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Maltas de Saia

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Franciane Simplicio (Coord.

)
MALTAS DE SAIA - Histórias das mestras de capoeira da Bahia

1
O projeto tem apoio financeiro do Estado da Bahia
através da Secretaria de Cultura e da Fundação Pedro Calmon (FPC)
(Programa Aldir Blanc) via Lei Aldir Blanc, direcionada pela Secretaria
Especial da Cultura do Ministério do Turismo, Governo Federal.
apresentação
Copyright ®2021 by Franciane Simplicio Figueiredo
Direitos para esta edição Maré Cheia Produções Criativas e Sustentáveis

Coordenação: Franciane Simplicio Figueiredo


Pesquisadoras: Dayse Simplicio Figueiredo Cerqueira,
Maria Luisa Bastos Pimenta Neves, Maristela Carvalho de Souza Queria conhecer as histórias das mestras de capoeira da Bahia e perce-
bi que os registros eram escassos, pois não achei um livro que pudesse
contar um pouco da vida dessas mulheres. Maltas de Saia¹, título desta
Ficha Técnica
obra, retrata a história das atuais mestras de capoeira da Bahia. E a ins-
Projeto Gráfico e Editorial: Lado B (Patricia Simplicio e Belmiro Neto) piração que me fez escolher esse nome para o livro foram as mulheres
Capa e Ilustrações: Sandra Lavandeira capoeiras do início do século XX, que sempre compartilharam as ruas
Foto: Anderson Santos Ferreira da velha Bahia com os homens e tiveram suas histórias ocultadas por
Revisão: Elis Angela Franco Ferreira Santos um sistema hegemônico, racista e patriarcal.
Idealização: Maré Cheia Produções Criativas e Sustentáveis
As maltas foram bastante expressivas no século XIX, no Rio de Janeiro,

e eram constituídas pela população negra urbana, portavam facas e na-
valhas, além de possuírem grandes habilidades corporais. Eram temidas
e vistas como pessoas de alta periculosidade, violentas, agressivas e de
uma classe perigosa.
Maltas de saia : histórias das mestras de capoeira da Bahia / Franciane Simplício
M261 Figueiredo , coordenadora. – Bahia : Maré Cheia Produções Criativas
2021 Sustentáveis, 2021. Em Salvador, havia organizações por espaços geográficos muito pecu-
liares em relação à cultura das maltas, e ainda assim não teve a mes-
90 p. ; il. ma intensidade que no Rio de Janeiro. Houve um crescente interesse
ISBN: 978-65-5854-393-0 (e-book) político de grupos antagônicos pelos serviços das maltas, porém, não
é essa dimensão que quero tratar, e sim o companheirismo grupal, a
1. Mulheres - Biografia. 2. Mulheres capoeiristas - Biografia. 3. Capoeiristas.
4. Capoeiristas - Bahia. I. Título.
solidariedade e a proteção mútua entre eles. E foi nesse sentido que
adotamos o “termo literário” Maltas de Saia.

MALTAS DE SAIA - Histórias das mestras de capoeira da Bahia


CDD 23. ed. – 920.72

5
Autores como Antonio Liberac, Josivaldo Pires, Adriana Albert, Pedro pelas próprias mestras. Então, é chegado o momento de falar sobre
Abib e estudos mais recentes, como o de Paula Foltran, apontam que essas mulheres, conhecer as histórias de atuação e resistência de cada
os Capoeiras do início do século XX não estavam sozinhos, pois esse uma delas, as quais muito se assemelham às histórias de mulheres de
universo pertencia também às mulheres, as quais disputavam os es- outrora, quando falamos sobre habilidade com os pés, determinação,
paços sociais a golpes de navalhas, cacetetes e pontapés contra quem valentia, coragem e agilidade corporal entre elas, através de muitas
lhes representasse uma ameaça, e muitas vezes atuavam em grupos. proezas e em busca da resistência e reexistências.

Essas mulheres se faziam presentes nas ruas de Salvador, seja traba- Esse livro é resultado de uma gama variada de esforços, fruto de po-
lhando nas feiras, mercados e fontes, ou até mesmo se divertindo em líticas públicas do edital n.º 01/2020 – Premiação Aldir Blanc Bahia/
meio ao samba, batuques, bebedeiras e pernadas. Era desse modo que Prêmio Fundação Pedro Calmon. Agradeço muitíssimo às capoeiristas
elas resistiam e, muitas vezes, precisavam usar da ousadia, malandra- pesquisadoras e às Mestras que aceitaram prontamente o convite e
gem e agilidade para sobreviver. se dispuseram a colaborar. Acredito que, dessa forma, conseguiremos
alcançar um resultado bastante significativo.
Essas histórias, ocultadas ao longo dos anos, aparecem nessa obra com
o compromisso político de rejeitar uma escrita míope e que seja capaz
de trazer à tona as experiências atuais dessas mulheres enquanto Mes-
tras de capoeira. Por essa razão, propus a organização do livro com o Franciane Simplicio²
intuito de contribuir com a disseminação dessas histórias e pretendo
continuar com a inclusão daquelas que, por algum motivo, não fizeram
parte dessa edição.

O objetivo do livro Maltas de Saia é apresentar ao grande público impor-


tantes histórias referentes às atuais Mestras de Capoeira da Bahia, de
forma didática e acessível, através de uma linguagem simples e direta,
entendendo a linguagem como mecanismo de manutenção de poder
quando não elaborada a fim de ser compreendida por um amplo públi-
co. Compreendemos a importância de promover as narrativas dessas
mulheres, colocando-as na condição de protagonistas que, historica-
mente, foram invisibilizadas, contudo, resistiram e resistem.

Neste volume, apresentaremos textos biográficos como forma de


abarcar as vivências e intersecções dessas mestras, destacando a
importância política, social e cultural da presença da mulher na ca-
poeira, dispostas em ordem alfabética e associadas à sua imagem.
MALTAS DE SAIA - Histórias das mestras de capoeira da Bahia

MALTAS DE SAIA - Histórias das mestras de capoeira da Bahia


Portanto, teremos o prazer de conhecer um pouco mais das histó-
rias dessas mestras que desenvolvem a capoeira nas suas diferentes ¹ O nome maltas de saia foi inspirado na alusão feita por Pedro Abib, em seu livro Mestres e Capoeiras
dimensões, seja de forma lúdica, educativa, cultural, artística, políti- Famosos da Bahia (2009), p. 37, ao contar a história de Almerinda, Menininha e Chica. Além da fala de
ca, de luta e até mesmo esportiva. Josivaldo Pires em seu livro Capoeira, Identidade e gênero: ensaios sobre a história social da capoeira no
Brasil (2009), p. 129, quando aponta a possibilidade das mulheres também atuarem em maltas.

É importante pontuar que esse livro é organizado e escrito por mulhe- ² Mestra em Educação pela Universidade Federal da Bahia, conhecida na capoeira como professora Bi-
res capoeiristas e pesquisadoras, e baseado em entrevistas concedidas sonha do Grupo de Capoeira Gangara, idealizadora da Maré Cheia Produções Criativas e Sustentáveis.

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MALTAS DE SAIA - Histórias das mestras de capoeira da Bahia

MALTAS DE SAIA - Histórias das mestras de capoeira da Bahia


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MESTRA BYA
Noemia Evangelista da Penha

Nascida em 03 de novembro de 1967, em Salvador, Mestra Bya é filha


de João Evangelista de Jesus e Elza de Jesus, uma família formada por
quinze filhos/as: dez meninas e cinco meninos. Dessa prole numerosa,
apenas Mestra Bya e outra irmã, que já tem o título de professora, são
capoeiristas. Outra irmã também era praticante, mas acabou desistindo
da prática.

A menina Bya teve uma infância um pouco conturbada, haja vista ter
sido abandonada por sua mãe quando tinha um ano e oito meses, fato
que marcou sua vida. Ela foi criada por seu pai, por sua tia e por sua
madrasta. Lembra de ter sido uma criança muito ‘presa’. Com as voltas
da vida, ela, aos 12 anos, conheceu sua mãe, moradora da ilha de Mar
Grande, onde viveu uma “maravilhosa adolescência”.

Foi em Mar Grande, também, que ela conheceu a capoeira, quando


estava para completar 13 anos. Iniciou com o Mestre Luís Medicina, no
MALTAS DE SAIA - Histórias das mestras de capoeira da Bahia

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Grupo Meninos da Ilha. Esse grupo, no início dos anos 80, já contava
com vários professores, e Mestra Bya foi aluna de um deles, o professor
Val, hoje, Mestre Val. Ela considera ambos como seus mestres.

Praticante de capoeira regional, a mestra fundou, no Nordeste de Ama-


ralina, onde se instalou e reside até hoje, a Associação Afro Bahia de
Capoeira, juntamente com Mestre Careca, seu esposo na época, pai de

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seu único filho, Caíque. Hoje, já não estão mais casados e Mestre Care-
ca não integra mais o grupo. Mas Mestra Bya prosseguiu. Foi pioneira
em um época em que poucas mulheres se responsabilizavam por um
grupo de capoeira. Ela recorda:

“Bem, eu comecei a dar aula de capoeira e ajudar os mestres por


quem passei, quando ainda era cordão azul. Eu era muito interessa-
da e dedicada às aulas. Assim, ajudava os mestres com quem trei-
nei: Mestre Bozó Branco, Mestre Ninha, Mestre The Flash, Mestre
Crush. Por este último, fui formada professora em 1998”.
MESTRA CLAUDIA
Claudia Viana Ávila D’Andrade

Dez anos depois, em 08 de junho de 2008, foi formada mestra, a primei-


ra do Nordeste de Amaralina. É uma grande cantadora e possui um CD
gravado com suas próprias composições. Apesar de sua vida dedicada
à cultura, Mestra Bya não teve oportunidade de viajar com a capoeira.
Em determinado momento, quase visitou os Estados Unidos, mas teve
seu visto negado. Em seu entendimento sobre o que é a capoeira, uma
forte lição nos é dada por Mestra Bya, em um momento como o atual, Nascida em 17 de maio de 1967, em uma vila pertencente ao município
em que viajar por causa da capoeira e ser conhecido/a por vídeos na de Buerarema, hoje consagrada como São José da Vitória, cidade peque-
internet influenciam toda uma geração. Ela reverencia a capoeira: na do Sul da Bahia, Mestra Claudia é filha de Dinalva Francisca Viana (in
memoriam) e Antônio Adilson D’Ávila. É nessa cidade serrana, abastecida
“Capoeira é tudo para mim, conheci a capoeira num momento pelo rio Una, que a menina Cau, como era chamada pelo seus pais, passa
obscuro da minha vida. Então, me entreguei de corpo e alma. A os primeiros anos de sua vida, em uma família de quatro irmãs.
capoeira me fez ver o sol em um momento difícil. Então, desde
que a conheci, ela é minha família, minha luz, onde o pouco que O contato com a capoeira ocorreu ainda na infância, por meio de um
tenho se torna muito. Tudo que conquistei foi através dela. En- tio que morava em uma fazenda perto de São José da Vitória, o qual
fim...a capoeira é o ar que eu respiro”. era apaixonado pela capoeira e acompanhava sempre que podia tudo
que se referia a esta, bastava falar no rádio ou no jornal que ele ficava
atento. Mas, nesse momento, ela não se interessava pela prática e não
existiam grupos na cidade, raramente se ouvia falar sobre capoeira.
Puro exemplo de
Aos 8 anos de idade, a roda da vida já lhe dá sua primeira rasteira,
perseverança, respeito levando sua mãe lá “pras” terras de Aruanda. Com isso, muda-se para
MALTAS DE SAIA - Histórias das mestras de capoeira da Bahia

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e reverência à capoeira. Axé! Ilhéus com seu pai e duas irmãs, eles vão morar no bairro de Pontal, e
Viva Mestra Bya! sua irmã caçula fica com os avós em São José. Mais tarde, em 1978, a
família vai para a terra de Jorge Amado (Itabuna) em busca de maiores
oportunidades.

Mestra Claudia, aos 12 anos de idade, em Itabuna, gostava muito de


estudar e tinha uma rotina bem parecida com as meninas da sua idade,

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gostava de fazer amizade e tinha muitas amigas na escola. Já na adoles-
cência, a vida lhe reservou uma surpresa afetiva, quando conheceu um
rapaz chamado Joilson Silva D’Andrade, com quem começou a namo-
rar. Ele era amigo de sua irmã Kátia D’Ávila e irmão de suas melhores
amigas da escola. Hoje ele é conhecido como Mestre Risadinha, do
Grupo Cordão de Ouro.

E foi com ele que ela voltou a ouvir falar da capoeira. Casou-se, teve
duas filhas, e a cada dia descobria que seu marido era apaixonado pela
capoeira. Ele começou a treinar muito novo, na década de 70, e como
viajava muito, e muitas vezes ela ficava em casa, teve interesse em
acompanhá-lo, assim, aos 24 anos de idade, decidiu que iria treinar,
então, começou a dar seus primeiros passos. Suas duas filhas, Jayan-
ne e Camylla, fizeram capoeira por muito tempo, mas pararam. Mestra
Claudia relata como foi seu início na capoeira:

“Logo me encantei pelos instrumentos, o atabaque e o pandeiro,


aí depois resolvi treinar a capoeira pra valer, resolvi treinar mes-
mo e não parei mais, isso foi na década de 80, no ano de 87/88,
e não parei mais”.

Sua trajetória na capoeira começa com Mestre Magrelo, aluno do Mes-


tre Luís Medicina, no Grupo Plaza Center. Mais tarde, o Mestre Magre-
lo muda de espaço e passa a ocupar um espaço cultural da prefeitura,
e em homenagem ao Mestre Luís Medicina, ele troca o nome do grupo
para Grupo de Capoeira Luís Medicina. Anos depois resolve fazer uma
nova homenagem ao mestre, e o grupo passa a se chamar Grupo Raça,
título que permaneceu por 20 anos.

Muito certa do que queria, junto com seu marido, montou a própria
academia, denominando-a Espaço Alternativo Capoeira Raça. Com
a sua saída do grupo e a ida para o Grupo Cordão de Ouro, esse
espaço passa a ser chamado Raiz da Cordão de Ouro, ou Raiz CDO,
MALTAS DE SAIA - Histórias das mestras de capoeira da Bahia

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como é bem conhecido. Mestra Claudia costuma dizer que “Saímos
do pai e fomos para o avô, porque o Mestre Luís Medicina é aluno
de Mestre Suassuna”.

