sob a perfeição cristã
através do amor real e puro: um amor que, acima de tudo, redime. Através disso
a mulher não é mais o objeto de perturbação do poeta, mas a responsável por
purificá-lo. A mulher idealizada surge como um ser angelical, gentil e nobre, à qual
o poeta canta seu amor não de forma vulgar, mas com suavidade e beatificação.
Nas palavras de Sansone:
O amor não é um desejo terreno, mas um meio pelo qual o coração gentil,
ou seja, nobre se eleva à contemplação da perfeição divina, é a única
maneira pela qual a nobreza que a natureza nos coloca na alma, em
um estado potencial, se ativa e desdobra em todo o seu vigor. A mulher
não é um objeto do desejo sensual, mas uma criatura angélical: com a
soma da perfeição emanando de suas virtudes e da doçura harmônica
de sua beleza, eleva a alma a Deus, dissolvendo-a de toda a miséria e da
fealdade terrena (SANSONE, 1961, p. 23. Tradução nossa)11.
Com tais atributos, a personagem de Beatrice consiste numa das mais célebres
Donna Angelo,12: é a ela, casta e nobre, que o poeta se refere ao afirmar que irá
dedicar A Divina Comédia e dizer o que jamais se disse de nenhuma outra (Vita
Nuova, XLII), já um prévio aviso da composição da Commedia. Willians (2000), em
10
“É dita siciliana não porque todos os poetas foram sicilianos, mas apenas pelo fato que essa
iniciou na corte do rei da Sicília (Federico II)” (SANSONE, 1061, p. 20. Tradução nossa).
11
“L’amore non è brama terrena, ma il mezzo com cui il cuore gentile, cioè nobile, si leva ala
contemplazione della perfezione divina,è la sola via per cui quel tanto de nobilita che la natura
ci pone, in stato potenziale, nell’anima si attui e si dispieghi in tutto il suo vigore. La donna non
è oggeto de desiderio sensuale, ma una criatura angelica: essa, com la somma dele perfezione
che emanano dalle sue virtú e dalla soavitá harmoniosa della sua bellezza, leva l’anima a Dio,
sciogliendola da ogni miseria e bruttura terrena” (SANSONE, 1961, p. 23).
12
Nome dado às musas dos poetas do dolcestilnuovismo (ROBIN, 2010).
15
seu profundo estudo The Figure of Beatrice, defende a personagem de Beatrice como
a mais espetacular invenção do poeta e a legitimação da originalidade de Dante.
Em 1303, ainda sob influência do Dolce Stil Nuovo e já no exílio, Dante inicia
a composição da sua Commedia. Embora Beatrice não se faça presente durante
a jornada através do Inferno, é ela a responsável por fazer com que Virgílio
interceda em resgate ao poeta. Começa então a jornada de redenção, iniciada pela
ação misericordiosa da musa com a finalidade de, através de uma viagem pelo
mundo de Sofrimento e Castigo (Inferno) e Reflexão e Purificação (Purgatório),
tornar-se finalmente digno de entrar no Paraíso. A premissa da purificação
através do amor casto proposta pelo Dolce Stil Nuovo é seguida fielmente na
Divina Comédia, pois, além de apresentar a jornada do poeta em busca da elevação
espiritual, o que guia Dante em sua viagem é a convicção do encontro com Beatriz:
o amor virtuoso como ponte capaz de aproximar o homem de Deus e livrá-lo da
miséria terrena.
13
As citações das obras El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha (1605) e de sua continuação,
El ingenioso cavaleiro Don Quijote de la Mancha (1615) serão apresentadas a partir da edição
bilíngue de Sérgio Molina, edições de 2003 (Primeiro Livro) e 2007 (Segundo Livro). As citações
das obras serão identificadas pelas siglas remissivas DQ I, para o livro de 1605, e DQ II, para a
segunda parte da obra, bem como a indicação do capítulo.
16
Cervantes, através da sua obra, faz uma paródia aos romances de cavalaria que
ainda eram de notável popularidade na época e satiriza, por meio da personagem
de dom Quixote e da sua jornada, os princípios que conduziam as histórias dos
heróis de tais romances: o personagem principal, Alonso Quijano, é um homem
culto e que acaba por perder a sanidade após entregar-se à literatura de cavalaria
“Lendo de claro em claro e os dias de sol a sol; e, assim, do pouco dormir e muito
ler se lhe secaram os miolos, de modo que veio a perder o juízo” (DQ I, cap. I, 2003,
p. 57)14. Tomado por sua loucura cavaleiresca e convencido de que realmente é
um cavaleiro como os dos livros, parte em sua própria jornada, acompanhado de
Sancho Pança, a quem denomina como seu escudeiro, mas não sem antes idealizar
uma figura feminina a quem destinaria as honras de suas vitórias em campo.
Surge, na história, a enigmática figura de Dulcineia Del Toboso: “uma
invenção de terceira ordem, já que seu inventor Dom Quixote (invenção de
segunda ordem) foi criado pelo Fidalgo Alonso Quixada (invenção direta do
autor, de primeira ordem)” (PINILLA, 2014, p. 100). A personagem criada por
Alonso é completamente incorpórea: são as demais personagens que atribuem
características idealizadas a ela. Assim que dom Quixote se propõe a destinar
sua jornada e vitórias a uma mulher, a primeira coisa que cria é o nome15 da sua
donzela. No decorrer da narrativa, as demais características de Dulcineia são
metamórficas de pessoa para pessoa, cada qual lhe atribuindo uma identidade
imaginária, seja como aldeã Alonsa Lorenzo, como descrita pelo narrador, seja
como a lavadeira, imagem atribuída por Sancho Pança, e assim sucessivamente.
Por tal complexidade e falta de uma identidade unitária, a personagem de
Dulcineia recebeu várias estigmas e interpretações:
14
“leyendo de claro en claro, y los días de turbio en turbio; y así, del poco dormir y del mucho ler,
se le seco el celebro de manera que vino a perder el juicio” (DQ I, cap. I, p. 57).
15
DQ I, cap. I, 2003, p. 60.
16
“La interpretación más popular es que Dulcinea y el amor que don Quijote le tiene sirven para
hacer burla cómica del amor cortés. No se puede refutar tal interpretación; sin embargo, bajo la
superficie de la realidad hay otras posibilidades de interpretación. Casalduero dice que Dulcinea
es pura idea. Madariaga declara que ella es la gloria. Emilio Goggio dice que Dulcinea es el móvil
principal de todas las acciones de don Quijote. Riley sugiere que el problema para los filósofos
contemporáneos es saber si la identidad corporal es una condición necesaria para que haya
una identidad personal; que cuando se resuelva este problema filosófico quizá sepamos más de
Dulcinea (ATLEE, 1978, p. 1).
17
auxiliaram a elaborar uma interpretação de Del Toboso como “Uma metáfora
do conceito aristotélico de Deus que surgiu na idade média em forma do amor
cortês” (ATLEE, 1978, p. 1)17. O autor exemplifica posteriormente, a partir de
Aristóteles, que Deus é o intelecto ativo da alma racional, o que mobiliza todas as
demais emoções, movimentando o mundo como a amada move o amante. Sendo
assim, Dulcineia representaria essa força inspiradora que move a personagem
principal ao seu fim, como demonstrado nas palavras de seu admirador: “Pois
verá que tudo redunda em aumento da sua glória e fama, pois toda a que alcancei,
alcanço e alcançarei pelas armas nesta vida vem do favor que ela me dá e deu a
ela pertencer”18 (DQ I, cap. XXXI, p. 434).
Essa concepção aproxima a personagem das propostas medievais do amor
cortês iniciadas com o Trovadorismo Provençal e, mais ainda, com a escola
do Dolce Stil Nuovo, que apresentava fortes concepções aristotélicas sobre o
papel do amor na elevação divina. Para a personagem dom Quixote, Dulcineia
representa tudo aquilo que Beatrice representou para Dante: o amor platônico,
a musa inalcançável, o amor que o faz atravessar uma jornada que o redime e
o dignifica. Para Cervantes, sua criação representa, além da figura redentora, a
idealização da idealização: uma musa idealizada que, para tornar a proposta o
mais imaginativa possível, foi inspirada em uma das mulheres mais misteriosas
com relação a sua real existência. “Beatrice apresenta um caráter pouco realista
em sua personalidade, o que sugere sua existência mais evidente na mente de
Dante do que fora dela” (DE SANCTIS apud FROÉS, 2015, p. 4). Salienta-se que a real
existência de Beatrice e sua identidade como filha do banqueiro Falco Portinari
nunca foram completamente comprovadas. Uma elucubração, portanto. Mesmo
em Vita Nuova, o mais próximo que temos de sua biografia, em momento algum
é citado o sobrenome Portinari. Ainda que se tratasse de Beatrice Portinari, a
paixão platônica fez o poeta atribuir qualidades e características que não haveria
como comprovar sem uma real convivência, o que se sabe através do relato do
poeta que não havia de fato.
17
“Una metáfora del concepto aristotélico de Dios que surgió durante la edad media en forma del
amor cortés” (ATLEE, 1978, p. 1).
18
“Pues verá que todo redunda en aumento de su gloria y fama, pues cuanta yo he alcanzado,
alcanzo e alcanzaré por las armas en esta vida, toda me viene del favor que ella me da y de ser
yo suyo” (DQ I, cap. XXXI, p. 434).
18
após o fim da sua vida” (BERETTA, 2014, p. 108). A arte, em especial a literatura,
é o vínculo que liga o homem ao vislumbre da imortalidade. Uma pintura, um
poema ou um romance apresentam os reflexos dos anseios humanos, dentre eles
a aversão e o temor da ideia da morte, culminando na própria busca por um
legado, que resulta no cânone. Sabemos que Dante, Cervantes e suas respectivas
obras suprem o princípio da “imortalidade” literária, já que até os dias de hoje são
vastamente estudadas por vários âmbitos dos estudos humanísticos, sempre sob
uma nova perspectiva. Um dos subsídios para a sustentação dessa imortalidade
encontrar-se-ia no próprio diálogo textual entre as obras, e é aqui que passamos a
utilizar da literatura comparada como mais uma abordagem de estudo de A divina
comédia como possível inspiração em outro cânone da cultura ocidental, o Quixote.
Para amparar a proposta que apresentamos aqui de realizar uma aproximação
comparativa entre as personagens femininas presentes na Divina Comédia e em o
Quixote, utilizaremos os postulados teóricos da Literatura comparada a partir de
Remak (1994), que preconiza a literatura como o diálogo não apenas da literatura
com outras literaturas num nível supranacional ou internacional, mas também
da literatura com diferentes âmbitos sociais, conforme se lê em sua definição
para a “escola americana”:
19
Dante finaliza seu primeiro livro, Vita Nuova, revelando que espera
homenagear Beatrice da forma que nenhuma mulher foi homenageada, um anúncio
predecessor da Divina Comédia. Sendo assim, o poeta já havia, ao final da escrita de
seu primeiro livro, decido escrever seu poema sacro de forma que a personagem
feminina não fosse apenas glorificada, mas que também através de quem a
sua jornada de redenção se tornasse possível. Em o Quixote, como mencionado
anteriormente, Alonso, quando decide sair em busca de suas aventuras, não o faz
sem antes criar uma donzela a quem destinar sua jornada e suas vitórias. Sem
essa donzela, é inconcebível um cavaleiro permitir-se sair em suas aventuras, pois
não seria movido por um propósito. A musa era algo essencial entre os cavaleiros
andantes, sendo assim, essencial para a personagem de dom Quixote.
Um ponto relevante de contato entre as obras está em uma das essências do
romance Dantesco e mesmo do Dolce Stil Nuovo: a questão do amor platônico,
um distanciamento velado entre o poeta e sua musa, mas que não teria tornado
impossível os breves contatos entre os amantes. Enquanto Beatriz era viva, Dante
nunca trocou com a moça mais do que cumprimentos, reverências e olhares,
chegando a sofrer terrivelmente quando a mesma, em um momento de ciúme, se
nega a cumprimentá-lo19. Já no capítulo XXV do Quixote, o protagonista afirma essa
relação velada de contatos com a sua senhora, já que em determinado momento,
sua loucura cavaleiresca lhe permite recordar dos encontros com sua musa, com
quem nunca trocara mais do que cumprimentos: “uma vez que meus amores e
os dela foram sempre platônicos, sem irem além de um honesto olhar”20 (DQ I,
cap. XXV, p. 335).
Essa premissa do distanciamento é motivada justamente pelo lugar de
exaltação que as suas respectivas damas ocupam, onde o físico e os sentimentos
carnais não se lhe devem alcançar. Essa característica de servidão do amor cortês
também pode marcar o início do amor espiritualizado pregado pelo Dolce Stil
Nuovo, no qual a adoração pela senhora não encontrava fim no “amar e receber”,
mas no “amar e purificar-se” através desse amor.
Há outro momento que nos leva a ver Dulcineia e Beatrice claramente
elevadas à condição sagrada. No início da Divina Comédia (Inf., II), Dante
encontra-se perdido em uma selva escura, cercado por três feras, sem chance
alguma de salvação, quando, em seu auxílio, surge Virgílio21. Em seguida,
descobrimos que este se encontra ali por intercessão de Beatrice, a qual, vendo
Dante em perigo e não podendo ir à terra para salvá-lo, vai ao encontro do poeta
romano e solicita sua interveniência:
19
Vita Nuova, capítulo X.
20
“Porque, mis amores y los suyos han sido siempre platónicos, sin entenderse a más que a um
honesto mirar” (DQ I, cap. XXV, p. 335).
21
Poeta romano clássico muito admirado por Dante e autor de grandes obras como as Bucólicas
e Eneida.
20
De quem o mundo a fama inda perdura
E de durar quanto ele já se ufana
O amigo meu, que o não é da ventura,
Nessa praia deserta ei-lo impedido,
E atrás volveu e o medo o desfigura;
E eu temo já se encontre tão perdido,
Que tarde a socorrê-lo va levada,
Por quanto cá no céu já tenho ouvido!
Ergue-te, pois e com a palavra ornada
E o mais que o for mister a se salvar,
O ajuda, a fim de que eu seja consolada.
Eu sou Beatriz, ora a fazer-te andar;
Do lugar venho a que voltar pretendo,
E o amor me move, que me faz falar.’”
(Inf. Canto II)22.
22
“Io era tra color, che son sospesi, / E donna mi chiamò beata e bella, / Tal che di comandare io
la richiesi./ Lucevan gli occhi suoi più che la Stella: / E cominciommi a dir soave e piana, / Con
angelica voce, in sua favella: / ‘O anima cortese Mantovana, / Di cui la fama ancor nel mondo
dura, / E durerà quanto il mondo lontana:/ L’amico mio, e non della ventura, / Nella diserta
piaggia è impedito / Sì nel cammin, che volto è per paura; / E temo, che non sia già sì smarrito,/
Ch’io mi sia tardi al soccorso levata, / Per quel ch’io ho di lui nel Cielo udito. / Or muovi, e con la
tua parola ornata,/ E con ciò, che ha mestieri al suo campare,/ L’aiuta sì, ch’io ne sia consolata. /
Io son Beatrice, che ti faccio andare: / Vegno di loco, ove tornar disio: / Amor mi mosse, che mi fa
parlare.’.”(Inf, Canto II, tradução Vasco Graça Moura).
23
“Oh, señora de mi alma, Dulcineia, flor de la fermosura, socorred a este vuestro caballero, que
satisfacer a la vuestra mucha bondade em este riguroso trance se halla (DQ I, cap. VIII, p. 126).
21
aristotélico do amor de Deus: é através dela e por ela que o cavaleiro encontra
seu valor, assim como Beatrice (a teologia) abre o caminho de Dante e o move
em detrimento da sua elevação espiritual.
Em determinado momento, no capítulo XXXI, dom Quixote e Sancho estão
conversando, quando Sancho questiona as honras e vitórias que o cavaleiro insiste
em destinar a Dulcineia. Dom Quixote explica como é de grande honra, no estilo
da cavalaria, que uma dama tenha muitos cavaleiros a seu serviço, mas que os
pensamentos deste não devem ir além do prazer de servi-la por ser ela quem é,
sem a espera de recompensa ou premiação, apenas que ela os aceite como seus
servos. Em sua resposta, Sancho compara o sentimento e adoração do sentimento
de dom Quixote por Dulcineia, ao amor que deve ser direcionado ao Deus cristão:
Com essa maneira de amor – disse Sancho – ouvi prédicas que se deve
amar Nosso Senhor, por si só, sem esperança de glória nem temor de
pena, embora eu preferisse amá-lo e servi-lo pelo seu poder24 (DQ I, cap.
XXXI p. 435).
Assim como Jesus subiu ao céu para salvar não somente seus discípulos,
mas a humanidade inteira, sendo a ressurreição a promoção final de
sua carreira salvífica na terra (ver ROMANOS, 4:25; 10:9), na Vida Nova
Beatrice sobe ao céu para confirmar seu poder salvífico após a morte e
ganhar uma existência poética ‘concreta’ (FRACCHIOLLA, 2011, p. 14).
24
“Com esa manera de amor – dijo Sancho – he oído io predicar que se a de amar a Nuestro Señor,
por sí solo, sin que nos mueva esperanza de gloria o temor de pena, aunque io le querría amary
servir por lo que pudiese” (DQ I, cap. XXXI p. 435).
22
A transfiguração da personagem começa a se completar na Divina Comédia,
com seu surgimento na cena de intercessão e então no Canto XXX de Purgatório,
quando a personagem aparece fisicamente pela primeira vez, cercada de anjos
e vestida de vermelho, a “nobilíssima cor” para Dante.
25
“Cosí dentro uma nuvola di Fiori
Che da le mani angeliche saliva
E ricadeva in giú dentro e di fori,
Sovra candido vel cinta d’uliva
Donna m’apparve, sotto verde manto
Vestita de color de fiamma viva,”
(Purg. Canto XXX).
26
Rio onde as almas devem banhar-se antes de adentrar o reino do Paraíso.
27
Purg. Canto XXXI.
23
despenhar, encovar e afundar no abismo que aqui se me apresenta, só
porque o mundo conheça que, se tu me favoreces, não há impossível
que eu não acometa e acabe”28 (DQ II, cap. XXII p. 284).
Considerações finais
24
da pesquisa. Buscamos também, através de nossa abordagem, ressaltar como a
literatura comparada age sobre os cânones de tão diferentes épocas e cenários
sociais esclarecendo de que forma houve essa comunicação entre os textos e como
a literatura nasce da literatura.
Referências
_____. Dante. Vida nova. Tradução de Carlos Eduardo Soveral, 3. ed. Guimarães
Editores, Lisboa, 1993.
ALVA, Blanca Beatriz Diaz. Prolegômenos para uma filosofia do amor em Dante:
um estudo em Convívio. Tese de Doutorado. São Paulo: UNICAMP, 1999.
DE SANCTIS, Francesco. Storia della letteratura italiana. Firenze: Editore Salani, 1996.
25
MELLO, Karla Calasans de. Nos en(tre)cantos de Dulcinea Del Toboso (uma cantata
cênica). Dissertação de Mestrado. Brasília: Universidade de Brasília, 2010.
ROBIN, Paula Monteleone. Beatriz, musa de Dante Alighieri, com suas transfigurações
na Vita Nova, e incursões na Divina Comédia. Dissertação de Mestrado. Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2010.
STERZI, Eduardo. Por que ler Dante. 1. ed. São Paulo: Editora Globo, 2008.
WILLIANS, Charles. The Figure of Beatrice: a study in Dante. Boydell & Brewer;
Edição: Revised ed., 2000.
26
Passagens da geopoesia:
etnoflâneries centroestinas pelas ruas de Goiás
28
Entrar num texto como quem entra num terreiro, numa capela, numa
roda. Esta é a ideia primeva da literatura de campo: peregrinar e
voltar para contar. Com isto, esta literatura, em campos plurais, com
sua amplitude de temas e de significados, presenta-se e dissemina-se
no âmbito da transdisciplinaridade. Esta vertente, instaurada numa
dialógica da colonização, conjuga-se, neste novo milênio, com os estudos
da cultura popular, da oralidade e da performance. Esta base integra
o pilar de uma dinâmica intelectual que reverbera na prática de um
pensamento por escrito. (...) De modo muito geral a Literatura de Campo
é composta por vários autores: Padre Anchieta, Padre Vieira, Tomás
António Gonzaga, Euclydes da Cunha, Hugo de Carvalho Ramos, Mário
de Andrade, Erico Verissimo, José Godoy Garcia, Hermilo Borba Filho,
Guimarães Rosa, Darcy Ribeiro, Ariano Suassuna, Milton Hatoum, dentre
outros. Todos autores citados peregrinaram pelo país em busca da língua
certa do povo, da língua errada do povo, para macaqueá-la, estilizá-la,
imprimi-la (SILVA JR, 2013, p. 7-8).
29
dos contadores de causos e raizeiros. Compactuando, na vigília, com o postulado
do sociólogo Antonio Candido, de que a literatura constitui bem imaterial de
necessidade comum, lançamos mão desta necessidade universal, seja na rua
ou na fazenda, nos sertões ou nas veredas. Enquanto material de pesquisa, a
fim de viabilizar seu provimento para as comunidades de um centro-periférico,
historicamente privado deste direito enquanto reconhecimento e circulação, é
que a literatura de campo constitui-se.
Dos demorados diálogos entre foliões e performances culturais, das variantes
populares aos antepassados que a cada manifestação demigram caminhamos
pelas “passagens” que nos levam ao labirinto da etnoflânerie:
30
e aura, o espaço se impunha como elemento sensível nas interpretações
benjaminianas. Tendo em mente a pergunta motriz – o que mudou na forma
do homem sentir e dar sentido ao mundo com o advento da reprodutibilidade
técnica? –, nos esforçamos em tirar das entrelinhas aquilo que entendemos como
geopoesia e seu intercurso com a etnoflânerie. Passando por brasis liminares –
numa contínua era da reprodutibilidade humana – esse conluio não se afasta
das coisas do mundo visto, nem das pessoas que as veem. Valores, sentimentos
e estilos configuram os modos de ver e de agir (poiesis) e criam uma realidade a
partir da impressão sensível – sentidos (em significação) e sentidos (na sensação).
Esse mundo que faz parte do mundo e é o próprio mundo sofreu alterações
consubstanciais nas mais diversas modernidades, como constatou Benjamin:
31
culturais oferecem a etnoflânerie realiza uma espécie de “colportagem do espaço
não urbano” numa memória de escrita que é, ao menos, citadina – posto que
letrada. Essa discussão se deu em vários níveis, por exemplo, numa escrita de
Hugo de Carvalho Ramos e Guimarães Rosa, José Godoy Garcia e Manoel de Barros.
Na modernidade, os olhos já não seriam mais “janelas da alma”, “espelhos do
mundo”. Então, o escritor brasileiro busca uma nova potencialidade e parte para
o campo. O poeta agredido pelo brilho da luz elétrica (BENJAMIN, 1989, p. 48),
que vê sua originalidade submetida à uniformidade da vida urbana (BENJAMIN,
1989, p. 48) e abandonado à multidão (BENJAMIN, 1989, p. 51) monta seu cavalo
andante, pega sua caderneta e busca passagens nos mais diversos brasis liminares.
Se o poeta francês, ser dotado de cabedal financeiro, com tempo dedicado ao ócio,
praticava a flânerie e refugiava-se no tumulto que cegava e que, paradoxalmente,
revelava, o etnoflâneur, por sua vez, segue para o campo para entender antigas e
novas formas de trabalho. Ao deixar sua realidade para compor suas narrativas, na
palavra do outro, entre o enunciável e o estilizável, reside a matéria da geopoesia:
livros todos feitos de ignoranças e revelanças.
Para pensar essas ignorâncias e revelações é necessário evocar Cora Coralina.
No palco do interior nacional, convidamos à cena uma artista e intelectual que
se consolidou com um pensamento ativo e responsivo ao outro, às alteridades
múltiplas incessantemente despontadas dos povos cerradeiros e sertanejos. No
diálogo com uma poética popular do cerrado (SILVA JUNIOR; MEDEIROS, 2018)
engendra-se poéticas do enfronteiramento. Em um conjunto plural e linguístico,
que reverbera em raízes e rizomas dos brasis liminares, um sertão-cerrado
presenta-se. De um país de culturas que se espraia por veredas, vales, vãos,
planaltos, altiplanos, rios, quilombos, aldeias indígenas e espaços de resistência,
tais como assentamentos, uma conjuntura é coadunada pela crítica polifônica.
Arranjam-se vozes de poetas, como os goianos/mineiros/brasiliários José Godoy
Garcia, Anderson Braga Horta e Cassiano Nunes; confluem prosadores das gentes
e tropas migrantes, a exemplo de Hugo de Carvalho Ramos e Bernardo Élis;
reverberam jaguncismos e retirantes de uma memória que passa por Graciliano
Ramos, Hermilo Borba Filho e Guimarães Rosa. Se buscarmos os palcos e telas
de cinema inda afloram dramaturgos e cineastas que fazem do Planalto Central
espaço para a geopoesia teatral e cinêmica: Dulcina de Moraes, Geraldo Lima, Hugo
Zorzetti e Vladimir Carvalho, dentre outros vão recriando diálogos centroestinos.
Além de cantores e versistas populares de nomes apagados pela histografia,
cujas obras perpetuam-se nas entoações das festas populares de santos, estações
e ações. Fazeres em verso, prosa, teatro, performance e canção que conferem
vitalidade à expressão popular consciente de um Brasil ainda deveras inconsciente
das vozes de seu centro-cerrado e que as propostas de trabalho certamente
abarcarão e revelarão. Conforme adverte Maria Zaira Turchi, esse literário não
aceita uma delimitação precisa de fronteiras. É do movimento oscilatório que
configura-se a linguagem literária. Deste modo, em diversos níveis a linguagem
é embebida de uma capacidade em que o literário apresenta-se universalizado a
partir de pequenos índices da cultura, que aparecem prodigiosamente no arranjo
dos diversos recursos literários e artísticos (TURCHI, 2003, p. 95).
Nesta perspectiva, apresentamos o poema-necrológio “Quem foi ela?”, de
Cora Coralina (1965). Percorremos ruas e becos da Cidade de Goiás. Essa cidade,
que precisou encarnar-se barroca ao deixar de ser a capital do imenso estado de
Goiás foi denominada Vila Boa (e fundada em 1826). Na geopoesia de Coralina
32
uma poética profunda ressalta-se na movimentação de vozes femininas ecoando
em movimentações de forças biográficas – ao contrário da historiografia tão
calcada nos desbravadores, bandeirantes, “anhangueras” e outras variantes
de seres hegemônicos.
Esse poema-necrológio articula uma poética coralina com a imagem de
Idalina da Cruz Marques e seu importante papel social na cidade. Ao mesmo tempo
conjuga o destino de uma Professora Terezinha Vieira Maia que empenhou-se no
arquivamento desse poema por mais de cinquenta anos. Retirado de um jornal
de circulação em Goiânia, nos idos de 1965 – tendo a fonte ainda não identificada
por nós, nesse longo poema encontramos toda a extensão de destinos goianos.
Numa pedaço de folha de periódico temos o encontro entre a “rua da ponte”, onde
viveu Cora Coralina e a “rua do fogo” onde viveram Idalina Marques e Terezinha
Vieira Maia – nascida no 09 (SILVA JUNIOR, 2012, p. 209).
Além do próprio material impresso (em jornal) congrega-se o relato vivo
(memória oral) de Terezinha Vieira Maia que faculta detalhes encarnados da
figura da biografada e da poeta biografizante. Num exercício de geopoesia
nossa perspectiva busca renovar o conceito geral de Literatura de Campo que se
transforma com a etnoflânerie. Da sabedoria enformada pelos fusos discursivos,
pelas tramas formais e pelas linhas sociais que presentam experiências de uma
geopoesia coralina, nossa colcha de retalhos poética entrama-se:
33
Morta... Morta parece ainda maior do que viva.
Morta parece ainda mais sábia do que o foi em vida porque penetrou
no grande e solene sentido da morte.
Tôda a sabedoria da vida que constituio seu maior cabedal ao longo dos
anos aliou se agora ao profundo e insondável da morte.
“A lâmpada sobre o alqueire”...
(CORALINA, 1965).
Da Igreja da Boa Morte, situada na praça do coreto, passando por sua casinha
na rua do rua do fogo até a rua da ponte – de onde Cora Coralina compunha seus
versos de alfenim e puxa encontramos uma topografia memorialística da antiga
(e tão presente) capital goiana.
A geopoesia então, desponta como essa fonte segura das velhas coisas –
que de tão longe vem ecoando, das pessoas – que de tão longe foram migrando,
e dos costumes que de tão humanos vão se poetizando. Se a vida se desgasta
na passagem do tempo, por sua vez, nas passagens da poesia ela se encorpa,
faz-se verbo, unge-se de comunhão, mas de uma comunhão do feminino. Esse
mesmo feminino foi composto por Niemar. O poeta, neto da cidade, compôs um
conjunto de poemas da etnoflânerie. E, embora a geopoesia seja localizável nas
mais diversas manifestações trazidas nesse ensaio, seu livro intitulado Poemas da
rua do fogo inaugura, de modo autoconsciente e programático, essa vertente no
século XXI. Esse encontro de femininos no poema de Cora Coralina não é trazido
aqui ao acaso. Todo o percurso desse livro, cujo título é uma franca alusão ao
livro de 1977 de Cora, Poemas da rua da ponte e outros becos de Goiás assim é
interpretado pela filósofa Helena Nogueira:
34
poeta – que escreve com eles... Andei pelos becos de Vila Boa catando
sombras. Vi com meus olhos a força da procissão e o medo inocente da
fúria injusta! Saibam, leitoras e leitores, que, ao abrirem esse livro, terão
seus sentimentos expostos – sentimentos do mundo que o poeta parece
conhecer mais do que nós mesmos! (NOGUEIRA, 2019, s.p.).
rua do carmo, n. 22
quem foi ela? quem foi aquela mulher?
tantos batizou, tantos batizara
tantos criou, tantos criara
mulher mãe e madrinha: vodinha
35
marcas deixadas no mundo, são adequadas para essa revelação. São imagens
também adequadas para o final desse ensaio. Imagens que apresentam, justamente,
o processo de constituição de uma poesia por brasis liminares. Liminaridade e
enfronteiramento daqueles que vislumbram e vislumbraram a consciência de uma
existência social e espiritual através de passagens, vocalidades e feminilidades.
Referências
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4. ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
BENJAMIN, W. O narrador. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: ed.
Brasiliense, 1994.
BOLLE, Willi. “Um painel com milhares de lâmpadas” – Metrópole & Megacidade.
Passagens. Belo Horizonte: Ed. UFMG, p. 1707-1746, 2018.
36
BOLLE, Willi. O Sertão como forma de pensamento. Scripta (PUCMG), Belo
Horizonte, v. 2, n. 3, p. 259-271, 1998.
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Ed. Duas Cidades. Rio de Janeiro:
Ed. Ouro sobre Azul, 2004 [1970].
CORALINA, Cora. Quem foi ela? Jornal Impresso (s. ref.), 11 de dezembro de 1965. s. p.
RAMOS, Hugo de Carvalho. Tropas e boiadas. 8. ed. Goiânia: editora da UFG, 2001.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. São Paulo: Abril Educação, 1982.
37
Euclides da Cunha e suas metáforas amazônicas
38
Euclides da Cunha na Amazônia
39
Mota (2003, p. 164) comenta que
Por que obrigação moral? Assim como acontecera no seu regresso de Canudos,
Euclides retornou da Amazônia desolado e revoltado com o que testemunhara:
populações relegadas ao abandono, vivendo em condições subumanas, na mais
absoluta miséria. Viu os seringueiros sendo explorados pelos seringalistas arrivistas,
submetidos a um regime de escravidão no meio da floresta, um lugar longínquo
demais onde a justiça não conseguia ou não tinha interesse em chegar. E assim como
fizera em Canudos, prometeu a si mesmo escrever um “segundo livro vingador”,
para trazer à luz aquele mundo estúpido que o Brasil desconhecia e “reclamar do
governo medidas em favor dos sertanejos que, transformados em seringueiros,
garantiam para o Brasil a posse de regiões riquíssimas, e ao mesmo tempo eram
relegados a mais extrema miséria e a mais cruel exploração” (MOTA, 2003, p. 164).
Mas o projeto da construção do segundo livro vingador não se realizaria. Nas
palavras de Mota (2003, p. 164), “seus afazeres, sua precária situação financeira
– que o obrigava a trabalhar sem folga para o sustento da família – sua vida
atormentada e sua morte prematura iriam impedi-lo de concretizar esse projeto”.
O que restou de sua intenção foi uma série de artigos, que seriam os primeiros
traços do esboço do livro, reunidos com o título À margem da história, uma
coletânea publicada em 1909. Esses escritos, no entendimento de Mota (2003, p.
164), “são suficientes para se ter uma ideia do plano grandioso de Euclides, da sua
veemente defesa do seringueiro. [...] Vê-se por esse esboço de livro que Euclides era
cada vez mais um sociólogo e escritor político do que propriamente um literato.”
Regressando ao Rio de Janeiro em fevereiro de 1906, Euclides entregou o
relatório ao Ministério do Exterior, que só foi publicado em junho. Tornou-se adido
ao Gabinete do Barão do Rio Branco, sem estabilidade, numa função não oficial
(RABELLO, 1966). No mesmo ano tomou posse na Academia Brasileira de Letras.
Em 1907, publicou Contrastes e Confrontos (artigos publicados entre 1901 e 1904 nos
jornais “O Estado de S. Paulo” e “O País”) e Peru versus Bolívia (oito artigos escritos
para o “Jornal do Comércio”). Em 2 de dezembro, proferiu a conferência “Castro
Alves e seu tempo”, no Centro Acadêmico XI de Agosto (Faculdade de Direito), de
São Paulo. Em 1908, prefaciou os livros Inferno Verde, de Alberto Rangel, e Poemas
e Canções, de Vicente de Carvalho (RABELLO, 1966; MOTA, 2003).
Em 1909, Euclides prestou concurso para a cadeira de Lógica do Colégio
Pedro II, prova escrita e oral, sendo classificado em segundo lugar (o primeiro
foi Farias Brito). Foi nomeado professor em 14 de julho. Ministrou sua primeira
aula dia 21 e a última em 13 de agosto, uma sexta-feira. No dia 15 de agosto, uma
manhã chuvosa de domingo, foi assassinado por Dilermando de Assis, amante de
sua esposa. A morte o colheu prematuramente, por meio desse crime passional,
aos 43 anos de idade.
As metáforas analisadas neste estudo foram colhidas dos textos deixados
por Euclides para a posteridade.
40
Sobre a teoria da metáfora conceptual: entre alvos e fontes
A maioria das pessoas acha que pode viver perfeitamente sem a metáfora.
Nós descobrimos, ao contrário, que a metáfora está infiltrada na vida
cotidiana, não somente na linguagem, mas também no pensamento e na
ação (...). Os conceitos que governam nosso pensamento não são meras
questões do intelecto. Eles governam também a nossa atividade cotidiana
até nos detalhes mais triviais. Eles estruturam o que percebemos,
a maneira como nos comportamos no mundo e o modo como nos
relacionamos com outras pessoas.
42
diferentes áreas do conhecimento ou experiência humana. Assim, a metáfora
conceptual pode ser sempre representada pela estrutura DOMÍNIO-ALVO
É DOMÍNIO-FONTE. O alvo é sempre algo mais abstrato com que temos de
lidar conceitualmente; já a fonte é algo mais concreto, com que lidamos mais
diretamente em termos de conceitos e de experiência. A junção desses dois
domínios em uma metáfora nos possibilita transferir as concepções, crenças,
experiências, e etc. da fonte para o alvo, para assim melhor compreender este
último. Vejamos a metáfora de Euclides: “[...] Abarrotavam-se, às carreiras, os
vapores, com aqueles fardos agitantes consignados à morte. Mandavam-nos para
a Amazônia” (CUNHA, 2003, p. 85 – grifo nosso).
a) O domínio-fonte é aquele a partir do qual conceitualizamos alguma coisa
metaforicamente. No caso da metáfora exemplificada acima, o comércio é o
domínio-fonte.
b) O domínio-alvo é aquele que desejamos conceitualizar. Esse é o domínio
mais abstrato. No exemplo que estamos analisando, o domínio-alvo é a situação
existencial e social dos sertanejos nordestinos.
c) E, por fim, as expressões metafóricas, que são as expressões linguísticas
através das quais a metáfora conceptual se concretiza na língua. Por exemplo:
em “abarrotavam”, “fardos agitantes”, “consignados à morte”, temos expressões
linguísticas que atualizam a metáfora dessas pessoas como sendo uma espécie
de mercadoria em trânsito.
Na teoria da metáfora conceptual, a metáfora é compreendida como um
fenômeno cognitivo. O conceito metafórico é visto como primordial e está contido
na mente do falante, por meio do pensamento. A partir desse pensamento, deriva-se
a expressão linguística através da fala ou da escrita. É importante compreender
que, nessa visão, a expressão linguística é subordinada à representação mental,
além de ela ser também corporificada, pois, de acordo com essa teoria, o corpo
humano é a base ou a fonte de muitas metáforas cognitivas. Logo, tanto o conceito
metafórico, contido na mente, quanto o corpo humano que é a base ou a fonte
das metáforas, são primordiais para o estudo das metáforas.
Euclides: um metaforista
43
do grande metaforista para descrever aspectos geográficos e paisagísticos da
Amazônia, assim como a gente, as relações sociais, os conflitos de fronteira e
outros flagrantes da região.
Escrevendo sobre a Amazônia, Euclides elaborou metáforas que veiculam
a sua visão sobre a região. E na literatura euclidiana as metáforas ostentam-se
a cada página, a cada parágrafo, formando um grande painel da sua concepção
sobre aquela porção do Brasil. Assim sendo, para atingir o objetivo de analisar
metáforas de Euclides, difícil foi operar o recorte necessário a um trabalho desta
natureza. O início do percurso se deu com a imersão nos textos de Euclides, com
o fim de detectar em quais deles a Amazônia se apresenta como assunto. E dessa
pesquisa resultou a descoberta de que: a primeira referência à Amazônia, ainda
que bem panorâmica, ocorre em Os Sertões, em que o autor faz referência à
terra e ao clima amazônico, além das condições de adaptabilidade do homem ali.
Depois, em suas “Impressões Gerais”, do livro À Margem da história, questiona a
“literatura científica” sobre a região, que, no seu entender, situa-se “bem pouco
além de um mundo maravilhoso”. Ele relembra o caso exemplar do pesquisador
Frederico Hartt, que estava estudando a geologia do Amazonas, “quando em
dado momento se encontrou tão despeado das concisas fórmulas científicas e
tão alcancorado no sonho, que teve de colher de súbito todas as velas à fantasia:
– Não sou poeta. Faço a prosa da minha ciência” (CUNHA, 2003, p. 36).
Parece haver uma similaridade entre a condição de Hartt e a de Euclides, no
sentido de tentar adentrar no universo da ciência abdicando do seu “lado poeta”.
Esforçando-se por se libertar da impertinente imaginação, Hartt mergulhou em
suas deduções rigorosas. No entanto, duas páginas adiante já se encontrava
novamente enredado em novos arrebatamentos e enlevos. Mas Euclides
explica que tal fato se deu porque a Amazônia tem a marcante peculiaridade
de impressionar a civilização distante, por seus múltiplos superlativos. “É que
o grande rio, malgrado a sua monotonia soberana, evoca em tanta maneira o
maravilhoso, que empolga por igual o cronista ingênuo, aventureiro romântico
e o sábio precavido” (CUNHA, 2003, p. 37).
Ali, segundo Euclides, “às induções avantajam-se demasiado os lances de
fantasia. As verdades desfecham em hipérboles”, emparceirando os sonhadores
e fantasistas aos sábios deslumbrados. E “os dizeres da ciência desfecham num
quase idealismo: as análises rematam-nas prodígios; as vistas abreviadas nos
microscópios desapertam-se no descortino de um passado muitas vezes milenário”
(CUNHA, 2003, p. 37-38).
Tanto no caso dos sertões baianos como no da Amazônia, foi a metáfora que
redimiu Euclides, dando vigor à sua escrita e oferecendo a chave de acesso a um
mundo inacabado para, de algum modo, compreendê-lo. Como demonstra Paiva
(2005, p. 163), “posto que o mundo é inacabado e jamais pode ser contemplado
em sua plenitude, a possibilidade da criação poética ou científica é infindável,
e o dinamismo do pensamento – que em último instância é propiciado pela
imaginação criadora –, na poética ou na ciência, não possui termo”. Assim, os
escritos de Euclides sobre a Amazônia são recheados de metáforas que elucidam
tanto o pensamento científico quanto os vislumbres poéticos do escritor.
Discorrendo sobre a metáfora, Coimbra (2012) aponta uma diferença
fundamental entre as metáforas da ciência e as metáforas da literatura: na ciência,
a metáfora surge, a priori, com a função de cobrir lacunas terminológicas, isto
é, ela não deriva de um “imperativo estético ou expressivo”, “mas destina-se
44
a um percurso de divulgação e convenção que culminará, eventualmente, na
perda da consciência do percurso conceptual efetuado”. Dessa forma, quando
um pesquisador propõe um paralelo metafórico para nominar uma determinada
descoberta, ele pretende introduzir esse termo na comunidade científica,
empenhando-se para que o mesmo venha a ser aceito e utilizado pelos seus
pares. Quando isso acontece, o uso acaba por fazer com que a consciência do
paralelo metafórico se dilua. Por exemplo, quando ouvimos falar, hoje, em vírus
informáticos, jamais estabelecemos conexões de sentido desse “vírus” com alguma
doença de natureza médica. “Não podemos, no entanto, segundo a Linguística
cognitiva, afirmar que a figura morre. Nesta perspectiva, pelo contrário,
considera-se que ela ganha uma nova vida, já que se generaliza, e se entrosa no
código linguístico” (COIMBRA, 2012, p. 3).
Por outro lado, a metáfora literária, ou poética, não nasce destinada à
vulgarização (embora isso possa eventualmente acontecer). A metáfora incrustada
em um poema, por exemplo, não responde por nenhum objetivo de propor
terminologia com vista à sua utilização geral.
45
Rodrigues (2007) assume que o pensamento metafórico
46
A) Metáfora: A Amazônia é uma obra de arte
47
D) Metáfora: A Amazônia é um livro
48
G) Metáfora: A Amazônia é um quadro nosológico
49
H) Metáfora: O seringueiro é um escravo
50
ainda não chegaram à fase de madureza, inclusive porque banham a provável “terra
mais nova do mundo”. Eles ainda estão em busca dos seus leitos definitivos e, por
isso mesmo, apesar de serem “rios trabalhadores”, o seu trabalho é estranhamente
paradoxal: destroem em segundos o que levaram séculos para construir.
51
e pelo “enfraquecimento de todas as faculdades” dos recém-chegados e dos
habitantes da região, além imputar-lhe a responsabilidade pela assustadora
incidência de doenças que faziam da região o reino das pestes e moléstias.
Não cabe razão a Euclides também quando ele olha para a gente amazônida
como preguiçosa e desregrada, ainda mais apontando o determinismo fatalista
do clima como fator de degenerescência humana, que torna aquela gente
indiferente a qualquer esforço civilizatório. Evidentemente, trata-se de um olhar
etnocêntrico oriundo das leituras que fizera, como é o caso dos textos de Bufon
e dos divulgadores de suas ideias (PINTO, 2006). Mas ele revisa o tópico depois,
no texto “Um clima caluniado”, redimindo o clima dessa predicação “caluniosa”.
Na retificação do tópico, atribui ao clima uma função “superior”, qual seja a de
realizar a seleção natural, preparando a terra para os mais aptos.
Euclides acerta quando mostra o seringueiro como um escravo. Escravidão
teria sido o melhor termo para descrever o regime de trabalho perpetrado nos
seringais amazônicos naqueles idos, quando os seringueiros, via de regra, eram
prisioneiros das dívidas insanáveis junto ao patrão e da prisão a céu aberto da
natureza circundante, que os aniquilava. Euclides fica tão abismado com os
flagrantes de escravidão dos seringueiros naquele “renascer de um feudalismo
acalcanhado e bronco”, (CUNHA, 2003, p. 53) que não se furta a tornar esse um dos
seus principais temas quando escreve sobre a Amazônia. Defende a instauração
de leis trabalhistas que redimam o homem abandonado nos rincões amazônicos
e a aplicação da justiça contra a vergonhosa e aterradora espoliação.
Se a Amazônia é intraduzível, como Euclides poderia traduzi-la? Como
decifraria um enigma indecifrável? Era imperativo escrever sobre a região. Como
resolver o impasse? Euclides achou a chave do enigma: a metáfora – só ela pode
dizer o indizível, traduzir o intraduzível, abarcar o inabarcável. Por isso, Euclides
dela se valeu sem parcimônia. A metáfora se apresenta aí como uma ponte sobre
o abismo do inefável. E ela ainda contribui para hachurar muitas incômodas
lacunas tanto da linguagem científica quanto da artística.
Referências
CUNHA, Euclides da. Peru versus Bolívia. São Paulo: Cultrix, 1975.
52
CURTIUS, Ernst Robert. Literatura europeia e idade média latina. Trad. Teodoro
Cabral e Paulo Rónai. Rio de Janeiro: INL, 1966.
LENZ, Paula. Semântica cognitiva. In: FERRAREZI JUNIOR, Celso; BASSO, Renato.
Semântica, semânticas. São Paulo: Contexto, 2013.
MOTA, Lourenço Dantas. Euclides da Cunha. São Paulo: Editora Três, 2003 (A Vida
dos Grandes Brasileiros, 11).
PINTO, Renan Freitas. Viagem das idéias. Manaus: Valer/Prefeitura de Manaus, 2006.
SARDINHA, Tony Berber. Metáfora. São Paulo: Parábola, 2007. (Lingua[gem], 24).
53
Aspectos de retórica e ritmo no contexto da
Institutio Oratoria, de Quintiliano
54
Introdução
Embora Platão tenha tratado diretamente da Retórica nas suas obras Górgias
e Fedro, será seu mais brilhante discípulo que irá elaborar, de forma completa, o
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primeiro manual acerca da retórica antiga. Entre os textos de Aristóteles, encontra-se
a Arte Retórica. Nessa obra, dividida em três livros, Aristóteles elabora uma
conceitualização da disciplina, dividindo-a em categorias e atribuindo nomes às
diversas técnicas nela presentes e por ela utilizadas, a exemplo do que já fizera antes
em diversos outros campos do conhecimento. A retórica, então, é concebida como
uma ferramenta, uma disciplina puramente formal utilizável em diversos campos
do conhecimento. O projeto de Aristóteles consistia num trabalho que pudesse
contemplar a “argumentação”, o “estilo” e as “partes do discurso”, de modo que
podemos fazer um breve resumo esquemático da estrutura do livro como um todo.
No livro I, encontramos a introdução, definição e divisão da matéria, em
correlação com a Dialética. O autor censura seus predecessores por haverem
estudado principalmente as provas alheias à Ars (capítulos 1-3). Depois trata dos
argumentos da Retórica a partir da inferência do orador e da sua adaptação ao
público e classifica os diversos gêneros de discurso (capítulos 4-15), quais sejam:
deliberativo (na assembleia), epidítico (no teatro), judiciário (no fórum). Desse
modo, a retórica é classificada em gêneros, de acordo com o objetivo a que se
propõe: pode ser deliberativa, se o auditório tiver que julgar uma ação futura;
judicial, se o auditório tiver que julgar uma ação passada; e epidítica, se o auditório
não tiver que julgar ações passadas nem futuras.
