O Juridiquês No Banco Dos Réus
O Juridiquês No Banco Dos Réus
O Juridiquês No Banco Dos Réus
Os diferentes modos de usar a mesma língua não raro são objeto de polêmica:
nos últimos tempos, assistimos a debates em torno da proposta de proibição do uso de
“estrangeirismos”, a críticas ao “gerundismo”, a discussões acerca do uso da
expressão “a nível de”, só para ficar com alguns exemplos mais significativos.
Recentemente, alguns órgãos de imprensa têm colocado em foco outro alvo: o
objeto de debate agora é o “juridiquês” (grosso modo, a “língua” dos profissionais do
Direito). O que desencadeou a discussão foi o seguinte fato: a Associação dos
Magistrados Brasileiros (AMB) designou uma comissão para a “reeducação lingüística”
dos operadores do Direito. Nessa perspectiva, recomenda-se aos profissionais da área,
por exemplo, evitar a ordem indireta na construção dos enunciados, bem como o
emprego de palavras arcaicas ou em desuso. Para alguns, isso implicaria um
empobrecimento da linguagem jurídica; para outros, a sua democratização.
O que nos interessa particularmente na polêmica sobre o “juridiquês” é o
seguinte:
• Não se pode confundir o emprego de termos técnicos com o uso de
palavras arcaicas: a condenação deste, portanto, não implica a daquele.
Quando se trata do “juridiquês”, é importante ter em mente que
existem termos específicos em todas as atividades sociais, que servem
sobretudo para facilitar a comunicação entre especialistas. O fenômeno
lingüístico, logo, não é exclusivo do Direito.
• A propriedade ou impropriedade no emprego da terminologia depende
da precisão no uso dos termos, segundo as definições correntes na
linguagem jurídica.
• A adequação ou não da terminologia jurídica não deve ser avaliada em
si mesma, ou seja, depende da situação concreta de comunicação: o
que está sendo dito, está sendo dito a quem? Se entre especialistas o
uso de terminologia é adequado, não o é se o interlocutor for leigo.
• Na comunicação humana não circulam somente conteúdos, mas
também imagens: pelo modo de dizer, as pessoas podem parecer mais
competentes ou incompetentes, sérias ou descontraídas, cultas ou
ignorantes, etc. A imagem do advogado tradicional, sério, sisudo, de
fala difícil, empolada, corresponderia mais, por exemplo, aos defensores
do “juridiquês”. Modos distintos de dizer o mesmo conteúdo, assim,
Esta é a versão integral do texto publicado na revista "Discutindo Língua Portuguesa" nº 3 (maio de 2006).
1
revelam imagens distintas, isto é, tipos diferentes de profissional da
área. Aliás, vale lembrar, “o estilo é o homem”.
Esta é a versão integral do texto publicado na revista "Discutindo Língua Portuguesa" nº 3 (maio de 2006).
2
Quem escreve um texto jurídico dessa maneira, prejudica, sem exagero, a
Justiça. Você já pensou o trabalho de um juiz, por exemplo, para decifrar um processo
inteiro escrito assim? Quantas vezes ele iria ao dicionário? Quanto tempo perderia? Por
isso é que, quando se fala em agilizar a Justiça, deve-se pensar também em agilizar a
linguagem adotada. Nessa perspectiva, evitar arcaísmos e preciosismos vocabulares é
um fator de “economia processual”: um texto claro, objetivo, que vai direto ao centro
da questão, é lido também com maior agilidade. O “juridiquês” que a ABM condena é,
pois, um fator que contribui para a lentidão das decisões judiciais, além de corroborar
a imagem “dura” dos profissionais da área.
Poderíamos prosseguir com diversos outros exemplos de usos da língua em
outras atividades profissionais, mas o que mostramos acima parece ser suficiente para
depreender as seguintes noções iniciais:
Quando usamos a língua, assim, não apenas transmitimos conteúdos. Claro que
é importante o que dizemos, mas não menos importante é o modo como dizemos.
Como vimos no início deste artigo, o mesmo conteúdo pode ser traduzido de maneiras
diferentes. Não é demais lembrar: “o estilo é o homem”. Um advogado que diz, por
exemplo, “o puto meteu cinco tecos na vagabunda” parece menos confiável do que
aquele que diz “o réu deu cinco tiros na esposa”. Por que, se ambos estão dizendo a
mesma coisa?
É exatamente no modo de dizer, e não propriamente no que é dito, que reside a
distinção: o primeiro advogado, por suas palavras, pode transmitir uma impressão de
falta de cuidado, de conhecimento. Com o perdão da comparação, por sua linguagem
“chula”, em princípio, parece estar mais próximo da imagem do réu do que do
Esta é a versão integral do texto publicado na revista "Discutindo Língua Portuguesa" nº 3 (maio de 2006).
4
estereótipo do advogado. A menos que o gênero fosse uma “conversa de boteco”, com
alguém muito íntimo e despojado...
Seria melhor, então, se dissesse “desferiu cinco projéteis no cônjuge”? Como
ensina o senso comum, os extremos são viciosos: se num caso o advogado pecaria
pela falta, este pecaria pelo excesso. Explicando melhor: o emprego de termos
“populares”, de um lado, e o uso de linguagem muito rebuscada, de outro, afetariam a
imagem dos advogados. Se um parece não ter pleno domínio da área, o outro, ainda
que dê a impressão de tê-lo, pode parecer pernóstico, arrogante. É nessa direção que
vai a crítica da Associação dos Magistrados Brasileiros: evitar preciosismos
vocabulares, sem desprezar a propriedade no emprego da linguagem especializada;
conforme a situação concreta de comunicação, traduzir a terminologia, aproximando
dos leigos o Direito.