Ela nunca ganhou dinheiro com a capoeira, sempre fez trabalho social.
É funcionária pública, professora do estado, assumia como vice-dire-
tora, dava aula pela manhã, e no período da tarde aproveitava para

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ensinar o que aprendeu. Conta que tirava as cadeiras da sala, dava aula, local que eu chego sou sempre bem recebida, com muito respei-
depois colocava as cadeiras todas no lugar, porque à noite tinha aula to, aquela questão das pessoas até estranharem. Ah! você joga,
na escola e isso se repetia toda segunda, quarta e quinta. Esse grupo você canta, você toca, eu digo que de tudo eu faço um pouco,
foi crescendo, crescendo, hoje tem alunos formados e continua com os até escrever um livro”, lembra até uma música.... “eu jogo, mas
trabalhos voluntários. não sou angoleira, eu toco, mas não sou um bom tocador, mas
de tudo você faz um pouco.... então, tudo isso chama atenção
Para realizar as atividades, recebe doações de malhas e ela mesma faz quando viajo. Porque têm mulheres que jogam mas não tocam,
questão de confeccionar as calças, compra com seu próprio provento aí quando me veem falam você é danadinha, faz tudo, porque
e ajuda das/os amigas/os e marido as camisas, tudo isso para colaborar é muito difícil você vê uma mulher que faz um pouco de tudo,
com os/as meninos/as que vivem em situação de risco, que não têm joga, canta e toca. Eu digo para as minhas alunas que não pre-
condições. Em troca recebe carinho dessas crianças e jovens. cisa ser a melhor jogadora, mas fazer o que gosta, da forma que
você consegue, que seu corpo permite.
Em 2006, como resultado do seu trabalho da pós-graduação, publica
o livro Capoeira: de Luta de Negro a Exercício de Branco, o qual está na
segunda edição. Alguns pesquisadores apontam que ela é pioneira por
escrever um livro que conta a história da capoeira de Itabuna, é o pri- Em meio a adversidades, a
meiro da Bahia. Sua formação inicial e pós-graduação é em História.
Em 2017, recebeu sua graduação de Mestra no Grupo Cordão de Ouro,
Mestra Claudia segue, com sua
e em 2018 foi confirmada. Em 2019, aconteceu o Capoeirando - festa história, ensinando e
internacional realizada pelo Mestre Suassuna para consagrar todos/as os inspirando outras mulheres,
mestres/as – e participaram quatorze homens e ela era a única mulher. afinal, quando a vida dá um nó,
Em sua trajetória, teve a oportunidade de conhecer a Itália, Portu- a capoeira desfaz!
gal, França, Espanha, além de ser convidada para ministrar oficinas, Viva Mestra Claudia!
workshops, com despesas custeadas e recebimento de cachê em forma
de reconhecimento, assim como os mestres. Além disso, realiza anu-
almente batizado, recebe muitos capoeiristas oriundos de diferentes
grupos e lugares. A Mestra Claudia diz que a capoeira abre muitas por-
tas para quem abre as portas também.

Para ela, a capoeira é um modo de vida, filosofia que encanta, agrega,


traz benefícios tanto para a parte física como para a mental e intelec-
tual. Ela só soma, em nenhum momento diminui nada e não tira nada
MALTAS DE SAIA - Histórias das mestras de capoeira da Bahia

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de ninguém. A mestra relata o carinho que recebe da comunidade ca-
poeirística:

“Você chegar e as pessoas lhe reconhecerem, reconhecem seu


trabalho de mestra. Principalmente para nós mulheres. Por
exemplo, você chegar sozinha com seus alunos é sempre mais
difícil do que o homem. O fato que eu acho interessante é que o

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MESTRA DANDARA
Aurelice dos Santos Bispo

Nascida na década de 70, no Jardim Cruzeiro, bairro localizado na Cida-


de Baixa de Salvador, em uma região cujas principais atividades econô-
micas eram comercial e portuária, Mestra Dandara viveu com seus pais,
os quais obtinham nas idas às feiras a renda para sustentar os/as seis
filhos/as. O estudo sempre foi primordial no ambiente familiar, pois
sua mãe não queria que os/as filhos/as tivessem uma vida tão árdua, e
acreditava que a escola poderia transformar a realidade deles/as.

Quando criança, Mestra Dandara costumava frequentar as festas po-


pulares de Salvador, e o som do berimbau tocado nas rodas de capoeira
foi fundamental para despertar o desejo por essa prática. Porém, esse
pertencimento ao mundo capoeirístico não aconteceu de forma tão
harmoniosa, pois seus pais eram totalmente contrários, o que moti-
vou Mestra Dandara a conseguir uma hora extra e sair escondido do
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ambiente escolar para realizar os treinos, algo que ela atualmente não
recomenda.

Aos 13 anos, começou a treinar capoeira com Antônio Albino Soares,


conhecido na capoeiragem como Mestre Angola. Ele foi discípulo de
Maurício Lemos de Carvalho, o Mestre Vermelho da Moenda, discípulo
direto do Mestre Pastinha. A cada treino realizado, seu desejo em con-

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tinuar no universo da capoeira aumentava. Assim, diante do comporta- E o seu potencial enquanto ser humano consciente de sua relação com
mento da filha, sua mãe viu que não tinha jeito, então a entregou aos a africanidade a projetou para ocupar os devidos espaços, abrindo no-
cuidados do Mestre Angola, permitindo que ela realizasse o seu sonho; vos horizontes e fomentando novas relações pela arte.
vindo sua mãe a falecer anos depois, Mestre Angola fez jus ao seu pe-
dido de cuidar de Mestra Dandara e protegê-la. Contudo, ainda existem muitos desafios relacionados ao patriarcado
na sociedade, oprimindo mulheres e homens nas rodas da vida. Nes-
A relação de unicidade entre mestre e discípulo foi se fortalecendo, se sentido, o percentual de pessoas do sexo feminino que consegue a
chegando a ponto da Mestra Dandara receber convites de viagem para mestria na capoeira ainda é muito reduzido, e um dos motivos desse
o exterior, contudo, o seu mestre, entendendo que ainda não era o mo- quantitativo se deve, dentre outros fatores, às desigualdades.
mento, não concedeu a permissão e lhe ensinou que ainda precisava
amadurecer dentro da ritualística da capoeira, para depois poder trilhar Nesse sentido, o balanço da ginga dita um compasso que ainda é mar-
o seu destino, fato muito importante para o crescimento da mestra. cado pela desigualdade de gênero. E apesar da capoeira ter surgido no
processo de diáspora, como forma de resistência, ainda assim ocorre
Por volta de 5 anos de comprometimento com a capoeira, Mestra Dan- uma grande perda de pessoas que frequentam esse espaço, fato que
dara, que nessa época ainda era aluna, pôde ministrar aulas com a su- a Mestra Dandara conseguiu “negacear” com muita habilidade, pois as
pervisão do Mestre Angola. Dessa forma, para cada movimento falho dificuldades foram superadas e ela se colocou com respeitabilidade no
e/ou mal executado, ele fazia as devidas considerações, porém, espe- “hall” da capoeiragem baiana, a “meca” da arte no planeta.
rava o momento em que os dois estivessem a sós para aprimorar o
conhecimento dela, não a advertindo em público. Atualmente, a capoeira também revela uma questão mercadológica,
em que o título de mestre vem agregado ao serviço que é oferecido
Mestra Dandara ministrou aulas de capoeira, na década de 90, na Vila pelo grupo ao qual se pertence, entre outras formas de negociação
Militar dos Dendezeiros - Bonfim, na Fundação Cidade Mãe, e em di-
com a arte capoeira. De acordo com a mestra, não cabe a ela julgar o
versos bairros. Lecionou na Escola Vitor de Soares, na Ribeira, e parti-
cipou de vários projetos sociais ao longo de sua formação e construção mérito ou direito a quem o título foi concedido, pois a capoeira se trata
para se tornar mestra. de uma arte digna e pode, de forma positiva, estar associada a fins lu-
crativos, podendo ser uma fonte de renda para muitas pessoas. Assim,
Ao longo desses mais de 30 anos dedicados à capoeira, participou de sua crítica está relacionada especificamente às pessoas que só usam a
inúmeros batizados, rodas, oficinas, palestras e encontros. Com o pas- capoeira e não agregam valores a essa cultura ancestral.
sar dos anos, deu continuidade às participações nos eventos de capo-
eira, sempre adequando sua rotina de trabalho, de forma harmoniosa. Apesar de se ver muitas mulheres nas rodas de capoeira, ainda assim
Realizou oficinas de movimentos, musicalidades, confecção de instru-
não está em consonância com a quantidade feminina que assume li-
mentos, fundamentos, ritualística da capoeira e afins. Atualmente, re-
cebe convites para palestrar sobre a capoeira na Bahia e em outros deranças. Contudo, a própria trajetória da mestra se configura como
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estados do Brasil, além das propostas internacionais. mecanismo de ruptura e exemplo positivo para homens e mulheres da
periferia, pois ela resistiu, venceu e abriu portas, sendo reconhecida
A caminhada na capoeira e sua história de vida permitiram que “a volta pela ancestralidade que habita em sua peculiar mandinga de Angola.
ao mundo” fosse realizada, e foi através das “chamadas de Angola” que
ela conseguiu perseverar, dando continuidade à sua linhagem de capo- Para Mestra Dandara, é muito importante refletir sobre a contribuição
eira. O saber ancestral possibilitou à Mestra Dandara conduzir seu cor- da mulher na capoeira, de forma democrática. Ela espera que a mulher
po permeado pelos sons dos instrumentos e pelas vozes da capoeira.

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não seja vista apenas como um sexo frágil, e sim como uma protagonis-
ta de sua história; que os espaços das rodas sejam reconstruídos cole-
tivamente, considerando a participação de homens e mulheres harmo-
nizados em prol da emancipação feminina na sociedade.

“Meu nome foi feito na pedra,


não foi feito na areia”, relata
MESTRA ESPERANÇA
Adriana de Araujo Soares da Silva
Mestra Dandara. E assim ela
segue firme. Tornou-se uma
mulher forte, educadora social,
historiadora, mestra de capo-
eira e, acima de tudo, uma pes-
soa do “bem”, querida e acolhi-
da por muitos.
Viva Mestra Dandara! Nascida em 23 de novembro de 1983, na região Oeste do estado da
Bahia, no município de Barreiras, Mestra Esperança é filha de Maria
José de Araújo e Manoel Domingos Soares, família formada por mais
seis irmãos/ãs com quem brincava nas horas vagas. Morava no bairro
Vila Brasil e veio de uma família grande e acolhedora.

Aprendeu capoeira ainda criança, aos sete anos, quando sua mãe teve
a iniciativa de matriculá-la no projeto “Meninos de rua”, tendo como
responsável o Mestre Zé Maria.

Era muito assídua aos treinos com seu professor Zé Baixinho, com
quem criou laços fraternos. Com o passar dos anos, ela foi contempla-
da com uma bolsa que dava direito a participar dos treinos na sede da
Associação Mestre Zé Maria, e nesse local só treinavam os melhores
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da época. Foi a partir desse episódio que ela se consolidou no universo
capoeirístico e nunca mais parou.

A trajetória com o Mestre Zé Maria foi até a sua graduação de profes-


sora, em 2004, pois houve a necessidade do grupo parar por tempo in-
determinado. Porém, ela foi perseverante e continuou com o trabalho

22 23
que vinha executando, mas encontrou muitas dificuldades e falta de
apoio, o que a levou a migrar para a Associação de Capoeira Cultura
Brasil, tornando-se discípula do Mestre Dino, do Rio de Janeiro.

Levou muitas rasteiras de pessoas que faziam parte do seu convívio


social, devido à posição que preferiu tomar, migrando de grupo, mas
a própria capoeira lhe ensinou a contragolpear e seguir o jogo da vida
conforme o ritmo do berimbau. Ela é divorciada e teve três filhas, sendo
que uma veio a falecer. Hoje, a mais velha tem doze anos e a outra tem
nove anos, frutos de um relacionamento que se iniciou na capoeira.

Por duas vezes pensou em abandonar essa arte, mas sua filha, que fale-
ceu e era especial, foi quem não permitiu que ela desistisse, dando-lhe
força para que ela continuasse. Para a sua felicidade, em 2000, surgiu
a oportunidade de viajar, saindo de Barreiras, a sua terra natal, e pôde
desbravar outras regiões.

Nas voltas que o mundo dá, o Mestre Zé Maria reconhece o seu arre-
pendimento de não ter concedido o título de mestra à Esperança. Mas,
no dia da sua formatura, ele se fez presente para compartilhar essa
felicidade e dar o seu devido reconhecimento, pois, para Esperança, a
presença do Mestre Zé Maria era de muito valor, afinal estava se tor-
nando a primeira mestra formada no oeste da Bahia.

Para ela, a capoeira educa e é maravilhosa, porém, deixa as cicatrizes do


golpe que muitas vezes não tem como esquivar, principalmente quan-
do o ataque é contra uma mulher agente de resistência. Nesse sentido,
também sofreu preconceito, e mesmo assim segue “de cabeça erguida”,
marcando presença significante no seio familiar e nas lutas sociais.

Em 2006, com a crescente expansão da capoeira, surgiu o convite de


viagem para vários lugares, e a oportunidade de propagar essa manifes-
tação cultural de forma esplêndida, culminando na abertura de várias
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filiais em outas cidades. Nesse momento, a sua mãe foi a maior motiva-
dora para que esse caminho fosse trilhado.

De todas as liberdades que teve, a de ser feliz ao lado das filhas trouxe
um enorme contentamento. Segundo ela, a esperança de que tudo vai
ficar bem é inerente ao ser maternal, e toda vez que algo a abalava, já
sabia que tudo ficaria bem novamente em sua vida. Precisava trabalhar,

24 25
dar conta dos afazeres domésticos e cuidar das filhas; e ainda conseguir
um tempo extra para se dedicar aos treinos e estar presente nas rodas.
Ser mãe e capoeirista era algo desafiador, e ela transbordava essa feli-
cidade através de uma realização pessoal.

Mestra Esperança relata que, se fosse para começar de novo, faria do


mesmo jeito, iria para capoeira: “A capoeira foi meu pai e minha mãe,
ela quem me educou e possibilitou que hoje eu viva de/para a capo-
eira, garanta o meu sustento através dessa arte com dignidade”. Além
disso, segundo ela, “A capoeira é uma forma de se expressar e envolve
MESTRA FAFÁ
Maria de Fátima Evangelista Bomfim
psicologia, terapia, sensação de bem-estar, enfim, é uma formação para
a vida!”, relata a mestra Esperança.