No segundo livro, o autor se detém nos aspectos retóricos relativos ao
público. Primeiramente, trata do páthos (capítulo 1) e, em seguida, de como
suscitar emoções nos ouvintes (capítulos 2-11), de como se adaptar ao ouvinte
(capítulos 12-17) e das formas de argumentação lógica (capítulos 18-26). O livro
II é consagrado, ainda, aos sentimentos e às emoções com as quais o discurso irá
lidar e que o orador deve conhecer (cólera, amizade, temor, vergonha, cortesia,
piedade, indignação, etc.); depois, Aristóteles passa à forma de raciocínio peculiar
à retórica: não se trata do silogismo rígido da ciência da Dialética, mas de um
raciocínio que visa somente a uma probabilidade aceitável; Aristóteles o chama
entimema. Ele lhe classifica as diversas espécies antes de passar aos tópoi (“lugares-
comuns”) ou temas gerais de argumentação.
O terceiro livro diz respeito ao discurso, à composição e à forma. Trata da
teoria do estilo (elocutio); apresenta a diferença da prosa (oratio soluta, isto é, a
prosa comunicativa, do dia-a-dia, sem a intenção de convencer) com a retórica;
enfoca a ordem das partes do discurso (dispositio) e ainda aborda o léxico e as
figuras (schemmata). É nesse livro que Aristóteles faz menção ao ritmo como
elemento constitutivo da retórica. Sua preocupação é se “o ritmo deve ou não
condicionar a redação do estilo em prosa” (PLEBE, 1978, p. 86) e a solução
apontada por ele é de que a prosa deve ter ritmo, mas deve evitar a métrica, isto
é, as medidas próprias da poesia:
Τὸ δὲ σχῆμα τῆς λέξεως δεῖ μήτε ἔμμετρον εἶναι μήτε ἄρρυθμον: μὲν γὰρ
ἀπίθανον (πεπλάσθαι γὰρ δοκεῖ), καὶ ἅμα καὶ ἐξίστησι: προσέχειν γὰρ
ποιεῖ τῷ ὁμοίῳ, πότε πάλιν ἥξει.
A forma do estilo não deve ser nem métrica nem desprovida de ritmo.
De facto, a primeira não é persuasiva, pois parece artificial, e, ao mesmo
tempo, desvia a atenção do ouvinte, pois fá-lo prestar atenção a elemento
idêntico, quando a este regressar (Rhet., 3, 8, 1)29.
A partir do século II a.C., a Retórica chega a Roma. Diversas escolas são
29
Todas as traduções da Retórica, de Aristóteles, são de Manuel Alexandre Júnior (cf. referências).
56
fundadas, muitos oradores surgem. O maior expoente deles é, sem dúvida, Marco
Túlio Cícero. Sua prática oratória tem base aristotélica. Barthes (1975, p. 158),
assim distingue a retórica ciceroniana da de Aristóteles:
Mas não apenas este instruído na Dialética, mas também aquele que
possua todos os conhecimentos e o manejo de todas as questões da
filosofia. De fato, sem a disciplina que mencionei há pouco, ninguém
pode expressar e desenvolver com majestade, amplitude e elegância
nada sobre a religião, sobre a morte, sobre a piedade, sobre o amor à
pátria, sobre o bem e o mal, sobre as virtudes e o vício, sobre os deveres,
sobre a dor, sobre o prazer, sobre as paixões e extravios da alma –
assuntos que se apresentam amiúde nas demandas e que se tratam de
modo bastante seco (Orator, 118)30.
30
Todas as traduções do Orator são de minha autoria.
57
na Antiguidade. Não traz, entretanto, nenhuma novidade ou nova teoria, nem o
autor adere a qualquer linha específica, mas oferece uma espécie de síntese das
doutrinas precedentes a respeito da disciplina. A obra trata desde os requisitos
atávicos do orador, passando pela educação e formação do berço, até a aquisição
acadêmica das técnicas linguísticas da matéria e a profunda índole moral e cívica
que permeia o verdadeiro orador (uir bonus dicendi peritus):
Pois não concederia que o interesse por uma vida correta e honesta
deva ser relegado aos filósofos, como alguns julgaram, quando o homem
realmente políticos, adaptado à administração dos assuntos públicos e
privados, que possa dirigir as cidades com deliberações, alicerçar com
leis e corrigir com julgamento, certamente não possa ser outro senão
orador (Institutio oratoria, I, 1, 10)31.
31
Todas as traduções da Institutio oratoria são de Bruno Basseto (cf. referências).
58
pretendemos fazer, de modo panorâmico, neste texto. Por isso, como recorte de
uma pesquisa mais ampla, o que interessa particularmente a nós, neste momento,
é o capítulo IV do livro IX, onde Quintiliano oferece sua visão acerca do ritmo na
prosa, como importante recurso retórico.
59
Quintiliano distingue dois estilos fundamentais para composição harmoniosa
(recte componere): um estilo interligado e entrelaçado (uincta e contexta) e outro
livre (soluta). Este último convém à conversação e às cartas, por exemplo. Mesmo
assim, não está isento de certo ritmo, ainda que menos perceptível (Inst. or. IX,
4, 19-21). Ainda no que se refere à colocação das palavras, o mestre enumera os
componentes necessários à compositio: a ordenação (ordo), a união (iunctura) e
ritmo métrico (numerus) (cf. Inst. or. IX, 4, 22ss).
A ordo refere-se ao modo de unir as palavras. Deselegante seria, por exemplo,
em fratres gemini (“irmãos gêmeos”), manter a palavra fratres (“irmãos”), já que
seria reduntande e desnecessário. Além disso, sendo o verbo a força da linguagem
convém encerrar a frase com ele, a não ser que isso soe mal, por algum motivo.
A iunctura afeta as palavras individualmente, assim como os incisos (incisa),
os membros (membra) e os períodos (perihodi)33. Deve-se evitar palavras mal
sonantes, cacófatos, ecos e hiatos, embora, às vezes, no caso deste último, pode até
ser conveniente se usado adequadamente. É o caso da sequência pulchra oratione
ista acta te (“orgulha-te por esse belo discurso teu”), em que o hiato entre o final
de pulchra e ista e o início de oratione e ista, e ainda entre ista e acta, na elocução
da frase, torna-se necessário para evitar uma velocidade descabida. A supressão
de certas consoantes também deve ocorrer para o bem da agradabilidade, como
em post meridiem, que fica pomeridiem, por exemplo34. Há que se evitar também
o uso excessivo de palavras monossilábicas, verbos e nomes curtos ou muito
longos (a fim de a linguagem não ficar muito pesada) e a reunião de palavras
com igual ritmo métrico e com igual desinência, com igual forma de declinação.
Também não é bom que se sigam verbos a verbos, nem nomes a nomes. É preciso
variedade (Inst. or. IX, 4, 38-43).
Ao tratar do numerus, Quintiliano, assim como Aristóteles, diferencia ritmo
e metro. Ritmo é “espaço de tempo”; metro é “ordenação” (Inst. or. IX, 4, 45).
Aquele afeta a quantidade, tem preferência por pés35 de gênero igual, como o
dátilo (– ), de uma medida e meia, como o péon (– ), ou duplo, como o
iambo ( –) e o troqueu (– ) (cf. Or. 215). Para estabelecer uma estrutura rítmica,
seja no verso, seja na prosa métrica, interessa a mora, isto é, o menor tempo de
duração de uma sílaba, e não a sílaba propriamente dita. Dessa forma um pé
do tipo – , pode ser equivalente a –36. Já o metro afeta a qualidade do pé. O
sistema de metros é fechado, pois, de fato, não é possível trocar um dátilo por
um espondeu, como na prosa. O ritmo não tem um limite fixo, somente arsis e
tesis, não ictus37 como na poesia. Além disso, inclui o movimento do corpo, já que
33
Trata-se das estruturas do estilo, mencionadas anteriormente por Quintiliano (IX, 4, 22), definidas
e sistematizadas por Cícero (Or. 224).
34
Essa questão é exaustivamente exemplificada por Cícero no Orator (153-162).
35
O “pé” é uma unidade de medida que constitui a base de um verso greco-romano, constituído
por uma combinação de sílabas longas e breves. Na prosa métrica também pode ser usado, quando
forma as chamadas “cláusulas métricas”.
36
O que interessa é a duração de tempo de um pé. Por isso, é possível fazer comutações de várias
espécies, desde que se mantenha a quantidade de moras, ou seja: – – é igual a –, por exemplo.
O que significa dizer os espaços de tempo são bem livres, se comparados às sílabas, quando estas
forem bases do metro, na poesia, cuja limitação é devida a rigidez das estruturas de versificação.
37
A terminologia usada para nomear o tempo forte e o tempo fraco refere-se, assim como o
nosso “bater” e “alçar”, à prática de escandir a leitura do texto com o pé ou com o dedo: o tempo
forte se chamava thesis (θέσις, que significa precisamente “apoio”, a batida do pé ou do dedo),
enquanto o tempo fraco foi chamado arsis, (ἅρσις, que significa levantamento, do pé ou do dedo).
60
este possui cadências rítmicas, do mesmo modo que a voz e os gestos também
estão vinculados à natureza do conteúdo do discurso, o que torna a compositio
diretamente ligada à pronuntiatio (Inst. or. IX, 4, 138-139).
Portanto, a prosa (oratio numerosa) deve ter como base o ritmo, mas não deve
ser constituída exclusivamente de ritmos: quod Cicero optime uidet ac testatur
frequenter se quod numerosum sit quaerere ut magis non árrhythmon, quod esset
inscitum atque agreste, quam énrhythmon, quod poeticum est, esse compositionem
uelit (“o que Cícero vê muito bem e testa com frequência é aquilo que, para ele,
seria a busca do rítmico, não tanto o ‘árrhythmon’ [‘sem ritmo’], o que seria
grosseiro e rude, mas o ‘énrythmon’ [‘ritmado’], que é realmente poético: isso ele
quer como parte da estrutura da composição” – Inst. or. IX, 4, 56).
Enfatizando que está tratando especificamente do ritmo oratório (e não da
poesia), Quintiliano afirma que os pés métricos são mais difíceis de serem usados
na prosa oratória do que no verso, pois neste há poucas palavras, e o princípio
é único e igual. Já no discurso os períodos são longos e há muita variedade,
sem a qual ele pode desagradar (Inst. or. IX, 4, 60ss.). Daí porque a articulação
do período em incisos e membros são carregados de ritmo, cujos efeitos são
diversos dependendo da velocidade com que eles são articulados: Hae particulae
prout sunt graues acres, lentae, celeres, remissae exsultantes, proinde id quod
ex illis conficitur aut seuerum aut luxuriosum aut quadratum aut solutum erit
(“conforme essas partículas forem graves, agudas, lentas, rápidas, frouxas ou
vivazes, consequentemente o que se montar com elas será severo ou luxuriante,
bem arredondado ou solto” – Inst. or. IX, 4, 69).
Quintiliano retoma esse problema no parágrafo 122 (ainda no capítulo 4),
quando reafirma os conceitos-chave de Cícero (presentes em Or. 223-225) sobre
essa mesma questão. Diz Quintiliano:
Diximus igitur esse incisa membra circumitus. Incisum, quantum mea fert
opinio, erit sensus non expleto numero conclusus, plerisque pars membri.
Tale est enim quo Cicero utitur: “Domus tibi deerat? At habebas. Pecunia
superabat? At egebas”. Fiunt autem etiam singulis uerbis incisa: “diximus,
testes dare uolumus”: incisum est “diximus”. Membrum autem est sensus
numeris conclusus, sed a toto corpore abruptus et per se nihil efficiens. (...)
Itaque fere incisa et in membra mutila sunt et conclusionem utique desiderant.
61
O exemplo proposto por Quintiliano representa clara estruturação do
numerus orationis. Em primeiro lugar, as sílabas longas e breves agrupadas no
final da frase, formando a clausula péon-espondaica, depois os quatro incisos –
possíveis de terem sido formados por serem constituídos de duas palavras cada
um – que formam os membros do período (JESUS, 2013, p. 58):
Período
membro membro
inciso inciso inciso inciso
Domus tibi deerat; at habebas. Pecunia superābăt? Ăt ĕgēbās.
Sempre que for indispensável falar com severidade, com insistência e com
agressividade, nos pronunciaremos por meio de membros e incisos; pois
isso tem um peso muito grande no discurso; para tanto a estrutura rítmica
deve ser adaptada aos assuntos, de tal modo que se consiga conciliar
ritmos mais duros com os assuntos desagradáveis e provocar nos ouvintes
aquela mesma aversão que o orador manifesta (Inst. or., IX, 4, 126).
Nam iudicis animus uarie praeparatur: tum miserabiles esse uolumus, tum
modesti, tum acres, tum graues, tum blandi, tum flectere, tum ad diligentiam
hortari. Haec ut sunt diuersa natura, ita dissimilem componendi quoque
rationem desiderant.
62
Quintiliano está se referindo às cláusulas métricas39, recurso precioso para
o alcance do ritmo no discurso. Para o rétor, as sílabas longas são mais elevadas
e graves, e as breves, são mais ligeiras. O ritmo passa a ser enérgico se as sílabas
passam de breves a longas; mas brando se passam de longas a breves: clausula
quoque e longis firmissima est, sed uenit et in breues, quamuis habeatur indifferens
ultima (“também a conclusão de uma sentença com sílabas longas se torna firme;
contudo, pode se encerrar também com breves, embora se considere a última
como indiferente” – Inst. or. IX, 4, 93). Na verdade, o mestre romano em pouco
difere do que prescreve Cícero sobre esse assunto. Quintiliano prefere os pés de
3 sílabas, e Cícero opta por 4 sílabas (como o péon – , com uma longa e três
breves) ou por 5 (como o dócmio – – –, com uma breve, duas longas, uma
breve e outra longa). Quintiliano considera que estes não são pés, mas ritmos
completos, pois são compostos de dois pés: o péon pode ser considerado a união
de um troqueu (– ) com um pirríquio (). Já o dócmio pode ser formado de
um anfíbraco ( – ) e de um iambo ( –). Os parágrafos 93 a 111 são dedicados
a dar exemplos de uso das cláusulas, mas sem diferenças significativas do que já
escrevera Cícero no Orator. Porém, a disposição do tema eminentemente didática
com que Quintiliano apresenta a questão do ritmo na sua obra consagra a elocutio
e cristaliza a maior preocupação de Cícero e razão última do ritmo como recurso
retórico. O fato de que a técnica faça tudo parecer sem técnica: dissimulatio curae
praecipua, ut numeri sponte fluxisse, non arcessiti et coacti esse uideantur (“o
importante é não demonstrar esforço despendido em sua montagem, para que
os ritmos deem a impressão de fluir espontaneamente e não ter sido buscados e
até forçados” – Inst. or. IX, 4, 147).
Considerações finais
63
Portanto, do mesmo modo que os inícios e as conclusões possuem muita
importância, uma vez que começa e termina o sentido, assim também
no meio existem alguns efeitos que se imprimem suavemente, como
os pés dos corredores, que deixam uma certa impressão, embora não
permanente (Inst. or. IX, 4, 67).
40
Inst. or. 9, 4, 125. Cf. também De or. 3, 182; Brut. 34; Inst. or. 9, 4, 68. Obviamente, a noção
“unidade respiratória” ou de “fôlego”, como vimos acima, em Dionísio de Halicarnasso, é bastante
imprecisa e vaga. Mas a insistência dos antigos em utilizar esse “critério” – também usado por
Aristóteles (Rhet. 3, 9) – indica que existe nele alguma recorrência e importância. Em Cícero,
aliás, uma especificação desse problema oferece alguma diretriz diferenciada à abstração inicial.
Assim lemos no Orator, 228: “que o discurso não se arraste infinitamente como um rio – pois deve
parar, obrigado não pelo fôlego dos locutores, nem pela pontuação do copista, mas pelo ritmo.”
(Ne infinite feratur ut flumen oratio quae non aut spiritu pronuntiantis aut interductu librarii, sed
numero coacta debet insistere). Nesse sentido, existe um condicionamento que pode auxiliar a
entender a delimitação extensiva do período, nossa assim chamada working memory (WILLET,
2002, p. 7). A “memória operativa”, já discutida por nós em outro momento (JESUS, 2013), diz
respeito a “um sistema cognitivo que proporciona um armazenamento temporário de informações
necessárias ao desempenho de uma ampla série de tarefas, inclusive o uso natural da linguagem
(compreensão, produção e recordação do discurso)”. (A cognitive system that provides temporary
storage of information necessary to perform a wide range of tasks, including natural language
use (comprehension, production and discourse recall). Então, a percepção do ritmo poético, por
exemplo, é essencialmente um fenômeno auditivo, para o qual a sintaxe e a semântica fazem
uma contribuição auxiliar, uma vez que o ritmo só existe se nós ouvirmos um poema recitado
ou o lemos em voz alta (ou mesmo se fizermos uma subvocalização para nós mesmo). Portanto,
limitados que são pela memória operativa, os kóla, no seu conjunto articulado no período, devem
ter o tamanho razoável para serem escutados e compreendidos como totalidades rítmicas, algo
que a colometria helenística parece ter percebido bem (WILLET, 2002, p. 17).
64
Referências
BARTHES, Roland. A retórica antiga. In: COHEN, Jean (et alii). Pesquisas de retórica.
Trad. de Leda Pinto Mafra Iruzun. Petrópolis: Vozes, 1975, p. 147-232.
CICERÓN. L’orateur: du meilleur genre d’orateurs. Texte établi et traduit par Albert
Yon. Paris: Belles Lettres, 1964.
SENGER, Jules. A arte oratória. Trad. Carlos Ortiz. 2. ed. São Paulo: Difusão
Européia do Livro, 1960.
STURTEVANT, Edgar H. The pronunciation of Greek and Latin. 2. ed. Chicago: Ares
Publishers, 1975.
65
Arquivo, coleção, memória:
um encadeamento de imagens na poesia brasileira
(Carlos Drummond de Andrade, Luiz Bacellar e
Astrid Cabral)
Fadul Moura
66
O presente texto propõe discutir o trabalho crítico-criativo de possíveis gestos
mnemônicos de organização do mundo e dos afetos por parte de poetas brasileiros.
Para este espaço foram selecionados três autores, a saber: Carlos Drummond de
Andrade, Luiz Bacellar e Astrid Cabral. Tal seleção adveio do exercício poético
em textos que trazem formas de apresentação da memória. Por esse caminho,
compreende-se que suas poéticas aludem a ideias de arquivo. A opção por ideias
de arquivo, destacando com o plural a amplitude semântica e teórica que essa
palavra acessa, diz respeito ao modo com que cada poeta trata aquilo que pode
ser elaborado com e pela memória. As relações que estabelecem com os alvos a
serem arquivados nem sempre buscam uma preservação acolhedora de objetos
do mundo nem procuram com eles expor uma narrativa ordenada da História.
Por vezes, eles tencionam ironicamente o que existe e se voltam ao que falta ou
ao que não está mais apresentado em sua totalidade, de sorte que seus poemas
sugiram um recolhimento afetivo do mundo por meio de seus fragmentos.
Michel Foucault, ao tratar sobre a ordem, aponta que ela é
[...] ao mesmo tempo aquilo que se oferece nas coisas como sua lei
interior, a rede secreta segundo a qual elas se olham de algum modo
umas às outras e aquilo que só existe através do crivo de um olhar; de
uma atenção, de uma linguagem; e é somente nas casas brancas desse
quadriculado que ela se manifesta em profundidade como já presente,
esperando em silêncio o momento de ser enunciada (1999, p. XVI).
67
leitura, é participante do processo criativo, por ser indissociável. Com a ordenação,
o arquivo possuirá legibilidade para o escritor. Isso não quer dizer que esse arquivo
seguirá um parâmetro disciplinar, mas que irromperá o enquadramento fechado
de disciplinas específicas à medida que a recolha dos elementos que o formarem
já será um ato de rebeldia contra os campos ou grupos de onde tais elementos
inicialmente forem retirados, para, assim, serem transportados ao arquivo pessoal.
Destarte, esse transporte tenciona o ideal de ordem ao passo que modifica, parcial
ou completamente, o sentido das coisas. Na mesma direção, a própria ideia espacial
do arquivo pessoal é alargada, podendo ir além do espaço convencional de um
escritório em direção a outros espaços de vivência do autor, o que pode colaborar
com o processo criativo na medida em que o substrato para a composição da poesia
adquire natureza que extrapola a palavra.
Se for possível fazer um deslocamento dessa imagem de arquivo exposta
pelas palavras do crítico e encará-la como um motivo para a produção literária dos
poetas em tela, ficará mais evidente a proposta plural mencionada. Lê-la como uma
imagem poética abrirá um caminho que perpassará os três brasileiros com arquivos
diferentes através das épocas. Tendo como ponto de partida uma perspectiva de
caráter interdisciplinar e comparativista, procura-se investigar o modo como
eles se apropriam de categorias como arquivo, coleção e memória e realizam um
movimento delas para seus livros quando estão a tratar de objetos, de espaços e de
afetos. Com esse eixo, levanta-se esta hipótese de aproximação de tais poetas por
meio do procedimento de arquivamento pela palavra poética, além de um trajeto
que inicia na crítica aos modelos taxonômicos de registro, passa pela observação
do conceito de arquivo e alcança na coleção benjaminiana um modo criativo de
estruturação do mundo. Intenta-se, por fim, discutir como o trabalho com a palavra
poética mostra a relação entre sujeito lírico e memória afetiva, buscando evidenciar
que as estratégias de registro dessa memória repercutem na fatura textual.
68
e do conhecimento – não obstante atendam à necessidade humana
de dar sentido à multiplicidade e ao caos do mundo – são também
mecanismos legitimados pela lógica burocrática do mundo moderno
e contemporâneo, com a função de ordenar, controlar, hierarquizar e
rotular nossa vida cotidiana [...] (2009, p. 70-71).
[...]
Pouco deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.
69
[...] Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
70
encontro das palavras de Maciel. Aqui se destaca: resultado de uma seleção prévia,
tais “objetivos, sentimentos, delírios, fatos, percepções” são listados de forma
relativamente ordenada em um arquivo do tempo, perfazendo um caminho pelo
diminuto até chegar ao alcance do que não mais se vê.
As sentenças do poema trazem cortes sintáticos que favorecem a
coerência interna à mensagem, pois são fechadas em uma estrutura igualmente
fragmentária. Concentrando, com isso, a atenção do leitor sobre os nomes, vê-se
um espólio deixado após a destruição. As coisas enleadas pelos resquícios da
subjetividade poética – a julgar pelas poucas vezes que o eu é enunciado – vão
ganhando matizes de dor. Destarte, o resto pode, ainda, ser algo que se herda.
Da genética ao comportamento, o poema enumera o que foi deixado do tempo
anterior, em um ato de “[...] registrar/catalogar as coisas e lembranças do passado,
conferindo-lhe o papel de ‘testemunhos’ (aqui, no sentido arqueológico do termo)
de um tempo irrecuperável, de modo a fazê-las durar [...]” (MACIEL, 2009, p. 71).
Evocando a memória como dispositivo de manutenção do amálgama feito de
coisas e sentimentos, o poema apresenta as “folhas” como índice de resistência:
uma vez retiradas delas a capacidade de comunição pela voz, a presença delas
deverá ser lida por quem as acessa. Elas conotam uma ação em lento crescimento,
alimentando a expectativa de sobrevivência. Apesar dos destroços de guerra,
a força vital do que é afeito à terra não foi extinta, logo, dentre imagens que
reportam a ruínas, a vontade de sobrevivência atravessa não só a terra solapada,
mas também os tempos. Reconhece-se, assim, a durabilidade do registro e a
potência de transmissão que o poema encena. Ser testemunho do mundo equivale
a dar sinais pelos quais possam nascer novas narrativas a partir das memórias
das coisas, do espaço e dos afetos.
71
eles, ao reconhecimento de que o direito aos arquivos é antevisto por um direito
à memória, explicitando os entrelaçamentos da última à ação do esquecimento.
O que não é acolhido pelo sentido de arquivo definido por Derrida, portanto, é
excluído da possibilidade de interpretação do arconte, logo, não é transformado
em tema de uma narrativa possível de transmissão. Eis o caso dos motes dos três
autores aqui elencados e o que os incita ao canto poético. Isso exige deles uma
nova ideia de arquivo. No caso de Drummond, ele recupera o conceito de lista
para alterá-lo, enquanto Luiz Bacellar e Astrid Cabral colecionam lembranças e
coisas, além de cartografar os espaços da cidade.
Se Drummond é um poeta que realiza um inventário dos restos para, com eles,
compor o seu arquivo à sua maneira, Luiz Bacellar – próximo a essa atitude diante
dos fragmentos – considerará a memória como lixo do qual nascerão os motivos
de sua poesia. O eixo entre os autores é a tomada dos fragmentos de um tempo
pretérito como forma de acesso a ele. Seja de um espaço destruído pela guerra, seja
de um “monturo” dos restos da cidade, é certo que remontam a um tempo anterior
ao processo de transformação que levou os lugares à ruína. Seus textos, na medida
em que são inventivos, elaboram lembranças a serem filtradas; consequentemente,
elas poderão ser trabalhadas e novamente expostas. Ponderando sobre a separação
do que é ou não institucionalizado, a simples ação de “jogar fora” prevê a criação de
outro espaço. O lixo surge como reserva temporária do que não foi selecionado, do
que deve ser preparado para o descarte. Comparado ao arquivo institucionalizado,
o lixo é a desordem e está para o que há fora lógica operadora e, ao mesmo tempo,
nega o método de sistematização do mundo; ou, ainda, traduz um espaço segregado
pela ordem do mundo, sobre o qual ela não impele sua ação com a mesma força,
portanto, abre caminho para a criação.
Em Frauta de barro (2011 [1963]), a presença do lixo aparece no terceiro
poema da sessão de abertura, intitulada “Variações sobre um prólogo” (2011,
p. 21-23), além do poema “Balada da rua da Conceição” (2011, p. 41-50), sendo a
última parte de “Romanceiro suburbano”. Enquanto o primeiro poema apresenta
o ponto de partida do livro, a balada traz o espaço da cidade antiga em contraste
com situações do presente. Ressaltam-se esses textos com o objetivo de elucidar
o procedimento de seleção das coisas – e dos afetos –, pois ele tem como fonte o
que advém do descarte. Em seus versos, Bacellar ressignifica o valor adotado ao
lixo, tal como o faz Drummond com os destroços.
Leia-se o poema III de “Variações sobre um prólogo”:
72
E, mais puro que tudo isso,
essa anárquica inscrição
feita no muro a carvão.
73
ambos são discordantes por possuírem razões e finalidades particulares. Com
base nessa diferença, a atitude colecionadora do poeta em Frauta de barro, a
qual foi detalhada em outro espaço,41 pode ser lida como uma formação de uma
modalidade de arquivo que também escapa ao conceito nomológico. O diminuto é
elevado à condição de “tema” por ser contíguo à inscrição anárquica no muro, ou
seja, porque fundamenta a atitude que impele arbitrariamente a ordem e contra
ela se rebela por meio da arte. A proximidade do ato de colecionar com a memória
aponta para o mundo desordenado. Esse, entretanto, é o espaço necessário para
a criatividade. No caso do livro de Bacellar, é na identidade entre lixo e memória
que a coleção se torna significativa: com o manuseio das lembranças e com o
uso da palavra poética, ele estará retrocedendo no tempo à revelia da força do
presente (momento em que avança geograficamente pelo espaço da cidade).
Assim, o poeta, como o colecionador, salva os fragmentos do mundo.
Mirian de Carvalho, ao escrever sobre Frauta de barro, declara:
[...]
(Onde irão morar os ratos
Os Ratos e o lixo
de ventre gordo e pelado?
e a saparia canora
da rua da Conceição?
Onde irão os jornais velhos?
Onde? E as garrafas quebradas?
Pra onde os cacos de vidro?
Pra onde os cacos de telha?
Pra onde as latas de conserva
vazias e enferrujadas?)
[...]
74
momento do livro. Em atitude semelhante ao poema terceiro de “Variações sobre
um prólogo”, a enumeração dos cacos recupera a imagem do lixo. Os termos
possuem qualificadores que indiciam a matéria de que são feitos ou a ação do
tempo sobre ela. Palavras como “velhos”, “quebradas”, “vazias” e “enferrujadas”
são desígnios que combinam o tempo e o substrato das coisas, sempre descritas
por um campo semântico que joga com o valor do tempo para empurrá-las à ideia
do monturo. A isso se soma o cruzamento entre guarda e morada. A destruição
que transforma o espaço em escombros indistintos do lixo põe em causa a perda
do abrigo. O eu lírico, portanto, utiliza dos animais como símbolos da perda das
referências não só geográficas, mas também afetivas. As alterações no espaço
cortam os laços de afeto que foram construídos pela história dos que habitavam
aquele lugar. Agora, uma vez que a ruína é o que resulta também da cisão no
plano dos afetos, ela simboliza o estado de espírito do eu lírico, o qual se confunde
com o espaço para extrair dos restos de ambos fragmentos que promovam uma
reestruturação que só é possível pela virtualidade da memória. Assim, o poeta,
em atitude colecionadora, arrola tais imagens para amalgamá-las aos animais que
provocariam nojo, perfazendo um movimento diferente quando informa o canto
dos sapos. Essa diferença diz respeito à outra música, suscitando a percepção do
leitor para outra cadência a ser contemplada, porque também bela.
Nesses jogos de imagens, Bacellar apresenta uma nova exigência: sua coleção
não se limita a coisas, mas se apreende, por vezes, os fragmentos da cidade,
associando a eles algumas histórias da comunidade. Isso significa que a coleção
do poeta extrapola o caráter convencional da coleção de objetos para servir-se do
poder mais amplo da memória. Ele registra causos que fizeram parte da história
da cidade, unindo-os à própria história, a qual se desenha na medida em que ele
caminha pelo espaço urbano. O canto em Frauta de barro encontra no poeta o
laço possível entre subjetividade e mundo. E é por meio do canto dele que esses
dois últimos termos se tornam indissociáveis. A coleção de Luiz Bacellar, desse
modo, é uma coleção de afetos por ele vividos no passado e revividos no presente
por meio da memória.
75
vez sentidos não trazem sensações boas; ao contrário, são fantasmagóricas. E sua
visitação não corresponde a uma divindade, mas a uma assombração. Desse modo,
já em Infância em franjas Astrid Cabral afasta-se da ambivalência da recordação
romântica. O leitor não mais estará diante da “arma que provoca a mazela do
tempo e o medicamento com que se trata a mazela” (ASSMANN, 2011, p. 118) em
elemento uno. Acredita-se, portanto, que tal caminho afaste-a da poesia também
de Bacellar, em virtude de os afetos em seus textos serem outros.
Retomando as palavras de Walter Benjamin e a ideia de coleção, destaca-se
que “o mais profundo encantamento do colecionador consiste em inscrever a coisa
particular em um círculo mágico no qual ela se imobiliza, enquanto a percorre
um último estremecimento (o estremecimento de ser adquirida)” (2007, p. 239).
Dizendo de outro modo: a circunscrição das coisas que se dá anteriormente a
serem transladadas ao âmbito da coleção encontra paralelo com um encantamento
desestabilizador, como se o colecionador transformasse o estado das coisas,
purificando-as da condição mundana para, enfim, transportá-las ao mundo da
coleção. No poema “Coleção de fantasmas”, retirado de Íntima fuligem (2017, p.
36), observa-se novamente a estratégia enumerativa na estrutura sintática dos
versos, porém, agora a apresentação dos eventos retoma a atitude do colecionador
benjaminiano de estremecimento paulatino, para, apenas ao final do poema,
arrematá-los:
76
Para Jeanne Marie Gagnebin, “a memória vive essa tensão entre a presença
e a ausência, presença do presente que se lembra do passado desaparecido, mas
também presença do passado desaparecido que faz sua irrupção em um presente
evanescente” (2002, p. 44). Desdobrando essas palavras para o poema, encontra-se
a tensão entre presença e ausência nos termos que remetem ao fogo, símbolo de
transformação sinalizado pela “brasa” e pela “cinza”. Se a primeira se aproxima
do presente pelo calor que aquece, a segunda alude a “cinza” pelo arrefecimento,
marca da inexistência da potência antiga. É necessário observar que o fogo não é
uma palavra que esteja escrita no poema, mas que, pelo jogo de associações criado
pela palavra poética, é inerente à ideia do amor. Se foram “criaturas bem amadas”,
foram-no com intensidade e em tempos não necessariamente coincidentes. É na
ação de recolher o passado que o eu lírico transporta as duas ideias do fogo para
o agora e as expõe para a contemplação do leitor.
A declaração da antiga existência dos “sorrisos” confere relevância ao
sentimento de alegria, contrabalançado pelos “lábios” em forma de “cofre”,
sugerindo um aprisionamento ou, ainda, a opacidade das expressões. Essa recusa
apontada pelo semblante das pessoas foi calcada na memória do eu lírico. Agora,
ela aparece “plena”, sobrepondo a escuridão à luminosidade.
O lirismo de Astrid Cabral é acentuado no momento em que as inquietações
são menos nítidas. As imagens selecionadas ficam mais abstratas, como se o leitor
escavasse as lembranças e não conseguisse mais as definir com precisão. Isso não
se trata de uma medida que retome a mnemotécnica antiga, mas algo próximo
à meditação. Tal característica lembra a associação que Aleida Assmann aponta
entre meditação e a metáfora da escavação, colocando em evidência a ideia de
profundidade. A escavação pela memória é associada ao exercício meditativo
por esse permitir a descida ao que é recalcado. Para Assmann, “[...] [c]om
profundidade associa-se um modelo espacial de memória, que vincula o espaço
não com a capacidade de armazenamento e ordenação, mas com inacessibilidade
e indisponibilidade [...]” (2011, p. 175). Isso auxilia a interpretação do poema
ao passo que permite pensá-lo em camadas. A cada experiência vivida – agora
em forma virtual – o leitor acompanha jogos associativos que o afundam na
interioridade dolorida.
Escrevendo sobre a composição do texto poético, Octavio Paz ainda declara:
“[o] poema [...] será a revelação daquilo que a exclamação assinala sem nomear.
Digo revelação e não explicação. Se o desenvolvimento é uma explicação, a
realidade não será revelada, mas elucidada, e a linguagem sofrerá uma mutilação:
teremos deixado de ver e ouvir para somente entender” (1982, p. 57). Colocar
a revelação em primeiro plano diz respeito à observação do mundo no poema
como fenômeno que se abre. O caráter fenomênico do evento é anterior ao
apanhamento pela compreensão. Entender, segundo esse pensamento, estaria
mais próximo ao racionalizar, isto é, àquilo que a razão prepara para fechar em
um conceito. A explicação, portanto, é distante da revelação porque ela prevê a
razão sobreposta ao evento.
Com o esclarecimento de Octavio Paz, nota-se que, a cada camada do poema
de Astrid Cabral, as palavras aparecem como fenômenos: “inquietas” e “sôfregas”
denotam estados de espírito que desestabilizam o eu lírico. Os disparos sugerem o
ferimento e, com isso, corroboram as memórias das dores. Lentas, elas se alongam,
estendendo suas novas vivências no presente lírico como traumas. A imagem
da assombração que migra de um livro da autora para outro transforma-se em
77
fantasma já prenunciado pelo título do poema. Da “grandeza” à “miudeza”, as
ações das “criaturas” perturbam o eu lírico, fazendo do passado um presente que
também não acaba. Essa dilatação dos tempos ilustra que “ao ato do recalque
segue inapelavelmente o retorno do que foi recalcado” (ASSMANN, 2011, p.
188). Destarte, a ideia espacial evocada pela proposta da profundidade, por mais
impreciso que possa ser o reino da memória, ratifica a imagem final do poema:
o desfile dos fantasmas explicita que o espaço reservado para a construção da
coleção é a própria subjetividade. Em razão dela, as imagens de todo o texto são
turvas ou retorcidas; e por esse motivo, no “Hoje” revela-se o Unheimlich freudiano
em “desfile / secreto” e “estranho”. O armário de Infância em franjas aparece em
Ínfima fuligem reconfigurado: agora, o que abarca os “fantasmas” é duplamente
colecionadora e coleção. Como um jogo de espelhos, ela se volta a si mesma para
do mais interno nascer o seu arquivo de afetos e de imagens.
Por fim, Astrid Cabral elabora uma coleção de ordem diversa da que foi
erigida por Luiz Bacellar. Enquanto ele se volta para a exterioridade dos objetos e
do espaço e mistura-a a seus afetos no gesto da palavra poética, a poetisa, em um
trabalho quase arqueológico, mergulha nas camadas da subjetividade. Com essa
comparação, busca-se mostrar que a estratégia da coleção não se limita a uma
única forma de apresentação de sua rebeldia contra a classificação do mundo.
Apesar dos alvos distintos, ambas as coleções desestabilizam a ordem conhecida
fora dos poemas.
Referências
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ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória
cultural. Trad. coordenada por Paulo Soethe. Campinas: Editora da UNICAMP, 2011.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2002.
PAZ, Octávio. O arco e a lira. Trad. de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1982.
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Bichos e visagens na literatura indígena amazonense
80
Considerações iniciais
O animal na literatura
81
Na mitologia é possível encontrarmos animais com características
sobrenaturais, como o Deus Anúbis, com corpo humano e cabeça de um chacal,
ou as Sirenes, seres marítimos que possuíam cabeças humanas e corpo de sereias.
Criaturas como estas eram munidas de autoridade e muita sapiência. Mais adiante,
essas criaturas assumiram dois papéis distintos e significativos para aqueles povos,
uma vez que muitos continuaram acreditando que eram seres dignos de respeito
e devoção, entretanto, outros passaram a encará-los como criaturas demonizadas.
Quanto a essa demonização do animal, a escritora Maria Maciel (2016), em
Literatura e Animalidade, explica que:
82
Essas narrativas propagam e valorizam as diversidades culturais e linguísticas
presentes na formação de uma nação.
Eram nos mitos e lendas, portanto, que os povos antigos, encontravam um modo
de contar e recontar o modo como viviam, cultura e crenças a outros povos. Logo,
essas narrativas sofreram alterações no decorrer dos séculos, pois, inicialmente, eram
repassadas, principalmente, por meio da oralidade, passíveis a variações.
83
representação. As árvores, os animais, os seres visagentos, os rios, a terra, etc. De
tal modo, é muito comum que todos esses elementos citados sejam representados
na ficção indígena. A começar pela estreita relação do escritor indígena com a mãe
natureza que está relacionada diretamente com o fazer literário. Os indígenas
amazonenses Roní Wasiry Guará, Lia Minapoty, Yaguarê Yamã, Jaime Diakara,
Márcia Kambeba e Tiago Haiki são grandes exemplos de escritores que utilizam
como matéria artística a vida na floresta, as lendas, os mitos e os costumes de
suas nações tribais.
No que diz respeito à relação do índio com o animal, podemos inferir que
não há distinção entre eles, pois o índio compreende o animal como um ser da
mesma espécie, já que experimentam os mesmos hábitos. Para Castro (2002),
o índio não vê o animal como um ser diferente, porque acredita que o bicho e
outros seres, como a natureza e os espíritos, também se veem como humanos:
84
“O caçador e a onça”
85
A humanização da personagem animal corresponde ao momento em que a onça
se sensibiliza com a história do pescador e decide não lhe fazer mal, de tão
emocionada que ficou. O que vai de embate com as características selvagens
desse animal.
Dando sequência à narrativa, depois do ocorrido o homem fez boa pescaria
e voltou pra casa feliz. Passado o susto, sua mulher cuidou dos peixes. Antes da
refeição o homem fez sua oração para agradecer pelo alimento. Nesse momento,
considerado como o clímax da narrativa, somos surpreendidos novamente com
a presença da onça. Ela também agradecia pelo alimento, que seria ele. Mas o
lamento e a esperteza do pescador o livram novamente de ser comido pelo animal
selvagem, como se observa no excerto abaixo:
Mais uma vez, o homem pediu à onça que tivesse pena dele, e ofereceu
um de seus peixes a ela. A onça, muito compreensiva e faminta, aceitou.
Sentou ao seu lado e juntos saborearam as matrinxãs assadas.
A onça foi para a toca contente. Ela e o homem se tornaram muito amigos.
A partir de então, só pescavam juntos (YAMÃ, 2012, p. 59).
86
Ilustração de Yamã reproduzida de Contos da floresta. Peirópolis. 2012. p. 38.
87
“História de Kãwéra”
88
Na passagem que relata a reação de Yaguajé ao sentir um grande vulto às
suas costas, se conta ainda que ele tinha consciência dos perigos daquele lugar,
mesmo assim ele conteve o medo, afirmando para si próprio “Não é nada”. O índio
conhecia os perigos por meio das lendas que ouvira através de seu povo. Para
Yaguajé e seu povo, o lago Kayawé era esse universo desconhecido e assustador.
Edgar Allan Poe, grande estudioso da temática do medo na literatura, foi
um dos precursores do uso extensivo do medo em narrativas românticas. Poe
costumava, intencionalmente, abordar em suas obras elementos negativos,
sombrios e macabros, como o gato preto, o corvo, que em algumas culturas
simbolizam algo negativo, ruim. O uso desses elementos excêntricos causa o
medo e a repulsa, justamente por se tratar de seres incomuns.
Na passagem que relata quando o índio Yaguajé tenta novamente capturar a
anta e sente um vulto ainda mais forte, o autor nos revela do que se trata aquele
vulto misterioso: “Mas, rapidamente viu descer à sua frente um terrível monstro
alado, de asas de morcego. Ao pousar, deixou à mostra dentes enormes e garra,
com as quais arranhou o homem nas costas” (YAMÃ, 2012, p. 13). Portanto, aqui
nos é apresentada mais uma história recontada tradicionalmente pelos indígenas,
o mito do vampiro, narrativa mitológica que ainda hoje gera muito medo nas mais
distintas comunidades, o que ocasionou a criação de diversas lendas similares,
como a “Lenda dos Kupen-Dyêb, os índios vampiros da Amazônia” e a “Lenda
dos Caraybaquera”, ambas criadas sob grande influência do mito do vampiro.
Sem sucesso, Yaguajé retorna para casa e conta para a esposa e cunhados
o que havia acontecido no Lago, e estes o acompanham até lá para verem o que
acontecia. Eles clamam para o que o monstro apareça e furiosamente ele surge e
diz: “Esses animais são meus, ninguém pode matá-los. Se um de vocês voltarem
aqui, eu o devorarei” (YAMÃ, 2012, p. 13). Os homens retornaram assustados para
a aldeia e prometeram nunca mais retornar ao lago, no entanto, dias depois, um
dos cunhados de Yaguajê, o índio Dizoáp, resolve voltar lá e enfrentar o monstro.
O monstro o recorda do aviso que dera da última vez e Dizoáp insiste em dizer
que o mostro não existe e que se tratava apenas de um fruto de sua imaginação,
então o mostro enfurecido o ataca:
O bicho desceu, atracou o homem com suas garras firmes e o levou para cima.
- Não falei que eu existo? Agora você vai ser um dos meus.
O rapaz finalmente reconheceu o poder do bicho:
- Largue-me, por favor! Prometo não voltar mais aqui
- Não! Você me desafiou, agora não tem perdão. Eu lhe dei uma última
chance e você não aceitou. Aguente as consequências. Por ter desafiado
um Kãwéra, você será castigado (YAMÃ, 2012, p. 15-16).
89
Assim como outras lendas contadas pelos indígenas, a lenda do Kãwéra é uma
história fantástica, permeada de mistérios sobrenaturais, que esses povos transmitem
aos mais novos na tentativa de manutenção e preservação dessas narrativas.
Considerações finais
90
Quanto à relevância dessas narrativas indígenas, entendemos que
preservar por meio das letras registradas no papel é também uma forma da
perpetuação desses saberes. Embora não se restrinja somente ao livro impresso.
Ler obras indígenas é permitir a abertura do próprio sentido de texto, que
não se limita unicamente à leitura ficcional, é preciso ler culturalmente as
tradições e as ancestralidades.
Referências
ECO, Humberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
THIÉL, Janice. Pele silenciosa, pele sonora: a literatura indígena em destaque. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
91
Poéticas, éticas e estéticas de uma cidade
entre o rio e a floresta, na Amazônia acreana
93
seus escritos e inventar mundos, procurando se distanciar de certas preocupações
com similitudes, como é o caso de Miguel Ferrante e a cidade de seu romance
O silêncio, Santa Efigênia, com seu “casario de madeira, debruçado sobre as
águas barrentas do rio. As alteadas torres da Igreja Matriz. O longo rosário das
mangueiras acolhedoras. Ao fundo, fechando os campos estreitos, a muralha
da floresta”44. Nessa ficção do mundo secular do autor, “as ruas e as praças”,
a exemplo das mangueiras, são conjugadas com o “rio de águas barrentas”,
um rio que separa a cidade em duas partes, duas metades. Uma cidade fictícia,
mas fundada nos mesmos preceitos sedentários da narrativa historiográfica – e
sua pretensão em registrar os “fatos tais quais” –, ou seja, uma cidade produto
originado de um sujeito errante, o coronel Alexandre de Almeida Argolo, Barão de
Santa Efigênia, que ali chegara ainda menino, “entre flagelados, no porão de um
navio”, mas destinado a “construir aquele mundo” e fundar aquela cidade “nas
lonjuras dos tempos”, erguendo suas casas com madeiras retiradas da floresta,
em meio aos “charcos”, em luta de vida e morte contra “índios, feras, piuns” e
“doenças” que ia vencendo e “impondo a ordem” naquela “terra de ninguém”,
mesmo quando teve que enfrentar o “estrangeiro” que ultrapassara a fronteira
boliviana nas confluências dos rios Bêni e Abunã 45.
Aos olhos do emblemático Barão, criado pela narrativa de Miguel Ferrante,
mas, especialmente, acompanhando a descrição do narrador em seu desvelar
das lembranças, pensamentos e andanças do anônimo personagem que, a partir
do segundo capítulo, surge de modo intrigante no enredo de O silêncio, Santa
Efigênia aparece sob o signo da ruína, das trevas, da solidão, do silêncio, do
provinciano cotidiano de uma espécie de “cidadezinha qualquer”, de “vida besta”
e sem passado ou de um passado para ser esquecido, para não ser dito, para
ser silenciado. Uma cidade caracterizada por um clima sórdido, propenso aos
fungos e parasitas inimigos dos seres humanos; clima insalubre, simbolizado na
dualidade entre o mormaço de um sol escaldante e as chuvas copiosas, com suas
águas diluviais escorrendo “pela terra em fúria” e lavando as “impurezas” de seres
condenados pelo silêncio e pelo silenciamento. Uma cidade de casas “caquéticas,
envelhecidas, timidamente amparadas umas às outras, ao longo dos calçamentos”,
com suas “janelas, como olhos sem vida, ressumando decadência e tristeza”46;
cidade de sombras, de ruas silenciosas e casas tortas, como tortas são as pessoas
e suas ambições; casas e prédios com assoalhos rangendo comprimidos pelas
pisadas dos que passam sobre seus pisos e chãos de “tábuas desjuntadas”. Uma
cidade de cenas repetidas, separada dos seringais onde estariam os trabalhadores
extrativistas e as “muralhas da floresta prisão”; cidade onde mesmo pessoas
poderosas, como o Barão e seus protegidos ou os funcionários públicos de carreira,
juízes, delegados, promotores, jornalistas, poetas juristas ou médicos se revezam
em repetidos rituais entre a rua, a repartição pública, a casa de jogos, o bar, o
beco e as beiras de rio e suas embarcações de inverno ou suas friagens de verão;
cidade de pares de namorados passeando pela tranquilidade da praça, enquanto
agrupamentos de pessoas “conversam ao longo das calçadas” ou “caminham,
sem pressa, pelas ruas” e outras pessoas, cujos “rostos se debruçam nas janelas”,
ouvem o badalar dos sinos ou os sons do primeiro e único automóvel que transita
44
Ferrante, O silêncio, 1979, p. 62.