Por tal razão é que a maneira de dizer é bastante reveladora, atuando como
uma espécie de carteira de identidade do enunciador: o modo de dizer fornece pistas
sobre a sua idade, seu grau de escolaridade, sua classe social, sua profissão... Pela
maneira de usar a língua, o enunciador se mostra como alguém mais sisudo ou
descontraído, formal ou informal, culto ou ignorante, etc. Ao usar a língua, portanto,
não apenas transmitimos conteúdos: ao transmiti-los, transmitimos também uma
imagem de nós.
Esta é a versão integral do texto publicado na revista "Discutindo Língua Portuguesa" nº 3 (maio de 2006).
5
Como vimos, as diferentes atividades sociais promovem usos distintos da
língua. Cada profissão, assim, tem um léxico especializado, isto é, um conjunto de
palavras que integram a terminologia da área. Quanto a isso, duas questões
interessam: primeiro, há palavras que já existem no senso comum, mas que sofrem
uma especialização de sentido, para integrar dada terminologia; segundo, há palavras
que não ocorrem no senso comum, existindo apenas na língua técnica. Nos dois casos,
as palavras servem para facilitar a comunicação entre os profissionais, evitando
ambigüidades, imprecisões, mal-entendidos.
Para esclarecer tais noções, pensemos em algumas palavras consideradas
sinônimos perfeitos pelo senso comum, como “delito”, “crime” e “contravenção”,
“reclusão” e “detenção”, “imprudência” e “imperícia”, “calúnia”, “difamação”, “injúria”
e “calúnia” e “residência” e “domicílio”. No Direito, cada termo tem uma definição
precisa: os sinônimos não são, como podem parecer à primeira vista, perfeitos.
Tanto o “crime” quanto a “contravenção” são delitos. O “delito”, assim, é um
hiperônimo (palavra de sentido mais abrangente); “crime” e “contravenção” são
hipônimos (palavras de sentido mais restrito). A distinção entre elas é feita pelo traço
de sentido da gravidade do ato: o “crime” é considerado mais grave do que a
“contravenção” (não à toa, esta também é chamada de “crime anão”). A propósito,
quando se fala em cumprimento da pena, deve-se distinguir entre “reclusão” e
“detenção”: esta é menos grave do que aquela, uma vez que a “detenção” tem início
em regime semi-aberto, e a “reclusão”, em regime fechado.
Quanto à “imprudência” e “imperícia”, esta diz respeito à falta de aptidão
técnica, teórica ou prática, ligada ao exercício de alguma profissão. Por exemplo, é o
caso de um médico que comete um erro grave em uma cirurgia em tese de sua
especialidade. A “imprudência” se refere a um ato positivo que implica risco, isto é, a
um fazer visto como um ato perigoso. Por exemplo, dirigir em alta velocidade.
No caso da distinção entre “injúria”, “difamação” e “calúnia”, esta significa
atribuir falsamente a alguém um fato definido como crime. Por exemplo, dizer que
alguém roubou. Se o fato atribuído falsamente a outrem não for considerado crime,
afetando apenas a reputação da vítima (o que a sociedade pensa sobre certos fatos e
valores), deve-se empregar o termo “difamação”. Por exemplo, divulgar que alguém
sai com todo mundo, namora muito (isso não é crime). A “injúria” ofende a dignidade,
a chamada “honra subjetiva” (o decoro, a imagem que alguém faz de si mesmo). Por
exemplo, afirmar que alguém é burro, incompetente.
Por fim, as palavras “domicílio” e “residência”. Em nosso livro Tópicos de
Gramática, registramos o seguinte quanto aos termos: “O Direito Civil estabelece uma
Esta é a versão integral do texto publicado na revista "Discutindo Língua Portuguesa" nº 3 (maio de 2006).
6
distinção semântica entre as palavras domicílio e residência: esta significa o ‘lugar de
habitação da pessoa natural, ou aquele em que ela se fixa, ou permanece, embora em
caráter não definitivo’; aquela se refere ao local em que a pessoa estabelece sua
residência ‘com ânimo definitivo’, além de significar também a sede legal da pessoa
jurídica” (São Paulo, Editora CPC, 2005, p.171) .
Como pudemos perceber, tais palavras, também usadas fora do Direito,
adquirem nele sentidos particulares. Além desse fenômeno da especialização de
sentido, ocorrem também criações lexicais para atender a demandas específicas da
área, ou seja, para nomear situações exclusivas do universo jurídico. É o caso, por
exemplo, de palavras como “nu-proprietário”, “impronunciar” e “despronunciar”. Em
linhas bem gerais, a primeira se refere ao sujeito que não tem a propriedade plena de
algo; a segunda, ao ato de considerar inadequada uma denúncia; a terceira, ao ato de
alterar um julgamento anterior.
Esses exemplos de “juridiquês” ratificam a importância da terminologia, da
precisão vocabular, da exatidão dos termos técnicos na comunicação entre os
especialistas, nos gêneros que circulam na área (mandado de segurança, petição
inicial, contestação, etc).
Esta é a versão integral do texto publicado na revista "Discutindo Língua Portuguesa" nº 3 (maio de 2006).
7
Paulo César de Carvalho é bacharel em Direito e mestre em Lingüística pela
USP, professor de Gramática, Interpretação de Texto e Redação do curso Anglo
Vestibulares, Professor de Cursos Preparatórios para Concursos , Professor do DIEX do
Curso Básico e do Curso Extensivo, co-autor do material de Língua Portuguesa do
Sistema Anglo de Ensino e autor dos livros Tópicos de Gramática e Tópicos de
Interpretação de Texto e Redação .
Esta é a versão integral do texto publicado na revista "Discutindo Língua Portuguesa" nº 3 (maio de 2006).
8