Merecedora da admiração po-


pular, Mestra Esperança deve
ser lembrada e homenageada
por todos, pelo seu exemplo de Nascida em 18 de outubro de 1981, na cidade de Lauro de Freitas,
região metropolitana de Salvador, na Bahia, Mestra Fafá é filha de Fran-
perseverança, resistência cisco Bomfim e Valdelice Evangelista. Tem três irmãos por parte de pai
e comprometimento com e três irmãos por parte de mãe, um deles é capoeirista. Domina a arte
a capoeira. de fazer tranças, sendo uma conhecida trançadeira de cabelo na região
Viva Mestra Esperança! onde mora, mas sua bandeira é a capoeira, a qual pratica desde 1990.

Sua iniciação na capoeira se deu no bairro de Pitangueiras, Lauro de Frei-


tas, com o Mestre Regi, e ela sempre integrou o Grupo Filhos de Oxóssi
Guerreiro. Recebeu a corda de aluna formada em 1995 e, nesse período,
passou a ajudar o seu mestre, dando aulas para as crianças. Mestra Fafá
tem sua vida pessoal e profissional envolvidas e unidas pela capoeira. É ca-
sada com o contramestre Pesadelo, seu companheiro de vida e de ofício.
Tem um filho, o Bomami, e uma filha, a Ariadne, ambos a acompanham na
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capoeira desde a época em que estavam em sua barriga.

A mestra pretende levar adiante o legado de seu mestre e é a respon-


sável pela comissão de eventos do grupo. Ela comenta sua dedicação,
quando afirma que capoeira para ela era de segunda- feira a segunda-
-feira. Com o passar do tempo, passou a ministrar aulas de capoeira,
dança afro e maculelê.

26 27
Nas palavras dela, “Ao longo do tempo, fui evoluindo, a responsabilida-
de vindo e o amor pela capoeira crescendo”. Assim, passou a dar aulas
em diversos espaços como escolas, uma pousada, e até em Amaralina,
na academia do irmão do campeão Popó. Seu primeiro apelido na ca-
poeira, anterior ao atual Fafá, foi dado por um mestre de seu grupo, o
Mestre Val e, por ser brava e não levar desaforo para casa, foi conheci-
da, por muito tempo, como Capeta.

A capoeira deu a ela a oportunidade de dar aulas práticas e teóricas


para estrangeiros/as, e também a levou para outros locais como uma
representante legítima de seu grupo. Mestra Fafá jogou capoeira e par-
ticipou de eventos em Feira de Santana, Alagoinhas, Madre de Deus
e Brasília. Em 2013, foi reconhecida a primeira mestra de capoeira do
município de Lauro de Freitas, momento que recorda de maneira grata
e feliz.

Mestra Fafá define capoeira em uma palavra: GRATIDÃO. Ela explica


essa definição com profundidade: “Agradeço muito à capoeira pelo que
me formei. Sou uma mulher de bairro pobre e humilde”. Demonstra,
mais uma vez, que na capoeira encontrou seu caminho, sua orientação
e uma maneira de superar as dificuldades da vida.

A mestra define com muito amor o que recebeu na capoeira: empode-


ramento, autoridade, ousadia e responsabilidade. Assim declara: “Obri-
gada, capoeira, por me ensinar a mandinga da vida! O meu amor por ti
será eterno”. Consciente da importância de não ter desistido, Mestra
Fafá, com sua sabedoria e vivência, agradece ao Tempo!

Essa é mais uma linda história


de vida de uma mestra de
capoeira, que nos ensina e nos
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presenteia como inspiração.
Viva Mestra Fafá!

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MESTRA JANJA
Rosangela Janja Costa Araújo

Nascida em 04 de outubro, dia de São Francisco de Assis, em Feira de


Santana, no estado da Bahia, em 1959, Mestra Janja é filha de Jolina
Costa Araújo e Juvenal Santos Araújo. Ela cresceu em uma família de
sete irmãs/ãos, cinco mulheres e dois homens, além de uma tia. Ante-
riormente a ela, não houve em sua família quem jogasse capoeira; de-
pois dela, sua irmã, cinco anos mais nova, chegou a treinar um período
no GCAP - Grupo de Capoeira Angola Pelourinho e, posteriormente,
no Grupo Nzinga de Capoeira Angola, mas não permaneceu. Entre os
irmãos/ãs, apenas ela floresce nesse ambiente da capoeira, porém, seu
filho de 21 anos seguiu seus passos, para sua alegria.

Em Feira de Santana, em uma ambiência semiurbana, com aspectos


rurais bem marcados, onde tinha as imensas feiras livres, as quais ocu-
pavam as ruas centrais, para onde vinham pessoas de vários lugares e
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cidades circunvizinhas, Mestra Janja cresceu. Ela morava em uma casa
que ficava em uma praça, e esta tornou-se seu grande mundo, uma
experiência de vida coletiva, vizinhança bem articulada, com muitos
eventos organizados coletivamente, uma riquíssima convivência. A sua
casa foi uma das primeiras a ter televisão, era um outro grande evento,
já que todos iam para lá levando suas cadeiras e banquinhos. Sua famí-

30 31
lia sempre foi muito festeira, buscando um motivo para comemorar e próprio GCAP. Também trabalhou com crianças no Centro Social
celebrar a vida. Urbano de Pernambués, e com os meninos e as meninas do Pro-
jeto Axé. Assim a mestra relata:
Filha de um casal inter-racial, teve mais contato com sua família mater-
na: “...dentro dessa família posso dizer que sou a primeira neta negra “[...] dava aula de capoeira, mas a gente não se via como profes-
da minha avó”. Apesar de todas as dificuldades da época, a infância foi sora de capoeira, e sim com nossa formação de capoeira. Não
marcada por práticas muito criativas, inventivas, sobretudo do ponto sei, acho que desde 87, por aí, já dava aula de capoeira dentro
de vista da atividade física, corporal, de brincar de subir em cavalo, an- do nosso próprio grupo, uma vez que os mestres viajavam muito
dar a cavalo. São várias lembranças: e a gente compartilhava o que tinha aprendido. Isto a gente faz
inclusive até hoje quando chega alguém novo, então um vai ali
“[...] fazia muitas estripulias de criança, éramos muito musicais, para o canto, começa a treinar aquela pessoa, enfim, quando
queria imitar o Michael Jackson, os Jackson’s Five, criamos os você vê já está dando aula para o grupo inteiro”.
Araújo’s Five, e uma infância sem muitos bens materiais, mas
sem também muitos tropeços, fora quando chovia tinha trovão, Quanto à sua mestria em capoeira, ela responde: “Eu não sei quando me
ficávamos com medo da chuva derrubar a casa”. tornei mestra não, mas sei que chegou uma hora que eu não pude mais
impedir que as pessoas me chamassem de mestra”. Seu nome, Janja, é de
Sua introdução na capoeira se deu aos 21 anos, no início da década de família, embora religioso também. Sobre apelidos, ela explica:
80, no Grupo de Capoeira Angola Pelourinho -GCAP, no Forte Santo
Antônio Além do Carmo, quando já estava terminando a faculdade de “Dentro do meu universo de capoeira, dentro do meu grupo, a
educação física, iniciada no final dos anos 70, época quando não se via gente não tem batizado para receber o nome, então não ganha
a presença de muitas mulheres na capoeira. Mais tarde graduou-se em apelido. Os que têm apelido são os apelidos de “gastação”, ou
História pela Universidade Federal da Bahia - UFBA e permaneceu no afetivos, mas são apelidos que surgem na convivência”.
GCAP até 1994, quando foi morar em São Paulo.
Quando retorna para Salvador, passa a atuar como coordenadora de
Mestra Janja conta que, na trajetória do grupo, teve três mestres: Mo- Políticas para as Mulheres, da Secretaria de Promoção da Igualdade
raes, Cobra Mansa, que, na época, embora não fosse mestre ainda, era do Estado da Bahia. Um tempo depois, assume o cargo de professo-
assim que já o consideravam, e depois de um tempo veio o Mestre João ra de concurso para docente na UFBA, atualmente no Departamento
Grande se juntar ao grupo, quando “conseguimos que ele deixasse o de Estudos de Gênero e Feminismo, da Faculdade de Filosofia e Ci-
posto de gasolina onde trabalhava e se dedicasse totalmente à capoei- ências Humanas. A capoeira também proporcionou à mestra transitar
ra”. Ela teve a experiência fantástica de conviver com três gerações de por muitos lugares, cidades, estados e países, inclusive o próprio gru-
mestres ao mesmo tempo, e isso durou alguns anos, até Mestre João po desenvolve trabalhos e tem núcleos internacionais. Viaja realizando
Grande ir embora para os Estados Unidos. palestras, seminários, cursos e oficinas, além de workshops, levando a
capoeira mundo afora.
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Hoje, seu grupo é o Nzinga de Capoeira Angola, que fundou quan-
do foi morar em São Paulo, onde cursou o mestrado e o doutora- Em 2001, ampliando as atividades do grupo, formou o Instituto Nzinga
do em Educação pela Universidade de São Paulo - USP. Em 2021,
de Estudos da Capoeira Angola e Tradições Educativas Banto no Brasil.
o Grupo Nzinga completou 26 anos de existência, e é um grupo
exclusivamente de capoeira angola. A entidade atua na pesquisa e difusão das diversas tradições de matriz
banto, promovendo ações sociais e educativas, e hoje possui trabalhos
Começou a dar aula antes da fundação do seu grupo, ainda no em muitas cidades brasileiras e em dez países. Em 2015, publicou o

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livro É Preta Kalunga: A Capoeira Angola como Prática Política entre os
Angoleiros Baianos – Anos 80-90. Sua trajetória é também marcada
pela luta pelo fim da violência de gênero.

A capoeira, para Mestra Janja, é um jogo político, um instrumento de


luta, espaço para se reinventar, se renovar, lugar de se fazer amigos: “é
o meu timão, o meu guidom, é quem me conduz, é a caneta que escre-
ve a minha vida. É tudo que eu não sei, acima de tudo”. MESTRA JARARACA Valdelice Santos de Jesus

Ela é uma das mestras mais


conhecidas no mundo da capo-
eiragem. Um exemplo de poder
de conscientização, mobiliza-
ção e representatividade femi-
nina na capoeira. Nascida em 04 de agosto de 1974, no Santo Antônio Além do Car-
mo, no centro histórico de Salvador, Mestra Jararaca, mulher com
Viva Mestra Janja! espírito sagaz e pioneira, é filha de Antonia Maria dos Santos e Ma-
noel Moreira de Jesus, ambos falecidos, os quais formaram uma
numerosa família, composta por nove irmãos/ãs. Desses/as, dois já
não estão nesta dimensão.

Dentre os irmãos e irmãs, está a grande Ritinha da Bahia, maneira como


a Mestra Jararaca se refere a sua irmã, exímia capoeirista, que iniciou
na capoeira angola antes mesmo que a mestra. Elas são as duas capoei-
ristas dessa família soteropolitana, mulheres negras, com ampla repre-
sentatividade como líderes na capoeira, para nosso país e mundo. Duas
vencedoras pela trajetória que trilharam.

Antes de se tornar a Mestra Jararaca, Valdelice foi uma criança traqui-


na, no sentido de brincar por todo o tempo de sua livre infância, que
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apesar das dificuldades, deu a ela a oportunidade de ser uma “criança
que viveu como criança”. Brincava de bola de gude, de casinha, subia
em árvores, brincava com os meninos, andava de bicicleta. Todos os
dias assim. Em determinado momento, já por volta de seus 11 anos de
idade, tomou gosto por jogar bola, e nada a impediu de fazer isso, nem
mesmo as surras que levou do pai, que não a queria fazendo coisas que
eram ‘de meninos’. Ela nos conta: “Minha vida era brincar. Sem tecnolo-

34 35
gia, mas com tudo que hoje falta para que as crianças possam ser mais
crianças do que elas já são. E a vida foi assim”.

Também, aos 11 anos, interessou-se pela capoeira e iniciou o contato


com a capoeira angola, no CECA (Centro Esportivo de Capoeira Ango-
la), com o Mestre João Pequeno, com quem sua irmã já treinava. Porém,
não deu prosseguimento, porque seu pai não permitiu, novamente ar-
gumentando que capoeira era coisa ‘de homem’. No entanto, sua irmã
Ritinha não foi impedida de continuar, porque era mais velha.

Ela retorna para a capoeira aos 14 anos, na mesma academia, nova-


mente sob a orientação de Mestre João Pequeno. Foi integrante desse
espaço por cerca de cinco anos e meio, quando passou a ser aluna do
Mestre Curió, na ECAIG (Escola de Capoeira Angola Irmãos Gêmeos).
Mestra Jararaca tem orgulho de sua trajetória na capoeira angola, as-
sim, afirma: “Sem desmerecer a regional, sempre fui angoleira”.

Foi casada por 21 anos, companheira do Mestre Curió, com quem teve
dois filhos, José Carlos e Luís Carlos, também conhecidos como Papa-
-capim e Besourinho. Apesar de jovem, ela é avó e tem um casal de ne-
ta/o, e não esquece de sua primeira netinha que faleceu. O apelido tão
peculiar de Mestra Jararaca lhe foi dado por Mestre Curió, “[...] devido
a observações dele quando eu vadiava”.

A mestra nos conta que não agredia ninguém, mas era perigosa e, se-
gundo a avaliação de seu mestre, prepara e solta seus movimentos
como o bote de uma cobra, e é muito perigosa. Uma das características
marcantes de Mestra Jararaca é a sua boa autoestima, desse modo,
ela se autoreconhece e adora ser chamada de Jararaca: “Eu sou muito
perigosa na roda de capoeira, no sentido de ser ágil como uma cobra. E
a cobra escolhida é a jararaca, justamente por ser uma das cobras mais
perigosa que tem”.

Iniciou sua experiência com aulas de capoeira antes mesmo de receber


qualquer título. Ela chegou a obter o título de professora por Mestre
João Pequeno, um nome que era usado antes da denominação treinel
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vigorar no meio das academias de capoeira angola:

“Comecei a dar aula de capoeira, na academia de Mestre João


Pequeno. Antes de dar o título, ele botava a pessoa pra dar aulas
e observar, dizer aonde que estavam os erros, o que era pra ser
feito. Pra pessoa não deixar de passar um movimento ou passar
o movimento de maneira errada”.