45
Ferrante, O silêncio, 1979, p. 62-63.
46
Ferrante, O silêncio, 1979, p. 30-31.
94
nos fins de tardes e nas manhãs de domingos em passeios “indo e vindo de uma
ponta a outra da Rua da Frente, da Praça da Matriz ao Largo dos Aflitos”47.
A cidade de Miguel Ferrante é marcada pelo paradoxo entre a vida
pachorrenta e as paixões exacerbadas a incendiar os espíritos e acirrar os ânimos
de seus habitantes. Cidade de vozes reprimidas e povo paciente, recalcado e
pusilânime frente às violências de governantes “pau-mandados” dos grandes
proprietários de terras. Cidade caótica e anômala, de pandemônio e comícios
ruidosos, seguidos de festas e bebedeiras particulares; de imprensa amordaçada,
de intervenções e perseguições políticas ou supressão de créditos, demissões,
suspensão do fornecimento de luz elétrica ou violação de correspondências dos
opositores e “inimigos políticos”48. Cidade de mulheres presas aos limites do lar
patriarcal e homens livres para pular a cerca do beco dos amores profanos; de
pretos adjetivos, sem sobrenomes, calados, indiferentes, casmurros, derreados,
serviçais, obedientes e, ao mesmo tempo, preguiçosos e perigosos. Cidade de
transeuntes indiferentes e de escuridão crescente, de abandono e trevas; cidade
de poucas vozes a ser erguer contra o silêncio da omissão e da covardia; cidade
de intervenções ruidosas, de inaugurações e reinaugurações de praças e ruas
com nomes de “coronéis-seringalistas, comerciantes, doutores, vereadores ou
imperadores” do Brasil e presidentes ou ministros da república desse mesmo
país; de pequenos jornais e colunas sociais anunciando casamentos, aniversários,
mortes, nascimentos ou festas com cardápios e shows afrancesados. Cidade
devastada por um “sol de rachar” sobre as cabeças de seres fantasmagóricos,
vazios, áridos, solitários, sepultados em paredes silenciosas e indiferentes em
uma terra distante e sem esperanças49.
Escrito desde a cidade de São Paulo, O silêncio foi concluído em 1973,
mas a publicação de sua primeira edição se deu em 1979, com o autor fazendo
questão de avisar aos leitores que suas personagens “são fictícias, com exceção
do poeta Juvenal Antunes”, que ele conheceu nos tempos de juventude e tratou
de homenagear em seu texto literário. Esse dado é interessante, pois, no contexto
da publicação dessa obra de Miguel Ferrante, já não era hegemônica a forma do
romance realista – e suas matizes regionalistas –, caracterizado pela “representação
do social presa aos limites impostos pela situação do vivido e conhecido pelo
receptor”. Uma mimese em que a palavra era “bloqueada em sua potência de
criação de mundos pela obediência a uma visibilidade e dizibilidade da realidade
já cristalizada, sob pena de não ser a obra considerada fiel ao real”50. Porém, não só
pela notada influência de Juan Rulfo, em passagens que são claramente inspiradas
na face do realismo mágico encontrado em Pedro Páramo, essa narrativa literária
de Ferrante apresenta muitas marcas do realismo e do viés regionalista, que
procura disfarçar preocupando-se com a linguagem esteticamente lapidada na
trama do romance e no psicológico dos habitantes da Santa Efigênia de O silêncio.
Empenhado em se distanciar dos ambientes dos seringais, Ferrante inventa
uma cidade cujas paisagens humanas ou naturais são pouco descritas e, quando
aparecem, vêm à tona de modo subjacente “à vida e conduta das personagens”,
como destacou Caio Porfírio Carneiro, em apresentação à primeira edição, escrita
no ano de 1975.
47
Ferrante, O silêncio, 1979, p. 62.
48
Ferrante, O silêncio, 1979, p. 38.
49
Ferrante, O silêncio, 1979.
50
Albuquerque Júnior, A invenção do nordeste e outras artes, 2009, p. 235.
95
Em interessante estudo, intitulado As dobras do silêncio: uma leitura de
um romance de Miguel Jeronymo Ferrante, Edmara Alves de Andrade destaca
diversas passagens em que Santa Efigênia se confunde com a cidade de Rio Branco,
local de nascimento de Miguel Ferrante e de sua conhecida filha, Glória Perez.
Partindo de uma perspectiva bakhtiniana, Andrade enfatiza que, nesse romance,
os “elementos extraliterários” são tomados por empréstimo à “realidade histórica
da cidade de Rio Branco”, remetendo os leitores a “personalidades, lugares e
espaços geográficos pertencentes ao Acre de meados do século XX”51. Embora
parta da ilusória ideia de que determinadas “realidades históricas” possam ser
coladas às narrativas que buscam representar, Edmara Andrade faz interessante
descrição sobre as passagens em que certas faces da capital acreana surgem na
imaginária cidade de Ferrante, ressaltando ainda o esforço desse escritor em
captar distintos modos de falar, supostamente capazes de refletir o caráter do
comportamento, da identidade e da condição social de seus habitantes. Esforço
esse que indica um autor preocupado não apenas com certas similitudes, mas
com uma rearticulação entre as palavras e as coisas, entre a palavra dita e o
corpo social e psicológico daquele que fala, que precisa denotar certo real, mesmo
quando esse real é de signos, papel e tinta.
Outra leitura sobre a cidade que Ferrante imagina em O silêncio tem assento
no texto de Iris Célia Cabanellas Zannini, para quem Santa Efigênia é a própria
Rio Branco no “alvorecer [de seu] desenvolvimento sócio-econômico e cultural”.
Em breve análise, essa autora afirma que, com sua “ânsia de registrar tradições
da terra querida”, Ferrante “eterniza, num cenário de palavras, a fotografia
de um mundo fantástico tão folclórico quão real”. Antes de Ferrante, ainda na
década de 30, esse “mundo fantástico tão folclórico quão real”52, já brotava nas
páginas de Certos caminhos do mundo (romance do Acre), de Abguar Bastos, que
(re)desenhou a tese da floresta como um deserto vazio a “polir os homens” e
seus corpos “cobertos de pó e feridas, roídos pelos mosquitos e descarnados pela
febre...”53. Em meio a essa floresta de “febres ardentes”, numa clareira às margens
de um pequeno rio amazônico, a Rio Branco de Bastos surge “afogueada, interdita
na fisionomia da terra, como um beiço amarelo”. Uma cidade com duas metades:
“Empresa à margem direita e Penápolis à margem esquerda do rio Acre”54.
Nas palavras desse literato, Empresa era o lado comercial, a face desenvolvida
de um antigo seringal que foi “elevado ao poderio de parte oriental da cidade”.
Mais que um pedaço de terra, Bastos fala de uma metade da cidade, livre de
preconceitos e libertina em sua “excitante vida noturna” marcando a face
transviada da mesmice cotidiana de um lugar aberto numa clareira, às margens
de um pequeno rio, no meio da grande floresta. A construção literária desse
escritor paraense, imersa em metáforas que impressionam o leitor, lança mão
de uma narrativa ficcional preenchida por certa “realidade histórica” por ele
vivida, lida ou imaginada sobre a capital de um território federal nascido como
anomalia na estrutura administrativa e organizacional da república dos estados
unidos do Brasil. Lugar estratégico, portanto, para abrigar os interesses pelas
terras disputadas não em razão do valor de seus hectares, mas de suas árvores
51
Andrade, As dobras do silêncio, 2012, p. 45-46.
52
Zannini, Fragmentos da cultura acreana, 1989, p. 124-125.
53
Bastos, Certos caminhos do mundo, s/d [1936], p. 45.
54
Bastos, Certos caminhos do mundo, s/d [1936], p. 65.
96
ou madeiras produtoras de látex. Em Bastos, nessa cidade os seres humanos são
destinados a cumprir uma sina previamente demarcada pela geografia do alto e
do baixo. Na parte baixa situa-se Empresa, símbolo de um passado que precisava
ser esquecido para abrir espaço ao moderno, suporte da civilização nos postos
avançados do sudoeste amazônico, a última fronteira da pátria mãe gentil. Nessa
zona baixa, as mulheres são emblematizadas como bonecas de trapos a estremecer
os pedestais das “mulheres honestas”, habitantes da parte alta da cidade, que são
afrontadas por aquelas enchapeladas marafonas, enquanto a rua é atravessada
pelos indesejáveis, “o rebanho e a mátula, profissionais de jogo, “camelots”,
ganadeiros, maritimos, contratadores de seringa, contrabandistas, vendedores de
cóca” que se encontram com “marinheiros, soldados, cafagestes, oficiais, viajantes,
vendedores de cavalos” em sôfregas pelejas noturnas na travessia de suas ponte
de madeira, desaparecendo “nos cortiços” enquanto um “cheiro acre de mijo sobe
das calçadas e do tronco rasteiro das árvores” e as mulheres, “muito pintadas,
“esfregam extráto no corpo” para dissimular o mau cheiro e atrair os parceiros
na devassidão das noites55.
A parte alta é Penápolis, outra cidade, acanhada, pacata, centro da
administração e da justiça naquele território da União, lugar onde se concentra
o poder dos homens e o poder de Deus. Cidade homenagem ao então presidente
da república, Afonso Pena, e constituída nas linhas do real ficcional como “zona
essencialmente morigerada”, que “rescende a jesuitismo e a burguesia”, com seus
sóbrios divertimentos e urbano recolhimento na domesticidade cerimoniosa e
familiar: sem cabarés, sem jogatinas, sem bebedeiras, sem prostitutas, sem a malta
de ociosos, frívolos e desordeiros. Essa é a parte alta, como quis a topografia da
capital acreana, como seus jardins que “parecem pateos de colégio” e, mesmo
quando surgem as inevitáveis “ovelhas desgarradas”, elas somente encontram
guarida em uma maledicência cheia de cautela “porque, em Penápolis, tudo é
gente de sociedade”56.
“Penápolis é o terror branco” da gente torpe que habita Empresa: “Empresa
e Penápolis recriminam-se, exíbem queixas reciprocas. Retaliam-se. Lutam na
mais imprevista das lutas psicológicas”, segue o narrador de Certos caminhos do
mundo, descrevendo que o lado baixo é todo clamor, pois,
97
dificultando a travessia de um lado ao outro, “Penápolis se alegra, se enfestôa, se
benze. (...) Empresa está mais longe e mais longe o pecado e a tentação. Empresa
também respira, pois, em Penápolis não se ouvirão as tropelias das suas esbórnias,
o estardalhaço das suas brigas, o éco dos seus sambas canalhas”. Entretanto,
quando as águas baixam, aproximando o alto e o baixo da paisagem física e das
relações sociais, as duas cidades “tateiam-se, medem-se. A água escorre em filete,
marulhando nos cascalhos. Ha um estremecimento, uma sincope: são as duas
cidades que se beijam, no mais hediondo e feroz beijo do mundo. Renasce a agonia
duma visinhança incomoda, porém irremediável e imperecível. Xipófagas”58.
Na Rio Branco de Abguar de Bastos e de seu implacável narrador ou no destino
irremediável de suas personagens femininas e masculinas, o vício é inseparável da
virtude, a cidade do baixo e a cidade do alto, em sua conflituosa e promíscua relação,
são espécies de irmãs siamesas em um Acre onde tudo arde em febres incuráveis,
um lugar em que o “inferno desafia o homem”, um inferno indisfarçável na própria
forma do nome “Acre”, com o qual esse lugar foi o batizado, ou seja, na forma da
aridez, do amargor e da acidez desse nome, dando consistência a uma Amazônia
em que, frente às “forças da natureza, o homem adaptava-se, era moldado para não
sucumbir e também para viver em eterno conflito pela sobrevivência, pelo ‘direito’
de explorar aquela terra que o talhava pela ‘experimentação”59. Experimentação
com gosto de sal porque, em Bastos e seu narrador onipresente, o Acre também
é “resumo de pedra, labor, sofrimento”60. Aí, a natureza, feito um “sujeito dotado
de vontade”, se vinga incessantemente daquele que a explora: é o “inferno verde”
“engolindo os homens”, “devorando suas almas”61.
Menos de uma década após a publicação de Certos caminhos do mundo,
outro romance aparecia ao público, nas letras de Océlio de Medeiros, A represa.
Se o romance de Bastos era “do Acre”, o de Medeiros é “da Amazônia”, espécie de
contra-senha para repetir os velhos signos do “amansamento dos sertões” ao Norte
do país, com seus “rios correndo”, atoleiros “sêcos, esverdeados”, suas nuvens de
“mosquitos negros, zumbindo”, atormentando62. Não por acaso, a Rio Branco de
Medeiros surge como um “igapó de homens, numa região onde ninguém nunca
pensou em edificar uma cidade” e o próprio rio não é de águas, mas de seres
humanos que perderam “seu destino”. Daí a noção que confere centralidade
a essa cidade imaginada como uma grande “represa humana onde se agitam,
num drama de isolamento, os recalques e as paixões”. Um lugar no qual a maior
parte da sociedade, síntese das “piores remanescências”, vive contida, sofrida,
“buscando uma saída, buscando um fim que nunca chega”.
Não chega porque, assim como outras cidades plantadas ao longo do rio Acre e
seus afluentes, a exemplo de Xapuri – também represa de homens que perderam seu
destino, como quer Medeiros e seu narrador –, não existe saída para os que vivem
nessa Rio Branco, enquadrada no rol de um universo que é fruto da decadência
e não da opulência dos seringais, como faz crer o narrador de A represa. Mesmo
para os filhos da terra que regressam, após “vencer na vida” vivendo e estudando
em outro lugar, o resultado é sempre uma espécie de “silêncio de lago, pesado e
58
Bastos, Certos caminhos do mundo, s/d [1936], p. 72-73.
59
Albuquerque e Ishii, A Amazônia acreana de Abguar Bastos, 2013, p. 122.
60
Bastos, Certos caminhos do mundo, s/d [1936], p. 229.
61
Albuquerque e Ishii, A Amazônia acreana de Abguar Bastos, 2013, p. 122.
62
Bastos, Certos caminhos do mundo, s/d [1936], p. 48.
98
evocativo”, seguindo noite adentro. Um “silêncio profundo, de natureza morta”,
como o de Antonico, personagem que, na parte final da obra, retorna à cidade
após os anos de formação em Belém do Pará e reencontra Santinha, filha de seu
padrinho, o Coronel Belarmino e seu amor platônico dos tempos em que vivia
no Seringal Iracema. Reencontro marcado pelo desencontro, pois a mocinha que
virara mulher feita era filha de um importante “desbravador do Acre” e herói da
“Revolução Acreana, portanto, “moça de família e da “sociedade” que vivia em
Penápolis, estava agora comprometida e de casamento marcado com outro homem,
também residente na “indeflorável” Penápolis. Desencontro esse que faz parte do
determinismo da trama que enlaça os destinos de quem nasce na Amazônia de
A represa, pois, logo em seguida ao seu reencontro com Santinha, em estado de
perplexidade e resignação, Antonico a vê desaparecer, sumindo feito um fantasma,
um “vulto que se perdia na dobra da rua, mergulhado na sombra das mangueiras e
no escuro da noite”, deixando-o para trás, com suas lembranças e ilusões, em meio
a uma “onda verde, de limo e de lodo” que refletiam a tipificada natureza da “alma
da superfície da cidade, em cujas profundezas dormiam as glórias de um passado
de lutas”. Enquanto jazia no ocaso de suas lembranças, as águas do inverno se
aproximavam e com ela “a força renovadora de uma geração” de outros imigrantes,
os rios humanos de que fala Medeiros e seu narrador: “Até aí, entretanto, a represa
haverá de ficar, acrescida de mais gota de sofrimento, no seu marasmo e no seu
cenário, com os homens, as paixões e os sentimentos estagnados, numa paisagem
de sacrifício e de renúncia”63.
Em Medeiros, seguindo a senda de Bastos, a sintaxe amazonialista governa
corpos, olhares e falas de narradores e personagens, arrebanhados pela estética
de intérpretes como Euclides da Cunha e Alberto Rangel, com destaque para o
primeiro que, em “Judas-Ahsverus”, inserido como um dos capítulos de A margem
da história, projeto de seu “segundo livro vingador”, produziu uma narrativa em
que “mergulha” nas entranhas psicológicas dos trabalhadores extrativistas do rio
Purus, com a pretensão de analisar suas pulsões, recalques, “instintos primitivos”.
Essa narrativa se tornou célebre não pela capacidade desse intelectual em atingir
seus intentos, mas pela mitificação e continuada repetição de suas interpretações
em diversos outros escritos literários e acadêmicos que tomaram a Amazônia
acreana e seus seres humanos e não humanos de modo superficial ou como
simples objetos. Em Euclides da Cunha, o corpo do seringueiro é transfigurado
como reflexo ou imagem e semelhança de um espantalho, produzido por ele e
sua família, para ser malhado no sábado de aleluia, após a sexta-feira santa, em
consonância com o calendário cristão. O trabalhador dos seringais, que surge
na narrativa euclidiana, é um ser de “existência imóvel”, vivendo ao sabor ou
dissabor das estações de chuvas e secas em “seus repetidos ‘dias de penúrias’,
suas ‘tristezas’ e ‘pesares’ intermináveis, suas ‘fatalidades’ e ‘desditas”64, com “sua
‘figura desengonçada e sinistra’” se metamorfoseando à condição de um monstro
grotesco, imagem do traidor que precisa ser apedrejada e alvejada repetidas vezes,
rio abaixo, para ser lembrada/esquecida como parte da dualidade maniqueísta do
bem e do mal. Na escrita de Euclides, os homens e as mulheres dessa Amazonia
narrada são eternas vítimas de suas ambições e fraquezas; seres submetidos a
uma “seleção telúrica”, seres/coisa; seres que levam uma vida de “cachorro que
63
Medeiros, A represa, 1942, p. 209-210.
64
Albuquerque, Leituras de Stuart Hall em cenários amazônicos, 2016, p. 155.
99
busca morder o próprio rabo”, em sua repetitiva faina cotidiana, regida pelos
ciclos naturais; seres que vegetam encarcerados em uma vida “monótona, obscura,
dolorosa”; seres que, pela análise do ensaio/crônica de Euclides da Cunha, mesmo
quando lutam “contra a ordem da dominação e da miséria social”, o fazem “se
destruindo: homem sem amor próprio, diria mesmo masoquista”65.
Retorno à represa do “rio de homens sem destino”, na ênfase do narrador
do “romance da Amazônia”, para encontrar as referências desse amazonialismo
euclidiano em um Antonico olhando o rio feito os “seringueiros tristes”, nas
enluaradas noites dos tempos em que residia no Seringal Iracema, sentindo um
vácuo, um vazio que o sintonizava com a luz da lua resvalando “na correnteza
mansa”. Um vazio que lhe perseguiria de múltiplas maneiras até do dia em que,
movido pelas intrigas de Araripe, o caixeiro com quem dividia o quarto de dormir
e que também sonhava com Santinha, fora “despachado” para a capital paraense,
onde deveria estudar e trabalhar, antes que fosse tarde e, nas palavras do Coronel
Belarmino, passasse a viver feito uma “fera enjaulada, sem poder libertar-se
das grades” daquela terra onde tudo era “prisão” e os “próprios horizontes” se
fechavam sobre as pessoas e demais seres.66 Ali, naquelas paragens descritas de
forma abundante ao longo das mais de duzentas páginas da narrativa literária
de Medeiros, nos rios ou nas florestas demarcadas pelas correntes desses rios e
seus paranãs ou nas cidades represa de Xapuri e Rio Branco, vivia-se o “drama dos
esquecidos, dos segregados”, dos que ressentidos pela ausência da “civilização” e
suas cidades litorâneas; drama de seres condenados e governados pelo rio, com
suas águas repletas de indiferença, descendo rumo ao Purus.
Em seu romance, Océlio de Medeiros situa Xapuri e Rio Branco, mas não
poupa esforços na definição das cidades amazônicas como “obra da decadência”.
Cidades formadas pelos “rios humanos” dos primeiros tempos da borracha. “Rios
humanos correndo Amazônia adentro, divididos em centenas de braços. Rios
malucos, sem rumo certo, que vieram do Atlântico, em sentido contrário aos rios
de água, como que para desaguar no Pacífico, cavando na sua corrida pela mata,
o próprio leito”67. Rios de uma gente que vinha não do Nordeste, como assinala
o autor inserindo em sua ficção os bordões de senso comum da historiografia
amazonialista, para se referir a uma região que sequer existia no século XIX, como
mostrou de forma incisiva, sensível e inteligente o historiador Durval Muniz de
Albuquerque Júnior68.
Um desses rios, “pororocante” e formado por “cearenses brabos, chegou
até o Território do Acre, nos domínios da Bolívia e do Perú”, e “só não foi mais
longe porque esbarraria na muralha dos Andes”, segue a narrativa de A represa.
Porém, o mercado, movido por relações humanas, conflitos de interesses e
tensões diversas, ficou tenso, nervoso, rancoroso e o preço da “borracha caiu” em
súbita e inacreditável desvalorização, provocando grande vazante e “secando de
homens a planície”. Entretanto, arremata Medeiros, nem todos “puderam voltar
às vertentes” e “alguns ficaram, como os lagos, sumidos na mata, formando as
cidades. São os rios que perderam seu destino”69.
65
Albuquerque, Leituras de Stuart Hall em cenários amazônicos, 2016, p. 159.
66
Medeiros, A represa, 1942, p. 67.
67
Medeiros, A represa, 1942, p. 108.
68
Ver Albuquerque Júnior, A invenção do Nordeste e outras artes, 2009.
69
Medeiros, A represa, 1942, p. 108.
100
A Rio Branco de Océlio de Medeiros é a síntese do represamento desse “rio
de homens que perderam seu destino”, vitimados pela decadência que atingiu e
fez ruir o mundo dos seringais e do “ouro negro”. Síntese espelhada pela Xapuri,
a “princesinha do Acre”, do início de seu romance, sobre a qual recairia a “mesma
tristeza” que reinava nos luxuosos barracões abandonados nas margens do rio. Uma
tristeza de sol escaldante, de terras quentes e caminhos suados; tristeza de mãos
trêmulas e passado a flor da pele, bamboleando como as cadeiras nas varandas ou
com a dilatação provocada por um o sol que fazia estalar as telhas de zinco sobre
as cumeeiras das casas dos proprietários falidos. “A monotonia da tarde” enchendo
as “ruas com um ar de cemitério”. As “mangueiras imóveis como em uma prece”,
petrificadas pela ausência dos ventos e pelo ar pesado enquanto o rio corria manso
e a cidade digeria o drama de sua decadência70. A pena de Medeiros desliza em
torno da retórica de um passado que lhe oprime um presente de descendente
órfão dos grandes proprietários de seringais, amargurado com a derrocada de seu
mundo, aquele “gigante de pés de barro” que fez de Xapuri – sua cidade natal – um
imponente entreposto de trânsito de mercadorias, palavras e pessoas de diversas
partes do mundo; um lugar símbolo do fausto no girar da “roda da fortuna” que
incendiava o alto Acre do início do século XX e fazia ecoar suas riquezas em imagens
e notícias publicadas em periódicos de circulação na capital da república.
Mas, a represa principal, sobre a qual recai a forte carga de subjetividade de
Océlio de Medeiros é uma Rio Branco com características semelhantes à que foi
narrada nas páginas de Certos caminhos do mundo. Uma cidade também fraturada
em sua dupla face, sob a intermediação do rio Acre, o mesmo rio que chegava a
Xapuri e conectava suas florestas e gentes às grandes casas aviadoras de Manaus
e Belém e ao mercado internacional da goma elástica. Também em Medeiros, essa
cidade represa mantinha velhas peculiaridades:
101
Não por mera coincidência, Océlio de Medeiros acompanha a divisão da
cidade projetada por Abguar de Bastos, mas suas motivações e envolvimento com
tal escrita da cidade são outras. Seu realismo traz as marcas de uma narrativa
documental, uma narrativa de quem tem contas a ajustar com Rio Branco e
sua gente ou com seus governantes interventores do passado e do presente
em que teceu seu “romance da Amazônia”. As personagens que habitam essa
Rio Branco transitam em um mundo de signos, um mundo de seres narrados,
de espaços/tempos narrados, seja na história, seja na ficção. As características,
comportamentos, virtudes ou vícios de tal mundo vão sendo arrematados como
em um leilão no qual vence que der o menor lance, sempre na dependência da
forma como o autor historiciza o passado no âmago de seu nada inocente romance
histórico. Por isso, mesmo quando ganha “foros de Metrópole”, a Rio Branco de
Medeiros é essencialmente provinciana e espaço de eterna expiação pública,
submergida em “rituais ridículos” e instituídos por certa forma de governo e suas
intervenções “modernizantes”, inaugurando “mentalidades urbanas” em meio a
seres talhados por uma “natural decadência”. Em Medeiros, ironicamente, nessa
“metrópole”, represa de homens com destino incerto, não existia calçamento e
apenas um “velho automóvel” transitava por suas ruas e vielas: “não havia água
encanada, nem tão pouco serviço de esgotos, pois as latadas eram transportadas
da Fonte da Independência no costado de jumentos e as águas podres tinham saída
através das valas das ruas. Mas via-se um belo palácio de alvenaria, o Palácio Rio
Branco, onde se instalam os serviços da administração pública”72. A cidade é signo
de uma prisão a céu aberto, onde as pessoas vivem encarceradas por horizontes
“encadeados de distâncias”, angústias, rancores, ódios. Um lugar em que, ao cair
da noite, os “grilos trinavam nos capins das ruas descalças”, fazendo coro com
os sapos e “seus coaxos nas valas cheias de lama” e as ruas desertas ganhavam
rima no piar agourento de uma coruja73.
Conhecendo as condições em que viveu, as causas em que se envolveu, ou
foi envolvido e as razões que o levaram a ser “saído” do Acre, no final dos anos
30, é possível apreender que Océlio de Medeiros escreveu um “texto vingança”,
traçando caminhos e pintando com as cores e o ardor de suas paixões as aventuras
e desventuras das experiências vividas, aqui inseridas aquilo ouviu ou leu em
diferentes fontes. Nessa narrativa suas palavras ou as palavras de seu narrador
e personagens são setas rígidas contra alvo móveis, assumindo o protagonismo
de um combate no terreno do discurso, manuseando as palavras na crença da
inseparabilidade entre significantes e significados ou entre signos e referentes
num jogo irônico, jocoso, malicioso que envolvia autoridades civis, militares e
religiosas da “cena pública” riobranquense, tratados com adjetivos precisos pela
pena de quem conhecia as regras do “jogo sujo” jogado por certas autoridades da
província e não tinha medo de enfrentar a “besta” e travar o bom combate. Ao
deslocar o jogo para o terreno de uma linguagem que conhecia, sabia que colocava
a disputa em outros patamares, pois essa disputa era a do acerto de contas com
seus detratores do passado e do presente, inseridos de múltiplas maneiras em
uma narrativa ideologicamente marcada pelos signos e sua capacidade de ferir
e mutilar feito “navalha na carne”. Desse modo, não deixou nada por menos e,
de Neutel Maia, passando por João Donato, Mário de Oliveira a Epaminondas
72
Medeiros, A represa, 1942, p. 125-126.
73
Medeiros, A represa, 1942, p. 206.
102
Martins, entre outras figuras de expressão no esquizofrênico panteão da história
regional, todos foram passados no fio dessa navalha.
Océlio de Medeiros não desconhecia o debate sobre a autonomia do Território
Federal do Acre, que ganhara espaço na imprensa de Manaus, Belém e Rio de
Janeiro, assim como não desconhecia as querelas mal resolvidas em torno do
“esbulho” de uma nesga de terras do Seringal Empresa, bem como os detalhes
da batalha judicial movida por Maria Juvenil Parente e sua filha Isaura Parente
contra o estado brasileiro, referente ao violento processo que culminou com a
construção da cidade de Penápolis, a partir de 1909. Sobre tudo isso, Medeiros
toma posição e seu romance literário, longe de ser reflexo da realidade, tece
representações sobre as tramas que envolviam questões dessa natureza, às quais
o autor não estava imune, pois, como a personagem Epaminondas Martins, cujo
“nariz de curica, bem curvado para beliscar os lábios finos, denunciava as suas
espertezas”, tinha consciência que ninguém que tivesse “sofrido o Acre” podia
esquecer suas mágoas ou mitigar seus rancores, nem deixaria de ter “sempre
presente” as aporrinhações aí vividas, todas as vezes que ouvisse seu nome, “nos
pesadelos da noite”74.
Em outras narrativas de sua lavra, a exemplo das “Onze odes em
metalinguagem a Rio Branco”, concluídas em dezembro de 1974 e inseridas em
Jamaxí: a poesia do Acre em três tempos, Océlio de Medeiros reedita velhas imagens
sobre a capital do Acre e acrescenta outras no “livre artesanato da poesia”,
brincando com palavras transformadas em “escórias de consumo na lixeira do
mundo”, em metalinguagem de uma estética buliçosa, arruaceira, descontente,
inquieta, infeliz; estética imersa na saudade e na tristeza de se saber de um lugar
que nunca foi, de uma cidade que não é; estética dos poemas dissolutos, dos
versos livres, versos de beira de rio e barrancos, versos contrários às formas e
métricas prontas, longe das “quadras, estrofes, ditirambos, sonetos ou endechas”75:
somente odes a uma Rio Branco primitiva, nascida da ganância antipatriótica de
um traidor. Cidade
Em sua paixão sádica, soturna pela cidade, Medeiros não economiza nos
adjetivos desqualificadores, mesclando-os aos repetidos enunciados amazonialistas e
mantendo, em plenos anos 1970, a mesma face dual com a qual lhe narrou nos anos
74
Medeiros, A represa, 1942, p. 148 e p. 163.
75
Medeiros, Jamaxí, 1979, p. 180-182
76
Medeiros, Jamaxí, 1979, p. 191-193.
103
40: de um lado a virtude e do outro o pecado; de um lado a sede do governo, o quartel,
a igreja, o hospício, a família, o fisco, os padres e um “podre tribunal”; do outro lado
o comércio e o baixo meretrício ou o “livre amor de uma urbes conturbada”77. Nas
odes de Medeiros, Rio Branco jaz em fronteiras sombrias, com suas sagas sangrentas,
seu “passado de páginas nojentas”. Uma cidade de silêncio sobre sua origem num
berço sem grandeza. Origem torpe, repleta de intrigas e sedições, mergulhada na
simbologia da traição, com os vultos sombrios e tristes de sua história saindo do
fundo das matas feito almas penadas, vagando por crimes impunes; manchas de um
passado que não se apaga; manchas que o rio Acre vai levando correnteza abaixo,
com suas águas tristes, desiludidas. Rio lamacento, carregando a lama dos homens/
balseiros em seus repiquetes, “devorando árvores, pensamentos”, derretendo
mata, vegetação, casas, troncos, canaranas e desencantos em terras caídas; rio que
escancara a podridão das margens, dos homens e de seus fundos de quintais; rio que
vomita o lixo e míngua barrenta no cenário de uma floresta deserta, uma floresta
inferno verde, transformada em pasto de bois e vacas a devorarem as famílias de
extrativistas. Rio testemunha de uma cidade pisada pela boiada e pelos boiadeiros
dos anos 70, e de suas florestas transformadas em fazendas de gado, “saharizadas”
pelo capim e pela campina regada pelo sangue dos que dizem não e são silenciados
física e socialmente. Rio de saudade dos “velhos casarões e dos seus seringais... Dos
derradeiros coronéis da terra, da lama do barranco”78.
É interessante destacar que os mesmos tons e cores da decadência, ruína,
abandono e toda a retórica amazonialista do vazio, silencio e deserto amazônico
norteadores dos cenários e o cotidiano das personagens de Certos caminhos do
mundo, não por coincidência, são encontrados em A represa e nas odes à Rio
Branco. No caso dos romances, o contexto histórico das narrativas, com suas
específicas nuances entre a opulência e a crise dos seringais e da produção
de borracha, assim como certos personagens da história – Plácido de Castro e
Juvenal Antunes, por exemplo – também sinalizam para outras referências do
tipo de similitude presente em Bastos e Medeiros. Na condição de textos datados
e publicados na segunda metade dos anos 30 e inícios dos 40, essas narrativas
literárias não estavam imunes aos confrontos ideológicos ou interesses políticos
e econômicos, ao projeto de colonização dos “sertões amazônicos”, às disputas
regionais e nacionais, pois “o romance e suas formas estéticas e culturais – seu
poder de produzir percepções de mundo e de julgamento do “outro” e de si pelos
leitores –, acompanhando a perspectiva cunhada por Edward Said (1995), para
quem a literatura – e qualquer forma de manifestação artística ou de obra de
arte – está prenhe das subjetividades, valores, contradições, anseios e projetos
do mundo em que vivem seus autores”79.
Os enunciados do amazonialismo, acompanhados do ideário de “modernidade”
e “civilização”, voltam à cena pública em opúsculo publicado no ano 1950, pelas
Oficinas Gráficas da Imprensa Oficial do Território do Acre, com o título Mozaicos
da cidade nascente – crónicas, de autoria do jornalista, poeta e artista plástico
Garibaldi Carneiro Brasil – o Gari. A obra traz crônicas sobre a cidade de Rio
Branco e possibilita acompanhar a forma como esse homem de letras tecia aos
seus leitores a imagem de uma pequena cidade amazônica, edificada em meio à
77
Medeiros, Jamaxí, 1979, p. 183.
78
Medeiros, Jamaxí, 1979, p. 204.
79
Albuquerque e Ishii, A Amazônia acreana de Abguar Bastos, 2013, p. 120.
104
grande floresta tropical, onde ele teria vivido parte significativa de sua vida. Logo
na página de abertura, o autor procura expressar seu lugar de fala, ao dedicar
suas crônicas impressas “a Neutel Maia, o pioneiro; a Gabino Besouro, o fundador;
a Hugo Carneiro, o delineador; a Guiomard Santos, o construtor; a Raimundo
Pinheiro Filho, o urbanista”80. Em seguida, ao longo de 60 páginas, Gari procura
“descrever” de modo objetivo o cotidiano de sua Rio Branco. Um cotidiano em
que salta aos olhos seus compromissos com as elites locais, notadamente, com os
homens de poder, indicando a senha para o leitor atento apreender as cores com
que pinta essa cidade que precisa ser escrita, precisa ser dita, precisa se tornar
visível, precisa encontrar existência no corpo das palavras daquele que a narra.
Em Gari, que o jornalista e poeta Antonio Alves classificou como um “generoso
buon vivant”81, a “cidade de Rio Branco é tecida pelo filtro das lentes de um homem
das artes e das letras, mas das artes e das letras comprometidas com o establishment
do momento. Evidenciando uma dupla face evidenciada em outras narrativas,
como as de Abguar de Bastos, Océlio de Medeiros e Miguel Ferrante, a realidade
histórica da cidade produzida por sua narrativa, no contexto dos anos 1940-50,
também é fraturada em duas metades separadas por um “riosinho teimoso e ‘amigo
da onça’”. Essa Rio Branco, objeto da escrita do cronista, é um lugar pacífico, com
seu “casarío novo” e “belos edifícios” a se “perder de vista”. Cidade inscrita no
paradoxal cruzamento do “moderno” com o provinciano, com suas “famílias de
sociedade” dormindo cedo enquanto a boemia corria solta pelas ruas da Seis de
Agosto e do Bairro Quinze, despertando cães, gatos e putas nas proximidades
do “velho Pavilhão, onde nas tardes quentes”, expiando o rio, os pachorrentos
sírios jogavam gamão à sombra das mangueiras82. O que surge nas crônicas que
constituem Mozaicos da cidade nascente, é uma capital do Acre para a qual Gari
retorna após alguns anos fora, a reencontrando “moderna e progressista”, com
avenidas largas, fonte luminosa, um “lindo aeroporto” e um “magestoso palacio
néo-romano”83. Tal cidade, narrada como “moderna e progressista”, é símbolo da
expansão de um urbano que avança floresta adentro, “emergindo da mata verde”,
enchendo seu escriba de nostalgia e saudades dos pioneiros – “amansadores do
deserto” – aos quais expressa profunda empatia e identificação social. Narra um
Neutel Maia com seu barracão de mercadorias e campos de gado, testemunhando
“a luta diária dos bravos nordestinos que plantaram, na ponta noroeste do Brasil, a
jovem capital acreana”. Essa cidade que, imaginada por Gari, aparece “febricitante,
nos barrancos do rio, nas embarcações que chegam, carregam e descarregam, no
mercado farto, no vai-e-vem do povo, na alegria pictorica das canôas que cruzam
p’ra lá e p’ra cá, nos estaleiros do Governo, e sóbe e se alonga pelas terras da
‘Empresa’ á dentro, delimitando a selva para além do Bosque, muito p’ra lá do bairro
da Floresta”84. Nessa linha, nostálgico e ufanista, o cronista rumina o passado que
foi evidenciado pela narrativa da história oficial como suporte para reafirmar o
que considera “a conquista da terra” ou o erguimento de uma “urbs” que invade
as estradas de seringa e alarga os varadouros em “arrancada de progresso que não
parou, que não deve parar nunca!”85.
80
Carneiro Brasil, Mozaicos da cidade nascente, 1993 [1950].
81
Alves, “A cidade renascente”, 1993.
82
Carneiro Brasil, Mozaicos da cidade nascente, 1993 [1950], p. 1-2.
83
Carneiro Brasil, Mozaicos da cidade nascente, 1993 [1950], p. 3.
84
Carneiro Brasil, Mozaicos da cidade nascente, 1993 [1950], p. 5.
85
Carneiro Brasil, Mozaicos da cidade nascente, 1993 [1950], p. 5.
105
Suas crônicas são marcadas pelo desencontro no bojo das próprias linhas
que tecem a cidade que vai sendo, obsessivamente, inventada na condição de
“moderna e progressista”. Nela, pois reina o bucólico em meio ao discurso do
progresso e do moderno. Bucólico que ocupa lugar aos olhos do leitor a partir das
imagens criadas por Gari, notadamente, ao imaginar/representar a “silhueta da
cidade” a partir de um rio Acre também narrado. Silhueta das “grandes torres da
luz” que atravessam o “leito do rio como uma imensa pauta musical”, em “tardes
frescas” marcadas pela presença de andorinhas se equilibrando na chaminé
da usina de luz. Tal paradoxo se amplia quando a Rio Branco de “fartura” cede
lugar para uma cidade carente de produtos essenciais para o consumo diário, a
exemplo de um “genero de 1ª necessidade, alimento numero um e mais accessivel
para a minguada bolsa do povo, a carne vai rareando, cada vez mais, nos nossos
açougues, obrigando o pobre diabo a sair de casa ás 2 horas da madrugada para
chegar ao Mercado e encontrar os talhos... vazios!”86. Essa cidade “moderna e
progressista”, mas “sem carne, sem xarque e sem pirarucu”, também é atravessada
pela intensa “poeira das ruas que os caminhões, os jeeps, as camionetes, os tratores
e agora até o novo ônibus levantam, parece até com certa volúpia”87.
Mais que meros paradoxos ou construções textuais que fabricam sentidos e
ordenamentos, as crônicas de Gari são produtos de alguém que tece narrativas
sobre um espaço/tempo na condição de habitante desse específico espaço/tempo,
ou seja, de alguém que, embora produza narrativas de progresso, desenvolvimento
e urbanidade sob o manto de governantes mecenas, que bancam seus trânsitos
palacianos e suas boemias, esse buon vivant das margens do Aquiry o faz
em meio a contradições que se manifestam nessas mesmas narrativas. Seus
escritos são mediados pelas coisas, conceitos e possibilidades de seu tempo; suas
crônicas sobre certo cotidiano histórico são produzidas no interior desse próprio
cotidiano e, como tal, movidas pela carga de subjetividades, jogos de interesses e
paixões vividas e refletidas – ou produzidas – naquilo que narra, nomeia, atribui
sentidos. Em suas narrativas, Rio Branco vive dias de tranquilidade e construção
do progresso, urbanizando-se sob a guia de seus governantes. Progresso que
atravessa a área urbana e chega às colônias agrícolas do entorno dessa “urbs”
narrada. Aí, nas raras e breves referências à multidão de trabalhadores anônimos
que compunham mais de setenta por cento da população do município de Rio
Branco, Gari indica que o “deserto verde” vai sendo habitado e transformado em
“hectares e mais hectares de milho, feijão, arrôs, cana de assucar e bananas”88. Um
“progresso” somente possível graças às mãos firmes dos “homens que governam”.
Porém, a insistência das crônicas de Gari é com a narrativa de uma cidade
prenhe de “progresso” e “civilisação”, mesmo nos melancólicos e provincianos
feriados, embaixo de um céu cinzento e carregado de “nuvens gordas”, com
ameaças de chuvas ou friagens ou mesmo em plenos domingos aperreantes,
maçantes, enfastiantes, a cidade é de “progresso e civilisação”; mesmo quando
esse “progresso e civilisação” é simploriamente plasmado pela construção de um
“Grande Hotel”, o Chuí, que ostenta uma luz “feerica” e projeta sua “interessante
fachada” para “embelezar” a Praça Rodrigues Alves, o ponto mais “modernisado
da cidade”, com sua iluminação pública montada em “postes de concréto armado”
86
Carneiro Brasil, Mozaicos da cidade nascente, 1993 [1950], p. 9.
87
Carneiro Brasil, Mozaicos da cidade nascente, 1993 [1950], p. 33.
88
Carneiro Brasil, Mozaicos da cidade nascente, 1993 [1950], p. 55.
106
e “energía subterranea, em profusão quasi exagerada”89; ou mesmo quando “os
melhores instantes de uma capitalzinha, perdida na clareira da selva amazonica”,
são marcados pelo silvo do apito da usina de luz – a “Central Eletrica” – da cidade,
“reboando seu éco estridente, através da mataria, para além dos campos verdes
da Fazenda Nemaia, muito além do estirão da ‘Judia’, pra lá da volta do ‘Quinze’”,
em uma distante saudação que anuncia as horas, “como uma mensagem de
civilisação e de progresso”90.
No ano de 1964, quando Mário Maia concluiu a escrita de seu Rio e barrancos
do Acre (romance)91, colocou em evidência uma Rio Branco que guarda grandes
semelhanças com a Rio Branco de Garibaldi Brasil, embora sem o ufanismo deste
e tendo muito presente uma imbricada relação com a floresta e os trabalhadores
extrativistas em diferentes cidades e rios dos vales do Acre, Purus e Juruá. Rios,
florestas e cidades, com seus trabalhadores e demais habitantes são arquitetados
pelo olhar do narrador e de seu personagem central, Ary Damasceno Barral do
Monte Mello ou “doutor Melinho”, por intermédio dos quais apresenta “fatos reais
ou muito próximos da realidade estilizados pela pena do autor”, como afirma
em nota de “esclarecimento” na abertura do livro. Ao longo de toda a obra, sua
narrativa é marcada por toda uma subjetividade amazonialista, tomando as
casas e localidades habitadas pelas populações extrativistas como “salpicos de
civilização [que] mostram a presença obstinada do homem branco na selva, em
sua grande maioria nordestinos”, que se deslocaram para a região “em busca
de riqueza” para superar “sua miserável vida no sertão seco das caatingas”.
Homens que, “com sua coragem indômita, plantaram-se à beira [dos] rios e daí
para dentro da selva”92. É curioso perceber que Mario Maia tenha escolhido a
forma romance para apresentar seus “fatos reais” e o tenha feito com base em
uma “tal realidade histórica”, que assumia o Nordeste como um “simples recorte
geográfico naturalizado” e o nordestino, que a historiografia e a “tradição dos
vencedores” produziu enquanto identidade étnica, uma essência remontada aos
meados do século XIX quando sequer o tal recorte “Nordeste” existia, posto que
inventado nas primeiras décadas do século XX, como resultado de “certos temas,
imagens, falas”, sistematicamente repetidas “em diferentes discursos”93.
As personagens de Rios e barrancos do Acre são marcadas do início ao fim pela
presença da floresta, com suas gentes e afazeres. O contraste entre a civilização e a
barbárie do sertão vazio se faz presente a partir selva, que inscreve suas marcas não
apenas no caráter e nos modos de agir e falar das mulheres e homens que para aí se
deslocaram, mas seus próprios destinos na condição de “principais protagonistas”
em um “cenário verde e úmido”, vivendo, amando e morrendo internados no mato,
“cortando seringa” em um tempo “limitado e ocioso” mesmo quando o mercado da
borracha entrava em crise. Uma vida para a qual foram empurrados não apenas por
sua condição de “seres flagelados e miseráveis”, mas por sua ganância e ambição,
condenando-os a viver na “inércia, apatia e indolência”, perdendo a maior parte do
89
Carneiro Brasil, Mozaicos da cidade nascente, 1993 [1950], p. 30.
90
Carneiro Brasil, Mozaicos da cidade nascente, 1993 [1950], p. 35-36.
91
A primeira edição desse livro data do ano de 1978, com segunda edição datada de 1980 pelo
Centro Gráfico do Senado Federal.
92
Maia, Rios e barrancos do Acre, 1980, p. 23-25.
93
Albuquerque Júnior, A invenção do Nordeste, 2009, p. 344.
107
tempo no “ócio” e na “solidão”, feito “sombras humanas no degredo da floresta”94.
Um tipo de “degredo” que poderia ser compensado pela riqueza que brotava não
de seu trabalho, mas da “seiva de uma árvore”, a seringueira, que Maia transforma
em algoz dos trabalhadores extrativistas, cobrando-lhes um alto preço para sair
dali e “voltar à civilização”, pois,
Nascido no Acre, Mario Maia não oculta sua empatia com os velhos coronéis
dos rios e barrancos da Amazônia acreana, em narrativa literária que exala uma
romântica visão sobre a empresa seringalista, “complexo sócio-econômico”
em “torno do barracão”, a sede do seringal que define como “uma dentada da
civilização na mata virgem”, uma imagem metaforizada em estreita sintonia com o
despreendimento e persistência dos grandes patrões seringalistas, homenageados
94
Maia, Rios e barrancos do Acre, 1980, p. 35.
95
Maia, Rios e barrancos do Acre, 1980, p. 108-109.
96
Albuquerque, História e historiografia do Acre, 2015, p. 9-10.
97
Euclides da Cunha, Terra sem história, 1986, p. 37-38.
98
Maia, Rios e barrancos do Acre, 1980, p. 45.
108
em seu romance na humanizada figura do coronel Fermiro Fernandes Farias que
o doutor Melinho ouve “com atenção, respeito e quase veneração”99. Na narrativa
de Maia, o trabalho e a exploração do trabalhador como parte da exploração da
natureza brotam da terra, naturalizadas como sinônimos da “Amazônia indômita”
e da “maldição” que recai sobre seres “ambiciosos e decadentes”. Nesse mesmo
diapasão, com “persistência, tenacidade e trabalho”, os grandes proprietários
avançavam “pelas terras de ninguém”, floresta adentro, dilatando seus “direitos
lindeiros”100 na condição de “senhores dos rios”101.
Assim como outras cidades acreanas que surgem no romance de Mário Maia,
Rio Branco é reflexo dessa percepção romântica em torno da empresa seringalista
e das relações sociais aí inseridas: sem conflitos de classes, sem indígenas, sem
exploração do trabalho, mas repleta de mulheres, homens e crianças que, embora
tratados com uma mistura de humanidade e condescendência, estão condenados
às vicissitudes da natureza e à conduta moral do grande proprietário ou de
governantes sempre dispostos a promover o “progresso”, o “desenvolvimento” e
a “civilização” capazes de sanar os “males da selva” e da cidade. Na narrativa de
Rios e barrancos do Acre quem chegava a Rio Branco, desde a “Curva da Judia”, ao
longe avistava a silhueta da capital acreana, “espiando o vão do rio pelo mercado,
a Mesa de Rendas e algumas casas de madeira que se alinhavam ao longo do
barranco pela margem esquerda”102. A imagem não é nova, posto que marcada
pela presença de enunciados que se repetem em outros textos e discursos, assim
como não é nova a divisão da cidade “em duas porções”, tendo de um lado,
as repartições públicas, “o Palácio do Governo, a Intendência, a Capitânia dos
Portos, a Mesa de Rendas, a Usina Elétrica, a Igreja dos Padres”, a maior parte das
residências e as áreas de fixação de colonos para a produção agrícola, parte dos
esforços oficiais para o desenvolvimento regional; e do outro lado, a Fábrica de
Castanha, “lúgubre casarão” localizado no Rabo da Besta, que servia de hospedaria
aos arigós “soldados da borracha”, amontoados em dolorosa promiscuidade,
fazendo suas necessidades fisiológicas em “penicos, latas e bacias”, utensílios
precários, “velhos, enferrujados, furados, vazando, emprestando ao ar um odor
característico de fezes e urina em decomposição de mistura com cheiro de restos
alimentares azedados”103; era também desse lado que ficava o Beco do Mijo, o
Quinze e a Seis de Agosto com seus tradicionais cabaré, a exemplo do Chico
Aurélio, que rivalizava com a Bagunça da Anália, no Papouco, um raro ponto de
boemia e prostituição do lado de Penápolis.
Rios e barrancos do Acre é marcado por uma escrita que transita entre a
narrativa ficcional e a narrativa histórica, evidenciando não apenas a tênue
fronteira que as separa, mas a extrema dificuldade de localização do lugar exato
onde elas se bifurcam. Nessa direção, ganha importância destacar que o próprio
autor julga sua obra como “uma pálida expressão da verdadeira realidade” das
vidas e dos sofrimentos das mulheres e homens que viveram o “resignado e
anônimo esforço de integração política, social e econômica do Acre”104. Mario
99
Maia, Rios e barrancos do Acre, 1980, p. 27.
100
Maia, Rios e barrancos do Acre, 1980, p. 32.
101
Termo emprestado a Mary del Priore e Flávio Gomes (Orgs.), Os senhores dos rios: Amazônia,
margens e histórias, 2003.
102
Maia, Rios e barrancos do Acre, 1980, p. 77.
103
Maia, Rios e barrancos do Acre, 1980, p. 95.
104
Maia, Rios e barrancos do Acre, 1980, p. 15.
109
Maia enfatiza que escreveu um documento memorialístico sobre suas próprias
experiências e sobre as experiências de outras pessoas e localidades diversas, que
tenta transpor para as páginas de seu livro sob a mediação de uma linguagem
que deseja a mais fiel, a mais objetiva, a mais verdadeira possível, como afirma
no prefácio à primeira edição e na nota de “esclarecimento” à segunda edição.
Em suas palavras, considerando a “natureza dos assuntos tratados”, o interesse
pelo livro continua atual, “talvez mais do que na época de quando foi escrito.
Isto porque nos dias de hoje (1980), alguns dos lugares referidos já não mais
existem, levados que foram pelos desbarrancamentos. Outros apresentam-se
profundamente desfigurados pelo tempo e pelo progresso”105.
Mário Maia acredita firmemente na inseparabilidade entre a linguagem
e o acontecimento ou a coisa narrada e, com base nessa crença, apresenta os
trabalhadores da floresta – e da cidade – como falantes de uma língua portuguesa
que denuncia sua condição de subalternos e carentes de civilização ou carentes
de um falar que supõe correto e fluente. Um “falar correto” que, em seu romance,
é atributo do narrador e de personagens como o doutor Melinho (seu alter ego)
e o coronel Fermiro, “dono do rio Macuã”. Porém, a “verdadeira realidade dos
fatos” narrados por Maia é tecida como parte da mesma trama de tudo aquilo que,
em meio à sua narrativa do real, foi ficcionalizado. Mesmo que seja considerada
“um misto de realidade e de romance”, como assinalou Adalberto Sena106, sua
narrativa não deixa de ser trama, aqui apreendida no sentido atribuído por Paul
Veyne, ou seja, como “uma mistura muito humana e muito pouco ‘científica’ de
causas materiais, de fins, de acasos”. Trama porque a realidade vivida/passada
ou rememorada por Mário Maia é completamente humana, assim como o objeto
de estudo de qualquer “historiador é tão humano quanto um drama ou um
romance”. Em qualquer que seja a situação, a “trama pode se apresentar como
um corte transversal dos diferentes ritmos temporais, como uma análise espectral:
ela será sempre trama porque será humana, porque não será um fragmento
de determinismo”. Os fios que tecem os acontecimentos narrados por Maia são
tramas ficcionais e históricas, tramas humanas, pois “os acontecimentos não
são coisas, objetos consistentes, substâncias; eles são um corte que realizamos
livremente na realidade, um aglomerado de procedimentos em que agem e
produzem substâncias em interação, homem e coisas”107.
Assim como Mário Maia, a escritora Florentina Esteves, também nascida no
Acre, assume a empreitada de produzir uma narrativa memorialística em seu
Enredos da memória, cujo sugestivo título já indica algumas interessantes pistas
em torno dessa criação escrita. Atento a essas pistas, Ivan Cavalcante Proença, em
prefácio ao livro, destaca que “enredo é trama” e “é rede”. Trama e rede tecidas
pela memória que “também tece tramas e enreda” em um “universo ficcional”
em que realidade e fantasia se “harmonizam e, por vezes, se acomodam”.
Acomodamento que Proença antevê ao sinalizar que Esteves “transita por campos
e meandros múltiplos”, marcados por tecituras de tempos, “espaços e gentes
acreanos”, com a história, enquanto “fio narrativo literário ou histórico mesmo”,
sendo explicitada em parte do livro na condição de “fatos e versões oficiais”108,
fatos que surgem, como no saber popular, do ato de enredar, ou seja, do ato de
105
Maia, Rios e barrancos do Acre, 1980, p. 19.
106
Sena, Apresentação, 1980, p. 18.
107
Veyne, Como se escreve a história, 1998, p. 42 e 46.
108
Proença, Memória dos enredos, 1990, p. 9.
110
contar o ocorrido com as cores, sentimentos, entonações recriadoras de quem
conta, delata ou denuncia algo, um mal feito, uma desobediência doméstica ou
escolar, uma intriga de rua, um beijo ou um namoro às escondidas. Nesse caso,
enfatiza Proença, fatos e versões aparecem enredados na lógica do “quem conta
um conto aumenta um ponto”.
Florentina Esteves introduz seu livro com uma “autobiografia estilística”
e algumas “ressalvas” aos leitores. Nelas lembra que sua trajetória vem de um
“tempo em que Governador era Interventor, e a brisa do rio tangia poeira fina
das ruas sombreadas de mangueiras”, um tempo em que “não havia asfalto nem
estradas, só o ‘Ford de Bigode’ do Eduardo Pinho”. Um tempo de catraias fazendo a
travessia do rio Acre, entre os dois distritos da cidade e os “gaiolas ou chatinhas”,
apitando na curva da “Judia”, era sinônimo de “alegria da mesa renovada e farta”.
Tempo de bailes na Tentamen, de idas ao Cine Theatro Eden e de descobertas
“que os limites do quintal continuavam na rua”, brincando de “manja, macaca e
peteca, de boneca e de roda”. Tempo de friagens com suas nuvens baixas ou de
“rio cheio, balseiro passando sempre, sinal de alagação. Mundo de água na rua e
nos quintais, sem cercas e sem fronteiras”. Seus enredos são por ela traduzidos
como uma viagem de “regressão no tempo”, de “inversão do curso da vida”, em
“ritmo de alívio e de alegrias” para que, nesse “refluir do tempo, a expressão
antecedesse o pensamento; o acontecer, antes do gesto, e o nascer se antecipasse
à gênese”. Uma viagem de criação e criaturas humanizadas no “útero fecundo
da palavra”. Viagem em que as lembranças vêm à tona, invocadas no “tempo de
agora”, “vestidas com as roupas mais vistosas; as melodias, com as notas mais
sonoras, sem pudor e sem recato o coração-criança”109.
Nessa direção, sem receio de aparecer melancólica, Florentina Esteves tece
uma Rio Branco de palavras, de lembranças selecionadas para fazer sentido
às tramas que enreda contra um presente em que a Rio Branco e o Acre “como
antigamente” foram reduzidos a velhas fantasias de carnaval e fantasmagóricas
fachadas no Calçadão da Gameleira. Suas lembranças são as lembranças de um
mundo que ruiu e que somente pode retornar pelos fios da trama, da palavra escrita,
da narrativa histórico-literária de quem busca enfrentar os perigos dos tempos
presentes na idealizada segurança de tempos passados, agora materializados em um
mundo de linguagem. Nesse mundo ela enquadra distintos personagens seguindo
os papéis que seus enredos lhes confere: Juvenal Antunes, poeta “pequeno, magro,
desdentado, o cabelo avermelhado. (...) Alegre, bem-humorado, irreverente, mordaz,
gesticular farto, novidadeiro”, povoando de “solidão o vazio, fantasias, desfastio
daquele Rio Branco anos vinte-trinta”; Epaminondas Martins, interventor “que
passou o cargo e a pobreza do ‘impávido torrão pátrio’ a Fontenelle, que o repassou
a Meninéa Pereira”; Capitão e governador Oscar Passos e sua esposa Yolanda,
brindando a “distinta sociedade acreana” com seus bailes no Palácio ao som da
Orquestra da Guarda Territorial repetindo incansável o “Danúbio azul” que tanto
agradava ao governante; Coronel e governador Luiz Sylvestre Gomes Coelho, o “bom
velhinho”, e sua esposa, dona Izollete, promovendo a caridade cristã e obras da
Legião Brasileira de Assistência; Major e governador Guiomard Santos e sua esposa
Lydia Hames, “divisor de águas” que instituiu a “modernidade na cidade” e marcou
o Acre com “educação renovada, agricultura, ‘Processo Arantes’, saúde, transporte,
estradas, escolas, obras, mini-reforma agrária, jornal, rádio”, transformando o
Território Federal em Estado; dona Yayá, que morava na Seis de Agosto, ensinava
109
Esteves, Enredos da memória, 1990, p. 11-13.
111
bordado e envelheceu num “tempo de deslembrada memória”, feito uma moldura
na janela, com um “louro desmaiado” nos cabelos que foram embraquecendo,
“alta, descarnada”, prendada com “mãos de fada”, comprometida com um amor
irrealizável, um noivado, um casamento com aquele que nunca chegou, mesmo que
fosse o Amadeu, arigó letrado que residia no Seringal Sericóia e, de vez em quando,
aparecia em Rio Branco onde “espairecia o fastio (...), no Beco do Mijo, Papouco ou
no fim da Seis de Agosto” até o dia em que lhe prometeu casamento e nunca mais
voltou; Raimundo Doido, com “seus quarenta anos, baixo, parco em carnes”, calçado
com “sapatos de seringa e as calças, que trazia amarradas com uma tira de pano”,
arregaçadas “até o meio da perna”, uma espécie de arauto da cidade que “fazia
mandados, pequenos carretos, capinava quintal, baldeava casa” e anunciava os
acontecimentos, as inaugurações, as chegadas e saídas de autoridades, os eventos
artístico-culturais e outras efemérides de modo performático pública: “três passos
pra frente, três passos pra trás, batia o tambor. Caminhava mais um pouco até onde
as pessoas pudessem vê-lo. Parava. Três passos pra frente, três passos pra trás, um
gingado, batia o tambor” e, estufando o peito, retirava do “bolso da camisa suja
amarrada na cintura puxava um papel amassado” que virava e revirava várias
para encenar seus anúncios desde o Hotel Madrid, parando na “esquina do Beco-
do-Mijo”, depois em frente ao “Pavilhão”, seguido da “farmácia do Lopes, depois
no Demétrio Fecury, ganhava a rua África, voltava pela Seis de Agosto, rumava
pro outro lado, rataplã, rataplã”; Bito, com suas botas, seu colete franjado, lenço
em volta do pescoço, chapéu de caubói, dois revólveres de plástico enfiados nos
coldres à cintura, todos os dias e nos mesmos horários, sentava-se em frente ao
Bar municipal para contar as histórias de suas imaginárias aventuras, povoando
sonhos, criando fantasias, enfeitando a vida das crianças que lhe ouviam; Diva,
caminhando pelas ruas, “riso berrante, aberto, travava e tropeçava nos agudos,
subia o tom, fugia-lhe a voz de todo, tornava ao grave, grunhia, recomeçava. Chutava
no chão lixos imaginários, xingava. Rua acima, rua abaixo. Sulcada a terra do
repetido trajeto, pára e boceja”, convive com os animais da rua, cachorros, gatos, e
amamenta seus filhotes; Garibaldi Brasil, um “artista” que ao dedicar seu “Mosaicos
da Cidade Nascente” ao casal Guiomard Santos e Lydia Hames, angariou gratidão
e “benfazejas benemerências” que lhe ajudaram a continuar enfrentando com
irreverência, inquietude e brincadeiras a “apatia da vida modorrenta da cidade”;
professora Sizínia Costa Feitosa, dona Mozinha, com sua “voz estridente, gesticular
brusco”, olhar forte e palmatória ao alcance das mãos, era capaz de “amansar
qualquer menino”; Padre José, “médico, Juiz-da-Paz, herborista, metereologista,
amigo e conselheiro, parteiro”, ouvidor de confissões de patrões e espoliados110.
Transitando entre as inúmeras mulheres com seus específicos afazeres, os
homens de poder e os “doidos” – de plantão em inúmeros escritos sobre a cidade
e, em grande parte, caricaturas de olhares estereotipados – as personagens de
Esteves são tecidas com afeto e ecoam a Rio Branco que planta em sua narrativa.
Afetividade que não a livra de tentar ocultar as tensões sociais ou suavizar
estereótipos comuns no que se refere à questão étnica, como evidencia em “Receita
para ‘brabo’” ao “descrever” a tacacazeira, Donana, uma “preta velha, gorda”, que
tinha residia no “térreo do ‘Pombal”, um lugar com “chão de terra batida, escuro e...
fedia”111; ou quando procura romantizar o caráter trágico e violento do cotidiano
110
Essas personagens – e trechos transcritos – constituem praticamente todo o capítulo três da
obra de Florentina Esteves. Ver Enredos da memória, 1990, p. 48-88.
111
Esteves, Enredos da memória, 1990, p. 119.
112
das “mulheres do Beco do Mijo”, em uma dos mais impactantes e significativos
textos de seu Enredos da memória. Imersa em paradoxos, mesmo a partir de uma
memória seletiva, Florentina Esteves percorre sinuosos caminhos na tecitura de
sua cidade. Cidade de um “tempo deslembrado”, que irrompe em seus escritos,
feito ciranda, peneirando, filtrando lembranças que se enredam na composição
das relações sociais de uma filha de proprietários e comerciantes que vivia no
cerne da “sociedade riobranquense” e não no entorno, nos diferentes mundos e
“comunidades de destino” que viviam fora dos traçados dos limites dessa cidade,
separadas como áreas de “desterro”, ou seja, seringais, colônias e outras pequenas
comunidades distribuídas ao longo das terras do antigo Seringal Empresa.
Em tom nostálgico, parte substancial de sua narrativa é contextualizada
no interior de um “tempo sem data”, tempo em que bucólicas “manhãs irisadas
por entre o verde da folhagem da mata escandeciam o ar parado” e, “quando
a tarde caía por sobre o rio, se ouviam grilos, sapos, pios, arrepios na noite”,
iluminada pelos candeeiros.112 Governando sua narrativa, é possível surpreender
as metáforas do amazonialismo, que separa cultura e natureza, vinculando esta
última ao primitivo e atrasado, e abre espaço no texto de Esteves que segue
enredando e presentificando uma “Maria Ferrante, a florista”, que “fazia flores
enquanto escutava a própria voz entoando ladainhas ou mal lembradas canções
italianas” ou as bordadeiras, Marina e as irmãs Julieta e Luzia, que bordavam
com “mãos velozes”, matizando “nas cores em harmonia o bailado dos cetins,
lamês, linhos”. Nessa cidade platônica, cuja geografia ocupa uma pequena faixa
de terra com ruas, praças, becos, casas, palácio do governo, igreja, mercado,
quartel, escolas e outras edificações distribuídas nas duas margens do rio Acre
e suas beiras de barrancos, os papéis sociais não se confundem e obedecem aos
compassos das tramas da autora em verdadeiras ladainhas: “faziam doces as
doceiras”, Palmyra e Ida Rodrigues, com seus “beijo-de-moça, queijadinhas, bom-
bocado e o monumental bolo confeitado”; “costuravam as costureiras Carmelita,
Almira e Candinha”, no diuturno pedalar na cadência do ritmo da máquina e na
feitura de “vestidos, saias e enxovais de noivado”; “ensinavam as professoras”
Mozinha, Hilda, irmãs Fecury, Vilarouca, as Baymas, Yayá, dona Benvinda e Selva
Leite; tocavam piano as pianistas Jandyra, Elza Bayma, Helena Leal, Clarice, todas
hábeis na execução dos “mesmos tangos e valsas que lhes ensinara Hilda Leite”;
ajoelhadas na igreja, “cantavam bendito as beatas”; no meio das tardes, “as moças
se arrumavam e, da janela, ou cadeiras na calçada, espiavam os rapazes que
de longe as namoravam”; as crianças brincavam de gente grande: “as mamães
amamentavam, taberneiros tabernavam, cozinheiras cozinhavam, doceiras faziam
doces, costureiras costuravam e bordadeiras bordavam o enxoval do bebê que
esperavam. E por entre catraias de toldo azul, sem pressa passava o rio. Naquele
tempo sem data”113. Tempo em que a cidade girava em torno do movimento do rio,
que espelhava o verde “no apito dos navios que partiam ecos de anseios, miragens
de arco-íris”; rio “indolente, em estios, por igapós”, deixando-se “ficar a esperar
novas enchentes, na esperança renovada da partida. Balseiros encalhados nos
barrancos. Barrocos os meneios do rio, redemoinha, e em torno de si mesmo faz
remanso. Míngua, não porfia. Silencia”114.
112
Esteves, Enredos da memória, 1990, p. 85.
113
Esteves, Enredos da memória, 1990, p. 85-86.
114
Esteves, Enredos da memória, 1990, p. 29.
113
Nessa Rio Branco, de florentina Esteves, a vida girava em torno de certo Hotel
Madrid, que pertenceu aos seus pais. Um hotel em que afirma ter vivido a infância,
agora revivida na forma dos signos que também conformam a cidade com seu
“casario informe debruçado nos barrancos, preferindo ver-se refletido nas águas
viageiras”, vigiando o rio Acre que “corria lento” e “vadio para além da Curva da
Judia”115. Cidade de dois lados ou distritos conectados pelo rio, mas, diferente do
que escreveram outros autores que a precederam, marcada pelo encontro de uma
sociedade em duas margens e não pelo maniqueísmo da luta entre a “virtude”
e o “vício” ou entre o bem e o mal. Cidade que foi sendo expandida sobre a
floresta, ritmada pelo “progresso que contagiava o povo”. Cidade de Usina Elétrica,
Cine Theatro Eden e, depois, Cine Recreio; pouso dos primeiros aviões, blocos de
carnaval na Tentamem e Rio Branco Futebol Clube, Mercado Municipal, Palácio
do Governo, Quartel da Polícia, casarões avarandados, Gabinete Árabe de Leitura,
Grêmio de Professores, Instituto Histórico e Geográfico do Acre, Ginásio Acreano,
Escola Normal e jornais de circulação local116 que, em conjunto, referenciam a
capital acreana autora entre as décadas de 1920-1950. Uma cidade que, embora
seja “modorrenta” e “parva”, não é caracterizada pela decadência com a qual
foi urdida por Abguar de Bastos, Océlio de Medeiros, Miguel Ferrante e Mário
Maia, mas pelo sonho do “castelo azul de cristal”, pelos cenários e personagens
lúdicos, pelas brincadeiras inocentes e pueris, pelos saraus e serenatas, pelo
cinema e teatro em uma clareira de “civilização na selva”, por eletrodomésticos
e mercadorias importadas da Europa, por telhas, vitrais, roupas, discos, pianos,
livros e frutas que atravessavam o Atlântico e adentravam o Amazonas e seus
afluentes até o Acre, em navios que abasteciam a cidade para as festas e bailes
de natal e ano novo.
Uma cidade notadamente distante dos “pobres diabos” que viviam no
“desterro dos seringais” ou nas matas, colônias e bairros que iam surgindo no
entorno da “rua”. “Pobres diabos” que Esteves não deixou de enredar, mantendo-os
no interior do bordão da origem “nordestina”, que foi trocada pela busca do
eldorado no “inferno verde” enquanto o “Nordeste”, anacronicamente presente
em narrativas históricas e literárias, ficou no banzo da saudade, obscurecido pela
floresta tentacular, com sua “mata hostil e agressiva”, repleta de “cipós retorcidos,
emaranhados, enroscados a troncos frondosos”, um labirinto viscoso de galhos
e folhas com cobras “zunindo nos ouvidos ou atropelando-se nas pernas” e as
onças esturrando em simbiose com a correria das pacas, tatus, cutias, macacos
e coelhos em um éden infernal completado pela presença de enormes aranhas
saindo de suas tocas em troncos de árvores e pedaços de paus secos e apodrecidos,
enquanto os pés de mulheres e homens – mansos ou bravos – afundavam na
lama e na folhagem para serem tomados pelas jiquitaias no mesmo instante em
que milhares de piuns, meruins e mucuins sedentos e vorazes penetravam pelos
“ouvidos, nariz, olhos, alojando-se nos cabelos” e deixando o “corpo todo um só
repasto”. Enfim, um lugar de “solidão úmida, abafada, pegajosa”, que sugava as
energias dos homens e os empurrava para a cachaça, crentes de nela encontrar
a panaceia para todos os seus males: “pra cortar sezão, tirar verme, espantar
fome, levantar forças, dar coragem pra enfrentar essa vida de degredado, nesta
miséria de fim-de-mundo”117.
115
Esteves, Enredos da memória, 1990, p. 26-28.
116
Esteves, Enredos da memória, 1990.
117
Esteves, Enredos da memória, 1990, p. 105-106.
114
Florentina Esteves lembra e relembra o passado que lhe convém lembrar/
tecer como expressão de um real que se esmera em dar forma numa batalha
incansável e inócua. Suas lembranças são lembranças voluntárias e também
transitam sob o peso opressor da fossilizada narrativa oficial e hegemônica de um
Acre ocupado por nordestinos, mesmo que não existisse uma região Nordeste no
Brasil de meados do século XIX e inícios do XX. O fato é que, em sua narrativa – e
nas narrativas de uma grande legião de historiadores e literatos – seringueiro é
sinônimo de nordestino ou seu descendente. Um nordestino transformado em
categoria étnica, racializado no âmbito do “seringalismo” e da “seringalidade”,
como analisou João Veras de Souza118. Um nordestino tangido pela seca, pela fome,
pela miséria, que também fazem parte do repertório identitário dessa fantástica
invenção. Um nordestino “massa”, estatística da fome e da morte, passageiro
de terceira classe em imundos navios gaiolas, coletivo indistinto, anônimo, sem
rosto e sem voz, um corpo desmaterializado de milhares de seres fantasmáticos
que, oriundo de certo sertão árido, seco e violento, adentrou outro sertão, isolado
e desértico ou vazio de humanidade e de civilização. E, nesse “abismoso reino
de solidão”, foi protagonista de um épico, uma luta titânica contra o deserto e a
solidão, contra as feras humanas e não humanas, contra as “as febres loucas e
breves que mancham o silêncio e o cais”119. Épico que serviu de marco fundador
para a extraordinária invenção do Acre brasileiro, um Acre que virou parte da
narrativa da nação, disputado e arrancado à Bolívia e Peru em batalhas travadas
a ferro, fogo e palavras. Batalhas em que a diplomacia das armas e da desigual
correlação de forças bélicas foi dissimulada por tratados em que aos mais fracos –
“audaz estrangeiro” – a única alternativa era subscrever ou fenecer120. Em síntese,
no seu exercício rememorativo, impregnado de fantasias lúdicas e de certo modo
de conceituar a realidade, Florentina Esteves adentra o pantanoso terreno da
memória histórica da cidade, base de sustentação da cristalizada história oficial,
a história una, indivisa, triunfante e marcada por uma “racionalidade totalitária
que define vectores lineares de tempo”121. Um tempo que avança insustentável,
vago e inchado de retóricas repetitivas, de fantasmagorias, de sangue e destruição
ocultos pelo dissimulado bordão da “ordem” e do “progresso”. Tempo de uma
perspectiva sedentária, mesmo que fundado numa errância que foi soterrada
pela “maquinaria discursiva” que a isolou e neutralizou no além-mítico da saga
indolor e incolor dos pioneiros ou desbravadores e sua obsessão por lugares,
florestas e mulheres virgens; tempo que segue impassível desde o ato inaugural
da narrativa que o funda na condição de mito de origem ou marco civilizatório –
em eterna “evolução” e “desenvolvimento” – até chegar ao presente. Um presente
redimido pela escrita/reescrita do mesmo, incessantemente pintado com as cores
nauseabundas da propaganda estatal, que inventa e reinventa um tipo acreano
ou essência acreana, certa acreanidade que “atravessou e venceu” o deserto
“inferno verde”, mesmo que sob o signo da barbárie, da violência e da cobiça
sem medida, justificada pelo discurso da integração e defesa da nação e suas
fronteiras, amansando a “selva” e os “selvagens”.
118
Souza, Seringalidade, 2017.
119
Em alusão a um trecho de “Corsário”, canção e música de João Bosco e Aldir Blanc, 1975.
120
Referência ao Tratado de Petrópolis, entre o Brasil e a Bolívia, 1903; e Tratado do Rio de Janeiro,
entre o Brasil e o Peru, 1909.
121
Vilela, Corpos inabitáveis. Errância, Filosofia e memória, 2001, p. 233.
115
Para concluir devo salientar que, nessas narrativas da “literatura de expressão
amazônica”, o Acre, seus rios, florestas, gentes e cidades são sempre marcados
pelo emblema da distância e da solidão, do vazio, solitário e isolado, do deserto
e da inundação, das pragas de mosquitos e das doenças, das inundações e das
estiagens. Envoltos nesses signos o homem é a imagem do sertanejo, mas também do
aventureiro nacional a domar os sertões, a amansar a terra e a disputá-la com outros
tipos humanos, sejam eles “selvagens primitivos” ou “estrangeiros” de inúmeras
nacionalidades. Intocável nessa literatura é a ética da conquista, do triunfalismo, do
“heroísmo dos que lutaram pela terra”, que deram seu sangue por uma causa e “essa
causa era a causa do Brasil”. De um Brasil que também hostiliza e abandona e suga
e explora esses homens, que “lutam pela liberdade e pela autonomia” em torno da
imaculada imagem de Plácido de Castro, “nosso” caudilho laureado no panteão dos
heróis da pátria. Nessa literatura ganha espaço uma ética não do silêncio, mas do
silenciamento, pois os indígenas que viviam/vivem nas terras em que está encravada a
capital acreana nunca são mencionados. Foram silenciados, ignorados, invisibilizados
para serem esquecidos e os escribas esqueceram que esqueceram. Na ética e estética
do heroísmo, nossos heróis são movidos pelo altruísmo do desinteresse econômico
e do interesse da defesa da pátria, mesmo quando essa pátria sequer existia. São
nordestinos oriundos de um Nordeste que também sequer existia, mas continua
sendo cantado em verso e prosa de modo paradoxal, mas como eficiente sustentáculo
da dominação e dos dominantes do passado e do presente.
Referências
116
ALBUQUERQUE,Gerson Rodrigues de. Leituras de Stuart Hall em cenários
amazônicos, In: Projeto história 56. São Paulo (SP): Educ, 2016, p. 115-136.
DEL PRIORE, Mary; GOMES, Flávio (Orgs.). Os senhores dos rios: amazônia,
margens e histórias. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.
FERRANTE, Miguel Jeronymo. O silêncio. São Paulo (SP): Editora Ática, 1979.
MAIA, Mário. Rios e barrancos do Acre (romance). 2. ed., Brasília (DF): Centro
Gráfico do Senado Federal, 1980.
MEDEIROS, Océlio de. Jamaxí: a poesia do Acre em três tempos (hoje, ontem e
anteontem). Rio de Janeiro (RJ): Arquimedes Edições, 1979.
PROENÇA, Ivan Cavalcanti. Memória dos enredos, In: ESTEVES, Florentina. Enredos
da memória. Rio de Janeiro (RJ): Oficina do Livro, 1990, p. 9-10.
117
VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Tradução de Alda Baltar e Maria
Auxiliadora Kneipp, 4. ed., Brasília (DF): Editora da UNB, 1998.
ZANNINI, Iris Célia Cabanellas. Fragmentos da cultura acreana. São Luís: Corsup/
Edufma, 1989.
118
Os Bora e os Uitoto do noroeste amazônico no
relato antropológico de Thomas Whiffen
122
Há inúmeros viajantes que viveram ou passaram algum tempo na região amazônica. Ver, por
exemplo, Gaspar de Carvajal (1542), Lope de Aguirre (1561), Walter Raleigh (1595); Cristóbal de
Acuña (1640); Pe. João Daniel (1750), Pe. Samuel Fritz (1689), La Condamine (1735), Alexandre
Rodrigues Ferreira (1783), Charles Waterton (1812), Spix & Martius (1817), Henry Lister Maw
(1819), Robert Schomburg (1834), Paul Marcoy (1846), Richard Spruce (1849), William Chandless
(1861), Luís e Elizabeth Agassiz (1865), James Orton (1865), Henry Bates (1848), Alfred Wallace
(1848), Lewis Herndon e Lardner Gibbon (1851), Charles Hart (1867), Pereira Labre (1872), Edward
Mathews (1873), Jules Crevaux (1876), Henri Coudreau e Olímpia Coudreau (1882), Ermano
Stradelli (1889), Theodor Koch-Grünberg (1903), Walter Hardenburg (1907), Henry Tomlinson
(1910), Hamilton Rice (1924) e muitos outros viajantes-cronistas. Na verdade, há uma miríade de
escritores-viajantes que têm a região amazônica como palco de suas escritas, de exploradores a
repórteres investigativos.
123
The North-west Amazons: notes of some months spent among cannibal tribes (2009), de Thomas
Whiffen. Todas as traduções das citações referentes ao relato de Whiffen são do autor deste texto.
124
Whiffen, 2009, p. 02.
125
Ibidem, p. 03.
120
No entanto, dentre todos esses nomes extratribais registrados, conforme
citados anteriormente, Whiffen estava consciente de que esses nomes de grupos
indígenas eram “meros apelidos dados por tribos vizinhas”126. Assim, os Bora
eram tidos por seus vizinhos Uitoto como “caras de porco” e, em contrapartida,
os últimos eram chamados pelos Bora de Uitoto, o que siginificava “mosquitos”127.
Todos esses nomes de grupos linguísticos indígenas faziam parte de uma
nomenclatura exotérica e, portanto, aos viajantes, era praticamente impossível
saber, verdadeiramente, como os indígenas se autodenominavam, considerando-se
que eram seus vizinhos quem os nomeiavam dessa ou daquela forma, como pontua
Whiffen em suas reflexões antropológicas. Ou seja, ao usar o termo exotérico,
Whiffen se refere aos nomes indígenas extratribais. A palavra uitoto, por exemplo,
quer dizer inseto, numa forma depreciativa de nominar o Outro. Assim, Whiffen
se apoia em Jules Crevaux, viajante que o antecedeu, para afirmar que os Carijona
e os Roucouyennes usam o termo uitoto com o sentido de “inimigo”. O que fica
claro é que os próprios indígenas nem sempre se autedonominam como o viajante
ouviu o nome de tal grupo pela primeira vez, posto que são sempre nomes dados
por outros grupos indígenas e nem sempre esses nomes são reconhecidos pelos
nomeados. O termo Menimehe, por exemplo, diz Whiffen significar “cara de
porco” na língua dos Bora; e assim sucessivamente.
Adentrando um mundo indígena em agonia, já que essa região estava
submetida a uma prática colonialista predatória executada por funcionários
de La Casa Arana, com venda das ações da Peruvian Amazon Company na Bolsa
de Valores de Londres, Whiffen – apesar de seu relato não deixar claro como
conseguiu adentrar esse território que estava sob o dominio do terror128, nem de
descrevê-lo e muito menos denunciá-lo ao mundo metropolitano – “estava ansioso
para descer esse rio e descobrir, se possível, o destino de Eugene Robuchon, o
explorador francês que tinha desaparecido há cerca de dois anos”129 e que estava
na região sob um contrato assinado com o governo do Peru e a empresa caucheira
mencionada. Ao contrário de Thomas Whiffen que, afastado do seu ofício no
exército britânico, decidiu visitar a Amazônia indígena por contra própria e,
dessa maneira, contribuir com os estudos antropológicos sobre povos nativos da
região visitada, em especial, apresentar os resultados de sua pesquisa de campos
ao Real Instituto de Antropologia da Grã-Bretanha, de cuja sociedade era membro.
Assim, depois de várias conversas com alguns dos sobreviventes da última
expedição de Robuchon, pois “Interroguei cuidadosamente todos os sobreviventes
que encontrei da expedição de Robuchon130“ – Whiffen, desanimado e ciente de que
jamais encontraria o viajante francês, afirma: “Presumo que ele foi surpreendido
por um bando de indígenas, capturado e assassinado ou levado em cativeiro para
seus covis na banda norte do Japurá” (...). “É sobre um desses grupos de indígenas
126
Ibid, p. 243.
127
De acordo com Julio Quiñones, em seu romance etnográfico En el corazón de la América virgen,
“Uitoto é uma palavra de origem Karib, dos Carijona do norte do Caquetá. Provém do lexema
“itoto”, que quer dizer inimigo. Esta designação também serve para se referir a outros grupos
nativos da parte sul do Caquetá, contra os quais faziam guerra com o objetivo de fazer prisioneiros
e comercializá-los como escravos. A grafia reconhecida para Uitoto diferem e apaecem também
como Huitoto, Witoto ou Güitoto.
128
Ver a obra O paraíso do diabo: relato de viagem e testemunho das atrocidades do colonialismo
na Amazônia.
129
Whiffen, p. 05.
130
Whiffen, 2009, p. 06.
121
que, relutantemente, me vejo obrigado a colocar a responsabilidade pela morte
de Eugene Robuchon em março ou abril de 1906”131. A partir desse veredicto, o
viajante britânico informa a seu leitor que
122
É à moda de um náufrago que vem à tona num mar revolto que as descrições
etnográficas whiffenianas têm início, mas não sem muitas comparações e críticas
ao mundo ‘civilizado’ britânico. Aos seus leitores, portanto, urge descrever o que
é uma maloca, ou seja, uma casa tribal dos Bora e Uitoto. Sob o olhar atento de
Whiffen, não há muitos sinais de que nessa clareira residem humanos, porque
“não há lixos nos arredores da casa”, posto que “qualquer resíduo é mais
rapidamente retirado pelas formigas do que seria pelo serviço de coleta de lixo
mais eficiente de Londres”136. Entretanto, para o viajante, “o silêncio e a solidão
parecem muito menos intensos do que na mata”. E os sentidos inquiridores do
etnógrafo, que não sabe a língua dos indígenas, mas tinha contratado John Brow,
um cidadão norte-americano nascido em Chicago137, para ser guia e intérprete,
começam as observações, inquirições e – mesmo que, provavlemente inconsciente
– o processo de tradução cultural, posto que “o processo de tradução tem lugar no
exato momento em que o etnógrafo se envolve com um modo específico de vida
– assim como faz uma criança ao aprender a crescer em uma cultura específica”
(ASAD, 2014, p. 229).
Vale salientar que Whiffen não esteve entre os Bora ou entre os Uitoto com
a intenção de viver como um membro do grupo, mas tão somente de textualizar
sobre um modo de vida completamente diferente e, implicitamente [mas não
tanto], inferior aos seus modos europeus. Portanto, na travessia operada por
Whiffen em sua textualização das culturas indígenas Bora e Uitoto, ele se vale tanto
dos registros de inúmeros outros viajantes estrangeiros à Amazônia – Wallace,
Hardenburg, Bates, Spruce, Martius, Charles Waterton, Sant’anna Nery, Crevaux, in
Thurn, Koch-Grünberg, Hamilton Rice, Alexander Humboldt, Clements Markham,
Robert Schomberg, Silva Coutinho e muitos outros – quanto das traduções feitas
por seu guia-intérprete e, ainda, do manual antropológico Notes and queries on
Anthropology [Guia Prático de Antropologia138] que, de acordo com Whiffen, para
simplificar a transliteração, embora em sacrifício às distinções mais refinadas
da língua, “o sistema ortográfico da Sociedade Real de Geografia, usado neste
trabalho, e a explicação do sistema dado nos apêndices [do relato de Whiffen]
com os vocabulários Uitoto e Bora – foram retiradas das regras estabelecidas por
essa sociedade e adotadas pelo Instituto Real de Antropologia”139. Além do mais,
como assevera Asad (2016),
Durante os sete meses em que esteve nos territórios indígenas dos rios Içá e
Japurá – na verdade nos rios Putumayo e Caquetá colombianos – Whiffen tanto
fotografou grupos, casais, pajés, dançarinos, crianças, mulheres e homens indígenas,
136
Ibidem.
137
Ver o texto “John Brown: um personaje de leyenda y testigo de excepción”, de Ramiro Rojas
Brown. In El paraíso del diablo: Roger Casemen y el informe del Putumayo, um siglo después.
Sampedro, Bonilla e Camacho (organizadores). Bogotá: Editorial Kimpress SAS, 2014.
138
Guia Prático de Antropologia. Trad. Octavio Mendes. São Paulo: Cultrix, 1973.
139
Whiffen, 2009, p. 249.
123
quanto fez desenhos de plantas, palhas, instrumentos musicais, utensílios de
cozinha, objetos do vestuário, implementos agrícolas, adornos plumários indígenas
e, obviamente, como não poderia de deixar de fazer, como prova o subítulo de seu
relato [notas de alguns meses que passei entre tribos canibais], descrever as razões
da prática de canibalismo, assunto discutido mais adiante.
Todos esses registros iconográficos servem como comprovação de que o
viajante explorador esteve entre esses povos e lhe garantem a validação de
seu trabalho etnográfico, além de servirem [essas ilustrações] como inspiração
para as suas ponderações acerca dos hábitos e costumes desses ‘filhos da mata’,
como escreveu em seu relato. Whiffen procurou textualizar tudo que estivesse
relacionado aos Bora e Uitoto, que foram os dois grupos com os quais se preocupou
e os únicos com os quais foi possível tratar no seu relato, apesar de várias menções
a outros grupos, simplesmente como categorias de comparação.
Assim, Whiffen começa a sua etnografia pela descrição da maloca, dos
utensílios de cozinha, rotina diária dos indígenas, dos insetos, animais de estimação,
contendas intertribais, tribos amistosas e inimigas, o interminável estado de guerra,
comércio e comunicação intertribais, parentesco, o cacique [xamã], sua posição
e poder, leis, conselho tribal, consumo de tabaco e de álcool, sistema e regras de
casamento, posição social das mulheres, indumentárias usadas nas festas, os
cuidados com os cabelos, as marcas tribais, as pinturas corporais, os venenos, os
tabus, as crenças e o sistema mágico-religioso, os escravos, até chegar aos mitos e
divindades desses dois grupos linguísticos e, ao final do relato, ponderar que
124
um povo neolítico – dificilmente outra coisa; um povo emergindo das condições
instáveis de caçadores paleolíticos, agrícolas, mas ainda não pastoris, e dessa
forma permaneceram ao longo dos séculos”142.
Sobre a questão musical desses grupos linguísticos etnografados por Whiffen,
o viajante dedicou dois capítulos de seu relato, o XV e o XVI. Assim, cabe ainda
pontuar que o viajante registrou algumas canções indígenas que, sob um viés
pós-colonialista – ou seja, contrária a qualquer prática colonialista – comprovam
que esses grupos linguísticos de nativos do Putumayo e adjacências não eram
‘crianças crescidas’, mas pessoas capazes de reflexões políticas quando da
presença do estrangeiro em suas terras, porque, perguntam os Uitoto: “O que quer
o forasteiro?” Para ilustrar esta afirmativa, apresento uma canção registrada por
Whiffen no capítulo XVI, quando de uma dança realizada por algumas mulheres
Uitoto, que questionavam a presença do viajante na região.
Ei-fo-ke, o mutum-de-bico-vermelho.
É este, então, o nome cativante
Que suas amantes lhe sussurram
Quando dele querem se enamorar?
Não, isso não é bom!, o mutum-de-bico-vermelho
É um pássaro com bico vermelho.
Sim, um longo e afiado bico vermelho.
E uma cauda longa e pendente.
Não, o nome dele não é Ei-fo-ke.
Que o seu nome de amante seja Okaina!
É digno de nota que, de acordo com Whiffen, os indígenas não tinhiam coesão
nas suas produções e a reiteração era a característica marcante de todas as suas
canções. Assim, para o viajante, o som e o ritmo da canção cantada durante a dança
142
Whiffen, 2009, p. 266.
125
pelas mulheres Uitoto lhe sugeriram a métrica da canção de Hiawatha, poema épico
baseado em lendas dos povos nativos da América do Norte, que foram compiladas
pelo poeta norte-americano Henry Wadsworth Longfellow (1807-1882).
Ao fazer a compilação e a tradução desse poema-canção dos Uitoto, Whiffen
foi um tanto quanto inocente por não perceber que, de fato, a canção era um ato
de questionamento em relação à sua presença ali. Além de ter sido comparado
ao mutum-de-bico-vermelho, o viajante é chamado de Okaina, que na língua
Uitoto significava ‘cara de cutia’. De fato, todas as questões levantadas na canção
demonstram que as mulheres Uitoto não estavam contentes com a presença do
viajante, apesar dele não levar em consideração quando de seus comentários sobre
as possibilidades de interpretação da canção, que para ele “o verdadeiro objetivo
em todas essas canções era introduzir e discutir assuntos sexuais, e nenhuma
canção [indígena] ultrapassava esse assunto antes de se tornar essencialmente
carnal em ideia e completamente licenciosa em expressão143”.
Ao que se pode inferir, há uma continuidade da ideia de “marketing
primitivista”144, considerando-se que o nativo é apresentado, em Whiffen, ora
como ‘selvagem’ vingativo e também como um ocioso, que gasta a maior parte
do tempo em ‘passeios”, ora como um ser ‘inocente’, por haver demostrado
grande interesse em minhas botas e ficar intrigado para saber como eu
entrava nelas. Uma bengala era-lhes um enigma sem resposta e nunca
ocorreu-lhes que eu poderia usá-la como apoio na caminhada. Meus
óculos e minha câmera fotográfica eram demônios misteriosos para
ler seus corações e roubar suas almas, como já relatei. Meu relógio,
com um alarme, causou-lhes consternação em suas mentes simples.
Meu fonógrafo, que reproduzia e repetia as danças, levantou gritos de
surpresa (WHIFFEN, 2009, p. 264).
143
Whiffen, 2009, p. 209-210.
144
Ver Jean-Pierre Chaumeil, “Entre teorias raciales y exhibitiones: em torno al informe
de Casement sobre el Putumayo”. In El paraíso del diablo: Roger Casemen y el informe del
Putumayo, um siglo después. Sampedro, Bonilla e Camacho (organizadores). Bogotá: Editorial
Kimpress SAS, 2014.
145
Whiffen, 2009, p. 205.
126
Os nativos acreditam em muitas coisas, eles acreditam na existência de
espíritos superiores do bem e espíritos superiores do mal; mas as suas
crenças são sempre imprecisas, um tanto quanto incompreendidas até
mesmo por eles. Em certa medida, cabe ao pajé, o principal sacerdote
do sistema mágico-religioso indígena, modificar, ou até mesmo
desconsiderar qualquer crença em curso146.
Whiffen explica ao leitor que, embora o terceiro motivo tenha menos peso
do que os demais, não pode ficar de fora quando o tabu alimentar relacionado
ao parto é lembrado. Todavia, pondera o observador, “eu não sei se tais razões
realmente levam a banquetes antropofágicos em outros lugares, como entre os
Aro, que supostamente, comem a carne de sacrifícios humanos, porque “aqueles
que comeram a carne, comeram deuses e assimilaram algo dos atributos e do
poder divinos”150. Nessa parte Whiffen cita um viajante, algo muito comum em
seu relato, posto que há 61 autores ciados como forma de garantir a “verdade”
ou não dos hábitos e costumes observados por ele. Entretanto, ele mesmo jamais
assistiu a algum banquete desse tipo. Seus registros, em grande parte, são de “ouvi
dizer” ou “eles me contaram” sobre isso ou aquilo.
146
Ibidem, p. 218.
147
Ibidem, p. 235.
148
Ver O paraíso do diabo, de Walter Hardenburg.
149
Whiffen, 2009, p. 120-121.
150
Ibidem.
127
Nesse aspecto, pode-se presumir que se trata mais de uma invenção de
viajantes europeus do que comprovação de fatos. Como o sueco Algot Lange151,
Whiffen se esforça para impigir essa infâmia sobre os Bora e os Uitoto, já que não
viu nem participou de nenhum banquete antropofágico. Muitas de suas incursões
sobre esses dois grupos indígenas são assustadoramente indignas de crença.
Mesmo assim, ele afirma que “Ao contrário das tribos mais conhecidas da Guiana,
se não todos os indígenas dos rios superiores, são, indiscutivelmente, canibais,
especialmente os Bora, Andoke e Resigaro”152. Esse tipo de assertiva whiffeniana
deve ser questionada pelo leitor, ao se levar em conta que esse “Outro” foi
inventado dessa forma como a antítese da Europa. Assim, em muitos relatos,
esse “Outro” é representado, ora como “bom selvagem”, ora como “demônio”.
Muitos cronistas não conseguem refletir sobre o mundo de trabalho desses nativos
que, forçados pelo governo desde os primórdios coloniais, construíram estradas
reais, prédios, portos, cidades. Subjugados a tal regime de trabalho, inúmeros
homens nativos foram arrancados de seus familiares e postos a serviço tanto de
administradores coloniais, quanto de viajantes. Aqueles roubando-lhes a maior
parte da produção indígena, fosse o resultado das suas lavouras, fosse a produção
de borracha e de outras “drogas do sertão”, estes transformando os nativos em
remeiros, mateiros, caçadores, pescadores, enfim, “burros de carga”.
Mary Pratt, em seu estudo da situação dos nativos da América do Sul a partir
de alguns viajantes estrangeiros 153, esclarece que grande parte do conhecimento
espraiado nos relatos de viagem advém do nativo. Diria que sem o indígena, sequer
o viajante cruzaria um rio, muito menos transporia uma região encachoeirada.
Para ver um boto, ele precisa que o nativo o mostre. Assim, do grupo expedicionário
desses outsiders, inúmeros indígenas são “contratados” para realizar as proesas
mais mirabolantes possíveis e impossíveis aos olhos europeus. Subir em árvores
para colher flores ou frutos, carregar os fardos mais pesados da bagagem viajante,
prover o viajante de carne e de peixe, abrir trilhas na mata fechada e guiá-lo no
percurso, montar acampamento, colher raízes e ervas medicinais, em suma, é ao
nativo que deveria ser posta a fortuna da viagem aos trópicos.