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Na ECAIG, ela também passou a dar aulas em breve período de tempo: jogar, cantar e conversar. Isso mexe muito comigo. Eu sinto pro-
fundamente a falta da capoeira na minha vida, a falta de treinar,
“Saindo de lá, fui treinar com o Mestre Curió, e comecei tam- a falta de tocar, de cantar, de ouvir as músicas da capoeira na
bém, depois de estar desenvolvida na técnica dele, a dar aula, voz de outras pessoas, de ouvir uma bateria de capoeira Angola.
e ele ia me corrigindo, pois os mestres antigamente tinham Isso me faz feliz, me faz muito mais jovem. Então a capoeira an-
esse hábito de colocar as pessoas pra ir dando aula e ir orien- gola pra mim é vida. É o ar que eu respiro. É a boca que eu como,
tando também. Algumas pessoas, vindas desses mestres, têm os olhos que eu enxergo. É tudo pra mim. Até o dia que eu estiver
esse hábito ainda.” viva, eu vou levar comigo esse amor pela capoeira angola. Por
toda a vida e eternidade”.
Em janeiro de 2001, Mestre Curió a reconhece mestra, assim, ela relata
que se tornou a primeira mestra formada em capoeira angola na Bahia, O desejo dela é que suas palavras e história tenham um efeito de con-
no Brasil e no mundo, pois, nessa época, a capoeira já era expandida tribuição. E espera que sua biografia contribua muito para as pessoas
para os ‘quatro cantos’ da Terra. que estão na capoeira angola agora e “também para outras pessoas
que estão vindo, que ainda virão para a capoeira. Que essas palavras
A capoeira angola já levou a Mestra Jararaca para alguns lugares: cheguem muito mais longe que nós podemos imaginar!”.

“Alguns estados do Brasil e até um país: Equador. Estive em


Quito, para uma apresentação com o Mestre Curió, no grupo de
um aluno dele. Tive outras oportunidades de ir pra França, Itália, Coisa de mestra a gente escuta,
Bolívia, mas infelizmente não era ainda o tempo certo pra ir. Por contudo, é ainda mais que para
motivo de tudo ter o seu tempo”. escutar... é para aprender!
Mestra Jararaca, como boa angoleira que é, joga também sua angolinha
Viva Mestra Jararaca!
com as palavras. E fala poesia quando partilha o que é a capoeira an-
gola para ela:

“A capoeira angola, pra mim, ela é tudo! É minha vivência diária.


É o meu falar, o meu conduzir, é a minha conduta, a minha ob-
servação, é humildade pra mim, sabedoria, é tudo que eu consi-
go sentir e praticar. A capoeira pra mim é como o candomblé, é
minha vida. Eu não conseguiria viver sem a minha religião e sem
a capoeira angola”.
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Ela prossegue com uma importante reflexão, para uma genuína capoei-
rista, vitoriosa de tantas lutas e herdeira de um legado tão importante:

“Tá sendo difícil na pandemia, pra mim, porque não tenho meu
espaço. Não tenho meu espaço ainda! Não tenho como ir olhar
uma academia, ou estar lá, limpando, varrendo, organizando,
ou estar indo ver uma roda de capoeira, encontrar os mestres,

38 39
MESTRA LENE
Lucilene Lopes da Silva

Nascida em 27 de maio de 1965, em Icoaraci, distrito de Belém, no


estado do Pará, Mestra Lene é filha de Valdomiro Batista da Silva (in
memoriam) e Dona Marcelina Lopes da Silva, a Dona Maçú. De família
numerosa, com oito irmãos/ãs, ainda assim conseguia um tempo extra
para fazer as atividades escolares e ir brincar de capoeira.

Aprendeu a gingar ainda criança, com os seus irmãos Walcir, Waldomi-


ro e Walmir, no quintal da sua casa, que ficava na Rua Nova, bairro da
Sacramenta. Tem como mestre o seu irmão Mestre Walcir, com quem
começou a dar os seus primeiros passos. E, mais tarde, os seus irmãos
foram brincar com outros garotos, como Rui (in memoriam) e Lino.

Na comunidade de Quarubas morava o senhor Milton Teixeira, um


técnico em eletrônica que consertava rádios e televisores. Sempre
que ele caminhava pelas ruas, percebia um fluxo de crianças jogando
capoeira e com o berimbau em mão, então ele sentiu a necessidade
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de acolhê-las, e foi no quintal de sua casa que passaram a acontecer
os treinos de capoeira. Apesar de não ser capoeirista, ele conseguia
uniformes para os integrantes e lá aconteciam os treinos, as rodas e,
no final do ano, o batizado.

Quando havia eventos de capoeira nesse espaço, que ficava num bair-
ro distante da casa dela, os seus irmãos iam bem cedo para ajudar nos

40 41
afazeres, e ela só ia mais tarde, acompanhada de suas irmãs, porque o mestre. Nunca teve medo de jogar capoeira e sempre aceitou os golpes
trajeto era perigoso e sua mãe temia que o pior acontecesse. Ela teve e as rasteiras, só que, no momento oportuno, procurava revidar. Para a
dois filhos, Leandro, hoje com 32 anos, e Leonardo, com 30 anos. É avó mestra, o capoeirista precisa encarar o jogo de “cabeça fria”, aguardan-
de Fernanda, Lívia e Maria Letícia. Mesmo com os filhos ainda peque- do “a hora certa”.
nos, conseguia se esquivar dos afazeres domésticos e seguia gingando
na roda da vida. Nas rodas de capoeira que aconteciam na Associação Brasileira de Ca-
poeira Angola (ABCA), na qual também assume a vice-presidência, ela
Mestra Lene ministrou aula de capoeira com mais dois monitores, Adal- sempre procurava jogar, cantar e tocar. E é nesse gingado da vida que
berto e Adailton, no Colégio Estadual Erotildes Frota Aguiar, no Pará. E consegue ser mãe, capoeirista e empreendedora, buscando sempre a
foi nesse local que a adquiriu autonomia, passando a ensinar em perí- sua valorização e reconhecimento.
odos diferentes, em diversas turmas. Suas irmãs são professoras, e ela
seguiu a área da saúde, chegando a cursar enfermagem, porém, não Mestra Lene também é uma grande artesã, faz toucas de crochê,
deu seguimento à profissão, dedicando-se exclusivamente à capoeira. roupas, entre outros adereços, servindo de inspiração para outras
mulheres que passam pelo Pelourinho e valorizam suas artes. Du-
Participou de um campeonato pela Federação de Capoeira, à qual a rante sua trajetória, observava muitas mulheres “levando o côro” e
Associação de Capoeira Senzala era filiada. Foi preciso disputar esse batendo palmas, ela ia tentando se doar para a capoeira, buscando
campeonato no estado do Pará para, em seguida, poder participar do melhorar a cada dia. Pelo fato de ouvir mensagens negativas sobre
Campeonato Brasileiro, em Brasília, quando obteve o 1º lugar. o posicionamento da mulher na capoeira, era aí que procurava o seu
empoderamento; chegou a comprar os seus instrumentos e come-
Foi nesse evento que ela conheceu Mestre Pelé da Bomba, seu atual ma- çou a treinar os toques e cantos.
rido. Com isso, foi morar em Salvador com seu companheiro e passou
a fazer parte da Associação de Capoeira Angola Mestre Pelé da Bomba, Hoje, possui uma turma de capoeira no bairro Valéria, em Salvador.
ocupando atualmente o cargo de vice-presidente. No auge dos seus 52 Trata-se de um projeto que acolhe crianças e adolescentes que passam
anos, em 2017, Mestre Pelé da Bomba concedeu-lhe o título de mestra por situações de vulnerabilidade social. Sua proposta é reduzir o tempo
e, nesse mesmo ano, ela viajou para o Pará, onde o seu irmão, o Mestre ocioso de seus alunos através da prática da capoeira, levando a cultura
Walcir, tornou a reconhecê-la como mestra. Apesar da sua trajetória nas para quem mais necessita. Com isso, a capoeira vai tomando o conceito
rodas de capoeira, relata que nunca teve o devido valor: familiar, e os alunos serão os mestres no futuro e darão continuida-
de ao seu trabalho. Os integrantes desse projeto constantemente es-
“Quando eu era contramestra as pessoas contratavam o mestre tão no Pelourinho, participando de forma ativa dos eventos da ABCA,
Pelé da Bomba para viajar e eu ia como acompanhante, rece- como o desfile do Dois de Julho, o aniversário do Mestre Pastinha,
bendo uma ajuda de custo, porque você sabe que a nossa cultu- entre outros.
ra não é valorizada”.
Em seu percurso, ministrou oficina de capoeira angola em diversos es-
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Começou a ministrar oficinas de capoeira junto ao seu mestre, em Mi- tados do Brasil, e apesar de nunca ter viajado para exterior, já recebeu
nas Gerais, Porto Alegre e Belém do Pará, ampliando a sua visão no convites para participar de eventos lá fora. Contribui de forma signi-
meio capoeirístico. Recebeu alguns prêmios, como o da Valorização e
Reconhecimento pela Federação de Capoeira da Bahia (FECABA), e o ficativa com os workshops de capoeira angola que são realizados na
prêmio Berimbau de Ouro, realizado pelo Mestre Máximo, em 2015. ABCA, e recebeu menção honrosa em reconhecimento aos relevantes
serviços prestados à sociedade baiana através da capoeira, além do
Atualmente, a capoeira tornou-se uma fonte de renda. Ela realiza semi- prêmio World Top pelos inestimáveis serviços que colaboram para ele-
nários, oficinas, aulas e eventos, mas sempre sob a supervisão do seu vação do nome da capoeira, ambos em 2019.

42 43
Mestra Lene agradece ao seu companheiro Mestre Pelé da Bomba por
mostrar que a vida é um dom divino, que ao cantar produz encanto, e
que ao ensinar a capoeira se ensina para a vida, e quando toca o berim-
bau, toca o coração.

MESTRA NANI DE
Uma história merecedora de ser
conhecida e respeitada.
Viva Mestra Lene!
JOÃO PEQUENO
Cristiane Santos Miranda

Nascida em Salvador, em 02 de junho de 1983, Mestra Nani de João


Pequeno é filha de Carlos Luiz Miranda e Benigna Santos Miranda. Foi
educada por seus avós maternos depois da separação de seus pais,
logo após seu nascimento. Sua avó, Edelzuita Rosa de Jesus, dona Mãe-
zinha, e seu avô João Pereira dos Santos, um grande e reverenciado
mestre da capoeira angola, João Pequeno, cuidaram não apenas da me-
nina Nani, mas também de seus irmãos e irmã por parte de mãe, Bujão,
Bibio e Kika, que ainda pequenos se juntam à família em Fazenda Cou-
tos, periferia de Salvador, local onde vive até hoje e dá seguimento ao
trabalho iniciado por seu avô.

Mestra Nani criou, em parceria com discípulos do seu avô e mestre,


o Projeto Pequenos de João, na Casa Cultural onde essa jovem e ex-
periente mestra de capoeira angola exerce seu papel de educadora e
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perdura os ensinamentos de seu avô. Ela recorda que seus irmãos fo-
ram inseridos na capoeira angola por seu avô, entendendo que esse era
um desejo pessoal do mestre, que apesar de ter muitos filhos homens,
apenas sua filha, a Benigna, sobreviveu.

Apesar de não ter sido impedida de praticar a capoeira, percebeu logo


cedo a aposta de seu avô na transmissão desse saber para seus irmãos.

44 45
Contudo, quando, em 1995, o Mestre João Pequeno inaugura seu espaço
em Fazenda Coutos (pois já liderava a academia no Forte de Santo Antô-
nio), ela percebe uma oportunidade de estar perto de seu avô, pois este
era um homem que viajava muito, mas era muito carinhoso em casa.

Assim que iniciou as aulas de capoeira angola, Nani, aos 12 anos, de-
cidida a praticar, aproveitou o conhecimento de seus irmãos mais no-
vos, que treinavam com maior frequência, para aprender rápido e com
muita dedicação as sequências de movimentos ensinadas pelo mestre:
“Em seis meses treinando capoeira angola, eu já reproduzia certinho a
sequência de movimentos. Eu queria aprender logo”.

O fato de o avô viajar muito e a dificuldade de manter como profes-


sores do espaço em Fazenda Coutos, os professores da academia do
Forte, por causa da distância, fizeram com que seu avô começasse a
ensiná-la a movimentação a ser aplicada nos treinos:

“Com quase um ano, meu avô me coloca para reproduzir os


treinos dele. Uma pessoa que veio logo treinar aqui foi a Nildes
Sena. Ela é um fruto desse desenvolvimento também. A partir
d’aí é que eu começo ir pras rodas, pra academia”.

Nem mesmo a gravidez precoce a impediu de continuar. Ela foi mãe


de Gustavo aos 17 anos, mas continuou, foi para a universidade e con-
seguiu se formar em educação física. Ao refletir sobre essa formação, ela
diz que isso a ajudou em sua organização pessoal, afinal, “[...] pra entender
o princípio, é preciso entender o que acontece hoje também, pra gente
poder manter a ancestralidade, pra gente não se perder”. Hoje, é mãe tam-
bém de João Santos e Gustavo Miranda, que lhe ajudam com o trabalho na
Casa Cultural, onde dá continuidade ao projeto Pequenos de João.
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Mestra Nani tem apoiadores/as. Com os/as discípulos/as de seu avô e
mestre, ela dá continuidade ao memorial que é o CECA (Matriz-Salva-
dor), no Forte, hoje Forte da Capoeira. A sua família também contribui
muito para dar continuidade a essa memória. Seguindo os ensinamen-
tos de seu avô, ela afirma:

46 47
“[...] a capoeira é uma filosofia de vida, ela me completa, me a partilha de seus conhecimentos com praticantes de capoeira angola
orienta, me instrumentalizou para ter direito de fala, de forma- de Portugal e da França, convites que recebeu e aceitou sempre com
ção, ter direito a ser cidadã, mulher, capaz e capacitada, poden- alegria e responsabilidade.
do trabalhar com a educação dentro e fora de casa”.
Mestra Nani enxerga a grandeza do legado que hoje cuida e lidera,
A capoeira deu à Mestra Nani dignidade, autonomia e formação. Ela assim como foi cuidada e preparada pelo grande líder que foi seu João
prossegue dando lição, como herdeira de quem é: “Ninguém pagou mi- Pequeno de Pastinha. Hoje, seus irmãos já não praticam mais a capoei-
nha formação. A capoeira angola me deu. A oportunidade que a vida ra, mas ela segue atuante, afirmando o seguinte:
me deu de ter sido criada por um mestre”. Sempre que possível, busca
dizer às crianças, jovens e alunos/as que teve a felicidade de ter um/a “[...] sou uma educadora com a consciência que minhas alunas
mestre/a em sua casa e que eles também precisam reconhecer os/as e meus alunos precisam ter dignidade, ser cidadãs e cidadãos,
mestres/as que têm em seus lares. Dessa maneira, valoriza a possibili- ser ouvidas/os. O que mais vale pra mim foi o que meu mestre
dade de ter passado a conhecer os/as mais velhos/as a partir da roda conseguiu me dar: a oportunidade de estar com os mais velhos
de capoeira angola. e as mais velhas, a oportunidade de ter conhecido e conhecer.
Aproveito a oportunidade de ser neta dele para aprender, de ter
Nesse espaço, ela entendeu que “[...] pra eu estar aqui, eles tiveram que acesso aos mestres através do meu mestre, estar com os/as mais
construir, tiveram que estar aqui primeiro”. Mestra Nani chama atenção velhos/velhas e aprender. Mas a minha realidade é como a de
ao fato de não ter escolhido ser neta de um mestre. Entende que isso muitas jovens que vêm da periferia: uma realidade social difícil”.
foi algo que a vida lhe deu, e quanta oportunidade ela enxerga nisso:

“Eu poderia ser simplesmente uma jovem sem estudo, cheia Grandes histórias devem ser
de filhos, trazendo dificuldades para minha vida, o que mui-
tas vezes é a realidade aqui. Eu luto muito pra mudar essa
exemplo. Esta é uma delas!
realidade da minha comunidade. A gente precisa fazer valer a Viva Mestra Nani de João Pe-
oportunidade de ter sido filho/a, neto/a de alguém”. queno!
Ela prossegue consciente de seu caminho e plena de gratidão: “Eu agra-
deço muito a meu avô a oportunidade de ser uma educadora, antes de
qualquer título”. Sua mestria na capoeira ocorreu em 2018, e quem faz
o reconhecimento é o discípulo do Mestre João Pequeno, o Mestre
Ciro Lima, na presença do Mestre Roberval.

Quanto a seu apelido, este vem de seu nome Cristiane/Nani. Todavia, ela
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recorda com carinho de ser chamada de Dinga apenas por seu avô, um
apelido que sua mãe também recebeu do mestre. O fato de hoje ser co-
nhecida como Nani de João Pequeno surgiu quando uma amiga a ajudou a
criar seu primeiro e-mail e escolheu “nanidejoaopequeno”, a fim de que ela
pudesse se comunicar melhor para cuidar da agenda de seu avô.

Com a capoeira angola, viajou por cidades de diferentes estados do


Brasil e, também, realizou viagens internacionais. Em sua bagagem está

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MESTRA NENA
Luciene Maria de Lima da Silva

Nascida em 10 de dezembro de 1976, em Feira de Santana, cidade


conhecida como Princesinha do Sertão, localizada no interior da Bahia,
Mestra Nena é filha de Francisco Luiz de Lima e Maria Benedita de
Lima, uma família bastante numerosa, formada por nove irmãos/ãs. Foi
sua irmã, que começou a praticar a capoeira antes dela, a sua maior
incentivadora. A origem de seu apelido se deu na infância.

Em meados de 1982, com apenas 7 anos, Mestra Nena começou a


apreciar a capoeira. Ela pôde assistir a uma aula na qual a sua irmã fazia
parte e se encantou pelos movimentos e pelos toques, ritmos e sons
que saíam dos berimbaus, ficando apaixonada, despertando o desejo
de fazer uma aula experimental.

Nesse dia, a aula foi ministrada pelo Mestre Keu, sendo bastante pro-
veitosa, a ponto da capoeira passar a fazer parte da vida dela. Nessa
época, Mestre Nonato - Raimundo Nonato Barbosa (in memorian) - era
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quem liderava o grupo, Gerson de Jesus Cruz, o Mestre Keu, era seu
aluno mais velho. Atualmente, o grupo tem o Mestre Dozinho e Mestre
Roque, que foram formados anteriormente a ela.

Mestra Nena é casada e mãe de um menino de 5 anos, Samuel. Ele


também é capoeirista e faz parte do Grupo São Francisco, instituição
que não tem uma denominação específica entre angola e regional, pois

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considera apenas a nomenclatura capoeira. O seu mestre costumava do. Não desistam dos seus sonhos em relação à capoeira, pois ela é real
usar o termo anglonal ou angloregional, e praticava os dois estilos de e todas podem alcançar o seu objetivo. Basta lutar para sentir o sabor
capoeira. da conquista”.

Ela começou a dar aulas na sua maioridade, pois no seu grupo a for-
matura se dá somente após os 18 anos. Como Mestre Nonato tinha
dificuldade de movimentação por conta de um problema de saúde, ela Belo exemplo de consciência,
sempre o acompanhou durante as aulas para realizar a demonstração
dos movimentos, assim, sentia-se muito grata por poder ajudá-lo.
responsabilidade e amor à
capoeira!
Ministrou aula no Grupo São Francisco e no Centro de Cultura Amélia Viva Mestra Nena!
Morim, onde realiza esse trabalho até hoje. A sua mestria foi concedi-
da no dia 23 de maio de 2011. No balanço da ginga e na cadência do
atabaque, a mestra pôde expandir essa arte cultural para outros esta-
dos, como Espírito Santo, Goiânia e Brasília. Também recebeu o convite
para divulgar a capoeira fora do Brasil, porém foi em um momento que
ela estava estudando e deixou essa viagem para uma outra ocasião.

Para além das aulas de capoeira, Mestra Nena também realiza oficinas,
com seriedade nos seus posicionamentos e compromisso com o tra-
balho que desenvolve, pois para ela “[..] aquilo que a gente recebeu,
a gente dá, e a gente só dá o que tem”. Em Feira de Santana existem
muitas mulheres difundindo a capoeira de forma esplêndida, “[...] mas
enquanto mestra só tem eu. Espero que em breve chegue outras para
somar”, relata a mestra Nena.

Nessa cidade, ocorre um belíssimo encontro feminino organizado pela


formada Gaza, aluna do Mestre Gago, que visa enaltecer o protagonis-
mo feminino no universo da capoeira, através da troca de experiências,
sendo que esse encontro é realizado tanto na Bahia como em outros
estados. A capoeira passou a ser a razão de viver para Mestra Nena,
assim como diz a música “sem capoeira eu não posso viver/ Sou peixe
fora do mar/ Passarinho sem voar/ Dia sem escurecer...” . É a capoeira
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que a leva à plenitude. Se lhe tirarem a capoeira, faltará alguma coisa a
ela, tornando-a incompleta.

Mestra Nena segue sua trilha jogando conforme a cadência do berim-


bau, já não teme vento forte e é consciente da importância de incenti-
var outras mulheres a serem mais confiantes. Como afirma, “Mulheres, Letra da música do Mestre Charm. Ele coordena a Abadá Capoeira em Goiás.
sejam fortes, resistentes e persistentes. Sonhem e continuem sonhan-

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MESTRA PATRÍCIA
Patrícia Mascarenhas Fernandes

Nascida na Bahia, na cidade de Salvador, em 23 de setembro de


1970, Mestra Patrícia é filha de Maria Auxiliadora Mascarenhas Fer-
nandes e Albenzio Fernandes. É a caçula de quatro filhas/os, duas
mulheres e dois homens gêmeos. Viveu uma infância em um mo-
mento em que a rua era o espaço de brincar, dessa forma, perdia-se
entre brincadeiras e amigos.

Na escola, já na adolescência, em 1986, aos 15 anos, acontece seu en-


contro com a capoeira, sob motivação de sua mãe. Mestre Ferreira (na
ocasião, professor) foi quem lhe ensinou a gingar e, até hoje, a Mestra
Patrícia tem orgulho de ser sua aluna e integrante do Grupo Urucungo,
fundado em 1989. Ainda iniciando sua prática, foi fisgada pela capoeira
e logo buscou outras experiências para além da escola, foi quando teve
uma passagem pelos ensinos do Mestre King Kong, experiência que a
levou a conhecer as rodas de rua e festas de largo.
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Ao retornar a sua capoeira de origem, com Mestre Ferreira, torna-se
uma grande incentivadora da entrada de mulheres nos treinos de ca-
poeira e, em pouco tempo, as meninas tornam-se grande maioria no
grupo. Segundo a mestra, o grupo Urucungo ficou conhecido como
aquele no qual as meninas jogavam muito na época. Nesse período, já
conhecia os redutos mais frequentados da capoeira e marcava presen-
ça com assiduidade, como a Academia do Mestre João Pequeno, a roda

54 55
dos Meninos da Ilha no Mercado de Mar Grande (Mestre Medicina), Como aluna formada, começou a se interessar em dar aula para crian-
roda do Mestre Virgílio da Fazenda Grande, Mercado Modelo, Terreiro ças, uma vez que seu Mestre Ferreira tinha como foco adultos e adoles-
de Jesus, entre outras. centes. Assistia às aulas de Mestre Daltro, ficava lá no cantinho obser-
vando tudo. E logo começou a colocar em prática com as crianças nas
Em casa, escutava histórias de seu pai, que foi aluno de Lourimbau, o escolas. Mais tarde, passou a ensinar a adultos em um clube da cidade,
Homem Mau. Na ocasião, as histórias pareciam mais lendas que re- esse foi um momento muito importante para ela, foi quando assumiu
alidade, e só anos mais tarde comprovou a existência do mestre. A um espaço sozinha, além das escolas. Ela conta que era comum che-
mestra lembra que, no final da década de 80 e início da década de 90, garem pessoas procurando quem era o professor e se surpreendiam
passou a frequentar as casas de show folclórico de Salvador, entre elas, quando ela se apresentava, isso em 1992, quando não era comum ter
Moenda, na Boca do Rio, Solar do Unhão, com Mestre Dinho, Tenda mulheres liderando turmas de capoeira. Nesse processo, ela realizou
dos Milagres, em Amaralina, e no Alto de Ondina. Havia um momen- seu primeiro batizado em 1994.
to do show que a adolescente Patrícia aguardava ansiosa, era quando
eles convidavam a plateia para jogar. Ela subia e jogava, às vezes, o Através da Bahiatursa, fez uma turnê de capoeira em 1995, pelo Reino
pau quebrava ali no palco, achavam de resolver desvantagens de ou- Unido, quando conheceu várias cidades por meio de uma companhia
tras rodas, era quando o show deixava seu lado ensaiado e passava a de dança. A turnê durou vinte dias, e essa foi uma experiência que tam-
realidade da capoeira. bém marcou sua vida. Mais tarde, viajou para Barcelona, passou um
tempo por lá, com intuito de estudar, já que sua formação inicial era em
Nesse momento, a capoeirista Patrícia conhece Mestre João Grande, turismo, mas também daria aula de capoeira. Conseguiu se estabelecer,
na Moenda, onde ele fazia show. Durante o dia ele trabalhava no posto apesar das dificuldades, e logo começou a ministrar aulas para crianças
de gasolina em Ondina, perto de onde ela estudava, e no final da tarde, e adultos, em 1998. Ao retornar de Barcelona, estava um pouco afasta-
quando ia embora, muitas vezes pegava o ônibus com ele. Ela recorda da do seu mestre, consequentemente, afastou-se um pouco do cenário
que ele andava com o berimbau cheio de fita do Senhor do Bonfim, da capoeira. Mais tarde, Patrícia se torna mãe, além de fazer uma nova
todo colorido, era o berimbau que ele usava no show. Tinha uma rotina graduação, dessa vez em psicologia.
de sair do posto e já ia direto para a Moenda, emendava um trabalho no
outro. Ela observava que ele era um senhor e ficava até a madrugada, e Ela cria a OCA - Oficina de Cultura e Arte - e passa a desenvolver
como ele era a grande atração, praticamente fazia o show todo: jogava um trabalho com crianças, utilizando a capoeira como uma das fer-
capoeira, dança dos orixás, sambava e dançava Omolu lindamente. Ela ramentas propulsoras do desenvolvimento e da formação. Fora do
relata que, quando ele foi para os Estados Unidos, foi um descanso cenário da capoeira, sem frequentar as rodas, deu espaço a comen-
para ele, além de um reconhecimento. tários de que ela tinha parado a capoeira por não estar presente no
circuito convencional de rodas e batizados, no entanto, ela conti-
Mestra Patrícia lembra que, em sua época de aluna formada, em 1991, nuava trabalhando com a capoeira em outra perspectiva, estando
o aluno formado tinha uma importância muito grande, hoje, infelizmen- muito contente com seu trabalho e seus resultados.
te, essa graduação se perdeu. A sua formatura foi um evento muito
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grandioso, veio gente do Brasil todo, momento em que o grupo estava Quando tinha uma horinha vaga, aproveitava para treinar com seus
muito próximo ao Mestre Bobó. Ele foi o padrinho desse evento e fi- amigos e camaradas. Mais tarde, ela fez questão de retornar ao con-
cou muito feliz. Nesse momento apresentava uma condição bem frágil vívio da capoeira e, a partir de 2014, consegue unir suas duas for-
e doente. Nesse dia, muita gente da capoeira angola estava presente, mações, a capoeira e a psicologia e, desde então, vem promovendo
parece que foram para se despedir dele. A relação de cuidado com o uma formação para capoeirista que tem sua prática com criança.
Mestre Bobó marca a história dela, pois quase que diariamente passava Esse projeto tem se constituído como um importante espaço de re-
em sua casa no Dique Pequeno para saber de sua saúde e bater papo. flexão sobre a singularidade da capoeira e o público infantil. A mes-

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tra se diz defensora da capoeira na escola, afirmando, ainda, que ela é
resultado desse processo.

E foi em 2015 que ocorreu sua formatura de mestra de capoeira, con-


cedida pelo Mestre Ferreirinha.

Mestra Patrícia é uma mulher


à frente de sua época. Que sua
história sirva de inspiração
MESTRA PAULINHA
Paula Cristina da Silva Barreto
para diversas gerações que
continuam lutando por seus
direitos na roda da vida.
Viva Mestra Patrícia!

Nascida em 30 de junho de 1963, na cidade de Vitória da Conquista, na


Bahia, Mestra Paulinha é filha de José Celestino da Silva e Sebastiana
Menezes Pereira. Tem duas irmãs, dez sobrinhos/as, dois sobrinhos-ne-
tos/as; e nenhum deles seguiu o caminho da capoeira. O seu esposo
também é capoeirista, conhecido nesse universo como Mestre Poloca.

Vivia em Vitória da Conquista com sua mãe, Sebastiana, sua avó, Es-
ther, e com duas irmãs, Celeste e Lourdes, e em contato com tias e
primas da família de sua mãe. Dona Nininha, como era conhecida, era
uma mulher pobre, com pouca instrução, parda, e o seu pai, José, era
um homem branco, farmacêutico, 30 anos mais velho que ela, cuja fa-
mília era de classe média e alta, residente em Salvador.