Fugir, prática comum dos nativos quando de uma jornada estrangeira pelos
rios e matas amazônicos, é tão somente uma questão de liberdade. Na mentalidade
indígena, o acúmulo – entre muitas outras práticas do mundo “civilizado”
– perseguido pelo capitalismo é algo insano. Whiffen, apesar de depender
completamente dos homens e principalmente das três mulheres indígenas que
faziam parte de seu grupo expedicionário, reclama que, apesar de ele ter deixado
de comer para dar o alimento aos indígenas – muito mais em busca de afeiçoamento
por parte dos nativos do que por bondade natural – fugiram quando tiveram a
primeira oportunidade. Como é dito alhures, “liberdade não tem preço”.
Chegando ao último ponto que merece atenção, a escravidão, também registrada
por Whiffen, é necessário esclarecer que os Maku dos distritos do rio Japurá eram
discriminados por seus “irmãos nativos” de pele mais clara. “As tribos de pele
clara” – afirma Whiffen –“invariavelmente desprezam as de pele mais escura e
consideram-nas inferiores, pois esse é realmente o caso. Os Maku, também um tipo
151
As aventuras de um sueco nos confins do Alto Amazonas, incluindo uma temporada entre índios
canibais. São Carlos: Editora Scienza, 2017.
152
Whiffen, 2009, p. 120.
153
Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: EDUSC, 1999.
128
de pessoas pequenas e de pele escura, são universalmente considerados e tratados
como escravos”154. O termo Maku, de acordo com a literatura etnográfica, é uma
denominação dada por membros de outros povos indígenas e que significa “servo”,
“escravo”, “selvagem”, numa clara distinção entre outros povos que se julgavam
superiores aos Maku, que rejeitavam a denominação devido à conotação pejorativa.
De acordo com Whiffen, entre os membros de seu grupo expedicionário
havia alguns indígenas que já tinham sido escravos, mas o explorador não
esclarece de quem esses homens tinham sido escravos. Porém, ao elaborar as
suas conclusões, se apressa em afirmar categoricamente que eles, os indígenas,
“não conhecem gratidão”155.
Ainda sobre a questão da escravidão na região etnografada por Whiffen,
sabe-se que desde a chegada dos caucheiros, inúmeros indígenas foram caçados
nas matas e forçados à produção de determinada cota de borracha, sendo
escravizados não somente os homens, mas as mulheres e crianças, que eram
obrigadas ao trabalho forçado no que ficou conhecido na historiografia como “o
paraíso do diabo”, numa alusão ao maior barão da borracha no Putumayo e seus
afluentes, Julio Cesar Araña156.
Mesmo entre os indígenas, Whiffen afirma que a escravidão era tão somente
um nome, porque o escravo pertence ao cacique e logo é visto como um membro
da família e geralmente são tratados com gentileza e, provavelmente, sintiam-se tão
bem na casa de seus conquistadores como na de seu povo. Esclarece também que
O que não fica claro no relato de Whiffen é se ele observou essa prática
entre os Bora e os Uitoto. No geral, parece que esses escravos eram cativos de
guerras intertribais. Durante o período de 1876 a 1912, aproximadamente, muitos
membros de tribos inimigas passaram para o lado dos caucheiros peruanos e
foram armados e treinados por seus “patrões” para as odiadas correrias em busca
da captura, muitas vezes, de famílias inteiras, ou do cacique da tribo e do pajé,
154
Whiffen, 2009, p. 60.
155
Whiffen, 2009, p. 263.
156
Sobre esse assunto, ver as obras O paraíso do diabo, de Walter Hardenburg; Diário da Amazônia
de Roger Casement, de Roger David Casement; Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem: um
estudo sobre o terror e a cura, de Michael Taussig; Arana, rey del caucho, de Ovídio Lagos.
157
Whiffen, 2009, p. 69.
129
numa forma demoníaca de forçar todos os membros daquele povo escravizado
a produzir borracha e transportá-la para as diversas sedes das empresas.
A prática de escravizar os nativos da Amazônia, de fato, começou muito antes
da chegada dos europeus, como registra Walter Raleigh158. John Hemming, ao
comentar tal prática, afirma que em Tabatinga, no Alto Solimões, o comandante
da guarnição de fronteira tratava os indígenas como seus escravos. Henry Bates,
quando esteve em Egas (Tefé – Amazonas) percebeu que tanto os seus criados
quanto boa parte da população tinha sido trazida à força dos rios vizinhos. Jules
Crevaux também comentou sobre essa prática tanto pelos próprios indígenas
quanto pelo dito ‘homem branco”.
Para finalizar, informo que, numa viagem ao município de Japurá, no
Amazonas, em janeiro de 2018, tive a satisfação de encontrar e conversar com
um casal de indígenas, o homem era Maku Nadëb e a mulher era membro do
povo Kanamari. Estavam hospedados, com quatro filhos, num hotelzinho da
cidade. A família morava na Aldeia Jeremias, na Terra Indígena Paraná do
Boá-Boá, no município de Japurá. Ali tinham as suas roças e fabricavam seus
artesanatos e ornamentos e vendiam na cidade. Durante a semena que estive na
cidade, conversamos algumas vezes, tanto ao amanhecer, como ao entardecer,
enquanto fazíamos as nossas refeições ou lanches. Seus filhos, muito alegres e
comunicativos, causaram em mim uma grande satisfação, sabendo que viviam
com os pais e demais familiares, frequentavam a escola na aldeia e aprendiam
a língua de seus avós, e, agora que a Terra Indígena estava demarcada, gozavam
de certa paz, disseram-me os seus pais.
Esses filhos nativos dos rios e das matas amazônicas pareceram cientes
de que não estavam vivendo sob o jugo de um barão da borracha que, entre
inúmeras outras ações predatórias contra o seu povo, destribalizou inúmeros
membros indígenas. Muitos de seus parentes viviam agora em outras terras nos
rios Guaviari, Papuri, Tiquié e Negro. De quando em vez, reuniam-se para as
festas da pupunha, da abiurana e do açaí, manifestações culturais que ainda estão
presentes nessas comunidades amazônicas.
Referências
158
A descoberta do grande, belo e rico império da Guiana. Trad. Hélio Rocha. São Carlos: Editora
Scienza, 2017.
130
CLIFFORD, James & MARCUS, Georg. E. A escrita da cultura: poética e política da
etnografia. Trad. Maria Cláudia Coelho. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2016.
LAGOS, Ovidio. Arana, rey del caucho. Buenos Aires: Emecé Editores, 2005.
SAHLINS, Marshall. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1990.
WHIFFEN, Thomas. The north-west Amazons: notes of some months spent among
cannibal indians. London: Cambridge University Press, 2009.
131
D. Pedro Casaldáliga e José Craveirinha: pelo pão
e pelo carvão: poéticas em combustão
Isaac Ramos
A literatura social e engajada é um veio forte e intenso nas literaturas de
língua portuguesa, é matéria quase sempre presente. No Brasil, por exemplo,
nos tempos da ditadura militar, essa literatura foi uma das vozes firmes da
resistência, no final dos anos 60 e toda a década de 70. Em pleno século XXI, devido
a retrocessos históricos marcantes e recentes, essa literatura poderá voltar com
força total. Além-mar, as vozes dos poetas africanos, que um dia foram colônias de
Portugal, Inglaterra ou França, em meio às lutas pela independência, fizeram-se
ouvir cantos armados de combate e afirmação da nacionalidade. Foram tempos
difíceis lá e cá.
Macedo & Maquêa (2007, p. 148) destacam que muitos leitores foram
surpreendidos pelo fato de que literaturas engajadas em grau tão elevado venham
vincadas por uma forte sensibilidade artística, tendo sido tecidas não apenas com
os fios do engajamento político, mas também da radicalidade estética ancorada
na modernidade.
Abdala Junior alerta para o perigo que o escritor militante corre, para que
não caia em uma cilada da redução artística. “Quando se pretende implantar
um regime revolucionário em luta com grandes adversidades, podem ocorrer
momentos de redução” (ABDALA JUNIOR, 2007, p. 99). Ao pensar na qualidade
do texto literário, vem-me à memória o formalista russo Boris Eichenbaum, em
“A teoria do ‘método formal’”, que se vale do termo cunhado por Jakobson: “O
objeto da ciência literária não é a literatura, mas a ‘literariedade’ [literaturnost],
isto é, o que faz de uma dada obra uma obra literária” (apud TODOROV, 2013, p.
38). É com essa literariedade que o crítico literário deve se preocupar, para não
cair na cilada da semiótica das paixões políticas.
Outra preocupação que gostaria de demonstrar é quanto a objetividade e
ao papel do crítico. Nesse sentido, Roland Barthes, ao falar sobre a objetividade
em Crítica e verdade, questiona: “Que é pois a objetividade em matéria de crítica
literária? Qual é a qualidade da obra que ‘existe fora de nós’”? (BARTHES, 1982,
p. 192). Em outra passagem, no item “Clareza”, afirma ser um grave problema
para o escritor o dos limites de sua acolhida. Segundo ele, “é precisamente porque
escrever não é engajar uma relação fácil com uma média de todos os leitores
possíveis, mas engajar uma relação difícil com nossa própria linguagem: um
escritor tem maiores obrigações para com a palavra (...)” (BARTHES, 1982, p. 202).
A maioria dos escritores africanos, que produziu antes da independência dos
seus países, traz uma marca forte do social. Nesse momento penso no conceito
de tragédia aristotélica, como imitação de uma ação completa, com princípio,
meio e fim, ação que deve comportar certa extensão. O período de ditadura aqui
e os países africanos como colônias lá são prova disso. Nesse sentido, vislumbro
o objetivo da catarse, com o intuito de provocar a purgação de suas paixões para
chegar à purificação da emoção teatral. O problema é que tudo que ocorreu foi
real, infinitamente e cruelmente real. Lá e cá.
Como parte da introdução desse texto, abordo a formação da continuidade
literária. Na Introdução de Formação da Literatura Brasileira, no item “Literatura
como sistema”, Candido afirma que: “É uma tradição no sentido completo do
termo, isto é, transmissão de algo entre os homens, e o conjunto de elementos
transmitidos, formando padrões que se impõem ao pensamento ou ao
comportamento” (CANDIDO, 1993, p. 24). Pondera que sem esta tradição não há
literatura, como fenômeno de civilização. Remeto a outros conceitos aristotélicos:
“A Arte tem seu fim numa obra exterior ao artista, pela qual este realiza sua
133
vontade” (ARISTÓTELES, s ̸ d; p. 233). O poeta dá a voz ao sofrimento de um
povo, no caso da literatura social e engajada. Porém, “não compete a ele narrar
exatamente o que aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, o possível,
segundo a verossimilhança ou a necessidade” (ARISTÓTELES, s ̸ d; p. 252).
Após breves discussões dos conceitos apresentados, é chegada a hora de
apresentar os dois poetas que serão objeto de estudo neste texto: o espanhol D.
Pedro Casaldáliga e o moçambicano José Craveirinha.
D. Pedro Casaldáliga possui poemas engajados e religiosos. Bispo Emérito
da Prelazia de São Félix do Araguaia. Nascido em Balsareny, na província de
Barcelona, que pertence à comunidade autônoma da Catalunha, Espanha, em
16 de fevereiro de 1928. Veio para o Brasil em 1968 e, a partir daí, engajou-se em
muitas lutas sociais, nas causas dos desvalidos. Tanto sua missão religiosa quanto
sua vocação literária estão imbuídas de seu empenho social, em busca de mais
justiça e mais respeito aos direitos das minorias. No conjunto de seus escritos,
abordarei trechos de alguns poemas do livro Antologia Retirante, com o intuito
de verificar as manifestações literárias de sua postura combativa e observar
analiticamente como os elementos estéticos aparecem.
Em “Uma palavra de explicação”, que introduz a Antologia Retirante,
Casaldáliga assim se expressou: “Fiz do Brasil a última nova pátria, ainda ‘em
terra estranha’. Faço do Araguaia o meu último Mar Vermelho. Nunca o Brasil
seria expulso da geografia viva de minha alma” (CASALDÁLIGA, 1978, p. 15). Como
Moisés, o poeta religioso espera abrir as águas do rio Araguaia para que o povo
descalço o cruze e faça seu próprio destino.
Quanto a José João Craveirinha, foi o primeiro autor africano a receber o
prêmio Camões, mais importante prêmio literário da língua portuguesa. Nascido
em 28 de maio em Maputo, começou a carreira de jornalista no O Brado Africano.
Oficialmente, foi o primeiro jornalista sindicalizado em seu país. Atuou em
diversos órgãos de imprensa em Moçambique e teve um papel importante na
vida da Associação Africana, a partir dos anos 50. Publicou cinco livros em
vida, duas coletâneas póstumas, isso sem contar dezenas de poemas espalhados
em periódicos e antologia. Deixou um espólio inédito de centenas de poemas.
Dentre seus livros, destaques para Xigubo (1964), Karingana ua karingana (1974)
e Maria (1998).
Para se ter uma ideia da dimensão política e da trajetória desse poeta
moçambicano, apresento trechos de “Carta da cela 1”. É um lampejo da poesia
interior, que não se encontra presa, “da manhã exterior ̸ repartida de cela em
cela”, como um sinal de resistência, e a expectativa da espera por um novo
amanhã de liberdade e amplidão. Enquanto isso “a cidade (...) dorme o seu sono
porreiramente” e “nas suas entranhas amadurece ̸ o feto que se gera insone ̸
aqui nestas mandíbulas ̸ paredes adentro”. A cela é o próprio feto, sem afeto, que
vive dias de comiseração. Nessa engrenagem carcerária as paredes mandíbulas,
metonimicamente, devoram a liberdade pretendida. Só a poesia é livre.
Uma
nostalgia da manhã exterior
repartida de cela em cela
e quantos corações a bater
a bater uníssonos com os nossos.
134
[...]
E a cidade
com seus cornos de celulite
dorme o seu sono porreiramente
enquanto nas suas entranhas amadurece
o feto que se gera insone
aqui nestas mandíbulas
paredes adentro
(AP159, 2010, p. 161).
AUTO-RETRATO
Instinto de solidão.
Vocação de companhia.
Mercadores e marchantes.
Pastores e aldeania.
159
Neste capítulo, para abordar a obra Antologia Poética: José Craveirinha, será utilizada a sigla AP.
160
Neste capítulo, para abordar a Antologia Retirante: poemas, será utilizada a sigla AR.
135
de metáfora, como nos versos iniciais: “Enquanto o rio Araguaia espreguiça ̸ seu
coro de jacaré, incandescente ̸ salpicado de crianças e de pássaros”. (Este último
faz-me lembrar de Manoel de Barros). Temos uma dimensão da força poética do
rio e sua liturgia na obra de Casaldáliga. E de quando o religioso se amalgama ao
poeta, ao dizer: “Eu recordo e espero. ̸ Rezo os salmos já sem vê-los, tíbios”. Alguns
versos depois, o eu-lírico parece ter plena consciência de sua função: “E me sinto
repleto de sentido, ̸ creio de mil razões para encontrar-me aqui, ̸ aconchegado na
paz desta Vigília” (AR, 1978, p. 25).
Em “Nossas vidas são os rios...”, o título carrega uma singela metáfora.
Temos a memória e a história, a força dos retirantes e a reverência do estrangeiro
à natureza que domina e encanta, e (n)o (de)curso da poética de Casaldáliga
apresenta a metáfora do sol: “E eu, pela manhã, lavando-me do sono ̸ com o
espelho incandescente ao sol da outra margem”. (Naturalmente pensei no conto
“A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa).
(....)
As famílias que chegam, retirantes;
os enfermos que vão à deriva;
as cargas, e as cartas trêmulas;
as mulheres batendo a trouxa indiscreta;
os homens na popa, os homens no remo;
e os meninos banhando-se,
somando-se às águas, como peixes.
E eu, pela manhã, lavando-me do sono
com o espelho incandescente ao sol da outra margem;
eu, pela tarde, entrando,
reverente, estrangeiro,
vestido pela luz poente e pura,
na liturgia destas grandes águas...
(AR, 1978, p. 29).
136
margem do rio” (AP, 2010, p. 14). O poema possui um componente sonoro bem
evidenciado, seja no início pela assonância dos sons nasais, [ã], [ĕ], [ŭ], seja através
das aliterações do [t], [d], [r], ora onomatopeicos ora marcando a sua cadência
rítmica. Esse poema é um (en)canto de resistência tribal. Os tambores marcam o
ritmo sincopado do verso. Bruto e impoluto como deve ser um canto de resistência.
Profundamente emblemático é o poema “Grito negro”, que é erguido em
cima de um dobre: “Eu sou carvão”. Como um silogismo poético, o verso vai se
desdobrando e à medida que a palavra “patrão!” aparece a poesia reverbera.
Chama a atenção o recurso da gradação verbal: “arrancaste-me”, “acendes-me”,
“arder”, “queimar”. Estes vocábulos ligados ao sintagma “Eu sou carvão” preparam
as estrofes finais com os seguintes versos: “Até não ser mais tua mina ̸ Patrão!”.
Há uma dupla conotação no emprego da palavra “mina”. Ambas se misturam,
seja como objeto de desejo ou ostentação de riqueza. E no pavio ardente do verso
a poesia fica incandescente. É a resistência à dor que move o ritmo poético.
Pura combustão da linguagem. Um grito negro poético. Um estrondo imenso.
Um inteiro descontentamento. Um carvão grafite in verso que queima, risca e
marca incisivamente a ganância do patrão. A dor pungida, transida, trazida pela
literatura amadurece o protesto e o carvão embrutecido, em átomos de carbono
canônico, um dia tornar-se-á diamante.
Eu sou carvão!
Tenho que arder
E queimar tudo com o fogo da minha combustão.
Sim!
Eu serei o teu carvão
Patrão!
(2010, p. 15).
137
“Por Ele um homem fala ̸ e caminha e espera”. Ele, ao mesmo tempo, “estrangeiro
e nativo como o próprio Evangelho”. No poema de Craveirinha era a farinha
do sarcasmo. No de Casaldáliga “Ele está aqui na farinheira, chata, ̸ levedura
do Reino, ̸ fermentando Luciara” (AR, 1978, p.35). A farinha é uma metonímia
da luta e da tradição do negro. A farinheira é uma metonímia da fé e da luta do
homem do povo.
Em “Estrada de sertão”, o eu-lírico indaga: “De quem é o Brasil? ̸ Que esperam
esses homens? ̸ Por que esperam?”. (In)vestido de uma ironia, diz: (“ – Deus já não
voltará. Veio em seu dia! ̸ Só restam os gritos destas armas!”) ̸ Cada dor humana tem
um limite”. E nas duas últimas estrofes do poema faz uma crítica à própria igreja:
(...)
Depois, enquanto relincham,
fora, como uma tropa,
dúzias de cavalos impacientes,
partilhamos a coalhada, bebemos o café, como uma droga;
e celebramos Missa...
138
A grande festa da igreja católica, que celebra o nascimento de Jesus, é
questionada no poema “Natal?” (o título vem assim mesmo com a interrogação):
“A Noite de Natal – que é Noite de Alegria – “ ̸ ... para tanta Maria ̸ que é mãe no
telheiro ̸ é noite de agonia ̸ a noite de Natal. [...] Homem Novo, onde estás ̸ Onde
está a Alegria? ̸ Que fizemos do Natal ̸ do Filho de Maria ̸ que nasceu do telheiro?”
(AR, 1978, p. 61). Temos a dessacralização da personagem Maria, mãe de Jesus, e a
sacralização do nome Maria como texto literário. É de se notar a personificação de
palavras como: “Alegria”, ‘Homem”, “Paz”, “Direitos”, “Terra”, “Homem Novo”, que
dão uma presentificação à ausência de um Natal verdadeiro. A festa tradicional
fica em segundo plano, pois “é noite de agonia ̸ a noite de Natal”. E o Filho de
Maria é um personagem esquecido pelo Homem Novo, que está sumido, diga-se
de passagem. Afinal, “Proclamamos os Direitos ̸ de uns bonecos de barro”.
NATAL
(...)
Ah, João:
em África há meninos
proprietários do seu Natal
nos galhos de um pinheiro
ou no seu sapato de verniz.
139
Um último tema que quero abordar neste texto é a “ausência”, a partir de
um breve dialogismo. Em Casaldáliga ele se apresenta em “Presenças”:
Encontro-me sempre
entre o instante e a morte.
[...]
Em mim
a solidão é já uma pessoa.
Onde
a um eu que não chora
um meu outro eu
chora tudo
pelos três.
(2010, p. 146)
ISOLAMENTO
[...]
E pela janela
o sol gelado penetra esquartejado
e tatua de cruzes o isolamento”
(AP, 2010, p. 88).
NEGRA
[...]
140
Deixa-me deitar em teus ombros
esta criança africana, de três meses de fogo,
que cresceu comigo, poderosa,
como um clamor de mar, como um deserto, como a noite viva...
Referências
ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. (Trad. Antônio Pinto de Carvalho). Rio
de Janeiro: Ediouro, s ̸d. (Col. Universidade de Bolso).
CRAVEIRINHA, José. Antologia poética: José Craveirinha (Org. Ana Mafalda Leite).
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. (Poetas de Moçambique)
TODOROV, Tzvetan. Teoria da literatura: texto dos formalistas russos. Trad. Roberto
Leal Ferreira. 1. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2013.
141
O fantástico na literatura de expressão amazônica:
ensino e pesquisa
143
O método todoroviano consiste, assim, de determinar se uma narrativa
se mantinha dentro da hesitação – tanto por parte das personagens quanto da
nossa, enquanto leitores – em compreender um acontecimento aparentemente
sobrenatural. Se essa hesitação for rompida, temos duas escolhas: ou entramos
no território do estranho, no qual o sobrenatural não passou de uma ilusão aos
nossos sentidos, ou do maravilhoso, no qual concluímos que estamos diante de
um mundo cujo funcionamento não compreendemos em totalidade. Situar a
narrativa entre uma dessas três categorias torna-se, assim, um dos métodos mais
práticos de se estudar o Fantástico.
Tolkien (2010) não pensa exatamente o Fantástico, mas a fantasia, enquanto
um dos efeitos que todo conto de fadas precisa oferecer para ter sua existência
plenamente realizada. Acreditava que a fantasia era a criação de um mundo
secundário com suas próprias leis, no qual o ser humano do mundo primário só
poderia adentrar sob o efeito de um encantamento, seja a posse de algum objeto
mágico ou a ingestão de substâncias do mundo secundário. Assim o leu Raposeira
(2006, p.27): “A fantasia é a capacidade humana que conduz à criação de outros
mundos, que espoleta o poder da imaginação, que permite vislumbrar o que não
está visível. A fantasia é uma Arte e encontra-se no âmago do processo criativo”.
Não distante da concepção de mimese aristotélica, o conceito que Tolkien faz
de fantasia enquanto espaço secundário torna-a uma categoria tópica de análise
das narrativas fantásticas, noção que aparece no famoso A psicanálise dos contos
de fadas, de Bruno Bettelheim, e que refletiu até mesmo na produção criativa do
próprio Tolkien, como em suas obras mais famosas: O Hobbit e O senhor dos anéis.
Felipe Furtado em A construção do fantástico na narrativa (1980) demonstra
as diversas formas de construção e análise das temáticas trabalhadas na literatura
fantástica. Utilizando-se de exemplos da cultura pop como H.P Lovecraft detalha com
cuidado elementos sobrenaturais e já começa a caracterizar os primeiros elementos
do que viria a ser o insólito, pois o autor utiliza veemente os conceitos todorovianos
de modo a individualizar os elementos sobrenaturais apenas como elemento do
maravilhoso. Para isso, os caracteriza em sobrenatural positivo e negativo. Ambos
teriam ligação com o religioso e o segundo pertenceria ao fantástico por ajudar
“no ordenamento e no equilíbrio do real” (FURTADO, 1980, p. 24). Essas teorias
serão retomadas nas análises dos contos posteriormente, entretanto, precisamos
entender o que os últimos estudos caracterizam como insólito.
Desse modo, recorremos aos estudos de Bruno Anselmi Matangrano
& Enéias Tavares (2018), nos quais os pesquisadores se propõem a resgatar
autores esquecidos pela crítica e buscam mostrar a importância estética e
comercial da literatura fantástica como um todo. Em várias passagens da obra,
os autores ressaltam que a crítica acadêmica e a crítica jornalística brasileira
são extremamente preconceituosas com o movimento, taxando-o apenas como
literatura de entretenimento, basicamente como se não houvesse nenhuma
relevância acadêmica. Entretanto, durante vários capítulos de Fantástico
Brasileiro, é possível perceber a senioridade do movimento no Brasil, tendo como
ponto de partida o Romantismo.
Durante o período, nomes como o de Álvaro de Azevedo dão forças ao
movimento fantástico com alguns elementos nacionais “com sua atmosfera gótica
de terror, mistério e sonho [...] permeada por elementos sobrenaturais, como se
vê em alguns de seus poemas” (MATANGRANO; TAVARES, 2018, p. 29). No próximo
capítulo, destinado ao naturalismo, Machado de Assis e o paraense Inglês de Sousa
144
são mencionados, reforçando o argumento de que o movimento não é algo novo,
mas já existia há tempos e não deve ser desprezado e muito menos esquecido pela
crítica, visto que o mercado edital aposta muito no fantástico devido ao grande
consumo do gênero pelo público brasileiro.
No epílogo do livro, os autores propõem o Fantasismo como um novo
movimento literário, sendo assim, é a última estância até a escritura desse texto
sobre as vertentes do fantástico. “O fantasismo é um novo movimento literário
cuja origem parece coincidir com o novo século, mas, sobretudo, a partir de 2010,
quando o mercado de literatura fantástica brasileira começa a se estruturar de
fato.” (MATANGRANO; TAVARES, 2018, p. 262). Logo, dentro desse novo movimento
estaria contido tudo o que era intitulado como insólito, ou seja, tudo o que desviava
das características do fantástico todoroviano.
145
quanto nós? E tão determinantes para nosso estilo de vida quanto as forças da
natureza? Eis a distância que tais teorias criam entre seus conceitos de fantasia e a
compreensão plena da experiência do imaginário amazônico, não o contemplando.
Ao observar os imaginários que surgem da expressão latina, não mais
europeia, Roas (2014) considera a ideia de um mundo secundário como não
condizente com a realidade literária a partir do século XIX, no qual a produção
literária se descentraliza do eixo europeu:
Do lendário ao fantástico
146
de um tempo primeiro, no qual se origina algo ou alguma coisa, ao qual sempre
voltam os que nele creem por meio de práticas ritualísticas. Para Kêhíri (1995.
p.11), a transcrição dessas narrativas assumiu a função de reafirmação identitária:
Como o sopro das flautas – que, não à toa, têm forma fálica – era uma
atividade que assegurava o poder dos homens sobre a dinâmica social, estes se
viram obrigados a recorrer a Gõãmû, o herói-civilizador161, para lhes devolver
o que havia sido roubado, uma vez que sozinhos eram incapazes de fazê-lo: [...]
Gõãmû levantou a flauta até a altura do peito da mulher e soprou ele mesmo. O
som da flauta barisêrõbugu desarvorou as mulheres, que caíram desacordadas
e acabaram abandonando a maloca, em fuga, aí deixando as flautas sagradas
(PÃRÕKOMU; KÊHÍRI, 1995, p. 105).
Na tradição indígena, assim, podemos ver que já há o embate de estruturas
dominadas unicamente pelo privilégio masculino com instituições de poder
feminino e com a sororidade. Quão rica seria a discussão se utilizássemos tais
tópicos em projetos didáticos para a região Norte do Brasil, quando percebemos
que tais debates sempre fizeram parte de nossa realidade fundamental?
161
Krüger (2011) comenta que Engels entendia civilização como a etapa do desenvolvimento
humano marcada pela ascensão do patriarcado, pela descoberta do metal e do uso de
ferramentas fálicas, que sucedeu a barbárie, etapa marcada pelo domínio do matriarcado e
de ferramentas de barro.
147
Singular passeio na barriga da Boiúna
A casa 26
A jovem Viviane se muda para uma casa nova com sua avó, até que coisas
sinistras acontecem na vizinhança logo após adotarem um gato preto em um dia
de chuva, e tudo indica que uma assombração paira sobre o lugar. Eis a premissa
de “A casa 26”, conto integrante da antologia Quando a selva sussurra (2015),
publicação que reuniu autores dispostos a reimaginar elementos do folclore
162
O livro é divido em 3 partes: “Mitologia e Folclore”, “Literatura” e “Memória Iconográfica”.
148
amazônico em narrativas próprias, que trazem em si o mestiçamento tão comum
aos textos brasileiros do gênero fantástico163.
A desventura de Viviane, de autoria de Rossemberg Freitas, não é exceção:
reconfigura a atmosfera gótica de Edgar Allan Poe ao se basear na lenda da
Matinta Pereira para criar uma narrativa impactante, permeada por um horror
gráfico que não se preocupa com sutilezas. Quanto à criatura lendária, trata-se do
O odor do cigarro aumentou e ela viu que vinha do quarto da avó. Foi ao
quarto soluçando e viu uma silhueta em pé com um cigarro entre os dedos.
Uma voz ecoou no quarto, sutil e um pouco rouca, e disse apenas: “quer?”.
Os dedos esquálidos saíram das sombras com o cigarro. Viviane balançou
a cabeça num “sim”, sem raciocinar, e pegou o cigarro, levando-o aos
lábios. O braço encolheu-se nas sombras e a voz disse sorrindo:
- Eu não tive filha. Agora essa maldição é tua. Tu és minha filha, Viviane.
Vá agourar pelas madrugadas, vá ser rasga-mortalha cortando as noites
escuras com suas asas e esfaqueando o vento e os sonhos com tua voz.
Vá ser Matinta-Perera (FREITAS, 2015, p. 160).
Marta Pereira era uma mulher negra de cabelos curtos e rosto fino
que viveu naquela casa durante anos. Em uma vizinhança onde a
pele branca reinava, Marta sofria preconceito e não era aceita entre
as outras mulheres. [...] Ela era estranha e recebeu o apelido de Preta
Velha. Odiavam-na mais por estar sempre com um cigarro entre os
lábios amarronzados. Aquela fumaça era desagradável e a aparência
dela também. Causava repulsa nas pessoas (FREITAS, 2015, p. 158).
163
“Para Machado de Assis, não haveria dúvida de que uma literatura, sobretudo uma “literatura
nascente” (como a brasileira), deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhes oferece
a sua região, mas não se deve fazer disto uma doutrina absoluta, sob risco de empobrecê-la”
(JOBIM, 2013, p. 110).
149
O conto, apesar de enfatizar o gore ao se referir ao assassinato das
personagens e ao comportamento vingativo da entidade, adiciona aos elementos
góticos a violência do racismo para criar um subtexto poderoso.
A Rainha de Maio
O princípio do mundo
150
crescimento envolta e na criação de alguns de seus elementos, tais como a abóbada
celeste e o sol, um desdém forte cresce em Cáru por Rairu, pois “Cáru era inimigo
do filho porque sabia mais que ele. Um dia Cáru flechou a folha de um tucumã e
mandou o filho subir no tucumanzeiro para tirar a flecha para ver se o matava”
(BARBOSA, 2018, p. 451).
Em uma das muitas tentativas de assassinar o filho, Cáru obrigou-o a carregar
uma pedra enorme nas costas, que não parava de crescer: “Mais crescia a pedra
e já Rairu não podia andar. A pedra continuou a crescer. Cresceu tanto a pedra
em forma de panela que formou o céu” (BARBOSA, 2018, p. 451).
As possibilidades de traçar paralelos intertextuais com narrativas como “O
princípio do mundo” são vastas: o surgimento de um par de humanos em meio a
um lugar em formação pode nos remeter ao Éden bíblico e aos seus moradores
primeiros, Adão e Eva, assim como a relação familiar antagônica entre os pais das
tribos mundurucus pode ser associada à desventura dos herdeiros do Éden, Caim e
Abel. A imagem de um homem carregando a abóbada celeste nas costas nos lembra
do Atlas grego, e estas são apenas algumas considerações intertextuais imediatas.
O diálogo entre textos tão diversos quanto as narrativas indígenas, os
episódios da mitologia grega e as passagens bíblicas são parte de uma leitura de
natureza complexa, na qual o aluno capaz de realizar tais paralelos desenvolve a
prática da fruição literária. Tal atividade também abre possibilidades de discussão
acerca da diversidade cultural, um dos temas transdisciplinares que compõem os
paradigmas de ensino da Base Nacional Curricular (2018), o que torna a leitura
de narrativas do tipo uma ferramenta essencial nas salas de aula brasileira.
151
popular, cultura de massa, cultura das mídias, culturas juvenis etc. –
e em suas múltiplas repercussões e possibilidades de apreciação, em
processos que envolvem adaptações, remidiações, estilizações, paródias,
HQs, minisséries, filmes, videominutos, games etc.; (MEC, 2018, p. 492).
Considerações finais
152
Referências
CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 5. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2011.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 12. ed. São Paulo:
Global, 2012.
COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2018.
FREITAS, Rossemberg. A casa 26 In: Quando a selva sussurra. Mário Bentes (org.).
Manaus: Lendari, 2015.
KRÜGER, Marcos Frederico. Amazônia: mito e literatura. 3. ed. Manaus: Ed. Valer, 2011.
153
SANTOS, Jan. A rainha de Maio. Manaus: Lendari, 2016.
TOLKIEN, J.R.R. Sobre histórias de fadas. Trad. Regina Barros de Carvalho. São
Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2010.
TORRES, José William Craveiro. Além da cruz e da espada: acerca dos resíduos
clássicos n’A Demanda do Santo Graal. CAPES. Fortaleza, 2011.
154
Dois caminhos aquém dos pirineus:
apontamentos sobre o extraordinário nas literaturas
ibéricas e ibero-americanas
Juciane Cavalheiro
Mauricio Matos
Para Luiza Pipow
Para ser um (sujeito), é preciso ser dois, mas quando se é dois, já se é três. Um é igual a dois, mas dois é
igual a três [sic].
156
ou seja, as chamadas cantigas. Não terá sido por acaso, portanto, que Afonso
X, o sábio, de Castela, tenha preservado mais de quatro centenas de cantigas
de Santa Maria, escritas exclusivamente em galaico-português, e não em latim
ou em castelhano-arcaico. Uma cantiga em galaico-português tinha circulação
garantida, ao menos, durante as concorridas festividades marianas de Santiago
de Compostela e arredores. Desta forma, é a literatura quem confere grau de
relevância à língua – processo semelhante se dá hoje e, desde há algum tempo,
com autores não anglófonos que compõem em língua inglesa, o que lhes confere
maiores possibilidades de popularidade.
É de responsabilidade de Afonso X a manutenção de um dos mais importantes
cancioneiros que a Idade Média europeia conheceu. Viria a ser seu neto, Dom
Diniz, rei de Portugal, o mais profícuo trovador em galaico-português, contando
com um repertório de 138 cantigas profanas, no que se singularizava em relação
ao avô castelhano. Foi um de seus filhos bastardos, Dom Pedro, o conde de
Barcelos, quem reuniu as cantigas que vieram a compor o Cancioneiro da Ajuda,
que, embora não trouxesse composições do pai, porque seu corpus o antecedesse,
era exclusivamente profano. Epigrafava-o, contudo, um livro de linhagens, ou
nobiliário, no qual, entre muitas histórias, vinha registrada, de modo narrativo
e pera dar certidom da verdade – como talvez dissesse Fernão Lopes –, a história
da origem da família Lopes, de Biscaia, situada ao norte da Espanha. Segundo
antigas escrituras, teria Dom Diego Lopes se casado com uma mulher-demônio,
alcunhada como Dama-pé-de-cabra, sobre a qual Alexandre Herculano viria a
compor uma das mais célebres narrativas do Romantismo português. Está claro,
portanto, que, em língua portuguesa, ao menos, da Idade Média ao Romantismo,
o caminho do extraordinário se fez literariamente presente.
Desta forma, fica patente que, mesmo elementos semanticamente opostos,
como a Santa Maria das cantigas de Afonso X e a Dama-pé-de-cabra do Nobiliário
de seu bisneto, gravitam em torno do extraordinário por excelência. Todavia, se se
retirar o antropónimo Maria das cantigas da Santa e se o inserir em uma cantiga
de amor, ambas trocarão de lugar em sua classificação, tal era a proximidade
de que os homens podiam gozar da Santa e a inatingibilidade, a que estavam
sujeitos, em relação às mulheres amadas, conforme o código de cavalaria. É desta
forma que, a Dom Diego Lopes, como homem, é conferido casar-se com uma
extraordinária mulher, do mesmo quilate da Santa.
157
de Camões – fundador da língua portuguesa – tem sido posto o primeiro fôlego de
novos ventos, “das naus as velas côncavas inchando” (Lus, I, 19, v. 4). Assim, em
sua ficção, via de regra, o extraordinário se desfaz em ordinário, o sobrenatural
se reduz à natureza, quando vistos através da lente do poeta renascentista. Sua
epopeia, matematicamente planejada, não cede espaço para a intervenção do
que não fora cientificamente calculado. É assim que o meio do livro coincide,
exatamente, com o meio da viagem que, por sua vez, coincide com o meio do
mundo. É neste espaço literário que Vasco da Gama, através da linguagem, faz
com que o gigante Adamastor se transforme em rocha, sua matéria original, o
Cabo das Tormentas. É literal sem deixar de ser literário, assim é o Renascimento
ibérico, mas nem todo.
Leitor de Camões e fundador da língua espanhola, Miguel de Cervantes
opera um procedimento não rigorosamente inverso, mas de resultados invertidos:
tome-se, como exemplo, o momento em que dom Quixote se depara com os
moinhos de ventos, que vê como gigantes, contra os quais avança heroicamente
e ultrapassa sem passar a ver moinhos. Em Cervantes, portanto, ao contrário de
Camões, o extraordinário não passa a ordinário quando da passagem do herói.
Pode-se dizer que, da dialética Camões X Cervantes surja uma tendência maior, na
literatura portuguesa e nos países lusófonos, para o ordinário ficcionalizado, assim
como na Espanha e nos países hispânicos, para a literatura do extraordinário,
não excludentes um em relação ao outro, esteja claro. Houve, ainda assim – e é
natural que tenham havido –, momentos em que a literatura espanhola pendeu
para o ordinário, assim como a portuguesa, para o extraordinário, mas esta não
foi a tônica destas literaturas.
Difícil dizer se Fernando Pessoa terá tido consciência deste processo quando
afirmou, aos 24 anos, que estaria para vir um “super-Camões”, mas o fato é o
que fez e, praticamente, reivindicou, a si mesmo, este lugar. Mirando de outro
paradigma espaço-temporal, poder-se-á afirmar que Pessoa buscava, antes, um
pré-Camões, que seria já, segundo sua perspectiva, um super-Camões, antes mesmo
de ser, a julgar pelos poemas de sua Mensagem, uma releitura extraordinária dos
Lusíadas, bem como por sua produção ortonímica. O Portugal pré-camoniano
é o Portugal medieval, ou seja, ibérico, o mesmo onde foi Cervantes colher os
frutos para produção de seu Quixote, um cavaleiro andante. Se, por um lado,
Camões pôs nas mãos dos deuses da Antiguidade Clássica o leme de sua epopeia,
Cervantes delegou a Cide Hamete Benegueli a rédea de suas andanças, donde
haverá de se notar a substancial diferença no resultado de um em relação à
outra. Enquanto Camões direciona sua ficção por passos medidos, Cervantes o
faz com a luneta nas estrelas. Fecundo choque seria o encontro entre Vasco da
Gama e dom Quixote. Poder-se-ia dizer que resumiria as literaturas ibéricas e
ibero-americanas, equalizando-as.
Mas o que é a história da América toda senão uma crônica do real maravilhoso?
Alejo Carpentier
Até fins do século XX, não havia dúvidas de que Camões era o maior entre
todos os poetas de língua portuguesa. Hoje, por outro lado, não há dúvidas de que
este poeta maior já não é Luís de Camões, mas Fernando Pessoa. Do lado hispânico,
158
a contenda se demonstra, de algum modo, menos precisa: se, por um lado, sempre
se soube que o Quixote era a maior obra literária do Ocidente, por outro, vieram os
Cem anos de solidão de Garcia Marques a serem considerados, igualmente, como a
maior obra da literatura ocidental, o que levou a uma cisão hispânico-literária de
Ocidentes, por assim dizer, um posto mais a ocidente do que o anterior, ou seja,
nas Américas, onde está situada Macondo, cidade onde até a chuva – de pétalas
de rosas amarelas – é extraordinária. Todavia, não terá sido o colombiano García
Márquez um paralelo hispânico exato para Fernando Pessoa, muito embora o
fosse em representatividade. Em par com Pessoa, inquestionavelmente, estará
o argentino Jorge Luis Borges: somente nele a cisão do sujeito – de tão remota
herança portuguesa e importância no advento da modernidade literária – haverá
de ter ombreado com o patamar a que se alçou a heteronímia pessoana.
Talvez a mais forte expressão do extraordinário, antes do fantástico e do
maravilhoso, seja o surreal. Pode-se dizer que o surrealismo tenha tido sua
origem num eixo que, insuspeitadamente re-uniu, tantos séculos depois da Idade
Média, a França à Espanha, em um novo caminho, dos inícios do novecentos. Se
se restringir o foco de verificação ao âmbito do estritamente literário, ter-se-á,
em Breton e Lorca, os expoentes desta geração – isto, se não forem considerados,
como literários, os diversos escritos de Salvador Dalí.
Brevemente, os textos de André Breton viriam a dar em terras ibero-
americanas e, na Argentina, conheceriam suas primeiras traduções para o
castelhano, saídas do punho de um insigne, ainda que atrasado, Aldo Pellegrine.
Para a língua portuguesa, as traduções demorariam mais, o que acarretaria num
surrealismo tardio, mesmo em Portugal. A cultura portuguesa inegavelmente
deverá a Mário Cesariny de Vasconcelos o mergulho incontornável de sua poesia
no surrealizante – donde se compreenda como surrealista aquele que participou
do movimento homônimo e surrealizante aquele que, não tendo participado do
movimento, cultive o estilo e o espírito em sua arte. Pode-se dizer que, à exceção
do Brasil, praticamente todos os países ibero-americanos viveram intensamente o
surrealismo, em contrapartida ao nosso concretismo, como se sabe, mais realista
do que o realismo, ainda que de inspiração mallarmaica.
Da mesma raiz de onde nasceu o surrealismo, viriam a nascer as literaturas
de Pessoa e de Borges, uma de cada lado do Atlântico. Pela porta aberta por
Pessoa, passaria Cesariny, para uma legião de poetas portugueses, conscientes ou
não da natureza de sua arte; por aquela aberta por Borges, passaria Pellegrine e,
logo depois, Cortázar e Pizarnik, todos adeptos do extraordinário como forma de
expressão. Para além da Argentina, na América Ibérica, em par com Julio Cortázar, o
mundo veria nascer o boom das literaturas hispano-americanas, mais notadamente
compreendido por García Márquez, ao menos, para a finalidade deste artigo.
Entre os exemplos que poderiam ser extraídos das literaturas hispano-
americanas, onde privilégio é, de modo contundente, conferido ao extraordinário,
como modo de ver, ler e escrever o mundo, talvez seja justo assegurar a autores
como Alejo Carpentier e Arturo Uslar Pietri o lugar de pioneirismo consciente
sobre a opção que fizeram em seu momento. A figura de um Bolívar sobrenatural
que se ergue para além da bruma do ordinário, devemo-la a Uslar Pietri, no
clássico Las Lanzas coloradas, que viria a ser utilizado inclusive em escolas de
ensino médio. Não por acaso, ainda hoje, tal como o nosso Machado, embora na
contramão dele, seja Uslar Pietri o maior autor venezuelano da história desta
literatura. É de se notar – ainda que entre parênteses – a tendência de autores
159
hispânicos, com o García Márquez e Uslar Pietri, para utilizarem a prosa em
suas opções narrativas, ainda que, contra esta afirmação se avolume um outro
igualmente sobrenatural Simão Bolívar, evocado no pai-nosso poético de autoria
de um dos nobéis hispano-americanos: Pablo Neruda. Anterior, todavia, terá sido
o do credo de Miguel Angel Astúrias; assim como posterior será o do General e seu
labirinto, em que García Márquez, Nobel também, narra o coma de Bolívar, às
vésperas da morte. Note-se que, em nenhum destes casos, o Libertador desponta
de forma ordinária; seja através da bruma, seja no coma ou no fantasma de
entre a vida e a morte, Bolívar se nos está presente extraordinariamente, como
extraordinário o foi, tanto na vida quanto na morte.
Todo este fluxo de produção literária vai desaguar no fantástico e/ou no
maravilhoso. Foi, todavia, o cubano Alejo Carpentier quem, antes dele, talvez
prevendo o quão ibérico era aquele fluxo, quem teve a lucidez de delegar ao
surrealismo a responsabilidade por este fenômeno latino americano. Afinal, não
há de se esquecer que um dos maiores surrealistas argentinos, Enrique Molina,
tenha tomado pé do movimento em terras venezuelanas para, depois, de retorno
a Argentina, ir somar às investidas de Aldo Pellegrine.
Referências
CARPENTIER, Alejo. O reino deste mundo. Trad. Marcelo Tápia. São Paulo: Martins
Fontes, 2009.
160
__________. El general em su laberinto. Bogotá: La Oveja Negra, 1989.
LOPES, Óscar; SARAIVA, Antonio José. História da Literatura Portuguesa. 16. ed.,
corrigida e actualizada. Porto: Porto, s.d.
PIETRI, Arturo Uslar. Las lanzas coloradas. Madri: Catedra Letras Hispánicas, 2014.
161
Ivan Serpa e a Fase Negra: a preocupação social na arte
em meados da década de 1960 e a pós-modernidade
163
me interessava, e assim parti para uma pesquisa da figura humana, trabalhos
ligados à realidade social” (GULLAR, 1964).
Os acontecimentos políticos e sociais que culminaram no Golpe Militar de
1964 - movimento de caráter autocrático, censório e conservador - atingiram
profundamente a vida brasileira, provocando após um primeiro momento de
perplexidade, uma onda de protestos, explícitos ou implícitos, em todas as formas
de expressão artística. Neste momento, Serpa retratou o medo e a angústia que
pairava sobre a sociedade ameaçada pela instabilidade política.
A estratégia da ação golpista previa a repressão dos movimentos populares
e uma intensa propaganda anticomunista, o que levou a população a temer a
presidência de João Goulart. Esta propaganda envolvia jornais (a única exceção foi
o jornal Última Hora), rádio e televisão. Eram diárias as denúncias de corrupção,
de incompetência na condução da economia e de infiltração comunista no
governo. A ameaça à continuidade do crescimento econômico, aliada a inflação
alta e dívidas volumosas já eram fatos constatados desde o final do governo de
Juscelino Kubitschek, o que também afetava condições para investimentos. Além
disso, o governo debatia-se em suas próprias contradições, pois ao mesmo tempo
em que propunha reformas adiava medidas populares, criticava a esquerda e
fazia concessões à direita.
Em 13 de março de 1964, a assessoria sindical do presidente brasileiro reuniu
em um comício cerca de duzentas mil pessoas no Rio de Janeiro, contando com
a presença de ministros, governadores, parlamentares, lideranças sindicais
e estudantis. Anunciando dois decretos sobre desapropriação de terras e
nacionalização de refinarias de petróleo, além de prometer realizar as reformas de
base para o que chamava de justiça social, João Goulart denunciou a mistificação
do anticomunismo, atacou monopólios nacionais e internacionais, convocando
a ampla participação da população.