Quando Paulinha e sua irmã mais velha estavam em idade escolar, seu
pai as trouxe para morar com ele em Salvador, para estudar em um co-
légio particular de propriedade de alguns de seus familiares. Ela come-
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çou a fazer aulas de capoeira em 1982, no Grupo de Capoeira Angola
Pelourinho - GCAP, em Salvador, tendo como mestres Moraes, Cobra
Mansa e João Grande. A mestra lembra como tudo começou: “eu estava
com 19 anos e começando minha vida como estudante universitária na
Universidade Federal da Bahia - UFBA, onde cursava Ciências Sociais”.

58 59
No final da década de 1990, Mestra Paulinha foi residir em São Paulo
por quatro anos, enquanto cursava o doutorado na Universidade de
São Paulo - USP, e Mestre Poloca a acompanhou. Nesse período, aju-
daram a consolidar o Grupo Nzinga, em São Paulo, fundado em 1995
por Mestra Janja.

Seu apelido (Paulinha) surgiu por ser muito magra, quando era jovem e
já discípula de capoeira. Começou a dar aulas quando estava no GCAP.
E, mais tarde, continuou a dar aulas no Grupo Nzinga, à medida que os
diversos núcleos foram criados. Mestra Paulinha já visitou muitas cida-
des e países para participar de eventos de capoeira, ou outros eventos
que tratavam do tema. A sua primeira viagem internacional, em 1995,
foi para os Estados Unidos, quando fez parte da comitiva de integran-
tes do GCAP, liderada por Mestre Moraes. E não parou mais...

Ela foi reconhecida como Mestra pela comunidade da capoeira em


meados dos anos 2000, quando atuava no Grupo Nzinga de Capo-
eira Angola, em razão da sua trajetória em defesa da capoeira como
arma forte na luta antirracista e feminista, no Brasil e na diáspora.
Ouçamos a mestra:

“A prática da capoeira angola (o único estilo que eu pratiquei) é liberta-


dora no sentido de nos fazer pensar e rever tanto a história quanto os
problemas sociais, e de nos fazer crer nas possibilidades infinitas que
temos de superação e de aprendizagem. E o melhor da capoeira é que a
sua prática requer a convivência com outras pessoas, fazendo com que
estas se comuniquem, dentro e fora da roda de capoeira, respeitando
as diferenças que existem entre elas”.

A Mestra Paulinha tem seu pro-


tagonismo marcado pela luta
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antirracista e feminista. Que a
sua história incentive outras mu-
lheres na capoeira a levantarem
essa e outras bandeiras sociais.
Viva Mestra Paulinha!

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MESTRA PEQUENA RASTA Sueli Merice dos Santos

Nascida em 27 de janeiro de 1976, em Santo Antônio de Jesus, é filha


de José Francisco dos Santos e Maria Zulmira de Jesus, família formada
por dez irmã/ãos, todas/os capoeiristas, indicando a relevância e par-
ticipação da capoeira na cultura do Recôncavo Baiano. Sua iniciação
se deu em 1988, aos 12 anos de idade. Seu mestre, desde então, é o
Mestre Gabriel, e sua participação na Associação de Capoeira Africana
nunca se encerrou. Hoje, é uma de suas maiores representantes.

O Recôncavo Baiano é berço para a capoeira, uma região extremamen-


te presente na história do ‘nascimento’ desse país. Seus descendentes
são remanescentes de um tempo que ainda reflete em tudo que são.
Contra uma lógica colonial que implantou o racismo estrutural como
sua marca, sempre houve lutas e resistência por parte da cultura popu-
lar, a qual respondeu com estratégia, fina inteligência e prática huma-
nitária. Esse é o espaço onde Mestra Pequena Rasta desenvolveu-se
enquanto capoeirista.
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E nesse contexto, visibilidade e divulgação são fundamentais para
ações mais certeiras de acolhimento daqueles que são subjugados cul-
turalmente. Assim, Mestra Pequena Rasta tornou-se uma excelente re-
presentante de sua importante região, Santo Antônio de Jesus. Lá, atua
com afinco e persistência em ambas as áreas, urbana e rural, sendo

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uma excelente representante do que podemos aprender com e admirar
em uma mulher do interior, preta e capoeirista.

Ela é uma praticante de capoeira regional e obteve seu reconhecimen-


to como mestra em 27 de julho de 2010, sendo considerada a primeira
do Recôncavo Baiano. Seu apelido de capoeira tem origem na infância,
e este se refere ao seu tamanho, sua baixa estatura, contudo, é uma
mulher de enorme poder de atuação. Ministra aulas de capoeira desde
1997, 9 anos após ter iniciado sua firme trajetória. É solteira e tem um
filho, também capoeirista, a quem considera um grande companheiro.
MESTRA PREGUIÇACleonice Damasceno Silva

Mestra Pequena Rasta conheceu muitas cidades e estados brasileiros


através da capoeira. Dentre eles, um que marcou sua vivência foi o
Ceará. Quando fala sobre a capoeira, ela expressa a própria experi-
ência de seus ancestrais: “Capoeira significa minha vida!”. Ela pontua
importantes aspectos de mais uma vida de envolvimento e dedicação à
capoeira: “Eu vivo e respiro ela. Todos os dias”.
Nascida em Salvador, em 28 de março de 1976, Mestra Preguiça é fi-
Além disso, destaca o potencial de transformação social da capoeira lha de Maria José Damasceno Silva e Edson Mendes da Silva, famí-
quando lembra que, por meio dela, mudou sua própria vida e a de mui- lia formada por seis irmãs/ãos, sendo a única capoeirista da família. É
tas outras pessoas. A mestra é conhecida por ser excelente cantadora conhecida por esse nome na capoeira regional pela expressão flexível
de capoeira e tocadora de berimbau. Compõe e já gravou CD com sua de seus movimentos. Primeira mestra charangueira (lenço branco) da
potente musicalidade. Sua voz é mensageira de uma forte ancestrali- Filhos de Bimba Escola de Capoeira, tendo obtido seu reconhecimento
dade e demonstra essa conexão quando reflete sobre sua relação com em 2010. No entanto, antes disso, ela já era chamada de mestra pela
essa cultura hoje em dia: “Para mim, ela é luz!”. comunidade.

Mestra Pequena Rasta compartilha seu ponto de vista e afirma, a partir Sempre foi praticante de capoeira regional, tendo iniciado a prática em
da observação do seu dia a dia, que a capoeira é um esporte e cultura 1987, aos 11 anos, com Mestre Bozó, com quem treinou até 1989.
que muda vidas. A partir de 1990, passa a ser discípula de Mestre Nenel, e integrante
ativa da Filhos de Bimba, escola onde, também, começou a dar aulas
em 1994. Ela é mãe de dois filhos e seu companheiro é Manoel Nasci-
mento Machado.
Ela é uma fonte de inspiração e
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Habilidosa e firme em sua ação na roda da capoeira, ela nos conta so-
habilidosa capoeirista, merecen- bre uma infância feliz:
do ter seu legado conhecido.
Viva Mestra Pequena Rasta! “[...] fora do horário da escola, andava de carrinho de rolimã,
patinete, joguei bolinha de gude, empinei arraia, pulei amareli-
nha, garrafão, baleô, elástico. Fiz tudo que os meninos faziam.
Participei das quadrilhas nas festas de São João!”.

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Dentre tantas boas memórias, ela destaca as férias na Ilha de Itaparica,
onde ia com o pai, e comenta que aquela era uma época bem diferente
da atual, pois “[...] nem tínhamos acesso à internet e grande parte dos
nossos brinquedos eram construídos por nós mesmos”.

A capoeira oportunizou à Preguiça uma jornada de participação em


eventos nacionais e internacionais. Conhece, por meio da capoeira, vá-
rias cidades no Brasil, e países como Itália, França e Alemanha. Também
viaja com frequência para diversas cidades nos Estados Unidos. Em to-
das essas viagens, ela inspira capoeiristas e repassa seus conhecimen-
tos sobre capoeira regional.

Para a mestra, a capoeira pode se expressar de várias formas, e é a sua


filosofia de vida: “Tudo que eu tenho vem dela”. Quem conhece Mestra
Preguiça se encanta pela sua competência técnica e plástica, admira
sua objetividade no jogo. Ela é o resultado de muita dedicação e talen-
to, expressa autoconfiança e a velha sabedoria daquelas pessoas que
falam pouco, mas que espalham grande conhecimento.

Uma autêntica capoeirista, além


de importante representativida-
de na preservação e ensino do
legado da capoeira regional.
Viva Mestra Preguiça!
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MESTRA RAQUEL Raquel Cordeiro Leite

Nascida em 1968, em Bom Jesus da Lapa, Mestra Raquel é filha de pai


cearense e mãe paraibana, que se conheceram em uma das tradicionais
romarias que atrai para o município gente de todo o Brasil. Essa mulher
de vanguarda é neta de um paraibano que se instalou na cidade, com
o ofício de mascate (vendedor ambulante), fez carreira na política e
conquistou o cargo de prefeito. Lá, sua mãe constituiu família e, dentre
seus sete irmãos, apenas Raquel trilhou o caminho da capoeira.

Ela entrou em contato com a capoeira no início dos anos 80, por volta
dos dezessete, dezoito anos, quando trabalhava na Secretaria de Turis-
mo da cidade e conheceu seu mestre e companheiro de vida, Josafá Al-
ves de Oliveira, o Mestre Fazinho. Ele é pai de seus quatro filhos, Ravi,
Mahatma Indiane, Indira e Bianca Saíra. Ele havia chegado de Santo
Amaro e defendia a capoeira de modo firme, buscando abrir caminhos
para estabelecer seu trabalho, numa época em que a capoeira era mui-
to marginalizada ainda.
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Ao assistir a uma apresentação de capoeira, Mestra Raquel se encantou
e iniciou seu caminho inseparável dessa cultura, cuja função principal
em sua trajetória foi a transformação social e criação de oportunidade
de outra realidade para muitas crianças, que nos anos 80 enfrentavam
a grande desigualdade social da região, perambulando e pedindo nas
ruas, contando com os numerosos romeiros que chegavam constan-

68 69
temente a esse local de fé. Assim, transgredindo a expectativa da Com esse posicionamento, Mestra Raquel despertou essa consciência
sociedade vigente na época, com poucas companheiras, ela iniciou em muitos grupos que hoje a agradecem por ela ter ajudado a tirar
sua prática. A mestra lembra que elas foram muitas vezes tachadas esse véu de não perceber que homens líderes de grupos de capoeira,
de ‘piriguetes’. na maioria das vezes, não davam visibilidade para suas atuantes com-
panheiras.
Ao se envolver com o Mestre Fazinho, a relação com sua família se
tornou conflituosa e, ao engravidar de seu primeiro filho, Ravi, hoje Sua associação e parceiros de grupos realizaram muitos eventos pionei-
contramestre de capoeira, partiu sozinha para Santo Amaro em busca ros em Bom Jesus da Lapa. Fizeram 24 horas de capoeira e depois 12
de maior dignidade para suas escolhas. No entanto, a vida no local era horas de capoeira na cidade. Os primeiros eventos ocorreram em 1987
difícil, e a jovem Raquel retornou a Bom Jesus da Lapa para se unir de e 1990. Realizaram eventos nos quais aconteciam batizados na praça e
vez a Fazinho e, juntos, com espírito de companheirismo, enfrentaram também a inclusão de outros grupos culturais. Ela tem consciência de
muitos desafios. que sua atuação e a de Mestre Fazinho serviram como inspiração para
muitos grupos.
Uma das fontes de renda do casal era realizar rodas de capoeira em fei-
ras, em regiões vizinhas, onde arrecadavam dinheiro a partir do público Hoje, Mestra Raquel já está prestes a realizar a segunda edição do Iê
que assistia; outra fonte foi a habilidade de fazer berimbaus para ven- Capoeira, uma proposta que une mulheres capoeiristas em Bom Jesus
der nas lojas de artesanato e lembranças locais que recebiam turistas, da Lapa para, juntas, jogarem, tocarem, se conhecerem e aprenderem
principalmente em épocas de romaria. suas histórias, criando empatia por suas dificuldades e conquistas. A
primeira edição do Iê foi contemplada no primeiro edital estadual ex-
Aos poucos, a família de Raquel foi compreendendo sua opção e as re- clusivo para a capoeira, realizado pela Secult, em 2016. Mais um feito
lações começaram a se refazer. A mestra já não era mãe apenas de Ravi histórico da atuação relevante da Mestra Raquel. Sobre seu reconhe-
quando, em determinado momento, receberam uma ação de despejo cimento como mestra de capoeira, em 2015, revela que ficou preocu-
para desocupar o espaço público onde moravam e desenvolviam o tra- pada e não foi simples, mesmo sabendo que muitos/as alunos/as já a
balho com a capoeira. Depois de certa luta na justiça, eles conseguiram chamavam de mestra:
um terreno, iniciaram a construção do ponto de cultura que hoje lide-
ram através da Associação Lapense Ginga Bahia, idealizada por esse “Eu fiquei preocupada, porque era muita responsabilidade pra
casal companheiro. Nada foi fácil, mas tudo valeu a pena, na avaliação mim. O que eu queria mesmo, como capoeirista, era ajudar na
da mestra. mudança de mentalidade. Eu reflito muito sobre isso de você ter
sua história, de ter um caminhar. E as coisas não são fáceis, mas
Ela começou a dar aula na academia e criou gosto pelo ofício, a partir alcançar o objetivo faz ver que valeu a pena”.
do recebimento do cordão de monitora que recebeu no início dos anos
90. Sobre aquele momento, ela afirma: Quando recorda as oportunidades que recebeu da capoeira, ela lembra:
MALTAS DE SAIA - Histórias das mestras de capoeira da Bahia

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“[...] comecei a buscar conhecimento, comecei a me pronun- “[...] a capoeira me proporcionou coisas que talvez eu não alcançaria...
ciar. Eu ia pra evento em que eu percebia que as esposas dos Eu não teria andado de avião, eu não teria conhecido ministros da cul-
mestres basicamente faziam tudo no evento. O evento era tura. O círculo de amizades e o intercâmbio cultural que eu alcancei...
comandado por elas e durante o evento não tinha nem um foi a capoeira que me proporcionou. Eu conheci algumas capitais do
muito obrigado a elas. E eu comecei a levantar a bandeira meu país, conheci muitos mestres, que a gente tá aqui na ponta do
dessa questão...de falar. De valorizar a mulher que está nos sertão... Eu tive a oportunidade de levar meus alunos pra conhecer
bastidores. Ela tem que ser vista”. grandes mestres, o Mercado Modelo, tudo foi através da capoeira”.