Mas então intensificou-se a ofensiva golpista, por parte de forças
conservadoras que temiam um estado socialista e, num ambiente marcado pela
Guerra Fria, uma vinculação ao bloco soviético. Assim, a partir de 19 de março, se
estendendo até 8 de junho, aconteceram em São Paulo as manifestações públicas
identificadas como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade (após o golpe
foram chamadas de Marcha da Vitória), que em alguns momentos chegou a reunir
centenas de milhares de pessoas. A ação foi organizada pela CAMDE (Campanha
da Mulher em Defesa da Democracia), uma das instituições financiadas pelo
IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais) em colaboração com o governo do
Estado de São Paulo, a FIESP (Federação da Indústria e Comércio do Estado de
São Paulo) e a Sociedade Rural Brasileira. Manifestações semelhantes ocorreram
em várias capitais, muitas delas pedindo o impeachment de Goulart. Ao saber
que não contava com o apoio militar, o presidente João Goulart preferiu o exílio,
saindo do país em 4 de abril de 1964.
Dias antes, o Congresso Nacional consumara o golpe declarando vacância
da Presidência, que foi assumida pelo presidente da Câmara Federal. Interessado
diretamente na manutenção do Brasil sob sua esfera de influência, o governo
dos Estados Unidos reconheceu imediatamente o novo governo brasileiro.
Anunciando os novos tempos, os militares editaram o Primeiro Ato Institucional.
Este Ato permitiu o fortalecimento do Poder Executivo, outorgando amplos
poderes ao presidente da República que poderia, dentre outras medidas,
164
cassar mandatos políticos. Houve também a consequente retirada do Poder
Legislativo, ficando o Congresso Nacional e os partidos políticos sem função. O
Ato estabelecia eleições presidenciais em 1965, dando a entender que em breve
os militares retornariam aos quartéis.
Em 11 de abril de 1964, o general Castelo Branco, ex-chefe do Estado Maior
foi escolhido Presidente da República. Contudo, o IPES-ESG não conseguiu a
hegemonia no governo que se formou, precisando aliar-se a outra facção militar
- a chamada linha dura - representada pelo general Costa e Silva que nos primeiro
dias de abril autonomeou-se Ministro do Exército. Apesar disso, a liderança
civil-militar conseguiu em parte impor suas diretrizes ao destino do país. Outra
tendência dos novos tempos desde logo se anunciou: em nome da “paz e honra
nacionais”, antes mesmo de dispor de qualquer instrumento legal, o Exército
e os contingentes militares desencadearam a operação limpeza com prisões e
torturas de cidadãos considerados comunistas ou subversivos ao regime militar.
Era o início da repressão, com a imprensa e as manifestações culturais censuradas
e a cidadania rechaçada.
Tais acontecimentos levaram diversos artistas a aproximarem seu fazer
artístico dos anseios da resistência civil. Neste momento, Ivan Serpa percebeu a
necessidade de expressar a angústia e o medo, imprimindo mudanças formais e
estéticas em sua obra. A Fase Negra de Ivan Serpa, que abrange o período de 1963
a 1965, tem a nítida preocupação de denunciar os problemas locais e mundiais.
Neste período Serpa criou concomitantemente à Fase Negra, as séries Bichos e
Mulheres e Bichos, de tendência expressionista. Num depoimento contundente,
Ivan Serpa justificou sua opção artística deste momento:
Ivan Serpa estava com quarenta anos quando efetuou a mudança para o
Expressionismo. Neste período Serpa atingiu a maturidade artística, refletindo sobre
sua carreira e o Concretismo, afirmando que esta fase foi fruto de um equívoco:
O contexto histórico sempre influenciou Ivan Serpa. Ele pensava que a arte
deveria ser participante do processo social, que todas as pessoas deveriam ter
consciência dos problemas do mundo em que viviam. Desse modo, ele determinou
seu caminho pelo desvio, que para Frederico Moraes “deveria ser entendido
como um grito, um protesto”(COUTINHO, 1983). Procurando revelar a tensão
deste período, Serpa refletiu sobre a posição do artista em seu meio, utilizando os
elementos do objeto figurativo empregados no Expressionismo para comunicar
sua experiência pessoal. Elaborou então uma arte carregada de dramaticidade,
buscando uma forma particular de protesto.
165
Cabe lembrar que Ivan Serpa não gostava de ser definido como um artista
engajado, justamente por não concordar com o autoritarismo de esquerda
exercido pelo CPC-UNE, que direcionava e exigia uma arte popular, tolhendo
a liberdade de criação. Serpa detestava rótulos, devido ao seu próprio caráter
contestador. Não obstante esta divergência entre o artista e a instituição, Serpa
considerava sua arte consciente e participante, tão combativa quanto as entidades
que lutavam contra a Ditadura Militar.
Desse modo, as imagens da Fase Negra comunicam o momento histórico
muito melhor do que se estivessem presas a modelos direcionados a um
destinatário específico. Depois de concluída, a obra de arte adquire autonomia
em relação ao seu autor, perdendo ou ganhando significados em função dos
acontecimentos e das mudanças de mentalidades. Para Pierre Francastel (2011),
os elementos do objeto figurativo não existem apenas na memória do criador,
mas em todos aqueles que presentes ou afastados no tempo e no espaço conferem
sua realidade única.
Na Fase Negra, Ivan Serpa está no extremo oposto ao da pintura concretista.
Devido ao vigor do efeito de claro-escuro, Serpa revelou a profundidade da
visão humana, que tornam as imagens inquietantes, cheias de medo e revolta.
O artista submeteu a figura humana a uma análise implacável, mostrando em
vários dos seus desenhos de cabeças, o aspecto pungente, tormentoso, irracional
e soturno da condição humana. Para o crítico Antônio Bento (1964) não havia,
nesta época, equivalentes a Ivan Serpa na pintura brasileira. Para Bento, esta fase
era nitidamente expressionista e remetia ao imaginário fantástico dos mestres
antigos, “sugerindo o mundo estranho de certas gravuras de Rembrandt ou
algumas imagens da série dos “Caprichos” de Goya”.
Um exemplo significativo da Fase Negra é a obra Cabeça (Figura 1), de 1964.
Esta obra remete à posição do artista em seu ambiente. Pode-se aqui desenvolver
uma análise iconológica, segundo a teoria de níveis de significado de Erwin
Panofsky (2014), que define a função simbólica como mediadora que informa
diferentes modalidades de apreensão do real, quer opere por meio de signos
linguísticos, figuras mitológicas ou conceitos do conhecimento científico.
A teoria dos níveis de significado inicia-se com a análise pré-iconográfica, em
que se reconhece na obra de arte os motivos ou figuras de fácil identificação. Em
seguida a análise iconográfica mostra que a combinação de motivos deve conduzir
ao reconhecimentos dos temas. Por último, a análise iconológica remonta-se ao
conteúdo simbólico e à atitude da obra num determinado ambiente. A análise
iconológica é um método capaz de colocar a obra de arte como centro de sua
preocupação, sem deixar de referenciá-la em seu contexto histórico e cultural.
Desse modo, o artista é o manipulador de um instrumento capaz de testemunhar
e interpretar determinada época.
166
1. Ivan Serpa, Cabeça, 1964. (Óleo sobre tela, 100 x 115 cm;Por Coleção do Museu de Arte
Contemporânea da Universidade de São Paulo, MAC-USP).
164
IVAN SERPA e Domênico Lazzarini. Revista Menorah, n. 63, Rio de Janeiro, 1964.
167
Desse modo, existem duas preocupações na arte de Ivan Serpa, a busca de
uma arte total e abrangente e a necessidade interior de denunciar as injustiças
sociais. Na análise iconológica faz-se necessário desnudar o conteúdo estético
e formal da obra. Os caracteres estéticos e formais da obra Cabeça seguem os
parâmetros estilísticos do Expressionismo.
O Expressionismo surgiu em Dresden, Alemanha, (1904-1905) organizado
pelo grupo denominado Die Brücke (A Ponte). Entre os membros mais ilustres do
grupo estavam Ernest Ludwig-Kirchner (1880-1938), Karl Schimidt-Rottluf(1884),
Max Pechstein (1881-1955), Erich Heckel (1883-1970), Emile Nolde (1867-1956)
dentre outros. Die Brücke era uma denominação simbólica: a ponte entre o visível
e o invisível. Este grupo recebeu a denominação de “expressionistas” pelo poeta
e editor da revista Der Stürmer (A Tempestade), Herwarth Walden (DUBE, 1976).
Estes artistas jovens e rebeldes reagiram ao convencionalismo acadêmico e ao
excesso de realismo visual dos Impressionistas. O amor pela escultura da Arte Negra,
pelas máscaras da Oceania e pelos mestres primitivos alemães, levou-os a representar
os sentimentos puros, numa linguagem imediata, de violência primitivista, repudiando
os ideais acadêmicos de beleza. Procuravam exprimir a angústia e os dilemas do
homem moderno. Existiu no Expressionismo resíduos do Romantismo e do Gótico,
entendidos como condição profundamente existencial do ser humano, pois o artista
expressionista desejava dominar a realidade que o agredia.
Mais tarde os artistas do Die Brücke aliaram-se ao grupo Blaue Reiter
(Cavaleiro Azul), o segundo pólo do Expressionismo que existiu em Munique.
Com a orientação de Vassily Kandinsky (1866-1944) e Alexei von Jawlensky (1867-
1941), este segmento apresentou aspectos rebeldes menos aparentes. Buscando
uma composição plástica e musical, as pesquisas de Kandinsky levaram-no à
pintura abstrata. Outros membros do Blaue Reiter permaneceram figurativos,
como Jawlensky, August Macke (1887-1914), Franz Marc (1880-1916) e Oscar
Kokoschka (1886) (DUBE, 1976).
Tendência permanente da história da arte, o expressionismo manifesta-se em
épocas de crise: religiosa, econômica, cultural ou política. Surgiu no período que
antecedeu à Primeira Guerra Mundial e com o advento do regime nazista, estas
manifestações artísticas foram sufocadas, pois Hitler considerava os artistas deste
movimento degenerados e decadentes. Terminada a Segunda Guerra Mundial,
as tendências expressionistas reaparecem com caracteres nitidamente barrocos,
pela inquietante recusa ao equilíbrio e à imparcialidade clássica.
O primeiro parâmetro dos expressionistas é a deformação sistemática
da figura. A imagem pictórica é carregada de dramaticidade, o que modifica e
altera a realidade. O conhecimento e a interpretação do mundo é feita a partir de
sentimentos: a dúvida, a crise espiritual, o pessimismo em relação aos propósitos
éticos, sociais e políticos. A representação das imagens interiores é privilegiada.
Em virtude das deformações, criam uma pintura alheia às regras convencionais
de equilíbrio na composição, regularidade nas formas e harmonia nas cores.
Sendo assim, uma arte de manifestações veementes, carregada de
subjetividade e dramaticidade, torna-se compreensível que o artista sinta-se
limitado em suas necessidades expressivas pela realidade visual das formas e das
cores, que não podem corresponder à intensidade de seus sentimentos. Na obra
Cabeça, Ivan Serpa procurou transmitir os sentimentos contraditórios da época,
a angústia e o medo, realçando a deformação da figura. Nesta obra não existe a
busca da beleza convencional. Segundo Ivan Serpa, “havia apenas a busca pura
168
e simples de um estado de alma. Era a agonia, a frustração e a tragédia de todo
um povo, ao qual eu pertencia”(SANTARRITA, 1966).
O segundo parâmetro consiste na originalidade técnica. Em virtude da
predominância de sentimentos intensos que deviam exprimir espontaneidade
e autenticidade, o artista criou uma técnica própria, individual e inconfundível.
Esta técnica não está submetida a preceitos teóricos tradicionais. As pinceladas
bruscas utilizadas em Cabeça são impetuosas e convulsivas. Se Ivan Serpa fosse
refletir sobre o modo de dar a pincelada, talvez ela perdesse a impulsividade e
o dramático vigor expressivo. Segundo Lygia Serpa, na “Fase Negra” Ivan Serpa
chegava a produzir um quadro por dia, sob efeito da emoção165. Em outros
momentos demorava mais, como na fase Op-Erótica (1967-1971) em que desenhava
e terminava a execução em três meses.
O terceiro parâmetro é a sensibilidade aos fatos sociais. Os artistas
expressionistas preocuparam-se com ideais humanitários, fizeram críticas
ao regime capitalista, à exploração do homem pelo homem, à prostituição, à
infância e velhice desamparadas, hipocrisias e injustiças sociais. Para Cavalcanti,
o expressionismo é considerado uma arte de “denúncias contra a sociedade
moderna” e desse modo o artista torna-se “o intérprete do mal do nosso século:
a angústia” (1970, p.312).
No Expressionismo existiu a predominância de valores emocionais sobre os
valores intelectuais. Por ser uma tendência permanente, pode manifestar-se em
diversas épocas, escolas ou movimentos artísticos através de suas características
básicas: liberdade técnica, deformação da imagem, exasperação da cor, recusa
do realismo visual, natureza simbólica e dramaticidade. O que importava aos
expressionistas não era a beleza ou harmonia da obra e sim a força expressiva e
dramática que mostrasse a decadência da sociedade.
Para Anatol Rosenfeld (2017), o Expressionismo foi um movimento de
tendência idealista, dirigido contra o positivismo e as concepções naturalistas
decorrentes do cientificismo da segunda metade do século XIX. Através de uma
visão subjetiva, o artista expressionista projetou suas intuições e visões íntimas,
sem mediação de impressões exteriores. Manipularam fortemente os elementos
da realidade, às vezes distorcidos, conforme as necessidades expressivas de uma
imaginação que opera sob forte pressão emocional.
Estas visões oníricas são procedentes de uma consciência em situação
extrema, em estado de angústia, desespero ou exaltação profética que são
projetadas e propostas como realidade essencial. Esta realidade foi reduzida às
estruturas básicas do ser humano, representadas através de arquétipos, portadores
de visões apocalípticas ou utópicas, num contexto histórico que é julgado o ponto
terminal de uma época de corrupção e ocaso. Assim, este movimento almejava a
reconstrução do mundo a partir da intimidade individual. Além da valorização da
intuição e do inconsciente em detrimento dos momentos de organização racional,
existe também no expressionismo a saudade romântica do primitivo e elementar
em oposição à mecanização e à tecnica do mundo industrial.
Na obra Cabeça a visão onírica manifesta-se através de profunda melancolia
presente na composição do espectro. As tonalidades baixas e ardentes, o contorno
sombrio e impreciso permite que a forma submeta-se à emoção com o cuidado
Luciane Páscoa.
169
artesanal que impede a desordem pictórica. Os problemas de vida e morte, a solidão,
as relações entre o irreal de um pesadelo e o real de uma natureza ameaçadora,
reações éticas e políticas, fazem parte das motivações desagregadoras de Serpa.
Estas motivações são expressas numa harmonia lúgubre e beleza soturna.
Em Cabeça, pode-se perceber os caracteres barrocos que estão presentes em
toda a Fase Negra. A evolução do estilo linear para o pictórico acontece na medida
em que a linha é diluída na composição sem estabelecer o contorno definido da
figura. A imagem é oscilante por não apresentar limites definidos. A visão em
massas ocorre quando a atenção deixa de se concentrar nas margens, no momento
em que a linha é desvalorizada como elemento delimitador. Neste quadro, luzes e
sombras transformam-se em elementos independentes que buscam uma unidade
através do movimento que ultrapassa o conjunto. O efeito pictórico verifica-se
quando a iluminação não está mais a serviço da nitidez dos objetos, quando as
sombras não mais aderem às formas.
A silhueta da figura humana aqui representada não coincide com a forma
real, devido à deformação. O estilo pictórico libertou-se da representação do objeto
tal qual ele é. As manchas se justapõem sem qualquer relação. A figura do quadro
permanece indeterminada e não se cristaliza em linhas e superfícies. Percebe-se
aqui a justaposição de tons claros e escuros que proporcionam o contraste e a
ideia de volume. No estilo linear observado nas obras do período concretista de
Ivan Serpa, os objetos apresentavam-se de maneira clara, sólida e palpável. Na
obra Cabeça a aparência é alternante, relaciona-se com o contexto e apresenta
texturas variadas. O efeito ilusório é intensificado através das pinceladas livres
que convidam à contemplação. A simples presença de linhas não define o caráter
do estilo linear, porém a força expressiva destas linhas produz o efeito pictórico.
Nesta pintura, a figura humana assume grande dimensão, de caráter fantástico,
inquisitorial. A figura divide-se nas seguintes partes: cabeça, tronco superior,
membros superiores. Na cabeça convergem os pontos de tensão, que depois são
direcionados para o tronco. Segmentos isolados de linhas definem a forma dos olhos,
da boca, do nariz e dos braços. Por vezes, o traço é completamente interrompido,
sendo que o contorno da fronte permite que da forma possa emergir uma silhueta.
As sombras são exploradas em contraste com a luz. No primeiro quadrante superior
a sombra é total, desvanecendo na periferia do quadro e desaparecendo em algumas
partes centrais, como em áreas da face, dos braços e do tórax.
A desvalorização dos contornos traz consigo a desvalorização do plano e
os olhos relacionam os objetos conforme sejam eles anteriores ou posteriores.
Outra categoria de análise presente é a ênfase na profundidade, que é sugerida
pelos efeitos de iluminação e pinceladas livres, que proporcionam a autonomia
da figura mesmo que deformada. A figura emerge de um fundo negro, com o
qual se relaciona através dos efeitos de linhas expressivas e texturas distribuídas
entre figura (primeiro plano) e fundo (segundo plano), causando a ilusão
de profundidade. A beleza da superfície plana é substituída pela beleza da
profundidade que está sempre vinculada a uma impressão de movimento.
A profundidade também é sugerida através da disposição da figura no
quadro, cujo eixo fococentral é diagonal. A representação da profundidade através
da composição em diagonal produz movimento, pois esta disposição evita que o
quadro seja observado de uma vista frontal rígida como se a figura fosse orientada
numa só direção. O efeito barroco de profundidade está aliado à multiplicidade
de ângulos de visão, criando a ilusão de espaço. Encontra-se nesta obra o estilo
170
da forma aberta ou atectônica. Aqui, a figura pretende extrapolar os limites do
quadro, mesmo que subsista uma limitação velada.
Neste quadro, Serpa procurou evitar que a composição fosse concebida
para um plano determinado. Pretende-se que o conjunto sugira a impressão de
representar algo mais que um fragmento extraído da realidade. O efeito diagonal
da figura (direção principal do barroco) representa um abalo para o aspecto
tectônico do quadro. A intenção de buscar o ilimitado abandonou os aspectos puros
da frontalidade e do perfil. A figura humana não segue os aspectos tradicionais
da frontalidade pois a composição diagonal permite a ilusão de que o elemento
principal não obedece os limites do quadro.
A forma aberta de representação permite que o quadro seja visto como um
espetáculo efêmero, numa realidade intensional. Existe uma simetria instável
no quadro, pois as duas metades não são iguais e as formas são irregulares. É
perfeitamente possível a ocorrência de ordenações simétricas, mas o quadro
em si não está estruturado simetricamente. Há um equílíbrio oscilante, pois na
categoria atectônica as cores e os efeitos de luz e sombra são distribuídos de modo
a ressaltar a tensão.
Em Cabeça, a iluminação recai apenas sobre algumas partes da figura,
no intuito de sugerir uma tensão vibrante. Os detalhes do quadro apresentam
diferentes aspectos de saturação. O conteúdo do quadro não está adaptado aos
seus limites, pois a figura está recortada na parte inferior da tela, excedendo à
moldura. No estilo atectônico decresce o interesse pelo que é construído e fechado
em si mesmo. O elemento formal significativo não está na estrutura, mas no
impulso que movimenta e faz fluir a rigidez das formas.
No sistema da representação clássica, cada uma das partes mantém
autonomia, como foi visto na análise da obra Formas. Na composição barroca, a
unidade é obtida pela união das partes em um único motivo, ou pela subordinação
de todos os elementos a um só elemento. Na obra Cabeça as partes pertencem
ao conjunto formal, não estão dissociadas da composição. A unidade múltipla
pertence a este sistema, pois cada detalhe não pode ser observado isoladamente.
A ênfase nos detalhes deve ser percebida dentro do conjunto. A figura principal
mescla-se indissoluvelmente ao movimento do fundo do quadro, mesmo que
seja apenas através do jogo de tons claros e escuros. A figura completa-se através
dos demais elementos da composição e quanto mais necessária parecer esta
complementação, tanto mais perfeita será a unidade desta obra. A iluminação e
as cores também são responsáveis pela unidade.
A oposição entre a clareza relativa e absoluta da obra trata-se da representação
dos objetos tal como se apresentam, vistos como um todo. Composição, luz e cor
já não se encontram a serviço da forma, mas possuem autonomia. Nesta obra, a
clareza absoluta foi parcialmente abandonada somente para aumentar o efeito
da visão. A clareza absoluta torna-se relativa, pois a imagem não coincide com o
grau máximo de nitidez. O interesse pela forma claramente moldada cede lugar
ao interesse pela imagem ilimitada e dinâmica.
Por esta razão, Serpa buscou o caráter expressivo da imagem procurando
evitar que a silhueta de formas claras fosse o elemento transmissor da impressão.
O estilo obscuro do barroco procura dificultar a tarefa a ser realizada pelo olhar,
propondo ao espectador o prazer de solucionar a obra. A imagem é obscurecida
como recurso de intensificação do prazer, ao estimular o espectador através da
percepção. Os elementos podem ser apreciados através da iluminação relativa da
171
figura, pois a obscuridade convida o espectador a refletir. A luz não é empregada
exclusivamente para delimitar a forma: há pontos em que ela passa sobre as
formas, realçando também elementos secundários (o fundo).
O efeito de clareza relativa pode ser notado no emprego das cores no
quadro. As cores utilizadas em Cabeça são o preto, o verde escuro, o ocre e o
branco. Aqui, Serpa utilizou a mistura das cores, de modo diferente das obras
do período concretista, no qual utilizava as cores puras. O verde é misturado ao
preto para obter a sombra. A verdadeira sombra deveria ser obtida através da
mistura do preto com a cor desejada. O ocre também é misturado ao verde e ao
preto, apenas o branco permanece puro nas áreas mais iluminadas. Na figura
central, o branco é distribuído em algumas partes da face e em outras partes do
corpo, sempre com a intenção de obter os efeitos de contraste. O preto também
é utilizado separadamente, principalmente nas pinceladas livres, característica
formal do Expressionismo.
As cores estabelecem uma relação com o conjunto, num movimento unificante
que se altera em vários pontos do quadro. Serpa sentiu-se atraído pela eliminação
da cor. No lugar da coloração uniforme ele introduziu a indeterminação parcial
da cor, que não se apresenta definida em todos os pontos, mais vai se formando
aos poucos. Desse modo, as cores passam a integrar um sistema de relações que
transcendem os objetos. A indeterminação parcial das cores foi fundamental
para transmitir o sentimento de terror e angústia. A preferência por tonalidades
baixas também confirma esta intenção.
A supremacia do preto é uma constante nas obras desta fase. O preto e o branco
são considerados “não -cores” por Kandinsky e por Goethe. O preto é desprovido de
ressonância, simboliza o silêncio eterno sem esperança num futuro. Para Kandinsky
(2015), o preto “na música corresponde à pausa que marca um fim completo”. O
preto é como uma fogueira extinta, consumida, como o silêncio de um corpo após
a morte. O branco também simboliza o silêncio absoluto, só que este silêncio não
significa o fim, significa o começo. O branco é o adereço da alegria e da pureza e
o preto é o do luto, da aflição profunda, o símbolo da morte. O verde é uma cor
fria, o ponto ideal do equilíbrio. Por resultar da mistura do amarelo e do azul, os
movimentos concêntricos e excêntricos se anulam proporcionando o repouso.
A passividade é a característica dominante do verde absoluto. Esta
passividade é envolvida pela autossatisfação, pelo contentamento. Nos tons mais
baixos, quando o azul ou o preto predominam, o verde torna-se sério e solene,
convidando à reflexão. Seja claro ou escuro, o verde nunca perde seu caráter
primordial de indiferença e imobilidade. O ocre é uma cor terrosa, derivada do
laranja, que é o elemento ativo da mistura do amarelo e do vermelho. O ocre é
uma cor obscurecida, mas contém energia, força e contentamento. O emprego
desta cor produz a moderação e seriedade.
A utilização destas cores produz sensações contraditórias e reflexivas:
relações entre vida e morte, pureza e mácula, equilíbrio e instabilidade,
moderação e revolta, passividade e movimento. Estas cores e sentimentos são
representados em telas de grandes dimensões que apresentam as mesmas
figuras com expressões diversas, quase sempre isoladas e deformadas pelo
desespero. Nesta fase, Ivan Serpa pintou movido pelos sentimentos, deixando
que a imagem psíquica superasse a imagem ótica e visual, abandonando-se a
violentos impulsos do instinto.
172
As motivações exteriores que levaram Serpa a produzir a Fase Negra
encontram-se no contexto obscuro daquele período. Pode-se notar tal atitude de
preocupação social num depoimento contundente sobre um acontecimento do
cotidiano de Serpa:
Na vida todos temos uma fase negra, ninguém escapa. Aqueles momentos
de angústia e sufocação, de não acreditar mais na vida. Mesmo assim
a gente tem esperança, pois mesmo quando a gente está na fossa,
imagina um dia poder sair dela. Quando pensei em fazer minha fase
negra, havia visto muita coisa sobre campos de concentração, lido muito,
tinha milhares de fotografias. Uma noite, voltando para casa, encontrei
um amigo que trabalhava na polícia e que estava fazendo uma ronda
num desses carrões. Então, tive a idéia de pedir para ir junto e ver o
que estavam fazendo. Fui. -Estamos pegando malandro - ele havia me
dito. Então eu vi a coisa, a batida: pegar o sujeito, jogar lá prá dentro, o
sujeito xinga, diz que não tem culpa, aquela coisa toda. Eu vi a reação
do indivíduo, na briga, às vezes tem que se dar uma bolacha na cara e
tal. Então aquilo me serviu para tirar conclusões, para fazer as figuras
horrorosas que fiz e que as pessoas diziam: - mas tem a cara torta assim?-
Se você levar um soco na cara, como é que fica seu rosto? A fase negra
foi isso. Era para dar um soco na cara de quem não quer ver a realidade
das coisas e não para ficar perguntando se está certo ou errado. Este era
meu pensamento” (GULLAR, 1972).
Outra obra da Fase Negra que merece ser analisada é A Grande Cabeça (Figura
2), de 1964. Esta pintura de grandes dimensões (200x180 cm) foi executada na
técnica de óleo sobre tela. Pode-se notar nesta obra as características formais do
expressionismo, além das características gerais da Fase Negra: dramaticidade,
deformação da figura, tonalidades baixas. A particularidade desta obra consiste
na monumentalidade da figura humana. Na obra Cabeça, a figura humana foi
representada com cabeça e corpo, numa proporção equilibrada. Já em A Grande
Cabeça, Serpa privilegiou apenas a cabeça que adquiriu grandes proporções, que
exprime dor e contrição.
Cabe lembrar, que Serpa executou este quadro numa sessão, exatamente
no dia 20 de setembro de 1964. Isto confere à obra grande espontaneidade e
habilidade. O impacto provocado por esta pintura monumental é muito maior
quando a tela é observada presencialmente. A categoria pictórica está presente
através das massas de cores terrosas, sóbrias, além de pinceladas soltas.
A perspectiva pictórica reúne os elementos formais, através de volumes e
contornos indefinidos. Pode-se perceber nitidamente um rosto, com olhos, nariz,
boca e delimitações do queixo. A linha é descontínua e reforça o contraste de
claro e escuro. A autonomia da figura é realçada pela sensação de profundidade
sugerida pelos efeitos luminosos.
A cabeça toma quase todo o espaço do quadro, e dilui-se com o fundo no
quadrante inferior direito. A mistura de figura e fundo faz parte do jogo de
obscurecimento barroco. O estilo atêctonico permite que a figura ultrapasse os
limites do quadro. A ênfase é conferida à face da figura, que foi concebida na
direção diagonal. O eixo fococentral é diagonal e passa pelo olho direito da figura.
Existe também a intenção de movimento, de dinâmica ilimitada, que
abala a estrutura da frontalidade pura. Os detalhes do quadro não podem ser
173
dissociados do conjunto formal, pois a união das partes confere unidade à obra.
Esta pintura não pode ser observada por partes isoladas, pois parecerá incompleta.
A obscuridade apresenta a possibilidade de observação da cabeça por vários
ângulos. A imagem não coincide com seu grau máximo de nitidez, fato que instiga
a percepção visual do espectador.
Há uma estrutura básica nesta pintura de Serpa. As cores e as formas
encontram-se em equilíbrio assimétrico, o ritmo é obtido com o auxílio de linhas
que se alternam. As cores utilizadas são: o preto, o verde, o ocre, o marrom e o
branco. Novamente as mesmas tonalidades aplicadas na obra Cabeça. O preto
domina a região periférica do quadro, mas surge em pinceladas no decorrer da
composição. O ocre domina a região da face e parte do quadrante inferior direito.
2. Ivan Serpa, A grande cabeça, 1964. (Óleo sobre tela, 200 x 180cm; Por Coleção do Museu de
Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, MAC-USP).
174
a experiência humana: o domínio da objetividade (o mundo exterior) e da
subjetividade (o mundo espiritual, interior). Os monstros desafiam a regularidade
da natureza e a inteligência humana.
O princípio fundador da teratologia, ou ciência dos monstros, é o estudo da
irregularidade, da desmesura. Os monstros são sempre excedentes ou excessivos
em grandeza ou pequenez. Imperfeito e monstruoso é aquilo que ultrapassa os
valores medianos de uma sociedade. A conformidade pode ser representada
através da simetria, de cores puras, linhas contínuas, ordem e clareza. A
irregularidade é a oposição da conformidade, e pode ser representada através
da assimetria, da obscuridade, da deformação. Nas obras da Fase Negra, Ivan
Serpa expressou a monstruosidade e as contradições de uma época de crise.
Estas manifestações de revolta caracterizaram a década de 60 como um
momento de crise política e cultural. Ivan Serpa estava sempre em contato com
os acontecimentos e deixou-se influenciar por todos estes problemas, procurando
representar a realidade da época em que estava vivendo. Num depoimento sobre a
Fase Negra, Serpa diz que procurou dar sentido à tragédia humana: “com a ameaça
da bomba atômica, achei que os homens estavam realmente ameaçados de serem
transformados em monstros com pernas saindo da cabeça e braços do pescoço”166.
As obras da Fase Negra causaram grande polêmica no meio-artístico. Os
críticos de arte foram surpreendidos pela mudança estética de Serpa, que na
Fase Negra desenvolveu um trabalho oposto ao do período concretista que foi
marcado pelo intelecto, ordem e clareza dos valores formais e culturais. A exibição
provocou impacto na crítica e descontentamento entre os que tinham nos seus
quadros abstracionistas uma excelente mercadoria.
Ao visitar a primeira exposição de obras figurativas da Fase Negra na Galeria
Joaquim Tenreiro no Rio de Janeiro, Ferreira Gullar fez este comentário acerca
da mudança radical de Serpa:
Essa pintura que se faz hoje no Brasil para agradar supostos compradores
não é mais pintura, é confeito. Estou saturado de “bonito”, de quadro
confeitado, que não fala da realidade em que todos vivemos. O Brasil é
um vulcão e não adianta querer ignorar isso167.
166
IVAN SERPA no MIS: de Bernanos e Graciliano Ramos guardo recordações. Correio da Manhã.
Rio de Janeiro, 24 de setembro de 1971.
167
IVAN SERPA Expõe as Razões de sua Fase Figurativista. O Estado de São Paulo, São Paulo, 27
de dezembro de 1963, p. 7.
175
Este depoimento mostra que Serpa não estava disposto a fazer concessões
nem ao mercado de arte nem aos colecionadores, além da preocupação em
retratar o período conturbado em que a sociedade vivia e que muitos não queriam
ver. Para Serpa, o artista deveria estar ligado ao presente, deveria trabalhar
como um carpinteiro ou um pedreiro para obter o sustento. Para ele, a visão do
artista boêmio e isolado do mundo era velha, ultrapassada e a arte deveria ser
considerada ofício.
Neste período, Ivan Serpa mostrou-se decepcionado com as instituições
patrocinadoras da arte, como o Salão Nacional de Arte Moderna, e os respectivos
prêmios:
É certo que no decorrer de sua carreira, Ivan Serpa nunca abriu concessões
ao mercado de arte, que para ele estava cheio de conchavos. Sempre viveu do
seu trabalho como professor no Museu de Arte Moderna e como Restaurador
na Biblioteca Nacional, contando também com a ajuda financeira de sua esposa
Lygia Serpa, que sempre trabalhou como bibliotecária em várias instituições170.
A exposição na Galeria Tenreiro foi significativa para a reflexão do meio
artístico sobre a crise da vanguarda e sobre a hegemonia da arte de Serpa, que
indicou os novos rumos da pintura através do retorno à figuração. O crítico de
168
IVAN SERPA Expõe as Razões de sua Fase Figurativista. O Estado de São Paulo, São Paulo, 27
de dezembro de 1963, p. 7.
169
Idem.
170
Lygia Serpa trabalhou como bibliotecária na Biblioteca Nacional, na Biblioteca Castro Alves e
na Biblioteca Infantil Carlos Alberto, onde organizou a parte técnica e criou um curso de arte e
teatro infantil.. In: Depoimento escrito de Lygia Serpa. Op. Cit, 1995.
176
arte Jayme Maurício (1964), refletiu sobre o impacto da Fase Negra, enfatizando
que era uma pintura de poucos consumidores, pois além de ser desprovida de
possibilidades decorativistas, seria avessa à própria convivência cotidiana tal a
sua intensidade e o apelo que provocaria nas consciências sobre o lado sombrio
da condição humana.
Entre o público que esteve presente na noite de inauguração desta exposição,
houve quem achasse a temática de Serpa discutível, quem dissesse que “seus
monstros eram capitalistas, burgueses”(MENEZES, 1963), houve quem lembrasse
de Picasso e do humor de Marc Chagall. Segundo Lygia Serpa, uma moça que
observava um dos quadros da Fase Negra disse à Serpa: “este quadro é uma
bofetada na sociedade burguesa”171. Só não houve quem colocasse em discussão
o valor do artista e quem permanecesse indiferente à sua arte.
A excelente qualidade destes quadros foram percebidas depois do impacto
inicial, tanto que posteriormente muitas destas obras foram adquiridas por
Museus e colecionadores, além de que dois destes quadros foram adquiridos
pelo diretor artístico do Museu Guggenheim de Nova York (BENTO, 1964), que
estava de passagem pelo Rio de Janeiro. Devido à originalidade, à força emocional
e plástica é que uma imagem da Fase Negra foi incluída no livro A Chamber of
Horrors de John Hadfield (1965). A pintura Figura IV, de 1964, da coleção da família
do artista, ilustra a poesia Meeting with a Double de George D. Painter. Esta obra
apresenta-se ao lado de obras de artistas como Magritte, Dali, Klee, Munch e Bosch,
confirmando o prestígio e o reconhecimento internacional de Serpa.
Para Clarival Valladares, a fase expressionista de Serpa efetuou o retorno
à figuração, mas com crítica e julgamento. Não poderia ser o modelo de ateliê, a
figura exterior:
A Fase Negra contém excepcional carga histórica que para o crítico pode ser
“remota e recente, desgraçadamente eternizada” (VALLADARES, 1965).
A pintura expressionista de Ivan Serpa teve um caráter participante, pois
naquele momento a arte não teria razão de ser se não expressasse a realidade. A
Fase Negra foi uma arte de denúncia contundente e de testemunho de um período
caótico onde os fantasmas e monstros do medo, da repressão, da fome, da guerra
e dos mártires torturados imperavam.
Referências
177
CAVALCANTI, Carlos. História das artes. v. 2. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1970.
COUTINHO, Eduardo. Dez Anos sem Ivan Serpa: o experimentador das cores e das
fomas. O Globo, Rio de Janeiro, 28 de Abril de 1983.
DUBE, Wolf Dieter. O expressionismo. Trad. Ana Isabel Mendoza y Arruda. São
Paulo: Verbo/EDUSP, 1976.
GULLAR, Ferreira. Ivan Serpa e Darel Valença. Revista arquitetura, n. 15, Rio de
Janeiro, setembro de 1963.
GULLAR, Ferreira. Entrevista com Ivan Serpa. Revista civilização brasileira, Rio
de Janeiro, n. 2, setembro de 1972.
GULLAR, Ferreira. Conversa com Ivan Serpa. Arquitetura, n. 19. Rio de Janeiro, 1964.
PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014.
SERPA, Ivan e LAZZARINI, Domênico. Revista Menorah, n. 63, Rio de Janeiro, 1964.
SERPA, Ivan. Expõe as razões de sua fase figurativista. O estado de São Paulo, São
Paulo, 27 de dezembro de 1963.
178
SERPA, Lygia. Depoimento escrito de Lygia Serpa. Rio de Janeiro, 19 de novembro
de 1995.
VATTIMO, Gianni; ROVATTI, Pier Aldo. Il pensiero debole. Milano: Feltrinelli, 1983.
179
Imagens da História
181
Segue-se, como terceiro segmento, a “Primeira imagem”, composta por um
único poema: o “Vilancete dos três rios”. Também aqui, a percepção do poeta foi
capaz de criar um texto admirável, se considerado em si mesmo ou na totalidade
do livro. É que a colonização começou no século XVI, época em que o vilancete
era forma fixa bastante praticada, haja vista os inúmeros exemplos encontráveis
na lírica de Luís de Camões. E a sua execução, tendo como motivo os três rios
principais – o Negro, o Solimões e o Amazonas –, simboliza, em termos históricos,
o percurso feito pelos colonizadores para tomar posse da região.
Partindo do mote “Um remanso de panema / poesia nada pequena”, o poeta
desenvolve a premissa de que a poesia só se plenifica mediante o sofrimento. Ou
melhor, a poesia exige a negatividade, tal como a ficção precisa ter um conflito
que quebre a estabilidade inicial e dê origem à narrativa.
Um motivo paralelo aos rios é o da música. Assim, o rio Negro “desce deserto
de pássaros”; o Solimões se vê “de pássaros sempre novo”; já o Amazonas se
debruça “sobre o mar, canção suprema”177. É o momento em que o eu lírico realiza
a “poesia nada pequena”.
Na última estrofe, o poeta fala em “mar dulce”, referência a uma denominação
dada ao grande rio pelos espanhóis. Nesse ponto, observa-se a seguinte antítese:
“mar dulce em delta de amargo” – união da doce poesia com o amargo sofrimento
necessário para atingi-la.
A métrica do texto é em redondilhas maiores, tal como os poetas clássicos
portugueses costumavam escrever – era a chamada “medida velha”. Entretanto,
se os heptassílabos dão musicalidade ao vilancete, as rimas se mantêm numa
posição contrária, pois há muitos versos brancos. Novamente, estamos diante da
“poesia nada pequena” (a musicalidade) e do “remanso de panema” (a retirada
parcial da musicalidade), simbolizando a negatividade, húmus necessário ao
desabrochar lírico.
Na quarta parte (“A Descoberta”), temos os eventos históricos iniciais. Em
quatro poemas, “disserta” o eu lírico sobre o sonho do Eldorado, os primeiros
núcleos populacionais, os tratados de fronteira entre Portugal e Castela e,
finalmente, a criação da Vila de São José da Barra, embrião da cidade de Manaus.
Aliás, o livro é também uma homenagem à capital do Amazonas.
Sobre o poema “Vila da Barra”, devem-se destacar os belos e simples
enunciados sobre a cidade recém-fundada. No poema, existe também o
isomorfismo, que é a disposição da forma em função do conteúdo. Em forma de
ode, as estrofes, por tal motivo, são simétricas, possuindo quatro versos, com
esquema rímico em abcb e métrico em 7-7-7-2. É como se o último verso não
chegasse sequer à naturalidade popular das redondilhas, permanecendo em forma
de embrião, tal como a cidade que se formava. Como muitos dos heptassílabos
apresentam cesura na segunda sílaba,178 podemos dizer que o dissílabo funciona
como uma “redondilha quebrada”.
A gente da futura Manaus “vestia-se com antigas / vestes adornos miçangas
/ indígenas”. Constituía-se em “silêncio de gente” ou “simples traço de vida”. Com
esses exemplos, demonstramos que a simplicidade não necessariamente exclui a
“poesia nada pequena”. Como registra Zemaria Pinto, em estudo sobre o poeta, “a
177
Idem, p. 41-2.
178
São exemplos desse fenômeno sempre os primeiros versos de cada estrofe: “As casas de São
José”, “O porto de São José” etc. Idem, p. 53.
182
primeira leitura é apenas a superfície vislumbrada, a água cristalina, soprada pela
brisa matinal. Para saber o que há dentro da água espessa do poema, é preciso
cultivar a paciência necessária, e mergulhar no perau”179.
Depois, vem a “Segunda imagem”, que constitui a quinta parte do livro.
Como o título sugere, há apenas uma “visão” (ou “imagem”). Desta vez não sobre
motivos geográficos, como o vilancete da primeira imagem, mas sobre motivo
exclusivamente histórico. No único poema, louva-se a atuação dos “dois Bonifácios
/ e Pedro Primeiro”180. Trata-se, no caso, de exaltar, tal como Camões o fez em Os
Lusíadas, os “barões assinalados”, aqueles que, “por obras valerosas, / Se vão da
lei da morte libertando”. No poema, relacionam-se figuras que importaram no
percurso temporal do Amazonas.
Novas figuras históricas são louvadas em “Galeria” (a sexta parte), aquelas
que, na percepção do eu lírico, se constituíram, pelo bem ou pelo mal, em pilares
de nosso caminho ao longo dos séculos: Pedro Teixeira, Lobo d´Almada, Marquês
de Pombal e Ajuricaba, símbolo de nossa resistência.
O poema dedicado a Pombal não é de mera louvação. Pelo contrário, o poeta
critica a atuação do “temível marquês” e expressa, em momento de bela construção
lírica, o dilema das organizações sociais humanas: “Mudam-se as formas de rota,
/ mudam os modos de agir, / mas dominar permanece”181. Antes, no poema sobre
Pedro Teixeira, a quem louva no início, refere-se àquele explorador como tendo
vivido “sob o signo das antigas / serpentes / a sedução de um mundo maior”.
Ajuricaba é visto como herói de existência histórica não comprovada –
isso porque, no tempo da feitura e publicação do livro, ainda não haviam sido
encontrados os autos do processo movido pela Coroa lusitana contra o líder
manau: “Se não existiu o homem / ficou inscrito o seu nome”182.
Finalmente, a “Terceira imagem”, da qual consta a “Relação dos últimos
eventos”. Nesse último texto, a antiga Vila de São José da Barra aparece como a
capital da Província do Amazonas e nele o poeta se referencia também ao seu
primeiro governador: João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha. Termina o eu
lírico seu grande livro com um enunciado exemplar: “Os eventos não se inventam,
/ constroem-se sobre o tempo”.
Sendo Imagem uma obra em que predominam os aspectos históricos, ela nos
remete ao Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. No livro de Elson Farias
existem igualmente os mesmos anseios de liberdade: “Pela esperada esperança, /
Pelo poder do porvir, / louve-se a aurora do dia / com o que há de vir”183.
Também é impossível, em sua leitura, não nos lembrarmos de Mensagem,
de Fernando Pessoa. Sem o tônus épico do livro português, possui Imagem,
contudo, concepções semelhantes: a par das figuras históricas postas em destaque,
poetiza-se sobre a formação de uma “nacionalidade”. No caso de Pessoa, há ainda
que observar o destaque dado a um determinado tipo de espaço: o mar; em
179
PINTO, Zemaria. Lira da madrugada, p. 147.
180
Idem, p. 59.
181
Idem, p. 69.
182
Idem, p. 67.
183
Idem, p. 59. Poema “Louvação do 9 de novembro”.
183
Farias, o espaço sobre o qual se desenrolam os temas não poderia ser outro: os
rios, mares de água doce.
Uma última conjectura se faz necessária e ela diz respeito à razão do título:
por que Imagem se são várias as imagens? O próprio poeta, aliás, relaciona três
delas. Convenhamos, porém, que as imagens sobre o passado são sempre diluídas
ou deformadas pelo percurso do tempo ou por interpretações não seguras. O que
temos sobre a formação de nossa “identidade”, sobre nosso percurso no tempo,
é algo que se funde numa percepção única. Todas as imagens – a Imagem.
Referências
PINTO, Zemaria. Elson Farias. In: PINTO, Zemaria & MRQ, Mauri. Lira da
madrugada. Manaus: Coreli & Jiquitaia, p. 141-7, 2014.
TELLES, Tenório. A poesia como expressão do telúrico. In: ___. Clube da madrugada:
presença modernista no Amazonas. Manaus: Valer, p. 107-11, 2014.
184
O Lustre, de Clarice Lispector: indícios de incesto
186
revelada, e acerca da qual silenciam, vai refletir-se nos jogos sombrios
das duas crianças. Essa recordação secreta sela a mútua dependência
afetiva, cimentada num liame de domínio e servidão, em que elas vivem
(NUNES, 1989, p. 24).
Virgínia aceita o senhoril de Daniel, “... um menino estranho, sensível
e orgulhoso, difícil de se amar (L. 31). Em nome de uma Sociedade das
Sombras por ele inventada, Daniel dita ordens à irmã e impõe-lhe a
execução de seus caprichos. Estão ambos voluntariamente segregados
dentro de Granja Quieta – mundo noturno e denso, que abriga a velha
casa de família, guardando ainda, dentre os restos de antiga abastança,
um lustre que pende do teto da sala (NUNES, 1989, p. 24).
187
Os membros do clã, por sua vez, acham-se na obrigação, sagrada e
portadora de punição automática, de não matar (destruir) seu totem e
abster-se de sua carne (ou dele usufruir de outro modo), O caráter do
totem não é inerente a um só animal ou um ser individual, mas a todos
da espécie (FREUD, 2013, p. 8-9).
O estudioso observou ainda que: “[...] em quase toda parte em que perdura o
totem há também a lei de que membros do mesmo totem não podem ter relações
sexuais entre si, ou seja, também não podem se casar. É a instituição da exogamia,
ligada ao totem” (FREUD, 2013, p. 10).
Ao estudar “O tabu do incesto” a partir de uma bibliografia relevante de
autores, como Wundt, J. Long, Jung, J. G. Frazer, J. Fergusson McLennan, Otto
Rank, entre outros, ele pesquisa os vários aspectos do “tabu”, a exemplo da
origem da palavra, que parece ter se perdido no tempo, conseguindo apontar a
“ambivalência” de seu significado, o qual, segundo Freud, “se divide, para nós,
em duas direções opostas. Por um lado, quer dizer “santo, consagrado”; por outro,
inquietante, perigoso, proibido, imputo [...]” (FREUD, 2013, p. 12).
Ainda a respeito dessa questão, Freud observa algo importante, isto é:
“As restrições do tabu são algo diverso das proibições religiosas e morais. Não
procedem do mandamento de um deus. Valem por si mesmas. [...] As proibições
do tabu prescindem de qualquer fundamentação” (FREUD, 2013, p. 10-11).
Freud, ao pesquisar vários tipos de tabus, as suas restrições, seus objetos,
as suas violações, os seus castigos, a transmissibilidade nos costumes dos povos
tradicionais australianos, com toda a complexidade da questão, chega à conclusão
de que: “As mais antigas e importantes proibições do tabu são as duas leis
fundamentais do totemismo: não liquidar o animal totêmico e evitar relações
sexuais com indivíduos do mesmo totem que são do sexo oposto”; acrescentando
ainda que: “Esses devem ser, então, os mais antigos e poderosos apetites humanos
[...]” (FREUD, 2013, p. 27).
Desse modo, retoma-se o primeiro capítulo do romance em estudo para nele
discutir os indícios de incesto, tendo em vista que, da ótica de tal narrativa, nas
palavras cifradas do narrador de O lustre, existe um outro segredo que os dois
irmãos não querem que ninguém saiba, particularmente Virgínia. Senão, veja-se:
no primeiro capítulo, quando ficam conhecidas as duas personagens, essas estão
em cima de uma ponte, conforme fragmento abaixo, o que não constitui ato
gratuito, como é demostrado mais à frente:
Ela seria fluída durante toda a sua vida. Porém o que dominara seus
contornos e os atraíra a um centro, o que a iluminara contra o mundo
e lhe dera íntimo poder fora o segredo184. Nunca saberia pensar nele
em termos claros temendo invadir e dissolver a sua imagem. No entanto
ele formara no seu interior um núcleo longínquo e vivo e jamais perdera
a magia – sustentava-a na sua vaguidão insolúvel como a única realidade
que para ela sempre deveria ser a perdida (LISPECTOR, 1998, p. 9).
Observa-se na citação acima que Virgínia, embora seja mais nova que Daniel,
é mais perspicaz do que o irmão, percebendo que aquilo que eles fazem é proibido
naquela sociedade em que vivem. Entretanto, ela se sente bem com o irmão,
184
Grifos nossos.
188
fazendo com que ele jure não contar para ninguém o que praticam juntos, o que,
de certo modo, lhe traz poder sobre o irmão.
Na continuação do primeiro parágrafo, o narrador declara que os dois jovens
se encontram sobre uma ponte, estando especialmente a figura feminina em
situação de perigo:
[...] Os dois se debruçavam sobre a ponte frágil e Virgínia sentia
os pés nus vacilarem de insegurança como se estivessem soltos
sobre o redemoinho calmo das águas. Era um dia violento e seco em
largas cores fixas; as árvores rangiam sob o vento morno crispado de
céleres friagens. O vestido ralo e rasgado da menina era atravessado por
estremecimentos de frescura. A boca séria premida contra o galho
morto da ponte. Virgínia mergulhava os olhos distraídos nas águas.
De súbito imobilizara-se tensa e leve: Olhe!185 (LISPECTOR, 1998, p. 9).
Ele falava tão grave, ele falava tão belo, o rio rolava. As folhas cobertas
de poeira, as folhas espessas e úmidas das margens, o rio rolava, quis
responder e dizer que sim, que sim! Ardentemente, quase feliz, rindo
com os lábios secos, mas não podia falar, não sabia respirar, como
perturbava. Com os olhos dilatados, o rosto de súbito pequeno e sem
cor, ela assentiu cautelosamente com a cabeça (LISPECTOR, 1998, p. 10).
189
passagem, o caráter frequentemente perigoso dessa passagem, que é de toda
viagem iniciatória. [...]” (CHEVALIER e GHEERBRANT, p. 729).
A ponte, enquanto passagem, revela uma intimidade entre Virgínia e Daniel,
o que pode ser visto no primeiro parágrafo do livro e nos subsequentes, em que
a irmã insiste para que Daniel jure não contar nada para ninguém, ao que ele
responde: “- Por exemplo... que tudo o que a gente é... vire nada... se a gente falar
disso a alguém (LISPECTOR, 1998, p. 9).
A resposta de Daniel sobre a visão do chapéu pode sugerir apenas um homem
morto por afogamento descendo o rio, o que parece ser o único segredo das duas
personagens. Contudo, quando se observa a narrativa fragmentada de O lustre,
surge outro segredo, qual seja o incesto que vem acontecendo entre os dois irmãos,
conforme sugestão da continuidade do parágrafo anterior:
190
se precipitar, mas de repente algo não se conteve e principiou a suceder...
Sim, ali mesmo iam-se erguer os vapores da madrugada doentia pálida,
como um fim de dor – enxergava Virgínia de súbito calma, submissa e
absorta (LISPECTOR, 1998, p. 11).
191
incesto. Isto porque, no primeiro parágrafo do primeiro capítulo do romance, Daniel
e Virgínia já não são tão crianças, vivem sozinhos pelos matos e rios da Granja
Quieta, fazendo tudo que desejam, longe dos cuidados de familiares. E a história
dos dois irmãos passa a ser contada mais amiúde a partir do segundo capítulo.
Noutras palavras, os dois pré-adolescentes desenvolvem um afeto desde
cedo que destoa de um relacionamento fraterno consanguíneo, como se pode
constatar no excerto a seguir:
[...] Naquele tempo Daniel lhe dissera pela primeira vez, quase sem
propósito: - Por Deus e pelo Demônio. Ela estacara. Um grande silêncio
seguira-se. Olhara-o e descobrira na sua trêmula vitória a mesma
perturbação. Ele lhe trouxera timidamente um grito. Fitaram-se um
instante e tudo era indeciso, frágil, tão novo e nascente. E tudo era
tão perigoso e revolvido que ambos desviaram quase bruscamente os
olhos. Mas havia alguma coisa encantada entre eles nesse momento.
Embora ela jamais se ocupasse verdadeiramente de Deus e raramente
rezasse. Diante da ideia dele, permanecia surpreendentemente calma
e inocente, sem um pensamento sequer. Daniel afastava-se. Naquele
tempo ele começava a pensar e a dizer coisas difíceis com gosto e amor
(LISPECTOR, 1998, p. 54-55).
Não obstante, a história desse afeto entre os dois irmãos tem início com o
nascimento de Virgínia, momento em que a mãe dela, personagem sem nome,
se encontra bastante desiludida pelo casamento mal sucedido com um homem
que vai morar com a esposa na casa da mãe dele e a mulher não se sente bem na
casa da sogra, conforme a passagem infracitada:
186
Grifos nossos.
192
olhos limpos e secos vivia como só com Virgínia dentro da Granja
Quieta. Desde que a irmã nascera ele a tomara e secretamente ela
era apenas sua. Ainda muito pequena, os cabelos compridos e sujos nos
olhos, as pernas curtas hesitando sobre os pés descalços, ela agarrava
com uma das mãos os fundos das calças de Daniel e o irmão, o rosto
queimado e sem doçura, os olhos seguros, subia pelas encostas da
montanha com movimentos obstinados como se não sentisse o peso de
Virgínia, a inclinação resistente dos morros, o vento que soprava firme
e frio no seu corpo. Não a amava sequer mas ela era doce e tola, fácil
de se conduzir a qualquer ideia187 (LISPECTOR, 1998, p. 28).
Virgínia vê no irmão a figura de alguém que está presente na vida dela. Isto
porque a mãe vive meio que sem voz ativa diante do marido e não consegue
impedir a violência dele, que é muito bruto com as filhas mulheres, notadamente
com Virgínia, chegando a bater no seu rosto no momento em que todos estão à
mesa do café da manhã:
[...] Eles sentavam à mesa para tomar café e se Virgínia não comia
bastante apanhava no mesmo momento – como era bom, a mão
espalmada voava rápido e estalava com um ruído alegre numa das
187
Grifos nossos.
193
faces resfriando a sala sombria com a delicadeza de um espirro. O rosto
acordava como um formigueiro ao sol e então ela pedia mais pão de
milho, cheia de uma mentira de fome. O pai continuava a mastigar, os
lábios úmidos de leite, enquanto com o vento uma certa alegria hesitava
no ar [...] (LISPECTOR, 1998, p. 17).
194
Ela recusou enojada. Mas terminou colando um olho no buraco da caixinha
e nada vendo senão movimentos vagarosos na escuridão. Ela dizia:
Vi, já vi, vi tudo!
Ele ria.
- Você seria até menos idiota se não fosse tão idiota (LISPECTOR, 1998,
p. 134).
O olho com que ela espiara a aranha doía. Durante dias lacrimejara
torto, caído e de manhã ela não podia abri-lo até que o calor do sol e
de seus próprios movimentos acordava-o. Inchou depois, insensível
e sem sangue. Quando tudo passou, já não era o mesmo, tornara-se
imperceptivelmente vesgo e menos vivo, mais lento e úmido, mais
amortecido que o outro. E se escondia com uma mão o olha são, via as
coisas separadas dos lugares onde pousavam, soltas no espaço como
numa assombração (LISPECTOR, 1998, p. 134).
[...] jamais ele pedira desculpas, ele sabia que isto era a marca de
um poder. Entre o filho e o pai vagava uma sinceridade cuidadosa e
perturbada. E ele era tão obstinado que ainda pequeno, não dava mais
uma palavra depois que o sol se punha, interrompendo mesmo uma frase
ou um riso. Sentava-se a um canto, os olhos opacos de raiva e tristeza.
Só amansava no dia seguinte (LISPECTOR, 1998, p. 33).
195
[...] Naquele tempo Daniel lhe dissera pela primeira vez, quase sem
propósito: por Deus e pelo Demônio.
Ela estacara. Um grande silêncio seguira-se. Olhara-o e descobrira na
sua tímida vitória a mesma perturbação. Ele lhe trouxera timidamente
um grito. Fitaram-se um instante e tudo era indeciso, frágil, tão novo
e nascente. E tudo era tão perigoso e revolvido que ambos desviaram
quase bruscamente os olhos. Mas havia alguma coisa encantada entre
eles nesse momento (LISPECTOR, 1998, p. 54).
196
melhor a respeito de sua vida. Depois, mais uma vez, retornam juntos à clareira
da mata, onde Daniel incentiva a irmã a contar ao pai que sua filha “Esmeralda”
se encontra às escondidas com um rapaz no jardim da residência deles.
Com a vivência dentro do porão para pensar, no terceiro capítulo da obra
em apreciação, precisamente no quarto de hóspede, local em que ela se encontra
anteriormente por duas vezes com Daniel, Virgínia, ao olhar-se no espelho,
um símbolo de autoconhecimento, reconhece que é outra. De acordo com as
palavras do narrador: “Parecia-lhe ter mergulhado na vileza com a Sociedade
das Sombras”(LISPECTOR, 1998, p. 65).
Após essa experiência na “Sociedade das Sombras”, Virgínia chega a pensar
que: “[...]Um novo elemento até agora estranho penetrava em seu corpo desde
que existia a Sociedade das Sombras. Agora ela sabia que era boa mas que sua
bondade não impedia sua maldade”(LISPECTOR, 1998, p. 65). É ainda no terceiro
capítulo que Virgínia delata a irmã, incentivada por Daniel, tudo arquitetado
anteriormente como se fosse a mando da “Sociedade das Sombras”, e o pai
encolerizado bate no rosto de Esmeralda, desclassificando-a. De acordo com as
palavras do narrador: “O pai olhou para todos vitorioso, velho, sombrio. Nesses
momentos de raiva ele parecia mais gordo e menor. Mandou chamar Virgínia e
perguntou: - Pois ouça e confirme: essa vagabunda aí se encontra no jardim com
um macho”(LISPECTOR, 1998, p. 69). Quando Virgínia vê a fúria do pai, Esmeralda
aos prantos e a presença da mãe, essa pergunta “– Foi ela quem contou!? Gritou
a mãe”(LISPECTOR, 1998, p. 69). Virgínia nega e desmaia.
A partir desse episódio, os dois irmãos vão embora do casarão para continuar
os estudos na cidade grande. Na obra se percebe que o pai não gosta da filha
Esmeralda, mas tinha o propósito de custear os estudos dos dois filhos menores.
Eis os termos do narrador:
[...] o pai não olhava para Esmeralda como se ela fosse morta. A última
vez em que a tocara fora exatamente quando falara de novo na viagem
que Daniel e Virgínia fariam um dia para à cidade para estudar língua,
comércio e piano [...] com a outra, dissera ele, não faria o mesmo porque:
‘animal só se solta de casa sem dente’ (LISPECTOR, 1998, p. 18).
197
[...] A mesma rejeição encontram, por exemplo, os trabalhos de Otto
Rank, que evidenciam cada vez mais como o tema do incesto está
no âmago do interesse dos escritores, fornecendo material à poesia
em incontáveis variações e distorções. Somos levados a crer que tal
rejeição é, antes de tudo, um produto da forte aversão do homem a
seus antigos desejos incestuosos, desde então submetidos à repressão
(FREUD, 2013, p. 11-12).
198
posteriormente comece um relacionamento conjugal com Vicente, a presença
de Daniel em suas lembranças passa a ser um fantasma, porque ao lembrar de
Vicente, a imagem de Daniel vem à tona.
Após a mudança de Daniel para Granja Quieta, Virgínia vai morar com umas
primas, depois numa pensão e, por último, num apartamento. Quando a avó
falece, ela retorna à sua casa, onde Daniel está morando. Eles chegam a conversar,
mas Virgínia percebe que tudo mudou e retorna para a cidade onde reside o
amante Vicente.
Nos últimos capítulos do livro, Virgínia perambula na Granja Quieta,
convivendo novamente com o pai, a mãe, a irmã Esmeralda e o irmão Daniel,
lembrando-se da sua vida do passado ao lado do irmão. Contudo, observa que
tudo mudou. No entanto, o mito da infância permanece em sua memória e por isso
sofre, quando conversa com Daniel a respeito desse passado doloroso. Contando-
lhe que Vicente é seu amante, Daniel parece querer continuar a convivência com
a irmã, todavia ela compreende que pode também refazer sua vida com Vicente.
Desse modo, vai embora deixando Granja Quieta e Daniel, que passam a figurar
apenas como lembranças dolorosas de tudo que viveu no Casarão e arredores.
No retorno para a cidade grande, ao sentar no trem, ela pensa em Vicente, seu
amante. Em seguida, lembra-se de que não viu o Lustre, peça importante da sala
do casarão, que remetia a um passado glorioso da sua família e, na nova visão de
Virgínia, tinha se deteriorado. Insiste que não viu o Lustre, “pensou que o perdeu
para sempre. E sem se entender, sentindo um certo vazio no coração. Pareceu-
lhe ainda que na verdade, perdera suas coisas. Que pena, disse surpreendida”
(LISPECTOR, 1998, p. 263). Essas “suas coisas”, podem ser também a perda de
Daniel, visto que ela colocou um ponto final em tal relacionamento.
Agora, Virgínia parece ter se recuperado dos antigos sofrimentos causados
pelo irmão, e volta para uma vida nova na cidade grande, possivelmente para viver
com Vicente. Ao descer do trem, passa mal e, ao atravessar a rua, é atropelada
por um carro e morreu, longe de seus familiares.
Conclusão
Referências
199
FREUD, Sigmund. Totem e tabu: algumas concordâncias entre a vida psíquica dos
homens primitivos e a dos neuróticos. São Paulo: Penguin Classics - Companhia
das Letras, 2013.
GOTLIEB, Nádia Battella. Clarice: uma história que se conta. São Paulo: Edusp, 1995.
QUEIRÓS, Eça de. Os Maias: episódios da vida romântica. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2014.
200
História e memória: a poesia nua de Adília Lopes188
188
Este texto é uma adaptação dos relatórios finais dos projetos de iniciação científica,
desenvolvidos no âmbito da Universidade Federal do Amazonas – UFAM, quais sejam: A
condição feminina em Adília Lopes, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico – CNPq, e Adília Lopes: uma literatura para reconstituir uma identidade
ferida, financiado pela UFAM.
Introdução
[...] cada verso, cada palavra é uma peça. Pela disposição na página e
pela feitura cada poema é um trança ou uma tripa. Não me contento com
pouco, só me contento com tudo, com o todo. Ou como dizia S. Francisco
de Assis (cito de cor), preciso de pouco, e desse pouco, preciso de muito
pouco. [...] os meus textos são políticos, de intervenção, cerzidos com a
minha vida (LOPES, 2014, p. 443).
Todo poema, seja qual for a sua índole, lírica, épica ou dramática, manifesta
uma maneira peculiar de ser histórico; mas para captar realmente essa
singularidade não basta enuncia-la de forma abstrata [...] mas abordar o
poema em sua realidade histórica e ver de maneira mais concreta qual é
a sua função dentro de uma sociedade (PAZ, 2014, p. 200).
202
Por estar à margem, a esse grupo sempre foram destinadas as tarefas mais
sensíveis e menos “mentais” (STEARNS, 2007), pois, deste modo, a sociedade
machista e patriarcal se organizaria para deixar a mulher longe do espaço público,
uma vez que é um espaço de saber e autonomia, de acordo com Patrícia Rocha
(2014) em Mulheres sob todas as luzes: a emancipação feminina e os últimos dias
do patriarcado. Essa perspectiva, infelizmente, ainda se faz presente neste século,
embora as mulheres tenham conquistado um espaço significativo na sociedade.
Em A Liga Republicana das Mulheres Portuguesas: uma organização política e
feminista, João Gomes Esteves traz à luz, por meio de epígrafe, Geraldine Scanlon.
Ela, por sua vez, aduz que “La educación es probablemente la condicion previa
más importante para la emancipación, pues la ignorância es un medio tanto para
mantener sometida a la mujer como para justificar ese sometimiento” (SCANLON,
1986, p. 15 apud ESTEVES, 1991, p. 74). Noutras palavras, a ignorância, a falta
de instrução é o principal meio para manter a mulher subalternizada. Por esse
mesmo viés, mais a frente, Esteves (1991) elucidará que a Liga assume a máxima
de que educar é lutar, haja vista que “é a educação que pode transformar os
costumes, aperfeiçoar os caracteres e preparar um futuro melhor” (p. 75).
Nesse sentido, movimentos feministas lutaram para que tivessem ascensão
por meio da instrução, pois dessa forma poderiam estar em igualdade e partir
para o espaço público. Destarte, Ana de Castro Osório propõe que enquanto as
reacionárias189 “levantarão igrejas, nós abriremos escolas” (OSÓRIO, 1909, p. 2
apud ESTEVES, 1991, p. 75). Essa assertiva nos leva a refletir acerca da influência da
Igreja no comportamento feminino, já que sempre buscou pregar a desigualdade,
submissão ao homem, em vez de pregar a equidade.
As questões aqui colocadas se fazem indispensáveis para pensarmos o
espaço feminino conquistado na literatura. As obras trabalhadas no ensino básico
e superior quase sempre são de autoria masculina – não há o que contestar,
talvez, quanto à qualidade das obras escolhidas; o que deve ser contestada é
a pouca inserção de obras de autoria feminina, perpetrando assim a falta de
reconhecimento pelo cânone; vez ou outra uma feminina é levada à luz por
pertencer ao cânone literário. Outras não têm suas obras reconhecidas, embora
sejam produções que merecem destaque quanto à qualidade da autoria.
Fazem-se, pois, necessários estudos que versem em torno da produção literária
feminina, para que, assim, a História possa ser contada a partir de um outro olhar, o
do feminino. É a isto que nos propomos, com a análise da produção de Adília Lopes.
de Castro Osório. Talvez, Esteves não tenha pensado a respeito das imposições da igreja e da
sociedade de modo geral, e as tenha classificado, as que estavam para cumprir as doutrinas
da igreja, de modo equivocado, pois não é uma questão tão simples quanto parece; envolve,
sobretudo, questões estruturais. As que estavam a “abrir igrejas”, sempre estiveram cercadas de
ensinamentos religiosos e não científicos, possivelmente.
203
A mulher por muito tempo foi considerada à margem da sociedade e a ela eram
designadas as tarefas domésticas que se restringiam aos cuidados com a família e,
sobretudo, à submissão ao marido. O feminino foi silenciado durante séculos, haja
vista que o poder é centrado no patriarcado e se o feminino expressasse desejos
que fossem discrepantes à sua condição, à época, era taxado como o que fere os
direitos do homem. Rocha (2009) afirma que “para impedir o avanço feminino
[...] a sociedade se organizou para manter a mulher no espaço privado longe da
‘tentação’ do espaço público, fonte de saber e autonomia” (p. 147-148).
A ideia de subalternidade é sustentada por antropólogos, sociólogos e
historiadores quando se voltam ao tipo de organização social das sociedades
primeiras e ao modo de subsistência. Peter N Stearns em História das relações de
gênero aduz que: “a maior parte das sociedades agrícolas tinha desenvolvido novas
formas de desigualdades entre homens e mulheres, num sistema geralmente
chamado de patriarcal – com o domínio de maridos e pais”(STEARNS, 2007).
Exemplifica pela vivência em grupo, na qual o homem percorria o campo em
busca de animais para a sua alimentação enquanto que as mulheres estavam
entregues às atividades de reprodução e à colheita da plantação nas imediações
do habitat. Considerava-se então, a caça como atividade nobre e a agricultura
sem qualquer valoração. A partir dessas diferenças iniciais é que se deram as
desigualdades.
Karl Marx e Friedrich Engels, ao discorrerem em A Ideologia Alemã sobre
as relações que intervém no processo de desenvolvimento histórico, afirmam
que a subordinação ou inferioridade a outro, em graduação ou autoridade, está
ligada ao fato de que o homem, entendido como plural, renova a própria vida e
cria outros homens a fim de estabelecer que
204
A mordaça, ainda que simbólica ou invisível, era colocada na mulher
quando saía do privado ao público na companhia do pai ou do marido na ideia
de adestrar, manipular, assim como o cabresto é fundamental para marcha na
égua. Stearns diz que:
205
Ressaltou a importância da formação escolar para as mulheres se
lançaram no mercado de trabalho e conquistar a tão desejada autonomia
financeira [...] (ROCHA, 2009, p. 128).
206
Com a renovação da docência nos centros universitários, introduziram-se
correntes inovadoras influenciadas pela escola francesa dos Annales, que se
destacou por incorporar as Ciências Sociais à História, e pela “nova história”
de caráter antropológico a partir dos estudos da vida cotidiana e privada e
vocacionada também para a investigação das “alterações na própria sociedade
portuguesa, em particular a entrada massiva de mulheres no ensino superior”
(VAQUINHAS, 2002, p. 203) e, este fato, foi importante para divulgação de
novidades temáticas e incorporação nos grupos de estudo das universidades.
Em 1967 houve um ciclo de conferências, iniciativa da Associação Acadêmica da
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, intitulado A mulher na sociedade
contemporânea que tinha como ideal as perspectivas feministas. Eventos desse
tipo só tiveram continuidade depois do 25 de abril de 1974 e compreende-se desde
então que estes movimentos feministas é que colocaram a mulher na cena da
história antes gerida pelo masculino.
Nos anos 80, época em que Adília Lopes estreia na literatura, é que os
intelectuais se voltam a investigar as mulheres no anonimato, das quais quase
nada se sabia. Nesta era, a história das mulheres, acompanhadas da “sensibilidade
de investigadores para os temas relacionados com o feminino e o seu acolhimento
por parte do público discente” (VAQUINHAS, 2002, p. 204), espalha-se no ambiente
universitário.
Dos anos 90 para cá, houve a institucionalização, como campo particular
do conhecimento acadêmico, dos Estudos das Mulheres. A Universidade Aberta
(Lisboa) foi precursora neste assunto, “ao criar, em 1995, o primeiro Mestrado
em Estudos das Mulheres, de caráter interdisciplinar, com particular incidência
nas áreas de história, literatura e sociologia” (VAQUINHAS, 2002, p. 207).
Hoje, em pleno século XXI, mulheres ainda sofrem com o reflexo de tempos
em que ser mulher era considerado um problema; ser mulher e não ser casada,
outro, e, ser mulher casada e não ter filhos constituía problema ainda maior.
Muito se conquistou e muito precisa conquistar-se através da luta incessante
por igualdade e visibilidade social, pois MUITAS ainda continuam no anonimato,
talvez por repressão e medo.
Os escritos muito têm que dizer sobre seus autores. As palavras tratam do
que há e do que pode vir a ser. Sob esta ótica os textos são analisados, quando
entendidos como ficcionais e, embora ficcionais, carregam aspectos da relação
entre o autor e o mundo, o universal, e o mundo particular, subjetivo, que lhe
permite existir e criar existências.
Não diferentemente, Adília Lopes apresenta-se ao leitor, revelando-se dona
de uma voz que, aos poucos, torna-se audível para os estudos literários. Mais
que isso. Adília dá voz, nos seus poemas, às mulheres que ainda precisam lutar
duplamente para voltar aos espaços que lhes foram tirados. “Ao próximo” dá
sustentação a nossa ideia: “Ao próximo /dou a mão / ou a lira / é em vão / Escrevo
/ este poema / para os / e as / que não têm / mãos”190 (LOPES, 2014, p. 545).
Apresentamos os poemas desta forma por pura economia de espaço, para que mais poemas
190
possam ser apresentados e discutidos. O uso de uma barra indica o verso, enquanto que o uso de
duas barras indica linha em branco, marcando as estrofes.
207
A escrita, não só em Adília, mas em todas as que são citadas por ela (e para
além delas), como Florbela Espanca, As três Marias das Novas Cartas Portuguesa,
Mariana Alcoforado das Cartas Portuguesa, Clarice Lispector, dentre outras, atua
como mecanismo resistência, desde a luta travada para terem acesso à educação até
serem consideradas, por meio de suas produções, passíveis de estudos por outros.
Nesse sentido, dispensamos, nessa sessão, análises sobre os poemas de Adília
Lopes, de modo a verificarmos como se dá o processo de escrita, revelando a arte
poética da escritora, como se vê no primeiro poema da seleção que fizemos:
208
das coisas. Vê-se ainda que em vez de se utilizar de “as águas que movem os
moinhos [...] são as águas passadas”, utiliza-se de “as águas que moem moinhos
[...] são as águas passadas”, marcando talvez que as águas passadas são ponto de
partida para a escrita de seus poemas. Isto pode significar dizer que seus escritos
também são resultados de um passado que se faz presente.
“Um figo” é o título do terceiro poema que selecionamos para análise. É o
que segue:
Cremos ser este poema de Adília um enigma, para o qual não há resolução
precisa, mas possibilidades de se chegar a uma leitura minimamente possível.
Dado o objetivo de desvelar Adília e sua poesia, podemos inferir que no poema
em questão há uma aproximação da artista com sua obra, o quadro pintado por
suas palavras, ou melhor, a fotografia tirada sob sua ótima. Dizemos deste modo
porque consideramos a fotografia como o poema de Adília, tendo nele, certamente,
a presença das ideias da autora, pois: A poetisa / não é / uma fingidora // Mas /A
linguagem-máscara / mascara (LOPES, 2014, p. 572).
Ao dizer isto, consideramos também o problema teórico de por vezes lermos
a produção literária da autora, buscando encontrar estrita ligação com sua vida
particular, como se a sua obra fosse uma extensão dela. Embora seja possível
essa análise, muito pouco tem a contribuir para nosso estudo, por isso buscamos
o distanciamento da figura autoral.
A voz lírica, construída por Adília, é resistente à interpelação do desconhecido,
tentando convencê-lo de que a fotografia nada tinha que ver com ela, mesmo
que as características das duas pudessem se fundir, tornando-se indissociáveis.
A narração do poema busca associar a presença da personagem do poema com
a personagem da fotografia, ao tratar do sangue como propriedade humana,
devolvendo-o a si depois de uma picada no dedo. Nesse sentido, a fotografia seria
como sangue, pois nela havia marcas de quem a deixara cair.
Talvez sejam assim os poemas de Adília, uma parte de si fora de si. Estando, pois,
do lado de fora, deixa de pertencer a ela, representando talvez apenas um recorte,
tal qual a fotografia, de sua experiência, simulado por outra voz que não a dela.
Há de notar ainda que, depois de estabelecida a comparação da fotografia
com o sangue, volta-se à fala das personagens, a do desconhecido “é um retrato
da senhora” e a da mulher “pode ser o retrato de alguém muito parecido comigo
/ mas não sou eu”, o que nos permite dizer, alegoricamente, que, embora haja
semelhança entre autora e obra, não é a autora a personagem de suas produções.
209
Podemos aduzir, ainda, que os poemas de Adília tornam-se populares, porém
não acessíveis como deve ser, à medida que os estudos literários se voltam a
investigá-los, fazendo menção ao fechamento de “Um figo”, no qual há entrega
da fotografia a quem pouco tem acesso, e vamos além: resgatamos Adília para a
apresentação de suas fotografias poéticas.
Finalizamos esta sessão com discussão breve sobre o poema “Textos”, que
segue:
192
Tem de se pensar aqui se há uma compreensão por parte da sociedade em relação às variadas
formas que a violência pode se apresentar, posto que pode ser verificada a banalização tanto das
mais sutis, quanto das mais explícitas.
210
Estudos, há muito, voltam-se a investigar a condição do feminino na literatura
à luz das relações na sociedade contemporânea, momento em que se verifica a
permanência de uma mentalidade patriarcal, machista e misógina, que se articula
para manter as vozes femininas silenciadas.
O silenciamento pode ser verificado em torno das personagens femininas
que, como personagens, poderiam ter direito à voz, mas não têm, sendo
apresentada apenas uma versão dos fatos, a do masculino, como acontece em
Dom Casmurro, de Machado de Assis. Explícito em “A língua do P”, de Clarice
Lispector, quando, para desmoralizar Cidinha, dizem que ela está doida, dada a
sua postura para se livrar de ser violentada sexualmente pelos dois homens que
falavam incansavelmente a língua do p, a qual, para Cidinha, era difícil demais
de ser explicada; subentende-se que a dificuldade consistia em ser ouvida pelos
policiais. O assédio sexual, infelizmente, assume protagonismo em se tratando das
violências sofridas por mulheres, por isso, há movimentos que visam a incentivar
as vítimas a denunciar os casos de que fizeram parte. À medida que avançarmos
esse estudo, apresentaremos poemas que versem sobre a temática.
Pensa-se também o silenciamento para além do plano literário, quando se
identifica que a autoridade entende que “não houve constrangimento, tampouco
violência ou grave ameaça”, ao discorrer sobre um caso de violência não só sexual,
mas também psicológica, ocorrido em São Paulo, no transporte público.
Pode ser notado também dentro da academia, quando elencam para os
estudos literários obras de autoria predominantemente masculina, bem como
a partir dos Editais – vale ressaltar que são atuais, correspondentes às provas
aplicadas em 2018 – do Processo de Seletivo Contínuo193, quando, para os dois
primeiros anos do Ensino Médio, em se tratando do conteúdo programático, não
são indicadas obras de autoria feminina.
Sobre isto, poder-se-ia dizer que mulheres não escreveram (quando
na verdade há registro de autoria feminina em todos os momentos literários
demarcados na historiografia literária), no campo das literaturas, no período
“origens”, barroco e árcade; conteúdos indicados para a Primeira Fase. Mulheres
não escreveram também no período d”O homem romântico”, do Realismo,
Naturalismo e Parnasianismo, tampouco do Simbolismo e Pré-modernismo;
conteúdos indicados para a Segunda Fase. Para a Terceira Fase, três escritoras
tiveram seus nomes citados. Cecília Meireles: geração de 30; Clarice Lispector:
geração de 45; e, Lygia Fagundes Telles: a literatura na pós-modernidade.
Esses são, seguramente, assuntos que permeiam a representação do feminino
no espaço não só da literatura, mas também no espaço social, isso porque é a
partir dele que se estabelecem as relações de gênero. Nesse sentido, este texto
pretende apresentar algumas das muitas violências (noticiadas) sofridas por
mulheres, enfatizando o abuso sexual, a partir de uma simples busca em sítios
de internet – sem se esquecer, certamente, dos casos que não são exibidos pela
mídia. Além disso, serão apresentados poemas de Adília Lopes, analisados a partir
da transposição do real para a ficção.
(PSC) Vestibular, realizado em três etapas, uma a cada série do Ensino Médio, para ingresso
193
211
Os poemas
212
meio em que consideram as vítimas culpadas: “se digo alguma coisa / ainda fazem
troça / de mim”. Desta forma, o feminino é silenciado, deixando de denunciar os
casos de assédio, por considerar, baseado em experiências próprias, que sua voz
não será ouvida.
Ademias, “a troça”, o riso, desqualifica o discurso de quem está a proferi-lo. O
riso, desta feita, declara o que não é passível de credibilidade, podendo a mesma
violência ser repetida, justamente porque encontra em quem se amparar, fazendo
com que seja tido como menor o fato ocorrido.
Importante notar o trauma que fica nas vítimas de violência (não só nestas,
mas também nas que são submetidas às condições de gênero, construídas
socialmente) deixando, por exemplo, de frequentar espaços públicos por
se sentirem inseguras durante o trajeto. Em suma, A sociedade faz troça, o
representante, que nada representa, da sociedade faz troça, o juiz, com a justiça
injustiçada, faz troça... Desta feita, mulheres vivem reféns. A elas não são dados
os direitos e delas são tirados os poucos que conquistaram. Em meio aos direitos,
suprimem-lhes o “poder rêssaver”, o poder caminhar, transitar. Que hão de fazer?
Resistir, tal qual propôs o eu lírico em epígrafe deste texto, afirmando, certamente,
que é uma luta diária e necessária, mesmo que tenha de arriscar a pele; além
disso, por meio da literatura, as vozes femininas tornam-se atuantes na luta por
ter o direito ao espaço de seus corpos, sem intervenção de outrem.
ADORMECER
(com algumas coisas de Maria Teresa Horta)
Preciso de te tocar / caule / gato / corda / mão / abraço-te / a tua roupa / tu
/ não te divulgo / o teu nome / os teus olhos azuis / a tua gentileza /espero
que os partilhes / com alguém querido / como os partilhaste / comigo /
amante querido / que não perco / que não deito fora / os meus amantes /
não são Gillettes / (não são de usar / e deitar fora) / gosto de adormecer / a
lembrar-me de ti / de como me sorrias / de como me olhavas / se os meus
poemas / contribuíram para isso / são excelentes (LOPES, 2014, p. 189).
213
anonimato. Ao avançarmos a leitura do poema, percebemos que há a lembrança
dos encontros com o amante, de como estes fizeram bem a voz lírica, e continuam
a fazer mesmo que pelo resgate da memória.
Não podemos afirmar, necessariamente, que o poema seguinte, Absolver, é
extensão do “Adormecer”, mas é possível que seja, sobretudo a partir das análises
que dispensamos a eles. Absolver é o que segue:
ABSOLVER
(com algumas coisas de Herberto Helder)
Lc 2, 19
214
destituída de valores morais, talvez porque a sua entrega seja em decorrência
não só do prazer, mas do sentimento amoroso despertado em meio a proibição.
Nota-se ainda que nos dois poemas as vozes são gratas aos amantes, que partem
tão logo, deixando-as sós; daí, rememoramos também Mariana Alcoforado,
nome máximo dos encontros proibidos com o soldado francês e que por ele sofre
demasiadamente depois da partida.
Considerações finais
Escrever teve para mim um papel instrumental: serviu-me para encontrar pessoas [...] Não pretendo
mostrar erudição, mas imaginação, isto é, imagens.
Adília Lopes
Referências
LOPES, Adília. Dobra – poesia reunida 1983-2014. Portugal: Porto Editora, 2014.
215
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Tradução de Luiz Claudio de
Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. CosacNaify:
São Paulo, 2014.
216
A representação de personagens negros na
ficção amazonense do século XX: a presença na
ausência e a manutenção dos estereótipos
Revisitando a história
218
No decorrer da nossa pesquisa, através de fontes secundárias194, deparamo-
nos com registros, encontrados no Arquivo Público do Pará, informando o número
de africanos escravizados embarcados para o Grão-Pará. Os navios negreiros,
com carregamentos de Benguela - Angola, eram maioria, pois traziam “peças”
mais resistentes.
As informações contidas em relatórios e correspondências entre as
autoridades locais e os administradores da Companhia de Comércio revelam que
o declínio do monopólio comercial de Portugal no Oriente e a ocupação holandesa
em Pernambuco (1630-1654) trouxeram a necessidade de novos solos para a cana-
de-açúcar e a procura de especiarias na floresta. “Neste ambiente ingressará o
negro africano. Marcará profundamente a sua presença na Amazônia” (SALLES,
2004, p. 17).
Objetivando relatar acerca da presença do negro africano no Amazonas, no
período de sua formação, chegamos pesquisa de Cavalcante (2011). O historiador
informa que encontrou 48 anúncios em jornais sobre escravos fugitivos: “Estrella
do Amazonas (1854-1863), O Catechista (1862-1871), A Voz do Amazonas (1870-1878),
Jornal do Rio Negro (1867-1868), Comércio do Amazonas (1870-1878), Itacoatiara
(1874), A província (1879), Rio Madeira (1881-1882), Jornal do Amazonas (1877-1884)
(2011, p. 44)”. As fugas apresentadas permitem compreender a movimentação e
as vivências que fomentaram o processo de construção da cidade de Manaus e
do Amazonas, de modo geral, posto que foi inevitável o deslocamento para outras
localidades existentes ao longo do rio Negro. Os vários dados reforçam a dinâmica
da vida do africano escravizado, confirmando a significativa presença de homens
e mulheres que fizeram desta região seu espaço de luta e sobrevivência.
Os registros históricos provam que a presença negra no Amazonas dinamizou
os saberes e modos das populações indígena, portuguesa ou mestiça, instaladas na
província. Os novos estudos, quer sejam no âmbito da história ou da sociologia,
comprovam essa presença, assim como as suas influências na formação cultural.
Nesses termos, importa revisar a historiografia. É necessário recontarmos
a história, de forma a mostrar que a presença de africanos escravizados no
Amazonas não foi insignificante, como os historiadores tradicionais fizeram crer.
Importa, agora, destacar as manifestações grupais, as condições de trabalho,
os rituais religiosos etc., caracterizando toda e qualquer prática cultural que
mobilizou e fortaleceu a identidade negra no local.
A contestação da história oficial, por parte da população negra, ativará a
revisão das políticas de ação afirmativa como as cotas raciais nas universidades,
a legalização dos quilombos e o Estatuto da Igualdade Racial no estado. Os novos
mapeamentos no Amazonas apontam para uma nova cartografia social. Assim,
a partir de novos olhares, como o deste texto, poderemos fortalecer as lutas
contemporâneas dos movimentos sociais de negritude e as suas reivindicações
de políticas afirmativas e combate ao racismo.
194
Consulta feita a pesquisa pela historiadora Patrícia Melo Sampaio, publicada no livro O fim do
silêncio – Presença negra na Amazônia, (2011).
219
O Silêncio que está no texto literário
220
Hernandez (2008) observa que era recorrente no século XVIII, nos compêndios
que apresentavam a história da civilização ocidental, o desconhecimento, o
equívoco, sobre o continente africano e a sua gente. De modo geral, o africano
estava enquadrado em grau inferior de uma escala evolutiva. A pesquisadora,
citando o livro Systema naturae (1778), de Charles Linné, mostra a classificação
do homem em cinco variedades. A saber:
221
Esse quadro negativo, mantido graças a construção dos personagens, reforça
teorias raciais do século XIX, reforça a visão distorcida que coloca a África como um
continente desafortunado, abandonado pela civilização. Essa descrição, pautada
apenas nas teorias das chamadas culturas superiores, exposta na literatura, reflete
as posturas ideológicas dos autores de várias épocas. Com isso, a inserção do
negro na literatura infantil mantém as mesmas dimensões estereotipadas e se
estendem até as décadas de 40/50, do século XX.
O posicionamento dos escritores constrói, no imaginário nacional, um
conceito desfavorável, negativo, em relação ao outro. Nas reflexões de Bernd
(1988, p. 11), o termo estereótipo deve ser entendido como uma “generalização
apressada” de uma característica individual. Sua formulação pode estar tanto na
ignorância do formulador como na tentativa consciente de “dar como verdadeiro
algo que é falso, com a finalidade de tirar proveito da situação”. Ainda, na
perspectiva de outro crítico, ao enfocar o conceito de estereótipo define-o: “como
sendo tanto a causa como o efeito de um pré-julgamento de um indivíduo em
relação ao outro devido à categoria a que ele ou ela pertence. Geralmente esta
categoria é étnica” (BROOKSHAW, 1983, p. 09).
Num ato contínuo o imaginário movimenta imagens, saberes e desejos. Mas,
também movimenta conflitos, distorce ideias e cria mundos paralelos. Nessa linha
de raciocínio, a construção de estereótipos desfavoráveis nutre o imaginário do
brasileiro com uma imagem deturpada da nossa raiz mestiça.
222
A selva, de Ferreira de Castro
obra compõe o cânone local, posto que a crítica especializada considera o fato de que A Selva é
um romance amazônico porque se insere na tradição de representação da natureza selvática.
223
Atuando como outra forma de captar o real (PESAVENTO, 1995), a literatura
atinge sua máxima eficácia “ao tomar posição face às iniquidades sociais”,
assegura Candido (2004, p. 182). Nesse sentido, o estudo do romance de Ferreira
de Castro rompe o silêncio e revela a presença da mão trabalhadora do negro,
diferentemente do que a tradição da historiografia afirma.
224
os trabalhadores são capturados e castigados severamente a mando do patrão.
Nesse contexto, a denúncia feita por Ferreira de Castro, da situação social dos
seringueiros, é acentuada ao final da narrativa e a ação do ex-escravo Tiago,
conhecedor da força da chibata de um feitor, é decisiva. Em um único momento
de revolta ele coloca fogo no barracão, deixando o patrão preso para morrer
queimado. O motivo para essa tomada de posição está nas suas palavras: “Foi
porque seu Juca te fez escravo e aos outros safados que te acompanham. Se
estivesse no tronco, como tu, o feitor que me batia lá, no Maranhão, eu também
matava a seu Juca. Negro é livre! O homem é livre!”(p. 287).
Na leitura da obra fica comprovado o engajamento do autor, a força do
seu projeto estético em construir um romance que descortinou a face brutal do
trabalho de homens e mulheres na selva amazônica. O espaço do seringal escolhido
para o desenvolvimento da narrativa é lugar de aflição, de luta, mas sobretudo de
revelação. As constantes referências aos personagens negros comprovam o lugar
desses, em meio a sociedade que se formava no Amazonas do início do século XX.
Outras vozes, outros discursos, outras referências étnico-racial, além da indígena,
tomam corpo na ficção local, e revelam mais um componente da construção
humana amazônica. É chegada a hora de registar outras memórias, que vinculadas
a presença do homem negro, possibilita o recontar de outra história através da
voz de outros locutores.
225
a mais gostosa do arraial. No curral, a batucada fazia hora, ensaiando
refrões, dançados em passos nervosos pelos brincantes. E cantados:
Oi levanta poeira...
Preto velho Severino ajudava os seus que fraquejavam, mas pedia paz.
Em dado momento, gritou:
– Meu boizinho você não acutila, seu...
Soltou um palavrão e logo libertava do peito o último gemido, fundo
e pungente tão como as toadas que inda agorinha puxava. Fundo e
pungente e eloqüente tanto que a todos parou. Do coração rompido,
brotava o sangue vivo que lhe empapava a vestimenta de lamê tão
caprichada, debruns de arminho, cheia toda de espelhos e lantejoulas.
226
Lealdade, de Márcio Souza
Nesse liame entre ficção e história, encontramos não somente o registro dos
fatos ou interpretação deles como faz a historiografia. Há, no discurso ficcional,
uma releitura da pretensa realidade exposta pela historiografia, dando-lhe
novos significados. “Há uma reavaliação assim, do fato descrito pela história
como realmente ocorrido, produzindo uma oposição entre a linguagem (fatos) e a
realidade (acontecimentos)”, compreende Mesquita (2009, p. 24). Nesse prisma, os
fatos narrados pelo personagem Fernando revelam um contingente de homens de
camadas inferiores da população que participaram desse importante movimento
revolucionário ocorrido no período regencial, revelam e confirmam a importante
participação dos povos oriundos de África e dos afrodescendentes no cotidiano
das cidades do norte do país: “Enormes fogueiras crepitavam nas margens da baía
de Guajará, e grupos de tapuias e negros passavam a cantar, bebendo aguardente
e batendo em pedaços de ferro para espantar o ano velho.” (SOUZA, 2001, p.164).
A presença de negros libertos e escravos da província do Grão-Pará também
revela algo que a história não registrou: as suas participações nos episódios
sangrentos da Cabanagem. O conflito, que durou 5 anos e alterou a ordem
econômica e social vigente na Amazônia, contou com a participação ativa de
negros, índios e mestiços, fato que reconhecido, modificaria o status quo dessa
população esquecida pela história assim como pela literatura, como no caso da
população negra. O sacrifício das classes populacionais, de trabalhadores, contra os
abusos de poder cometidos pelos governantes no século XIX, na região do Grão-Pará
201
Os romances Lealdade (1997), Desordem (2001) e Revolta (2005) revisitam a Cabanagem.
202
Ao citarmos o romance, utilizaremos somente o número de página.
203
Revolta popular sangrenta que objetivava a independência da colônia portuguesa do Grão-
Pará, tanto de Portugal quanto do reino Unido do Brasil.
227
e Rio Negro, não lhes confere a classificação de herói, segundo a história. Os registros
da sua presença, dos seus nomes, são escassos nos documentos oficiais, assim como
na memória coletiva. Ao comentar sobre a participação do negro na Cabanagem
Salles (2004) confirma a participação ativa desses, mas registrados apenas como
negro Cristóvão, “que comandou uma força de perto de 150 homens e era escravo
do engenho de Carapuru”, ou negro Félix, que esteve à frente de mais ou menos
400 “mocambeiros”.
São nos relatos do narrador-personagem que essas gentes, em meio a tão
importante acontecimento histórico, serão visualizadas, ainda que a partir do
preconceito do narrador em relação aos costumes e hábitos dos indígenas e dos
africanos. A narração em Lealdade revela que a divisão social em Belém era étnica.
Para Barros (20015, p. 163):
Considerações finais
228
experiências de negros escravos, livres e libertos, de suas representações culturais
e identitárias, recuperamos vestígios que podem vencer o esquecimento, o silêncio
e, sobretudo, temos a possiblidade de reativar a memória cultural.
Na diversidade temática das narrativas apresentadas constatamos que a
presença negra e ̸ ou de mulatos não ficou reduzida ao trabalho forçado. Homens
e mulheres realizaram as mais diferentes tarefas na região. Não há como negar as
suas experiências históricas. Impossível negar a sua contribuição para a formação
da sociedade amazonense. A herança africana ainda pode ser percebida em um
dos festejos mais populares: o Boi-Bumbá amazônico, um elemento que compõe
o patrimônio da cultura negra. Desse modo, quer seja nas articulações entre a
literatura e a história, na literatura de denúncia social ou mesmo na aparente falta
de pretensão da narrativa de ficção, o mergulho nesse universo elucida questões
que ajudam a fortalecer as lutas contemporâneas dos movimentos sociais de
negritude porque iluminam trajetórias de indivíduos e comunidades.
Tomados os três textos apresentados como legados do patrimônio cultural,
como prova dos discursos e ideologias presentes em determinadas épocas, podemos
construir relações e romper fronteiras mais rígidas. Além disso, pretendemos que
a nossa investigação contribua com a (re)visão da História da Literatura Produzida
no Amazonas. É preciso revelar outras vozes, outros discursos, outras referências
étnico-racial, além da indígena. Outros corpos tomam forma na ficção local e
revelam mais um componente da construção humana amazônica. É chegada a
hora de registar novas memórias, de ouvir uma nova história, agora relatada
pela voz de outros locutores.
Referências
ALEIXO, Maria José Nunes; SAMPAIO, Patrícia Melo. Gente sem crônica definitiva:
negros e mulatos n´A Selva. In: SAMPAIO, P. M. (Org.). O fim do silêncio – presença
negra na Amazônia. Belém: Açaí / CNPq, 2011, p. 219-238.
229
CAVALCANTE, Ygor, O. R. C. Fugido, ainda que sem motivo: escravidão, liberdade e
fugas escravas no Amazonas Imperial. In: SAMPAIO, P. M. (Org.). O fim do silêncio
– presença negra na Amazônia. Belém: Açaí / CNPq, 2011, p. 43-72.
GOMES, Carlos. Mundo mundo vasto mundo. (Org.) Tenório Telles. 3. ed. Manaus:
Valer, 2005.