70 71
Ela percebe hoje a grandeza do trabalho social que realiza há muito
tempo: “Eu terminei agora a faculdade de serviço social e isso me aju-
dou muito a perceber que eu faço um trabalho social de muita grande-
za, eu sou uma agente cultural”. A mestra avança a cada dia na consci-
ência sobre a luta contra uma sociedade machista: “Na universidade,

MESTRA SONINHA
eu comecei a buscar mais os meus direitos de mulher, de não baixar a
cabeça, de falar não e de não me omitir”. A mestra continua:

“Capoeira pra mim é vida, ela me completa. Hoje eu não me


vejo sem a capoeira. De falar eu vou desistir da capoeira e aí, eu Sônia Maria da Silva Borges
olho os olhares das crianças que vivem sem oportunidades... me
abraçam. A capoeira me passa energia através delas. De falar,
pô, vale a pena eu estar viva, vale a pena eu passar por muitas
coisas porque a capoeira transmite essa vitalidade pra mim”.

Por fim, para nos deixar ainda mais encantadas/os e reflexivas/os,


Mestra Raquel nos traz uma importante contribuição sobre atitudes
de violência e machismo que presencia, e que hoje não mais se cala, Nascida em 09 de maio de 1969, na cidade de Muritiba, Recôncavo
marcando a sua responsável representatividade como uma mestra de Baiano, Mestra Soninha é filha de Manoel Borges dos Santos e Alaíde
capoeira que deseja que essa potente cultura seja um espaço seguro da Silva Borges, nona filha de uma família formada por onze filhos/as,
de desenvolvimento para as mulheres que desejam ser capoeiristas e/ cinco homens e seis mulheres. Sua infância foi feliz e muito ativa cor-
ou praticar a capoeira: poralmente. Como ela afirma:
“Tem atitudes de mestres, tipo assédio em eventos...mestres com “Muritiba é uma cidade pequena, pacata, na época em que eu
nome a zelar, e vejo que muitas meninas, por respeito a eles, elas era criança, era muito tranquila. Então, a gente vivia brincando
se calam, se omitem. Eu acho isso inadmissível. Isso tira toda a na porta de casa, na rua, na casa dos vizinhos. Só tinha as regras
minha admiração e penso... não! Isso dá um desencantamento, de casa, que minha mãe sempre colocava: hora de tomar banho,
a palavra é essa. Mas vejo também que a gente precisa falar de almoçar, horário de estudar... Então, tinha que seguir só os
sobre isso. Tem que abordar esses assuntos nos eventos. São horários. Se seguisse tudo direitinho... e tinha que fazer sempre
muitos relatos...”. alguma coisa dentro de casa: aprender a valorizar o trabalho do
outro, né? Brincava na rua, pegava fruta do quintal do vizinho.
A capoeira, com certeza, Eu fui uma menina muito danada. Ia pro rio, era proibido ir pro
precisa de mulheres conscientes
MALTAS DE SAIA - Histórias das mestras de capoeira da Bahia

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rio, mas eu ia sem falar nada, não mentia, eu omitia, mas eu ia!
como ela, e sua luta e sucesso Montava no cavalo no pelo, tinha muitos amigos. Eu era uma
menina parecendo uma menininha de rua. Muito danada e feliz
dignificam nossas ancestrais também”.
e cada uma de nós! AXÉ! Viva
Mestra Raquel! Aos 18 anos, encontrou a capoeira. Fazia muitos esportes, jogava vôlei,
basquete e amava futebol, este uma grande paixão que dominava bem,

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por isso tinha tantos amigos. Como morava em frente ao clube, os ami-
gos passavam por lá e a chamavam “Bora, Soninha! Tá na hora!

Mestra Soninha desejava fazer uma luta e, nesse mesmo clube, tinha
caratê, mas ela achou muito sério. Bonito, mas sério. Em determinado
momento de sua adolescência, em 1987, foi até Salvador para o apar-
tamento que a família tinha, e onde estavam morando suas irmãs mais
velhas, para receber parentes que vinham de Brasília. Nessa época, em
Amaralina, existia uma churrascaria, Roda Viva, onde foram almoçar, e
estava acontecendo uma apresentação de capoeira. Ela lembra:

“Até arrepio. Lembro como hoje. A gente preparando o prato


para comer e quando eu me vi, eu estava de frente pro palco,
com o prato na mão, assistindo à apresentação. Achei a coisa
mais linda do mundo e eu disse pronto! Já sei o que eu quero
fazer: capoeira!”

Pouco tempo depois, uma amiga lhe avisou que haveria uma turma de
capoeira em Cachoeira, cidade bem próxima de Muritiba. Essa amiga
perguntou se ela não gostaria de participar, e Soninha, imediatamen-
te, se animou: “Era tudo que eu queria!”. Contudo, precisou enfrentar
a dificuldade de aceitação dessa decisão por parte de seu pai e mãe,
pois, como recorda, “não era todo mundo que aceitava mulher jogando
capoeira”. Mesmo assim, insistiu com a mãe e afirmou: “minha mãe, eu
vou fazer capoeira!”.

Então, entrou em negociação com a mãe e com o pai e ouviu a deter-


minação de que ela só poderia fazer capoeira se tivesse alguém ‘de
confiança’ que a levasse e a trouxesse de Cachoeira. A esperta Soninha
não perdeu tempo e organizou-se com um amigo capoeirista, que che-
gou a ir a sua casa para conversar com sua mãe e se comprometeu em
levá-la e em trazê-la dos treinos. E, assim, ela pôde começar a sua forte
jornada na capoeira. Nunca parou! Depois disso, vivenciou o orgulho
MALTAS DE SAIA - Histórias das mestras de capoeira da Bahia

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que sua mãe e pai passaram a ter ao apresentá-la como professora de
capoeira para amigos e em ambientes que frequentavam, como a Aca-
demia de Letras, da qual seu pai era membro.

Seu grupo de capoeira sempre foi o Grupo Raça, e seu mestre sem-
pre foi Luís Medicina, que a reconheceu como mestra de capoeira em
2010. Quando perguntamos que tipo de capoeira Mestra Soninha pra-

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tica, ela responde imediatamente: “Sou capoeira. Porque, na verdade, no que vai dar, de roda, de jogo, de conhecer pessoas, de co-
ela é um todo. Eu acho que não dá pra definir estilos. Eu sou capoeira!”. meçar a me soltar pra falar...a capoeira fez isso comigo! Porque
mesmo sendo professora de educação física, eu sou tímida. En-
No início dos anos 90, Soninha já ensinava e entendeu que deveria tão a capoeira me ajudou muito.”
formar uma turma de capoeira para mulheres. A turma encheu, foi um
sucesso. E, aos poucos, essa turma foi se tornando mista e perdura até Mestra Soninha deseja que sua vivência e exemplo na capoeira
hoje. Mestra Soninha tem um irmão, mais velho que ela, que é também sejam fatores motivadores para que outras pessoas possam prosseguir.
praticante de capoeira e iniciou a prática sob a sua orientação. Mais uma vez, declara uma sábia opinião:

A mestra é professora de educação física e também dá aulas de ca- “A gente precisa ter coragem pra enfrentar os problemas, não
poeira na cidade onde permaneceu, Muritiba. Teve oportunidade de desistir. A gente tá aqui pra enfrentar. Se acontecer uma coi-
viajar pelo exterior e outros estados do Brasil através da capoeira, mas sa que pareça às vezes ruim, será que é ruim completamente?
valoriza também as várias visitas que pôde fazer aos interiores onde Então, a gente tem que saber tirar proveito das coisas. Seja pa-
esteve abrilhantando eventos, dando aulas, participando ativamente e recendo bom ou ruim. Não importa. Aprender a ver, a observar
inspirando muita gente. criticamente e a tomar a sua própria decisão. E assumir, né?!

Mestra Soninha mostrou sua forte personalidade e contou que, em al-


gum momento, ganhou alguns apelidos, por exemplo, o de Mônica (o
que remetia à sua atitude destemida e de força na roda), porém eles
Que suas potentes palavras
“nunca pegaram”. Ficou conhecida como Soninha mesmo. Também afir- sejam força para todas as pes-
ma que está em um relacionamento homossexual estável e não tem soas que compõem o universo
filhos. Nesse sentido, é muito importante, na atualidade das lutas de da capoeira.
gênero que ocorrem na capoeira, o seu exemplo, sua atitude e resistên-
cia nesse meio, pois, diante da presença de mulheres e outros gêneros Viva Mestra Soninha!
não binários, há necessidade de enfrentamento a preconceitos diver-
sos. Esse é mais um ponto que marca a relevância da Mestra Soninha
como uma grande referência na capoeira. Segundo ela:

“[...] capoeira para mim, eu posso falar, é minha vida. Eu fiz edu-
cação física por causa da capoeira. A capoeira me ajudou muito.
Foi o que me manteve, inclusive, financeiramente, e me manteve
muito bem emocionalmente, pra conseguir passar pelos proble-
mas. Então, a capoeira é minha vida! Nunca deixei de jogar ca-
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poeira ou de treinar. Inclusive, gosto mais de treinar do que de
jogar. Gosto muito de treinar!”.

Ela prossegue na sua compreensão a partir da vivência profunda


na dinâmica dessa arte:

“Todo momento que te faz meter a cara num problema pra ver

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MESTRA TAÍZA Taísa da Silva

Nascida em 06 de fevereiro de 1978, em Santo Amaro da Purificação/


BA, Mestra Taíza é filha de Antônia dos Santos Silva e Antônio Patrício
da Silva, uma família composta por vários filhos/as. Sua mãe “fez três
barrigas de gêmeos” e mais outras quatros gravidezes, sendo a mestra
uma das gêmeas. Ao lado de seu companheiro, apesar de não ser mãe,
sente-se mãe de seus alunos, crianças e jovens, acompanhados por ela
enquanto educadora da capoeira, ferramenta pedagógica que conside-
rada valiosa.

Seu início na capoeira deu-se aos 15 anos, diante do contato com a


prática, a qual ocorria no bairro Pilar, onde morava, porém, seus pais
não a autorizavam, então, ela não tinha como se matricular, pois era
menor de idade. Quando começou a cuidar de uma criança, a mãe des-
ta, ao ver uma roda na praça da Purificação, matriculou a criança e, dois
meses depois, Taíza se matricula também na ACARBO, com Mestre
Macaco, em 10 de maio de 1994.
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Já na infância, há, por parte dela, uma tomada de consciência sobre
oportunidades e desigualdade social:

“Minha vida de criança...eu morava em Santo Amaro, mas em


uma usina rural. E com 4, 5 anos, meu pai vem para a área ur-
bana e viemos junto. A casa não tinha nada, meu pai começou a

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construir aos poucos. Viemos passar uma festa de São João aqui vidados especiais que celebraram durante vários dias (01 de agosto de
e acabamos não voltando mais. Eu passei por vários trabalhos, 2019 a 31). A celebração de sua mestria a marcou muito, motivando-a
porque meu pai não tinha condição de suprir minha vida finan- a continuar seu sonho: a construção de seu espaço e maior poder fi-
ceira e eu tinha vontade de construir algo, de poder ajudar meus nanceiro para alavancar seus projetos com capoeira-educação.
familiares, meus pais. Graças a Deus, meu trabalho me deu essa
oportunidade. Então, não foi a vida que eu esperava, mas foi a Durante seu percurso na capoeira, Mestra Taíza conheceu cidades
vida que meu pai pôde me dar, e eu dou graças a Deus por ele e estados, tais como Rio e Espírito Santo. Tudo foi proporcionado
ter me mostrado o caminho. E por esse caminho, me encontrei pela capoeira, algo que ela nunca poderia imaginar. Em breve, está
na capoeira, ela me abriu espaços e me preparou pra vida, me programada uma viagem internacional, adiada por causa da pande-
deu formação intelectual. A capoeira é um divisor fundamental mia. Ela é mais uma mestra que considera a capoeira ‘sua vida’, para
na minha vida”. além de ela ser uma “manifestação de apoio, uma cultura que eleva
a autoestima, traz transformação de vida e cidadania”. Acredita que,
No início, era difícil conciliar a capoeira, o trabalho de cuidadora e o se as pessoas soubessem sobre toda essa potência da capoeira, o
estudo, assim, levava a criança para capoeira, o primeiro horário era um mundo estaria mudado.
treino especifico para as crianças, logo em seguida a deixava em casa e
voltava novamente para participar do treino com os adultos. Oriunda Mestra Taíza, enquanto mulher, não pensa apenas em ‘ser mulher’,
da escola ACARBO, continuou sendo discípula do Mestre Macaco, mas porque, segundo ela, a capoeira pede união entre todos. Além disso, a
acredita que é necessário criar seu próprio espaço de atuação, “até por- mestra acredita que a luta deve ser assumida por todos e não apenas
que, pra chegar a uma certa graduação, você tem que passar por essa uma luta feminina, ou seja, no dizer dela, “Fazer o bem sem olhar a
trajetória, ter seu espaço e dar sua aula”. Hoje, integra a escola ACISSA, quem”. Acredita, também, que podemos fazer mais dessa forma, pois a
a Associação Cultural Sementes de Santo Amaro e é parceira do Mestre capoeira ‘não pode ser só individual’.
Bendengó. Em sua concepção, o mais importante é afirmar-se como
capoeirista, sem necessariamente se preocupar com as diferenças en- E, assim, essa santamarense ocupa o espaço de mais uma ilustre mes-
tre as práticas. Desse modo, ela afirma: tra do Recôncavo Baiano, e que tem sua história de vida entrelaçada a
tudo que hoje em dia busca fazer, por meio da capoeira, para a capoeira
“[...] eu me considero capoeira, porque se for angola, eu vou e seus e suas praticantes. Uma fruta boa da capoeira!
jogar, na medida do possível, se for regional, eu vou jogar, na
medida do possível...Então, eu sou capoeira de Santo Amaro!
Sou capoeira!”.
A mestra finaliza dizendo
Mestra Taíza começou a dar aula de capoeira em um espaço no Natal/ que “a capoeira é história de
DERBA, ainda quando era cordel azul e amarelo (sua caminhada passa um povo e o povo sem história
por mais de 6 cordéis), por volta de 1995. Com essa experiência, en- não existe”.
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xergou a necessidade de oferecer uma formação mais ampla para as
crianças, por isso, ampliou seu trabalho. Viva Mestra Taíza!