230
O ensino da poesia afro-brasileira: cultura,
memória e identidade
Este capítulo surge como uma proposta de minicurso do Gellnorte e tem como
foco explicitar a análise literária de obras escritas por autores negros no Brasil
ou que a tessitura da lírica seja construída a partir de um eu-enunciador que-
se-quer-negro em constante resistência. A proposta visa discutir conceitos sobre
literatura afro-brasileira, literatura negra, literatura negro-brasileira e literatura
de minorias, com base em Zilá Bernd (2007), Assis Duarte (2013), Domício Proença
Filho (2008), Benedita Damasceno (2012) e Félix e Guatarri (2007).
Propõe-se assim um estudo sobre a identidade na cultura negra a partir
de Stuart Hall (2009), memória e subjetividade na poesia lírica. A rigor, elege-se
como objetivo fulcral apresentar o ensino por meio de pesquisas no âmbito da
Pós-Graduação realizadas na disciplina Análise da poesia afro-brasileira e do conto
africano e no grupo de pesquisa África e Roraima: cultura, memória e identidade.
Assume-se a meta de disseminar obras escritas por mulheres negras nos diversos
espaços literários, a saber: livro impresso, blogs, saraus, vídeos em redes sociais
e outros espaços em que a mulher negra assume a voz em defesa de combate ao
machismo, racismo, misoginia e outros temas. Em suma, esta proposta contribuirá
para reflexões acerca dos temas em questão, além de proporcionar a valorização
da cultura, identidade, memória e africanidade.
Neste sentido, consideram-se as vozes femininas contemporâneas, tais como:
Conceição Evaristo (2014), Ana Cruz (2008), Esmeralda Ribeiro (2012), Jussara
Santos (2005), Elisa Lucinda (2017), Oliveira Silveira (1998), Cuti (1978), bem como
a Antologia de poesia afro-brasileira, de Zilá Bernd (2013). A proposta visa discutir
sobre a luta de mulheres negras frente ao preconceito instaurado pela cor da pele,
pelas diferenças sociais e pela imposição da invisibilidade arraigada no discurso
da sociedade e da literatura das minorias.
A proposta de discutir em primeira instância o ensino da literatura afro-
brasileira na graduação se deve à formação docente no que diz respeito à lei
10.639/2003, além de ser o momento profícuo para discutir temas atuais e
polêmicos na sociedade brasileira, tais como misoginia, empoderamento da
mulher negra, racismo, preconceito, exclusão de minorias, entre outros.
Conforme mencionado alhures, a discussão analítica acerca da poesia
negra parte do projeto Literatura negra e minorias sociais, o qual tem permitido
direcionar as investigações de ensino e pesquisa por meio de um exame teórico e
analítico de obras de escritores negros e, sobretudo da poesia escrita por mulheres
negras que delineiam as escritas individuais e coletivas com base em temas
recorrentes: memória, identidade, resistência, luta contra o racismo, machismo,
sexismo e desigualdade social, buscando discutir sobre a valorização da cultura
e identidade afro-brasileira, por meio de um debate histórico-crítico em torno de
uma “literatura menor” dos pré-abolicionistas à contemporaneidade.
232
Pode-se asseverar que em uma escala social, a mulher negra é a que mais sente as
consequências de racismo, machismo, desigualdade e relações de misoginia e toda
série de violência, não deixando de pensar no negro como um todo.
Resistir e combater são dois verbos que descortinam um ritmo forte em
relação à poesia negra feminina contemporânea. Em vários textos há vozes que
não querem ser mais silenciadas. Combater tal silenciamento, eis a arma da poesia
negra. Resistir, eis a chama da poesia que não se apagará. É neste contexto de
resistência que podemos ler poemas negros e ouvir o grito da mulher negra,
ouvir o canto do pássaro oprimido, ouvir as várias vozes diante de uma sociedade
machista, misógina, desigual, preconceituosa e ainda racista. Em outras palavras,
esta conferência se trata de vozes de minorias, lembrando o conceito de Deleuze
e Guatarri (1997)204 no que concerne às vozes que faltaram, vozes que hoje já não
ficam recônditas no discurso da história escravagista, mas que ao falar de tal tema
emitem barulho, incomoda, tira o leitor do chão e do lugar comum.
Basta abrir uma página nos jornais para ver que a diferença social ainda
está acentuada pela cor da pele. Nesta perspectiva, nota-se que o número de
mulheres negras como empregada doméstica é bem maior e não diminuiu muito
em 10 anos. No que tange à violência contra a mulher negra, podemos nos basear
no Mapa de Violência de 2015, onde consta que em dez anos, os assassinatos de
brasileiras negras crescem 54% e as mortes de mulheres brancas caíram 9,8%.
Curiosamente, das seiscentas mulheres que sofrem feminicídio205, sessenta por
cento tem a cor da pele negra. E se quisermos ampliar o mapa das diferenças
entre brancos e negros, entramos nos dados da Infopen206 com o seguinte registro:
das 693.145 pessoas presas, 64% são negras. Outro questionamento, se mais da
metade da população brasileira é negra, por que o número de negros com ensino
superior é discrepante em relação a brancos e por que ainda em muitos anos de
políticas públicas, o número de presos recai sob a raça negra?
Em termos da relação entre literatura e sociedade, a literatura negra brasileira
versa sobre temas que procuram denunciar e combater essas diferenças existentes,
procura abrir o olhar do leitor para a invisibilidade da mulher negra que já não se
conforma com os cargos impostos pela cor da pele. A literatura negra abre o leque
para o grito de liberdade que foi apenas uma metáfora silenciosa e fingida para
dizer que negros foram libertos. Não diferente dos dados acima, podemos asseverar
que na própria cultura e história da literatura brasileira a arte literária do cânone
brasileiro é uma supervalorização do branco em detrimento do negro. Este quando
evocado, em várias obras, ou é visto como escravo, como serviçal ou, no caso da
mulher negra, aquela que se nota pela beleza do corpo e do prazer instaurando
outros problemas: a violência e a condição da mulher em desigualdade.
Como contributo na área de Literatura e Ensino, este minicurso além de
ter o objetivo de analisar a poesia negra, surge como abertura para divulgar o
ensino nesta linha de atuação, do qual se originaram várias pesquisas. Inicia-se
pelo relato da pesquisa “A representação do negro na poesia afro-brasileira
contemporânea de Cuti” defendida pela professora Simone de Castro Assumpção
que teve como norteamento investigar a poesia afro-brasileira que, por sua vez,
surge no momento em que o afrodescendente assume a posição de sujeito da
204
Conforme Kafka: por uma literatura menor.
205
Ver: <blogueirasnegras.org/2018/01/10/cor-da-violencia-feminicidio-de-mulheres-negras-no-brasil/>.
206
Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias).
233
enunciação. Em seu estudo, a autora revela que, ao tomar posse da palavra, o
descendente de africano revela um existir negro no seu modo de ver e sentir
o mundo, por meio de um eu-enunciador-que-se-quer-negro e que contesta os
valores representados pela cultura dominante. A autora destaca um estudo de
contraliteratura por promover a ruptura com a escrita ditada pelos brancos, sendo
que o poeta doravante falará apenas em seu nome.
Sob o prisma de alguns estereótipos enraizados na história sobre a mulher
negra, menciona-se a pesquisa de Alcimar Falcão “Mulheres negras na história
e na literatura brasileira”. Este trabalho teve como objetivo primordial provocar
reflexões acerca processo histórico de luta contra os estereótipos em relação à
mulher negra que são marcados pela cor da pele, condição social, subjugadas à
invisibilidade e a elementos negativos, chegando ao sexismo e ao trabalho escravo.
Diante disso, a autora procura por meio de textos literários desconstruir esses
estereótipos. Na mesma linha de pensamento, ocorreu o exame temático sobre
racismo na pesquisa de Maria Lima intitulada “Racismo, gênero e sexualidade
em Clara dos Anjos” que descortina algumas abordagens sobre tais aspectos na
literatura afro-brasileira.
Sob a ancoragem de minorias e diferenças sociais entre homens e mulheres,
enfoca-se o estudo de Elisângela Castro de Jesus intitulado “Mulher e a construção
social do casamento na obra de Mia Couto”, com o corpus de análise voltado para
o conto “Rosalinda, a nenhuma” e o romance “Um rio chamado tempo, uma
casa chamada terra”. A espinha dorsal desta pesquisa foi discutir a partir das
concepções de Simone de Beauvoir sobre a história do casamento permeada pela
submissão, procriação chegando ao empoderamento da mulher que não quer
mais viver no silenciamento provocado pela opressão machista e do casamento
que não é libertação.
E sobre a literatura moçambicana em que o negro figura como ser inferior
pela cor da pele, cita-se a pesquisa de Soraia Nascimento “Identidade, diferença
e preconceito racial em O embondeiro que sonhava pássaros, de Mia Couto”. Um
estudo pautado na discussão sobre injúria racial e preconceito racial permeadas
no discurso dos brancos em detrimento do negro que embondeiro que distribuía
sonhos e narrativas para as crianças estabelecendo dois eixos pela metáfora
do pássaro e passarinheiro: a liberdade e a opressão, diferença entre negros e
brancos ocasionada pela injúria racial.
Na sequência, convém elucidar sobre as discussões em sala de aula para
se pensar nos projetos sobre literatura afro-brasileira na formação docente. O
estudo se pauta em diversas produções dos 150 anos de consciência negra no
Brasil. Neste contexto de produção de poesia, contos e romances na literatura
brasileira, delimitou-se o foco para as concepções da crítica literária brasileira
a respeito de literatura afro-brasileira, literatura negra, identidade e minorias.
234
culturas são plurais assim como a identidade movente como assevera Stuart Hall
(2006). Bosi (1992) assevera que a tradição da nossa Antropologia Cultural já via
uma divisão do Brasil em culturas atribuindo-lhes um critério racial: cultura
indígena, cultura negra, cultura branca, culturas mestiças, ou melhor, cultura
brasileira e culturas brasileiras, ou ainda mesmo como culturas não europeias
(as indígenas, negras, etc) e culturas europeias.
Nesta perspectiva, pode-se pensar a construção da identidade cultural na
imagística dos textos negros ou afro-brasileiros. Para análise deste trabalho,
concentra-se na dialética da representação do ser negro e de sua valorização
durante muito tempo negada a uma tradição de cultura de branqueamento. A
mulher negra celebrada nas poéticas negras contemporâneas abre um leque
temático de leituras. Sob esse prisma, ganha voz para denunciar as mazelas sociais
da diferença acentuada pela cor da pele, pelo lugar que o negro ocupa na sociedade.
Percebe-se uma formulação de um discurso lírico que agrega elementos culturais
e estabelece a diferenciação entre o eu e o outro, isto é, a identidade e a alteridade
e, sobretudo, as identidades em construção, de acordo com o que constatamos na
obra Da diáspora: identidades e mediações culturais, de Stuart Hall (2013).
Neste viés, a identidade, por sua vez, pode ser compreendida como um
conjunto de representações e características culturais de um povo, as quais
permitem reconhecer um e outro ao diferenciá-lo dos demais. Em outras palavras,
não importam as diferenças em termos de classe, gênero ou raça, mas sim a cultura
nacional que unifica as pessoas dentro de uma identidade plural na diversidade207
como bem asseverou Bosi, ao utilizar o termo culturas brasileiras no plural.
Sob esse prisma, prefere-se muito mais utilizar literatura afro-brasileira que
literatura negra em virtude de não excluir ao incluir. Literatura é literatura e não se
avalia a qualidade de um texto literário pelo discurso de branco ou negro. Contudo,
o termo literatura negra surge por uma longa discussão de silenciamento de vozes
que não foram valorizadas pela crítica hegemônica brasileira e não cabe aqui
realizar toda a trajetória dos escritores negros no Brasil e sim voltar o olhar para o
texto literário e suas feições artísticas que entram para uma literatura de resistência
e combate ao preconceito e ao racismo, sobretudo no que tange à representação
da mulher tanto no olhar do eu - lírico masculino como no eu - lírico feminino.
Destarte, a identidade é questionada a partir da existência de diversas
culturas e da ancestralidade e a cor da pele muito ressaltada na poesia negra
não simboliza necessariamente o constructo das diferenças de relações que vão
além da cor da pele, pois o sujeito pode viver na indecidibilidade de sua raça,
cor ou etnia. Kathryn Woodward (2002), ao introduzir o seu capítulo Identidade
e diferença: uma discussão teórica e conceitual assevera que os homens tendem
a posições-de-sujeito para as mulheres tomando a si próprios como ponto de
referência. Sendo assim, as mulheres são as significantes de uma identidade
masculina partilhada.
Em consequência, a identidade é marcada pela diferença das relações, mas
“parece que algumas diferenças – neste caso entre grupos sociais e étnicos – são
vistas como mais importantes que outras, especialmente em lugares particulares e
Bhabha há diferença. Para ele, a diversidade cultural contempla um universo de coisas, ao passo
que “a diferença cultural representa mais adequadamente como enunciados são criados para
promover a legitimação de determinadas culturas em relação a outras” (MADALENA, 2017, p. 2).
235
em momentos particulares” (p. 10-11), em muitos casos, a diferença entre negros e
brancos não só na valorização de uma literatura como também nos lugares sociais
ocupados por negros e brancos. Em poemas escritos por mulheres negras percebe-se
que a mulher negra ou é a margarida que varre o asfalto ou é a negra fulô das
curvas eróticas e belas que deita com o feitor na condição de escrava sexual.
Sob esse prisma, não basta discutir a identidade negra exaltando a
afrodescendência ou se assumindo como negro em uma sociedade desigual. Não
basta dizer que a identidade negra deve ser pensada, pela mistura cultural e não
pela linha de diferença acentuada pela cor da pele. Essas diferenças “só fazem
sentido se compreendidas uma em relação à outra”, isto é, “a identidade depende
da diferença, a diferença depende da identidade. Sendo ambas inseparáveis”
(WOODWARD, 2002, apud SILVA, 2002).
Cumpre assim examinar como a literatura negra ganha corpo e voz no limiar
de uma lírica individual e coletiva, que surge como vozes silenciadas e que não
podem mais se calar diante do machismo, do preconceito, da desigualdade social,
da valorização do outro pela cor da pele. A literatura negra, neste sentido, alavanca
para um rio em chamas, um rio de lágrimas e dores longe de uma romantização
da arte. Literatura é antes de tudo uma arma de combate, como enfatiza Bosi:
‘literatura é resistência e combate ao racismo’.
No tocante a uma literatura de luta contra o racismo, combate à desigualdade
social, pode-se afirmar que se assiste, a rigor, a uma literatura no limiar de
protestos. Sobre isso, Bernd (1998) aponta que:
236
Em outras palavras, a literatura negra é aquela situada à margem do
cânone e se trata das vozes de minoria, das vozes que faltavam para dizer o
não dito. Abrem espaços na academia para denunciar o racismo, para combater
o autorracismo, as desigualdades sociais e as injúrias provocadas contra negros
por meio do verso e da prosa.
Desse modo, a literatura menor é uma literatura de resistência, pode-se
pensar em outro texto primordial. Trata-se do capítulo “A literatura e os excluídos”,
do crítico Alfredo Bosi (2002), na obra Literatura e resistência. Por excelência, há
duas formas de considerar a relação entre a escrita e os excluídos. A primeira
praticada pelos historiadores de literatura e que se refere ao ato de ver o excluído
e marginalizado como objeto da escrita: personagens, temas, etc. e é preciso
amenizar os modos de figuração das camadas mais pobres na poesia, na prosa
narrativa e no repertório da literatura (BOSI, 2010, p. 257).
A literatura negra pode ser explicada a partir de um depoimento do estudioso
Ironides Rodrigues concedido a Luiza Lobo. Para ele, literatura negra constitui-se
como aquela produzida “por autor negro ou mulato que escreva sobre sua raça
dentro do significado do que é ser negro, da cor negra, de forma assumida,
discutindo os problemas que a concernem: religião, sociedade, racismo. Ele tem
que se assumir como negro”(RODDRIGUES, apud LOBO, 2007, p. 266, grifos nossos).
Neste contexto, podemos ainda ressaltar que independente dos conceitos,
cabe ao pesquisador averiguar como ocorre a representação do negro na literatura
brasileira. Vale a indicação do ensaio de Domício Proença Filho (2004) O negro
na literatura brasileira. Tem-se um direcionamento da literatura em que o
negro aparece como objeto marginalizador, distanciado, e em segunda instância
como sujeito do discurso. Entretanto, não foge muito da invisibilidade desde a
colonização ao século XIX.
Diante de muitos estereótipos, com base em Domício Proença Filho (2004) em
A trajetória do negro na literatura brasileira, percebe-se o negro como mercadoria
denunciado na lírica de Gregório de Matos e esta representação poderia ser uma
das primeiras aparições. Surge o negro como estereótipo da nobreza de caráter
ligada à cor da pele (aqui menciona-se A escrava Isaura de alma branca, Firmo,
o mulato de olhos claros criados por Aluísio de Azevedo). Encontra-se o negro
serviçal vindo da senzala em diversas obras. Tem-se o negro animalizado como
em O cortiço, em uma tessitura de zoomorfização.
Verifica-se o negro demonizado como em O demônio familiar, de José de
Alencar, além do negro como mau agouro aparece em Inocência de Visconde de
Taunay, o negro miúdo, fofoqueiro e empregado de Pereira. O negro pervertido
e sensual aparecerá em obras como A carne, de Júlio Ribeiro representado pela
figura de Lenita, personagem branca e nobre que sai à madrugada para os prazeres
sexuais com os escravos. O negro ladrão reaparece no modernismo com Jorge de
Lima, mas a partir de 1980 surge o revide com Oliveira Silveira e outros autores.
No conto a representação do negro como malfeitor, bandido e ladrão é mais
recorrente como em Fábrica de fazer vilão, de Ferrez e Eu, um homem correto,
de Murilo Carvalho. Estas referências apenas servem para guiar o leitor sobre
as diferenças entre negros e brancos seguindo estereótipos208 na cultura literária
brasileira, porém retornar-se-á ao foco principal desta conferência.
208
Conferir na íntegra o ensaio de Proença Filho A trajetória do negro na literatura brasileira (2004).
237
Análise da poesia escrita por autores negros no contexto de memória,
identidade, racismo e outros temas
238
voz de todas as mulheres negras que deveriam ter o mesmo patamar de orgulho
de ser e existir. E assim encerra o poema com uma subjetividade ultrajante: “Se
a pessoa não tiver orgulho de ser assim Zulu/fica domesticada. Sem opinião. Se
autodeprecia, adoece” (p. 194, grifos nossos).
Outra voz no limiar da identidade e da memória se refere à escritora negra
Jussara Santos. A autora integra um dos primeiros grupos de poesia contemporânea
que traçam um lirismo discursivo-poético sobre a memória da etnicidade negra
assim como o poeta Edmilson Pereira. Jussara Santos canta a ancestralidade negra
e denuncia o preconceito e o racismo ainda existente na sociedade. Aliás, Jussara
Santos, por meio do recurso da recifração da imagem intertextual, produz um
lirismo discordante de A procura da poesia, de Drummond em seus versos “Ao
pé do ouvido”, na obra Minas de mim (SANTOS, 2005):
Se pudesse silenciar-me
frente a acontecimentos
silenciaria
mas todos os dias melancolicamente aconteço.
[...] mas todos os dias absurdamente amanheço.
Digo não à cidade,
Mas todos os dias revelo-me equívoco
Diante de seus ecos.
“... não tires poesia das coisas
elide sujeito e objeto...”
grita Drummond,
mas todos os dias dramatizo,
Invoco
indago
aborreço,
e minto
minto muito
ouvinte no reino silencioso da palavra
que não quer Surda.
(p. 188).
239
Quem em sã rebeldia
tira a máscara esculpida na
ilusão de ser outro
e não ser ninguém...
(RIBEIRO, 2002, 180).
Outra voz que não pode faltar na leitura de minorias sociais negras e
denúncia de racismo é o texto “Mulata exportação”, de Elisa Lucinda, da série
“Brasil, meu espartilho”:
240
Minha tonteira minha história contundida
Minha memória confundida, meu futebol, entendeu meu gelol?
Rebola bem meu bem-querer, sou seu improviso, seu karaoquê;
Vem nega, sem eu ter que fazer nada. Vem sem ter que me mexer
Em mim tu esqueces tarefas, favelas, senzalas, nada mais vai doer.
Sinto cheiro docê, meu maculelê, vem nega, me ama, me colore
Vem ser meu folclore, vem ser minha tese sobre nego malê.
Vem, nega, vem me arrasar, depois te levo pra gente sambar.”
Imaginem: Ouvi tudo isso sem calma e sem dor.
Já preso esse ex-feitor, eu disse: “Seu delegado…”
E o delegado piscou.
Falei com o juiz, o juiz se insinuou e decretou pequena pena
com cela especial por ser esse branco intelectual…
Eu disse: “Seu Juiz, não adianta! Opressão, Barbaridade, Genocídio
nada disso se cura trepando com uma escura!”
Ó minha máxima lei, deixai de asneira
Não vai ser um branco mal resolvido
que vai libertar uma negra:
Esse branco ardido está fadado
porque não é com lábia de pseudo-oprimido
que vai aliviar seu passado.
Olha aqui meu senhor:
Eu me lembro da senzala
e tu te lembras da Casa-Grande
e vamos juntos escrever sinceramente outra história
Digo, repito e não minto:
Vamos passar essa verdade a limpo
porque não é dançando samba
que eu te redimo ou te acredito:
Vê se te afasta, não invista, não insista!
Meu nojo!
Meu engodo cultural!
Minha lavagem de lata!
Porque deixar de ser racista, meu amor,
não é comer uma mulata!
(LUCINDA, da série “Brasil, meu espartilho”).
241
abusos da lei que favorece o branco intelectual no presídio. A mulher está frente
a frente com o delegado e o juiz quando surge outra voz de combate e revide
ao dizer que o opressor “branco ardido” lembra da Casa Grande e não mais na
senzala. Momento em que a mulher negra vem para passar a história a limpo e
escrever outra história de combate ao machismo e racismo: “Porque deixar de
ser racista, meu amor, não é comer uma mulata!”. O poema de Lucinda cai muito
bem ao que Bosi escreveu em Poesia e racismo. Chega-se o tempo de resistência
em que a literatura sacraliza a voz de resistência. Para fechar as reflexões acerca
de mulheres negras e combate ao preconceito e racismo, não podemos deixar de
ler a artista contemporânea, jovem negra empoderada, Thata Alves, do Sarau das
pretas, autora de Em reticências e da obra Troca, com seu poema “Levanta preta”:
Levanta Preta
Levanta a cabeça
Porque não dá tempo pra lamentar
(...)
Levanta a cabeça preta
Porque o turbante fica melhor
enaltecido
E saiba que o que aconteceu contigo
(...)
Levanta a cabeça preta!
Porque a coroa com teus cachos
Eu não só acho,
mas tenho certeza
Que toda sua realeza
Não combina com essa tristeza
e que você só mereça
Os raios de sol
que tem o teu sorriso
E que amar é preciso
Se não for machucar
Preta
Há uma continuação de teu reinado
que do seu ventre fora gerado
Então joga no chão esse fardo
E sorria!!!
Porque de novo se fez dia
e tens a chance de recomeçar
(THATA ALVES).
242
Assim como na poesia de Conceição Evaristo e Elisa Lucinda, a voz de Thata
Alves eclode para deixar as amarras do passado e das mazelas de exploração. O
que a mulher negra tem agora é a oportunidade de gritar, cantar e recomeçar
ao ganhar espaço em movimentos de luta contra tudo que o passado impôs e a
sociedade ainda fecha os olhos para as diferenças demarcadas pela cor da pele.
Passando para uma leitura da poesia negra com o enunciador que se quer
masculino, a poesia de Cuti está dentro desta categorização explicada por Ironides
Rodrigues. Cuti, um dos membros fundadores do grupo Quilombhoje Literatura
permite uma leitura crítica da cultura negra no que tange ao resgate da memória
do movimento negro. Não obstante, ressalta-se que sua produção carrega traços
de um lirismo de exaltação e do orgulho de ser e existir como negro. É neste
contexto de valorização e aceitação da cor da pele que a poesia ganha voz de
proclamação da memória lírica e coletiva. Publicado em 1978, a obra Poemas da
carapinha retrata a valorização de ser negro e da intitulação da identidade negra
que não pode ser negada a partir da cor ou do branqueamento ou da negação de
pertencer ou ser afrodescendente:
SOU NEGRO
Sou negro
Negro sou sem mas ou reticências
Negro e pronto!
Negro pronto contra o preconceito branco
O relacionamento manco
Negro no ódio com que retranco
Negro no meu riso branco
Negro no meu pranto
Negro e pronto!
Beiço
Pixaim
Abas largas meu nariz
Tudo isso sim
Negro e pronto!
Batuca em mim
Meu rosto
Belo novo contra o velho belo imposto
E não me prego em seu preto
Negro e pronto
Contra tudo que costuma me pintar de sujo
Ou que tenta me pintar de branco
Sim
Negro dentro e fora
Ritmo – sangue sem regra feita
Grito- negro – força
Contra grades contra forças
Negro pronto
Negro e pronto.
(CUTI, 1978, p. 145).
243
Na poesia de Oliveira Silveira há a recifração da imagem da negra Fulô na
tradição do modernismo de Jorge de Lima. Em outra vertente, Silveira apresenta
ao leitor contemporâneo “Outra nega Fulô”:
244
Essa nega Fulô!
Esta nossa Fulô!
Considerações finais
Referências
BERND, Zilá. Racismo e anti-Racismo/ Zilá Bernd – São Paulo: Moderna, 1994. –
(coleção polêmica).
245
_________. Antologia da poesia afro-brasileira: 150 anos de consciência negra no
Brasil (Org). Belo Horizonte: Mazza Edições, 2011.
DELEUZE, G., GUATARRI, F. Kafka: por uma literatura menor. Trad. Júlio Castanon.
Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
LOBO, Luiza. Crítica sem juízo. 2. ed. revista. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.
246
A viagem de Spix und Martius pela Amazônia, em
1819/18201
Willi Bolle
1
Uma primeira versão deste artigo foi publicada no Martius-Staden-Jahrbuch, São Paulo, n. 62, 2018,
p. 128-158, em alemão e em português. Na presente versão, várias passagens foram reformuladas,
as referências bibliográficas foram atualizadas, e foi inserida uma nova série de ilustrações.
247
O relato de Spix e Martius, Viagem pelo Brasil, 1817-1820 (publicado em
três volumes entre 1823 e 1831), pode ser considerado como a mais importante
publicação em língua alemã sobre este país. A viagem que os dois naturalistas
fizeram pela Amazônia, de fins de julho de 1819 até meados de junho de 1820,
é apresentada nas 484 páginas do volume 3 da edição brasileira. Quanto ao
contexto histórico, deve ser lembrado que pesquisadores estrangeiros receberam
a permissão para visitar a colônia Brasil somente a partir do ano de 1808, quando
o governo português, diante da ameaça de uma invasão do seu país pelas tropas
de Napoleão, transferiu sua sede de Lisboa para o Rio de Janeiro, autorizando
em seguida a abertura dos portos brasileiros. Para a realização da expedição de
Spix e Martius foi especialmente favorável o casamento, em 1817, da princesa
Leopoldina de Habsburgo com o futuro imperador D. Pedro I. Do séquito dela
fazia parte um grupo de cientistas e artistas, entre eles o zoólogo Spix e o botânico
Martius (Gomes, 2013). Ambos tinham sido escolhidos pelo avô de Leopoldina, o
rei da Baviera, e, nesse sentido, as suas pesquisas foram realizadas sobretudo a
serviço da Academia de Ciências da Baviera.
Apoiando-nos no resumo dado pelos dois pesquisadores (Spix/Martius,
2017, v. 3, p. 91-94)209 sobre os viajantes que tinham sido seus predecessores na
exploração da região amazônica, vamos relembrar aqui os principais nomes,
datas e obras – com alguns complementos atualizados, porque Spix e Martius
não tiveram todos esses documentos à sua disposição, uma vez que alguns ainda
não tinham sido publicados.
A travessia pioneira da Amazônia por uma expedição de europeus foi
realizada em 1541/1542 por uma tropa de 57 espanhóis sob o comando de
Francisco de Orellana. Como relata o cronista Gaspar de Carvajal, ocorreu durante
esse empreendimento um combate contra uma tribo de índios comandada por
mulheres. O nome de “Amazonas”, com o qual elas foram designadas pelos
europeus, nome emprestado da mitologia grega, acabou sendo transferido em
seguida para o rio e toda a região.
A colonização da Amazônia pelos portugueses começou em 1616, com a
fundação da fortaleza de Belém como ponto de apoio estratégico e acesso para o
interior. Uma expedição exploratória de Belém até Quito, no Equador, ida e volta,
foi realizada de 1637 a 1639 sob o comando do governador Pedro de Teixeira, e
narrada por Cristóbal de Acuña (1641). Para a colonização e exploração da região
amazônica foi decisiva a participação das ordens religiosas. O padre jesuíta Samuel
Fritz elaborou em 1691 o primeiro mapa de concepção científica da Amazônia
(Pinto, 2006). Esse mapa foi aperfeiçoado em 1743 pelo astrônomo francês La
Condamine (1993), o qual recebera para esse fim, do governo português, uma
autorização especial para atravessar a Amazônia.
Na sequência dessa primeira expedição inteiramente científica, devem ser
mencionados ainda os seguintes textos, escritos durante a segunda metade do
século XVIII e que são fundamentais para o conhecimento da Amazônia: as cartas
do governador Mendonça Furtado sobre as províncias do Pará e do Rio Negro,
sobre as negociações de demarcação dos limites entre Portugal e Espanha, e sobre
os jesuítas, que foram expulsos em 1757, sob o governo do Marquês de Pombal
(Mendonça, 2005); a obra Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas (1757-1776),
Nas subsequentes citações do volume 3 da Viagem pelo Brasil é indicado somente o número
209
da página.
248
redigida pelo jesuíta João Daniel (2004) durante a sua detenção num presídio em
Lisboa; os relatos de viagem do bispo do Pará, D. Caetano Brandão, referentes aos
anos 1784, 1787 e 1788 (p. 93); e finalmente, a Viagem filosófica (1783-1792), de
Alexandre Rodrigues Ferreira (1970 e 2007). Quanto às pesquisas de Alexander
von Humboldt, cujos escritos sobre a América do Sul foram considerados por Spix
e Martius como modelo para o seu relato de viagem, ele tinha sido proibido em
1800 de entrar na Amazônia brasileira.
Em que consistem a novidade e o caráter exemplar da contribuição de Spix e
Martius para o conhecimento da Amazônia? 1) Na utilização do relato de viagem
como um gênero que relaciona a apresentação de conhecimentos científicos com
informações de interesse público geral, estabelecendo ao mesmo tempo conexões
interdisciplinares entre os fatos da natureza e da cultura. 2) Na inclusão de uma
dimensão estética do saber, que é transmitida sobretudo pelas numerosas imagens
contidas no volume de estampas (Atlas), que complementa os três volumes de
textos,210 e no qual se encontram também alguns exemplos de cantigas populares
brasileiras e melodias indígenas. 3) Na coleta de dados etnográficos e linguísticos,
o que representa o início de um diálogo entre as culturas – só até certo ponto,
porém, uma vez que a apresentação de Spix e Martius ainda está fortemente presa
a um eurocentrismo, o que se expressa também em sua postura de considerar os
indígenas sobretudo como objetos de pesquisa, e não como parceiros.
A viagem dos dois naturalistas pela Amazônia (ver Imagem 1: Mapa dos
lugares que eles visitaram) é apresentada aqui em quatro segmentos.
Na edição brasileira da Viagem pelo Brasil foram incluídas as mais importantes das imagens
210
249
Belém
“Amanhecer no Amazonas”.
250
burguesa relativamente grande e quase integralmente de sangue europeu, os
assim chamados brancos. À camada intermediária pertenciam as famílias de
mestiços, que viviam sobretudo nos arredores da cidade e nas pequenas vilas
próximas. A classe mais baixa e mais numerosa da população era constituída
por negros e índios mansos. Os dois últimos grupos desta população são descritos
como vivendo numa “semicivilização, sem conhecimentos, nem instrução, nem
ambição” (p. 29-30).
A economia no interior da província do Pará encontrava se, em torno de
1820, numa fase crítica, devido sobretudo à incompetência e corrupção dos
diretores das aldeias indígenas, que tinham sido designados pelo governo a
partir de meados do século XVIII para substituir os padres jesuítas (p. 56-57).
Na capital Belém, no entanto, a situação era positiva. Em termos da quantidade
de produtos de exportação, a cidade ocupava o primeiro lugar entre todas as
cidades brasileiras (p. 38). Dentre os produtos mais importantes, provenientes
do interior, constavam açúcar, cacau, café, algodão, óleo de copaíba, canela de
cravo, castanhas e guaraná, além de couros de boi, cordas de palmeiras e diversas
espécies de madeira. Quanto à produção e demanda da borracha, embora tenham
sido ainda incipientes, Martius descreve a seringueira e o preparo da borracha
pelos seringueiros, realçando a utilidade de aplicar uma fina camada do produto
nas capas e nos sobretudos – sendo que ele e Spix, seguindo o exemplo de soldados
da polícia, passaram a usar dali em diante esse tipo de vestimenta (p. 44-45).
251
Durante todo o percurso os viajantes sofreram com a praga dos insetos:
enxames de carapanãs, piuns, borrachudos e mutucas. O Amazonas é
extremamente rico em peixes, sendo que os nomes das espécies são quase todos
compostos com a palavra pirá (“peixe”, em tupi). Spix und Martius destacaram a
grande habilidade dos índios na pesca (p. 133-135). Dentre as espécies da fauna
fluvial chamaram a sua atenção os “peixes elétricos” (poraquês) e as cobras
gigantescas. Estas motivaram os índios a criarem lendas, como a da “mãe-do-rio”
(p. 131-132). Em relação às míticas amazonas, a declaração de Martius é categórica:
“Não acredito na existência delas, nem no passado, nem no presente” (p. 158).
O número de índios era maior na Amazônia que nas demais regiões do Brasil.
Mesmo assim, Spix e Martius encontraram poucas tribos indígenas, que viviam
esparsas; de muitas das tribos citadas por Acuña, não encontraram vestígio algum.
As principais causas desse despovoamento, que começou com a colonização, foram
as guerras de extermínio contra os índios, as doenças trazidas pelos europeus,
e a permanente caça a escravos (p. 53-56 e 137-139). Mesmo no início do século
XIX praticava-se ainda, no interior do Pará, a caça a escravos indígenas (p. 61).
Quando se compara o número dos habitantes originais da Amazônia – estimado
no mínimo em um milhão, ou até em vários milhões de índios (Porro, 1992, p.
14; Slater, 2002, p. 225-226) – com os dados demográficos registrados por Spix e
Martius em 1820, obtém-se uma ideia da redução drástica da população. Os dois
pesquisadores estavam inclinados a compartilhar a crença geral de que “a raça
indígena iria desaparecer aos poucos” (p. 64) – um prognóstico que, felizmente,
não se confirmou.
Da história da colonização faz parte também a conversão dos índios ao
cristianismo, pela ação das ordens religiosas. O ajuntamento de tribos diversas
resultou numa fusão de suas línguas em forma de uma língua geral (p. 141-142).
Com a organização das aldeias, os religiosos, sobretudo os jesuítas, visavam
também o lucro econômico. Depois de sua expulsão, em 1757, a direção das aldeias
foi transferida para diretores leigos, os quais, no entanto, usaram o seu cargo
frequentemente apenas para seus interesses pessoais. Havia uma grande demanda
geral por índios mansos; eles foram empregados, sobretudo como remadores,
como trabalhadores nas plantações, em obras de construção, e como servidores
domésticos. Os remadores a serviço de Spix e Martius são descritos por estes como
rudes, porém de boa disposição e fácil convívio (p. 168).
Dentre as tribos indígenas às margens do Amazonas, os dois pesquisadores
visitaram, na viagem de ida e de volta, aldeias dos Mura (p. 171-174), dos Mundurucu
(p. 396-403) e dos Maué (p. 404-407), na região da ilha de Tupinambarana, na foz
do rio Madeira. As fisionomias desses índios estão representadas em diversos
desenhos (Imagem 3: “Visita na maloca do Mura”; p. 408, “Visita na aldeia dos
Mundurucus”; p. 349, retratos de índios de várias tribos; p. 399, “Mundurucu com
a cabeça de um inimigo”; no Atlas, estampas 28, 32 e 34). Por meio de desenhos
são documentados também os utensílios e as armas dos índios (p. 175 e 199; no
Atlas, estampas 29 e 30), inclusive os que foram coletados nos demais trechos da
expedição. Toda essa coletânea etnográfica encontra-se atualmente no Museu de
Etnologia (Museum Fünf Kontinente), em Munique.
252
3. Visita na maloca do Mura.
253
4. Escavação e preparo dos ovos de tartaruga.
254
Tendo voltado a Fortaleza da Barra, Spix realizou ainda, durante duas
semanas, uma viagem de ida e volta pelo rio Negro, subindo até Barcelos, a antiga
capital da província (p. 377-392). A paisagem ao longo desse rio, de águas escuras
e margens arenosas e secas, é muito diferente da do Solimões, e relativamente
livre da praga dos insetos. Por outro lado, essa região é menos fértil, e não existe
a mesma abundância de peixes e animais para caçar.
Das tribos que ali habitavam – Manao, Baré, Baniba, Uaupé, Aroaqui –
alguns índios costumavam atacar as povoações dos colonos, enquanto outros
se integraram e se misturavam com eles. Esses casamentos mistos tinham sido
expressamente apoiados pelo governador Mendonça Furtado, na época das
negociações sobre as fronteiras, a fim de tornar a província mais segura contra
a cobiça de potências estrangeiras. Em 1820, a população dessa parte da província
estava muito dispersa e em número extremamente reduzido, como mostra o
“Sumário dos índios que habitavam nas povoações do Rio Negro” (p. 391). As tribos
marcadas ali com + pareciam ter sido “totalmente extintas”. Uma das principais
causas de morte foram as epidemias de malária.
255
(p. 296-297). Por meio de trocas, adquiriu deles diversos utensílios; ele documentou
também a sua fisionomia (Imagem 6; no Atlas, estampa 31). Os Passé eram considerados
“os mais belos índios” da província do Rio Negro; confirmando isso, Martius observa
que a mulher do tuxaua Albano “causaria sensação até na Europa” (p. 300).
Depois da passagem por Maraã (p. 307), a próxima parada foi a aldeia São
João do Príncipe, “a extrema colônia dos portugueses no Japurá”, fundada em 1808
(p. 311). Os Iuri e Coretu ali residentes tinham que executar trabalhos forçados
em proveito do juiz. Nesse local, os viajantes encontraram Pachicu, o principal
dos Coretu (p. 313-314; retrato: Imagem 6; no Atlas, estampa 31), que fazia guerra
contra os índios vizinhos, a fim de negociar os prisioneiros com os europeus.
Um outro ponto de parada, rio acima, foi o sítio Uarivaú, habitado pelos Iuri,
cujo tuxaua, Miguel, os cedia aos brancos, mediante pagamento (p. 315-316). De
noite, Martius assistiu a uma dança guerreira dos Iuri, que ele descreve como
“bacântica” e “doida” (p. 318; imagem: p. 279; no Atlas, estampa 28).
Após terem alcançado a foz do rio Apapóris, os viajantes passaram pelas
cataratas e a Serra de Cupati (p. 322). No segundo segmento da expedição, já em
território atual da Colômbia, Martius visitou mais uma tribo dos Iuri, na aldeia
de Manacurú, onde observou também a preparação do veneno de flecha urari
ou curare, utilizado pelos índios na caça (p. 327). Em seguida, o grupo chegou
ao Porto dos Miranhas, onde se encontra atualmente a aldeia Los Miranas. É do
convívio com os Miranha – os quais, com cerca de 6.000 pessoas, eram naquela
época a tribo mais numerosa e mais poderosa ao longo do Japurá –, que Martius
esperava “obter a maior quantidade de informações etnográficas” (p. 329).
Nessa altura, Martius, o capitão Zani e vários dos índios remadores
apresentavam sintomas de malária. Como a saúde de Zani estava fortemente
abalada, ele ficou de repouso naquela aldeia, enquanto Martius resolveu, conforme
o seu plano original, continuar subindo pelo rio até a cachoeira de Araracoara,
onde chegou em 28 de janeiro de 1820 (p. 343; no Atlas, estampa 25). Este local
constitui a fronteira entre o bioma da selva amazônica e o altiplano. Num dos
rochedos ali, como também na Serra de Cupati, estavam gravados petróglifos dos
índios, representando sobretudo figuras humanas (p. 335; Atlas, estampa 26).
256
De regresso ao Porto dos Miranhas, Martius encontrou “toda a equipe atacada
de violenta febre, e o capitão Zani quase a morrer” (p. 350). Além de exercer
as tarefas de enfermeiro, ele sobrevigiou a construção de uma canoa, prevista
para o transporte dos utensílios que ele tinha adquirido (Imagem 7: “Porto dos
Miranhas”; no Atlas, estampa 24). Durante as mais de duas semanas que Martius
passou nessa aldeia, ele chegou a conhecer melhor os índios que ali habitavam.
Eram “verdadeiros antropófagos”. Como lhe explicou o tuxaua, era “melhor
comer o inimigo, depois de morto, do que deixá-lo apodrecer”. Não obstante,
a inata boa índole daqueles índios pareceu a Martius ser uma certa garantia
para a sua segurança (p. 339). As mulheres cuidavam do cultivo de mandioca e
preparavam farinha e beijus. As redes confeccionadas por elas eram vendidas
em toda a província do Rio Negro e até no Pará. O tuxaua João Manoel vivia da
venda de escravos para os brancos. Enquanto Martius foi viajar até Araracoara,
João Manoel fez uma incursão pelas matas, regressando de lá com um grupo de
prisioneiros. Sem dúvida, ele imaginou que o motivo da visita dos forasteiros
teria sido o de “negociar prisioneiros” (p. 352). Martius lhe explicou, então, que
a sua intenção era apenas adquirir utensílios e armas por meio de trocas. Ele
acabou recebendo de presente complementar “cinco jovens índios, duas raparigas
e três meninos”. A mais velha dessas moças da tribo dos Miranhas e um jovem
da tribo dos Iuri (p. 408; Atlas, estampa 36), foram levados por Spix e Martius a
Munique, onde aqueles dois morreram, porque não suportaram a mudança de
clima e as demais circunstâncias (p. 362). O procedimento dos dois naturalistas
de incluírem seres humanos, no caso, indígenas, em suas coleções, é hoje em dia
unanimemente reprovado.
O balanço que Martius fez do seu contato com os índios em seu estado
primitivo era altamente negativo:
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das mulheres, cego e sem finalidade; [...] a educação, tola brincadeira da
mãe e cega despreocupação do pai; [...] em vez de um senso de justiça, a
voz do egoísmo [...] – Eis como vive o aborígene destas selvas! No mais
primitivo grau da humanidade [...] (p. 355).
Martius chegou a fazer uma revisão autocrítica desta sua visão, fortemente
preconceituosa, da cultura dos indígenas, num romance que redigiu em 1831,
mas não publicou. O manuscrito foi redescoberto apenas mais de um século e
meio depois, por Erwin Theodor Rosenthal, que o publicou em 1992, inclusive
em tradução para o português, com o título Frey Apollonio: um romance do Brasil
(Martius, 1992; 2005). A apresentação dos índios e da relação entre as culturas,
nesse romance, merece um estudo à parte212.
212 Cf. BOLLE, 2018, que analisa o romance de Martius como uma autocrítica do seu relato de viagem.
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intacta e a população da Amazônia tinha atingido o seu nível mais baixo. A
situação era muito diferente no bioma do cerrado, no planalto central do Brasil,
que Spix e Martius tinham atravessado antes, em 1818. Ali, eles observaram graves
transformações do ambiente natural pela “mão destruidora do homem” e, num
aviso premonitório, alertaram que “no futuro, os pesquisadores não mais obterão
os fatos puros das mãos da natureza” (Viagem pelo Brasil, v. 2, p. 140).
O retrato geral que Spix e Martius desenharam do Brasil como um país
“com esplêndidas disposições naturais” e “em vigoroso progresso” (v. 3, p. 467;
e v. 2, p. 140) confirmou-se, grosso modo, no início do nosso século XXI. Houve
um enorme aumento da população: as duas metrópoles regionais Belém e
Manaus atingiram, cada uma, mais de dois milhões de habitantes, e o conjunto
da Amazônia Legal é povoada por aproximadamente 25 milhões de pessoas.
Desde os anos 1960 iniciou-se na região um processo de modernização que se
prolonga até hoje, com aspectos positivos e negativos (Souza, 2009). Persistem
vários problemas fundamentais que precisam ser solucionados: a alta taxa de
criminalidade em todos os estratos sociais, especialmente também a corrupção,
a extrema desigualdade social e o sistema insuficiente da educação pública.
O progresso econômico e tecnológico tem também o seu preço. O extenso
desmatamento em favor do agronegócio (cultivo de soja e criação de gado), o corte
ilegal de madeiras de lei, a exploração maciça dos minerais e a construção de
barragens trazem consigo uma transformação radical do bioma da floresta, e até
uma ameaça à sua continuidade, sobretudo nos Estados do Pará e do Mato Grosso.
Essas atividades limitam e ameaçam também as reservas dos povos indígenas.
As transformações ocorridas durante os últimos 200 anos despertam o desejo
e a necessidade de novas propostas de viagens e reflexões sobre a Amazônia, que
levem em conta, prioritariamente, as necessidades dos pobres, que constituem a
grande maioria da população. Nesse sentido, Meirelles e Martins (2018) realçam
as contribuições de viajantes do século XX: o médico Oswaldo Cruz e o sertanista
Cândido Rondon; os escritores Euclides da Cunha, Mário de Andrade e Antonio
Callado; os etnólogos Curt Nimuendajú, Claude Lévi-Strauss e os irmãos Villas-
Bôas; os cineastas Silvino Santos e Jacques Cousteau, a fotógrafa Claudia Andujar
e o artista plástico Frans Krajcberg.
Em dois itens fundamentais, Spix e Martius, viajantes naturalistas do século
XIX, não ficam atrás desses seus sucessores no século XX: 1) com a observação de
que o progresso da civilização e a ameaça ao meio ambiente estão estreitamente
interligados; e 2) com a sua proposta lúcida de como organizar a produção
econômica. Vejamos esta observação, publicada em 1831:
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262
Sobre os autores
263
Anne Caroline do Nascimento Ribeiro é Graduada em Letras pela Universidade
do Estado do Amazonas e discente do Programa de Pós-Graduação em Letras e
Artes da mesma instituição.
264
Iná Isabel de Almeida Rafael é Mestre em Letras pela Universidade Federal
do Amazonas (UFAM). Especialista em Leitura e produção textual pelo Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (IFAM). Graduada
em Licenciatura em Letras pelo Centro Universitário do Norte (UNINORTE).
Atualmente, é professora substituta na Universidade Federal do Amazonas.
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia,
da Universidade Federal do Amazonas.
Márcio Leonel Farias Reis Páscoa é Doutor em Ciências Musicais Históricas pela
Universidade de Coimbra, fez Mestrado em Musicologia no Instituto de Artes da
UNESP, mesmo lugar onde se graduou em Instrumentos Antigos. Possui ainda
graduação em Direito pela Universidade Federal do Amazonas. Atualmente, é
professor do Curso de Música da Universidade do Estado do Amazonas, onde
coordena o Laboratório de Musicologia e História Cultural.
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Marcos Frederico Krüger Aleixo possui Mestrado em Letras pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Doutorado em Letras pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). É professor aposentado da Universidade
Federal do Amazonas. Atualmente, é docente no curso de Letras e do Programa de
Pós-Graduação em Letras e Artes da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).
266
Maio de dois mil e vinte e um, quatrocentos e setenta e nove anos da
chegada de Francisco Orellana ao Rio Amazonas
editora.uea.edu.br
ueaeditora
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