Após anos de trajetória na capoeira, em 31 de agosto de 2019 tornou-


-se mestra reconhecida pelo Mestre Bendengó. Esse foi para ela um
momento inesquecível, celebrado durante um mês de festa, em que
demonstrou todo seu encantamento, mesmo nervosa diante dos con-

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MESTRA TEKKA FOGUETE Tereza das Candeias dos Santos

Nascida em Nazaré das Farinhas, na Bahia, Mestra Tekka Foguete vem


de uma família numerosa, com sete irmãos/ãs, e desde criança sempre
foi muito esperta e observadora, começando a perceber que existiam
muitas coisas que a incomodavam. O tempo passou e ela pediu au-
torização da sua mãe para ir trabalhar como cuidadora de criança na
capital, mas sabia que não seria por muito tempo, pois almejava ampliar
os seus horizontes, devido ao seu potencial empreendedor e criativo.

Os seus passos foram lentos, porém contínuos, até que surgiu a opor-
tunidade de trabalhar em um restaurante bastante conhecido, o Maria
de São Pedro, e em seguida ela buscou ajuda para abrir seu próprio ne-
gócio no Mercado Modelo, em Salvador, com peças exclusivas, sendo
algumas de sua própria criação, e foi nesse local que ela teve o primeiro
contato com a capoeira, ficando muito encantada.

Sempre foi inovadora, dando preferência a locais diferentes e inspira-


dores. A Mestra Tekka Foguete gosta de conviver cercada de pessoas,
misturas e cores. E devido à sua expressiva forma de se comunicar,
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conseguiu que as suas peças tivessem visibilidade rapidamente, che-
gando a ser divulgadas por personagens globais que usam os seus co-
lares, tecidos e turbantes.

O Pelourinho é a sua fonte de inspiração e foi lá que conheceu muitos


mestres renomados, tais como Mestre Caiçara, Mestre Dois de Ouro,
Mestre Vermelho Boxel, Mestre Descente e Mestre Edvaldo “Leão”. Fo-
ram eles os motivadores para que ela começasse a praticar capoeira, e

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em 1988, ela passa a ser aluna do Mestre Vermelho 27, na Associação espaços por onde passa. A capoeira promove situações que vão para
de Capoeira Mestre Bimba, no Pelourinho. além da roda, e que são basilares para uma boa convivência em socie-
dade. Como relata: “Para além de uma atividade física, a capoeira une
Naquele momento, o medo uniu-se à insegurança, pois ali só treinava muitos amigos, é um processo de aprendizagem constante e também
quem tinha “farinha no saco”, como dizia o Mestre Vermelho 27, só que uma forma de terapia”.
a sua coragem sobressaiu e até hoje ela está lá. Um outro mestre muito
importante e decisivo em sua trajetória é Rubens Costa Silva, o “Mestre
Bamba”, a quem tanto ela tem admiração e respeito. Enfrentou muitos
obstáculos para continuar treinando, como o preconceito e machismo.
Belo exemplo de determinação
E assim ela foi gingando e superando todos os desafios, podendo afir- e coragem, além de consciência
mar que é uma satisfação permanecer e criar laços na capoeira. da função social da capoeira.
Viva Mestra Tekka Foguete!
É mãe de duas garotas, Pola e Paloma, que são muito focadas e dedicadas
aos estudos. Nem mesmo durante a gravidez ela parou por um instante,
com oito meses de gestação continuava assídua aos treinos. Diante do
sentimento materno, a Associação de Capoeira, da qual ela faz parte, tor-
nou-se a sua segunda casa, devido ao imenso amor a essa arte.

A capoeira lhe proporcionou uma maravilhosa viagem à Venezuela, tor-


nando-a confiante para abraçar novas oportunidades no exterior. Ela
joga capoeira angola, regional, domina vários toques de berimbau, toca
agogô, xequerê, reco-reco, atabaque, entre outros. A sua voz é encan-
tadora, e isso se reflete nas ladainhas, quadras, corridos, samba de roda
e maculelê. O seu domínio sobre questões referentes à cultura baiana
é encantador.

Mestra Tekka Foguete não gosta de estabelecer inimizades na capoeira,


por isso é sempre acolhedora e procura ampliar os seus relacionamen-
tos, o que favoreceu a sua mestria. Em 2020, esse sonho foi realizado
e, através das mãos do Mestre Bamba, recebeu o título de mestra. Ela
é a primeira mestra formada pelo Mestre Bamba.

Espera-se que a sua experiência seja referência para outras mulheres,


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que ao longo dos anos tiveram a figura masculina como protagonista. E
esse negacionismo se deve à própria estrutura da sociedade machista
e patriarcal, que designou às mulheres, por muitos anos, a função de
cuidadora do lar e da família.

Mas, é nos golpes e esquivas que a Mestra Tekka Foguete vai assu-
mindo o seu papel, dedicando-se à cultura popular e reconstruindo os

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MESTRA TISZA
Tisza de Oliveira Coelho

Nascida no Rio de Janeiro, em 1966, Mestra Tisza é filha de Marta Ma-


dalena Vargas de Oliveira e Sergio Raimundo Huch Coelho, tem dois
irmãos e é a caçula da família. Passou uma infância feliz, em uma famí-
lia de classe média, em uma Copacabana que não existe mais, onde a
menina Tisza andava de bicicleta pelos quarteirões do bairro, sozinha,
enquanto o porteiro do prédio onde residia “passava os olhos nela”, a
pedido de sua mãe.

Esse período reflete lembranças boas, época na qual a semente da au-


tonomia já podia ser vista brotando na criança Tisza, que, por opção
consciente dos seus pais, estudou em uma escola construtivista, na
qual foi bolsista. Lá, ela enfrentou preconceito por conta de seus cabe-
los crespos, os quais só ‘soltou’ aos 12 ou 13 anos.

Uma pessoa importante para sua formação foi sua bisavó, com quem
aprendeu a costurar. Desde a infância se interessou por música, pois
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sua mãe tinha cadernos com composições de vários compositores da
MPB, da era do rádio, e a ensinava a cantar diversas delas, que a en-
cantavam e despertaram a grande paixão que sente pela música, pelas
tonalidades, harmonias e dissonâncias apresentadas.

Essa relação com a música a fez aplicar suas economias em discos de


MPB comprados em sebos das galerias de Copacabana, economias

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guardadas a partir da mesada recebida em um momento no qual seu referência de mulher tocadora para a grande comunidade de capoeira.
pai ensinava aos filhos certa educação financeira. Tornou-se autodidata Com 10 anos de prática de capoeira, ganhou o mundo a partir da sua
sobre a música e os/as compositores/as brasileiros/as, e se envolveu arte. Como afirma:
com a cultura afro-brasileira em rodas de choro e samba frequentadas
por influência de um amigo de infância, aos 11 ou 12 anos de idade. “[...] nos anos 1991 a 1993 a capoeira me levou a morar e tra-
balhar em Paris e Amsterdã. Trabalhei na Alemanha em muitas
Além da música, a capoeira tornou-se sua outra paixão, iniciando seus cidades; Bélgica, França, Finlândia, Suécia, Portugal, Itália, anti-
estudos e prática em 1981, aos 14 anos, porque duas amigas estavam ga Tchecoslováquia, dentre muitos outros países europeus. Essa
praticando e a incentivaram a ‘entrar’. Então, no Rio de Janeiro, com poderosa capoeirista, literalmente, deu volta ao mundo. Esteve
Mestre Garrincha, integrando o Grupo de Capoeira Senzala, deu início também na América, Ásia e na Oceania: “fui trabalhar em todo
à sua formação. Tisza começou a dar aulas e ter alunos em 1987, mas EUA, Canadá, México, Córsega, Colômbia, Austrália, Nova Ze-
desde 1986 dava aulas como substituta do mestre, no grupo. lândia, Caribe, Hong Kong, Japão, Coréia. Participei de diversos
eventos de capoeira e cultura brasileira nos EUA, fazendo parte
Mesmo sendo comuns os apelidos no meio capoeirístico, o único também de grupos musicais, performáticos e folclóricos (Urban
que recebeu foi logo no início da sua prática: Atiça (do verbo atiçar). Tap, Beat The Donkey, Roots of Brazil, Ornette Coleman Ensem-
Algumas pessoas achavam que seu nome era Patrícia, pois ficou co- ble, Capoeira Foundation, Ginga Brasileira são alguns deles)”.
nhecida por Tiça, naquele momento. Hoje é conhecida apenas como
Mestra Tisza. Em 1992, iniciou seus estudos de capoeira com Mestre João Grande,
em Nova Iorque, tornando-se sua discípula e aluna. Tisza tem o com-
Seguindo sua trajetória, lecionou em escolas construtivistas no Rio, promisso com a cultura oral e a capoeira angola de realizar o resgate e a
participando do processo histórico de inserção da capoeira nas escolas perpetuação da linguagem do seu mestre no Brasil. Assim, retornando
públicas e particulares cariocas. Na década de 80, participou de reuni- ao Brasil e se estabelecendo na Bahia, fundou, em 2004, o Centro de
ões sobre capoeira no Ministério da Cultura e Educação, tornando-se Capoeira Angola Ouro Verde, em parceria com o Mestre Cabello Cao-
atuante na área. Como ela afirma, “Nos anos 80 a capoeira me levou bijubá. Lá, ela leciona na área rural e no povoado de Serra Grande. Suas
para muitas esquinas e quebradas da minha cidade e município”. Desde iniciativas já receberam reconhecimento e prêmios locais e nacionais.
então, as viagens e intercâmbios tornaram-se frequentes em sua vida: Em meio a tanta movimentação, ela também é mãe. Mãezona. E tem
duas filhas da barriga, e um filho do coração, declara.
“[...] também nos 80, viajei atrás de capoeira para São Paulo,
capital, São José dos Campos, Guaratinguetá e outros interiores Mestra Tisza não é apegada a datas, mas guarda com imenso amor e or-
paulistas. Em Curitiba, em 1989, joguei com Mestre João Pe- gulho os reconhecimentos (entregas de diplomas) como contramestra
queno pela primeira vez”. e mestra, pelo Mestre João Grande. Nos conta, também, que antes dos
diplomas, já era chamada mestra nos EUA, Rio, Maranhão e em outros
Também esteve em Belo Horizonte, Petrópolis, Teresópolis, Vitória, São lugares, e temia que seu mestre se ‘arretasse’ com isso. No entanto, ela
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Luís e Salvador. A Mestra lembra que, por volta de 1986, após viagem afirma ser “super fiel e discípula” de seu João: “[...] desde que cheguei
que fez à Bahia, quando conheceu o Mestre João Grande, que viria a se na academia do Mestre, sempre disse e repito até hoje: sou alforriada”.
tornar seu mestre, observou uma diferença entre as capoeiristas do Rio É uma mulher de personalidade marcante: “[...] não sei se por formação
e Bahia: em Salvador, as mulheres tocavam berimbau e atuavam com familiar ou por signo”.
menos firmeza na roda, e no Rio, acontecia o oposto. Esse foi um argu-
mento que usou para incentivar suas contemporâneas a se aprimorar Essa sagitariana, reconhecida por ser muito boa cantadora e tocadora
no toque do berimbau. Ela, com certeza, se aprimorou, e hoje em dia é nas rodas de capoeira angola, possui registros fonográficos como parti-

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coordenadora
cipação especial (instrumentista/cantora): CD Mágica (New York 1999),
CD Rogério Bicudo Ensemble (Amsterdã 1992), CD Nestor Capoeira e
Mestre Toni Vargas (RJ 1987), Beat The Donkey (NY 2000), CD Grupo
Senzala (RJ 1986) e em 2018, gravou, com outras mulheres capoeiris-
tas um CD. Em 2020, foi contemplada com o prêmio Emília Biancardi,
pela Secult/BA, algo que lhe deixou muito feliz, pois tem Emília Bian-
cardi como sua mestra e referência principal, e também como uma sá-
bia amiga pessoal.

Mestra Tisza costuma dizer que é uma ‘operária padrão da capoeira’,


a partir da lida direta com os/as alunos/as e aulas em seu espaço. Ela
faz da capoeira seu estudo e sustento, sua arte e trabalho, e continua
a construir, a cada dia, a partir de seu corpo, canto, conhecimento e
experiência adquirida e transmitida, sua forte e inspiradora trajetória
nos caminhos da capoeiragem.

Sem dúvida, um exemplo


de dedicação e talento a ser
valorizado.
Viva Mestra Tisza!

Franciane Simplicio Figueiredo


é capoeirista e mestra em Educação pela UFBA, coordenou o Programa
Capoeira Viva do Ministério da Cultura em Salvador. Atuou na organiza-
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ção e produção do I Congresso Internacional de Pesquisadores da Capo-
eira - UFRB. Participou como pesquisadora do livro Mestres e Capoeiras
Famosos da Bahia. Além disso, é organizadora dos livros A Capoeira em
Salvador: registro de mestres e instituições, Pensando a Capoeira: dimensões
e perspectivas e Capoeira em Múltiplos Olhares. Faz parte do Conselho
Gestor da Capoeira da Bahia e é idealizadora da empresa Maré Cheia
Produções Criativas e Sustentáveis.

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pesquisadoras

Dayse SimplIcio F. Cerqueira Luísa Pimenta,


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é capoeirista há mais de 20 anos, conhecida como instrutora Formiga, a Lilu, é capoeirista desde 1992, formada em pedagogia e, atualmente,
formada pela Associação Cultural de Capoeira Gangara, socióloga pela realiza mestrado na UFBA. Atua em várias frentes pela valorização dessa
Universidade UNIFACS. Idealizadora da empresa Colecult, por meio da cultura: o ensino para crianças, a salvaguarda e o bem-estar de mestres e
qual desenvolve diversas ações de valorização e difusão da cultura ne- mestras mais velhos/as, a pesquisa sobre as relações da capoeira e edu-
gra. Além disso, é autora da Revista Capoeira em Quadrinhos e do proje- cação. Fundou, com seu mestre, o grupo cultural Capoeira Malta da Serra,
to Encontro Infantil de Arte e Capoeira no Parque, coautora da Cartilha atuante em Lauro de Freitas. Além disso, traduz livros de capoeira para o
de Educação Patrimonial Brincadeira de Capoeira, dentre outros. inglês e é militante pelas questões de gênero, algumas de suas multiface-
tadas tarefas. Publicou o livro infantojuvenil CapoFlora FaunaEira.

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Maristela Carvalho de Souza
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é capoeirista, mestranda em História da África, da Diáspora e dos


Povos Indígenas pela UFRB. Especialista em Língua Portuguesa e
Literatura pela Faculdade São Bento da Bahia, também é licencia-
da em Pedagogia pela UNIFACS e bacharela em Comunicação Social
com habilitação em Produção Editorial, pela Faculdade Hélio Rocha.
Atualmente é pesquisadora da cultura negra com ênfase na capoeira
e no afoxé.

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Apoio financeiro:

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